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A obra “O centauro no Jardim” escrita por Moacyr Scliar, escritor brasileiro, médico e

professor, descreve a história de Guedali, um centauro, que rememora o passado


relatando desde seu nascimento em Quatro Irmãos e seus galopes pelos pampas
até a cirurgia no Marrocos para extraírem suas partes equinas, com o intuito da
busca de si próprio.

Guedali nasce centauro e seu “defeito” genético o obriga a viver cercado de


segredos, “Há muita coisa desconhecida dentro de mim, muitos segredos.” (Pg. 10),
ele é o diferente, o solitário, o estranho. Podemos afirmar assim que, o centauro
descrito no livro ilustra os judeus um grupo étnico/cultural perseguido ao longo dos
tempos, e inclusive dentro do livro, e que, com frequência, desenvolvem
sentimentos de inadaptação e de estranhamento em relação à realidade. A escolha
de centauro para a representação se daria por uma razão do centauro ser dividido
em duas partes, a parte superior é humana e a inferior equina, fazendo referência a
divisão dos judeus, também, como pessoas normais (parte superior), mas que são
classificadas diferentes por questões étnicas e religiosas (parte inferior).No entanto,
essa divisão poderia relacionar-se também por Guedali e sua família serem
imigrantes, ou até pela diferença do Rio Grande do Sul com o resto do país.

É possível notar-se que a história é situada entre a fábula e o realismo, em que uma
das percepções seria o centauro como a parte fantasiosa da história e o judeu a
parte realista.

Já analisando a questão do individualismo e coletividade, é perceptível como a


coletividade, representada pela sociedade, interfere no individual. Verifica-se que a
necessidade de encaixe na sociedade faz com que Guedali e Tita modifiquem-se
inteiramente, apenas para não serem taxados como estranhos “Somos, agora,
iguais a todos. Já não chamamos a atenção de ninguém. Passou a época em que
éramos considerados esquisitos.” (Pg. 7). O alívio de Guedali em ser igual a todos
reafirma que ele acredita que sua realidade agora é uma verdade e não uma ilusão
fantástica como pareceu ser toda sua existência até então.

No entanto, os acontecimentos que possibilitam a apresentação dele a sociedade


como alguém normal, traz questões individuais e um desejo de voltar às raízes. A
retirada – perda – das suas partes equinas equivale à perda das raízes de sua
ancestralidade. E esse conflito de Guedali de, ora querer ser humano, ora querer
ser centauro., remete exatamente a ligação dele com o judaísmo, que por uma vez
é quase esquecido e por outra vez é retomado com forte influência. “Uma época
rezei muito.” (Pg. 61), “Sim, eu queria voltar a rezar.” (Pg 185).
Há, também, a figura do centauro como a representação do desejo de liberdade por
parte dos judeus contra as opressões sociais, simbolizado, no livro, pela figura do
cavalo alado, o ruflar das asas que persegue Guedali desde sua infância até sua
vida adulta, “Se o cavalo alado nos seguiu ou não — não sei. Nem uma só vez olhei
para fora.” (Pg. 99).

Há a harmonização do individualismo e coletividade, na amizade entre Guedali e


Tita e os outros casais, em que mesmo contendo uma intimidade, e mais tarde
morando todos juntos no Condomínio Horizontal, o ex-centauro e a mulher não
deixavam o “problema” individual se espalhar no coletivo, “Quando perguntava
sobre minha vida, respondia com generalidades, contava alguma coisa da família,
de nossa fazenda em Quatro Irmãos, da casa em Teresópolis. Mais além não
poderia ir sem cair em reminiscências de centauro.” (Pg. 109). Todavia, como
qualquer pessoa, retratando a realidade e Guedali como alguém real, nem sempre a
situação está ao nosso controle, e teve uma vez em que Guedali falara a verdade,
mas por sorte, estavam todos bêbados e ninguém o levou a sério, “. E aí descrevi
minha vida como centauro, contei como encontrara Tita, falei da operação. Quando
terminei fez-se um silêncio, só quebrado pelo tilintar do gelo nos copos.” (Pg 144)

No entanto, a sociedade, como coletividade, não é a única a intervir nas escolhas


individuais da personagem principal. Ocorre em diversos momentos da narração a
interferência individual por motivos coletivos. Por exemplo, Guedali vivia escondido
da sociedade enquanto morava com os pais por razões de proteção contra ataques
da sociedade “Durante o dia, eu tinha de ficar enclausurado — nem para o pátio o
pai permitia que eu saísse” (pg 44). Já vivendo com Tita, a mesma o influenciou, por
justificativas, também, individuais causadas pelo coletivo, a ir para o Marrocos,
realizar a cirurgia e virar humano, para assim, os dois amantes poderem levar uma
vida normal inseridos no corpo social, “Tita me mostrava numa revista uma
reportagem sobre um cirurgião marroquino que fazia maravilhas, transformando
mulheres em homens, e vice-versa — e por que não, ela perguntava, centauros em
pessoas normais?” (Pg. 81). E por último, Lolah, a esfinge, querer que Guedali se
transformasse em um homem-leão. “Não queria que eu me transformasse em
centauro. Queria que me operasse, sim; mas exigia que o médico me
transplantasse o corpo, não de um cavalo, mas de um leão.” (Pg. 176).

Por outro lado, analisando o item de fantasia e realismo, é viável a associação do


livro com a atualidade, o livro simbolizando a fábula e a atualidade o realismo. A
bizarrice do centauro, tão tratada no decorrer da história, remete, no concreto, a
adolescência, por exemplo. O estranhamento que Guedali tem de seu corpo, “Aos
poucos a sensação de diferença, de bizarria, me impregna, incorpora-se ao meu
modo de ser; antes mesmo da pergunta — inevitável e temível: por que sou assim?
O que aconteceu, para que eu nascesse deste jeito?” (Pg. 29), muitas vezes ocorre
com adolescentes também, levando-os a indagações parecidas com as de Guedali,
e frequentemente, também, não possuem respostas.

Outra comparação com a vida real, pode ser efetivada quando nos deparamos na
história com um médico no Marrocos, famoso por realizar cirurgias de troca de sexo,
isso nos anos 1950, o que é claramente uma fantasia do livro, já que naquela época
não era aceitável uma mudança tão drástica nas pessoas (aliás ainda nos dias
atuais não é algo naturalizado pela sociedade). Evidentemente o surreal dentro da
realidade.

Além de exemplos já citados, a alternância do realismo e fábula é encontrada nas


linhas finais do livro em que Tita conta uma versão da história que sugere ao leitor a
possível não-existência de nada daquilo que foi narrado, tornando toda a história do
centauro em possíveis alucinações e delírios da mente de seu marido, afetada por
uma doença séria; embora tivesse na memória o galope de um centauro. “O Guedali
de quem fala me é tão irreal quanto o seria um centauro para qualquer pessoa. A
história que Tita narra, contudo, é bem verossímil: não há centauros nas cenas
equestres que descreve. Há um menino nascendo no interior do município de
Quatro Irmãos, Rio Grande do Sul; mas nenhum cavalo alado voa sobre a casa de
madeira no momento do parto.” (Pg. 200)

Conclui-se que, apesar da alternância entre fábula e realismo, o livro é um retrato do


que a sociedade por vezes conduz o indivíduo, tornando-o uma figura lendária em
um mundo opressor e onde a impossibilidade de se galopar e seguir em frente,
torna-se cada vez mais difíceis. Porém, o livro nos traz o entendimento de que “Vida
sem desafio não vale a pena.” (Pg. 8) e que, por pior que seja o momento deve-se
continuar vivendo “Jogando ou não violinos no rio, tentando ou não me matar,
encontrando e perdendo um amigo, vou vivendo. (Pg. 34), pois o livro nos traz o
humanismo, os sentimentos e indagações, evidenciando a divisão e o dualismo da
vida, entre o real e o imaginário.

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