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Adriano Lacerda de Souza Rolim

Graduação em Estudos Literários


Trabalho final: Análise de poema
Ano: 2008
Professor Luiz Dantas

O relógio de João Cabral

O poema, conforme a objetividade cabralina do título, fala desse objeto


mecânico que marca o tempo. Mesmo sendo João Cabral um domador de palavras, de
uma poesia racional, construída e orientada para a autodefinição, a leitura de um
Alcides Villaça1 sobre o autor e de textos do próprio João Cabral acerca do fazer
poético2 – donde se conclui que seria equivocado lê-lo por uma ótica estritamente
formalista –, autoriza-me a encontrar n’O Relógio uma certa inquietação, claro que
devidamente controlada, mas bem própria do tempo em que se insere.
Feitas as notas, vamos ao texto.
De escritura dividida em quatro partes (1, 2, 3 e 4), é também assim que o poema
aparecerá nesta pequena análise. Fosse eu nomear cada uma das frações de O Relógio e
seriam elas, respectivamente: Apresentação, Trabalho, Força e Reação.

1. Anuncia-se algo que paira “ao redor da vida do homem”. São “caixas de
vidro”; primeiro, comparadas a “jaulas”, depois a “gaiolas”, já que delas se ouve,
aprisionado, o “palpitar de um bicho”. De duas maneiras as caixas podem estar
presentes na vida do homem: “umas vão penduradas nos muros”, outras “num bolso” ou
“num dos pulsos”. Ou seja, há entre o homem e o relógio-caixa-de-vidro dois tipos de
relação: a de caráter público, mais geral, com aquele pendurado no muro; e a de caráter
privado, mais íntimo, com aquele carregado no bolso ou no pulso. Já a palpitação
contida na gaiola, esteja esta mais perto ou mais longe do homem, é uma palpitação
alada “e de pássaro cantor/ não pássaro de plumagem”, isto é, vem não do
exibicionismo de algum pavão, mas de certa funcionalidade atribuída ao “pássaro
cantor”. E o canto emitido é um canto contínuo, alheio à atenção humana, pois
“continua cantando/ se deixa de ouvi-lo a gente”.

1
Expansão e limite da poesia de João Cabral. In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura de Poesia, 1996, pp. 143-
169.
2
Por exemplo, Poesia e composição, publicado n’ O Estado, em 1952, em que aparece a preocupação de
João Cabral em relação a como andam a poesia e crítica literária contemporâneas e à necessidade de
comunicação com o leitor.
2. Situado o objeto, vai-se mais especificamente à sua função. Se por um lado,
os pássaros contidos nas gaiolas, cantam, por outro lado, “desconhecem as variantes/ e o
estilo numeroso/ dos pássaros que sabemos”. O que executam, assim, não é um canto
agradável, mas monótono, rouco, sem variação de repertório; não é um trabalho artístico
ou artesanal o realizado pelo objeto-pássaro-relógio; sem exigir esforço mental, é um
trabalho mecânico de operário serial que, sem esperar reconhecimento, executa “seu
martelo regular”, o que reforça aquela continuidade alheia à vontade “da gente”.
Noutras palavras, o relógio tem uma função: a marteladas regulares, marcar as horas. A
música produzida por tal marcação só poderia mesmo ser repetitiva, invariável como
uma linha de produção fabril.

3. Mas a mão do martelo, por ser “tão igual sem fadiga” e nunca mudar de
compasso, “mal deve ser de operário”. Ou seja, a regularidade é tal que a mão que
martela não pode ser equiparada a mãos humanas; só pode ser “mão de máquina”. Há,
pois, uma mão de máquina a reger o trabalho metódico de um pássaro mecânico numa
caixa de vidro. E o relógio funciona... A pergunta agora é: que força assaz exata move
essa mão de máquina? A busca pela resposta desenhará as três estrofes finais dessa
terceira parte.
Poderia fazer funcionar a máquina “algum monjolo” ou uma “antiga roda de
água”, ambos passivamente movidos por um fluido que por eles passasse, a água. Mas o
fluido motor da máquina-relógio “não mostra da água os senões”, e é, além de invisível,
“sem marés, sem estações”, ou seja, contínuo como não pudesse ser talvez a água. O
“sem estações” descartará, a seguir, a idéia de que o fluido possa ser o vento. Chega-se,
enfim, à quase conclusão – quase por conta do “quem sabe” – de que o fluido motor dos
mecanismos da máquina em questão é “quem sabe, o tempo.”

4. E abre-se desta maneira a última parte do poema:

“Quando por algum motivo


a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora de dentro do homem”
Primeiro uma observação quanto à reincidente “roda de água”. Parece
contraditório. Mas não. Acredito estar a ênfase na roda, como roda-engrenagem que gira
de acordo com o fluido-tempo e executa, ciclicamente, sua marcação contínua. Quanto à
estrofe transcrita, é fundamental ponto de transição no poema. Até aqui, falava-se da
máquina-relógio: sua aparência (jaula, gaiola, caixa de vidro); seu trabalho (sempre no
mesmo compasso); e sua mecanicidade absoluta movida pelo tempo. Agora, entretanto,
tem-se uma virada.
Existindo a possibilidade de rompimento, o “quando por algum motivo” a
denuncia como possibilidade realizável: há motivos possíveis e eles acontecem, levando
ao rompimento da roda de água. Em relação a quê? O seguimento da leitura mostrará
que em relação ao homem. Não bastasse a novidade do rompimento, apresenta-se uma
“outra máquina” surgindo em substituição à anterior que, por alguma contingência, fora
rompida: uma máquina “agora, de dentro do homem”. Não externa, “ao redor da vida do
homem”, como aquela de que se falava até então, mas “soando nas veias, no fundo/ de
poça no corpo, imersa”. E o som emitido pela nova máquina, no lugar da passividade da
roda de água, emana ímpeto (“afogo”) “de quem, ao fazer, se esforça” e demonstra
“vontade própria”. Som, ímpeto e vontade própria que, pulsando nas veias humanas,
não podem disfarçar sua origem: uma certa “bomba motor”, o coração. Percebe-se aí
algo interessante: o órgão pulsante é bomba motor e só “noutra linguagem” é que é
coração. Portanto, o coração é máquina. Então, pergunto: humanização da máquina ou
mecanização do coração?

Retomo, a seguir, a última estrofe da primeira parte:

“que continua cantando


se deixa de ouvi-lo a gente
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.”

Desta passagem, as duas últimas linhas, até aqui propositadamente omitidas.


Encontro nesse “cantar da gente para mostrar-se existente” relação direta com o
rompimento da parte 4: a configuração de um certo desvio em relação à continuidade
mecânica do tempo, pois se é real que o homem a ela está submetido, é também
bastante real sua humanidade. Humanidade portadora, dentro de si, de uma máquina
humana, de vontade própria contrária à passividade de uma engrenagem de relógio.
Máquina que, no entanto, parece não prevalecer sobre a máquina-relógio-tempo: limita-
se a percepção da vida “soando nas veias” a soluços de colapso do metódico relógio.
Pois mesmo o coração é bomba motor, é máquina que pulsa “gota a gota” como o tic
tac de um relógio, e colabora com a implacabilidade do tempo no esgotamento das
reservas de vida que o homem possa ter.
Ora, esse poema não poderia chamar-se O Tempo?
Não.
Decididamente não. Trata-se de João Cabral. E o tempo, conceito ainda por
demais abstrato, precisava ser materializado, não para prejuízo da estética do texto, pelo
contrário, para enriquecimento em vista de uma construção que olha para o real e faz as
relações possíveis.
O poema O Relógio faz jus às palavras de Alcides Villaça: “as afinidades ou as
oposições entre as imagens travam-se no interior de um discurso cumulativo, orientado
para a autodefinição” (in BOSI, 1996, p. 148). Curioso é notar que essa autodefinição
de um objeto frio, mecânico, regular, acaba nos levando a um órgão vivo, pulsante,
aquecido. Valeria a pena lembrarmo-nos de que falamos de um dos poemas do livro
Serial (1959-1961). Sobre tal livro, temos a seguinte afirmação de João Cabral:

Serial é constituído sob o signo do número 4: é dividido em 4 partes sob qualquer


ângulo que se olhe. Consta de 16 poemas de 4 partes: 4 poemas têm 6 sílabas, 4 têm 4, 4
têm 8, 4 têm 6-8; 4 poemas são de 2 quadras cada parte, 4 de 4, 4 de 6 e 4 de 8; 4
poemas são unidades objetivas; 4 são partidos em 4 partes, 4 são maneiras diferentes de
ver a mesma coisa (“O ovo da galinha”), 4 constituem uma unidade subjetiva; 4 poemas
são assonantes etc. Ora, tudo isso obedeceu a um esquema prévio. Só “Graciliano
Ramos” está fora dele, é um poema isolado. (apud: ATHAYDE, 1998)

Não é preciso ser muitíssimo versado em poesia para notar o número 4 em O


Relógio. São 4 partes com 6 estrofes cada, totalizando 24 estrofes (as horas do dia?)
com 4 versos cada. Mas quero chamar a atenção para Graciliano Ramos ali no canto.
Assim como na construção do relógio, acaba por aparecer um coração, também na
construção de Serial aparece Graciliano para quebrar toda a simetria das combinações
do número 4. Mas não deixemos estar ainda. Que Cabral, como diriam seus próprios
conterrâneos, não é de dar ponto sem nó. Notemos que a homenagem a Graciliano
Ramos vem justamente para ratificar a objetividade e limpeza da linguagem que
permeia Serial. Basta ficarmos nos primeiros versos:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

Assim como o coração não vem para açucarar O Relógio, mas vem como
máquina, bomba-motor. E poderíamos ainda ficar nesse vaivém, sem nunca chegarmos
a uma conclusão sobre onde está a ênfase de João Cabral: em objetivar o emocional ou
em dramatizar o objetivo. Justamente por isso, seus poemas tendem a expandir-se a
cada leitura: não podemos resolver esse problema.

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