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Hip Hop em Goiânia: cenário de

expressão e luta
No ano em que o movimento celebra 50 anos, sua importância enquanto espaço de
resistência é reafirmada na capital

Em Goiânia, eventos como o Baile Black e batalhas de rima são um espaço de encontro, resistência
e expressão (Foto: Reprodução/Gustavo Pozzatti)

Por Stefane Amaro, Madson Rocha, Guilherme Oliveira e Liana Guajajara

“O rap realmente conversou comigo. Porque o rap sempre foi a questão do protesto, né? A
questão do povo preto. Eu fui me redescobrindo, me entendendo, entendendo porque eu
sofri algumas coisas. Às vezes por ter o lábio grande, ‘tá ligado? Essas mínimas coisas, o
rap foi me explicando, sabe? E eu fui entendendo, porque ele conversava tanto comigo e de
onde ele veio”. A fala é de Real 62, rapper há quatro anos e um dos muitos frutos do
movimento hip hop.

Declarado patrimônio cultural imaterial de Goiânia, o hip hop ganhou força na capital no ano
de 1989, mas sua história começou mais cedo, em 1973, no Bronx, em Nova Iorque.
Define-se como movimento hip hop um conjunto cultural que inclui música (rap), pintura
(grafite) e dança (break). Amplo por si só, ele faz parte de algo ainda maior: a cultura da
periferia. E nesta, como aponta Renato Souza de Almeida, “tratar da pobreza e das
precárias condições de vida é uma forma de relacionar arte-vida”.
Além disso, o movimento representa também não apenas uma, mas diversas formas de
expressão para povos periféricos – em sua maioria, pretos e/ou pobres. Como comenta DJ
Big, na cena desde 2012, “o rap ‘mano, é a voz da periferia, não tem como, ‘tá ligado? É o
que fez a periferia ser ouvida, 'saca, desde o começo”. DJ Big também é locutor na Rádio
Moov, um espaço que, como se autodefine, “reúne o melhor do Hip Hop, Funk, R&B e
outros ritmos da cultura de rua, com diversidade e movimento na frequência”.

Izabella Pureza, 20 anos, estudante de moda na UEG, diz acreditar que “o movimento hip
hop surgiu para valorizarmos a nossa cultura, que sempre foi considerada brega, feia,
vulgar e pobre, para afro centrar as nossas raízes. E mesmo após 50 anos desde a sua
criação, ainda vemos o tanto que somos desvalorizados por conta do racismo. O hip hop
ensina que há espaço para pessoas negras, ressignificarem a origem e demonstrarem seu
valor e sua importância para a cultura”.

E na capital, o movimento se fez forte nas regiões em que essas pessoas também estavam.
KLINDNXKE, artista há quatro anos, conta que, em meados de 2015, quando veio do Pará
para Goiânia em busca de novas oportunidades, “as batalhas aconteciam mais em
Aparecida, Centro de Goiânia e na Noroeste também, que era a batalha da NoroCity, que
era na Praça do Tijolão”.

Goiânia é uma das cidades brasileiras com maior concentração de pessoas brancas nos
poderes judiciário e legislativo. Na contramão, de acordo com análises feitas pela CUT
(Central Única dos Trabalhadores) morrem 55,6% mais pessoas negras do que brancas na
cidade, o que afeta majoritariamente a parcela jovem e periférica da região.

Tais dados, fizeram com que no ano de 2022 a prefeitura de Goiânia criasse um comitê em
prol da juventude (Comitê Gestor Municipal do Plano Juventude Viva), com planos de
alavancar as culturas periféricas e de apoio à juventude, incluindo os movimentos que
melhor representam essa parcela, como o hip hop, através de projetos como o Baile Black.

Esses esforços contribuíram e contribuem para o empoderamento da juventude negra da


cidade. Jovens como Aukanai, tatuadora e artista negra, que conta que o movimento fez
com que ela se sentisse mais inserida dentro do contexto urbano e consequentemente,
mais acolhida: “tive os primeiros contatos com esse estilo de música quando adolescente,
abriu muito minha mente para algumas coisas que eu não via antes, sabe? Dores,
preconceitos e aceitação.”

Cada uma dessas pessoas têm histórias diferentes, mas um ponto em comum: a conexão
com o movimento hip hop, especialmente com o rap, transformou suas vidas. Cada uma à
sua maneira.

Real 62 conta que, para ele, o rap foi uma ferramenta de autopercepção enquanto um
homem negro: “Eu lembro que eu escutava e sempre tinha aquele preconceito, né? ‘Tá
escutando música de bandido’ e disso, e, ao mesmo tempo, eu me questionava: ‘tá, mas e
aí, será se o povo não está entendendo o que é o rap?’, até que fui ‘tipo puxando a raiz e
estudando e entendendo porque que o rap existe, ‘tá ligado? Realmente é um protesto ali
de tudo que aconteceu e vai continuar acontecendo ‘pra nós que é preto. O rap é esse
grito”.
Já KLINDNXKE, que conheceu por acaso o evento Túnel do Hip Hop, promovido por CDJ,
comenta ter se maravilhado pelas batalhas de rima: “me encantei pelo bagulho, me
apaixonei mesmo, falei assim: quero fazer isso. Quero rimar, 'saca?”.

Com DJ Big não foi diferente, ele conta que, após ter tocado pela primeira vez: “pronto,
mano, acabou. O vírus me pegou ali, me infectou e daí ‘pra frente, mano, foi só ‘pra trás, ‘tá
ligado? Porque aí eu comecei a me envolver com o rap, mano, começando a 'sacar e
começando a curtir a parada”.

No entanto, apesar da sua importância, o movimento hip hop enfrenta desafios, como o
preconceito e a desassistência do poder público. Por isso, mais do que um movimento de
expressão, o hip hop é também um movimento de resistência.

DJ Big, por exemplo, relata não ter tido apoio da família: “Eu tive de sair de casa mano, eu
comia arroz com repolho e ovo no micro-ondas, porque era o que tinha. Era tipo quatro
‘nego morando num quarto numa casa com dois cômodos. Então, a minha história no rap foi
por amor mesmo, ‘saca?”

Real 62 diz acreditar que, em Goiânia, essa situação é ainda mais intensa: “aqui em
Goiânia realmente o rap sofre mais esse preconceito. Porque a gente é fruto do
coronelismo, ‘tá ligado? ‘Tipo, quem manda é os brancos mesmo, é o sertanejo que manda
na parada, aí você vai ver é só branco ali e realmente o rap tem essa opressão. Até porque
em várias batalhas aí já rolou uns enquadros que eles chegavam de forma truculenta”.

KLINDNXKE comenta acreditar que houve uma evolução, mas ainda existem barreiras:
“Hoje em dia as pessoas tratam MC's de batalha como pessoas que promovem a cultura,
mas antigamente era algo muito marginalizado. Na época em que a gente estava mesmo
inserido no contexto da rua, a gente era muito mal visto, principalmente pela polícia, que na
época estava entrando um governo totalmente autoritário em relação a isso, que era o
governo do Jair Bolsonaro. As batalhas perderam muita força porque, como na época a
gente não tinha um apoio em si, a polícia, tanto a polícia quanto a população, caiu em cima.
Criticando, falando que o movimento era um movimento onde só servia para difundir o
tráfico de drogas”.

Sobre a desassistência do poder público, KLINDNXKE conta que “a gente tentou diversas
vezes conversar com o poder público para ele ceder um espaço para gente em si e nunca
tivemos esse resultado. Eu acho que a prefeitura não fez o mínimo que ela pode fazer para
promover realmente a cultura hip hop em Goiás. Porque eu acho que ceder um espaço para
realização de um evento é o mínimo que eles podem fazer. Eles oferecem muito pouco para
algo que tem um potencial gigantesco”.

Para ele, “o hip hop em si é algo muito político, entendeu? Ele tem uma força muito grande,
nas mãos das pessoas que estão realmente interessadas em promover algo melhor, mas
nas mãos das pessoas que estão interessadas em se autopromover, ele não acarreta nada,
ele não gera mudança, não gera nada”.


Conheça os artistas:
Real 62 | KLINDNXKE | DJ Big

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