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Faculdade de Economia

Universidade de Coimbra

Sílvia Portugal Novas Famílias, Modos Antigos

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As redes sociais na produção de bem-estar
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Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra para obtenção do Grau de Doutor em
Sociologia, na especialidade de Sociologia das Desigualdades
Sociais e da Reprodução Social, orientada pelo Professor Doutor
Pedro Hespanha

Coimbra
2006
Índice

Agradecimentos ............................................................................................................ 1

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 3

I PARTE

Capítulo 1
OS MUNDOS DE BEM-ESTAR

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Introdução ....................................................................................................................... 15
1.1 │ Três mundos ou mais? ......................................................................................... 17
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1.2 │ Portugal: que modelo? ....................................................................................... 32

Capítulo 2
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A DÁDIVA, A FAMÍLIA E AS REDES SOCIAIS


Introdução ....................................................................................................................... 57
2.1 │ A dádiva................................................................................................................. 60
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2.2 │ A família.................................................................................................................. 76
2.3 │ As redes ................................................................................................................101

Capítulo 3
O ROTEIRO DA PESQUISA
Introdução .....................................................................................................................133
3.1 │ O modelo analítico ............................................................................................136
3.1.1. │ As hipóteses ....................................................................................................... 137
3.1.2. │ A operacionalização ....................................................................................... 139
3.1.3. │ O objecto empírico.......................................................................................... 148
3.2 │ A metodologia ....................................................................................................152
3.3 │ A entrevista ..........................................................................................................160
II PARTE

Capítulo 4
AS HISTÓRIAS DA(S) FAMÍLIA(S)
Introdução ..................................................................................................................... 177
4.1 │ Quem contou a sua história ............................................................................. 179
4.2 │ As histórias de amor: o casamento e o namoro........................................... 188
4.3 │ Histórias de cuidados: os filhos ......................................................................... 203
4.4 │ Histórias novas com enredos antigos.............................................................. 210

Capítulo 5
AS COISAS E OS MODOS (I) – A HABITAÇÃO

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Introdução ..................................................................................................................... 217
5.1 │ Os proprietários ................................................................................................... 219
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5.1.1 │ A compra ............................................................................................................. 221
5.1.2 │ A autoconstrução............................................................................................... 237
5.1.3 │ A doação............................................................................................................. 253
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5.2 │ Os não proprietários........................................................................................... 258


5.2.1 │ O arrendamento................................................................................................. 258
5.2.2 │ O empréstimo...................................................................................................... 262
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5.2.3 │ A coabitação...................................................................................................... 268


5.2.4 │ A habitação social ............................................................................................. 271
5.3 │ A habitação e as redes sociais........................................................................ 274

Capítulo 6
AS COISAS E OS MODOS (II) – O EMPREGO
Introdução ..................................................................................................................... 277
6.1 │ O primeiro emprego .......................................................................................... 280
6.2 │ As trajectórias ...................................................................................................... 294
6.2.1│ A carreira............................................................................................................... 296
6.2.2│ O emprego seguro .............................................................................................. 307
6.2.3│ A mudança........................................................................................................... 311
6.3 │ As diferenças ....................................................................................................... 330
6.4 │ O sobretrabalho.................................................................................................. 346
6.5 │ O emprego e as redes sociais.......................................................................... 358
Capítulo 7
AS COISAS E OS MODOS (III) – OS CUIDADOS DE SAÚDE
Introdução .....................................................................................................................363
7.1 │ Os serviços públicos............................................................................................367
7.2 │ Os serviços privados ...........................................................................................381
7.3 │ Os cuidados informais........................................................................................387
7.4 │ Os cuidados de saúde e as redes sociais ......................................................393

Capítulo 8
AS COISAS E OS MODOS (IV) – OS BENS MATERIAIS
Introdução .....................................................................................................................397
8.1 │ A poupança ........................................................................................................402

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8.2 │ O crédito ..............................................................................................................407
8.3 │ A dádiva...............................................................................................................412
8.4 │ Os bens materiais e as redes sociais ...............................................................435
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Capítulo 9
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AS COISAS E OS MODOS (V) – CRIAR E CUIDAR


Introdução .....................................................................................................................439
9.1 │ As crianças...........................................................................................................441
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9.2 │ Os idosos...............................................................................................................455
9.3 │ O trabalho doméstico .......................................................................................462
9.4 │ Criar e cuidar no interior das redes sociais ....................................................479

Capítulo 10
AS PESSOAS
Introdução .....................................................................................................................483
10.1 │ Os nós..................................................................................................................484
10.1.1 │ Os parentes ....................................................................................................... 490
10.1.2 │ Os outros ............................................................................................................ 516
10.2 │ Os laços ..............................................................................................................531
10.3 │ As redes ..............................................................................................................537
10.4 │ Quanto valem as pessoas? As redes como capital social .......................553
Capítulo 11
AS NORMAS
Introdução ..................................................................................................................... 559
11.1 │ Reciprocidade, mas... .................................................................................... 563
11.2 │ Obrigação, mas... ........................................................................................... 577
11.3 │ Igualdade, mas... ............................................................................................. 592
11.4 │ Autonomia, mas... ........................................................................................... 607
11.5 │ As normas e os problemas ............................................................................. 620

CONCLUSÃO................................................................................................................ 623

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 643

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ANEXOS ......................................................................................................................... 679
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AGRADECIMENTOS

O primeiro agradecimento dirijo-o ao Prof. Doutor Pedro Hespanha, que orientou esta
tese com a disponibilidade e a generosidade que lhe são conhecidas. O seu papel na
minha carreira académica e científica vai muito para além da função de orientador dos
meus trabalhos científicos. Ao longo dos anos tenho tido o privilégio de poder beneficiar
da sua sabedoria em inúmeras ocasiões e de poder partilhar com ele muitas outras
aventuras para além desta tese.

Em segundo lugar, gostaria de mencionar os homens e as mulheres que me acolheram


em suas casas e aceitaram contar-me as suas vidas. Sem a sua generosa dádiva esta
pesquisa não teria sido possível. Este trabalho é também devedor do contributo que
muitos deram para ser possível chegar até às famílias entrevistadas. Durante meses,

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persegui familiares, amigos, colegas, conhecidos, familiares de conhecidos, amigos de
familiares, conhecidos de conhecidos… em busca de um contacto. Ao fazer a lista das
pessoas que me ajudaram nesta fase do trabalho de campo conclui que ela daria um
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bom estudo de redes sociais… Esperando não ter esquecido ninguém entretanto, aqui
ficam os nomes de quem que me deu uma inestimável ajuda: Ágata Midões, Alexandra
Mendonça, Amélia Ricardo, Ana Antunes, Ana Maria Palhares, Ana Raquel Matos, Ana
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Seixas, Cristina Milagre, Fernando Padilha, Ita Carreira, José Palhares, Laurinda Gamboa,
Luís Guerra, Luís Januário, Luís Peres Lopes, Margarida Antunes, Maria do Céu Seixas, Nuno
Moita, Nuno Serra, Paulo Rodrigues, Rosa Lopes, Rosalina Santos, Rosário Dias Ferreira.

Durante o trabalho de campo, pude contar, de Norte a Sul do país, com uma vasta rede
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de apoio que tornou mais quente o inverno frio e longo em que realizei as entrevistas. As
agruras da pesquisa foram menorizadas pelo acolhimento e pelo afecto de muitos dos
que acima referi. Gostaria de destacar, no entanto, pelo apoio que constituiram durante
as minhas deslocações, os mimos inigualáveis das primas Rosalina e Mélinha, o
acolhimento amigo da Ita e do Heitor, a recepção “cinco estrelas” das famílias Antunes e
Seixas, as provas de iguarias regionais com o Luís Guerra, o imbatível coelho do Nuno
Serra e as inesquecíveis histórias da sua mãe.

Esta tese foi realizada no quadro de dois projectos de investigação: As solidariedades


familiares em época de mudança dos sistemas de protecção social, coordenado pelo
Prof. Doutor Pedro Hespanha (Projecto PRAXIS / P /SOC / 13154/ 1998) e Novas gerações
e solidariedades familiares (Programa SAPIENS/ Projecto 39206 /SOC / 2001).

Todo o meu trabalho académico é devedor de duas instituições – a Faculdade de


Economia e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Na FEUC dirigo
uma palavra especial aos colegas do Núcleo de Sociologia e um agradecimento
particular ao Presidente do Conselho Científico, Prof. Doutor Carlos Fortuna, pelo apoio
que me tem dado desde o início da minha carreira. No CES, ao qual devo condições de
trabalho estimulantes e enriquecedoras, gostaria de agradecer, em especial, ao seu
Director Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, pelos seus desafios constantes que nos
fazem querer ser e fazer melhor, aos colegas do Conselho de Redacção da Revista
Crítica de Ciências Sociais, e particularmente, ao seu Director, Prof. Doutor António Sousa
Ribeiro, aos meus colegas da Direcção – Paula Lopes, Tiago Santos Pereira e, em
especial, ao Hermes Costa, pela sua solidariedade e apoio na fase final da tese.

Devo múltiplos agradecimentos àqueles que partilham comigo a esfera do trabalho e da


amizade. Agradeço ao José Manuel Mendes e à Paula Abreu a sua disponibilidade e
paciência perante as minhas dúvidas sobre a análise estatística. À Lina Coelho pelas suas
leituras de vários capítulos, bem como pelas inúmeras conversas estimulantes sobre um
mundo de outras coisas. À Virgínia Ferreira pelos seus úteis comentários a diversos
capítulos, mas sobretudo, por tudo aquilo que não cabe nesta tese, mas faz parte dela –
o constante estímulo e apoio ao meu trabalho, a partilha cúmplice de interesses e
projectos. À Teresa Tavares pela leitura minuciosa da tese. Sendo ela (re)conhecida
como a melhor pessoa do mundo, ter-se-á que acrescentar o sub-título de melhor
revisora de texto. As redundâncias e erros gramaticais que resistiram à sua feroz
perseguição são da minha inteira responsabilidade. Ao Claudino Ferreira pela sua leitura
atenta e estimulantes comentários, bem como pelo apoio incondicional na produção

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final da tese.

Devo, ainda, um agradecimento aos colegas do grupo R.E.D.E.S – Paulo Henrique Martins,
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Breno Fontes, Eliane da Fonte, Cristina Reigadas e Adriana Marrero, com quem nos dois
últimos anos pude partilhar e discutir ideias que contribuiram para o enriquecimento
deste trabalho.
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Esta tese não teria sido possível sem o apoio da minha família e amigos. Quase todos já
foram nomeados acima, resta-me agradecer aos que não tiveram tarefas concretas
distribuídas. Pelos pais que sempre foram, mas, sobretudo, pelos avós que são, à minha
mãe e ao meu pai. Por serem os meus amigos da vida toda, ao Rui Tavares de Almeida e
à Guida Fernandes. Por ser minha amiga de infância, à Margarida Viegas. Pelos
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momentos prazenteiros de uma vida para além da tese, ao John Mock e ao Luís Moura
Ramos. Por conseguirem dar abraços fraternos, mesmo com o Atlântico no meio à Alice
Nunes e à Eloisa Cabral. Pela memória dos dias felizes, ao Nuno Baptista – se já não posso
contar com ele no presente, fica a certeza de que o futuro se constrói também com o
que de bom nos fica do passado.

Uma palavra especial para a minha-irmã-praticamente-gémea Elisabete Figueiredo, a


quem devo uma ajuda inestimável na preparação do manuscrito final da tese. Seria uma
dádiva de monta, se não fosse o oceano de outras coisas que nos une.

As minhas últimas palavras vão para aqueles que estão sempre em primeiro lugar. Ao
Quim, companheiro da vida toda, devo a certeza de que há modos novos de construir a
família e o desígnio de renovar no quotidiano aquele poema que há muitos anos
elegemos como nosso. Ao meu filho querido Guilherme, que revolucionou a minha vida,
devo muitos ensinamentos, mas, sobretudo, a aprendizagem do sentido relativo das
coisas. Sem isso todo o caminho teria sido muito mais difícil.
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I NTRODUÇÃO
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No volume Sociedade, Paisagens e Cidades de uma obra recente sobre a

Geografia de Portugal, Teresa Barata Salgueiro e João Ferrão destacam o


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“turbilhão de mudanças” que o país sofreu nos últimos 30 anos (2005: 13). Uma

leitura dos dados extensivos e das análises apresentadas nesta obra permite

identificar alguns elementos desse “turbilhão”: um acelerado processo de

modernização, com resultados complexos ao nível territorial; uma convergência

com os padrões europeus, embora com distâncias significativas em domínios

essenciais do bem-estar e da qualidade de vida; uma elevada heterogeneidade

dos processos de mudança e das estruturas sociais, económicas e culturais,

coexistindo, lado a lado, traços de modernidade, pré-modernidade e pós-

modernidade. As análises em diferentes áreas revelam uma sociedade em

rápida transformação, mas em que “a força do passado no presente” se faz

sentir com intensidade em múltiplos domínios (André, 2005: 141).


Introdução

Um desses domínios é, certamente, o das relações familiares. Os indicadores

demográficos são, talvez, os que melhor espelham a rapidez da mudança e a

aproximação aos modelos europeus. A transição demográfica portuguesa foi

tardia, mas o seu ritmo vertiginoso (Almeida et al., 2002 e 2004; Bandeira, 1996;

Ferrão, 2005). No entanto, a convergência dos padrões demográficos na Europa

está longe de corresponder a uma homogeneização das formas de viver a

família e em família, nos diferentes países. Se existem alguns traços que definem o

“modelo familiar europeu”, eles podem ser sintetizados pela definição

durkheimiana da família relacional “centrada nas pessoas, mais do que nas

coisas”. Contudo, este modelo, construído sobre a informação estatística, é

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sobretudo “teórico” e tem concretizações muito diversas no interior da Europa

(Commaille e Singly, 1997: 20).


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Como mostram os trabalhos de François de Singly (2001, 2003), a família tem hoje

que permitir conciliar a vida em comum com a liberdade e identidade pessoais,


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respeitando a autonomia individual dos seus membros. Uma parte das

divergências entre os países europeus parece passar pela adesão à norma do


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individualismo, mais forte nos países do Norte do que do Sul (Commaille e Singly,

1997). As diferenças não se justificam, no entanto, por um “atraso” do Sul, mas sim

por configurações específicas ligadas à organização da vida familiar, às relações

sociais de sexo, ao papel da família na construção do bem-estar individual e

colectivo.

Em Portugal, o apego aos valores familistas e a centralidade da família na

protecção social são notórios. Se estas características resultam, em parte, de

uma herança pesada do passado, a sua persistência no presente desafia-nos a

(re)pensar o lugar da família nas novas reconfigurações do social e do político.

Se, hoje, a “questão familiar” passa (ou melhor, volta) a estar no centro da

“questão social” (Déchaux, 1996), ela tem, também, que ser reformulada devido

6│
Introdução

aos novos contextos sociopolíticos: o desemprego, a precaridade, a exclusão, a

crise do Estado-Providência (Martin, 1996a).

As deficiências do Estado-Providência português e a especificidade do seu

desenvolvimento no contexto das sociedades europeias são conhecidas. Quer

do ponto de vista quantitativo, quer do ponto de vista qualitativo, ou seja, quer

se pense no montante de gastos públicos em políticas sociais, quer no âmbito da

aplicação dessas políticas, o nosso Estado-Providência apresenta diferenças

significativas relativamente aos países industrializados do resto da Europa

(Mozzicafreddo, 1992 e 1997; Santos, 1990, 1993; Santos e Ferreira, 2001). São estas

diferenças que levam Boaventura de Sousa Santos a caracterizá-lo como um

semi-Estado-Providência (Santos, 1993:

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44), cujo défice

parcialmente compensado pela actuação de uma sociedade rica em relações


providencial é
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de comunidade, interconhecimento e entreajuda. Afirma o autor que “em

Portugal um Estado-Providência fraco coexiste com uma sociedade-providência


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forte” (Santos, 1993: 46).

Apesar de nunca ter atingido os níveis de cobertura social dos países centrais,
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Portugal tem, no entanto, nos últimos anos, adoptado algumas das medidas

restritivas que caracterizam a actual fase de evolução do Estado-Providência

nesses países (Hespanha, 1999): a privatização dos serviços sociais do Estado; a

gestão privada dos serviços públicos; a devolução à sociedade civil (ou

“desinstitucionalização”) da protecção social estatal; a co-responsabilização dos

cidadãos nas despesas sociais; a revitalização dos sistemas de apoio da

sociedade civil. É “como se Portugal estivesse a passar por uma crise do Estado-

Providência, sem nunca o ter tido” (Santos, 1993: 45).

Esta realidade exige uma nova reflexão sobre o papel dos sistemas informais de

apoio na provisão de bem-estar. Se a sociedade-providência pode, até certo

ponto, ser herdeira de práticas e representações tradicionalmente ligadas ao

│7
Introdução

modo de vida rural e, enquanto tal, ser considerada um resíduo pré-moderno, os

novos tipos de relação que hoje estabelece com o Estado e o mercado obrigam

a repensar este estatuto.

A transferência para a sociedade civil de parte das obrigações estatais é hoje

vista como uma solução para os problemas que o Estado-Providência atravessa.

Este processo tem, por um lado, criado novos tipos de solidariedade, de base

comunitária, mas enquadrados pelo Estado, e por outro lado, reconfigurado os

tradicionais laços de entreajuda (Hespanha, 1995). Estas novas articulações entre

Estado-Providência e sociedade-providência têm levado os autores a

recodificarem elementos que até agora eram considerados resíduos pré-

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modernos como características pós-modernas (Hespanha, 1995; Santos, 1993).
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Deste modo é, hoje, fundamental reflectir sobre o lugar da família na construção

do bem-estar individual e colectivo. É este o objectivo que me proponho nesta


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tese. Parto do princípio, enunciado por João Arriscado Nunes, de que “na

sociedade portuguesa, a família, o espaço doméstico e o mundo das

solidariedades primárias ocupam um lugar central enquanto formas privilegiadas


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de realização do laço político, de processos de associação e de dissociação

através dos quais se constrói a relação entre o particular e o geral” (Nunes,

1992a: 304). Assim, a análise que aqui desenvolvo pretende ser mais um

contributo para o debate em curso acerca da relação entre o social e o político,

entre o Estado e a sociedade civil em Portugal (Hespanha, 2001; Hespanha e

Carapinheiro, 2001; Santos, 1993; Santos e Ferreira, 2001). Parto de uma análise ao

nível individual para discutir efeitos sociais mais amplos, procurando uma

sociologia das relações entre público e privado.

A hipótese principal desta pesquisa defende a centralidade da família na

produção de bem-estar: por um lado, devido ao quadro deficitário que as

políticas públicas apresentam; por outro lado, devido à persistência das

8│
Introdução

solidariedades primárias nas representações e nas práticas relativas à protecção

social e à provisão de recursos.

Consequentemente, a análise desenvolve-se em torno de três objectivos: em

primeiro lugar, uma avaliação do papel efectivo que as redes sociais

desempenham, caracterizando a sua morfologia e modos de acção no acesso a

diferentes tipos de recursos; em segundo lugar, uma análise das formas de

articulação entre solidariedades públicas e privadas; e, em terceiro lugar, uma

discussão das potencialidades e constrangimentos das solidariedades familiares

face a outras esferas de produção de bem-estar.

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Do ponto de vista metodológico, a prossecução destes objectivos implicou o

recurso a uma diversidade de contributos teóricos, a utilização estratégica do


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conceito de rede social na construção do modelo analítico, e o uso da entrevista

em profundidade, como técnica de recolha de informação, conferindo relevo às


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vozes dos actores sociais. Se a base desta investigação assenta num modelo

hipotético-dedutivo, a postura metodológica adoptada no decorrer da pesquisa

foi a de uma abertura à indução. Deste modo, a riqueza dos discursos obtidos
PR

através das entrevistas desafiou categorias analíticas, induziu novas

interrogações e abriu novas perspectivas.

Tomei como objecto empírico os modos de acesso aos recursos de bem-estar de

jovens famílias com dupla inserção no mercado de trabalho, cujos cônjuges têm

idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos. Optei, assim, por centrar a

análise na fase inicial do ciclo de vida familiar, procurando um tempo de

(re)organização de recursos materiais e afectivos, para testar o papel das redes

sociais e da família.

│9
Introdução

O texto da tese estrutura-se em duas partes. Na primeira parte apresento a

problemática teórica e o desenho metodológico da pesquisa. Esta parte é

constituída por três capítulos. No primeiro capítulo – Os Mundos de Bem-Estar –

parto da tipologia de Gøsta Esping-Andersen, e das críticas ao seu modelo, para

analisar as especificidades do modelo de protecção social do Sul da Europa e a

questão do papel da família na produção de bem-estar. Procuro, ainda,

caracterizar a situação portuguesa e discutir as suas especificidades no contexto

do modelo do Sul.

No segundo capítulo – A Dádiva, a Família e as Redes Sociais – discuto diferentes

contributos teóricos que afirmam a vitalidade do dom nas sociedades

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contemporâneas e a importância das redes sociais e da família na produção de

bem-estar. Pretende-se contrariar as perspectivas que vêem no Estado-


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Providência uma forma moderna da dádiva, cujas manifestações se tornariam

cada vez mais residuais, contrapondo análises que afirmam a especificidade do


EV

sistema de dom e a sua persistência nas sociedades contemporâneas. Partindo

da hipótese de que o espaço doméstico é o lugar de base do dom, discutem-se


PR

os estudos que têm sublinhado a importância da família no suporte afectivo e

material dos indivíduos. Procura-se, também, a partir dos contributos da teoria

das redes, por um lado, enquadrar a família em estruturas relacionais mais vastas

e, por outro lado, do ponto de vista analítico, desenvolver um modelo que

permita integrar diferentes níveis de análise e olhar, simultaneamente, a forma e

o conteúdo das relações.

É com base nas linhas de problematização teórica enunciadas nestes dois

primeiros capítulos que se estabelece o modelo de análise apresentado no

terceiro capítulo – O Roteiro da Pesquisa – no qual se expõem, e justificam, as

principais opções metodológicas. Em primeiro lugar, apresentam-se as hipóteses

de trabalho, os conceitos fundamentais e a sua operacionalização, bem como a

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Introdução

justificação da escolha do objecto empírico e os critérios de selecção da

amostra. Em segundo lugar, expõem-se as estratégias seguidas no plano da

observação e discute-se a opção pela entrevista em profundidade como

técnica de recolha da informação. Para além de sistematizar a abordagem

metodológica da pesquisa, este capítulo pretende, também, ser um roteiro de

um percurso pessoal de investigação, dando conta das dúvidas, das certezas,

das perplexidades e das surpresas que surgiram durante toda a pesquisa e,

especificamente, no decorrer do trabalho de campo.

Na segunda parte da tese, analiso a informação empírica e confronto os

resultados com as hipóteses inicialmente propostas. O capítulo 4 – As Histórias

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da(s) Família(s) – apresenta uma caracterização das pessoas entrevistadas e das

suas famílias, através de algumas variáveis descritivas elementares, assim como


IE
uma panorâmica geral sobre o que há de novo e de tradicional nas suas

histórias. Pretende-se perceber o que permanece e o que muda nestas famílias:


EV

condições de vida, valores, práticas, representações, expectativas. As entrevistas

mostram como o novo e o velho, o moderno e o tradicional se entrecruzam e se


PR

inscrevem numa rede de relações que ultrapassa o espaço e o tempo da família

conjugal.

Nos capítulos 5 a 9 – As Coisas e os Modos – analiso o papel das redes sociais no

acesso a diferentes recursos: a habitação, o emprego, a saúde, os bens

materiais, os cuidados dos dependentes. A análise de cada um destes domínios

permite verificar que existe uma relação entre o desenho das redes e o acesso a

diferentes recursos. Redes constituídas por laços fortes ou laços fracos, por laços

de parentesco, restrito ou alargado, por relações familiares ou de amizade

produzem resultados diferentes no acesso a recursos, na satisfação de

necessidades, no enfrentamento de dificuldades e situações de risco. Estes cinco

capítulos mostram como as redes sociais permitem aceder a recursos não

│11
Introdução

acessíveis através do Estado e do mercado, e a recursos produzidos pela esfera

do Estado e do mercado, com base numa lógica distinta das destes, assente no

princípio da dádiva e da reciprocidade.

No capítulo 10 – As Pessoas – abandono a perspectiva a partir do conteúdo dos

fluxos que circulam nas redes e centro-me na análise dos nós e dos laços, de

modo a desenhar o mapa das redes e descrever a sua morfologia. Identifico

quatro tipos de redes sociais – as redes encapsuladas, as redes selectivas, as

redes abertas e as redes afínicas – que pretendem caracterizar as estruturas

relacionais das pessoas entrevistadas. A partir desta tipologia procuro perceber a

relação entre variáveis de interacção, variáveis estruturais e composição da

W
rede, bem como discutir as potencialidades das redes enquanto forma de

capital social.
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No capítulo 11 – As Normas – analiso os princípios normativos que regem a acção
EV

das redes. A pesquisa mostra que a definição e a aplicação das normas no

interior das redes sociais não são lineares. As interacções e as trocas obedecem

a um modelo complexo, cujos princípios são, muitas vezes, ambíguos e


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contraditórios entre si e, deste modo, geradores de tensões e conflitos. Se as

entrevistas permitem afirmar que os princípios gerais do dom regulam as relações

no interior das redes sociais, permitem, também, verificar que esta aplicação não

se faz sem problemas e identificar alguns dos paradoxos daí resultantes.

Finalmente, na Conclusão do trabalho sintetizo os principais resultados, que

apontam para a confirmação das hipóteses acerca da centralidade das redes

sociais na produção de bem-estar e do dinamismo do sistema de dádiva,

procurando retirar algumas ilações, e abrir novas pistas de análise, para a

discussão acerca do modelo de produção de bem-estar português.

12│
1
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OS MUNDOS DE BEM-ESTAR
IE
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Introdução

As diferentes genealogias das teorias sobre os regimes de bem-estar permitem-

nos constatar que o dinamismo teórico e académico se faz em contra-ciclo com

o desenvolvimento do Estado-Providência. Os estudos ganham fôlego quando as

políticas sociais entram em retracção (Faria, 1998). Deste modo, a crise do

Estado-Providência é, certamente, responsável pelo dinamismo da reflexão sobre

os modos de produção de bem-estar no mundo actual.

Tradicionalmente, os produtores da protecção social repartem-se por quatro

esferas distintas: a esfera do político, da acção estatal; a esfera do mercado

(empresas, bancos, companhias de seguros, etc.); o “terceiro sector” da

economia social e a esfera das solidariedades primárias: redes informais de


Capítulo 1

parentesco, amizade e vizinhança. Na maioria das sociedades europeias, no

decorrer deste século, as duas primeiras esferas assumiram progressivamente a

satisfação das necessidades de protecção social das populações, tomando

grande parte das responsabilidades que anteriormente pertenciam aos restantes

sectores. Com a construção do Estado-Providência nas economias avançadas,

os sectores informais de produção de bem-estar foram parcialmente esvaziados

das suas funções, o Estado passou a ocupar um papel central na satisfação das

necessidades sociais em termos de educação, saúde, segurança social. No

entanto, a partir dos anos 70, a crise económica fez com que a maioria dos

governos europeus considerasse cada vez mais difícil a manutenção do Estado-

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Providência, pelo menos dentro do paradigma sustentado pelas ideias de Keynes

e Beveridge.
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Deste modo, no centro dos debates políticos e teóricos coloca-se de novo a

questão que os anos dourados da protecção pública tinham feito esquecer: o


EV

papel das solidariedades primárias na provisão das necessidades sociais, na

manutenção do bem-estar e nível de vida dos indivíduos. O debate levantado


PR

pela crise do Estado-Providência levou essencialmente à (re)descoberta da

Sociedade-Providência, ou seja, à ideia de que as redes informais e, sobretudo a

família, são um elemento importante no apoio social e, portanto, a ter em conta

quando se trata de discutir a produção total de bem-estar numa sociedade.

Neste capítulo pretende-se dar conta destes debates. Tomando como ponto de

partida o trabalho de Gøsta Esping-Andersen, The Three Worlds of Welfare

Capitalism (1990), que, sem dúvida, marcou as reflexões nos últimos anos, procuro

discutir os modos de produção de bem-estar e a articulação entre as diferentes

esferas de protecção social.

O capítulo estrutura-se em dois pontos: no primeiro, parto da tipologia de Esping-

Andersen, e das críticas ao seu modelo, para discutir as especificidades do

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Os Mundos de Bem-Estar

modelo de protecção social do Sul da Europa e a centralidade da família na

produção de bem-estar. No segundo ponto, procuro caracterizar a situação

portuguesa, discutindo a sua inserção no modelo do Sul e as especificidades da

sua realidade.

1.1 │ Três mundos ou mais?

Embora sem ser pioneiro, quer na perspectiva comparada, quer nas

classificações tripartidas 1 , Gøsta Esping-Andersen apresenta em The Three Worlds

W
of Welfare Capitalism (1990) os resultados de vastas pesquisas estatísticas e

comparativas levadas a cabo na década de 80. Quer a reflexão teórica, quer o


IE
trabalho descritivo que desenvolveu, marcaram o pensamento sobre os regimes

de bem-estar desde então. O conceito central de Esping-Andersen é o de


EV

“desmercadorização” (de-commodification), ou seja, a capacidade que o

sistema confere ao indivíduo de aceder a condições de vida razoáveis sem ter

que vender a sua força de trabalho no mercado. O autor argumenta que os


PR

países industrializados podem ser agrupados, a partir das características comuns

dos seus regimes de bem-estar, em três modelos: o regime liberal/residual (que

inclui os Estados Unidos, Canadá e Austrália), o regime conservador-

católico/corporativista (que inclui a Alemanha e também a Áustria, a Bélgica, a

Itália e a França) e o regime social democrata/universalista (que corresponde

aos países do Norte da Europa e à Suécia em particular).

O regime liberal combina individualismo e primazia do mercado. Os benefícios

universais são reduzidos, predominando a assistência mediante comprovação de

1 Já em 1974, Richard Titmuss, na sua obra Social Policy. An Introduction, apresenta três modelos de
política social (Titmuss, 1974). Para uma discussão conjunta das perspectivas de Titmuss e de Esping-
Andersen, e das coincidências das suas posições, cf. Faria (1998).

│17
Capítulo 1

carência. Os beneficiários das políticas públicas são em número limitado,

restringidos a determinados grupos com baixos rendimentos e frequentemente

estigmatizados. A assistência estatal é reduzida ao mínimo, de modo a constituir

um estímulo à participação dos indivíduos no mercado de trabalho. O Estado

incentiva o mercado como provedor de bem-estar, quer activamente,

promovendo mecanismos privados de protecção social, quer passivamente,

reduzindo a provisão estatal ao mínimo. Deste modo, o grau de

desmercadorização resultante destas políticas é muito reduzido. O resultado, em

termos de estratificação social, é uma estrutura dual: de um lado, uma minoria

com baixos rendimentos, dependente da intervenção estatal, do outro lado,

W
uma maioria capaz de pagar planos privados de protecção social.

O regime conservador caracteriza-se por um nível moderado de


IE
desmercadorização. A eficácia do mercado e a mercadorização “obrigatória”

dos indivíduos não são os princípios estruturantes. No entanto, também não existe
EV

o pressuposto de que a provisão pública deva ser dominante; pelo contrário, ela

deve ser subsidiária das outras esferas, nomeadamente da família. O Estado


PR

incorporou as estruturas corporativas e reproduz diferenças de classe. Portanto, o

seu impacto redistributivo é reduzido. Historicamente, os países que formam o

regime conservador sofreram uma forte influência da Igreja, fortalecendo os

valores tradicionais da família. Este facto teve fortes implicações nas políticas de

maternidade e no acesso das mulheres casadas aos benefícios estatais.

Finalmente, no regime social-democrata o nível de desmercadorização é

elevado. O modelo caracteriza-se pelos princípios da universalidade, igualdade

e maximização da independência individual. A denominação do regime advém

do reconhecimento do papel crucial dos partidos social-democratas na

definição do Estado-Providência destes países. A predominância da provisão

pública de bem-estar dá-se em detrimento, quer das forças do mercado, quer

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Os Mundos de Bem-Estar

da família tradicional. Os custos de reprodução da família são também

socializados. Dado que o objectivo é fomentar a independência dos indivíduos

face ao mercado e à família, o Estado compromete-se com pesados encargos

sociais, quer em transferências monetárias, quer em equipamentos sociais.

As críticas à tricotomia dos regimes de Esping-Andersen são inúmeras e

diversificadas. Não cabe no âmbito deste estudo proceder ao seu exame

exaustivo 2 , no entanto, é importante sublinhar duas linhas de discussão suscitadas

pelo seu trabalho, dada a sua importância para a presente pesquisa. A primeira,

de algum modo surpreendente dado o carácter eurocêntrico do trabalho do

autor, prende-se com a sua aplicação na Europa. Por um lado, os três mundos de

W
Esping-Andersen dão escassa atenção aos países do sul da Europa, tratando-os

como “mistos”. Em oposição a esta perspectiva, diversos autores têm defendido


IE
que certas características destes países, nomeadamente o peso da economia

informal e a importância da família, permitem identificar um quarto tipo de


EV

regime de bem-estar 3 . Por outro lado, mesmo no trabalho posterior do autor

(Esping-Andersen, 1999) pouca atenção é dada à importância da União


PR

Europeia e aos critérios de convergência que esta implica, factor sublinhado por

diversos autores para a compreensão das actuais tendências das políticas sociais

no interior da Europa (Bonoli, George e Taylor-Gooby, 2004; Ferreira, 2000;

Hespanha, 2001).

A segunda linha de críticas vem das teorias feministas e revela-se fundamental

pela discussão que faz de duas dimensões centrais da argumentação de Esping-

Andersen: a relação Estado-família-mercado e o conceito de

2 Para uma síntese sistemática das críticas ao trabalho de Esping-Andersen cf. SEDEC (1998) e Arts e
Gelissen (2002).
3 Cf. o conjunto de artigos reunidos no número especial Southern European Welfare States da
revista South European Society and Politics (Rhodes, 1996) e, mais recentemente, Andreotti et al.
(2001).

│19
Capítulo 1

desmercadorização. Relativamente à primeira questão, o pensamento feminista

foi fundamental na chamada de atenção para a importância da família na

provisão de bem-estar. Como afirma Mary Daly, a família continua a ser a

principal provedora de bem-estar em todos os regimes, mesmo no regime social-

democrata (Daly,1996: 107). No entanto, Esping-Andersen apenas dá relevo à

família no modelo conservador. Se a sua tipologia pretende incorporar o

triângulo Estado-mercado-família, na prática assenta sobretudo na díade Estado-

mercado e esquece, em grande medida, o papel da família (Borchorst, 1996;

Daly, 1996). As teóricas feministas chamam a atenção para o facto de a situação

familiar de homens e mulheres condicionar, não apenas os benefícios estatais a

W
que têm direito, mas também a sua relação com o mercado.

As mulheres têm sido tradicionalmente as grandes responsáveis pelo trabalho de


IE
“criar e cuidar” no interior da família e isso tem condicionado, desde sempre, a

sua integração no mercado de trabalho. Numa análise recente sobre os


EV

impactos da globalização nos padrões de segregação sexual do emprego,

Virgínia Ferreira (2002) evidencia que é necessário recorrer não apenas às teorias
PR

dos mercados de trabalho, mas também fazer uso extensivo das teorias dos

processos de trabalho e das relações sociais de sexo. A autora mostra como a

eficácia dos actuais modelos económicos e industriais é suportada pela divisão

sexual do trabalho doméstico, familiar e profissional, sublinhando a importância

da prestação de cuidados e a sua complexidade quando a análise é transposta

para o nível global. Virgínia Ferreira revela como a globalização traz mudanças à

segregação do emprego, mas, também, se inscreve em continuidades,

destacando as migrações das mulheres dos países do Terceiro Mundo para se

ocuparem do trabalho reprodutivo que as mulheres dos países desenvolvidos

deixaram de assegurar – mulheres substituem outras mulheres no trabalho de

reprodução. Estes novos fluxos migratórios reflectem, assim, quer as

transformações a nível mundial da prestação de cuidados, quer a continuidade

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Os Mundos de Bem-Estar

nos padrões de divisão sexual desse trabalho. A autora conclui que “a dinâmica

altamente contraditória impressa pela globalização às sociedades actuais

afecta e reestrutura as condições materiais e reconfigura as relações sociais em

que vivemos. As realidades nacionais, locais, dos agregados domésticos e

pessoais estão cada vez mais sujeitas a grande turbulência. No centro dessa

turbulência encontra-se, sem dúvida, o trabalho das mulheres e,

nomeadamente, o trabalho não-remunerado” (Ferreira, 2002: 147-148).

Relativamente ao conceito de desmercadorização, a crítica feminista incide na

“cegueira” do conceito relativamente à diferença sexual. Em primeiro lugar, ele

é construído por referência a um padrão masculino de inserção social: os

W
homens passam a maior parte da sua vida adulta como trabalhadores que

vendem a sua força de trabalho no mercado, quando não o conseguem são


IE
compensados pelo Estado. Aplicar este conceito à experiência das mulheres

levanta diversos problemas (Daly, 1996: 107-109): o primeiro diz respeito ao facto
EV

de a maioria das mulheres ter sempre vivido fora das relações mercantis. Não

porque a sua experiência tenha sido desmercantilizada, mas porque nunca foi
PR

mercantilizada. A questão central diz respeito à noção de independência que

funda o conceito de Esping-Andersen – se é verdade que as transferências do

Estado podem conferir independência do mercado aos homens, a

independência das mulheres é de um tipo diferente. A maioria delas, mesmo nos

países industrializados, não depende do mercado ou do Estado, mas sim dos

homens com quem estão intimamente envolvidas. A independência das

mulheres está condicionada pelas suas relações familiares, tal como pela sua

participação no mercado de trabalho e pelas políticas sociais.

O segundo problema da aplicação do conceito de desmercadorização à

experiência feminina diz respeito à relação entre a sua participação no mercado

de trabalho e o papel do Estado. Em contraste com a experiência masculina, o

│21
Capítulo 1

Estado oferece às mulheres não apenas possibilidades de desmercadorização,

mas também de mercadorização. Em primeiro lugar, como empregador – a

administração pública é uma área de emprego fundamental para as mulheres

(Borchorst, 1996:29) 4 . Em segundo lugar, como provedor de bem-estar – as

decisões femininas de entrar ou sair do mercado de trabalho não são

determinadas pelas políticas sociais do mesmo modo que as dos homens. A

situação familiar, o volume de trabalho não remunerado, os equipamentos

sociais oferecidos são determinantes na mercadorização da força de trabalho

feminina. Deste modo, a dicotomia/sobreposição Estado/mercado,

desmercadorização/mercadorização não é tão nítida como Esping-Andersen a

W
apresenta.

Em trabalhos mais recentes, Esping-Andersen tem integrado e discutido algumas


IE
das questões levantadas pelos seus críticos (1999 e 2002). Relativamente à sua

classificação tricotómica o autor não cede. Embora reconheça algumas


EV

especificidades, nomeadamente aos países do sul, não vê necessidade de os

autonomizar num modelo diferente e, assim, multiplicar as categorias da sua


PR

tipologia (Esping-Andersen, 1999).

No entanto, o impacto do pensamento feminista é diferente. No seu trabalho

mais recente é visível a influência das critícas neste domínio: basta ver os dois

títulos das contribuições do autor para o relatório de peritos elaborado para a

Presidência Belga da União Europeia em 2001: A child-centered social investment

strategy e New Gender Contract (Esping-Andersen et al., 2002). Nestes textos o

autor reconhece a necessidade de dar às mulheres capacidade para conciliar

emprego e maternidade; de socializar os custos associados às crianças; de

redefinir o equilíbrio entre trabalho e lazer ao longo do ciclo de vida; de redefinir

o conceito de igualdade sexual. Contudo, como sublinha Lina Coelho (2004), o

4 Como se verá, este argumento é especialmente pertinente no caso português.

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