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ARTE(S) E CIÊNCIA(S) REUNIDAS REVISTA DA

REITORIA
DA UNIVERSIADE
NEM UMA BRISA SOPRA EM FEDERICO MAYOL, CONTO DE COIMBRA
INÉDITO DE MANUEL JORGE MARMELO NÚMERO 35
ENTREVISTA A ROGÉRIO DE CARVALHO JULHO 2012
MÁRIO MONTENEGRO E MARIA JOÃO - SENHOR TEATRO E www.uc.pt/rualarga
SENHORA CIÊNCIA: UMA HISTÓRIA DE AMOR IMPROVÁVEL rualarga@uc.pt
EDITORIAL iClio, Avatar da
O Berço da Língua Musa História - P.38
Portuguesa - P.05 Alexandre Pinto
Reitor
CIÊNCIA REFLETIDA
REITORIA EM Visão, Neuroimagem e Arte - P.40
Miguel Castelo Branco
MOVIMENTO
Porque não somos
mais inovadores - P.08 AO LARGO
Henrique Madeira ENTREVISTA
Rogério de Carvalho - P.46
Um contributo pessoal - P.11 Marta Poiares
Helena Freitas
RETRATO DE CORPO INTEIRO
OFICINA DOS SABERES Mário Montenegro e
ATUAL Maria João Feio - P.52
IMAGINARY - Matemática e Marta Poiares
Natureza - P.14
Carlota Simões CRÓNICA
A Arte no início da Ciência- P.54
Realidade Aumentada - P.18 Carlos Fiolhais
Manuel Portela
CRIAÇÃO LITERÁRIA
Música, cidade e surdez - P.20 Nem uma brisa sopra em
Carlos Fortuna Federico Mayol - P.56
Manuel Jorge Mar melo
IMPRESSÕES
Linhas de Fuga_Milplanaltos, LUGAR DOS LIVROS
um ano depois - P.22
Luís Quintais APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS
[Arte e Ciência: diferenças
Entre Arte e Ciência, e aproximações]
uma linha desfocada - P.24
Isabel Maria Dos Integrado
Música e Ciência - P.64
Fragmantos de uma Arqueologia José Leandro Andrade Campos
do Hipertexto - P.26
E. M. de Melo e Castro Apocalíptico
Ciência e Arte: trânsitos - P.70
RIBALTA José Maçãs de Carvalho
Arte e Ciência: Duas faces de uma
criatividade só - P.32
Tiago Serra

ITeCons - Na vanguarda do
conhecimento das ciências - P.34
António Tadeu
O BERÇO DA
LÍNGUA
PORTUGUESA
A Universidade de Coimbra é singu- Ao ter tido durante tantos séculos português em muitos outros países,
lar. Foi durante muitos séculos a úni- a responsabilidade máxima da pre- com o Brasil em destaque, pelo que
ca no mundo de língua portuguesa servação e difusão do conhecimento cada vez há mais pessoas, falantes
e, mesmo agora que há mais de 1000 em português, a história da Universi- nativos de outras línguas, a querer
universidades para mais de 250 mi- dade de Coimbra confunde-se com a aprender português como língua es-
lhões de falantes do português, história da própria língua portugue- trangeira.
Coimbra mantém um caráter bem sa. Poucas universidades haverá por
distinto de qualquer uma das outras. esse mundo tão claramente ligadas É por isso que um dos nossos desa-
ao nascimento e desenvolvimento de -fios centrais é tornarmo-nos a Uni-
A gesta portuguesa dos descobri- uma língua como Coimbra. A condi- versidade de referência para a apren-
mentos levou o nome de Coimbra ção de “berço” da língua portuguesa dizagem do português, a nível de
aos locais do mundo mais afastados. não nos é disputável. A própria voz cursos locais dedicados, como o
A presença lusa em todos os cantos do povo a consagra: o melhor por- curso de português para estrangei-
da Terra foi sempre acompanhada tuguês fala-se em Coimbra, e só em ros da Faculdade de Letras (onde
pelo saber vindo de Coimbra, tor- Coimbra se não identifica qualquer atualmente a maioria dos alunos são
nando o nome da única universidade sotaque. chineses!), mas também no desen-
portuguesa tão conhecido e respeitado volvimento de livros e outros mate-
como o do próprio país. Esta circunstância dá-nos uma enor- riais de suporte ao ensino, na oferta
Quando Portugal tiver vontade de me responsabilidade e abre-nos um de ensino a distância, no suporte
desempenhar um papel relevante, a oceano de oportunidades. técnico a instituições espalhadas
nível global, no mundo do conheci- pelo mundo que já se dediquem ao
mento avançado, descobriremos que Por vezes os portugueses têm dificul- ensino do português, na definição
só temos uma marca verdadeiramen- dade em perceber o valor estratégi- de caminhos de aprendizagem para
te universal para o fazer, e que essa co da língua portuguesa. Há tantos cenários de ensino diferenciados.
marca é Coimbra. Mais ainda, Portu- séculos que nascemos, vivemos e
gal descobrirá nesse momento que já morremos com ela, que só pontual- A universidade berço da língua por-
tem uma marca global, que é Coimbra, mente vislumbramos o quanto ela tuguesa tem condições ímpares para
o que lhe dá uma enorme vantagem vale. Também ao ar que respiramos se tornar a instituição de referência
sobre muitos outros países, pois pou- prestamos tão pouca atenção, mas do ensino de português como língua
cos têm a felicidade de dispor de sem ele a vida não é possível. não materna. É uma oportunidade
acervo tão precioso. que temos de concretizar, com traba-
Ora, a importância da língua portu- lho árduo e persistente.
Uma das áreas em que este cariz univer- guesa no mundo está em crescendo,
sal de Coimbra se manifesta é a língua. graças aos nossos irmãos falantes do João Gabriel Silva
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REITORIA EM MOVIMENTO
PORQUE NÃO SOMOS MAIS
INOVADORES ?
HENRIQUE MADEIRA*

Somos a geração mais bem preparada zir mais inovação à sua volta? Estará manípulos, como se estes fossem o tecnologicamente, para se acrescen- John Bardeen descobriram o efeito Nunca se arriscou tão pouco. A mes-
de sempre (na frase-síntese favorita a inovação a fugir das universidades? prolongamento dos seus dedos, um tar valor às nossas ideias, precisamos de transístor em materiais semicon- ma sociedade que glorifica o ato de
de políticos e comentadores). Temos Há as razões de sempre para a es- homem num buldózer tem a força de de olhar para o homem, como indiví- dutores, eles mesmo inventaram o pri- inovar tolera mal os riscos da ino-
bons engenheiros, bons juristas, bons cassez de marcas da nossa inovação, míticos gigantes. duo e como ser social (e não apenas, meiro transístor e hoje, sessenta anos vação. Fazer o que nunca ninguém
médicos, bons profissionais nas mais as que tanto gostamos de enfatizar: E é tudo assim: a roupa é a extensão nem sequer fundamentalmente, para depois, constroem-se transístores aos fez, criar novos processos, melhorar
diversas áreas. Adoramos novas tecno- porque não somos suficientemente da nossa pele (e do nosso ego), os a tecnologia). O Facebook, por exem- biliões e toda a nossa sociedade de- técnicas existentes, procurar formas
logias. Somos campeões na utilização organizados; porque não criamos as antibióticos são a extensão do nosso plo, como realização técnica está ao pende dessa indústria. de valorizar o conhecimento criado,
de telemóveis. Temos iPads, iPhones, estruturas adequadas; porque somos sistema imunitário, a escrita e todas alcance de qualquer estudante de in- Este encadeado de verbos fundamen- empreender, nunca é isento de erros.
smart phones, tablets e muitas páginas demasiado pequenos. Mas há outras as formas de registar os nossos pensa- formática. O seu sucesso deve-se ao tais (e os atores a eles associados – O erro é um elemento indissociável
no Facebook. E tratamos tudo exata- razões. E creio que são essas que de- mentos são extensões da nossa memó- facto de o Facebook ser a extensão per- cientistas, engenheiros e industriais) do processo criativo. Inovar é sempre
mente assim, pelos nomes originais, têm a chave da resposta. ria. Toda a tecnologia que nos rodeia feita (e infinitamente mais poderosa) mostra que o conhecimento precede um processo de observação e de cor-
pois somos bons nas línguas dos ou- 1. Porque não entendemos bem a ino- serve essa ideia de nos aumentar, não da nossa conversa de café, em que es- sempre a inovação. A posse de tecno- reção de erros. “A verdade é um erro
tros. Também somos geralmente bons vação apenas no sentido físico mas também tamos para “ver e ser vistos”. E é assim logia, como instrumento de inovação, à espera de vez”.
no trabalho de equipa. E achamo-nos Simplifiquemos e pensemos na inova- como grupo e como elemento de com todas as inovações tecnológicas: só é importante se for acompanhada Paradoxalmente, vivemos numa socie-
criativos. Muito criativos. Mas então, ção tecnológica. Não é a única forma afirmação no grupo e na sociedade. se são a extensão de nós próprios, na- de conhecimento profundo. Saber dade que tolera amiúde o erro quan-
por que não somos mais inovadores? de inovação, é certo. Nem creio que a O telefone e a internet, permitindo- turalmente e sem esforço, se projetam usar tecnologia é um meio e não um do este representa incumprimento
Onde estão as marcas da nossa inova- inovação tecnológica seja a mais fun- -nos comunicar a distância e com uma imagem idealizada de nós, então fim. E quantas vezes nos deparamos de tarefas rotineiras, atrasos, incúria,
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ção? À nossa escala, porque a escala damental. Mas a inovação tecnológi- muitas pessoas ao mesmo tempo, am- o homem, ser de afetos e de emoções, com o contentamento da posse de desleixo, negligência, incompetência,
conta. Onde estão? Consoante a mood, ca, a que ubiquamente nos envolve, é plificam a noção de grupo. Um carro gosta, compra, usa, exibe. grandes equipamentos, como se a má qualidade e até mesmo dolo. Mas
tudo é inovação nacional, desde as a que mostra mais facilmente a essên- de luxo é muito mais do que a exten- 2. Porque confundimos posse de tec- inovação estivesse apenas dependente somos severos com os erros de quem
grandes descobertas de quinhentos cia da inovação, não apenas pela sua são das nossas pernas: é um objeto de nologia com saber e capacidade de de saber usar as ferramentas mais mo- tenta inovar. As falhas de um novo sis-
ao pastel de nata; ou então sentimos omnipresença mas também porque afirmação, e essa capacidade de refor- inovação dernas? “A fool with a tool is still a fool”. tema, os erros de um novo processo
uma desesperante ausência de sinais, condiciona, em grande medida, a ino- çar o ego pela (posse da) tecnologia é Há três verbos fundamentais: desco- Um perigo cada vez mais real advém são criticados encarniçadamente e ra-
de ícones de todos nós, que nos dis- vação no campo das ideias e das artes. talvez hoje o maior motor da inovação brir, inventar e construir. A inovação da fragilidade da investigação científi- ramente são vistos como passos no ca-
tingam por uma ideia, por um pen- O que é a tecnologia? A tecnologia tecnológica. precisa dos três. A questão fundamen- ca num mundo que promove (e finan- minho do progresso. Mata-se a inova-
samento, por um artefacto inovador, é a extensão de nós próprios. Todo O que torna um produto (ou um tal é a de saber se a sociedade, a nos- cia) cada vez mais o imediato. A inves- ção à nascença. Por vezes com deleite,
que sendo português seja inconfundi- o artefacto tecnológico é ou está ao sistema, ou até mesmo uma ideia) sa região, a nossa universidade cuida tigação é criação de conhecimento, sentados na confortável poltrona de
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destes três verbos na proporção certa. é garantia de profundidade. Sem quem não arrisca fazer nada de novo.
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velmente universal. serviço da extensão do homem. Um verdadeiramente inovador é a sua


Como podemos, então, ser mais ino- simples martelo é a extensão do braço capacidade de servir como extensão Os exemplos de conjugação destes conhecimento profundo a inovação Dar licença para errar é condição es-
vadores? Como pode uma região, do operário, aumentando-lhe a força; de nós próprios, em todos os planos. verbos como elementos essenciais da reduz-se a simples ideias engraçadas. sencial para a inovação e para o pro-
uma cidade, ser mais inovadora? um buldózer é a extensão do homem A tecnologia espelha o homem e serve inovação são infindos. Um apenas: 3. Porque não temos a cultura do gresso. O erro bom, o erro que encerra
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Como pode uma universidade indu- que o opera. Com simples toques nos unicamente o homem. Para se inovar William Shockley, Walter Brattain e “Erro Bom” toda uma lição, o erro que induz pro-
gresso, não pode ser confundido com o tade de príncipe. A que aponta o Assumo este texto como um contributo criar e sustentar, fazem parte da prescri- perspetiva, qualquer solução passa

PESSOAL
erro negligente. Uma universidade tem caminho, arrasta as pessoas, gera os pessoal, que inevitavelmente expressa ção que precisamos para contrariar este pela permanência da FCDEF na área
de ser um espaço acolhedor para este meios. Um discurso de John Kennedy a minha visão sobre algumas matérias processo de abandono e desertificação. de influência do Estádio Universitário,
erro bom. Só assim poderemos formar bastou para originar o período de que acompanho enquanto vice-reitora. devendo contribuir para desencadear
profissionais competentes e, simultane- inovação científica e técnica mais O desafio é, pois, refletir sobre estas ta- No caso concreto dos projetos que a sua rápida requalificação. Tendo em
amente, pessoas inovadoras e empreen- intensa da história da humanidade: refas, em especial sobre aquelas em que acompanho, proponho-me impulsio- conta que se trata de uma zona urbana
dedoras. “We choose to go to the moon!”. Manda a me tenho empenhado e em que envol- nar três áreas de intervenção, sendo notável, qualquer solução deverá natu-
4. Porque não aproveitamos bem o va- vontade que me ata ao leme. vo grande parte do meu entusiasmo. que, naturalmente, qualquer uma delas ralmente contar com o envolvimento
lor da diferença O que é hoje a vontade de príncipe? Valerá a pena esclarecer que as respon- resulta de um consenso estabelecido da cidade, num programa de valoriza-
Sinergia: o todo é maior do que a soma São os work programmes da Comissão sabilidades institucionais que me foram com o Reitor. Esclarecido este pressu- ção territorial mais abrangente.
das partes; um grupo é melhor do que Europeia, os planos de financia- atribuídas estão sobretudo relaciona- posto, assumo que os objetivos passam Mas analisar a área do desporto e a sua
um conjunto de indivíduos. Isto é ver- mento da Fundação para a Ciência das com a promoção da Universidade pelo desenvolvimento e prossecução importância para a UC, é também enal-
dade porque a diferença constitui um e Tecnologia, os programas QREN? de Coimbra (UC) nos diversos contex- do projeto Museu da Ciência, que aqui tecer o desporto universitário e o seu

CONTRIBUTO
valor. É verdade porque pessoas com Gerem milhões e decidem os tópi- tos sociais, económicos e políticos. Por não explanarei uma vez que se trata de papel enquanto promotor de qualidade
experiências diferentes e com conhe- cos e o financiamento da ciência e da outras palavras, o atual Reitor entendeu um projeto consolidado na sua primei- e formação dos estudantes desta Uni-
cimentos diferentes podem compensar inovação na Europa e em Portugal. instituir formalmente uma área para as ra fase de execução, aguardando agora versidade. Neste domínio, a Associação
as suas fraquezas e tornar-se mais fortes Mas não são vontades de príncipe; relações institucionais, afirmando deste nova oportunidade de financiamento. Académica de Coimbra tem desempe-
como grupo. são, quase sempre, vontades sem modo a intenção de fomentar, de forma Esta segunda etapa está, evidentemen- nhado e deve continuar a desempenhar
Na investigação o “olhar diferente” é rosto, sem desígnio e sem querer. continuada e dirigida, uma maior aber- te, dependente da elaboração de uma o papel principal. O mérito desta in-
a essência do progresso científico. Um E sem coragem, porque raramente tura da UC à sociedade, promovendo proposta exequível e sustentável no atu- tensa atividade tem sido reconhecido
olhar diferente não quer dizer necessa- financiam os projetos verdadeira- parcerias e projetos de interesse estraté- al contexto financeiro, mantendo-se no internacionalmente, em diferentes con-
riamente um olhar melhor. É simples- mente inovadores (porque arris- gico, com entidades públicas e privadas, quadro das prioridades da UC. Passa- textos. O incentivo mais imediato
mente um outro olhar. É a diversidade cados; e quem financia também é na região e no país. Poder-se-á, legiti- rei, portanto, a apresentar a visão para passará pelo apoio à requalificação das
que gera a faísca criadora, e a inovação avaliado), e acabam por induzir in- mamente, reconhecer neste desígnio a outras duas áreas estratégicas: a aposta infraestruturas que suportam a ativida-
é sempre um processo de filtragem das vestigação e inovação incremental, lógica de aplicação natural dos princí- no desporto, concretamente através do de desportiva. Não é fácil no atual con-
melhores ideias. sem alma, que frequentemente pro- pios subjacentes ao compromisso social reforço e qualificação das infraestrutu- texto, mas é preciso criar e mobilizar
duz apenas papel e alimenta peque- da própria instituição universitária, e ras que suportam esta área do saber na sinergias, e para tal contribuirá o empe-
Precisamos de espaços que favoreçam nas vaidades. da sua contribuição indispensável ao UC, e pelo apoio ao desporto universi- nho da Fundação Cultural da UC.
esta sinergia. Espaços multidisciplina- desenvolvimento da cidade, da região tário; e a aposta no setor agroalimentar,
res, onde as pessoas se encontrem, for- Mas a vontade de príncipe pode e do país. Não tenho dúvidas que toda que representará um eixo inovador na A área de intervenção que deixo para

UM
mal ou informalmente. Onde estejam estar também em coisas bem mais a comunidade universitária reconhece matriz tradicional da UC. concluir este breve contributo, é a apos-
física e mentalmente disponíveis para simples. Na motivação de um pro- que esta abertura é tão desejável quanto ta no setor agroalimentar, tal como fi-
ouvir outros pontos de vista. É preciso fessor que entusiasma os seus estu- necessária. Analisar o caso particular do desporto cou expresso no plano estratégico da

HELENA FREITAS*
acabar com a atitude monástica que es- dantes, na força de um diretor de na UC não é possível sem por em causa UC. Decorrem diversas iniciativas, as
tranhamente persiste em largos secto- um centro que mobiliza os seus in- Por outro lado, importa enfatizar que as instalações que servem a Faculdade quais, apoiadas em áreas científicas em
res da universidade; pôr fim à estranha vestigadores, na coragem de um em- para além de uma participação ativa de Ciências do Desporto e Educação que a UC tem vasta competência, como
sensação de autossuficiência, ao emba- preendedor que inicia uma empresa nas dinâmicas empresariais e na pro- Física (FCDEF), e sem admitir a degra- sejam a Botânica, a Biotecnologia, e

RE I T O R I A E M M O V I M E N T O
raço de uma sala vazia para ouvir um inovadora. moção da atividade económica da re- dação em que se encontra o próprio as tecnologias associadas à qualidade
especialista que nos visita, porque acha- gião, a Universidade deve afirmar-se Estádio Universitário de Coimbra, uma alimentar, convergem para a criação
mos que nada temos a aprender com os Por que não somos mais inovado- como entidade diferenciadora, contri- estrutura de apoio ao desporto na aca- de uma plataforma científica e tecno-
outros; criar lugares simples em que se res? Porque não entendemos bem buindo com o conhecimento gerador demia, mas igualmente aberto à cida- lógica de apoio à atividade económica
possa tomar um café e conversar com a inovação e confundimos posse de de riqueza, mas também como agente de. Sem pretender comparar com ou- dominante na região. Naturalmente
colegas, pedir uma opinião, travar uma tecnologia com saber e capacidade dinamizador dos territórios em que se tras áreas da Universidade, que muito que esta estratégia contará com a cons-
boa discussão. Ser Universidade. de inovação. Porque não temos a insere, designadamente alimentando e justamente poderão reclamar melhores tituição das parcerias locais adequadas
5. Porque nos falta “vontade de prín- cultura do “Erro Bom”. Porque não fomentando a fixação de jovens qualifi- instalações, toda a comunidade uni- para o êxito da iniciativa. Esta é uma
cipe” aproveitamos bem o valor da dife- cados e criativos. Esta é uma tarefa que versitária reconhecerá a necessidade área em que a UC tem muito interesse
“Manda a vontade, que me ata ao leme, rença. E porque, frequentemente, se revela cada vez mais importante, na de melhorar as instalações em que se em investir, contribuindo decisivamen-

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D’El-rei D. João Segundo!” A vontade nos falta ambição, porque nos falta medida em que assistimos a uma lito- encontra atualmente a FCDEF. Estão te para dinamizar uma atividade eco-

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do Príncipe Perfeito tinha a força coragem. Porque nos falta uma von- ralização progressiva do país e ao enve- em estudo soluções de longo prazo, nómica tão importante para a região e
de um desígnio superior. Hoje fa- tade que nos ate ao leme! lhecimento e depauperamento de todo as quais permitirão ir ao encontro dos para o país.
lamos em carisma, visão, liderança, o interior. Julgo que as redes de conhe- interesses desta Faculdade, da Univer-

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mas a verdade é que nos falta von- * Vice-reitor da Universidade de Coimbra cimento que as Universidades podem sidade e da própria cidade. Na minha * Vice-reitora da Universidade de Coimbra
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OFICINA DOS SABERES
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IMAGI NARY
M AT E M ÁT I C A
E N AT U R E Z A
CARLOTA SIMÕES*

Galileu dizia que o Livro da Natureza está escrito em


carateres matemáticos. “O que há é pouca gente para dar por isso”,
talvez dissesse Álvaro de Campos também este propósito.
A exposição IMAGINARY – Matemática Quando uma equação algébrica tem do grau 7, o problema continua em
e Natureza, em exibição no Museu da três variáveis, o conjunto das suas aberto. Já no séc. XXI, Oliver Labs
Ciência da Universidade de Coimbra soluções é representado por uma su- mostrou que o número de singulari-
(UC), abre com uma galeria de con- perfície. A matemática cataloga estas dades de uma superfície de grau 7 é,
chas da coleção de Zoologia. Perante superfícies por classes, por exemplo, no mínimo, 99; e de uma superfície
conchas tão variadas, somos levados de acordo com o grau do polinómio de grau 9 é, no mínimo, 226. Para
a crer que as suas formas obedecem correspondente. Os modelos da co- o demonstrar, construiu as super-
a regras muito complexas. No entan- leção de Matemática representam fícies recordistas com o SURFER,
to, o módulo interativo que as acom- superfícies algébricas de grau 2 em mostrando as suas singularidades a
panha mostra-nos como um modelo materiais como gesso, metal, ma- quem as quiser contar.
matemático simples gera as diversas deira ou papel e foram construídos
conchas em exibição, pela manipula- na sua maioria pela casa Martin A exposição IMAGINARY - Matemática
ção de alguns parâmetros. Este mó- Schilling, na Alemanha, no início e Natureza foi produzida a partir da
dulo que permite modelar conchas do séc. XX. Estes modelos chegaram sua congénere IMAGINARY - through
e chifres de animais foi adaptado a a Coimbra com a implantação da the eyes of mathematics, do Instituto
partir de um modelo matemático de- República, já que a criação do Gabi- de Investigação em Matemática de
senvolvido por Jorge Picado, docente nete de Geometria foi aprovada em Oberwolfach. A equipa do Museu
do Departamento de Matemática da 1911, na congregação da Faculdade da Ciência manteve-se durante dois
UC, e está disponível online na pági- de Ciências. As imagens que enchem meses em contacto quase diário por
na da Associação ATRACTOR. as paredes da sala, concebidas por Skype com o coordenador interna-
A exposição prossegue com uma ga- matemáticos e artistas, represen- cional do projeto, Andreas Matt.
leria de minerais, lado a lado com os tam também superfícies algébricas. Recentemente, o Museu de História
respetivos modelos cristalográficos Foram produzidas com o programa Natural e de Ciência da Universida-
OF I C I N A D O S S A B E R E S A T U A L

pertencentes à coleção de Minera- SURFER, uma das muitas ofertas de de Lisboa inaugurou a exposição
logia. A cristalografia ensina a olhar do conceito open-source IMAGINA- FORMAS E FÓRMULAS, também
para um cristal em bruto e identifi- RY, criado em 2008 pelo Instituto inspirada no conceito IMAGINARY.
car nele padrões e semelhanças. De de Investigação em Matemática de Os dois museus lançam, agora, um
facto, a cristalografia estuda a dis- Oberwolfach, na Alemanha. concurso que desafia os interessados
posição dos átomos e moléculas na Uma superfície algébrica pode ser a criar novas imagens de superfícies
estrutura interna do cristal e o modo suave ou pode ter dobras ou bicos ou algébricas a partir do programa
como esta estrutura se manifesta ex- reentrâncias (singularidades). Um SURFER, até 31 de março de 2013:
ternamente, muitas vezes sob a forma exercício que tem desafiado os ma- http://imaginary-exhibition.com/
de sólidos geométricos que conhece- temáticos consiste em determinar, concurso-portugal/.
mos desde os bancos da escola. entre todas as superfícies de um de- O programa SURFER está disponí-
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A sala principal da exposição revela- terminado grau, o número máximo vel para download em http://www.
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-nos uma das mais desafiantes áreas de singularidades. Para superfícies imaginary-exhibition.com.
da matemática, a geometria algébri- de grau 2, 3 ou 4, o problema está
ca, que estuda equações polinomiais resolvido desde o séc. XIX, para as de * Museu da Ciência da Universidade
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e as propriedades das suas soluções. grau 5 e 6, desde o séc. XX. A partir de Coimbra
REALIDADE se deserta, em primeiro plano, com as Rua 16 Lado Nascente. Monsieur Gayno da voz e enquadram a porta e as pare-

AUMENTADA
guias e as setas e as marcações das pas- Ao Vivo a cinco de maio de 2012. Lem- des a fotografar. Procura os meus cír-
sadeiras. Vários carros estacionados, bra-me que tenho de comprar os bilhe- culos. A imagem é instantaneamente
em segundo plano. Uma urbanização tes esta noite. Mensagem de voz para a partilhada nas minhas redes de ami-
de prédios altos num terceiro plano, minha agenda. Chego à livraria. Onde gos. O corpo-câmara roda de novo em
delimitando o horizonte visível desde fica a secção de música? O mostrador direção à rua e continua a caminhar,
MANUEL PORTELA* aqui. Rodo a cabeça-câmara para cima gera o mapa da loja. Seguir em frente. fixando por momentos o pavimento
e para a esquerda, em direção ao céu Virar à esquerda. Escolho um livro. As do passeio. Já mais adiante recebo no
azul contra o qual se recorta a massa dos minhas mãos-câmara percorrem as canto direito do meu campo de visão a
edifícios acastanhados. Há dez por cen- lombadas na estante e escolhem Ukulele chamada da Jess. Estou atrasado. Subo
Ao primeiro segundo, o olho da câ- A gradação da intensidade da luz na nas-câmara e os meus pés-câmara. to de probabilidade de chuva, céu tem- in a Day, de Alexander Chen. Caminho um lance de escadas no terraço de um
mara revela o espaço da sala e dos tonalidade das pranchas de madeira A interface gráfica surge suspensa porariamente nublado, temperatura de entre as bancas de livros em direção à edifício. O ponto de encontro que es-
objetos da sala. No segundo seguin- do chão dá a ver o modo como as on- diante de mim, como uma película 14 graus. Novo plano: sentado à mesa a caixa. O Paul já chegou? Entra a mensa- colhi. Música, pára! A Jessica quer falar
te, o olho da câmara revela-se como das de luz redesenham o espaço em que se interpusesse entre a realidade minha cabeça-câmara come uma san- gem com a sua localização, a 120 metros contigo. Aceitar. Entra a videochama-
extensão da câmara do olho. O ato que estou. À esquerda, uma mancha do meu olhar e a realidade das coi- des mista. O pão, preso entre as minhas da livraria. Saio da livraria e encontro-o da. Abre-se uma janela com o rosto
de ver e o registo do ato de ver en- escura deixa entrever a continuação sas além dele. O menu contém 14 íco- duas mãos, afasta-se da boca voraz da câ- na berma do passeio, quase diante da dela no quadrante inferior do meu
cenam a coincidência entre olhos, do apartamento, com uma porta nes diferentes que oferecem outras mara. Vejo-me a ver-me a comer quando porta da livraria, a andar na minha dire- campo de visão. Que andas a fazer?
óculos e câmara. Invisibilizando-se e e um pequeno corredor que se es- tantas possibilidades de conexão e Paul, no canto superior direito do mun- ção. Saudamo-nos. A minha mão-câma- Hei! Hei! Queres ver uma coisa fixe?
invisibilizando as diferenças entre si, tendem para o fundo, em direção a interação com as bases de dados e do, me pergunta se quero encontrar-me ra ergue-se para tocar na dele. Então, Claro. Ativar a minha videotransmis-
aumentam o real sujeitando os senti- um outro ponto de luz refletido na com as redes de telecomunicação: com ele hoje. O texto voa para o centro puto, como é que vai isso? Paul volta-se são. Partilhar a minha vista. Primei-
dos à grelha simbólica de ordenação parede. Num plano mais aproxima- data, transmissão áudio, rede social, do ecrã dos meus olhos. Respondo que para a sua direita e aponta para a rua. ras notas e um plano picado sobre
do espaço e do tempo. A perceção do, ligeiramente descentrado, quase hora, conversação síncrona, câmara sim, usando a função de processamento Queres experimentar aquele sítio de que o instrumento que tenho nas mãos.
subjetiva do mundo objetiva-se na a meio da distância entre mim e a fotográfica e vídeo, auscultadores, de voz que transcreve a minha mensa- te falei? Claro. Caminhamos em direção Tens um ukulele? Sim. Escuta agora.
externalidade da inscrição e trans- parede, um pequeno manequim ou pesquisa, transmissão vídeo, correio gem e a envia. Vai ter comigo em frente à lanchonete. É muito boa. Reparo em A cabeça-câmara roda para cima en-
missão automática de uma rede de estatueta de madeira. Reminiscente eletrónico. A seguir estou na cozinha, à livraria às 14h. Nova dentada no pão. dois autocarros que circulam por trás quadrando os prédios da cidade vistos
sinais de luz e de som, de fotões e de um brinquedo articulado. Mais o braço-câmara esquerdo segura a A câmara-mão diz-me que agarro na da carrinha cor-de-laranja estacionada. de cima. A cidade-câmara estende-se
eletrões. As costas das minhas mãos próximo ainda, descentrado à di- chávena enquanto o direito inclina a mochila e nas chaves de casa e corta Reparo numa bicicleta presa ao poste à minha frente e à minha esquerda.
com os dedos cruzados oferecem- reita, o monitor de um computador cafeteira para servir o café. Isto é fei- para a porta da rua fazendo-me sair sobre o passeio. Espera um segundo. Os Atrás da grande mancha espelhada de
-se aos óculos-câmara diante dos portátil, casualmente aberto numa to sobre o cenário das quatro bocas do bloco de apartamentos. A câmara- meus olhos-câmara transmitem a loca- água cinzenta em segundo plano, uma
olhos. A luz já alta da manhã marca página web, está sobre a mesa azul do fogão de cozinha, em vista aérea. -pernas diz-me que atravesso a estrada e lização do vendedor. Praça Astor, entre nova linha de edifícios mostra a cida-
com um traço diagonal na parede a imediatamente à minha frente. No O negro das grelhas de ferro em con- me dirijo ao metro. Um aviso no ecrã da a 4.ª Avenida e 8.ª Rua. Ligo-me à rede de a perder-se de vista em direção ao
projeção do limite superior da jane- tampo dessa mesa são ainda visíveis, traste com o branco do tampo do fo- cabeça diz-me que está suspenso o servi- G+ para avaliar este vendedor. Sinal po- horizonte. Na linha do ecrã do céu no
la que está fora do enquadramento. na área que o primeiro plano das mi- gão. Ao beber o café o movimento da ço de metro e indica-me qual o percurso sitivo. A cabeça roda em direção ao bal- horizonte, o intenso amarelo torrado
A mesma luz que jorra sobre as linhas nhas mãos não cobre, uma revista e câmara-cabeça fixa o olhar no cimo a pé para o meu destino. O mapa dese- cão da carrinha e depois em direção ao mostra que o disco do sol já se escon-
de um banco alto, e parece torná-lo os telecomandos do monitor de tele de um dos cantos da parede junto nha-se automaticamente e o GPS traduz copo de café. Damos mais alguns passos. deu. Mais acima, as nuvens são man-
OF I C I N A D O S S A B E R E S A T U A L

num contorno abstrato à espera de visão. Estico os braços, espreguiçan- ao móvel da cozinha. No mostrador as coordenadas em nomes de ruas e Até logo, puto. Erguemos os braços chas esbranquiçadas com sombras
ser preenchido, pinta de branco o do-me e o movimento da câmara, dos olhos leio a hora, a temperatura indicações de direção. Sigo em frente, em sinal de despedida. Atravesso a rua azuis e cinzentas por baixo, coando
assento do sofá azul que delimita que está colocada ao nível dos meus e a agenda do dia. Um encontro com em direção à rua 17. Viro à esquerda. e sigo em sentido oposto. Paro por ins- as réstias de luz na sua massa tardia a
o espaço à minha direita. Em frente, olhos, responde à rotação para trás Jess às 18h e 30. Nova rotação para Atravesso a rua. Continuo em frente. tantes. A minha cabeça-câmara fixa-se, indistinguir-se. A grua da cabeça sobe
ao fundo, imediatamente a seguir do pescoço e da cabeça à medida baixo em direção à chávena quase Na praça do parque a câmara-mão faz à esquerda, numa pintura sobre uma ainda um pouco mais em direção ao
ao plano da parede, um monitor que os braços se erguem. Rodando vazia, reenquadrando o fogão e o festas a um cão entre outros dois que a porta entre paredes grafitadas e com céu. O microfone incorporado conti-
negro de grande formato, sobre um em sentido inverso a minha câmara- chão. O travelling da cabeça muda dona traz pela trela. Atravesso a rua restos de cartazes. Tira uma foto disto. nua a transmitir-me. O rosto sorriden-
móvel branco, com portas de correr. -cabeça dá-me a ver as minhas per- para a vista da janela. A estrada qua- de novo. Viro à direita, em direção à Os olhos-câmara respondem à injunção te da Jess na janela do céu acompanha
esse movimento objetivo do meu olho-
-câmara. É belo, diz ela. Fade out. Cor-
tar para fundo branco com o URL do
projeto. Ouvem-se ainda por instantes
|RL #35

o som do riso de Jess misturado com as


notas do ukulele.

* Professor da Faculdade de Letras da


18

Universidade de Coimbra
Poderíamos ter de recuar até aos te, o espetáculo urbano, em que a A “música ambiente” de Satie res- da na sua relação com os movi-
tempos em que Boécio e o seu discí- música se mistura aleatoriamente surge em 1975 com a composição mentos sociais de combate à po-
pulo Cassiodoro fizeram estabilizar com outros sons e quase nenhuns si- de Music for Aeroports de Brian Eno breza, à violência e ao racismo
o que seria o sistema de conheci- lêncios. Em alguns dos seus (sub)gé- 6 e o desenho de melodias que, urbanos.
mento e das sete Artes Liberais neros, perdeu a essência aritmética sem pretenderem neutralizar, pro- É preciso, portanto, saber “escu-
da era clássica e medieval, para do quadrivium e da anterior verten- curam antes dialogar com outros tar” o Rap do Arrastão (Ademir
interrogar sobre o lugar da músi- te da quantidade conserva apenas ambientes sonoros, dando origem Lemos) 7 ou o Rio 40 Graus
ca na sociedade contemporânea. a marca excessiva da sua presença a conhecidas paisagens sonoras, (Fernanda Abreu) 8, por exemplo,
Este sistema repartido de saberes urbana. Antes regulada por efetivos tão melodiosas quanto entorpece- para se poder captar a complexi-
(de um lado, o trivium: Gramáti- ordenamentos sociopolíticos, a mú- doras. dade real deste tipo de ativismo
ca, Retórica e Dialética; de outro sica massificou-se e tornou-se uni- A escrita de música destinada a político-cultural que usa a mú-
lado, o quadrivium: Aritmética, Ge- versalmente acessível. Retirada ao “decorar” espaços urbanos tão sica como dispositivo de indig-
ometria, Astronomia e Música) 1 privilégio dos poucos que podiam prosaicos como os já referidos nação e denúncia. Mas grande
frequentar os lugares consagrados aeroportos, mas também centros parte dos cientistas sociais con-
1 da sua recatada auscultação, faz hoje comerciais, estações ferroviárias, tinua alheada e não consegue
parte da bruma sonora que envolve salas de espera, aviões e elevado- decifrá-la.
as cidades por completo. Alguns, le- res, e ainda bancos, escritórios,
vando esta situação ao paroxismo, hotéis, restaurantes e hospitais – a Precisamos de mais e mais análi-
procuram refugiar-se atrás da mú- lista é infindável – procura uma ses sociopolíticas e histórico-an-
sica privatizada dos seus walkman, aproximação estética com o ar- tropológicas sobre a música de
iPod e mp3. A música em espaço ur- ranjo arquitetónico e o estado de expressão urbana e o seu signifi-
bano está hoje a tornar-se excessiva espírito que supostamente marca a cado. Por isso falo da surdez das
ao mostrar-se incontrolável e por, condição passageira de distraídos ciências sociais e da necessidade
autoritariamente, silenciar as sonori- ouvintes em trânsito. da sua exposição à música. Ao
dades naturais dos lugares. Esta música excessiva desenrola-se, contrário dos tempos clássicos do
A busca do equilíbrio dos sons na- paradoxalmente, em ambientes\e quadrivium, a música, hoje, não é
turais com a música teve no com- condições em que são muitos os ciência. Mas tem um ritmo, uma
entendia a música como atividade positor e pianista francês Erik Satie que não a sabem ouvir. harmonia e uma melodia muito
OF I C I N A D O S S A B E R E S A T U A L

aplicada da teoria do número. Rit- um fervoroso adepto 1. Pioneiro É o caso das ciências sociais que, à próprios que fazem a cidade soar.
mo, harmonia e melodia constituí- na produção de “mobília musi- custa de tanto querer ver a cidade, A cidade da música excessiva gri-
am, assim, o corpus desse exercício cal”, o esforço de Satie para nos não a conseguem escutar. Fiéis às ta e silencia, ao mesmo tempo.
matemático que combinava uns libertar dos ruídos que nos cir- epistemologias racionalistas que Esse é o verdadeiro espetáculo
sons com outros sons e todos com o cundam contrasta com a futurista receiam as distorções induzidas musical da cidade contemporâ-
silêncio. A música estava do lado da arte dos ruídos de Luigi Russolo pelos sentidos e as subjetividades nea, feito de uma relação muito
materialidade das coisas e da exa- 2 que, ao contrário, procura com sobre o conhecimento, as ciências complexa com os silêncios e os
tidão da medida. O renascimento a música concreta – também cultiva- sociais revelam-se surdas e colo- sons naturais que nos rodeiam.
trouxe turbulência à robustez des- da por Edgard Varèse 3 e Pierre cam-se à margem do espetáculo Como no caso da célebre 4’ 33’’
tes critérios. Aos poucos, a música Schaeffer 4 – retratar o sentido musical urbano de hoje. de John Cage, essa é a musicali-
foi tornada arte. Ferramenta do es- da desordem social dos princípios Que nos podem dizer estas sono- dade única da cidade dos nossos
pírito e, portanto, vizinha das belles do século XX . Esta continua a ins- ridades se escutadas com atenção? dias. Saibamos escutá-la.
|

lettres, transformou-se em cultura pirar muitas bandas, como os ger- O sociólogo americano George
RL #35

e, hoje, enquanto expressão cultu- mânicos Einstürzende Neubauten, Yúdice, referindo-se ao funk bra- * Professor da Faculdade de
ral, vê-se também ela confundida por exemplo, que trabalham a de- sileiro, considera que a mensagem Economia da Universidade
com espetáculo. cadência urbano-industrial como desse género de música urbana só de Coimbra (UC)/Investigador do
20

Que espetáculo? Fundamentalmen- matéria-prima sonora e musical 5. pode ser compreendida se traduzi- Centro de Estudos Sociais da UC

M Ú S I C A C I D A D E E S U R D E Z
CARLOS FORTUNA*

1 2 3 4 5 6 7 8
Um ano depois de termos criado dar o mundo. Um espaço de experi- Um lugar de liberdade também. gital, poder-se-á também pergun- XX para o século XXI , um exemplo tiva. Pessoas que criam os espaços
Milplanaltos, descobrimos, não sem mentação, diálogo e incerteza tam- É nossa convicção que essas experi- tar?), entre a vida e o artificial (que territorializado e clássico óbvio na que habitam, que apelam a singu-
algum assombro, que o nosso desa- bém. É bom enaltecer a incerteza, a mentação, surpresa e liberdade de- topografia é esta que associa “vida” ciência cognitiva, essa magnífica laridades que serão sempre o que
fio se tem vindo a cumprir: consegui- indeterminação e o ruído, como tro- vem ser cultivadas e motivadas num ao “artificial”?). criatura da década de 1970, cuja há de mais fascinante no pensar,
mos mobilizar todo um conjunto de pos que reivindicam a possibilidade momento em que se fala tanto de É evidente que não estamos inte- versatilidade, inventiva e interfe- no experimentar, no fazer.
investigadores e criadores que traba- de criação e de refundação do mun- interdisciplinaridade e transdiscipli- ressados em reivindicar qualquer rência é para todos nós exemplar, Neste primeiro aniversário de Mil-
lham na fronteira, isto é, cujo traba- do. Foi isso a que nos propusemos. naridade no mundo académico. forma mais ou menos gratuita, pesem embora as tentativas mais planaltos, fazemos publicar os Ca-
lho não pode ser subsumido a uma E assim continuará a ser. Uma cons- mais ou menos inocente de holismo. ou menos frustradas em conter dernos Milplanaltos. Estes Cadernos
lógica disciplinar ou a uma axiolo- telação de propostas que vão da in- Uma parte considerável das pesso- Não haverá nenhum meta-comen- axiomaticamente os seus percursos são uma extensão do nosso proje-
gia. Pessoas como Manuel Portela, teligência artificial às humanidades, as que temos vindo a convidar não tário ou possibilidade dele que nos e derivas. A viagem da ciência cog- to. Dois títulos: Um Dia Feito de Vidro
Pedro Eiras, Ernesto Costa, Marta de passando pela arquitetura e pelas se faz inscrever facilmente na doxa salve da complexidade que aqui se nitiva em quase meio século de no- (de Manuel Portela) e Os Ícones de
Menezes, Porfírio Silva, António artes visuais, aproximando e ligando prevalecente. Assumimos assim que desenha, e isso agrada-nos tam- meação e criação é afinal uma ilus- Andrei. Quatro diálogos com Tarkovsky
Sousa Ribeiro, entre outros nomes, matemática a poesia, filosofia polí- a fronteira é um espaço intersticial, bém. Nesse sentido, o par Deleuze/ tração cabal daquilo que podemos (de Pedro Eiras). Os Cadernos de
não parecem particularmente in- tica a ciência cognitiva, literatura a um lugar inclassificável, onde o risco Guattari é claramente uma referên- encontrar em Deleuze quando nos Manuel Portela e de Pedro Eiras
teressados em habitar uma zona cinema, culturas digitais a inusitadas é diretamente proporcional à possi- cia inspiradora e potenciadora de diz acerca dos verbos no infinitivo: foram apresentados por Abílio
de conforto qualquer do pensa- formas de escrita. Tudo nos interes- bilidade de criação. Milplanaltos re- complexidades e interferências que Hernandez Cardoso numa belís-
mento contemporâneo, e mos- sou e tudo nos interessa, desde que clama para si uma posição liminar. nos motiva e inspira. Uma forma de linhas de devir, linhas que fogem entre sima sessão no Círculo de Artes
tram-nos como pensar é, suge- revele essa transposição de domínios Interessa-nos, especialmente, aquilo filosofia que não teme a experimen- domínios, e saltam de um domínio para Plásticas que decorreu no passado
rem-nos Gilles Deleuze e Félix que Deleuze enuncia: que não está constituído, aquilo que tação e que multiplica os possíveis. outro, inter-reinos. A ciência será cada dia dez de abril. Encontram-se ago-
Guattari no seu magnífico tool kit do teima em não ser domiciliável, do- Interessam-nos, assim, contributos vez mais como a erva, estará no meio, ra disponíveis para eventual aquisi-
pensar e do experimentar que é Mille É como os pássaros de Mozart: há um mesticável. Formas de pensamento que reivindiquem singularidades entre as coisas e entre as outras coisas, ção junto do Centro de Investigação
OF I C I N A D O S S A B E R E S I M P R E S S Õ E S

Plateaux, desterritorializar, imple- devir-pássaro nessa música, mas apa- que, emergindo no contexto acadé- e exceções (daí também a proposi- acompanhando a sua fuga (é verda- em Antropologia e Saúde (CIAS),
mentar uma espécie de máquina de nhado num devir-música do pássaro, os mico ou fora dele, reclamam uma ção que ironicamente nos definirá: de que os aparelhos de poder exigirão da Universidade de Coimbra, mas
desmontagem do óbvio e do obtuso. dois formando um único devir, um só posição de indiferenciação ou de- Milplanaltos é uma “explosão com- cada vez mais um restabelecimento da poderão também ser encomenda-
Pensar e experimentar (termos que bloco, uma evolução a-paralela, de modo sestruturação produtiva. Eventual- binatória de exceções”!). ordem, uma recodificação da ciência) dos através do contacto milplanal-
aqui se nos afiguram permutáveis) nenhum uma troca, mas «uma confidên- mente estamos a pensar em propos- (id., ibid.). tos@gmail.com.
deslocam-nos e surpreendem-nos. cia sem interlocutor possível», como diz tas que tendem a concentrar-se nas Como em todas as conversas verda-
Fazem-nos também perceber como um comentador de Mozart – em resumo, implicações fluidas e difusas do co- deiramente dignas desse nome, o Sim, é certo que os aparelhos de Importa dizer que no futuro se-
precisamos, em tempos que parecem uma conversa (Gilles Deleuze e Claire nhecimento atual. Não é por acaso que há é um permanente traçar de poder continuarão infatigavelmente rão lançados regularmente outros
comprazer-se com a esterilidade e Parnet, Diálogos, p. 13). que intervenções como as de Pedro percursos, de saltos e imprevisibi- a exigir, pelo menos, uma certa de- títulos. Destacamos, para já, o
com a melancolia, de talentos pro- Eiras, Manuel Portela ou Ernesto lidades que se fazem em ato, uma ferência de todos nós. Uma parte Caderno de Pedro Paixão, À Procu-
jetivos que nos conduzam ao novo, É isso Milplanaltos: uma conversa. Costa, só para referir três exem- recusa implícita em construir axio- considerável da ciência normal é ra de Wittgenstein, que será lança-
mesmo que esse novo reclame uma Dir-se-ia assim que uma das funções plos, nos trazem objetos em cons- máticas, em territorializar o que fundamentalmente uma forma de do, a par de mais um título, na festa
revisão do que existiu e existe. De- da ciência enquanto instituição é fa- tituição, máquinas de interrogar o permanece fluido. Reivindicamos, deferência. E nós sabemos convi- do nosso segundo aniversário.
pois há a dimensão pública e políti- zer cumprir aquilo que é paradigmá- que se faz dobrar entre o cinema como Deleuze, a produção de agen- ver com a deferência. Porém, im-
|RL #35

ca do que se faz (na academia e fora tico. “Ciência normal”, chamar-lhe-ia (haverá cinema?) e a literatura ciamentos “inteiramente heterogéneos põe-se-nos mostrar como algumas Convidam-se os eventuais interes-
dela). É isso também Milplanaltos: um Thomas Kuhn. Mas, de outro modo, (haverá literatura?), entre as hu- entre si” (Gilles Deleuze e Claire das pessoas mais estimulantes da sados a visitarem-nos também em:
espaço que pretende trazer à cultura Milplanaltos propõe-se ser aquilo que manidades (haverá ainda huma- Parnet, Diálogos, p. 86). Formas de instituição parecem pouco preo- http://milplanaltos.wordpress.com
contemporânea, em sentido amplo, define uma boa conversa: um lugar nidades?) e as culturas digitais interdisciplinaridade que talvez só cupadas com formas de deferência * Professor da Faculdade de Ciências e
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tudo aquilo que poderá ainda refun- de experimentação e de surpresa. (o que resta da cultura após o di- encontrem, na transição do século disciplinar, institucional e norma- Tecnologia da Universidade de Coimbra

L I N H A S D E F U G A _MILPL ANALTOS
LUIS QUINTAIS*
UM ANO DEPOIS
ENTRE ARTE E CIÊNCIA pelo grupo alemão Kraftwerk, ainda
hoje influente. A partir dos anos 1980,
razões que me tornaram ainda mais
defensora da redução máxima de ma-
derão servir de contributo, enquanto
proposta performativa para ambientes

UMA LINHA DESFOCADA


com o suporte informático acessível, a teriais e da obra efémera, potenciando cenográficos interactivos nas artes do
linguagem digital tornou-se um meio novas experiências estéticas com simpli- espetáculo. Este é, também, um pretex-
facilitado pela descoberta do laser, em cidade de plástica. Com esse objetivo, to para o debate e reflexão, partilha de
ISABEL MARIA DOS* 1960, por Theodore Maiman, fruto de num cruzamento entre arte, ciência e experiências e do conhecimento emer-
colaborações anteriores como Max Plan ecologia, desenvolvi um projeto de cria- gente. Após um conjunto de palestras
e Albert Einstein. A Sony mostrou resul- ção e investigação no âmbito do meu multidisciplinares, realizadas no pas-
tados: o disco compacto para armazena- doutoramento, com formato PaR e ele- sado mês de março, desenvolvo agora
mento de dados. vada componente prática em Estudos a instalação interativa [3d’Eco Grafias],
O arquiteto e escultor italiano Filippo representação da alma humana, e de gem nas últimas décadas do séc. XVIII, A holografia, inventada em 1948 pelo Artísticos (ramo de Estudos Teatrais integrada no novo projeto [PAISAGENS
Brunelleschi (1377-1446) redescobriu tratamentos de panejamentos e anato- o espírito revolucionário do Realismo físico húngaro Dennis Gabor, foi desen- e Performativos da Faculdade de Le- ECOGRÁFICAS] – paraperformance e
os princípios da perspetiva, conhecidos mia (estrutura óssea, massa muscular). despreocupado com a idealização da volvida a partir de 1968, por Margaret tras da Universidade de Coimbra). Nos ciberperformance, com captação de ima-
pelos gregos e romanos, contribuindo Através dos valores do traço, pincelada, realidade esculpia a deficiência (Augus- Benyon, artista pioneira inglesa. Como quatro dispositivos - monitorizados por gem em movimento 3D, em tempo real.
para a representação da terceira dimen- cor e luz, das sombras próprias e pro- te Rodin, 1840-1917). Muito devemos às tecnologia de ponta, continua alvo de computadores de [Paisagens Neurológi- Da alta velocidade do desenvolvimen-
são no plano bidimensional. Também jetadas, demonstrava a nítida intenção artes plásticas como forma de registo da artistas e cientistas, sendo apontada cas] num contexto de linguagem digital to tecnológico na contemporaneida-
Leonardo Da Vinci e Miguel Ângelo, em desenvolver a terceira dimensão, expressão cultural, da vivência huma- como o meio tecnológico do futuro. Por interativa, e eletrónica sensorial com de resultou a liberdade de escolhas e
com preocupações nos vários domínios criando, desta forma, efeitos óticos, evi- na e do desenvolvimento (tecno)lógico. cá, e nos últimos 15 anos, João Lemos incorporação de aplicações artísticas da multiplicidade de linguagens artísticas.
da vida, da arte e da ciência, e com base denciando a relação da maior ou me- Técnicas e utensílios foram, ao longo Pinto, da Universidade de Aveiro, tem imagem, da luz e do som - usei “objetos Ao longo de séculos, a exploração de
na observação e experimentação no Re- nor distância e escala, tendo em conta de anos, desenvolvidos pelos próprios orientado artistas em doutoramentos de encontrados”: algum material hospita- múltiplos meios e linguagens, o melho-
nascimento Pleno, em Itália, caminha- a perceção visual. Nos afrescos da parede artistas. No séc. XIX, os novos formatos formato “Practice-As Research” (PaR) e lar (cama, cadeira de rodas e suporte ramento de processos, e a inovação téc-
vam nessa área. do altar e do teto da Capela Sistina do de tela e tintas de óleo em tubo liberta- desenvolvido projetos de arte e ciência de soro), um boneco/brinquedo anti- nica e estética têm sido comuns entre
Da Vinci (1452-1519) foi o criador da Vaticano, em O Juízo Final, pormeno- vam os pintores que deixavam o atelier no Departamento de Física, com artis- go, um peixe vivo e um aquário, relva gerações.
perspetiva atmosférica: estudioso do rizou aspetos das cenas principais. No e descobriam a paisagem do ar livre. tas plásticos que exploram som, ótica, natural, um (eco)painel criado a partir A junção da Arte e da Ciência não é,
corpo humano e suas proporções ma- grupo da composição de Cristo Juiz e da A fotografia tomava, então, o lugar pri- lasers e holografia na ex- de todo, um assunto novo.
temáticas, foi autor da ilustração cientí- Virgem, a sensação de desfocagem, pro- vilegiado do retrato fiel, abrindo-se o pressão plástica. Aí, a artis- No plano internacional, a
fica, de escritos e centenas de desenhos vocada por tratamentos menos detalha- caminho para a representação da ima- ta holográfica Rosa Olivei- abertura ao diálogo entre
que desenvolveram áreas como anato- dos, contrapõe-se ao corpo de Cristo, ginação e do pensamento criador. Ro- ra obteve cores a partir de investigadores de arte e ci-
mia, medicina, entre outras. Na obra dotado de forte nitidez de detalhe e salind Krauss, em O Fotográfico, sublinha tempos de exposição à luz ência é notória, sobretudo
O Embrião no Útero, desenhada à pena e luminosidade pictórica. É interessante esta influência da fotografia no Impres- laser, incomuns em práti- nos últimos 20 anos, com o
tinta, encontram-se curiosas notas inver- comparar estas técnicas de (des)foca- sionismo. cas científicas anteriores. importante papel do MIT.
tidas, escritas de forma a serem desco- gem com a dos projetores-luz nos cená- Com o contributo de inúmeros e per- Esta novidade tecnológica Já no plano nacional, essa
dificadas através de um espelho, o que rios performativos contemporâneos. sistentes perseguidores da imagem em foi revelada aquando a sua relação de diálogo é ainda
OF I C I N A D O S S A B E R E S I M P R E S S Õ E S

revelou, indubitavelmente, o interesse Na escultura, Miguel Ângelo desenvol- movimento, os fotógrafos franceses tese de doutoramento Pin- insuficiente, devendo pro-
de Da Vinci pela ótica. Essa composição veu, genialmente, técnicas e tratamentos Auguste e Louis Jean Lumière regis- tar com Luz. liferar e desenvolver uma
com óvulo, embrião e características do em mármore - um tipo de pedra rígida tavam a patente do primeiro cinema- Atualmente, a tecnologia cultura artística/científi-
útero representadas seria, então, uma e de dificuldade extrema para trabalho tógrafo, em 1895. Nascia o cinema. da “impressão” a três di- ca do país. Das sinergias
espécie de imagiologia médica do tipo manual, numa época sem máquina(s) e O conceptualismo de Marcel Duchamp mensões permite que, em podem obter-se outros e
das ecografias ou das radiografias atu- em que estava longe de existir a escul- (1862-1978) influenciava dadaístas, sur- horas, se criem objetos 3D melhores resultados – o
ais. tura feita através de processos de cortes realistas, expressionistas. O fotógrafo sólidos, a partir de foto- permanente e contínuo di-
A neurologista Maria Valeriana Moura mecânicos, digitais ou de rebarbadoras Man Ray (1890-1976), Joseph Beuys grafias ou desenhos digitais. Richard de cuvetes reutilizadas para projeção de álogo entre coletivos multidisciplinares
Ribeiro, professora na Universidade de atuais. (1921-1986) na escultura, performance, Hague, professor da Universida- imagem, computadores, projetores de proporcionará um mix de experiências
Campinas, no Brasil, ressalva que o ter- Relacionada com o funcionamento do vídeo, instalação e práticas ecológicas, de de Loughborough e diretor do vídeo, câmaras de vídeo digital e tripés, estéticas inovadoras no laboratório do
mo neurologia surgiu no século XVII com olho nascia, por volta de 1826, a foto- e Jonh Cage (1912-1992) na música, in- Centre for Innovative Manufacturing amplificador, tecnologia para realidade palco real, virtual, global e aberto. Aci-
o médico irlandês Thomas Willis, na grafia, inventada pelo francês Joseph fluenciavam gerações seguintes. Nos in Additive Manufacturing, trouxe a aumentada, software de tratamentos e de ma de tudo, que neste e-Tempo exista,
obra Celebri Anatome, e que os artistas do Niépce. Com a Revolução Industrial e anos 1960, a IBM lançava o computador público, no passado mês de maio, infor- interação, captação sensorial, projeção entre Arte e Ciência, uma linha desfo-
Renascimento já observavam a criança e a complexidade de formas ideológicas de tamanho manuseável, com contri- mações sobre esta matéria. de vídeo em tempo real, e imagiolo- cada numa lógica de procedimentos
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suas peculiares estruturas neurológicas, como o Positivismo de Augusto Comte, butos de cientistas norte americanos gia médica com tratamento digital. Os convergentes para um único ponto de
RL #35

representando-as em vastas obras. o Evolucionismo de Charles Darwin, o dos anos 1940, John Presper Eckert e Não reconheço o valor desta tecnolo- estudos da composição resultante da fuga H - de Humanidade.
Miguel Ângelo (1475-1564) foi escultor, Socialismo Científico de Karl Marx e John W. Mauchly, da Electronic Control gia como aplicação artística no mun- relação de interatividade entre o perfor-
poeta, arquiteto e pintor dotado de uma Friedrich Engels, e o divórcio das ex- Company. Nos anos 1970, no campo do de hoje. O consumismo de objetos, mer e a máquina, e o performer-público * Doutoranda da Faculdade de Letras da
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plástica carateristicamente singular na centricidades do Romantismo com ori- da música, a eletrónica era introduzida sua acumulação e lixo são algumas das participante, gerador da obra final, po- Universidade de Coimbra
FRAGMENTOS DE UMA
ARQUEOLOGIA DO

HIPERTE X TO E. M. DE MELO E CASTRO*

Embora só a tecnologia informáti- é feita segundo critérios espaciais de facilitar a consulta mas porque essa doras de um novo conceito de texto, ora a Vicente Guedes ora a Bernardo
ca tenha possibilitado a chegada hierarquização dos textos e das ima- ordenação é semanticamente neutra passando pelas vanguardas do come- Soares, mas predominantemente a
do hipertexto, há muito que ele gens, podendo o leitor fazer várias e e deixa em aberto o estabelecimento ço e da segunda metade do século XX, este último, seu semi-heterónimo, foi
se fazia anunciar, mesmo na escri- múltiplas leituras que podem ser ditas do critério de leitura, o que é em si contribuindo para a formação teóri- escrito, pelo menos, desde 1913 até
ta alfabética e até antes das técni- hipertextuais, estabelecendo as rela- próprio um fator de hipertextuali- ca e prática de um novo tipo de tex- 1934, em pequenos fragmentos, em
cas de composição e impressão de ções e as sequências de leitura confor- dade. A este propósito lembro-me da to, precisamente o hipertexto, e para quaisquer papéis disponíveis, envelo-
Gutenberg. Um exemplo paradigmá- me desejar. Poderá até só ler as letras seguinte anedota: alguém comentava uma literatura hipertextual em que a pes, faturas, etc., raramente datados.
tico é o caso da divisão do espaço da de determinado tamanho, as palavras com um amigo que estava lendo esforça- interatividade pode constituir um fa- Fernando Pessoa deixou muitas refe-
página na escrita do Talmud, livro de certo assunto, ou ler em “diago- damente, página após página, um livro tor inovador e transgressivo. rências dispersas a esta sua obra tam-
sagrado que estruturou a religião ju- nal”... leitura esta que eu sempre pri- estranho... muito explicativo mas bastante Na seguinte nota registo as razões e bém dispersa, mas nunca até à sua
OF I C I N A D O S S A B E R E S I M P R E S S Õ E S

daica desde tempos bíblicos até aos vilegiei em certos jornais... ou ler na confuso...! Era um dicionário! o modo de utilização do meu poema morte em 1935, procurou ordená-la, o
moldes atuais. Assim, em cada página horizontal todos os títulos que apa- O condicionamento mental desta conceptual, interativo e hipertextual que certamente é significativo da sua
existe uma área mais ou menos cen- recem, indistintamente dos textos a pessoa só lhe permitia perceber o (como então o defini) mas também intenção de mantê-la dispersa e frag-
tral para o texto originário, sendo que pertencerem... Os sentidos destas sentido de um discurso linear e por lúdico, DO TEXTO O TESTE (2004) mentar.
outros espaços marcados nas quatro leituras serão sempre surpreendentes isso o significado aparecia-lhe sob a [Fig. 3]. A primeira edição, organizada se-
margens para os diversos comentá- e culturalmente válidos porque serão forma de sons incompreensíveis de gundo um diluído e impreciso cri-
rios, observações e notas. feitos pelo prazer de verler. palavras que não faziam sentido... No sentido de constituir na litera- tério temático (visto que o critério
O desenho e o tamanho das letras ma- Mas efetivamente o conjunto de to- tura portuguesa dos séculos XX e cronológico parecia impossível) de-
nuscritas ou impressas, também podem Também a internet funciona como das as informações de um dicionário XXI uma arqueologia do hipertex- ve-se a Jacinto do Prado Coelho,
ser diferenciados SENDO O TEXTO uma máquina de produção de hiper- pode certamente ser considerado to, pelo menos duas obras avultam: em 1982. Outras edições se seguiram
CENTRAL DE UM TIPO MAIOR e as texto, dando-nos páginas de infor- como um colossal hipertexto que o Livro do Desassossego de Bernardo e numerosas traduções em quase to-
notas de menor importância de tipo pequeno. mação variada na simultaneidade de cada leitor folheia e lê à sua vontade... Soares (Fernando Pessoa) e Pensar de das as línguas europeias.
Vários textos são assim apresentados uma só página, e nela própria variam estabelecendo as ligações que dese- Vergílio Ferreira, ambos de estrutu- A mais recente organização deve-se a
na simultaneidade VISUAL da pági- continuamente os formatos e os con- jar... ra fragmentar, o que por si só permi- Richard Zenith, em 2011, contendo 481
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na, mas a sua leitura pode ser prefe- teúdos da informação [Fig. 2]. Estrutura não sequencial, fragmenta- te leituras de entradas múltiplas e o fragmentos numerados e várias dezenas
rencial, podendo o leitor estabelecer ção, abertura, desmaterialização, com- desenho de diferentes sequências de de outros, não numerados e denomina-
ligações entre diferentes passagens e ... Qualquer dicionário ou enciclopé- plexidade, são características textuais e leitura. dos Grandes Textos. Richard Zenith diz na
frases [Fig. 1]. dia recorre à ordenação das palavras estéticas que desde o final do século XIX 0 Livro do Desassossego, escrito por Introdução: “ Pessoa inventou o Livro do
26

Atualmente a paginação dos jornais e temas alfabeticamente, não só para vieram a configurar-se como revela- Fernando Pessoa e por ele atribuído desassossego, que nunca existiu, propria-
mente falando, e que nunca poderá existir. O poeta experimental António Aragão, ferentes de cada vez que o processo mesmo tempo a consciência de se pré hipertexto renovador da escrita documentada formação da identida-
O que temos aqui não é um livro mas a sua nos primeiros anos da década de 60 do for reiniciado. Assim se obtêm in- percorrer um caminho que a pró- da História, para além do conceito de de Portugal e dos portugueses, de
subversão ou negação, o livro em potência, século XX, fez várias colagens de recortes contáveis e verdadeiramente novos pria consciência abre? Caminho de narrativa linear e diacrónica que à preferência chamados lusitanos.
o livro em plena ruína, o livro-sonho, o li- de jornais do dia, em formato de quadro, Poemas Encontrados. que em fragmentos se tece e deste- História é tradicionalmente atribuído! O mosaico diacrónico que constitui
vro-desespero, o antilivro, além de qualquer que tinham validade estética por si só Esta e outras transcriações hipertex- ce. Não porque “a organização num Da obra em quatro volumes, dos quais a estrutura da totalidade da obra
literatura. O que temos nestas páginas é o [Fig. 4]. Mas o processo criativo não tuais de poemas da PO-EX encon- todo não seja possível, mas porque hoje só três publicados em vida do autor, diz- deve ser considerado como uma
génio de Pessoa no seu auge”. parava aí. Ele realizava várias leitu- tram-se na Internet e num CD-ROM a acidentalidade de tudo, a instabilida- -nos a ótima Introdução de R. M. Rosado novidade na época. Novidade essa
É o livro virtual, digo eu. O livro que ras aleatórias dessas colagens que interativo. de, a circunstancialidade veloz, a ne- Fernandes: que se estende até aos dias de hoje,
cada vez que o abrimos se faz, desfaz escrevia e a que chamava Poemas Pensar é o último grande ensaio gatividade voraz, recusam a aparência André de Resende “Já vai trabalhan- principalmente pela utilização das
e refaz, nas intermináveis possíveis lei- Encontrados. Recentemente, nos anos de Vergílio Ferreira, publicado do definitivo, no variável e instantâneo do desde 1545 sobre As Antiguidades numerosas lápides como argumen-
turas. 2005 a 2008, no Projeto CETIC, dirigi- em 1992, antes da sua morte. São do passar”. da Lusitânia com a finalidade de ex- tos de autenticação de factos, datas
Diz Fernando Pessoa, trecho 148: do por Rui Torres, da Universidade 374 páginas contendo 677 frag- E do pensar. Isto diz o próprio Vergílio por e estudar as inscrições latinas e ideias, pelo seu valor hieroglífico,
“Tudo quanto o homem expõe ou exprime Fernando Pessoa, sendo eu também mentos, alguns muito pequenos, Ferreira... que vai encontrando e que ainda isto é, pela força da comunicação vi-
é uma nota à margem de um texto apaga- consultor, foram feitas, por vários co- ordenados sem um critério óbvio. Estaremos assim a juntar elementos hoje têm inegável valor documen- sual e pela durabilidade do suporte,
do de todo. Mais ou menos, pelo sentido da laboradores especializados, leituras Trata-se de pensar sobre o pensá- ou a fragmentar fragmentos para tal.” a pedra. Mas se hoje os suportes são
nota, tiramos o sentido que havia de ser o hipertextuais de poemas da Poesia vel e o impensável, o sensível e o constituírem o esboço de uma teoria/ O quarto volume, deixado apenas cada vez mais efémeros e até virtuais,
do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os Experimental Portuguesa dos anos insensível, o escrito e o não escrito. prática da hiperliteratura?... Talvez... no início por Resende, será concluí- a força da comunicação visual que
sentidos possíveis são muitos”. 60/80. Seguindo as intenções de “A arte inscreve no coração do homem mas não só. do e publicado pelo seu colaborador Resende atribuía às lápides como
E as possíveis ligações, pontes, cor- António Aragão, a transcriação hiper- o que a vida lhe revelou sem ele saber Da História de Portugal, também! Diogo Mendes de Vasconcelos em meio de ratificação dos seus conteú-
respondências, (links) são estrutural- mediática consta da escolha através da como e o filósofo transpõe a notícia ao É o que a recente republicação da 1593 que, por vezes a contragosto, se- dos, só tem aumentado, e é de uma con-
mente infinitas e imprevisíveis. É o Internet, do jornal do dia que o leitor cérebro na obsessiva e doce mania de extraordinária obra renascentista gue a mesma orientação de pesquisa temporaneidade assinalável, consti-
hipertexto anteinformático, premoni- desejar (escolhido por ele de entre querer ter razão”. Isto diz Vergílio de André de Resende (1500-1573) As fragmentar das referências geográfi- tuindo um contributo valioso para a
tório, alertando-nos talvez para a pos- quatro) realizando-se digitalmente a Ferreira. Por isso não admira que Antiguidades da Lusitânia, numa bela cas, das personalidades e factos sig- constituição de uma arqueologia do
sibilidade de uma credível literatura seleção randómica de títulos e textos a maior parte dos fragmentos pos- edição conjunta da Imprensa da Uni- nificativos, assim como de textos de hipertexto [Fig. 5].
hipertextual à margem de todos os gê- da página escolhida, que são consti- sam ser considerados como meta- versidade de Coimbra e da editora diversas origens ou autores e demais
neros? – Sim! Certamente. Fernando tuídos automaticamente em textos poemas em prosa. Será o pensar paulista AnnaBlume, nos sugere quan- informação epigráfica sobre a por * Poeta e Ensaísta, Doutor em Letras,
Pessoa sabia o que estava a fazer! poiéticos hipertextuais, sempre di- que produz o próprio pensar e ao do relida à luz da nossa agoridade, um vezes confusa ou deficientemente Universidade de São Paulo

NOTAS PARA A LEITURA E FRUIÇÃO DO POEMA D O T E X T O O T E S T E

• O infopoema Do Texto o Teste foi totalmente construído tirando partido da simplicidade amigável do progra- principais. E, mais importante ainda, que esses fatores e ca- uso inventivo que o poeta faz das novas capacidades que es-
com os recursos do programa Microsoft Office Word e con- ma Word, desejo atingir alguns objetivos, tais como: racterísticas de ambas não são incompatíveis. ses meios lhe oferecem para realizar as suas obras.
tém nove hiperligações a outros textos meus e de outros b) Evidenciar que trabalhar inventivamente com interativi- d) Finalmente, chamar a atenção para as novas e diferentes
autores, que fazem parte da sua estrutura e que deverão ser a) Mostrar que a invenção infopoética usa a interatividade, dade e hipertexto não é uma tarefa necessariamente laborio- capacidades de fruição poética que a ‘leitura’ dos infopoe-
abertas e fechadas ao gosto do leitor, usando os comandos o hipertexto e o dinamismo das transformações como fato- sa e especializada ao alcance só dos técnicos. mas e o hipertexto nos pode proporcionar.
indicados (Ctrl + clic). res estruturais, tal como a poesia convencional usa o texto c) Esclarecer que a complexidade inerente à infopoesia não
• Ao apresentar estes infopoemas num CD-R interativo e estático, o metro, o ritmo e a rima como suas características resulta só dos meios tecnológicos usados, mas também do Nota : este poema permanece inédito
Fig. 7 Fig. 4
EMMC ANTÓNIO ARAGÃO
Fig. 6

Fig. 9

Fig. 1
TALMUD

Fig. 2

E.M. de Melo e Castro, SP maio/2012


Fig. 3

Fig. 5
Fig. 8
EMMC
Arquimedes, matemático, afirma- são, mas porque nos coloca face

RL #35
va: “Nunca conheci pessoa tão igno- à crítica e nos aproxima também
rante que não aprendesse nada com daqueles por quem temos grande

|
ela”. É esta a força do coletivo, a admiração que, assim, também

OF I C I N A D O S S A B E R E S R I B A L T A
sua heterogeneidade em perma- nos descobrem.
nente mutação.

32
“Não é que existam menos Da Vincis O designer gráfico e pedagogo
nos dias que correm, o problema é Milton Glaser, criador do famoso
que faltam as Florenças de 1400” logo “I love N Y ” e do poster do
[4]; precisamos de locais onde Bob Dylan [7], concluiria: “Não é
os interessados se possam infetar o plágio que me aborrece, é nor-
mutuamente com conhecimento mal um designer ser inf luenciado
e a estimularem-se em criações, pelo trabalho de outros, o que me
proporcionando as condições aborrece é a estupidez” [8].
básicas, mas sem distrações im-
produtivas. Com esta pretensão Querer viver do que nos apaixo-
ocupámos um espaço com poucos na pode parecer ingénuo no mo-
recursos e condições, que cresceu mento de criar uma empresa [9].
e demonstrou ser capaz de criar, Mas a ingenuidade é necessária
coletivamente, bastante valor. para nos movermos. Se estivermos
Este mede-se pela quantidade e conscientes do mar de dificulda-
qualidade dos projetos realizados des que temos diante de nós, nun-
e pela variedade de atividades cul- ca partiremos.
turais que proporcionamos. [5]
Há cerca de dois anos e meio, Bertrand Russell dizia que “a ciên- Se criarmos algo com significa-
fundei, com ajuda de amigos, um cia pode condicionar o conhecimento, do, o sucesso irá, inevitavelmente,
coletivo de hacking ou hackerspace mas não deve condicionar a imagi- acontecer e não o contrário. Eu
[1] com o intuito de realizar pro- nação”. A imaginação e a criativi- vou continuar.
jetos conjuntos, partilhar conhe- dade são tão essenciais à ciência
cimento e criar uma comunidade, como à arte - sem ela, o conhe- * http://profiles.google.com/serratiago/
essencial ao crescimento eclético cimento é limitado. Talvez seja a about
deste. imaginação que proporciona ao
O xDA [2] e os outros dois cole- cientista aquele avanço e separa [1] http://en.wikipedia.org/wiki/Hackers-
tivos [3] que formam, connosco, a sua pesquisa de toda a restante. pace
esta rede nacional são uma escola [2] http://xdatelier.org

DUAS FACES DE
muito diferente de qualquer uma Devemos também pô-la à prova [3] http://lcd.guimaraes2012.pt / http://
das formais por onde passei. Nela com a publicação. Não podemos altlab.org

UMA CRIATIVIDADE SÓ habitam pessoas cuja motivação é


variada, mas que se baseia numa
ter receio de mostrar e falhar.
O plágio, tema tão recorrente e
[4] Alan Kay em http://video.google.com/vid
eoplay?docid=-3163738949450782327
avaliação de entusiasmo mútua. condenado, acontecerá muito me- [5] Projetos - http://audienciazero.net/xda/
É o entusiasmo que potencia esta nos se todos formos obrigados a projects / Atividades - Labs AZ calendar

[ AVISO À NAVEGAÇÃO: ESTE ARTIGO DEVE SER LIDO ONLINE ] nossa criação e não o conheci- fazê-lo, uma vez que a publicação [6] “Milton Glaser – on the fear of failure” -
mento. Este é, muitas vezes, ine- fragiliza, tornando-nos alvo de https://vimeo.com/23285699
TIAGO SERRA* xistente e, como tal, temos de o elogio ou chacota [6]. Fazemo-lo [7] Poster do Bob Dylan - por Milton Glaser -
procurar. Caso contrário não se- para ter sucesso ou falhar rapida- http://www.101bananas.com/art/dylan.html
remos bem-sucedidos e é esta a mente e tentar de novo, mas cla- [8] “Milton Glaser: Plagiarism” - http://www.
vontade de alcançar um objetivo ro, no canal mais democrático de youtube.com/watch?v=3cuKQFUu6rg
prático que nos move. todos: a Internet. Não por preten- [9] http://sensebloom.com
ITeCons ANTÓNIO TADEU*

NA VANGUARDA DO
CONHECIMENTO
DAS CIÊNCIAS DA O Instituto de Investigação e De-
senvolvimento Tecnológico em Ci-
produtos e sistemas de construção,
e, por fim, a própria investigação
promover sinergias entre Empresas
e Entidades do Sistema Científico e

CONSTRUÇÃO ências da Construção (ITeCons)


foi colocado, desde inícios de 2006,
aplicada.
Refira-se que este Instituto possui
Tecnológico, com o objetivo da valo-
rização do conhecimento em susten-
à disposição da Indústria da Cons- um conjunto alargado de ensaios tabilidade do ambiente construído
trução, de instituições públicas e acreditados pelo Instituto Portu- nas empresas, o ITeCons encontra-
privadas, e da Sociedade em geral, guês da Acreditação (IPAC), nas -se a desenvolver o projeto âncora
permitindo a expansão das ativida- áreas da acústica, alvenarias, be- de criação do Pólo de Conhecimen-
des desenvolvidas no Laboratório tões, aços e isolamentos, agrega- to em Tecnologias da Construção
de Construções do Departamento dos e inertes, betumes e misturas Sustentável. Este Pólo tem como
de Engenharia Civil da Univer- betuminosas, argamassas, cortiça, principal objetivo contribuir para
sidade de Coimbra (UC), em es- pedra natural, solos e outros mate- a sustentabilidade do ambien-
paços adequados e tecnicamente riais de construção. te construído e a construir, sob
apetrechados, ao mais alto nível. O ITeCons foi também reconhe- o ponto de vista tecnológico, e
Atualmente, a ligação à UC é ope- cido pelo Instituto Português da está particularmente vocaciona-
racionalizada através do Centro de Qualidade, como Organismo Noti- do para dar resposta às necessi-
Investigação em Ciências da Cons- ficado - Laboratório de Ensaios - no dades da indústria da construção
trução (CICC), sendo objetivo fun- âmbito da marcação CE, diretiva e da sociedade, em geral, no que
damental deste Instituto fomentar 89/106/EEC, para janelas e por- diz respeito ao uso e desenvolvi-
a aproximação entre a Universi- tas pedonais exteriores e alguns mento de tecnologias de constru-
dade e a Indústria da Construção, produtos de isolamento térmico. ção sustentável. No âmbito deste
OF I C I N A D O S S A B E R E S R I B A L T A

promovendo uma estreita colabo- Nessa área, o ITeCons apresenta projeto, o ITeCons prepara-se
ração entre ambas e não descuran- competências reconhecidamente para construir, em conjunto com
do o trabalho de investigação na elevadas no conhecimento do com- a UC, um novo edifico, em ter-
vanguarda do conhecimento. portamento de caixilhos e de iso- reno anexo ao edifício-sede do
Este Instituto disponibiliza uma lamentos para aplicação em obra. ITeCons, financiado pelo QREN,
vasta gama de serviços, desde a Este Instituto foi ainda reconheci- no âmbito do Mais Centro - Pro-
consultoria técnica, peritagens, do como entidade qualificada para grama Operacional Regional do
avaliação de projetos, certificação prestação de serviços de I&DT e Centro. Este projeto representa
energética, à formação especiali- inovação a PME, no âmbito dos um investimento total de mais de
zada para os técnicos do setor da Vales I&DT e Inovação, nas áreas 6.5 milhões de euros, com uma
construção, à promoção e apoio na de qualificação Desenvolvimento e comparticipação do Fundo Euro-
organização de eventos técnicos Engenharia de Produtos, Serviços peu de Desenvolvimento Regional
|RL #35

e científicos. Com algum relevo e Processos, e I&DT & Transferên- (FEDER) de cerca de 5.3 milhões
encontram-se ainda a realização cia de Tecnologia. de euros.
de ensaios, tanto em laboratório Enquanto uma das entidades di-
como in situ, de caracterização tér- namizadoras da criação do Cluster * Professor da Faculdade de Ciências e
34

mica, acústica, física e mecânica de Habitat Sustentável, que procura Tecnologia da Universidade de Coimbra
ITeCons
iClio AVATAR DA MUSA HISTÓRIA
ALEXANDRE PINTO*

A Musa da História, Clio, ganhou empresa de conteúdos numa incuba- e património, destinados aos novos exemplo de melhores práticas em leva-o até aos sítios mais interessan-
nova vida num universo virtual de dora de base tecnológica? meios digitais. inovação e criatividade pela Comis- tes, tendo em conta o tempo dispo-
ideias e experiências, o seu Avatar A iClio [www.iclio.pt] resulta das si- Um dos fatores que levou à criação são Europeia. Este mestrado visa nível e o modo como se movimenta.
neste Novo Mundo é a iClio. nergias de um grupo de sócios cujos da empresa foi a experiência coletiva promover as capacidades inerentes a Através de um mapa detalhado, esta
A iClio é uma spin-off da Faculda- percursos profissionais e académi- adquirida, enquanto docentes, inves- um grau académico na área das hu- aplicação indica a melhor forma de
de de Letras da Universidade de cos se complementam e conjugaram tigadores e alunos no contexto do manidades por via da sua aplicação chegar a determinado ponto, quer o
Coimbra sediada no Instituto Pedro no objetivo de iniciar uma atividade Mestrado, liderado pela Universidade às novas tecnologias, transforman- utilizador se desloque a pé e/ou de
Nunes, incubadora eleita em 2010 empresarial inovadora, dedicada à de Coimbra, European Heritage, Digital do o que hoje em dia se consideram transportes públicos. Enquanto pas-
a “Melhor Incubadora de Base Tec- produção de conteúdos de alta qua- Media and the Information Society [www. disciplinas com acesso limitado ao seia ao som da sua música preferida,
nológica do Mundo”. O que faz uma lidade nas áreas da história, cultura euromachs.net], já reconhecido como emprego em novas oportunidades o JiTT transforma-se num guia local
de aplicação rentável de saber ad- “contando” os principais factos e
quirido. Há estimativas de que o acontecimentos relativos à história e
consumo de bens culturais gera cultura dos locais em que se encon-
mais valor que a indústria automó- tra, revelando ainda os aspetos mais
vel ou agroalimentar, como o estudo curiosos.
The Economy of Culture in Europe.
O JiTT está disponível para iPhone,
A filosofia da iClio centra-se na cons- iPad e Android, nas lojas de aplicações
tatação de que a transformação das móveis [Apple AppStore, GooglePlay,
oportunidades criadas pela tecnolo- Amazon Android AppStore e Vodafone
gia em negócios rentáveis está inti- AppSelect] para as cidades de
mamente ligada aos conteúdos dis- Barcelona, London, Paris e Roma,
poníveis para gerar novas formas de ainda este ano serão disponibilizadas
utilização dessa mesma tecnologia. as cidades de Boston, Los Angeles e
O primeiro produto da iClio, o JiTT New York.
– Just in Time Tourist [www.justin- A iClio continuará a sua missão de
timetourist.com], é um áudio guia construir pontes entre conteúdos
OF I C I N A D O S S A B E R E S R I B A L T A

que se assume como reflexo tangível e tecnologia, reconhecendo que o


da filosofia da empresa, ao associar verdadeiro valor está nos conteúdos.
conteúdos de excelência e inovação Para atingir este fim, centramo-
tecnológica. O JiTT combina locali- -nos no rigor, usabilidade, inovação
zação exata, tempo disponível, áu- tecnológica, qualidade do design e
dio e pontos de interesse, criando eficácia da gestão de projetos, mas
itinerários personalizados que vão sempre de forma a garantir que a ri-
ao encontro das necessidades do uti- queza e originalidade dos conteúdos
lizador. assumem o papel central.
JiTT é ideal para quem não dispõe
de tempo suficiente para explorar
toda uma cidade, mas que quer ficar I. Creativity and Innovation: Best practices
|RL #35

a conhecer o essencial. Esta aplica- from EU programmes, 2009.


ção da iClio funciona offline sem II. The Economy of Culture in Europe, 2000
recurso ao serviço de roaming, com [atualizado em 2009]
base em tecnologia GPS, o JiTT par-
38

te da sua localização geográfica e * CEO iClio.


VISÃO,
NEUROIMAGEM
objetos. A pintura tenta conseguir a
perfeita unificação percetual, como
que mimetizando os processos ce-

E ARTE
rebrais. A nossa interpretação dos
objetos depende também do desen-
volvimento do sistema nervoso que
MIGUEL CASTELO-BRANCO* não ocorre só in utero mas também
na vida pós natal. É um período crí-
tico para formar representações do
mundo que nos irão condicionar
para sempre.

Os neurocientistas visuais e os ar- pulação que faz entrever. Isto é con- Pode dizer-se que os artistas, os cien-
tistas tentam perceber, de formas ceptualizado por atores tão diversos tistas e os filósofos procuram a mes-
OF I C I N A D O S S A B E R E S C I Ê N C I A R E F L E T I D A

distintas mas entrecruzadas, como como artistas, mágicos, peritos mé- ma verdade sobre os objectos, mas
interpretamos os objetos que se nos dico-legais e pelos novos arautos da usando aproximações fundamental-
apresentam no mundo sensorial. Há área controversa do neuromarketing. mente distintas. É bem ilustrativa a
sempre um lado estético implícito este respeito a afirmação de Picasso
que o cientista formaliza ao estudar A combinação da forma, cor, textura de que “a arte é uma mentira que nos
o que determina o interesse que o e movimento no mesmo objeto defi- permite encontrar a verdade”. O cientis-
objeto desperta no observador. Os ne o conceito de coerência percetu- ta procura a verdade, mas percebe
seus métodos de estudo incluem al. Como é que o cérebro consegue que a “mentira” está em todo o lado,
medidas de resposta emocional que construir esta coerência, é um enig- que passamos a vida a iludir-nos.
ligam à ressonância afetiva tão cara ma que as técnicas de neurofisiolo- O filósofo preocupa-se com a intan-
ao artista. E a neuroimagem permite gia e neuroimagem modernas ten- gibilidade desse conhecimento.
“visualizar” os estados da nossa per- tam resolver. O artista manipula os mesmos enig-
ceção e dos traços da resposta emo- Este conceito de unicidade sinteti- mas, fazendo-nos fruir com eles.
cional cerebral. zadora (e por isso simplificadora) É importante estabelecer pontes
A neurociência “redescobre” de for- está profundamente arreigado no entre o significado dos achados
ma objetiva aquilo que os artistas trabalho de muitos artistas plásticos. científicos e a discussão sobre a
|

“intuem”, que é o papel do contex- Citamos a este propósito, de novo, natureza das imagens e das repre-
RL #35

to na perceção dos objetos. Muda- Matisse, que dizia “O papel recortado sentações que se faz em ramos hu-
mos o contexto e “aquele” objeto permite-me desenhar na cor… Esta sim- manísticos do saber. Esta discussão
transforma-se em algo de radical- plificação garante uma precisão na reu- parte, do lado da ciência, da análi-
40

mente diferente. Matisse dizia que nião dos meios que se tornam num único se do papel das imagens para mos-
“o objeto não é grandemente interessante apenas.” trar evidência científica. O lado
por si só. É o meio ambiente que cria o O cérebro tem de segmentar a ima- epistemológico desta discussão ge-
objeto”. Este conceito é interessante gem em categorias (objetos) e defi- neraliza-se de forma surpreenden-
e inspirador, mas ao mesmo tempo nir os atributos (cor, contornos, mo- te a diálogos muito fecundos entre
desafiador pelo potencial de mani- vimento) na posse de cada um desses a ciência, a filosofia e a arte.
A neurociência começa, hoje, a demonstração dramática deste contraponto a verdade do instante.
perceber por que determinados facto, ao entrarmos no ambiente Embora o nosso f luxo particular
tipos de estímulos, por exemplo azulado proporcionado pelos vi- de momentos percetuais crie uma
cromáticos, evocam reações emo- trais do auditório do museu dedi- certa impressão de continuidade
cionais que alguns tentam tipifi- cado à sua obra, em Nice, França. de processos mentais, a verdade
car na “cromoterapia”. E, aqui, a Após alguns minutos, e devido ao é que é relativamente simples pe-
ciência ajuda a separar “verdades” fenómeno de adaptação à luz e à dir que um indivíduo identifique
de “mitos”. Kandinsky exemplifica cor, a nossa perceção do ambiente e selecione segmentos percetuais
dizendo, por exemplo, que “(…) o e contraste cromático modifica-se distintos da sua experiência. É in-
azul é a cor tipicamente celeste. À me- dramaticamente: as outras cores clusivamente possível surpreender
dida que ganha profundidade, acalma começam a emergir com enorme momentos de transição registados
e torna-se apaziguador”. É curiosa saliência, e a graduação de tons pela pessoa e identificar áreas ce-
esta associação de atributos perce- de azul enriquece em simultâneo. rebrais envolvidas neste processo,
tuais a valores de caráter emocional, Com o incrementar do contraste, usando a ressonância magnética
que podem ser tanto generalizá- formas não antes visíveis, humanas funcional.
veis a qualquer indivíduo como ou de animais, começam a irrom-
profundamente individuais. A as- per como que do nada, ou melhor, Kandinsky sublinhava a importân-
sociação da perceção às emoções emergem de um mar de cor que ao cia fundamental da noção de con-
tem óbvia relação com fatores ex- princípio parecia indistinto. Basta
perienciais (mnésicos) e não deixa entrarmos na sala e esperarmos uma certa atração percetual para rias que pessoas como vós, os normais
de ser curioso que a imagiologia alguns minutos, para termos uma harmonias entre contrastes puros, referem] são valores de azul e amare-
identifique áreas cerebrais asso- demonstração impressionante da isto é, contraste entre cores primá- lo”. Segundo o referido artista, “eu
ciadas à perceção da cor e outros variabilidade espacial e temporal rias. O conceito de contraste é um nunca trabalhei com cores ofensivas,
atributos simples, e a sua conexão da perceção visual. Que processos conceito central na neurobiologia ofensivas segundo o ponto de vista de
funcional com áreas envolvidas na se desenrolam? São questões como da perceção. Júlio Pomar (no seu uma pessoa com visão normal”.
memória e nas emoções. estas para as quais a neurobiolo- livro A Cegueira dos Pintores) refere
Outra “associação natural” referida gia moderna começa a ter meios e a ubiquidade dos mecanismos de Por fim, a atenção visual, um con-
por Kandinsky é a de que “(...) o atrevimento para responder. contraste: “Toda a cor projeta sobre a ceito neurobiológico também in-
amarelo é uma cor tipicamente terres- que a rodeia o halo da sua cor comple- tuído pelos artistas visuais, pode
tre”. Ele fala em dissonância per- A experiência de uma certa unici- mentar, e isso foi a alegria e o detona- ser referida como aquele meca-
cetual quando é encontrada uma dade cognitiva, habitualmente as- dor da pintura impressionista”. nismo que nos “agarra o olhar”.
associação pouco natural. Talvez sociada à nossa perceção subjecti- Aqueles recorrem com frequência
por isso aquele artista afirme que va, pode, porém, ser questionada. Qual será a aparência real do a elegantes artifícios para “agar-
“é evidente que a dissonância entre a Matisse preocupou-se em capturar mundo para um daltónico se ele rar o olhar” na direção desejada.
forma e a cor não pode ser considera- temas dinâmicos, como os movi- for artista? Vejamos a descrição É este misterioso “prender do
da uma ‘desarmonia’. Pelo contrário, mentos e trajetórias no tempo e feita por uma destas pessoas quan- olhar” que une, hoje, os desafios
pode representar uma possibilidade no espaço associados à dança, e do lhe foi perguntado se para ele das Ciências da Visão, Neuroima-
nova e, portanto, uma causa de har- teve que o fazer usando um meio o mundo era a cores ou preto e gem e Arte.
monia”. Por outras palavras, uma permanente (a pintura). Outros, branco: “(…) depende da intensi-
“harmonia” relevante pode ser a como Niki de Saint Phalle, foram dade e da luz disponível... Não, não * Professor Auxiliar da Faculdade de Medici-
causa de uma nova representação ao extremo de querer apreender a é um mundo cinza, mas é certamen- na da Universidade de Coimbra/ Diretor do
a adquirir enquanto experiência. tensão de um instante percetual, te uma amostra reduzida do que vós Instituto Biomédico de Investigação da Luz e
A neuroimagem mostra que o cé- organizando sessões públicas de [normais] vedes. O que eu reconheço Imagem (IBILI) e do Instituto de Ciências Nu-
rebro está preparado para esta tiro, em que outros artistas e visi- [que se possa relacionar com catego- cleares Aplicadas à Saúde (ICNAS)
plasticidade experiencial, mas que tantes de exposições eram convida-
essa capacidade se atenua com a dos a disparar sobre as instalações,
idade. levando a explosões momentâneas traste em detrimento de valores
O reconhecimento da volatilida- de cor e estilhaçando a obra com sensoriais absolutos: “A nossa har-
de temporal da perceção da cor é marcas que lhe conferiam uma his- monia baseia-se sobretudo na lei dos
também um dado muito presen- tória. Parafraseando livremente contrastes, que foi em todas as épocas
te no trabalho dos artistas plás- Picasso, ao negar-se a obra prévia a lei mais importante em arte”. Este
ticos. Chagall apresenta-nos uma - com um disparo - afirma-se em artista apercebe-se de que existe
RL #35
AO LARGO
44
ROGÉRIO DE
Rogério de E isso não foi traumatizante?
Não. Mas, a partir de uma certa altura, quando comecei
Carvalho nasceu
a aperceber-me de estar aqui a viver, comecei a tomar

CARVALHO
na Gabela, em consciência de mim próprio e do meu papel no sentido
Angola, em da realização teatral. E fica-se com a sensação de que isto
setembro de 1936. não joga bem, não tem coerência. Ou seja, vivemos num
Aos 18 anos, veio pequeno universo de má consciência. De qualquer for-
para Portugal, ma, tenho feito trabalhos também em Angola e gostava
onde se licenciou “COIMBRA E O de voltar.

TEUC DERAM-ME
em Economia e, O que o impede?
por um feliz acaso, O teatro que faço aqui ainda é um bocado difícil de se
trocou os números
pelo curso de
UMA EXPERIÊNCIA fazer em Angola. As condições económicas do teatro ain-
da não o tornam seguro. Por outro lado, também criei
Teatro e Formação DA QUAL, AINDA o meu discurso, a minha forma de fazer teatro - esse foi
construído em função dos espetáculos que tive cá em
HOJE, VIVO MUITO”
de Atores pela
Portugal. Estou convicto de que se, um dia, Angola for
Escola Superior de
uma potência em teatro, as coisas têm de partir das ra-
Teatro e Cinema. ízes de lá, de atividades relacionadas com o mito, o pri-
Encenador mitivismo, as práticas ancestrais. Isso seria, de facto, a
inúmeras vezes descoberta, ou a redescoberta, de um campo onde as
premiado, despe o técnicas teatrais encontrariam elementos preciosos para
teatro de adereços se fazer teatro. Não se pode fazer teatro sem se basear
e veste-o de corpo numa técnica que dê uma identidade ao ator.
e alma de ator.
Sei que cria narrativas muito baseadas na interpretação
Com Coimbra no do ator e, a partir daí, encadeia-as.
currículo e teatro O seu primeiro contacto com o teatro foi um pouco No fundo, voltamos outra vez às coisas primitivas, porque o
universitário no obra do acaso… teatro, inicialmente, não era um poço de psicologismo, nem
coração, desafia O meu primeiro contacto com o teatro não tem nada de histórias com princípio, meio e fim. Ou seja, hoje estamos
as leis do mercado a ver com teatro. Vim para Lisboa estudar economia, e a utilizar técnicas em que a atividade do ator assenta na sua
o Instituto Superior de Economia ficava próximo do da presença e não na sua representação. O ator presentifica a
e tenta, sempre, ir
Escola Superior de Teatro… Comecei a conviver com os sua aparição.
para além do que alunos que eram do curso de teatro. Quando dei por
reside no palco. mim, já estava a assistir às aulas. Trabalha com o ator e não com a personagem?
A personagem, às vezes, é um empecilho. Leva à imitação.
Foi um encontro inesperado. Leva a que o teatro fique ancorado num conjunto de ideias, o
Nunca tinha visto uma peça, sequer. E detestaria, de cer- que acaba por criar estereótipos. O ator tem de se redescobrir
teza. Mas acabei por ingressar e por tirar o curso de en- - com a sua presença, aparece como uma entidade artística,
cenação. Mas, sim, foi uma casualidade. Fiz o 7.º ano em como um criador. Não é apenas um manipulador de público,
Angola, e depois vim para cá, porque naquela altura não um ilustrador, um imitador. O teatro, hoje, é muito criativo.

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havia universidades. Se houvesse universidades, tinha fi-
cado lá, nunca teria vindo para cá. O teatro de hoje choca com as linhas gerais do teatro
burguês?
Foi difícil a transição? Hoje em dia, o espectador não é passivo. É um indivíduo
A transição não… Quer dizer, quem está em África tem que está numa zona ativa. Não queremos que os espectado-
sempre aquele desejo de vir para a Europa, o que é uma res pensem da mesma maneira. Queremos que cada um seja
ilusão. Cai-se na aculturação. E a aculturação é um drama uma unidade de descodificação. É um elemento que está a se-
RL #35 | AO LARGO terrível para nós, que investimos menos na nossa cultura guir o espetáculo, mas que também está a inseri-lo na dialéti-
ENTREVISTA africana e passamos a ter um conhecimento tanto quanto ca da sua interpretação. Ou seja, a relação entre o espectador
possível da cultura ocidental. E isso, parecendo que não, é e os atores é mais íntima e mais interessante. Porque ambos
uma descaracterização. estão em atividade.
Dizem que o ator é sempre o centro do seu trabalho. é fortemente interveniente e fortemente perturbador, para valece. Define-se qual é a partitura de ações físicas que cada corda, mas não tínhamos consciência disso. Nós queríamos
A noção que tenho de teatro é muito influenciada pela de um quem assiste. um construiu e, a maior parte das vezes, nem prevalece a mi- era fazer teatro.
grande homem do teatro, Jerzy Grotowski, que disse: “Podem nha.
tirar tudo ao teatro, mas, tirando o ator, aí é que não há tea- Junta o seu mundo ao dos textos em que mergulha. É assim
tro”. Faço um teatro não muito rico em meios financeiros, por que lhes descobre a alma? Não existe uma hierarquização do trabalho artístico, portan- Como é que Coimbra, mais especificamente pelo Teatro dos
isso desvio esse investimento para o ator. Independentemente A realidade da atividade teatral recai sobre as nossas questões to. Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) acaba por
disso, o ator é o elemento humano, e uma das características do dia a dia. Por isso é que o teatro também é importante. O encenador perdeu o papel que tinha como orientador do se traçar no seu mapa?
do teatro é ser um discurso, profundamente, do Homem. Podemos pegar num clássico ou num contemporâneo, mas grupo e como pessoa que tem a chave de tudo. Ao fazer esse Devo-o ao António Augusto Barros, que me fez um convite
referenciamo-lo sempre com o nosso quotidiano, com os nos- trabalho prévio, vou criando um universo, mas o ator também para ir lá fazer “O Sonho”, de Strindberg, que é uma das peças
Aí também entra o trabalho de encenação… sos problemas mais artificiais, profundos, etc. cria o seu. É preciso avançar de forma a ultrapassarmos as ci- mais difíceis de sempre. Foi em abril de 1987 e foi um grande
Sim. Encenar é gerir pessoas, é ter capacidade de entrar numa sões dos universos, até encontrarmos um plano em que as coi- espetáculo. O TEUC voltou a assumir-se como um grupo de
harmonização, num pacto de criação e numa confluência Diz que o teatro é efémero, no entanto. sas se ajustam e se harmonizam e, a partir daí, o espetáculo co- referência.
artística, de tal forma que o elemento humano venha ao de É uma arte pobre no tempo. Estreia hoje, faz-se e depois aca- meça a articular-se por si próprio. Passa a ter uma gramática.
cima. bou. O que significa para si essa passagem por Coimbra?
Ganha vida. Muita coisa. Especialmente, o lado criativo, independente e
Quando está no papel de espectador, também se centra no Mas isso não a torna menos marcante. Ele já tem vida. Só que já não tem espontaneidade. A partir autónomo que é inerente ao TEUC. Significou, precisamen-
ator? Aqui o problema não é esse. Por exemplo, se eu quiser ter uma de uma certa altura, o espetáculo começa a ter a sua própria te, essa abertura do experimentalismo, de fazer teatro não
Vou ver quem faz o “Hamlet”, não vou ver o “Hamlet”. Há, ideia imagética do espetáculo que Molière fez d’“O doente escavação. E aí é que o encenador tem de tomar decisões. convencional - no sentido de estar a imitar o que os outros já
aí, uma identificação ator/personagem, em que não sabemos imaginário”, não tenho. É nisso que o teatro é terrível. Mesmo Depois entram as maquinarias: a luz, a cenografia, a roupa, fizeram -, de encontrar um conceito teatral que me fosse esti-
identificar a fronteira entre as duas coisas. Ou seja, o ideal se- que faças uma boa filmagem, nunca consegues apanhar a cor- etc. Tudo isto leva-nos a um plano de discussão às vezes muito mulante para desenvolver a atividade de teatro. Como vim do
ria o ator ser mesmo a personagem. Mas isso é impossível. Só rente relacional, a energia que corre entre os dois universos: forte. Porque as pessoas muitas vezes não querem prescindir teatro amador, de liceu, quando fui para o teatro profissional,
se chegar à loucura. o universo do público e o universo da atuação. É nesse aspeto das suas ideias… Por exemplo, o cenógrafo é um criador, não não tinha essa liberdade, estava um bocado condicionado.
que o teatro é efémero. quer prescindir daquilo que criou. Mas, existindo uma gramá- O TEUC era uma instituição de uma importância fundamen-
Esse é um dos grandes dilemas dos atores? tica, uma sintaxe que o universo do espetáculo criou, aí, não tal no teatro português, naquela altura. Muito mais do que
É. Quando não sente a personagem, ele pensa que ela está a Isso não lhe retira a vontade de continuar a fazer teatro. há nada a fazer. hoje. Tudo isto teve um significado profundo na minha car-
fugir-lhe. O ator tem de ser um indivíduo que questiona, não Não, pelo contrário. Esse lado efémero cria uma angústia. reira. Essa frescura permitiu-me fazer trabalhos arriscados, de
pode ser um indivíduo cinzento, em que a gente mete lá tudo O espetáculo termina e parece que não resta nada. Quando o Vamos voltar um bocadinho atrás. Estudou em Lisboa, ainda que nem consciência tinha. É uma adrenalina diferente. Isso
e ele faz. Fico triste quando isso acontece. O ator é mais inte- espetáculo é bom, fica a lembrança. Depois, também, o teatro fez alguns trabalhos como ator – poucos… deu-me uma experiência da qual, ainda hoje, vivo muito.
ressante quando é um homem responsável pela sua criativida- é uma fonte relacional entre pessoas, e tudo isso fica. Sim. Mas olhe que eu acho que estou bem onde estou. Ser ator
de e pela sua instalação dos processos de apresentação, e não e encenador é muito complicado. Fui ator, e até gostava, mas Em 1988, no 50.º aniversário do TEUC, encenou “O auto da
de representação, de fingimento. O que tem em mente quando cria um espetáculo? depois há o problema da cor, não é? Tudo isto é resultado do Índia”, de Gil Vicente, peça que foi considerada, por mui-
Nunca sei o que vai ser. Esse é que é o grande desafio. Posso que fazia no teatro amador, que eu não fui para o teatro pro- tos, como uma pérola da criação teatral contemporânea em
O que procura, então? ter uma ideia do espetáculo desde o princípio até ao fim, mas fissional de portas abertas. Aliás, ninguém me deu nada, tudo Portugal.
A autenticidade na execução do ator. O problema da perso- nunca será isso. É criado numa disponibilidade de improvisa- foi à custa de muito trabalho e de muito sacrifício. Só passados Era um teatro que não ilustrava o texto, mas estava lá tudo.
nagem, quando não está baseada na verdade das ações físicas, ção. Tenho várias fontes de que tenho de me socorrer. Uma uns 15 anos ou 20 é que eu fiz o meu primeiro trabalho como Não era psicológico, nem era realista. Era a-realista. As pes-
nem é construída à volta de uma partitura de ações físicas e de das fontes é a leitura: estudo obras de filosofia, romances que encenador. soas ainda não estavam habituadas a ver teatro visualmente
ações vocais, é que cai num patetismo. Por isso gosto muito do descrevem a performance das personagens, pintura… Uma forte. Tinha uma boa cenografia, do José Castanheira, tinha
teatro de Barker… série de elementos que vai compondo esse universo, que me Qual e quando foi? uma banda sonora interessantíssima, uma luz magnífica, de
vai permitir idealizar esse trabalho. Por outro lado, o teatro Foi em 1971, na Escola Secundária de Almada. Estava no Con- Jorge Ribeiro, e uma performance, da parte dos atores, in-
É um teatro de catástrofe, pesado. tem também o seu passado, tem a sua História. E então, tam- servatório e dava aulas para me sustentar. crível. Criámos, assim, uma nova maneira de transpor o Gil
Não, não é pesado. Ele tem uma teoria: para se fazer um tea- bém tem de mergulhar nas relações do passado. Por exemplo, Vicente para o palco.
tro credível, tem de se voltar à tragédia. E a tragédia trata do n’ “O doente imaginário”, tive de ler vários encenadores que Ainda antes do 25 de Abril…
destino do Homem. E nós sabemos que o destino do Homem também trabalharam o mesmo texto. Ainda tenho uma outra A escola tinha essa coisa extraordinária: deixava-nos fa- Por que é que, ao percorrer os espetáculos que fez, diz que
é a morte. fonte, que é o cinema. Tenho 50 DVD para cada espetáculo zer espetáculos proibidos, como “A exceção e a regra” ou a alguns foram um falhanço?
que faço. Tudo isto vai dar-me uma base para, quando come- “Antígona” do Brecht. O diretor era fascista, mas era um A gente, mais tarde, analisa, e vê que é um falhanço. Nesse
Considera a tragédia uma forma essencial de teatro? çar a trabalhar com os atores, começar também a fazer pro- gajo porreiro. Aí é que nos tornámos conhecidos. Os crí- aspeto, não crio ilusões. Um espetáculo, quando é mau, é mau
É. Pelo seguinte: uma pessoa que faz tragédia, facilmente faz postas. Só que eles também fazem propostas. ticos começaram a aparecer… e acabou-se.
Molière. Tudo o que é cómico tem a sua sombra, que é a tra-
gédia. É o lado que não está lá e é a parte mais interessante do Como se processa essa dinâmica? Muito por ser contra o regime. Quando acha que erra, quer voltar a fazer.
espetáculo. O que nos leva ao não estar é a tal coisa de que a Tenho uma cena, trabalho-a em casa, e cada ator também tra- Eram espetáculos contra uma situação. Mas como era uma Erramos por várias circunstâncias. Até pode ser erro de pro-
arte vai para além, leva-nos para além. Não estou a defender balha em casa. E, depois, cada um apresenta a sua proposta. escola, nunca nos chatearam. Só uma vez é que éramos para dução, erro de casting, várias coisas… Até pode ser um desa-
uma atitude artística espiritual. Não é isso. Acho que o teatro Na solução dessa proposta, vamos ver qual das propostas pre- ir fazer a “Antígona” num comício, e não fomos. Era esticar a justamento do próprio trabalho.
Por exemplo, apresentou “O cerejal”, de Tchékhov, inú- É isso que procura? Sim. Já fiz lá cinco ou sete espetáculos, faço workshops e tenho bilheteira, então tem de estar dependente dos subsídios.
meras vezes. Sim, sim. lá uma estrutura. Agora, eu não fui muito beneficiado pelos subsídios e
Mas aí é por necessidade, mesmo. Eu, a Tchékhov, de três em por essas ajudas. Nunca concorri, porque tenho traba-
três anos, tenho de voltar. O que procura mais? É para si importante, esse intercâmbio cultural? lhado, inclusivamente em Angola, no Brasil, em Moçam-
Aquilo que procuro, não sou eu que procuro, é o meu incons- Claro. Se aqui faço coisas tão interessantes, por que é que lá bique, etc.
Muitos encenadores dizem o mesmo. Tchékhov é quase ciente. Quando estás a trabalhar uma cena com duas pessoas, não as faço também? Por exemplo, aqui, “Os negros” foi um
medicinal? não vais com a máquina preparada, porque se não elas dizem espetáculo falhado, e lá, não foi. Porque aqui havia recursos, e É importante, para si, uma corrente de expressão tea-
Não se esgota nunca. O espetáculo fica na cabeça e, ao ficar logo: “Este quer é obrigar-nos a fazer o que ele quer”. Não, nós lá não, tivemos de usar a nossa criatividade. Gosto muito desse tral que seja unida pela língua?
na cabeça, começamos a perceber o que é que se poderia fa- vamos trabalhando e as coisas vão-se desenvolvendo. tipo de trabalho. Tive, também, um espetáculo n’O Bando, Isso, quando é forçado, faz logo surgir os aproveitadores, que
zer de diferente. em que parti de um filme… estão atentos. Isso, geralmente, acaba por ter uma ligação polí-
“Eu não sou político, mas no teatro sou político.” Por tica. Se for uma realidade espontânea, que circule livremente,
Muitos atores dizem querer muito trabalhar consigo, que diz isso? “A caça”? como um processo de criação… Mas muitas vezes, o teatro
sublinhando que “é um bicho do teatro, uma pessoa Porque, se tu não puseres questões, ninguém se interessa por “A caça”. É um espetáculo extraordinário. Trabalhava na base aparece como um elemento pobre e cria-se uma situação des-
que faz acreditar”. Sente-se assim? isso. O teatro não se pode esvaziar. Tem o seu universo, mas do barro, da água. Gosto muito das coisas simples, em teatro, prestigiante, havendo uma importância menor dada pelos
- Não, só me sinto assim, porque outros criadores também me não pode estar fora do mundo. Porque, se não, por que é que e fáceis de encontrar. políticos. O teatro depende de muita coisa. Depende da edu-
fazem sentir o mesmo. vamos ao teatro? cação que se dá às pessoas. Um público não se cria assim com
Foi Professor na Academia Contemporânea do Espetá- facilidade. Criar uma ponte para depois não ir lá ninguém?
Ou seja, percebe que isso pode acontecer. Uma vez, afirmou que o teatro, em Portugal, ainda não culo, no Porto, na Escola Superior de Teatro e Cinema O que é necessário é criar sustentação, para que haja um pú-
Vais ler, por exemplo, um Goethe, e percebes que ele abriu o suficiente para se aceitar que negros desempe- de Lisboa, e na ACT-Escola de Atores. Como é, para si, blico. E a criação de um público tem muito a ver com as políti-
não brinca. A vida dos grandes pensadores é aquilo e nhem papéis. ensinar? cas educacionais. Há países em que o teatro não está em crise,
acabou-se. Não andam aí a fazer cartões de visita. Uma Aquilo que acontece não é um problema de exclusão. O tea- As aulas, para mim, são uma espécie de laboratório. Muitas tem as salas cheias.
pessoa, para estar nisto, tem de estar 24 horas. Eu, por tro português tem uma estratégia de que uma personagem vezes, se estiver a fazer uma peça, nessa aula vamos trabalhar
exemplo, durmo com um gravador. Registo os meus so- é branca e, portanto, não pode ser feita por uma pessoa de parte dessa peça. Mas, pretende criar uma ponte entre África e Portugal?
nhos e tudo o resto. Já não dá para brincar. Quando cor. Hoje, na América, já não acontece isso. Em Portugal, só Quando essas coisas são forçadas, é um pouco compli-
vais para uma sala com atores, etc., tens de ter capa- conheço três: um que está aqui no teatro da Comuna, outro O teatro universitário acaba por ser também isso: uma cado (risos). Lá vou eu ficar na ponte à espera que me
cidade de resposta. Se não a tiveres, eles também não que está no teatro de Braga e outro que está no Porto. espécie de laboratório. empurrem para um dos lados, não é?
acreditam em ti. E não acreditando em ti, fazem o que Ah, sim, é sempre. Aliás, é uma das coisas de que gostava. Mas,
querem. Mas o teatro não deveria ter cor… naquela altura, os universitários eram mais dedicados ao tea-
O teatro não tem cor? Vai dizer isso ao Nacional, quando esti- tro. Passavam lá o dia todo. Aliás, a maior parte deles chumba-
Mas tem noção de que é um dos mais respeitados en- ver a fazer um elenco, e pergunta se eles andam à procura de va nos respetivos cursos. Havia lá uns muito bons. O caso do
cenadores do espaço lusofalante, ou não se consegue um preto para fazer um papel, a não ser papel de preto! José Neves, do Ricardo Pais… Discutia-se muito. Tinham uma
ver assim? racionalização muito mais avançada do que a maior parte do
Se me respeitassem, davam-me subsídios. Em 2012, como é que isso é possível? ator normal... Isso, às vezes, era bom, outras era mau. Às vezes,
O teatro não mudou. Os estilos convencionais não mudaram. vinham lá com teorias… (risos)
Foi galardoado por duas vezes com o Prémio de Crí- Fui para encenação, precisamente porque nunca me chama-
tica da Melhor Encenação. Participa regularmente em ram enquanto ator. Enquanto eles não provarem que são ca- Há pouco dizia que não pedia subsídios…
festivais internacionais de Teatro em África, Europa e pazes e que têm, de facto, uma técnica, que podem concorrer Eu tenho tido sempre trabalho, sabe? Nem que tenha de ir fa-
América Latina. É óbvia a notoriedade que tem. Como no mercado, criando também as suas estruturas… zer teatro ali ao Inferno. Tenho trabalhado de graça, inclusive.
é que se sente quando recebe um prémio?
Sabe o que é que faço, exceto quando o prémio é em dinhei- As coisas não vão mudar. Como é que encara essa subsidiodependência do teatro?
ro? Dão-me uma estatueta, mas assim que chego ao primeiro Nem há nada que mudar. Nós é que temos de criar as nossas O meu ponto de vista é o seguinte: eu não faço teatro
caixote do lixo, pumbas! (risos). Mesmo quando acaba o espe- realidades e tentar… para mim. Mas tenho a minha vida organizada. Organi-
táculo, numa estreia, vêm dar-me um ramo de flores, chego ao zei a minha vida de forma a que não dependesse do te-
primeiro caixote do lixo, pumbas! Depois de tanto trabalho, Mas não o incomoda? atro. O problema são as pessoas que trabalham comigo.
tantas desavenças, tantas cisões artísticas… Não faz sentido. Incomoda-nos, porque temos de ter também as nossas Essas precisam. A minha posição é essa: o teatro não é
estruturas para poder fazer aquilo que achamos que feito para mim, é para a comunidade. E se a comunidade
Como lida com essas desavenças e cisões, durante o devemos fazer. Se não, também passamos a vida toda a reconhece que o trabalho é positivo, logo tem a obriga-
processo criativo? imitar o teatro ocidental, a escrever textos e a fazer peças ção de sustentar a atividade das pessoas que fazem parte
Encenar é resolver problemas. Aliás, discuto com os atores e intelectualmente muito bonitas, mas que não têm possi- disso. Se não sobrevivem com bilheteira, aí, aparece logo
digo-lhes sempre: se tiverem razão, defendem-na e conven- bilidades de ir ao encontro da sua busca dos fenómenos a dependência. Uma classe abastada, ou o Estado, tem
cem-me. Há muitas discussões no sentido de se tomar uma ancestrais. uma função. A de estar atento a tudo o que diz respeito
decisão, de se encontrar uma solução. Vai a Angola regularmente, desenvolve trabalho lá. à cultura. O teatro, aí, não sendo comercial, não vive da
MÁRIO MONTENEGRO E MARIA JOÃO FEIO abstrata, quando a ouvi falar nas primei-
ras vezes”, ri-se Mário.

SENHOR TEATRO E SENHORA As duas peças juntaram-se no puzzle


perfeito, em 2011, no espetáculo “BCC

CIÊNCIA: UMA HISTÓRIA DE – Blind Carbon Copy”:


“Para construir o BCC acompanhámos

AMOR QUE O ACASO NÃO


o IMAR durante quase dois anos, olhan-
do com especial atenção a vida dentro

TRATOU POR IMPROVÁVEL


dos rios, plural, complexa e ameaçada
como a nossa. Foi uma experiência de
risco, de certa forma, sim”. Para isso,
foi fundamental a ajuda de Maria João,
Como quase todas as histórias felizes, a de Mário Montenegro, diretor artístico da companhia de tanto na preparação, como na receção
teatro Marionet, e de Maria João Feio, investigadora do Instituto do Mar – Centro do Mar e Ambien- da informação pelos espectadores: “Em-
te (IMAR), tem no acaso e na surpresa um princípio. Mário nasceu no Porto, pouco tempo depois bora eu tivesse avisado os investagores
mudou-se para Vila Nova de Gaia e teve um acidente de percurso chamado Lisboa, durante quatro que não iam ter nenhuma aula ou uma
meses apenas. Ali não ganhou raízes, perdeu o sotaque, mas depressa regressou à base nortenha, apresentação científica, ainda assim,
onde acabou o ciclo. No momento de afunilar a área de estudos, escolheu eletrónica, por ser um eles tiveram de fazer esforço para perce-
curso técnico-profissional financiado pelo Estado e por ter a companhia de um amigo. Seguiu essa ber onde estava a ciência pura e dura, ali
área de eletrónica, na Universidade de Aveiro, onde esteve cinco anos. Entretanto, “uma rapariga engraçada” levou-o a entrar Montenegro tirou mestrado em Texto Há muitas. E há muitas que nem sequer (risos). Para mim, essa é a parte engra-

MARTA POIARES
para o Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro (GrETUA). Ela não resistiu (ao teatro), mas Mário permane- Dramático, na Faculdade de Letras da aparecem. Há algumas que eu acho que çada: perceber onde estão os pontos de
ceu: “Acabei por ter uma participação bastante ativa no GrETUA, que teve grande influência na minha vida”, conta. Apesar de a Universidade do Porto, do qual resultou são muito boas e que até consideraria contacto que, no caso da Marionet, não
mãe de Mário ter sido atriz e de, segundo ele, ter sido o seu nascimento a precipitar o fim da carreira dela, foi o facto de também uma tese sobre teatro de tema científi- levar a cena. Mas são muito poucas, são nada óbvios. E isso, sim, surpreende
ser professora primária e fazer muito teatro infantil que lhe abriu as portas da perceção do palco: “Entre os meus quatro e seis co. Posteriormente, em 2008, entrou em porque a maior delas também não olha e agrada-me”.
anos fiz alguns espetáculos mais amadores – fiz de coelho n’”O Paraíso” de Miguel Torga” (risos). doutoramento, na Faculdade de Letras para as coisas da forma como eu as vejo.
Mário só regressou ao teatro quando entrou no mundo GrETUA. Depois de ter feito o curso de iniciação teatral, e depois de de Coimbra, onde segue, ainda, a mes- Isso é importante. Só é minha, se for mi- Fazendo sempre a ponte entre a ciência
um longo “período de nojo”, acabou por ceder aos esporádicos, mas insistentes convites de Rui Sérgio, um dos responsáveis por ma área de estudo. nha desde o princípio. Senão, já não é e o Homem, Mário explora a vertente
manter o grupo de teatro universitário de Aveiro vivo: “Quando o GrETUA produziu uma peça baseada n’”A Morte do Caixei- Muitos dos espetáculos que a Marionet bem minha. E a maior parte das peças social do trabalho de Maria João e ten-
ro Viajante”, de Arthur Miller, cedi e entrei no espetáculo. Tinham passado cerca de quatro anos desde o curso de iniciação realizou começaram por pedidos de co- que são escritas obedecem a técnicas ta humanizar o trabalho de cientista:
teatral”. Mário foi ficando e, quando esse grupo de pessoas que mantinha o GrETUA de camarins ocupados, saiu para criar a laboração de entidades da parte da ciên- de escrita e a formato de peça já muito “O trabalho da Marionet inspira-se mui-
Efémero, companhia de teatro de Aveiro, passou ele – juntamente com Pedro Laranjo, Miguel Nunes e João Brás – para a fila cia. “O Nariz”, que partiu de um convite bem pensados”. Ela não combina com a to na vida dos investigadores, na vida
da frente. “Foi aí que fiz os meus primeiros trabalhos de encenação, sempre alargados a outras áreas, como em todos os grupos do Exploratório Infante D. Henrique ideia estereotipada do cientista que pas- que vai para além do trabalho. Não é
AO LARGO RETRATO DE CORPO INTEIRO

pequeninos de teatro - luz, som, montagem… Foi uma escola muito importante para mim. De teatro e não só”, conta. – Centro Ciência Viva de Coimbra, aca- sa o tempo enfiado no laboratório e que ciência pura e dura e isso ajuda a hu-
No final do curso, Mário Montenegro decidiu entrar em mestrado em eletrónica, mas cedo percebeu que aquele não era o seu bou por marcar o início de uma história vive para ciência: “O trabalho acaba ali e manizar o que, de forma estereotipada,
habitat: “Ambiente de trabalho de escritório, muito compartimentado, com horário e rotina... Não era para mim”. Quis juntar- de amor protagonizada pelas três per- está isolado o mais possível, no tempo e não parece humanizável”, explica Maria
-se a desilusão à surpresa, e um convite da Efémero assim surgiu: “Convidaram-me para entrar para a companhia, em 1995. sonagens desta história do acaso: o Sr. no espaço, para mim”. Procura o teatro João. Já Mário defende, veementemente,
Decidi aceitar, mas não fui logo, porque como interrompi os meus estudos decidi fazer a tropa. Na altura, ainda era obrigatório. Perfeito Amor, o Sr. Teatro e a Sra. pela surpresa e encontrou-a na Mario- que a Ciência está em todos nós: “Tem
Passei lá quatro meses e depois voltei para a Efémero”. Ciência. Maria João Feio conhecia net e no Mário: “Nos espetáculos dele, a uma importância tão grande na nossa
Já parte integrante do mundo em cena, Mário deciciu concorrer a dois estágios na Escola da Noite, em Coimbra. Entrou em Mário Montenegro através de uma comunicação da ciência não segue uma vida, que já é difícil fazer teatro sem ela.
ambos: no de técnico e no de ator, provando que o teatro universitário é fonte de polivalência. De 1997 até 2000, manteve-se na amiga comum, mas gosta de contar o fórmula educativa, assim taxativamen- A ciência está lá, de uma forma ou de
Escola da Noite, mas a necessidade de fazer algo seu, fez com que nascesse uma companhia de dois pais: Mário Montenegro e encontro de uma forma mais… teatral: te. O envolvimento, para mim, é o mais outra, porque ela está presente nos nos-
Nuno Pinto criaram, assim, a Marionet. “Gosto de dizer que nos conhecemos, atraente”. sos dias e cada vez é mais difícil evitar
Formalmente criada em 2000, a Marionet abriu a cortina ao mundo apenas em 2001. E também muito por acaso se criou a porque fui ver “O Nariz”, precisamente Maria João trabalha na área de ecolo- isso, se se quer falar mesmo das coisas
ligação da companhia ao mundo científico: “O primeiro espetáculo que abordou temas científicos na Marionet nem foi o de no dia mundial do teatro. E, pronto, fi- gia de rios, com invertebrados aquáti- mais importantes das nossas vidas”.
estreia, mas sim segundo: “Revolução dos Corpos Celestes”. A ideia não era fazer uma peça a partir dum tema científico. Era quei fã. Da Marionet e do Mário” (risos). cos, e também na parte de avaliação da Fazer a ponte entre estes dois mundos,
uma peça a partir do momento em que Homem deixa de ser importante no mundo, numa perspetiva mais humana, portanto”. Nem Mário é um Sr. Teatro típico, nem qualidade ecológica dos ecossistemas, tão naturalmente opostos para a maior
Esta revolução acabou por ser uma verdadeira Revolução, com direito a maiúscula, marcando o início de uma relação de inte- Maria João é uma Sra. Ciência tradicio- estudando o impacto de atividades hu- parte dos olhares distraídos, parece di-
|

lecto para intelecto com Carlos Fiolhais, cientista de renome: “Acaba por não dar para fugir muito a determinadas pessoas tão nal. Ele vive da necessidade de combinar manas sobre os ecossistemas aquáticos. fícil. Para Mário Montenegro e Maria
RL #34

importantes, nestas coisas”, sublinha Mário. O espetáculo revolucionou corpos e mentes, tendo tido um impacto inesperado no uma visão própria da ciência com a ideia Se ela já era espectadora regular de pe- João Feio, Teatro e Ciência são dois lados
público. “Aí deu para perceber que estávamos a tocar em qualquer coisa que não era habitual. E que havia apetência para isso”. de arte em palco: “Tenho lido muitas ças de teatro, Mário só agora começa a de um só elemento, em que o caminho
A partir daí, Mário passou a ter um olhar mais consciente, considerando os temas científicos como um nicho possível no teatro. peças de teatro de tema científico, nos entrar nesse mundo dentro d’água: que se faz, de um ao outro, é tão natural
52

Entretanto, o caminho do teatro na ciência e vice-versa foi, também, tema de estudo mais académico: entre 2004 e 2007, Mário últimos tempos, para o meu trabalho. “Ainda era uma coisa assim um bocado como o amor que o acaso os juntou.
GALILEU: LITERATURA, PINTURA E MÚSICA na arte renascentista, em particular na cias) para passarem a ser imperfeitas do”. Mas, sendo ambas propulsio-
apropriação da matemática que pinto- (elipses). Se Galileu tinha reconhecido o nadas pela imaginação, porque são

A ARTE NO
res, arquitetos, músicos e poetas fizeram papel imprescindível da matemática na a ciência e as artes tão diferentes?
para derrubar o edifício da filosofia compreensão do Livro da Natureza, cou- Acontece que a criatividade na ciên-
medieval, muito antes de os cientistas be a Kepler ler, com mais pormenor, as cia tem de se cingir à “imaginação”

INÍCIO DA CIÊNCIA
prosseguirem tal tarefa. Por exemplo, o páginas desse livro referentes aos céus. do mundo, enquanto na arte a ima-
arquiteto florentino Filippo Brunelles- A matemática passou a ser um guia para ginação pode ser mais livre. Tal não
chi, a quem é atribuída a invenção da a mente que procura decifrar o mundo. significa que a ciência seja limitada,
CARLOS FIOLHAIS* perspetiva na alvorada do século XV, usou Que têm hoje, quatro séculos após uma vez que toda a história da ci-
os ensinamentos antigos de Euclides Galileu e Kepler, após um desenvol- ência no-lo ensina, a ”imaginação”
para conseguir dar no plano a ilusão do vimento explosivo do empreendi- do mundo é, ou pelo menos parece
Na Revolução Científica, a ciência apa- suas observações com o telescópio não não deixou os seus créditos em artes vi- mundo em relevo. Por outras palavras, a mento científico, a ciência e as artes ser, ilimitada. A busca de Kepler de
receu em estreito conluio com as artes. só da nossa lua como das luas de Júpiter. suais por mãos alheias. A Lua aparece- arte abriu caminho à ciência moderna. em comum? Muito mais do que, em harmonias escondidas no cosmos
O dia de nascimento da Física pode ser Galileu escreve em grande estilo: -nos, tal como era e tal como é (basta Basta ir ao Museu do Prado para repa- geral, se imagina. Pegue-se logo nes- prossegue nos dias de hoje – vide a
datado - conforme recentemente escre- “Grandes, coisas, na verdade, são as que aceitar o convite e olhar para lá com rar na revolução que foi a passagem da ta palavra: imaginar, isto é, criar uma busca de uma teoria de unificação
veu Jorge Calado, na sua obra Haja Luz! proponho neste pequeno tratado para que um telescópio), polvilhada de crateras, pintura medieval para a pintura renas- imagem na mente. De facto, a imagi- de forças, dominada pelo conceito
(IST Press, 2011), onde alia magistral- sejam examinadas e estudadas por cada um às quais o autor, com base na observa- centista: o mundo passou de plano para nação é a mola da ciência tal como é a de simetria – e, muito provavelmen-
mente a história da ciência e das artes dos que dos que estudam a Natureza. Coi- ção das sombras, atribuiu grande pro- tridimensional. A nossa visão estava a mola das artes. Para Einstein, a imagi- te, é um empreendimento sem fim.
- no dia nove de dezembro de 1609, sas grandes, digo, pela própria excelência do fundidade após admitir que as leis da mudar através das artes e a eclosão da nação “é mais importante do que o conhe
quando o físico italiano Galileu Galilei assunto, pela sua novidade absolutamente formação das sombras são as mesmas ciência moderna não haveria de tardar cimento pois o conhecimento é limitado, * Professor da Faculdade de Ciências e
olhou para a Lua usando o telescópio inaudita e ainda por causa do instrumento na Terra e na Lua, num primeiro re- para completar a mudança. ao passo que a imaginação envolve o mun Tecnologia da Universidade de Coimbra
que ele próprio tinha construído. Não com o auxílio do qual elas se tornaram do conhecimento da universalidade das
só olhou como descreveu e desenhou o qual manifestas aos nossos sentidos.” E a se- leis físicas. Pouco depois, um pintor O papel da música não pode ser olvi-
nosso satélite. Galileu, filho de um mú- guir: “Daí, consequentemente, que qualquer amigo de Galileu, Lodovico Cardi, dado. É no Renascimento que se passa
sico que lhe tinha dado uma formação pessoa compreenda, com a certeza dos senti- mais conhecido por Cigoli, do nome da polifonia, centrada na voz humana,
humanista, revelou-se logo, para além dos, que a Lua não é de maneira nenhuma da sua terra natal, introduziu uma Lua para a harmonia, apoiada em instru-
de um extraordinário cientista, tam- revestida de uma superfície lisa e perfeita- realista, toda ela esburacada, aos pés mentos. O pai de Galileu, que toca-
bém um talentoso artista. mente polida, mas sim de uma superfície da Virgem Maria. Este reflexo quase va alaúde, estudou a matemática das
acidentada e desigual, e que, como a própria imediato da ciência nas artes pode ser cordas vibrantes e desempenhou um
O escritor contemporâneo Italo Calvino face da Terra, está coberta em todas as partes visto na Basílica de Santa Maria Maior, papel na passagem da música polifóni-
não tem dúvidas em considerar Galileu por enormes protuberâncias, depressões pro- em Roma, num fresco pintado em 1610 ca para a música barroca. O filho não
o maior escritor (entenda-se prosador, fundas, e sinuosidades.” O autor “convida e 1612. Galileu e Cigoli discutiram por tinha para a música os mesmos talentos
para que Dante não saia prejudicado) todos os amantes da verdadeira filosofia para carta a superioridade da pintura sobre que para a escrita e o desenho (o irmão
de língua italiana. Escreveu Calvino o início, seguramente, de grandes contempla- a escultura. O crítico de arte Erwin Michelagnolo, esse sim, seguiu a pro-
(Ponto Final, Teorema, 2003): “O maior ções.” O novo instrumento era o posto Panowsky escreveu um livrinho in- fissão do pai). Mas foi um seu contem-
escritor de língua italiana de todos os sé- avançado do olho que, por sua vez, titulado Galileo as a Critic of the Arts porâneo, o alemão Johannes Kepler,
culos, Galileu, mal se põe a falar da Lua é o posto avançado da mente. Com a (M. Nijhoff, 1944), onde apresenta esse que imaginou, usando proporções
eleva a sua prosa a um grau de precisão e mente ampliada instrumentalmente, diálogo. Segundo ele: “Se a atitude cientí- matemáticas, os céus como um lugar
evidência e ao mesmo tempo de rarefação o homem conseguia ver o invisível. fica de Galileu influenciou o seu sentido esté- governado pela música. Harmonias do
AO LARGO CRÓNICA

lírica prodigiosas. E a língua de Galileu E a Terra passava a estar unida aos tico, a sua atitude estética poderá também ter Mundo (1619), do qual há tradução por-
foi um dos modelos da língua de Leopardi, céus. A Lua era, afinal, aparentada influenciado as suas convicções científicas, tuguesa parcial em Aos Ombros de Gigan-
grande poeta lunar...” E noutro trecho: à Terra; era uma parte do mundo que Para ser mais preciso, como cientista e como tes (Texto Editores, 2010), é o título de
“Na direção em que trabalho agora encontro habitávamos, imperfeito, e não uma crítico de arte pode dizer-se que ele obedeceu um dos seus livros mais famosos. Nele,
maior alimento em Galileu, como precisão parte de um outro mundo, perfeito, tal às mesmas tendências orientadoras.” Kepler recuperou a tradição pitagória
de linguagem, como imaginação científico- como a visão aristotélico-tomista, bem da “música das esferas”, defendendo o
-poética, como construção de conjecturas.“ retratada na Divina Comédia de Dante, Como se vê, a ciência e as artes inter- primado estético nas ciências. Galileu
Em 1610, Galileu publicou uma obra advogava. penetraram-se no trabalho pioneiro de correspondeu-se com Kepler, embora
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RL #34

seminal da ciência mundial, de que só Galileu. O físico Mark Peterson, num nunca se tenham encontrado. Foi Kepler
recentemente surgiu edição portugue- Mas não foi só no domínio literário das livro recente Galileo’s Muse (Harvard que, descontados alguns devaneios mís-
sa. Sob um título de recorte literário - artes que Galileu se distinguiu. Como University Press, 2011), vai mais longe: ticos, prosseguiu na senda de Galileu,
O Mensageiro das Estrelas (Fundação desenhador de notáveis esboços da defende que a Revolução Científica é ao matematizar as órbitas celestes, que
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Gulbenkian, 2010) - o autor narra as Lua, incluídos no Mensageiro dos Céus, anterior a Galileu, por ter as suas raízes deixaram de ser perfeitas (circunferên-
A presença de Federico Mayol, o velho aproveitarem a boleia. Dizem que é No interior do snack-bar, a opinião
catalão, desconcerta todo e qualquer como caminhar atrás de um grande dos homens, jogando dominó, fica, às
estrangeiro que, fruto de algum aca- toldo que os protegesse das revoluções vezes, dividida. Tambla diz que o livro
so feliz, abandone a estrada princi- do ar, mas não atribuem demasiada é grande, para saber isso basta ver o
pal e, em vez de virar para o lado do importância a essa pequena anorma- seu tamanho, mas que qualquer outra
mar, para onde a atenção dos turis- lidade. Extraordinário seria, isso sim, especulação é uma perda de tempo;
tas sempre converge, torça caminho se o branco-sem-vento fosse capaz de um livro inesgotável ou infinito é uma
para o interior árido da ilha e acabe fazer chover num raio de cinco passos impossibilidade.
por encontrar a minúscula esplanada ao seu redor. Levá-lo-iam, nesse caso, — Quer dizer que não é possível exis-
murada do snack-bar que existe entre numa lenta peregrinação pela ilha tir tal coisa.
as casas irregulares e feias do Calhau toda, regando o chão seco e estéril Cleitson duvida:
de São Vicente. Nunca ali sopra ven- para que Soncente se transformasse — E tem gente em que não venta?
to nenhum, nem sequer nos dias em numa ilha cheia de prados e encostas — Pode ser um acaso, contrapõe Alvino,
que a bravia brisa do norte varre o verdes, onde florescessem grandes flo- o conciliador.
ar e dispersa o pó negro do chão da res encarnadas e árvores de fruto de — Um acaso é uma coisa que, por
ilha. Pode-se, pois, ficar ali a beber fazer inveja a Sintanton. definição, não acontece sempre nem
uma cerveja em paz sem que o alísio — Parar o vento não serve para nada, em toda a parte, filosofa Gilson, o
nos despenteie, e mandar vir pires de dizem. É só um truque bonito para estudante. Mas em nenhum caso um
búzios e pastéis de atum, e mais ou- mostrar às crianças. livro com um determinado número
tra cerveja — mas apenas se Federico Federico Mayol não tem opinião so- de páginas, como aquele é, pode ser
Mayol permanecer sentado no seu bre o assunto e nem sequer está con- infinito. Eu mesmo já pedi para ver.
canto. Toda a gente no Calhau sabe vencido de que é capaz de suspender O livro dele tem quatrocentas e seten-
que o catalão é a causa do inexplicável o vento. Diz que, às vezes, escuta um ta e nove páginas, todas numeradas,
fenómeno que suspende o curso nor- assobio nas árvores e nos fios dos te- um, dois, três, quatro e por aí adiante,
NEM UMA BRISA SOPRA EM mal das correntes do ar e, por isso, lhe lefones, que vê os ramos agitando-se até ao quatrocentos e setenta e nove.

FEDERICO
chamam o branco-sem-vento. e os torvelinhos de areia varrendo as É infinito coisa nenhuma. Ninguém
Assim que ele se levanta e se vai em- ruas, mas que o vento nunca o inco- consegue contar até infinito.
bora, logo as revoadas atravessam os modou. Se lhe perguntam como con- — Eu consigo, ora. Só que adormeço
intervalos que existem entre as fiadas segue fazer parar o vento, encolhe os antes de lá chegar.
de tijolos que compõem o muro caia- ombros: Os outros riem-se de Cleitson. Alvino

MAYOL
do de branco. A esplanada volta a ser — Não sei. Nunca tenho vento e não resume:
tão ventosa como qualquer outra par- posso nem quero fazer parar uma coi- — Ainda que até isso seja um exagero,
te da ilha. sa que não sei o que é nem me inco- pode-se dizer que o livro de Nhô Dico
O senhor Mayol, Nhô Dico, é um ve- moda. é apenas muito grande e que ele, pelo
lho branco de cabelos revoltos e ama- Mas Nhô Dico nunca fala muito. seu modo de ler, o torna inesgotável.
relecidos. Tem a figura extravagante É um homem tremendamente calado. Mas infinito não, é impossível.
de um louco, ou de um sábio antigo, e Um homem calado e quieto atrás de — Parar o vento também é impossível.
MANUEL JORGE MARMELO* passa a maior parte do tempo sentado uma mesa de plástico verde e atrás de E no entanto…
a uma das quatro mesas de plástico um livro pesado, sobre o qual se diz O assunto sempre se extingue por
verde, com publicidade de um refri- que é infinito, ou apenas inesgotável, falta de acordo. E quem acredita que
gerante português, que compõem a ou apenas muito grande, sem que Nhô Dico é possuidor de estranhas
esplanada do snack-bar do Calhau. ninguém saiba muito bem onde está mandingas fica na sua razão e não se
Está quase sempre a ler um grande a diferença entre uma coisa e a outra. dá por convencido: se pode parar o
livro, o qual, nas suas idas e vindas, Às vezes o senhor Mayol passa um dia vento também pode ler um livro infi-

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ele carrega junto ao peito, como se o inteiro a ler a mesma página e nin- nito.
abraçasse ou o protegesse não se sabe guém pode garantir que não resida — Só é pena que não faça chover.
de quê. Os poucos habitantes perma- nisso o truque da aparente infinitude A conversa dos rapazes perde o inte-
nentes das casas de veraneio já não es- do livro. resse. Fica circular como a pista de
tranham a sua presença, nem sequer a — Se estiveres cem anos a ler a mesma um comboio de brincar. Peço outra
falta de vento que ele impõe. Às vezes, página, até um livro magrinho, desses cerveja e dona Neide pede desculpa
nos dias de maior nortada, até espe- de poeta, se pode tornar interminá- por não estar fria. A luz elétrica está
ram que ele regresse a casa para lhe vel. sempre a falhar.
RL #35 | AO LARGO
CRIAÇÃO LITERÁRIA
— Vem e volta. O frigorífico está sem- sido narrada antes. Temo, aliás, que dizer e que não ache que sou um lou- — Uma vez, sim. Acharam que esta- Mayol diz adeus, afasta-se devagar, acreditar que aconteceu exatamente
pre a avariar. Essa Electra não tem se tenha posto imediatamente a ca- co ou um bêbado extravagante. Aqui va na paródia. Como se lhes tivesse “sem pressa nenhuma”, e perde-se na assim e que aquele cais para onde o
remédio. minho de um sítio ainda mais fundo, onde me vê, e isto é a mais pura verda- contado que vim da Lua ou assim. noite “como quem se perde na boca senhor Mayol desceu carregando uma
Nha Cleide começa a riscar fósforos e mais a sul, assim que eu me levantei e de, sou apenas o personagem de um E não posso levar-lhes a mal. No fun- do inferno”. Não volta a ser visto e o maleta lhe tivesse parecido a materia-
a acender as velas pousadas em cima me vim embora para escrever aquilo romance no qual se conta apenas a do, a minha situação é muito pior do seu futuro fica, desse modo, envolto lização do porto metafísico que tinha
do balcão de alumínio. Eu saio para que me contou, mesmo se me garan- primeira parte da minha história, da que ter vindo da Lua, já que lhes pare- em bruma, como se o catalão se ti- imaginado e perseguido desde que
a esplanada onde o vento não chega. tiu precisamente o contrário, que já minha viagem vertical. E, por isso, sou ce que, de algum modo, eu continuo vesse esfumado misteriosamente; ou iniciara a viagem, quanto mais não
Federico Mayol está sentado na sua não precisa de ir a mais lado nenhum; também como um personagem para a viver no mundo da Lua. E ainda há como se tivesse passado a existir num seja porque dali se avistavam, de am-
mesa, imóvel, os olhos e os óculos que a ilha e aquela esplanada são, en- além do livro onde existia antes, fora esta questão do vento, que ninguém limbo onde nada acontece e o vento bos os lados, as palmeiras “que às ve-
apontados à página do grande livro fim, o fim de linha da viagem que em- da única realidade em que podia ser, percebe. Nem eu. não sopra. Se calhar, isto sucede com zes parecem saxofones e noutras lem-
inesgotável ou infinito, não me im- preendeu quando decidiu ir ao fundo pensar e sentir o vento. Se acreditei em alguma coisa? Não todos os personagens de todos os li- bram a silhueta de Kim Novak”.
porta. Sento-me também, numa mesa de si mesmo. Se mo têm dito noutras circunstân- sei. Mas não posso dizer que tenha vros quando as histórias chegam ao Antes de me vir embora para contá-
contígua, ele interrompe a leitura — Creio que estava determinado que cias, ou com palavras diferentes, eu ficado imediatamente convencido. fim, mas não tenho como ter a certe- -lo, de ter abandonado a esplanada do
para olhar para mim. Aproveito para viria até Cabo Verde e, por isso, preci- também não teria acreditado no que Fiquei, digamos, interessado ao ponto za. Excetuando Federico Mayol, nun- snack-bar do Calhau, olhei ainda para
reclamar do calor e, constatando a ir- sava absolutamente de o fazer, expli- ouvia. Talvez até me tivesse rido. Te- de, depois de ter saído dali, ter des- ca encontrei outros personagens fora o grande livro em cujas páginas Nhô
relevância dessa observação, acrescen- cou. nho o péssimo hábito de me rir das carregado para o telefone o pdf de dos respetivos romances. Dico tinha voltado a pousar os olhos.
to, como para me justificar, que O senhor Mayol expressa-se de uma pessoas que declaram e fazem coisas A Viagem Vertical, o romance de Ainda que isto possa parecer absurdo Nele se lia uma frase que dizia assim:
— Não corre aqui uma brisa. forma peculiar e confusa, misturando um pouco tolas, sobretudo quando, Enrique Vila-Matas do qual Federico e totalmente deslocado do sentido co- “Vivo sempre no presente. O futuro,
— Também já lhe contaram, não foi? o Catalão, o Espanhol, o Crioulo do como sucede com certos políticos Mayol é o personagem principal. Li-o mum, estou hoje razoavelmente con- não o conheço. O passado, já o não te-
Aquiesço por não me parecer decente Sotavento e o Português. Fala, pois, muito circunspectos e senhores dos no avião, na viagem de regresso, e ain- vencido de que Nhô Dico e Federico nho. Pesa-me um como a possibilida-
fazer outra coisa. um Crioulo esquisito e não posso, seus narizes, são capazes de proferir da não sei muito bem o que pensar de Mayol são a mesma pessoa; e que a de de tudo, o outro como a realidade
— Por aqui fala-se demasiado de coi- por isso, estar seguro de ter percebi- tiradas muito cómicas com o ar mais tudo isto. personagem de Vila-Matas continuou de nada. Não tenho esperanças nem
sas com tão pouco assunto, diz. do bem aquilo que ele disse. Também solene do mundo. Mas esse não era o No livro, o septuagenário Federico a viagem vertical para além daquilo saudades.” Supus, por isso, que não
— Se calhar. arrasta muito a voz, como costuma caso do senhor Mayol. Não havia nele Mayol empreende uma viagem de que está narrado no romance, apro- ter vento possa ser uma coisa seme-
Eu não queria importunar o velho ho- acontecer a quem já bebeu demais, qualquer solenidade, e nem sequer Barcelona ao Porto e, a partir daqui, fundando ainda mais esse mergulho lhante a não ter passado, esperanças
mem e dispunha-me apenas a obser- e foi assim que me comunicou a opi- parecia muito seguro do que dizia. sempre na vertical, sempre para bai- geográfico e metafísico, tendo-se ou saudades.
vá-lo enquanto lia. Agora, porém, pa- nião segundo a qual não há sítio mais Parecia, aliás, que duvidava da histó- xo, segue para Lisboa e para a ilha da detido quando chegou à ilha de São Anoitecia quando entrei para saldar
rece-me que Federico Mayol ali estava parecido com o fim do mundo do que ria que tinha para contar, ou que não Madeira, depois de ter sido obrigado Vicente e se viu diante da montanha a conta com Nha Cleide. A bruma do
sentado à minha espera; que aguar- Cabo Verde, e que só aqui um homem achava possível que eu acreditasse pela sua mulher a abandonar o lar que parece o rosto de um deus pou- deserto vinha chegando e o catalão
dava apenas a chegada de alguém a pode afundar-se de modo perfeito e nela. Olhei para dentro do snack-bar um dia depois de terem comemorado sado no lugar mais fundo, olhando seguiu-me. O vento, que soprava lá
quem pudesse contar a história toda, radical. e perguntei se as bodas de ouro. O romance inter- para o céu infinito, para o mais alto fora, não passou da porta e nenhuma
ou a parte dela que ainda não tinha — Espero que entenda o que estou a — Já lhes contou isso a eles? rompe-se no Funchal, numa livraria. de tudo. Vendo bem, não custa nada das chamas das velas se agitou.
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RL #35 | AO LARGO

LUGAR DOS LIVROS

Título: O Algarve na época Moderna. Miunças 2.


Autor: Joaquim Romero Magalhães
Título: As Mil Cores do Sorriso de Maria
Autores: Ana Daniela Soares, Ana Luísa Costa, João Carlos
EDIÇÕES
ALMEDINA
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra e Universidade Ramos
do Algarve Ilustração: Ana Daniela Soares
Série Investigação. Coimbra 2012 Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra
Coleção Descobrir As Ciências. Coimbra 2012
Título: As Três Religiões do Livro
Coordenação: João Gouveia Monteiro, Anselmo Borges Título: Grandes Conflitos da História da Europa: De
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra
Série Documentos. Coimbra 2012
Alexandre Magno a Guilherme ‘O Conquistador’
Autor: João Gouveia Monteiro CES | 2012
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra
Título: Do oitavo passageiro ao clone número oito Série Investigação. Coimbra 2012
Autora: Elsa Rodrigues
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Título: Manual operacional para missões periciais forenses
Série Investigação. Coimbra 2012 realizadas por equipas médicas na investigação e documen-
tação de casos de alegada tortura
Título: Três Peças Mitocríticas. Volume 1. Um Édipo Vários Autores
Autor: Armando Nascimento Rosa Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra/Conselho
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Internacional para a Reabilitação das Vítimas de Tortura
Coleção Dramaturgo. Coimbra 2012 (IRCT)
Coimbra 2012
Título: Ordenamento e Desenvolvimento Territorial
Autor: Paulo Carvalho Título: Análise dos media “Dicionário das Crises e das Alternativas”
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Autora: Isabel Ferin Cunha
Série Ensino. Coimbra 2012 Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Edições Almedina/CES | 2012
Série Ensino. Coimbra 2012
Título: Lições de Direito Administrativo. 2.ª edição Concebido pelos investigadores do Cen-
Autor: José Carlos Vieira de Andrade Título: Manual de Computação Evolutiva e Metaheurística tro de Estudos Sociais (CES) da Univer-
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Coordenação: António Gaspar-Cunha, Ricardo Takahashi,
Série Ensino. Coimbra 2012 Carlos Henggeler Antunes sidade de Coimbra – Laboratório Asso-
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra/Editora da ciado, com o objetivo de se converter
Título: Teoria da Arte no Século XX Universidade Federal de Minas Gerais num instrumento útil para os cidadãos,
Autora: Isabel Nogueira Série Ensino. Coimbra 2012 o “Dicionário das Crises e das Alternati-
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra
Série Ensino. Coimbra 2012 Título: Portugal e o Piemonte: a Casa Real portuguesa e os Sa- vas” pretende auxiliar os portugueses a
bóias. Nove séculos de relações dinásticas e destinos políticos descodificar um quotidiano informativo
Título: Memórias Políticas. Memória das coisas mais notáveis (XII-XX). que a cada dia se torna mais intrincado
que se trataram nas Conferências do Governo destes Reinos Coordenação: Maria Antónia Lopes e Blythe Alice Raviola e complexo, fruto da crise internacional
(1810-1820) Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra
Autor: Ricardo Raimundo Nogueira Série Investigação. Coimbra 2012 que condiciona a sua vida. Desta forma,
Transcrição, estudo e edição de Ana Cristina Araújo espera contribuir para a melhoria da
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Título: A escola primária como rito de passagem: ler, escrever, qualidade da informação disponível,
Série Documentos. Coimbra 2012 contar e se comportar ampliando simultaneamente o debate
Autora: Carlota Boto
Título: A Universidade de Coimbra e o Brasil Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra público sobre as problemáticas existen-
Coordenação: José Pedro Paiva, José Augusto Cardoso Série Investigação. Coimbra 2012 tes. Sublinha, assim, a necessidade de
Bernardes descodificar conceitos e os tornar aces-
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Título: Escrever com normas síveis, para que a sociedade portuguesa
Coimbra 2012 Autora: Julce Mary Cornelsen
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra possa pensar soluções alternativas para
Título: Regional and Local Responses in Portugal: in the Série Ensino. Coimbra 2012. os problemas com que se confronta.
context of marginalization and globalization Conta com mais de duas centenas de
Coordenação: Fernanda Cravidão, Lúcio Cunha, Norberto Título: JOELHO - Revista de Cultura Arquitectónica, n.º 3. entradas, elaboradas por mais de 100
Pinto dos Santos Viagem-Memórias: Aprendizagens de Arquitectura
Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra Coordenação: Alexandre Alves Costa e Domingos Tavares autores, e afirma-se como a primeira
Série Investigação. Coimbra 2012 Edição: e|d|arq. Coimbra 2012 grande iniciativa do Observatório sobre
Crises e Alternativas do CES.
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RL #35 | AO LARGO
APOCALÍPTICOS
E INTEGRADOS

Se em 1964 era apenas títu-


lo de um livro publicado por
Umberto Eco, desde então
tornou-se uma expressão de
uso corrente, uma espécie
de oposição quase prover-
bial. Originalmente, o escri-
tor propunha a divisão das
reações perante a cultura de
massas e as indústrias cul-
turais nas duas categorias
referidas: de um lado, os pri-
meiros, que consideravam que
a massificação da produção e
consumo constituíam a perda
da essência da criação artísti-
ca; do outro, os que acredita-
vam estar-se perante enormes
avanços civilizacionais, de uma
efetiva e criadora democrati-
zação da cultura.

Juntando Arte(s) e Ciência(s)


no mesmo plano, esta edição
da Rua Larga percorre os inú-
meros pontos de encontro des-
tas duas áreas do saber, numa
dimensão dialógica entre a
improbabilidade e o óbvio.
Haverá, de facto, uma relação
simbiótica entre as duas ou a
presença de uma dentro da
outra não é tão óbvia quanto
parece?
M Ú S I C A E C I Ê N C I A

JOSÉ CAMPOS*

Todos nós começamos por ouvir o coração e a respira-


ção da nossa Mãe, antes de nascermos. É de certeza o
primeiro som que ouvimos, mesmo antes de termos nas-
cido e de termos a consciência disso. É aqui que começa
a nossa viagem pela música, a “arte das musas”.
Todos ouvimos sons. Quando somos crianças, a repeti-
ção dos sons e a repetição da correlação entre os sons
e as singularidades que começam a preencher a nossa
vida, faz com que estes sejam sucessivamente memorizá- Figura 1. Exemplo de registo sonoro de um “AH!”.
veis, identificáveis e geradores de emoções. Passa-se de
se ter uma sensação para se ter uma sensição1 de som
(sensação gerada pela “memória” do som sem que este
realmente esteja a ser ouvido). Mais tarde aparece a
consciência dos sons e das emoções geradas por eles 1,2.
Nasce assim a música como a arte de transmitir pensa-
mentos ou emoções por meio de sons.
Um som mais não é do que uma perturbação (onda) de
pressão no meio que nos rodeia (vd. Figura 1), captada
pelos ouvidos e reconhecida por um sistema complexo
e integrado que termina no cérebro 3 (vd Figura 2). Po-
demos convencionar que essa perturbação, de caracter
vibratório, tem como características principais a altura
(maior ou menor frequência de vibração), a duração, a
intensidade (maior ou menor amplitude de vibração) e
o timbre (conjunto de fluctuações aleatórias, de grande
frequência, próprias de cada gerador de som, que nos
permite reconhecer a sua fonte).
Figura 2. Representação espacial de frequência sonora. 3
Tentando estabelecer uma escala de tempo, podemos
dizer, sem grande erro, que o primeiro som ocorreu há
muitos milhares de milhões de anos (Big Bang), numa
altura em que a noção de som-música não faz sentido.
Também no tempo dos dinossauros não faz sentido fa-
larmos de música, porque o ouvido não é humano. Só nossa Universidade - vd Figura 3) que podemos dizer que
podemos dizer que a música apareceu há menos de a música aparece como uma das artes liberais. Eram con-
50 mil anos (justificada pelo aparecimento de instru- sideradas como as disciplinas próprias da formação de
mentos musicais rudimentares). Mas é só na Idade Mé- um homem livre, fora das suas preocupações quotidia-
dia, com as universidades medievais (em que se inclui a nas e profissionais. Figura 3. Mapa das universidades medievais.
Estavam agrupadas no Trivium e no Quadrivium (vd. Quando se fala destes estudos racionais e sistematiza-
Figura 4). O Trivium concentrava o estudo do texto li- dos, lembramo-nos sempre do Padre Jesuita Athanasius
terário, por meio de três ferramentas de linguagem Kircher4 (1601-1680) e da sua Arca Musaritmica (vd. Figura 5).
associadas à mente (a lógica, a gramática e a retórica).
O Quadrivium englobava o ensino do método científico Mas face aos estudos apresentados, quase sempre de ca-
por meio de quatro ferramentas relacionadas com a ma- riz filosófico, a associação da música com a ciência tem
téria e com a sua quantidade: a aritmética (a teoria do alguma razão de ser? A resposta é sim - vem da necessi-
número), a música (a aplicação da teoria do número), dade de escrever, analisar e reproduzir uma sucessão de
a geometria (a teoria do espaço) e a astronomia (a apli- silêncios e de sons, com frequências muito particulares,
cação da teoria do espaço). No âmbito do Quadrivium, a relacionadas entre si.
música é entendida como o estudo dos princípios musi-
cais, como a harmonia, não devendo ser confundida com 1. Audibilidade, sucessão de sons e nascimento da polifonia
a música instrumental aplicada. O ouvido humano capta sons com um espectro de fre-
quências que vão de cerca de 20 Hz a 20 000 Hz (fre-
quências por segundo). Mas a sensibilidade do ouvido
varia consoante a frequência, como se pode ver na Figu-
ra 6. Por outro lado, o ouvido humano tem um tempo
de resposta, de cerca de uma décima de segundo, a uma
nova solicitação auditiva (o que faz com que não sepa-
re sons que surjam com intervalos inferiores de tempo).
Como o som se desloca no ar a uma velocidade média de Figura 5. Arca Musaritmica.C

340 m/s (e o ouvido só reconhece uma nova solicitação


desde que esta seja com um intervalo superior a uma dé-
cima de segundo), são necessários 34 metros para o som
“ir e voltar” e o ouvido distingui-lo como um som novo –
Trivium – lógica, gramática e retórica. assim nasce o eco que todos conhecemos.

Quadrivium – Aritmética, Música, Geometria, Astronomia.

Figura 4. Figuras das artes liberais


(de Umberto Eco “Arte e beleza na estética medieval”, 1987).

Figura 6. Campo auditivo humano. 5


Quando o Homem, na sua história, passou de mosteiros a ca- inteira de 2), muito útil para a presente geração digital.
tedrais, a distância crítica de 17 metros (entre a voz humana Nem sempre foi assim. Antes deste standard quase todos os
e a parede refletora) foi ultrapassada (para dar os 34 metros países seguiam a recomendação da Áustria: “lá” a 435 Hz.
de viagem, para o som “ir e voltar”). Qualquer cantor podia É este o caso do órgão da Capela de S. Miguel da Universidade
então sobrepor um som novo ao antigo, que estava a viajar (vd. Figura 8).
pela catedral, e assim ouvir dois ou mais sons ao mesmo tem- Em 1936, a American Standards Association recomendou a sua
po (polifonia). Convém, aqui, referir que, para se obter um eco passagem para os 440 Hz. Só em 1955 a International Organiza-
persistente, não é sempre necessário um edifício muito gran- tion for Standardization (ISO) aprovou (e confirmou em 1975)
de - uma arquitetura e um revestimento adequado ao eco são Figura 7. Batistério de Pisa, em Itália.
esta frequência como ISO 16.
reconhecidas, desde sempre, no Batistério de Pisa, em Itália, Mas não é fácil resolver este problema em instrumentos antigos
aonde um som se mantém ecoando durante muitos segundos – para fazer esta afinação no órgão da Capela, teriam de ser cor-
(vd. Figura 7). tados os tubos e as palhetas teriam de ter outros suportes, o que
não é aceitável (vd. Figura 9). Também o sistema pneumático
Agora, com a polifonia de sons “soando” ao mesmo tempo, é (vd. Figura 10), que conserva o fole original com pressões muito
necessário não só estabelecer regras de coexistência e har- baixas (a pressão do fole é de 105 mm “coluna de água”), poderia
monia, entre sons coexistentes, como também definir qual a não ficar ajustado ao temperamento do órgão.
frequência do som de referência, para se afinarem todos os Resolvido o problema da escala bem temperada (com notas
Figura 12. Página do 1.º Prelúdio do Cravo Bem Temperado, de Bach.
instrumentos com uma mesma referência. bem definidas e ajustadas), é consensual admitirmos que de-
A escala Pitagórica de frequências sonoras já era conhecida terminados sons podem ser consonantes e outros dissonantes,
desde a Antiguidade. Baseia-se na relação entre o comprimen- de acordo com intervalos definidos5 (vd. Figura 11).
to de uma corda vibrante e frequência do som por ela emitido. O registo das notas características fundamentais para cada
Assim, se esticarmos uma corda e a fizermos vibrar, ela emite tonalidade vem imediatamente como uma necessidade –
um som com uma frequência determinada. Se dividirmos o assumem-se como notas principais a tríade tonal (a tónica,
seu comprimento ao meio, ela emite um som com uma fre- a terceira e a quinta). Bach, no exemplo do 1.º Prelúdio do
quência dupla da anterior (que corresponde, na música, ao Figura 8. Orgão da Capela de S. Miguel.
Cravo Bem Temperado, servindo de lição para um dos filhos,
intervalo de oitava – oito notas que servem de base à escala Figura 9. Vista de tubos e suporte palhetas do órgão da Capela de S. Miguel.
mostra como estas notas de referência se podem repetir ma-
diatónica, correspondendo no piano a oito teclas brancas su- Figura 10. Vista de ventilador e fole do órgão da Capela de S. Miguel.
gistralmente (vd. Figura 12).
cessivas (e aos nossos oito dedos das duas mãos, excluindo os
polegares). O nosso ouvido distingue muito bem o intervalo Atualmente, com o evoluir da escala cromática (12 meios tons
de oitava, porque corresponde a uma frequência de base e ao distribuídos equitativamente num intervalo de oitava), uma
seu dobro, atuando na mesma zona do ouvido interno. escala pode ser representada por uma circunferência dividi-
Se continuarmos a dividir a corda, agora em três partes, en- da por 12 arcos sucessivos. Nesta configuração, um brilhan-
contramos um som com uma frequência que corresponde te matemático contemporâneo (especialista em topologia),
à quinta nota da nossa escala de oito, se bem que na oitava Guerino Mazzola, resolveu inscrever tríades tonais sucessivas, Figura 13. Tríades tonais e sua representação no espaço cromático.
superior. Se duplicarmos o comprimento da parte vibrante tendo por base uma escala diatónica maior de dó, segundo tri-
da corda, de um terço para dois terços, passamos para a nota ângulos inscritos (vd. Figura 13). Podemos assim ver que triân-
equivalente na escala inferior. gulos correspondentes a conjuntos consonantes e dissonantes
E assim por diante se podem estabelecer as oito notas da es- têm configurações diferentes (vd. Figura 13).
cala. Para sistematizar este processo, mostramos, no quadro
seguinte, a relação matemática entre a divisão da corda, as Figura 11. Teoria da sensação de consonância e dissonância.
De todas estas definições, correlações e integrações, ainda fal- [1] Nicholas Humphrey, 2011. “Poeira da alma – a magia da consciência”,
notas e as frequências obtidas (baseadas no “lá”). Assim, nas- ta falar do “timbre” como as pequeníssimas frequências escon- edições Gradiva, fevereiro de 2012, Portugal.
cem escalas com notas de frequências bem definidas entre si. didas nas frequências dominantes de um som. [2] Oliver Sacks, 2007. “Musicofilia – histórias sobre a música e o cére-
Referência Intervalo Exemplo Relação à
Os intervalos (de frequências) gerados deste modo permiti- Harmonica Nota frequência E ainda falta falar, também, das fluctuações aleatórias na acústica bro”, edições Antropos, Relógio d’ Água Editores, dezembro de 2008,
ram, mais tarde, a escala bem temperada do mundo ocidental, Divisao da Frequência original musical. Estas estão para o som como a cor está para a pintura. Portugal.
que se tem expandido pelo mundo todo. corda vibrante
E música viva é aquela em que os sons são tudo menos uma [3] Roberts, T.P.L. and Poeppel, D, 1996. “Latency of auditory evoked

1 Tónica (Fundamental) lá2 - 110Hz 1x


frequência bem definida, uma intensidade sempre constante M100 as a function of tone frequency”, NeuroReport 7 (6), pp. 1138-1140.
A outra questão que ficou por resolver foi a frequência do som 2 Oitava lá3 - 220Hz 2x ou um som monótono e enfadonho. Música viva é aquela em [4] Kircher, Athanasius, 1650. “Musurgia Universalis”, vol. II, pp. 185.
de referência, de base da escala musical. Qualquer músico 3 Quinta perfeita mi3 - 330Hz 3x que glissando faz assustar, um ornamento faz sorrir e um vibrato [5] Michels, Ulrich, 1977. “Atlas de Música. I-Parte sistemática, Parte histó-
quando pede “a nota” para afinar o seu instrumento pede o 4 Oitava lá4 - 440Hz 4x faz emocionar. Música viva é muito facilmente contagiante, rica (dos primórdios ao Renascimento) ”, edições Gradiva, 2003, Portugal.
5 Terceira Maior dó#4 - 550Hz 5x
“lá”, que corresponde à frequência de 440 Hz. Esta frequên- mas é muito dificilmente descritível. Talvez seja melhor parar [6] Guerino Mazola, 2008, “Concepts locaux et globaux. Deuxième partie:
6 Quinta perfeita mi4 - 660Hz 6x
cia foi definida por ser a que permite que o “dó” (de re- 7 “Sétima perfeita” sol4 - 770Hz 7x por aqui. Estuda-se cientificamente a música. Mas como faz Théorie fonctorielle“. U & ETH Zürich, Internet Institute for Music Scien-
n
ferência) tenha uma frequência de 2 =512 Hz (potência 8 Oitava lá5 - 880Hz 8x sonhar, não se sabe verdadeiramente. ce, guerino@mazzola.ch, www.encyclospace.org.
CIÊNCIA E ARTE: TR ÂNSITOS
JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO*

Começaremos por analisar as dife- co na medida em que surge em subs- sua metodologia, valorizando, como
renças entre arte e ciência no campo tituição do modelo religioso, outrora refere Pedro Barbosa (1995) 3, a “cria-
da receção. Desde logo assume-se resposta incontestada às dúvidas que ção científica, em vez da descoberta ou
que a arte assenta numa ideia de fic- o mundo colocava. mesmo da pesquisa científica”: o racio-
ção e de criação, o que a remete para Interessante seria, se tivéssemos es- nalismo alimenta-se da imaginação.
o lugar dos objetos sem utilidade paço, aprofundar a proximidade Diríamos que arte e ciência se consti-
pragmática; ao contrário, a ciência destes dois modelos ao nível da dis- tuem como cognições e estabelecem,
impõe-se pragmaticamente como cursividade. A época religiosa pré- com o recetor, ora pactos ficcionais
uma visão incontestada do mundo. -científica (chamemos-lhe assim, ora pactos racionais.
Claro que o facto de vivermos num à falta de melhor), a Idade Média,
tempo em que a tecnologia (braço usava a língua como arma para afir- O problema que se coloca é quan-
armado e visível da ciência) nos pro- mação de uma cosmovisão de que do o cientista e o artista cruzam as
mete um fantástico mundo novo, essa ninguém duvidava; na actualidade, suas práticas. Mais problemática é a
“vacilação experimentada por um o aparato discursivo científico é ele vontade institucional (verificável nos
ser que não conhece mais que as leis próprio encriptado, inacessível ao ci- programas de apoio às ligações entre
naturais, frente a um acontecimen- dadão comum, usando gíria técnica. arte e ciência) de criar um campo es-
to aparentemente sobrenatural” 1, Ambas se operacionalizam de mo- pecífico de ação, que tem surgido de
acrescenta um peso decisivo ao po- dos semelhantes na aproximação ao forma corporativa, no qual o cientis-
der cultural da ciência. De certo real; Karl Popper comparou o grande ta recebe o artista que passa a residir
modo, é neste campo nebuloso que teorizador (na ciência) ao grande artis- no laboratório. A expressão deste
a ciência adquire uma aura reden- ta 2 porque ambos se deixam condu- encontro (fortuito?) tem resultado, Damien Hirst (“The Phisical Impossibility of
tora e instaura uma fé científica no zir pela imaginação e pela intuição. grosso modo, em objetos estéticos Death in the Mind of Someone Living”, 1991
crente dos nossos dias. O seu poder É pois, longe do positivismo, que a ou meios infográficos, que operam
joga-se também na esfera do simbóli- ciência contemporânea encontra a na superfície das coisas.
O fascínio que alguns artistas têm pela refere também a possibilidade da ima-
imagiologia do cérebro - para citar um gem resistir à morte.
exemplo comum - alimenta alguma da Enfim, será que podemos sempre di-
produção nesta área, criando um equí- zer com Courbet que a “Olympia” de
voco campo artístico. A imagiologia é so- Manet 7 era uma Dama de Copas a sair
mente uma tecnologia médica, tomá-la do banho ou com Bacon, quando referiu
como um instrumento artístico é uma a obra de Pollock como decorativa ou,
atitude formalista e inconsequente. Mes- simplesmente, deixar passar o tempo
mo que nos fossem dadas a ver 365 res- sobre as obras? As obras também se afir-
sonâncias magnéticas de um artista, de mam pela sua resistência à infirmação.
um doente mental ou de um presiden-
te, mesmo assim, estaríamos perante * Artista/Professor da Faculdade de Ciências
uma obra de arte? Será de considerar a e Tecnologia da Universidade de Coimbra
afirmação de Alain Badiou (1998) 4 na
problematização do trânsito entre arte 1- TZVETAN, Todorov (org.), Literatura e
e outros campos do saber: “(…) a relação Realidade (Lisboa: Dom Quixote, 1984).
da psicanálise com a arte é sempre apenas um 2- POPPER, Karl, Em Busca de um Mundo Me-
serviço prestado à própria psicanálise. Um lhor (Lisboa: Fragmentos, 1992).
serviço gratuito da arte.” 3- BARBOSA, Pedro, Metamorfoses do
Noutra dimensão estarão os projetos Real (Porto: Afrontamento, 1995).
artísticos que estabelecem ligações re-

Nicholas Nixon, “The Brown Sisters, 1975-2007”


4- BADIOU, Alain, Pequeno Manual de
missivas a diferentes campos do saber, Inestética (Lisboa: Piaget, 1998).
incluindo a ciência. Dois exemplos: o tu- 5- HIRST, Damien, The Phisical Impossibility of
barão em formol de Damien Hirst 5 que Death in the Mind of Someone Living (1991) Tiger
remete para as taxonomias científicas e shark, glass, steel, resin, silicone and formaldehyde
para a perpetuação do corpo através da solution.
imagem ou as fotografias de Nicholas 6- NIXON, Nicholas, The Brown Sisters (1975-
Nixon 6 da sua mulher e cunhadas, fo- 2007). Trinta e duas fotografias, impressão
tografadas anualmente, nos últimos gelatina prata, 19.6 x 24.4 cm.
30 anos, sempre na mesma posição, pre- 7- FRIED, Michael, Manet’s Modernism:
figurando um método científico, com or, The Face of Painting in the 1860s (Chicago:
variáveis imutáveis que, à sua maneira, University Of Chicago Press, 1998).
Milhares de estudantes formados pela Universidade
de Coimbra, espalhados pelo País e pelo Mundo,
nas mais diversas áreas da sociedade, reunidos
agora na mesma Rede.

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esclarecimento adicional, ou para o estabelecimento
de futuras colaborações, A/C Dr.ª Isabel Marques:

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U S E A S E S C A D A S

Uma iniciativa da UC para:

• sensibilizar a comunidade universitária a


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• diminuir o impacto ambiental decorrente


da utilização de elevadores.

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