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1. Anuncia-se algo que paira “ao redor da vida do homem”. São “caixas de
vidro”; primeiro, comparadas a “jaulas”, depois a “gaiolas”, já que delas se ouve,
aprisionado, o “palpitar de um bicho”. De duas maneiras as caixas podem estar
presentes na vida do homem: “umas vão penduradas nos muros”, outras “num bolso” ou
“num dos pulsos”. Ou seja, há entre o homem e o relógio-caixa-de-vidro dois tipos de
relação: a de caráter público, mais geral, com aquele pendurado no muro; e a de caráter
privado, mais íntimo, com aquele carregado no bolso ou no pulso. Já a palpitação
contida na gaiola, esteja esta mais perto ou mais longe do homem, é uma palpitação
alada “e de pássaro cantor/ não pássaro de plumagem”, isto é, vem não do
exibicionismo de algum pavão, mas de certa funcionalidade atribuída ao “pássaro
cantor”. E o canto emitido é um canto contínuo, alheio à atenção humana, pois
“continua cantando/ se deixa de ouvi-lo a gente”.
1
Expansão e limite da poesia de João Cabral. In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura de Poesia, 1996, pp. 143-
169.
2
Por exemplo, Poesia e composição, publicado n’ O Estado, em 1952, em que aparece a preocupação de
João Cabral em relação a como andam a poesia e crítica literária contemporâneas e à necessidade de
comunicação com o leitor.
2. Situado o objeto, vai-se mais especificamente à sua função. Se por um lado,
os pássaros contidos nas gaiolas, cantam, por outro lado, “desconhecem as variantes/ e o
estilo numeroso/ dos pássaros que sabemos”. O que executam, assim, não é um canto
agradável, mas monótono, rouco, sem variação de repertório; não é um trabalho artístico
ou artesanal o realizado pelo objeto-pássaro-relógio; sem exigir esforço mental, é um
trabalho mecânico de operário serial que, sem esperar reconhecimento, executa “seu
martelo regular”, o que reforça aquela continuidade alheia à vontade “da gente”.
Noutras palavras, o relógio tem uma função: a marteladas regulares, marcar as horas. A
música produzida por tal marcação só poderia mesmo ser repetitiva, invariável como
uma linha de produção fabril.
3. Mas a mão do martelo, por ser “tão igual sem fadiga” e nunca mudar de
compasso, “mal deve ser de operário”. Ou seja, a regularidade é tal que a mão que
martela não pode ser equiparada a mãos humanas; só pode ser “mão de máquina”. Há,
pois, uma mão de máquina a reger o trabalho metódico de um pássaro mecânico numa
caixa de vidro. E o relógio funciona... A pergunta agora é: que força assaz exata move
essa mão de máquina? A busca pela resposta desenhará as três estrofes finais dessa
terceira parte.
Poderia fazer funcionar a máquina “algum monjolo” ou uma “antiga roda de
água”, ambos passivamente movidos por um fluido que por eles passasse, a água. Mas o
fluido motor da máquina-relógio “não mostra da água os senões”, e é, além de invisível,
“sem marés, sem estações”, ou seja, contínuo como não pudesse ser talvez a água. O
“sem estações” descartará, a seguir, a idéia de que o fluido possa ser o vento. Chega-se,
enfim, à quase conclusão – quase por conta do “quem sabe” – de que o fluido motor dos
mecanismos da máquina em questão é “quem sabe, o tempo.”
Assim como o coração não vem para açucarar O Relógio, mas vem como
máquina, bomba-motor. E poderíamos ainda ficar nesse vaivém, sem nunca chegarmos
a uma conclusão sobre onde está a ênfase de João Cabral: em objetivar o emocional ou
em dramatizar o objetivo. Justamente por isso, seus poemas tendem a expandir-se a
cada leitura: não podemos resolver esse problema.