Você está na página 1de 29

1

Verdades, histórias, realidades

Enrico Castelli Gattinara

1. O horizonte das verdades

1.1 O que gira em torno do quê?


O problema da verdade é um problema epistemológico de primeira ordem, mas foi e
continua a ser um problema filosófico, ético e psicológico… É também um problema de
linguagem cotidiana, um problema que diz respeito a todos os nossos conhecimentos científicos,
nossos discursos diários, nossos afetos e nossos relacionamentos com os outros; quem nunca
gritou muitas vezes em sua vida: “Diga-me a verdade!”? Então, é um problema que tentamos
resolver de muitas maneiras, mas que temos que encarar, por assim dizer, de frente. É evidente
para todos que “encarar qualquer coisa de frente” significa enfrentá-la diretamente, sem desvio,
sem mediação e sem hesitação, com coragem e com determinação. Trata-se, naturalmente, de
uma metáfora, isto é, uma mentira, ou melhor: uma falsidade. Assim como os provérbios, as
fábulas, os poemas ou os relatos têm feito há milênios, sempre se pode usar o falso para dizer o
verdadeiro. O historiador Marc Bloch se deu conta disso a propósito dos documentos históricos. 1
É bem diferente da mentira, a propósito da qual o discurso se desloca do nível epistemológico
para o nível moral e ético. Falso se opõe ao Verdadeiro no plano lógico-epistemológico, enquanto
que uma mentira se opõe à verdade (no sentido da sinceridade) no plano psicológico, político,
afetivo, moral, ético etc. Mas Marc Bloch soube ver como os dois planos se entrecruzam e se
interligam e como os limites, entre eles, não são estáveis. Nossas estratégias de linguagem são
feitas assim e as metáforas – como técnicas retóricas – funcionam porque o jogo entre a verdade e
a falsidade se faz em níveis de complexidade crescente e tão interligados que nenhuma teoria
lógico-filosófica da verdade ainda conseguiu abarcá-la.
Quando se fala de verdade, é preciso ter em mente essa grande extensão possível do
problema, mesmo se simplesmente se quer se limitá-lo ao domínio restrito da epistemologia.

1
BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire. Paris: A. Colin, 1993, p. 126 e ss.
2

Especialmente visto que o discurso, no que diz respeito ao campo científico, certamente não é tão
simples como poderia parecer.
Até que ponto, pergunta-se Jean-Marc Lévy-Leblond, é possível falar em termos de
verdadeiro/falso sobre enunciados científicos? Em que sentido o enunciado “O Sol gira em torno
da Terra” é verdadeiro ou falso? A história das ciências nos mostra que houve um tempo em que
esse enunciado foi considerado como verdadeiro e um outro tempo em que foi julgado falso, e
ainda hoje a questão não é tão fácil de se resolver de modo definitivo. Geralmente, diz-se que o
bom senso deve nos fazer dizer que ele é falso. Mas é o mesmo bom senso que, durante séculos,
fez dizer que ele era verdadeiro. E, ainda, como observou Paul K. Feyerabend 2 a propósito do
bom senso, isso deveria ser considerado muito mais verdadeiro do que falso, pois a experiência
cotidiana e a linguagem comum que usamos sem incômodo nos dizem que é verdadeiro. Nós
“vemos” de fato que o Sol se move e dizemos sem relutância e sem dificuldade que o Sol se põe,
que ele se levanta, que ele passa de um ponto a outro do céu.
O que seria a nossa vida sentimental e poética sem o amanhecer e sem o pôr do sol?
Quem teria a coragem de negar uma verdade tão evidente e tão compartilhada como um pôr do
sol? Até mesmo a legislação se refere a isso, e as regras de trânsito, as normas para a iluminação
de espaços públicos ou a gestão de horários de abertura e de fechamento de parques se referem
explicitamente a esse fenômeno para estabelecer quando é necessário iluminar as ruas de uma
cidade ou abrir um parque público. Há cálculos muito rigorosos, do ponto de vista técnico e
científico, para estabelecer, da maneira mais precisa, no minuto exato, a hora em que o Sol “se
levanta” ou “se deita”. Esta não é apenas uma verdade histórica, mas uma verdade do senso
comum e do conhecimento intuitivo que é atualmente compartilhada, inclusive por aqueles que se
ocupam, explícita e cientificamente, dessas questões. Nenhum astrônomo, exceto se for
neuroticamente minucioso ou obsessivo, jamais sonharia em negar o pôr do sol que ele está
mostrando extasiado à pessoa amada que está ao lado dele. O simples fato de que uma verdade
foi historicamente válida dá imediatamente origem a muitos problemas sobre os critérios de
verdade que é preciso aplicar, pois uma concepção absoluta da verdade implica que esta verdade,
uma vez adquirida, não possa mudar ao longo do tempo, nem que verdades parciais ou
aproximadas possam ser concebidas. A questão torna-se ainda mais complicada quando se
encontra diante de situações irreconciliáveis entre si, como aquela em que se encontra nosso

2
FEYERABEND, Paul K. Contre la méthode. Paris: Seuil, 1979. p. 58-100 (cap. 6, 7, 8, 9 e os apêndices 1 e 2).
3

romântico e neurótico astrônomo. Mas da mesma forma, para nós, comuns mortais dotados de
uma cultura de base aceitável, as coisas não são absolutamente simples. O domínio da verdade do
enunciado “O Sol se deita às 19h27”, que pode ser facilmente lido no jornal em uma data precisa
do fim da primavera em um país europeu como a França, é circunscrito e limitado por uma série
bem determinada de convenções; mas ninguém pensaria em dizer que é falso. No entanto, a
educação escolar elementar em física e astronomia deveria obrigar-nos a concluir pela falsidade
do enunciado, uma vez que é “cientificamente” falso sustentar que o Sol se move ao redor da
Terra. É sobre essa situação paradoxal que se concentram algumas considerações de Lévy-
Leblond.3

1.2 Os pontos de vista


Que o Sol gire em torno da Terra é incontestável, ele escreve, porque o vemos mover-se
todos os dias com nossos olhos e porque seu movimento é regular e previsível. E, no entanto,
todos “sabemos” que a revolução copernicana e galileana ocorreu e virou tudo pelo avesso,
substituindo o sistema geocêntrico pelo sistema heliocêntrico. Nós também “sabemos” que
Kepler compreendeu que a trajetória das órbitas dos planetas ao redor do Sol não era circular,
mas elíptica, e que Newton tinha descoberto que esse movimento dependia do princípio da
gravitação universal. Finalmente, sabemos que os cálculos astronômicos feitos antes de
Copérnico experimentaram grandes dificuldades em tornar coerentes as previsões com os
movimentos observados dos planetas e do Sol ao redor da Terra. Houve também um astrônomo
muito refinado e contemporâneo de Copérnico, Tycho-Brahe, que queria “conservar” o
geocentrismo e elaborou uma teoria muito pessoal, com a Terra no centro e o Sol girando ao seu
redor, mas com todos os outros planetas girando em torno do Sol. Era, portanto, um sistema
geocêntrico em relação à Terra, mas heliocêntrico em relação ao Sol e aos planetas (exceto a
Terra). Entre Ptolomeu (o representante “institucional” do geocentrismo) e Copérnico ou Galileu,
o único que conseguiu propor uma concepção efetivamente moderna de um ponto de vista
astronômico foi Tycho-Brahé, pois sua teoria “não era geocêntrica nem heliocêntrica, mas a-
cêntrica”.4 Toda a questão – escreve Lévy-Leblond – é apenas um problema de pontos de vista:
“Em outras palavras, para o físico moderno, todos os pontos de vista valem a priori, e a descrição

3
LÉVY-LEBLOND, Jean-Marc. Aux contraires. L’exercice de la pensée et la pratique de la science. Paris:
Gallimard, 1996, p. 27.
4
Ibid., p. 28.
4

dos movimentos pode ser feita de modo coerente a partir de um posto de observação qualquer (os
físicos falam de ‘sistema de referência’)”. 5 O problema é, com efeito, o de saber como passar de
um ponto de vista para outro, o que é, aliás, o objeto da teoria da relatividade de Einstein. Mas se
alguém quer ser rigoroso, o ponto de vista terrestre é inteiramente legítimo e eficaz: “É em uma
descrição à Tycho-Brahe – modernizada e refinada – que são calculadas as trajetórias dos
foguetes espaciais, já que também é a partir da Terra, nosso ponto fixo, que os lançamos. Desse
modo, não é falso, com todo rigor científico, afirmar que o Sol gira em torno da Terra!” 6
Especialmente porque, se quisermos ser precisos e fundamentados na teoria newtoniana da
gravitação universal, o centro de gravidade do sistema solar não se encontra no centro do astro,
como seria de se esperar, mas perto da sua superfície. Quanto às trajetórias planetárias, longe de
serem elipses perfeitas, são muito mais complicadas do que essas belas curvas geométricas
imaginadas. Seria preciso, além disso, considerar também o fato de que todo o sistema solar se
move na galáxia, e a galáxia certamente não está imóvel no universo.
Para a questão de saber se o Sol gira em torno da Terra, não é, portanto, possível dar uma
resposta dentro do quadro da dicotomia verdadeiro/falso: “Antes de responder, a ciência
formulará outra questão: ‘De que ponto de vista?’, e apresentará sua resposta, prudente, a toda
uma série de condições anexas que podem garantir a sua pertinência”.7
Para aqueles que objetariam que as duas teorias astronômicas não são equivalentes, pois
uma coisa é descrever os movimentos dos corpos celestes, outra coisa é explicá-los (o que a
teoria geocêntrica não poderia fazer), Lévy-Leblond responde que, assim formulada a questão,
não seria mais a da evidência observacional e da confiabilidade (ou não) dos nossos sentidos, e
que a validação do heliocentrismo não se situaria mais no mesmo plano do geocentrismo
ingênuo. Por conseguinte, as duas teorias, que não se encontram no mesmo plano epistemológico,
também não se contradizem. O que, para uma história das ciências que não está obcecada pela
ideia de crescimento e de progresso, não deveria ser sem importância. Com efeito, é nesse sentido
que, para o físico, todos os pontos de vista se equivalem.

1.3 As verdades permanecem verdadeiras para sempre?

5
Ibid., p. 29.
6
Ibid., p. 30.
7
Ibid., p. 31.
5

Da verdade, em um plano estritamente epistemológico, não se pode falar em termos


absolutos, mas é preciso sempre especificar as condições, os tempos, os pontos de vista, as
escolhas e as circunstâncias de seu emprego. Isso não nos obriga a renunciar à verdade em nome
de um “relativismo” de pontos de vista que anularia os efeitos dela para sempre; aqueles que
pensam assim permanecem ainda prisioneiros de uma concepção absolutista da verdade, fundada
no fato de que a verdade é (de modo indiscutível e indubitável) ou não é (e, portanto, não existe).
A verdade vale, em contrapartida, relativamente com certos critérios e com certas condições, mas
ela “existe” sem dúvida e seria louco (ou criminoso) renunciar a ela. 8 Ela não existe em um modo
que seria abstrato de um mundo pretensamente absoluto e único, pois ela se diz segundo os
modos e as situações de cada forma de saber, de cada estilo de racionalidade. 9 Lévy-Leblond
sustenta a mesma convicção com uma bela fórmula: “As verdades da ciência nunca são nuas”. 10
Esta é uma das respostas possíveis a uma questão aparentemente ingênua, mas, na realidade,
muito profunda, que Gregory Bateson coloca na boca de sua filha em um de seus numerosos
“metálogos”: “Mas, as verdades permanecem verdadeiras para sempre?” A ciência oficial e
clássica sempre deu uma resposta afirmativa, uma vez que uma verdade adquirida e válida para
sempre era considerada como fundamento da história cumulativa do saber científico. Hoje
sabemos que isso não é assim, pois a própria história das ciências nos demonstrou isso. Bateson
responde, com efeito, à sua filha de forma negativa, pois, diz ele, “nossas opiniões sobre a
verdade podem mudar”.11 Se considerarmos o que acontece na ciência, ou melhor, nas diversas
ciências, nós nos apercebemos, de imediato, que as verdades que permanecem verdadeiras por
muito tempo são muito poucas. Talvez apenas nas matemáticas possamos encontrar algumas
delas, mas não se trata certamente das verdades que os matemáticos profissionais julgam como as
mais interessantes. O que naturalmente perturba o bom senso comum que nos faz dizer ainda que
uma verdade que fosse verdadeira apenas de modo temporário ou sob certas condições não é,
para dizer a verdade, uma verdade.

8
Ibid., p. 35: “É ‘verdade’ que o Sol gira em torno da Terra, se o movimento for descrito no referencial da Terra; ou,
reciprocamente, é ‘falso’ que o Sol gira em torno da Terra, mas esta descrição está correta de um ponto de vista
particular…”
9
Não existe apenas um estilo de racionalidade, mas muitos, cada um com seus objetos específicos e seus critérios de
verdade. Sobre essa pluralidade de estilos, cf. HACKING, Ian, “‘Vrai’, les valeurs et les sciences”. In: CHANGEUX,
Jean-Pierre Changeux (dir.). La vérité dans les Sciences. Paris: O. Jacob, 2003, p. 211-214.
10
LÉVY-BLOND, Jean-Marc, op. cit. n. 3, p. 35.
11
BATESON, Gregory. Mind and Nature. A Necessary Unity. Bantam Books, 1979 (trad. francesa, La Nature et la
Pensée, Paris: Seuil, 1984; e trad. italiana, Milan: Adelphi, 1984, p. 272).
6

A questão da verdade é uma questão antiga. Na história da filosofia, permanece célebre o


grito exasperado de Agostinho, que já se encontrava no século V diante da dificuldade de
reconhecer o que era uma verdade e que queria dissipar essa dificuldade recorrendo ao senso
comum e inaugurando uma tradição da qual dificilmente estamos nos libertando apenas
recentemente. Agostinho exclamou: “Sete e três são dez; sete e três sempre foram dez; nunca e de
nenhuma maneira sete e três seria qualquer coisa que fosse diferente de dez; sete e três serão
sempre dez”. O que é incontestável. Mas o que isso significa? Talvez que a única verdade
“verdadeira” seja aquela que se possa exprimir da maneira agostiniana? Nenhuma ciência poderia
então nunca lhe corresponder... para não dizer de casos em que a física demonstrou que mesmo
esse tipo de verdade nem sempre é válida. 12 O fato é que se pensa a verdade como um valor
exclusivamente lógico, algo que é estranho à história: a criança pergunta “para sempre?” e o pai
responde que “as opiniões sobre a verdade” podem mudar. A criança formula uma pergunta do
tipo absolutista, referindo-se ao que Agostinho chamou de “as verdades eternas”, enquanto o pai
responde como historiador: não é tanto a verdade o que é importante, mas o que o queremos dizer
por verdade.13 Trata-se de uma das roupagens da verdade. Sem tê-lo resolvido, a epistemologia
dos últimos anos procurou formular o problema da verdade de um modo não dogmático e não-
reducionista. Ela procurou compreender as suas potências irredutivelmente lógicas, mas também
tentou não ignorar suas implicações antropológicas, sociológicas e históricas. Karl R. Popper já
tinha se referido a isso desde a década de 1960 – embora a partir de uma perspectiva
decididamente objetivista. Remetendo implicitamente ao problema que tinha conduzido
Agostinho à exasperação, Popper escreveu que a verdade pura e simples certamente não poderia
ser suficiente para o conhecimento científico, já que ela seria totalmente insignificante e
desinteressante: “É claro, com efeito, que não queremos simplesmente a verdade – queremos
mais da verdade, e de novas verdades. Não nos contentamos com ‘dois mais dois igual a quatro’:
12
Em 1928, Gaston Bachelard apresenta o exemplo do hélio: a regra segundo a qual 1+1+1+1 = 4 não é sempre
válida em física. Sabemos, por exemplo, que um átomo de hidrogênio tem uma massa de 1,007; entretanto, como 4
átomos de hidrogênio se ligam para formar um átomo de hélio, o átomo de hélio tem uma massa de 4 e não 4,028!
Assim, Bachelard observa, 4 unidades reunidas não correspondem a 4 vezes a unidade, o que demonstra que o objeto
da física é um “objeto indeterminado”. Cf. BACHELARD, Gaston. Essai sur la connaissance approchée. Paris: Vrin
(1928), 1981, p. 57.
13
É a tese de Ian Hacking indicada anteriormente; mas não devemos esquecer também todo o trabalho de Michel
Foucault sobre os “discursos sobre a verdade” que substituem a questão da verdade em si: FOUCAULT, Michel.
L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, além de L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984, p. 10 et seq.,
bem como Subjectivité et vérité (curso ministrado no ano universitário 1980-1981). Todas as suas obras, Foucault
dizia, constituem, de um certo ponto de vista, uma pesquisa sobre a história da verdade, sobretudo sobre os modos
pelos quais a verdade se diz, ou foi dita: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 777 et
seq.
7

quando temos que enfrentar um problema difícil de topologia ou de física, não começamos
recitando a tabela pitagórica. A verdade pura e simples não nos é suficiente: buscamos respostas
para nossos problemas (…)”. Isso significa que “a verdade não é o único objetivo da ciência”.
Queremos algo mais do que a verdade pura e simples: buscamos a verdade interessante, a
verdade que é difícil de alcançar” 14. A esse respeito, Popper fazia seguir alguns versos de um
poema “filosófico” de W. Busch escrito no começo de 1900 e que poderia ser considerado
também uma resposta à questão da filha de Bateson:

Dois vezes dois são quatro: verdadeiro,


Mas muito vazio e muito banal.
O que se busca é apenas um índice
Para algo menos leve.

Esses versos que Popper recomendava para uma eventual “escola maternal para
epistemólogos” mostram bastante bem por que a observação do bom senso sobre as verdades
puras e simples é sem valor, precisamente porque elas “servem” pouco, mas também porque elas
apenas “dizem” muito pouco – muito pouco – sobre o problema da verdade. Especialmente sobre
a verdade tal como é usada e procurada pelas ciências (apesar de refletir sobre isso de perto,
mesmo na vida cotidiana e comum, a utilização da verdade é altamente problemática e
complexa).

2. O problema da história e das filosofias da verdade

2.1 O movimento da verdade


O problema é o de se desembaraçar das dificuldades colocadas pelo estatuto
epistemológico da verdade, sobretudo, no que diz respeito às ciências que – tendo a pretensão de
afirmar verdades – não dispõem de critérios fortes para a sua certificação. Este é o caso, por
exemplo, das ciências históricas e de sua pretensão de cientificidade. É evidente que, para a
história, o estatuto da verdade não pode ser o mesmo que se considerava como válido até

14
POPPER, Karl R. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge/Kegan, 1969, p. 394. A mesma convicção
caracteriza, vinte anos mais tarde, a posição do filósofo Nelson Goodman em Ways of Worldmaking, Sussex:
Hassocks, 1978.
8

recentemente para as chamadas ciências exatas. Na história, como em todas as outras ciências
humanas, a verdade só pode ser posta em movimento. O movimento da verdade, em história,
depende, em termos gerais, de dois fatores. O primeiro é, naturalmente, o tempo, que constitui o
que se poderia chamar, de certa forma talvez um pouco exagerada, a substância natural da
história e sua condição. O segundo é a irredutibilidade dos pontos de vista, que, por sua
multiplicidade, impõem a inevitabilidade da interpretação (daí o fato de que os filósofos alemães,
entre 1800 e 1900, como Dilthey, tinham qualificado a história como uma disciplina
hermenêutica). Estes dois fatores, que sempre se dão em conjunto, nunca permitem que a verdade
seja estabelecida de uma vez por todas. Ela é epistemologicamente constrangida pela
impossibilidade de reduzir ou de aniquilar o tempo em sua duração. O que significa que a
verdade não pode ser a-temporal. Mas uma verdade no tempo significa uma verdade que
corresponde ao movimento da duração, e, portanto, do ponto de vista histórico, será necessário
formular a questão no plural e falar de multiplicidade de durações. Uma verdade que se move no
tempo – é preciso sublinhar, mesmo se voltemos a isso em seguida – não significa dizer uma
verdade “relativa” (no sentido pejorativo do termo “relativo” tal como é frequentemente usado
por muitos epistemólogos); ela quer dizer antes uma verdade incompleta, parcial, uma verdade
aberta. Além disso, essa verdade sendo temporal, ela não pode recorrer a um ponto de vista
externo à duração, mas ela é obrigada, por causa da relação passado/presente, de ser “um ponto
de vista sobre...”. O passado do qual se busca a verdade é, com efeito, sempre inevitavelmente
interpretado a partir do presente que o julga e procura conhecê-lo (e como resultado das
pesquisas, sempre orientadas por linhas teóricas, por questões precisas, expressa julgamentos
sobre...). Apesar de toda a empatia que se possa colocar na pesquisa, apesar de toda a atenção
crítica contra o risco do anacronismo,15 uma das características da verdade é a de ser um
julgamento sobre o passado formulado em um presente que não corresponde temporalmente (e
historicamente) a esse passado.
A isso é preciso acrescentar que, como a história é a maneira que tem os homens de ser no
tempo, a multiplicidade e a complexidade dos diversos modos de ser implicam a irredutível
multiplicidade de pontos de vista que podemos adotar no passado. Mais uma vez, é preciso
lembrar que essa multiplicidade não implica necessariamente o relativismo dos pontos de vista.

15
Sobre o problema do anacronismo, bicho-papão de historiadores como Lucien Febvre, podemos ver a posição
provocadora assumida por Jacques Rancière em “Le concept d’anachronisme et la vérité en histoire”, L’Inactuel, 6,
1996, p. 53-68, e, do mesmo autor, Les noms de l’histoire, essai d’une poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992.
9

Ela implica necessariamente, no entanto, que nenhum ponto de vista possa ser eleito como um
absoluto, do fato de que é e continua sempre um ponto de vista. 16 Em razão da multiplicidade dos
pontos de vista deslocados no tempo, mesmo uma síntese total dos pontos de vista é impossível,
uma vez que um novo ponto de vista sobre ela será sempre possível. Mesmo nos casos em que
um ponto de vista se impõe como dominante – por exemplo, no totalitarismo – não lhe será
possível eliminar “logicamente” a multiplicidade do tempo, e a história não deixa de nos mostrar
que mesmo as formas mais extremas de ditadura não poderiam desenraizar todos os pontos de
vista alternativos, alguns dos quais, por conseguinte, conseguiram remover o ponto de vista
dominante. Este é um exemplo reconfortante do acordo possível entre a realidade e a lógica.
Raymond Aron reconheceu, neste aspecto inevitável do tempo histórico, a própria condição da
verdade da história, que devia abandonar seu caráter formal construído sobre a base da lógica
intemporal das ciências exatas.17 Mas ela é também a condição de nossa liberdade, como Henri
Bergson já havia escrito, pois se é verdadeiro que “não há nada nem aquém, nem além do devir”
e que “a humanidade se confunde com sua história, o indivíduo com sua duração”; a relação entre
as diversas dimensões temporais introduz a liberdade na própria temporalidade, 18 uma vez que é a
essência da novidade. A duração é então concebida como o surgimento contínuo de algo novo. A
verdade da história só pode ser uma verdade na história, onde a liberdade é um fator não
normativo de deslocamento e de crescimento sempre possível (assim como sempre é possível
acrescentar um novo ponto de vista ao conjunto dos pontos de vista dados, assim como Hannah
Arendt, em uma esplêndida argumentação, explica em suas considerações sobre a taxa de
natalidade).19 Isso implica aplicar, usar ou mesmo construir um critério de verdade que não
corresponda mais aos critérios tradicionais, ou pelo menos não lhes seja mais redutível. Henri-
Irénée Marrou insistiu muito no caráter “parcial” da verdade histórica, o que significa que, por
um lado, é possível aplicar critérios de verdade à história e, portanto, que se pode falar em termos
da verdade da história, mas que, por outro lado, esse “dizer” da verdade nunca deverá ser tomado
como definitivo. Isso é, aliás, evidente para todos, pois, apesar de muitas verdades terem sido

16
Ver BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire, op. cit. n. 1, p. 163: “A ciência não decompõe o real senão para
melhor observá-lo, graças a um jogo de fogos cruzados cujos raios constantemente se combinam e se interpenetram.
O perigo começa quando cada projetor pretende tudo ver por si só; quando cada região do saber se toma por uma
pátria”.
17
ARON, Raymond. Introduction à la philosophie de l’histoire. Paris: Gallimard, 1948, p. 422.
18
Ibid., p. 431.
19
ARENDT, Hannah. La crise de la culture (trad. francesa). Paris: Gallimard, 1972, p. 83.
10

ditas sobre a Revolução Francesa, existem e serão muitos outros historiadores no futuro que irão
estudá-la e que estabelecerão outras verdades.

2.2 Qual verdade dos fatos?


A verdade da história não pode ser a verdade dos fatos históricos tais como são, pois um
tal senso de verdade não existe, ou é essencialmente inacessível ao historiador. A história como
disciplina tem uma relação muito complexa com a verdade, e não se refere a ela de uma só e
única maneira. Não basta aceitar, com efeito, a veracidade de um fato histórico, já que o discurso
do historiador se funda na interpretação dos fatos, e a verdade da interpretação não é da mesma
ordem que a verdade de um fato, nem da de um documento ou de um testemunho. A verdade do
fato: “O arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria, foi assassinado em 28
de junho de 1914 em Sarajevo” não é da mesma ordem de verdade que o enunciado: “O
assassinato do herdeiro do trono da Áustria foi uma das causas da I Guerra Mundial”. Na
verdade, é muito mais simples atestar e certificar o primeiro tipo de verdade do que o segundo,
mas, em geral, são verdades do segundo tipo que mais interessam ao historiador.
É nessa ordem múltipla da verdade que se articulam, portanto, a ciência que é a história e
a maioria das ciências humanas. Na realidade, a maioria das ciências exatas também lidam com
ordens complexas e diferenciadas da verdade e não estão isentas de interpretações. No início dos
anos 1900, quando alguns filósofos pertencentes à corrente do neopositivismo lógico queriam
explicar critérios de verdade para as ciências (exatas), recorrendo aos instrumentos da lógica (que
se desenvolveram muito, mesmo do ponto de vista da formalização), eles imediatamente se viram
em dificuldade. Não só porque eles foram criticados por filósofos que não faziam parte de seu
círculo senão de forma marginal (Karl R. Popper, por exemplo), mas também porque não havia
acordo no interior do próprio círculo. 20 Os critérios escolhidos por Moritz Schlick para definir a
ciência eram tão restritivos que outros proeminentes representantes do Círculo de Viena (Otto
Neurath e Rudolf Carnap) se sentiram compelidos a criticá-los.21 Um critério único ou
20
O “Círculo de Viena” foi formado por Moritz Schlick a partir de 1923 e, a partir de 1925, se reunia regularmente
todas as quintas-feiras em sua casa: faziam parte dele jovens vienenses que se tornaram juristas, lógicos, filósofos,
sociólogos etc. bastante conhecidos. O Círculo de Viena precisou suspender suas atividades por causa do nazismo e
do assassinato de Schlick por um estudante nazista.
21
Cf. BARONE, Francesco. Il neopositivismo logico. Bari-Roma: Laterza, 1986; e a obra coletiva Neopositivismo e
unità della scienza, (trad. italiana dos fascículos do primeiro e do segundo tomos da Encyclopedia of Unified
Science) Milão: Bompiani, 1958; ANTISEI, Dario. Dal neopositivismo alla filosofia analitica. Roma: Abete, 1966;
HAHN, Hans, NEURATH, Otto, CARNAP, Rudolph. Wissentschaftliche Weltauffassung. Der Wiener Kreis. Viena:
A. Wolf Verlag, 1929; Il Circolo di Vienna (obra coletiva). Ravena: Longo, 1984; e “Schlick und Neurath. Ein
11

excessivamente restrito de verdade não corresponde de modo algum ao trabalho real e concreto
do conhecimento científico e não pode dar conta adequadamente do que é efetivamente uma
ciência. Isso não significa que uma definição de ciência como “um sistema ordenado de
enunciados que busque a verdade e se fundamente na verificação de suas próprias asserções” 22
não seja válida. Uma tal definição permanece, na realidade, válida para qualquer tipo de ciência,
com a condição de deixar as noções de verdade e de verificação suficientemente abertas. Um dos
critérios mais importantes que caracterizam a cientificidade de uma disciplina é, sem dúvida, a
pretensão de enunciar as verdades e de dispor de um método para demonstrá-las. Mas isso vale
igualmente para a metafísica e para a religião, em relação às quais os filósofos medievais
elaboraram instrumentos lógicos formidáveis. Se alguém permanece no plano filosófico e geral
da pretensão da verdade, o discurso científico não tem privilégio algum em relação aos discursos
religiosos. Mesmo os filósofos neopositivistas estavam plenamente conscientes disso, e, por essa
razão, decidiram não falar mais em termos de “verdade”, mas de “verificação”: o discurso
científico se diferencia do discurso metafísico ou religioso – escreveram eles – pelo fato de que
ele submete à verificação seus próprios enunciados. Uma vez que um enunciado do tipo “Deus
existe” ou “O mundo foi criado por um Ser Supremo e Único” não pode ser submetido à
verificação, um tal gênero de enunciado não pode ser aceito como científico. Como resultado das
polêmicas que suscitaram as definições dos critérios, modos e referências de “verificação”,
sabemos que o problema não foi resolvido: pelo contrário, suscitou mais problemas do que
aqueles que se havia proposto resolver. Isso poderia ser suficiente para tornar mais prudente
qualquer discurso que desejasse permanecer filosófica e epistemologicamente geral (e, muitas
vezes, genérico) na “pretensão de verdade” como argumento suficiente para atestar a
cientificidade de uma disciplina. No entanto, para os historiadores profissionais, desde a metade
dos anos 1990, a pretensão de verdade tem sido um critério fortemente reivindicado para
defender a “cientificidade” da disciplina, sem que seu significado seja realmente especificado, e
sem que as referências epistemológicas e as problemáticas que surgem delas sejam explicitadas
(por exemplo, sobre a relação entre pretensão veritativa e verificação). A partir da década de
1960 aproximadamente, e mais claramente desde a década de 1980 nos Estados Unidos, difundiu-
se uma tendência que buscou avaliar o discurso histórico com base em suas estruturas narrativas e
Symposion”, Fundamenta scientiae, V, 1984; POLIZZI, Gaspare. Filosofia scientifica ed empirismo logico. Pisa:
Unicopli, 1993.
22
Trata-se de uma paráfrase de Moritz Schlick extraída de uma coletânea de textos publicados em italiano por
Ludovico Geymonat: SCHLICK, Moritz. Tra realismo e neo-positivismo. Bologna: Il Mulino, 1974.
12

não com base em suas pretensões científicas de rigor argumentativo – identificando a narrativa
histórica com a narrativa literária, e adiantando que os enunciados do historiador eram
enunciados correspondentes a uma estrutura de tipo narrativo à qual a história não podia escapar,
com o risco de desaparecer. Desde então, tornou-se problemático reconhecer em que a narrativa
histórica é diferente da narração literária. Deu-se conta e começou-se a refletir sobre o fato de que
a narratividade é um aspecto irredutível da disciplina histórica – uma história formalizada em
termos lógico-matemáticos ou em termos exclusivamente quantitativos e numéricos seria, com
efeito, não apenas ilegível, mas também absurda. Mas, para defender a especificidade do discurso
histórico em relação ao discurso literário em geral, insistiu-se, sobretudo, na sua pretensão de
verdade. Enquanto que um romance, seja um romance histórico no estilo de Walter Scott ou de
Umberto Eco, não tem nenhuma pretensão de enunciar verdades, um livro de história, ao
contrário, assenta-se nessa pretensão e apresenta os instrumentos para atestá-la (o aparelho das
notas, por exemplo, a bibliografia, as tabelas etc.). Poucos, no entanto, são os historiadores que
efetivamente interrogaram o tipo de verdade que o seu discurso supõe e a que ordens ela
pertence. A objeção inteiramente legítima dos historiadores contra os chamados “narrativistas”,
no entanto, permaneceu no plano genérico. Trata-se, portanto, de analisar agora o problema da
verdade para a história sem evitar os seus nós problemáticos e a sua extrema complexidade; é só
assim que efetivamente se tornará possível se subtrair dos diversos reducionismos e apreender o
estatuto específico de cientificidade da história compatível com seu caráter narrativo.

3. O problema dos filósofos

3.1 Tomás de Aquino, os sentidos e o entendimento


Para Tomás de Aquino, a verdade era adaequatio rei et intellectus, isto é, uma
correspondência entre nossos conhecimentos intelectuais e as percepções de nossos sentidos. 23
Essa concepção da verdade tem por fundamento a teoria da reflexão. O conhecimento é
compreendido como o espelho da realidade natural que é independente do homem. Tomás de
Aquino estava bem ciente de que a verdade era uma questão que dizia prioritariamente respeito
ao julgamento sobre as coisas e não às coisas sensíveis em si,24 também a verdade de cada

TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae, I, q. 16, a, I. Roma: Éd. Léonine, 1886.


23
24
“Veritas est in intellectu et in sensu, licet non eodem modo”. In: Quaestiones disputatae de veritate, q. I, a, 9,
Roma: Éd. Léonine, 1918.
13

julgamento do conhecimento era, segundo ele, dada pelo grau de adequação à realidade das
coisas.
Existe, portanto, uma separação nítida entre conhecimento e realidade, como se fossem
duas instâncias completamente independentes. A mediação entre essas duas instâncias é operada
pelos sentidos dotados de um certo grau de julgamento e, consequentemente, capazes de julgar a
verdade de uma coisa (si enim sensus vere judicat de rebus); no entanto, os sentidos não estão em
condições de conhecer imediatamente porque são privados de consciência, eles não são
autoconscientes (como se teria dito em uma linguagem filosófica desenvolvida nos séculos
seguintes): non tamen cognoscit veritatem qua vere judicat : quamvis enim sensus cognoscat se
sentire, non tamen cognoscit naturam suam.25 Somente o entendimento é propriamente cognitivo,
porque é o único a ser capaz de refletir sobre si mesmo e de se tornar consciente de sua
capacidade de adaptar-se à realidade externa. Mas a realidade externa, sobre a qual o
entendimento é chamado a expressar seu julgamento e a se adaptar (adaequatio), é concebida
como imutável, não no sentido de uma realidade natural fixa e estática, o que ninguém poderia
afirmar com seriedade, mas no sentido da relação com o julgamento cognitivo e, portanto, com o
seu valor de verdade. O que é imutável na realidade natural, aos olhos de Tomás de Aquino, é a
sua relação com o julgamento da verdade. A realidade natural, que é inteiramente estrangeira e
externa, segue suas próprias leis e sua própria natureza, independentemente do ato de
conhecimento. Entre o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido, não há outra relação que a
adequação do primeiro ao segundo, a reflexão mais fiel possível do objeto no sujeito.
Tomás de Aquino não concebia que essa relação poderia ser recíproca, tal como será
descoberto (ou postulado) seis séculos depois conforme diversos filósofos das ciências. Acima de
tudo, ele não poderia conceber que a realidade externa das coisas poderia ser modificada pelo
nosso julgamento cognitivo, e que o certificado da verdade poderia, em certos casos, antecipar a
constituição da realidade. Para isso, teriam sido necessárias várias revoluções conceituais, sociais
e culturais, começando com a revolução científica dos tempos modernos. O filósofo da Idade
Média atribuía, de fato, essa possibilidade unicamente ao entendimento divino, que, por sua
potência e sua liberdade, certamente poderia antecipar e modificar a realidade da natureza. Para
que isso se tornasse possível, primeiro, seria necessário que fosse proclamada o que Nietzsche
chamou de “a morte de Deus”, e que os desenvolvimentos do conhecimento científico

25
Ibid., q. I, a. 9.
14

demonstrassem para o homem a enorme potência de seu entendimento e que, assim, o homem
reconhecesse que “a hipótese Deus”, como dizia Laplace, não era mais necessária. Teria sido
necessária, igualmente, e sobretudo, a revolução filosófica e epistemológica kantiana, que ligou a
verdade dos julgamentos às formas do nosso conhecimento.

3.2 Adequação versus construção.


Embora seja muito reducionista, é possível, no entanto, dividir a filosofia da verdade em
duas grandes concepções (que não se distinguem cronologicamente e, muitas vezes, convivem ou
se alternam no curso da história da filosofia, até o presente dia em que elas continuam a se opor).
Por um lado, há a de Tomás de Aquino, que é mais coerente com o senso comum e mesmo com
um certo materialismo empirista: a verdade como reflexo de um estado de coisas que sempre
esteve lá. É uma concepção essencialmente passiva da verdade, que se limita a receber e a
expressar o que é, com base em uma pressuposição de que é possível expressar a realidade íntima
das coisas, e, sobretudo, das relações entre as coisas, exatamente nos mesmos termos em que
dizemos que uma imagem reproduz a realidade ou que um selo se imprime na cera. Nesse
sentido, devemos compreender como “verdadeiras” proposições do gênero: “os demônios são
anjos caídos” ou “a aranha tem oito patas”, se, na realidade divina ou natural de referência, as
coisas são efetivamente assim. A proposição que enuncia a verdade não faz senão refletir
linguisticamente (e cognitivamente) o que é, mas ela faz isso de uma forma inteiramente passiva,
sem intervir de qualquer maneira que seja.
Existe, por outro lado, outra concepção da verdade, muito diferente da primeira. A
verdade não é mais entendida como adequação, mas como construção. Segundo essa concepção,
o julgamento da verdade não se limita ao simples reflexo de uma certa realidade natural, mas a
instrui segundo certas regras racionais. De acordo com esse ponto de vista, o julgamento da
verdade é um julgamento lógico formulado linguisticamente. Ao passo que, na concepção da
verdade concebida como reflexão passiva, pensa-se que a verdade está nas coisas e que a
linguagem se limita apenas a representá-las em nós;26 na concepção construtivista da verdade,
pensa-se que a verdade não está nas coisas, mas em nós, e busca-se compreender qual é o papel
da linguagem (ou da arquitetura conceitual que a regula) como um instrumento de mediação entre
o sujeito e a realidade externa. Pode-se então questionar o grau de reprodução da realidade que

Aristóteles já havia notado que “verdadeiro e falso não existem nas coisas (…), mas existem no pensamento”,
26

Métaphysique, VI, 4, 1027b. Paris: J. Tricot, 1964, p. 27-28.


15

uma imagem atinge e a da parte da realidade que essa imagem negligencia, como, por exemplo,
as variações de cor ao longo das horas do dia, a tridimensionalidade, os rumores, os cheiros... Um
julgamento linguístico de verdade – todas as observações científicas o são, assim como todas as
observações religiosas... – é uma atividade de nosso entendimento sobre a realidade. É então uma
operação realizada na realidade, é um exercício ativo que intervém na realidade, apreendendo
determinados aspectos, estabelecendo certas relações e negligenciando outras. Nesse sentido, ela
é construtiva: não no sentido ingênuo e facilmente criticável da construção ex novo de uma
realidade que corresponde à verdade da razão, que entraria em choque com as mesmas aporias da
verdade concebida como um reflexo e que assim levaria a uma forma muito rudimentar de
idealismo, mas no sentido de uma operação sobre a realidade externa, sobre o que Kant chamava
de o “múltiplo sensível”, constituída de uma série de escolhas que, por sua vez, estarão sujeitas a
uma consideração crítica, um “processo de verificação”, que substitui o reflexo pelo princípio
lógico da coerência.

3.3 Verdade aquém dos Pirineus, erro além


Essa concepção da verdade implica, no entanto, um papel ativo, e não mais passivo 27, do
conhecimento humano; isso implica então uma visão não naturalista e não estática da linguagem.
Também ela implica uma consciência crítica de que, muitas vezes, o que é chamado de verdade
não é um absoluto, mas algo relativo a um sistema de regras e a um conjunto dado de escolhas
(ou de crenças compartilhadas). No século XVII, Pascal conseguiu expressá-lo de modo
fulminante em um de seus pensamentos (retomando, na verdade, uma expressão que Montaigne
havia formulado um século antes): “Verdade aquém dos Pirineus, erro além” 28. Na mesma época,
o inglês Thomas Hobbes enfatizou o caráter arbitrário de nosso conhecimento e de nossa
linguagem, e lembrava, portanto, os filósofos, da consideração do fato de que não se poderia
atribuir a verdade, assim como a universalidade, às coisas, mas apenas aos nomes que lhes
damos. E não se tratava de uma mudança sem importância.

27
Esse papel, de fato, já havia sido reconhecido por Tomás de Aquino, que nas Quaestiones disputatae q. I a. 9 e em
q. 10, a. 1 (op. cit. n. 24) atribuiu ao entendimento uma tarefa prioritária e constitutiva – “Solum enim intellectus
accipit cognitionem de rebus mensurando eas quasi ad sua principia” – e, no ensaio Quaestio XI de veritate,
introduziu o conceito de inventio para inteligência ativa em vez de passiva. O mais radical dos filósofos nesse ponto,
porém, foi Guilherme de Ockham, que excluiu qualquer possibilidade de conformar ou comparar os juízos
(supositio) com a realidade ontológica do real e restringiu o domínio da verdade apenas à lógica (ver OCKHAM,
Guilherme de. Summa logicae, II, 2. Louvain: Éd. Boehner, 1951-1954.)
28
PASCAL, Blaise. Pensées, 56.
16

A partir deste ponto de vista, o julgamento da verdade expresso pela fórmula: “Os
demônios são anjos caídos” pode ser criticado com base no pensamento pascaliano, pois, para um
hindu, por exemplo, esse enunciado não pode ser tomado como verdadeiro. Mas é o mesmo para
enunciados que ainda são considerados hoje como irrepreensíveis: “A aranha tem oito patas” ou o
que encontramos no início: “A Terra gira em torno do Sol”. Agora veremos como as duas
concepções da verdade estão articuladas entre si e quais problemas suscitaram. Nietzsche criticou
uma das concepções clássicas da verdade, como um reflexo e desvelamento do mundo,
amplamente difundida no mundo científico e filosófico, mas que não havia sido discutida
criticamente. Tratava-se da concepção banal da verdade como uma correspondência entre
conhecimento e realidade, o que engendrava, para o conhecimento científico, uma tarefa
apropriada para o fato de pertencer à era do progresso da segunda metade do século XIX, a saber,
a “descoberta” da realidade verdadeira do mundo, verdade de um mundo que era concebido
naturalmente como permanente, fixo, estabilizado de uma vez por todas. Essa ideia da verdade
como permanência e invariância, que os filósofos da Idade Média imediatamente ligaram a Deus
como uma de suas características atributivas (com a beleza, a bondade e a eternidade); ela era,
além disso, a garantia contra a catástrofe do tempo e a relatividade da história. Uma vez
estabelecida, a verdade de uma asserção já não estava sujeita a variações. No domínio do
conhecimento científico, isso significava que as conquistas da ciência eram progressivas e
cumulativas, além de ser indiscutíveis. Ainda sentimos a influência dessa longa tradição do bom
senso quando, para reforçar um julgamento, afirmamos que se trata de uma “verdade científica”
(supomos nessa afirmação um princípio implícito de autoridade). Entendemos, com efeito, a
mesma coisa em que Agostinho já estava pensando quando falou de “verdades eternas”29.

3.4 Verdade não é eternidade


Nietzsche sabia bem que “a vontade de verdade é apenas o desejo de um mundo do
permanente” e que “a partir da necessidade de sermos estáveis em nossa fé para prosperar,
fizemos assim com que o mundo ‘verdadeiro’ não seja um mundo em mutação e em devir, mas
um mundo que é”.30 É por causa disso que ele constantemente combatia esse “querer a verdade, a

29
Sobre a questão da permanência e da sua relação com a verdade, cf. TAGLIAGAMBE, Silvano. Epistemologia del
confine. Milão: Saggiatore, 1997, p. 82.
30
NIETZSCHE, Friedrich. Œuvres – Fragments posthumes. Trad. it. ed. Colli-Montinari. Milão: Adelphi, 1971, t. 2,
p. 25 et 14-15.
17

‘verdade a qualquer custo’, esse delírio de adolescentes por amor da verdade”, e concluía: “Já não
acreditamos mais que a verdade permaneça verdade quando se retira dela seus véus”31.
Se retiramos, portanto, da verdade seu véu de absoluto, percebemos que ainda se trata
apenas de um julgamento que coloca uma relação. Certamente, ninguém se atreveria a discutir
uma verdade “eterna” como

5 + 7 = 12

mas a verdade não se reduz a isso. Na maioria do tempo, ela é bastante diferente – lembremos das
palavras de Popper – mas por hábito ou por comodidade se considera isso. Qualquer julgamento
sobre uma relação é, com efeito, uma seleção feita com base em certos hábitos mentais e
linguísticos, e em certas convenções sociais. Embora isso permaneça ainda confuso hoje – o que
demonstra, aliás, quão pouco “progrediu” nosso senso comum e quanto nosso conhecimento
básico permanece intuitivo e instintivo – a verdade é sempre uma verdade sobre... e nunca uma
verdade de... Como julgamento, ela depende do árbitro de todo julgamento humano e de toda
construção humana. Especialmente porque não existe apenas uma forma de verdade.
O filósofo francês Édouard Le Roy, por exemplo, embora católico intransigente,
acreditava firmemente na existência de verdades plurais que ele buscava, como bom
epistemólogo, para tornar coerentes com a ajuda de uma bela imagem geométrica: a verdade
seria, de fato, como uma somatória, isto é, uma curva que teria por tangentes as verdades
singulares contingentes. Se retornarmos ao exemplo da verdade eterna anterior (5 + 7 = 12), a
formulação aritmética é uma espécie de somatória que, no entanto, não significa nada em si. Para
nossas crianças, transmitimos, com efeito, imediatamente, exemplos concretos: 5 maçãs + 7
maçãs são 12 maçãs no total.32 Mas isso também é válido se uma das 7 está podre? Se algumas
são verdes, outras amarelas ou vermelhas? Que gênero de verdade é expresso pelo julgamento
“12 maçãs”? É verdadeiramente uma verdade eterna? Suponhamos que ninguém tenha permissão
para comê-las: por quanto tempo o julgamento de verdade durará na realidade? Quanto tempo
levará a primeira a mofar e a contaminar as outras, reduzindo-se a papas? A verdade do 12 está
nas coisas ou em nós? Aqui estão algumas questões que podemos formular sobre o estilo de
NIETZSCHE, Friedrich. Le gai savoir. In: Œuvres, ibid., V, 2, p. 19.
31

Contra toda concretização, ver BACHELARD, Gaston. La formation de l’esprit scientifique. Paris: Vrin, 1938 e
32

FOERSTER, Heinz von e GLASERFELD, Ernst von. Wie wir uns erfinden. Eine Autobiographie des radikalen
Konstruktivismus. Heidelberg: Auer-Systeme Verlag, 1999, p. 93-94.
18

Bateson sobre a verdade e a eternidade (ou mais simplesmente sobre a permanência, se usarmos
uma linguagem mais moderna). Isso nos remete à noção de véu de Nietzsche: não para dizer que
todas as verdades são equivalentes ou de que entre verdadeiro e falso não há diferença, mas
enfatizar que o critério epistemológico da permanência é em si problemático. Isso nos mostra,
com efeito, que a verdade que usamos neste aspecto é um processo mental e não uma realidade
natural. O que simplesmente significa que o que chamamos de “verdade” é um modo humano,
muito humano de se relacionar com as coisas, de entrar em uma relação intelectual com elas. Que
possamos defini-lo de um ponto de vista lógico de forma muito rigorosa (como para alguns
membros do Círculo de Viena), ou que possamos revelar sua essência ontológica profunda,
mostrando a coerência filosófica com o problema do ser (como Heidegger fez), isso não impede
que ela mantenha seu caráter de produto humano, de engenhosidade coletiva e seu uso muito
comum e inevitável tanto no nível do cotidiano como no nível da ciência. É por isso que
encontramos tantas dificuldades em renunciar à concepção da verdade como reflexão e como
correspondência. Pois, com efeito, um julgamento de verdade é também uma reflexão, mas ele o
é no sentido da imagem representativa, no sentido do mapa. É preciso se lembrar do enunciado de
Alfred Korzybski, tão, muitas vezes, retomado por Bateson, segundo o qual “o mapa não é o
território”.33

3.5 A modalidade não é sem importância


A questão do modo é essencial para a verdade, porque corta na raiz qualquer hipótese que
pretenda vincular entre elas a verdade e a realidade. Essa é a lição das categorias kantianas.
Quando Kant quis estabelecer sua célebre e controversa tábua de categorias, 34 postulou a
Realidade sob a categoria de Qualidade, uma vez que ela é efetivamente uma qualidade de coisas.
Mas não inseriu ali a verdade, que não tem lugar na tábua de categorias, porque ela se contenta
melhor com a tábua de julgamentos, onde é abordada sob o termo de modalidade. A verdade é,
33
BATESON, Gregory. Towards an ecology of minds, (trad. italiana Milão: Adelphi, 1976, p. 364-384). Aqui, vale a
pena lembrar um apólogo de Jorge Luis Borges, “Do rigor da ciência”, em El hacedor, onde se trata de cartógrafos
que, para seguir com escrúpulo a encomenda de um imperador, preparam um mapa do país que corresponde
exatamente ao próprio país, mesmo em extensão, tornando-o, assim, inútil.
34
KANT, Immanuel. Critique de la Raison pure. Paris: Gallimard, 1980-1986. Na “Analítica transcendantal”, Livro
I, § 9: Kant retoma a tábua tradicional dos juízos, organizada segundo a Quantidade (universais, particulares,
singulares), Qualidade (afirmativos, negativos, indefinidos), Relação (categóricos, hipotéticos, disjuntivos) e
Modalidade (problemáticos, assertóricos, apodíticos); e no § 10, ele articula sobre a precedente a tábua das
categorias: Quantidade (unidade, pluralidade, totalidade), Qualidade (realidade, negação, limitação), Relação
(substância e acidente, causalidade e dependência, reciprocidade) e Modalidade (possibilidade – impossibilidade,
existência – não-existência, necessidade-contingência).
19

portanto, para Kant uma instância para a qual trabalha uma categoria modal, e não uma categoria
qualitativa como a Realidade. Portanto, pode-se afirmar que a verdade não é um predicado
verdadeiro. Kant fala, com efeito, de verdade somente em relação a um tipo particular de
julgamento modal, o assertórico, que é o único nível logicamente rigoroso (em relação aos outros
dois julgamentos modais, as problemáticas e os apodíticos). Isso abre, naturalmente, o problema
do que é epistemologicamente a verdade, um problema kantiano por excelência ao qual a
epistemologia da primeira metade do século XX tentou dar algumas respostas, mesmo que isso
tenha sido feito sob formas extremamente diversificadas e, às vezes, opostas. Veremos mais tarde
como Kant também se colocou esse problema.
De forma particular, Nietzsche também contribuiu com essa problematização, mostrando
o quanto ainda era insuficiente o esforço kantiano, tanto epistemologicamente quanto
filosoficamente, já que, embora não tenha enquadrado a verdade na tábua de categorias, ele, de
alguma forma, ligou-se à rigidez e à permanência do esquematismo categorial, privando-a de
todo movimento. “A verdade, no entanto, não é algo que existe e que deve ser encontrado, ser
descoberto – mas algo que deve ser criado e que dá o nome a um processo, ou melhor, a uma
vontade de submissão que, por si só, nunca tem fim: introduzir a verdade como um processum ad
infinitum, uma determinação ativa e não um tomar consciência de algo [que] seja ‘em si’ fixo e
determinado”.35 É, portanto, sob esse duplo registro aberto, por um lado, por Kant, e, por outro,
por Nietzsche, que a epistemologia do século XX formulou esse problema da verdade, abrindo-o
a instâncias às quais uma epistemologia da história não pode permanecer indiferente. Este é o
caso, por exemplo, de Gaston Bachelard, em quem podemos encontrar as mesmas questões:
“Existiria uma verdade em si, sem relações com os meios de conhecimento? O verdadeiro pode
ser entendido apenas como o atributo de uma realidade?” 36 Em ambos os casos, a resposta é
negativa. Bachelard, que foi um dos filósofos-epistemólogos mais heréticos de seu tempo, por
seu anticonformismo teórico, atacou, em particular, todas essas teorias do conhecimento que,
referindo-se ao conhecimento científico, fechavam-na em uma concepção estática e a
interpretavam como mero desvelamento de uma realidade empírica. O que contava, aos olhos de
Bachelard, não era tanto a natureza real das coisas, uma vez que esta, de acordo com a lição
kantiana aperfeiçoada pela filosofia científica de Ernst Mach e em parte de Henri Poincaré e
Pierre Duhem, não era absolutamente cognoscível imediatamente, pois sempre e inevitavelmente
35
NIETZSCHE, Friedrich. Fragments posthumes, op. cit. n. 30, p. 43.
36
BACHELARD, Gaston. Essai sur la connaissance approchée. Paris: Vrin, 1928, p. 231.
20

filtrada por nossos meios perceptivos e cognitivos. O que importava era, em contrapartida, a
maneira pela qual nós humanos empregamos esses meios. E uma vez que, entre eles, o lugar
privilegiado está ocupado naturalmente (e temporariamente) pelo entendimento racional, torna-se
inevitável e indispensável devolver à verdade o seu valor do conhecimento racional, libertando-a
de todo essa confusão empírica ou “realística” que, especialmente nos meios científicos, levava a
entendê-la como o resultado da “descoberta” das coisas. Se não podemos conhecer as coisas em
si, é porque só conhecemos sua aparência fenomenal. A verdade das coisas e das relações entre as
coisas que afirmamos descobrir e conhecer é antes uma espécie de atividade racional específica.
De acordo com Bachelard e para um bom número de epistemólogos franceses da primeira metade
de 1900, é uma maneira característica de nossos procedimentos cognitivos. Depois de fazer as
perguntas acima mencionadas, Bachelard continuava assim:

Uma verdade nos parece, ao contrário, referir-se unicamente aos procedimentos de conhecimento.
Ela não poderia ultrapassar as condições de sua verificação. E uma verificação cada vez mais
perfeita só pode ser desenvolvida por uma incorporação cada vez mais coerente em um sistema de
conhecimento cada vez mais rico. A verdade deve ser um acordo do pensamento consigo mesmo;
é uma propriedade do conhecimento que encontra sua aplicação em todos os níveis de precisão
desse conhecimento.37

Mas unir, dessa maneira, verdade e verificação significa se orientar rumo ao mundo da
abstração e não mais rumo ao da realidade. Isso significa também conceber a verdade como uma
construção exclusivamente racional, puramente teórica, em que o pensamento está efetivamente
de acordo consigo mesmo e não mais com o mundo da natureza. A verdade como
correspondência ou como reflexão à qual permanecemos intuitivamente unidos está assim
completamente abolida. Uma ideia análoga foi expressa dois séculos antes por Giambattista B.
Vico, quando ele escreveu, em seu De antiquissima Italorum sapientia (1710) que “verum et
factum convertuntur” (“Aquilo que é verdadeiro e aquilo que fazemos são convertíveis”), ou seja,
que o critério e a norma do verdadeiro se constituem no seu fazer do verdadeiro. O “fazer” de
Vico não é senão o agir construtivo dos homens, que, em sua forma mais elevada, é agir racional,
assim como escreviam vários filósofos-epistemólogos do século XX, de Poincaré a Habermas.
Segundo Bachelard, o agir racional é, por excelência, o conhecimento científico 38. É por isso que
ele escrevia que “o mundo é nossa verificação”. A perspectiva construtivista não se limita a

37
Ibid. (grifo nosso).
38
A concepção do conhecimento científico de Bachelard é baseada em uma concepção do conhecimento purificado e
psicanalisado a fim de o liberar de todas as incrustações ingênuas, irracionais, realistas...
21

investir a relação entre o mundo e o conhecimento, mas ela é levada muito além, até a eliminação
dos aspectos realistas do mundo (o que lhe valeu a acusação de idealismo).

3.6 O mundo é nossa verificação


É por isso que a concepção do mundo como construção (racional) suscita, muitas vezes, o
transtorno e a confusão, e a fizemos, muitas vezes, deslizar para desvios céticos ou relativistas.
Sustentar, como fazia Bachelard, com humor e espírito de provocação, que o mundo é nossa
verificação, quer dizer valorizar o processus ad infinitum do qual Nietzsche tinha falado, que
escreveu peremptoriamente: “O mundo verdadeiro não existe”39. Isso significa que o mundo
verdadeiro é o que construímos como tal, não porque a verdade esteja nas coisas, mas porque
somos nós quem a colocamos lá. No entanto, isso não significa negar o valor ou a existência da
realidade, assim como as críticas dessa concepção, por vezes, supuseram. Em vez disso, significa
compreender que a realidade e as nossas maneiras de conhecê-la são muito mais complicadas do
que o que se pensa intuitivamente. Na década de 1930, o filósofo alemão Hans Reichenbach
escrevia: “Não se pode sustentar que um sistema científico seja verdadeiro, mas somente que é a
nossa melhor aposta no futuro”40: porque só atuamos sobre o futuro construindo-o sempre. E essa
construção tem um nome: história. Mas, acrescenta Bachelard, a única “história da verdade”
dotada de um sentido é a história racional e científica. Melhor, e de modo ainda mais radical e
seletivo, a verdade científica é aquela que se aproxima mais da abstração matemática, o único
domínio em que a verdade vale em um sentido absoluto, sem qualquer mediação com a realidade.
Bachelard interpreta assim a história das ciências como uma jornada progressiva da verdade rumo
ao abstrato, negando, de fato, que ciências não abstratas, tais como são as ciências humanas, por
exemplo, possam ter acesso ao reino sublimemente construtivo da verdade. O anticonformismo
desse filósofo torna-se rigor absolutista e a história das ciências como história da verdade (visto
que somente “uma verdade científica é, por essência, uma verdade que tem um futuro”) 41
permanecerá, bem entendido, uma história, mas uma história “purificada” e ajustada, no modelo
de abstrações matemáticas. Bachelard, em suma, dá com uma mão o que ele retira, em seguida,
com a outra42. Por enquanto, é importante sublinhar que a concepção da verdade como construção
39
NIETZSCHE, Friedrich, op. cit. n. 30, p. 15.
40
REICHENBACH, Hans, “Logistic Empiricism in Germany and the Present State of its Problems”, Journal of
Philosophy, 33, 1936, p. 158-159.
41
BACHELARD, Gaston. L’activité rationaliste dans la physique contemporaine. Paris: PUF, 1951, p. 40.
42
Para uma crítica desse aspecto da filosofia bachelardiana, cf. GATTINARA, Enrico Castelli. Les inquiétudes de la
raison (cap. V). Paris: Vrin, 1998.
22

não pode se passar da necessidade de se relacionar com o tempo; e o tempo das ações humanas,
sejam elas as mais abstratas e as mais formalizadas, chama-se “história”. Bachelard chamava,
com efeito, o historiador das ciências “um historiador da Verdade”43.
Vamos nos limitar aqui a dar por adquirido esse aspecto irredutivelmente dinâmico da
verdade que uma parte da epistemologia de 1900 compreendeu. Vamos apenas acrescentar que o
problema ainda não encontrou uma solução (provavelmente que ele nunca irá encontrá-la) e que
Bachelard não foi nem o primeiro nem o último a formulá-lo. E uma vez que essa concepção
dinamicamente construtiva da verdade se revela ser a mais coerente para os historiadores (embora
uma boa parte dos historiadores de profissão continuem a pensar a verdade apenas como reflexo
da realidade), vale a pena sublinhar que, por trás dessa ideia da verdade, há uma crítica da
Verdade tomada como um absoluto44. Leon Brunschvicg escreveu, em 1911, que a verdade estava
longe de ser um absoluto, pois deve ser entendida como um princípio regulador e um objetivo:
“A verdade da ciência não implica mais a suposição de uma realidade transcendente: ela está
ligada aos procedimentos de verificação que são imanentes ao desenvolvimento da
matemática”45. Abel Rey, que, como Brunschvicg, tinha sido um mestre para Bachelard,
acrescentava dez anos depois que “a história da ciência nos apresenta a verdade no devir de uma
evolução”, já que “a verdade não é feita, mas ela se faz”46. O que nos leva de volta a Vico, mas
também a um outro grande italiano do século XX, matemático, mas também filósofo das ciências,
Federigo Enriques. Enriques, antes de Bachelard, multiplicou e pluralizou a verdade,
dinamizando-a nos processos cognitivos: “A verdade não é um dado puro, mas é uma
coordenação racional dos dados, que implica uma escolha entre um número infinito de verdades
possíveis”47.

3.7 Tarski e o fim do absolutismo dos critérios gerais


A verdade não é, portanto, uma “coisa” do mundo real que bastaria descobrir ou desvelar.
Pelo contrário, se levantamos o véu de Maya segundo a sugestão de Nietzsche, damo-nos conta
de que a verdade total e absoluta é impossível, porque o que chamamos de “verdade” é uma

43
BACHELARD, Gaston. Le matérialisme rationnel. Paris: PUF, 1972, p. 85.
44
Foi por causa disso que alguns lógicos e filósofos da escola anglo-saxã colocaram o problema da verdade em
termos puramente formais e aparentemente muito simples, reduzindo radicalmente o seu campo de aplicação.
45
BRUNSCHVICG, Léon. Les étapes de la pensée mathématique. Paris: PUF, 1912, p. 561.
46
REY, Abel. La philosophie moderne. Paris: Flammarion, 1921, p. 340.
47
ENRIQUES, Federigo, “Il problema della realtà”. In: Atti del IV congresso internazionale di filosofia, (Bolonha,
1911), Gênova: Formiggini, 1912.
23

“vontade de verdade”, um valor racional, poderíamos dizer, isto é, uma maneira específica de
agir. É por isso que “a verdade total para o homem está na série de sistemas possíveis e, por
conseguinte, na evolução histórica”48. Isso introduz uma concepção da verdade como “horizonte”
que não se pode alcançar de modo definitivo, e isso abre a uma teoria do conhecimento
aproximado cuja melhor expressão será alcançada pela epistemologia franco-italiana da primeira
metade do século XX49. “A verdade – escrevia, com efeito, Enriques – é apenas um
encaminhamento para o verdadeiro”50; qualquer presunção de permanência se tornaria, por
conseguinte, contraditória e inapropriada. Somente a história poderá mostrar o que a verdade tem
no seu caminho, na medida em que o caminho da verdade é a evolução racional de nossos modos
de conhecer no esforço constante para torná-los coerentes, não contraditórios e socialmente
controláveis (no sentido de ser compartilhados).
Mas a crítica da “teoria da verdade como uma cópia”, para retomar uma expressão de
William James, conheceu na história do pensamento epistemológico e filosófico muitas
flutuações, e ela não permaneceu uma característica do pensamento franco-italiano. Na Inglaterra
e nos Estados Unidos, por exemplo, ela foi defendida e aprofundada por Charles S. Peirce, mas
também foi completamente abandonada e ridicularizada no início do século por muitos filósofos
das ciências de primeira ordem que simpatizavam mais com as teorias empiristas. Esses últimos
tinham, com efeito, recuperado e revalorizado a teoria da verdade como correspondência, o que
diz muito sobre a dificuldade que encontramos de abandonar a concepção intuitiva da verdade
como cópia ou como reflexo da realidade. Ainda nos anos 1960 e 1970, filósofos, aliás, muito
diferentes entre si, como Imre Lakatos, Thomas S. Kuhn, Paul K. Feyerabend e Hilary Putnam,
sentiram a necessidade de questionar a teoria da verdade como correspondência, retomando, sob
alguns aspectos e de modo inconsciente, as instâncias críticas da epistemologia franco-italiana do
início do século. Tudo isso confirma o quão difícil e complexo é o problema da verdade, que
permanece ainda um problema não resolvido. Este é um problema que o filósofo Hilary Putnam
chamou de “metafísica”51, mas que também poderia ser chamado de “ideológico”, já que o fato
de participar de uma ou de outra concepção da verdade constitui antes uma tomada de posição.

48
ENRIQUES, Federigo, La teoria della conoscenza da Kant ai giorni nostri. Bolonha: Zanichelli, 1934, p. 89.
49
Gaston Bachelard apresenta os resultados teóricos de uma concepção aproximada do conhecimento em seu Essai
sur la connaissance approchée, op. cit. n. 36, que retoma e radicaliza alguns dos argumentos que foram
desenvolvidos por Pierre Duhem e Federigo Enriques no começo do século.
50
ENRIQUES, Federigo. La signification de l’histoire de la pensée Scientifique. Paris: Hermann, 1934, p. 7.
51
PUTNAM, Hilary. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. [Trad. Francesa:
Raison, Vérité, Histoire. Paris: Minuit, 1984].
24

Trata-se ainda de uma questão eminentemente teórica. Mas não se pode ignorar a aquisição
propriamente filosófica desse problema: de fato, entre os filósofos muito mais do que entre os
cientistas, estamos nos movendo cada vez mais para uma concepção da verdade como construção
e não como reflexão.
Antes de terminar, é preciso referir-se a um aspecto mais “concreto” da questão que,
como foi prometido antes, deve mostrar o seu caráter teórico-ideológico precisamente em um
plano menos fácil, que é o da realidade intuitiva. Vamos retomar a frase indiscutível sobre a
aranha que tem oito patas. Ninguém pensaria dizer que ela é falsa e todos concordam em
reconhecer que “é verdadeiro”, que a aranha, ao contrário de muitos outros insetos, tem oito patas
e não seis. O realista do reflexo nos perguntaria, neste ponto, o que seria “construído” em uma tal
verdade, e sobretudo o que seria histórico e convencional. E ele repetiria talvez uma formulação
de Alfred Tarski, o lógico que enunciou, da maneira mais rigorosa, uma teoria semântica da
verdade, repetindo: “A aranha tem oito patas é verdadeiro se e somente se a aranha tem oito
patas”, o que significa que o enunciado é verdadeiro se e somente se ele corresponde exatamente
à realidade. Tarski afirmou que eram verdadeiras, em uma linguagem determinada, todas as
asserções significativas que correspondiam aos fatos. A epistemologia do século XX estabeleceu
que os fatos não têm um referente real imediato, mas que são construídos com base em hipóteses
e teorias, circunstâncias ideais e sociais, condições econômicas e históricas. Em uma perspectiva
epistemologicamente extensa, a verdade como julgamento sobre um estado de coisas em relação
recíproca obedece às mesmas instâncias seletivas e racionais pelas quais se define o estatuto
epistemológico de um “fato”, para além da constatação de que um julgamento é sempre e
necessariamente uma atividade de nosso entendimento racional passada pela peneira da
linguagem. Sobre isso, Wittgenstein escreveu coisas acerca das quais existe hoje um acordo
quase total, especialmente sobre o fato de que a linguagem e a significação das palavras devem
estar relacionadas às formas de seus usos muito mais do que a um referente suposto objetivo e
eterno. E Tarski não era certamente tão ingênuo a ponto de retroceder a uma teoria da
correspondência. Ele entendeu, então, que, se quiséssemos juntar uma teoria da verdade
logicamente coerente, devemos assumir toda a responsabilidade de nosso ser animal linguístico
finito, e reconhecer que um julgamento da verdade não visa imediatamente o mundo da natureza,
mas o modo de enunciação linguística52. Ele compreendeu e explicou que a frase: “A aranha tem
52
Segundo Tarski, nós não dispomos de “um critério” para estabelecer que determinada teoria é verdadeira no
sentido de que ela corresponde aos fatos, e que a ausência de tal critério de verdade se deve a dois fatores: existe
25

oito patas é verdadeiro se e somente se a aranha tem oito patas” refere-se ao modo pelo qual a
linguagem fala do mundo, e o julgamento da verdade se refere a esse modo, e não diretamente ao
mundo. Especialmente porque, nas ciências, há muitos enunciados que não podem estar
diretamente relacionados a um estado de coisas efetivo e natural. Além disso, usamos o
julgamento da verdade também para coisas que não são coisas, por exemplo, a linguagem ou o
raciocínio lógico, para não mencionar sentimentos, sonhos ou questões religiosas etc. A teoria da
correspondência pode chegar somente até um certo ponto, até um certo grau de precisão, então
ela tem que levantar suas mãos para o alto, já que ela não sabe dizer qual seria a essência que
permitiria a todas as verdades ter algo em comum. Ao ignorar os esforços metafísicos de
pensadores relativamente distantes das ciências como Heidegger (que tinham formulado o
problema da essência da verdade)53, o filósofo das ciências Alan Musgrave escrevia em um tom
pesaroso: “Os primeiros teóricos da correspondência procuravam dar uma explicação da relação
de correspondência [...]. Tal explicação deveria nos dizer o que todas as verdades têm em
comum, em que consiste a sua ‘essência’. Ela deveria nos dizer por que o pensamento e a
linguagem, e a realidade e os fatos se colocam dois a dois. Mas essa busca por uma explicação
geral da correspondência (e dos fatos), essa busca da essência da verdade, não conduziu a parte
alguma”54. Tarski, assim como Wittgenstein já havia escrito no Tractatus, estava inteiramente
consciente da inevitabilidade da linguagem, e ele sabia que não se podia nem se devia falar do
modo pelo qual a linguagem corresponde ao mundo, pois a maneira pela qual a linguagem e o
mundo correspondem não pode ser implicada em um dos dois termos da correspondência (posto
que se “falamos” disso, ela é invariavelmente inserida na linguagem) 55. Aqui não é o lugar para
aprofundar a teoria tarskiana da verdade, mas é importante notar que a verdade de que Tarski fala
em seus enunciados não relaciona a linguagem e o mundo, mas relaciona uma parte da linguagem
com uma outra parte da linguagem. E como ele sabia muito bem que as linguagens são muito
variadas e que ela existe em grande quantidade, uma vez que são criações humanas fundadas em

virtualmente um número infinito de teorias alternativas à nossa para explicar os mesmos fatos; e apesar de todas as
confirmações que nossa teoria pode obter, nada impede logicamente que um novo controle possa desmenti-la
(enquanto as consequências de uma teoria são infinitas, os controles só podem ser finitos). Ver TARSKI, Alfred,
“The semantic conception of the Truth and the Foundation of Semantic”. In: Philosophical and Phenomenological
Research, 4, Brown: M. Farber, 1944; POPPER, Karl R. Objective Knowledge. Oxford: Clarendon, 1972.
53
HEIDEGGER, Martin. “De l’essence de la vérité”. In: Questions, I. Paris: Gallimard, 1985.
54
MUSGRAVE, Alan. Common Sense, Science and Scepticism. Cambridge: Cambridge University, Press, 1993, p.
313 (cap. 14).
55
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logicus philosophicus, (trad. francesa) Gallimard: Paris, 1961. “Os limites
da minha linguagem significam os limites do meu mundo” (prop. 5. 6) e “Worüber man nicht sprechen kann, darüber
soll man schweigen” (prop. 7: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”).
26

convenções, as verdades que podem ser expressas por elas são também muito numerosas. O
julgamento de verdade deve, portanto, ser delimitado no interior de uma certa linguagem, onde
ela é usada, e os critérios às quais se refere não podem e não devem ser generalizados de modo
algum, sob pena de uma série de contradições que o próprio Tarski, mas, em seguida também, o
lógico Kurt Gödel, mostraram 56. Basicamente, a verdade circunscrita no domínio da linguagem
perde a sua generalidade metafísica abstrata sem perder capacidade de precisão: mas sua precisão
tem uma validade somente no domínio da pertença, sem que os critérios sobre a base nos quais
ela pode ser afirmada ou negada possam ser definidos de forma completa e conclusiva (uma vez
que a verdade dos critérios da verdade não pode pertencer ao mesmo nível ou à mesma ordem de
linguagem da verdade da qual são os critérios, e assim por diante até o infinito). Pelas palavras de
Popper, portanto, pode-se concluir afirmando “que um resultado imediato das teorias de Tarski
sobre a verdade é o seguinte teorema lógico: Não pode haver nenhum critério geral de
verdade”57. Isso levou também a consequências aparentemente extremas, como as de Larry
Laudan, que decidiu se libertar completamente da própria ideia de verdade em suas considerações
sobre a ciência e seus desenvolvimentos: “Não temos nenhum meio para saber com certeza [...]
se a ciência é verdadeira ou que é provável ou que está se aproximando da verdade. Alacançar
uma tal certeza ou uma tal aproximação da verdade é utópico no sentido literal do termo, que não
podemos jamais constatar tê-la alcançado”58.

3.8 Pluralização das verdades


A epistemologia do século XX, portanto, chegou, de maneiras muito diferentes e seguindo
caminhos muito distantes, senão explicitamente opostos, à conclusão paradoxal de que “a
verdade não existe”59. Da verdade, não se pode predicar a existência, porque se trata de uma
relação interna com a linguagem. Seria melhor dizer que a verdade é um problema complexo no

56
Ver MUSGRAVE, Alan, op. cit. n. 54, cap. 14, § 5.
57
POPPER, Karl R. The Open Society and Its Enemies. Londres: Routledge & Kegan, 1966 (5), t. 2, p. 493, que
continua assim: “Isso não legitima a conclusão de que a escolha entre teorias rivais seja arbitrária: isso significa
apenas, e muito simplesmente, que nós podemos sempre errar em nossas escolhas, que sempre podemos ver a
verdade fugir ou que não podemos alcançá-la, que não podemos pretender à certeza”.
58
LAUDAN, Larry. La dynamique de la science (trad. francesa). Bruxelas: Mardaga, 1987, citado por Dario
Antiseri, “Verso una teoria non giustificazionista della ragione”. In: Metamorfosi, dalla verità al senso della verità
(obra coletiva), Roma-Bari: Laterza, 1986, p. 131.
59
Sobre a questão, ver RORTY, Richard. Truth and Progress. Cambridge: Cambridge University Press, 1998; sobre
suas relações com a filosofia da Idade Média em comparação com a filosofia analítica, ver DELL’UTRI, Massimo. Il
falso specchio. Teorie della verità nella filosofia analítica. Pisa: ETS, 1996 e D’AGOSTINI, Franca, “Storia di ‘la
verità non esiste’”. In: Aut-Aut, 301-302, 2001.
27

qual se deve manter uma paciência crítica e, como escreveu Popper, ter tido bom senso e
sabedoria. Ninguém pensaria hoje em procurar ou em elaborar uma teoria geral da verdade. O
que, naturalmente, não resolve o problema do como e do porquê. Continuamos a usar o termo
verdade (e a abusar disso), continuando especialmente a considerá-lo válido – ou seja,
continuamos a atribuir um valor ontológico à verdade, persistimos em dizer que há uma verdade
e que se pode predicar o ser a propósito da verdade, que é uma questão sobre a qual os filósofos
continuam a discutir.
O que a epistemologia de 1900 foi capaz de sugerir à filosofia é que, quando se refere à
verdade, é preciso ter consciência de que seus critérios são para sempre incompletos e
circunstanciais. O que, com efeito, não era uma grande novidade, pois, já antes de Kant, e depois
com o próprio Kant, a verdade havia sido deslocada das coisas para o nosso entendimento. Vale a
pena lembrar uma das passagens kantianas a esse respeito:

A verdade, com efeito, ou a aparência não estão no objeto [...] mas no julgamento sobre o objeto,
em como ele é pensado. Pode-se, portanto, afirmar, com razão, que os sentidos não se enganam,
mas não porque eles julgam sempre exatamente, porque eles não julgam de modo algum. Então,
tanto a verdade como o erro, e a aparência como caminho para esta verdade, ocorrem apenas no
julgamento [...]. Em um conhecimento que concorda completamente com as leis do entendimento,
não haveria erro. Em uma representação dos sentidos (uma vez que ela não contém julgamento de
modo algum) também não há erro60.

Isso dizia já muito sobre o conteúdo epistemológico da verdade das coisas e sobre o que
Kant pensava a respeito da opinião tradicional sobre o engano dos sentidos: nossos sentidos são
completamente inocentes em relação à verdade, precisamente porque não é sua tarefa se
preocupar com isso. Se pensarmos na equação sempre colocada entre os sentidos e a realidade
externa (material), isto é, no conhecimento sensível como conhecimento da realidade material da
natureza, que chamamos de conhecimento experimental ou apenas de experiência, então as
consequências da afirmação kantiana tornam-se interessantes. Mas Kant acrescentou algo que se
referia explicitamente ao problema dos critérios de verdade e, para ser mais preciso, à pretensão
de um critério universal e certo:

Se a verdade consiste no acordo de um conhecimento com seu objeto [o que Kant pensou], é
necessário, então, que esse objeto seja distinto dos outros, uma vez que um conhecimento é falso
se não concorda com o objeto a que se refere, embora ela possa, no entanto, conter também algo
que possa valer também para outros objetos. Ora, um critério geral de verdade seria o que é válido

60
KANT, Immanuel. Critique de la raison pure, “Dialectique transcendantale”, Introduction, op. cit. n. 34, p. 285.
28

para todos os conhecimentos, sem distinção de seus objetos. Mas é claro que, se alguém ignorar
nele qualquer conteúdo de conhecimento (a relação com seu objeto), uma vez que a verdade diz
respeito precisamente a esse conteúdo, é absolutamente impossível e não faz sentido algum
procurar uma nota de verdade para tal conteúdo do conhecimento 61.

Mas se não pode haver um critério universal da verdade, assim como o próprio Popper
escreveu um século e meio depois, a própria verdade se pluraliza de acordo com as articulações
do julgamento e, como mostraram Wittgenstein e Tarski, de acordo com a multiplicidade
indefinida das linguagens pelas quais os julgamentos são expressos.
A principal preocupação dos filósofos é, nesse momento, a de combater o ceticismo ou,
como se chama agora, o relativismo que poderia ser deduzido dessas conclusões. De Kant a
Musgrave, portanto, por dois séculos ou mais, essa tem sido uma preocupação constante: se não
há um critério absoluto e universal de verdade, não importa qual verdade pode funcionar. Mas
como distinguir um conhecimento verdadeiro de uma opinião, de acordo com a problematização
platônica? Para usar um provérbio que é caro precisamente para a opinião, é preciso ter cuidado
para não jogar fora o bebê com a água do banho. A falta ou o aspecto contraditório de um critério
universal de verdade, o que implica a insensatez da questão filosófica “o que é verdade?” (mesmo
que muitos continuem a formular essa pergunta), não significa que seria preciso abolir a verdade,
ou que seria preciso ignorá-la ou renunciar a ela. Pelo contrário, significa que ela está mais
próxima do caráter concreto de nossa condição muito humana de seres vivos não absolutos e
condicionados pelos contextos nos quais desde sempre estivemos imersos e contribuímos para
constituir e para transformar. Isso significa que a verdade existe, mas que não pode ser escrita
com uma letra maiúscula (isso a que mesmo Bachelard não conseguiu resistir) 62 porque, devido à
natureza incompleta dos critérios usados para estabelecê-la, ela nunca pode reivindicar validade
absoluta. Porque, dependendo dessa historicidade, dessa “circunstancialidade” e dessa
incompletude, a verdade, ou melhor, as verdades podem “crescer”, se transformar e mudar, e
nosso conhecimento (a história demonstra isso) pode se modificar no tempo e se desenvolver. É
propriamente nossa condição de ser temporariamente histórico (assim como nos revelam
expressões como “a cada vez”, “renegociar”, “incompleto”, “compartilhar”, “contextualização”)
que reconduz o problema da verdade à sua dimensão humana, e não puramente lógica, e, por
conseguinte, implica a necessidade de tê-la em conta também no domínio da historiografia. É

61
Ibid., “Logique transcendantale”, Introduction, III, p. 99.
62
Ver BACHELARD, Gaston. Le matérialisme rationnel, op. cit. n. 43, p. 86. “Todo historiador das ciências é
necesariamente também um historiador da Verdade”.
29

preciso, enfim, aprender a vencer a certeza intuitiva veiculada por proposições do gênero: “A
aranha tem oito patas”. É preciso, portanto, estar em uma perspectiva epistemologicamente mais
aberta, sem se contentar com o simples nível das aparências. É por isso que o físico Jean-Marc
Lévy-Leblond, que certamente não pode ser suspeito de relativismo cético, conduziu o raciocínio
que relatamos no início, com inspiração no julgamento de verdade muito comum para nós hoje,
mas que permanece, no entanto, problemático: “A Terra gira em torno do Sol”.

Você também pode gostar