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08/04/2019 Matrix faz 20 anos: descubra o que ele te ensinou sobre filosofia. Sem você perceber.

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Cultura

Matrix faz 20 anos: descubra o que


ele te ensinou sobre filosofia. Sem
você perceber.
Alegoria da caverna. "Penso, logo existo". Jean Baudrillard. O filme é
a aula de filosofia que você sempre quis ter: tão boa que nem
parecia aula.
Por Bruno Vaiano
access_time 5 abr 2019, 20h32

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(Warner Bros/Reprodução)

Matrix está fazendo 20 anos. Sim, é sério: 20 anos. O filme foi


lançado em 31 de março de 1999 nos EUA – no Brasil, a estreia só
rolou em 8 de maio, mais de um mês depois. É um atraso
impensável para um blockbuster atual (os fãs de Vingadores
acabariam comprando uma passagem para a gringa), mas era
padrão na época: Titanic saiu em 19 de dezembro de 1997 nos EUA,
mas só em 16 de janeiro do ano seguinte por aqui.

Todo mundo já sabe a sinopse, mas não custa revisar: durante o


dia, Thomas Anderson é um programador insone, que bate ponto em
um escritório monótono com divisórias de fórmica. À noite, é um
hacker que atende pelo codinome Neo. No submundo virtual, entra

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em contato com algo chamado Matrix – descrita como “a sensação


de que há algo de errado com o mundo”. Ele fica obcecado pela
ideia.

Por meio de outra hacker, Trinity, Neo conhece o conspirador Morfeu


– não por coincidência, nome da divindade grega do sono. Morfeu
revela que o mundo conhecido por Neo, na verdade, é uma
realidade virtual.

Máquinas sencientes dominaram o planeta, derrotaram nossa


espécie e estão extraindo energia de nossos corpos dormentes em
enormes “fazendas de gado humano” – enquanto nos mantêm
distraídos em uma simulacro do que era a Terra no auge da
civilização humana. Morfeu é um dos líderes da rebelião contra a
inteligência artificial, e traz Neo para a realidade com a famosa pílula
vermelha.

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query_builder 8 dez 2015 - 14h12

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Começando na Grécia
O despertar de Neo remete à Alegoria da Caverna, um experimento
mental proposto por Platão no livro VII da República, escrito por
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volta de 380 a.C. Platão raramente usava prosa tradicional: deixou


boa parte de sua obra na forma de diálogos entre Sócrates e
diversos interlocutores atenienses – utilizando-os como personagens
para expressar suas ideias.

Parece estranho hoje, mas esse jeito de escrever era adequado à


ideia de que a razão só pode ser alcançada por meio do diálogo.
Não basta exprimir uma opinião, é essencial saber se ela se mantém
verdadeira após o escrutínio dos outros. O conhecimento é
construído por meio do questionamento.

No livro VII, Sócrates pede a Glauco que imagine uma caverna em


que um grupo de pessoas está aprisionado desde o nascimento.
Eles são atados de maneira que só consigam ver a parede da
caverna: não enxergam seus próprios corpos, nem os de seus
colegas. Exatamente como os humanos em Matrix – que são
armazenados pelas máquinas em cápsulas gelatinosas,
desacordados.

Atrás dos prisioneiros há uma fogueira, cuja luz é usada para


projetar sombras de pessoas, animais e objetos na parede da
caverna. Como os prisioneiros nunca tiveram acesso à realidade,
passam a pensar que aquele mundo de interações entre sombras é
a própria realidade. Uma versão analógica do que acontece no filme.

Sócrates (novamente: na verdade é Platão) então imagina o que o


ocorreria se um dos prisioneiros fosse libertado e arrastado à força
para fora – o equivalente a tomar a pílula vermelha. Após muita
resistência, ele seria exposto ao mundo e forçado a pensar sobre o
que vê. Assim, descobriria que a realidade é muito mais satisfatória
que o teatro de sombras, e retornaria à caverna, ansioso por libertar
seus colegas.

Ao voltar, porém, o Neo de Platão, agora com as retinas


acostumadas à luz, ficaria cego nas trevas. E seus companheiros,
percebendo que ele se feriu em sua jornada, se negariam a
acompanhá-lo. É mais confortável cultivar a ignorância do que trilhar
uma jornada dolorosa contra o conformismo.

Veja também
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A origem do “Penso, logo existo”
query_builder 11 dez 2015 - 12h12

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Sabor de croissant

O francês René Descartes, que viveu entre 1596 e 1650, é outro


alicerce de Matrix. Ele é autor da frase mais famosa da civilização
ocidental, “Penso, logo existo”. Em outras palavras: não dá para ter
certeza de nada. Mas dá para ter certeza de que você é capaz de
duvidar de tudo. Não podemos confiar nas informações fornecidas
por nossos sentidos, mas sempre teremos o raciocínio lógico a
nossa disposição.

Neo foi capaz de duvidar de seus sentidos no interior da Matrix. Ele


foi cético. E sua paranoia cartesiana, no fim das contas, se justificou.
Todas as suas experiências de sua vida até então – o sabor de cada
prato, a textura de cada objeto, o ruído dos carros na rua – de fato
haviam sido geradas artificialmente. As máquinas só não o privaram
da capacidade de pensar, e foi essa capacidade que o libertou.

O americano Hillary Putman, que viveu no século 20, atualiza a


desconfiança de Descartes com um experimento mental. Ao fazê-lo,
chega a um cenário similar ao de Matrix:

“Imagine que um ser humano foi submetido a uma cirurgia por um


cientista do mal. O cérebro da pessoa foi removido do corpo e
colocado em um tonel com nutrientes que o mantém vivo. Os nervos
foram conectados a um computador que faz com que a pessoa
tenha a ilusão de que tudo esta perfeitamente normal.”

“Parece haver pessoas, objetos, o céu. Mas, na realidade, todas as


experiências são resultado de impulsos eletrônicos viajando do
computados para os nervos. O computador é tão eficaz que, se a
pessoa tenta levantar a própria mão, ele fará com que ela sinta e
veja a mão se erguer. A vítima chega até a pensar que está sentada
lendo estas palavras sobre a suposição absurda, mas interessante,
de que há um cientista que remove o cérebro de uma pessoa de seu
corpo e o coloca em um tonel.”

O americano Robert Nozick deu um passo além: e se o cientista na


verdade fosse um cara bacana – e pudesse programar a máquina de
maneira a fazer seu cérebro ter a ilusão de estar vivendo tudo que
você sempre quis viver? Você optaria por realizar seus maiores
desejos? Ou se privaria da experiência? Adianta ser um rock star se
na verdade não há alguém ouvindo sua música? Ou isso não importa

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quando todos os seus sentidos lhe dizem que, na verdade, os fãs


existem?

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Matrix? Máquina usa seres vivos como bateria
query_builder 26 set 2018 - 16h09

Indireta cidadã
Nos primeiros minutos do filme, Neo esconde um disquete com um
programa de computador ilegal no interior de um livro do francês
Jean Baudrillard, intitulado Simulacros e Simulação. Na obra de
1981, Baudrillard argumenta que as simulações e imitações da
realidade se tornaram mais reais que a realidade em si.

Falando assim, fica difícil entender, então vamos de exemplo: a


população dos países ocidentais desenvolvidos é extremamente
sedentária; andar, correr ou cavalgar não são mais atividades que
fazem parte do cotidiano. Fazer cooper, por outro lado, é um
passatempo cobiçado: nós compramos sapatos e roupas especiais,
instalamos aplicativos no celular e compramos livros sobre o
assunto. Exatamente como a Barbie, que em cada embalagem
simula uma profissão ou atividade.

As irmãs Wachowski admitiram abertamente a influência do


pensamento de Baudrillard no roteiro. Ele, por sua vez, esnobou o
filme. Mas mesmo que Matrix tenha transformado um ensaio que se
opõe à cultura de massa em mais cultura de massa, uma coisa é
impossível negar: ele fez a massa pensar sobre a própria cultura.
Com uma ajudinha de couro. Óculos escuros. E outras escolhas
fashion… duvidosas. Que venham os próximos 20 anos.

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