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O SABER E A CEGUEIRA: Affonso Romano de Sant’anna

Jornal O GLOBO, 20 de novembro de 2004

Afonso Romano de Sant'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (1)

Primeiro esta lenda: "Era uma vez uma praga que atingiu os mongóis.
Os saudáveis fugiram, deixando os doentes e dizendo: 'Que o Destino
decida se eles vivem ou morrem'. Entre os doentes havia um jovem chamado
Tarvaa. O seu espírito deixou o corpo e chegou ao lugar dos mortos. O
governante daquele lugar disse a Tarvaa: 'Por que deixaste o teu corpo
enquanto ainda estava vivo?'. 'Eu não esperei que tu me chamasses',
respondeu Tarvaa, 'simplesmente vim'. Comovido com a presteza com que o
jovem obedeceu, o Khan do Inferno disse: 'A tua hora ainda não chegou.
Deves retornar. Mas podes levar daqui o que quiseres'. Tarvaa olhou em
volta e viu todas as alegrias e todos os talentos terrenos: riqueza, felicidade,
riso, sorte, música, dança. 'Dá-me a arte de contar histórias', disse ele, pois
sabia que as histórias podem congregar as outras alegrias. E assim retornou
ao seu corpo e constatou que os corvos já lhe haviam arrancado os olhos.
Como não podia desobedecer ao Khan do Inferno, reentrou no próprio corpo
e viveu cego, porém conhecendo todos os contos. Passou o resto da vida
viajando pela Mongólia, contando contos e lendas e trazendo às pessoas
alegria e saber".

Sintomaticamente essa lenda começa mencionando "uma praga que


atingiu os mongóis" e termina revelando como o herói se tornou exemplar
contador de histórias. A exemplo de "O Decamerão", de Bocaccio, várias
narrativas se referem às pestes que antecederam o surgimento dos
contadores de história. No caso da narrativa italiana, um grupo de jovens se
refugia num determinado lugar por causa da peste e para passar o tempo
eles começam a contar histórias. Narrar é uma forma de sobreviver e afastar
a morte. Igualmente em "As mil e uma noites", as peripécias que Sherazade
vai desfiando noite após noite é o seu estratagema para postergar a sua
morte.

No caso da lenda mongol, além da peste como elemento disparador


dos fatos, há um dado singular: como todo personagem mítico, o herói
Tarvaa transita entre a vida e a morte, como se não houvesse separação
entre elas. É o herói mágico que vive no limiar, na fronteira entre dois
mundos. Adentrou-se na morte, mas estava vivo. Não esperou que o
chamassem para o outro lado - "simplesmente vim", diz ele, como se isso lhe
fosse natural. E como uma espécie de prêmio ou reconhecimento lhe é
conferido o direito de escolher o que quiser do mundo sobrenatural. Mas à
semelhança de outros heróis míticos, ele recusa as riquezas e opta por algo
bem mais modesto, algo que aparentemente é nada: contar histórias.
Em dois outros extremos, um religioso e outro literário, poderíamos
estabelecer um paralelo, com Cristo recusando tudo, toda a aparência de
poder e brilho que o demônio lhe ofereceu do pináculo do templo ou, no
episódio poético e metafísico da "Máquina do mundo" que apareceu ao poeta
(Drummond) oferecendo-lhe também a solução de todos os enigmas. Nesses
episódios, igualmente, há a recusa das aparências, do falso poder e do falso
saber. E assim como na mítica biografia do Rei Salomão, que ao ser
indagado, ainda jovem, o que mais queria, respondeu "sabedoria", o herói
mongol optou também por um tipo de saber & poder imponderável : viver no
fabuloso imaginário.
Mas nosso herói, como nos mitos, por ter se apressado, como se tivesse
cometido uma infração, é também punido. Enquanto dialogava com o Khan
do Inferno, do lado de cá onde havia largado seu corpo, os corvos comeram-
lhe os olhos. Mesmo assim ele reassume sua forma e seu papel no drama,
pois sendo cego ele conhecia já "todos os contos" e levava às pessoas
"alegria e saber". Ele não necessitava mais ver o exterior, a sabedoria
iluminava sua vida interior.

A cegueira e o conhecimento são dois termos que pontuam inúmeros


mitos. Ao invés de se anularem, esses dois termos se potencializam. Édipo,
por exemplo, na tragédia de Sófocles, nos dá dois elementos importantes
para esta análise. Primeiro a peça se inicia descrevendo, a exemplo do mito
mongol, o misterioso flagelo, "a pavorosa peste" que se abateu sobre a
cidade. Em segundo lugar , um dos pontos altos da tragédia é quando ao
"ver" que possuiu a própria mãe depois de ter matado o pai, Édipo cega-se
assombrosamente. Dir-se-ia que cegou-se para não ver. Mas numa
interpretação ultra-sofisticada de Heidegger, Édipo é aquele que se cegou
para melhor ver a sua patética situação.

Cegueira e (pré)visão. Do Cego Aderaldo repentista no sertão


nordestino à Grécia esses termos se complementam. "Furaram os óio do
assum preto prá ele assim cantar melhor", diz Luiz Gonzaga. Homero, diz-se,
era um bardo cego. E é comum aqui e ali encontrar o profeta, o sacerdote, o
xamã ou o pajé, sempre cegos, que de dentro de sua cegueira enxergam
melhor que a corte ou toda a tribo. É assim que Tirésias, o adivinho que
aparece em várias peças de Sófocles, sendo cego é o que pode narrar e pre-
ver. É ele quem revela a Édipo o que, antes de cegar-se, Édipo ignorava.
Tome-se agora esse extraordinário livro "Meu nome é vermelho" (Companhia
das Letras) do escritor turco Orhan Pamuk. A cegueira e a sabedoria são
dois temas fortes dessa obra, que estabelece o confronto entre a maneira
renascentista de pintar e o modo de conceber figuras e miniaturas nos
impérios persa, mongol e turco. Aí, como se estivessem revivendo mitos, os
pintores cultivavam a cegueira como forma de aperfeiçoar sua pintura.
Assim, "a cegueira não era um mal, mas a graça suprema concedida por Alá
ao pintor que dedicara a vida inteira a celebrá-lo; porque pintar era a maneira
de o miniaturista buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem igual só
pode ser alcançada por meio da memória, depois que o véu da cegueira cair
sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de trabalho duro. Assim, a maneira
como Alá vê o seu mundo só se manifesta por meio da memória dos velhos
pintores cegos".
Por isto no Islã antigo pintores apressavam sua cegueira pintando sobre uma
unha ou grão de arroz, ou fingiam-se de cegos, pois só os sem talento
precisavam dos olhos.
Talvez, por aí, se possa começar a entender a opção que faz o artista entre o
mundo imaginário, para ele mais real que o real, e o que os demais
denominam como realidade.

É preciso depois de ver, desver para que o real se realize.

*** Jornal O GLOBO, 27 de novembro de 2004

Afonso Romano de Sant'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (2)

Do "Ensaio sobre a cegueira", romance de José Saramago, o leitor tem


memória recente. Ele narra que num dia qualquer um cidadão diante do sinal
de trânsito fica desesperadamente cego. E começa, então, uma epidemia de
cegueira narrada longamente. Ao final do livro e do mergulho na escuridão os
personagens começam a emergir de novo para a visão recuperada. É uma
parábola de fundo ético, sobre os nossos tempos, com laivos de esperança,
como o próprio romancista assinalou em algumas entrevistas. Na última
página, usando aquela estranha pontuação o texto indaga: "Por que foi que
cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que
te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos
cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".
Na mitologia e na literatura há vários textos sobre o intrigante tópico da
cegueira e do (não) saber. Ainda agora recebo "Manual de instruções para
cegos"(7Letras/Funalfa), de Marcus Vinícius, um bem-elaborado livro de
poemas que atravessa essa questão. E a contadora de estórias Christina
Zembra me lembra o recente "Vozes do deserto" (Record), de Nélida Piñon,
em que a escrava Jasmine vai ao mercado de Bagdá ouvir histórias do
derviche cego, que, à maneira daquele herói mongol Tavaar, ao ficar cego
pediu a Alá que lhe desse algum dom que o fizesse sobreviver.
No entanto, um dos mais fortes e intrigantes textos sobre o tema que
estamos abordando é o conto de H.G. Wells, escrito em 1899, "Em terra de
cego", que pode ser encontrado em "Contos fantásticos do século XIX
escolhidos por Italo Calvino" (Cia das Letras). Curiosamente, lembro-me de
um jantar aqui no Rio em que, indagado por Marina Colasanti, Saramago
revelou que não conhecia o texto de Wells. Todavia, um estudo comparativo
entre ambos seria enriquecedor.
H.G. Wells (1866-1946) conta que, nos Andes, na região do Peru, havia uma
Terra de Cegos. Como em outras narrativas, a exemplo do mito mongol e o
"Édipo" de Sófocles, aos quais já me referi, a cegueira sobreveio como uma
peste, como punição para os "pecados da comunidade". Surgindo aos
poucos, a cegueira foi se manifestando nos habitantes daquela região até
que, ao cabo de 14 gerações, estavam todos sem visão e não tinham mais
sequer memória que um dia algum antepassado pudesse ter visto alguma
coisa. Porém, adestrados para sobreviverem, acabaram por se movimentar
normalmente nas montanhas, cultivavam seus alimentos e se reproduziam.
Como em muitos mitos, no entanto, um dia surge um forasteiro. Ah! O
forasteiro, esse que vem de fora, vendo o que a comunidade já não mais vê?
Pois esse forasteiro literalmente despencou ali na Terra de Cegos ao cair de
uns trezentos metros numa encosta gelada. Recuperando-se do acidente,
estava pasmo, admirando a espetacular natureza e o milagre de sua
sobrevivência, quando percebeu estranhas pessoas que, aos poucos,
descobriu, eram cegas. Vem-lhe à mente a expressão: "Em terra de cego
quem tem um olho é rei". E o que se desenrola a seguir é, em parte, para
provar (ou não) os limites dessa assertiva.

O forasteiro é levado ao ancião da tribo. Estabelece-se o confronto


cultural-biológico. Eles não entendiam o que ele queria dizer quando usava a
estranha palavra "ver". Decididamente possuía uma anomalia - a visão - que
tinha que ser curada. Estranhavam que ao guiá-lo pelos caminhos ele
afirmasse que não se preocupassem porque podia ver com os próprios
olhos. "- Não existe a palavra 'ver' - disse o cego. - Pare com essa loucura e
siga o som de meus pés". Mas o forasteiro retruca ao cego: "Nunca lhe
disseram que em terra de cego quem tem um olho é rei?". E o outro
responde: "- O que é cego?"

Faltava-lhes a visão e a palavra correspondente. Mas,


espantosamente, os cegos tinham lá sua sabedoria, sua filosofia, sua
religião. E o fato é que o estranho, o "outsider", tentou se adaptar, esforçou-
se por "ver" junto com os cegos, alongando os sentidos para que um
compensasse e ampliasse o outro. Diante das dificuldades de adaptação à
cegueira, dizia "Há coisas em mim que vocês não entendem" e passava a
descrever a beleza do mundo que conhecia, porém os cegos negavam aquilo
tudo. Há até uma cena de ameaça de luta usando pás entre aquele que vê e
os que não sabem que não vêem. A partir daí, o estrangeiro "começou a
perceber que não se pode nem lutar com ânimo contra criaturas que estão
numa situação mental diferente da sua".
Há uma primeira tentativa de fuga, de abandono daquela situação. Mas o
herói volta para dar a si e aos cegos nova chance. Decide tornar-se um
deles. Aceitar a cegueira para sobreviver. Começa a namorar uma bela índia.
Mas os nativos se preocupam que ele vá, com sua visão, corromper a raça.
Dizem-lhe que tem que ser operado. E o ancião lhe afiança que a cirurgia é
"bem fácil" e pode extrair-lhe "esses corpos irritantes" - os olhos.

Na véspera de abrir mão de sua visão, foi ao local de sacrifício para


despedir-se da pradaria, dos narcisos brancos, "mas enquanto andava
ergueu os olhos e viu a manhã, manhã como um anjo em armadura dourada,
descendo pelos picos? Pareceu-lhe que, diante desse esplendor, ele, e esse
mundo cego no vale, e seu amor, e tudo, não eram mais do que um poço de
pecado (?) Viu sua beleza infinita, e sua imaginação cresceu a partir do gelo
e da neve para as coisas lá longe, às quais iria renunciar para sempre". E
depois de descrever a riqueza do mundo fora da Terra dos Cegos, o texto
descreve o estado de graça do personagem: "ficou bastante quieto por ali ,
sorrindo como se estivesse satisfeito simplesmente por ter fugido do vale dos
cegos, no qual tinha pensado ser rei. O brilho do pôr-do-sol passou, a noite
chegou, e ele ainda estava quieto, deitado, em paz e contente sob as
estrelas frias e claras".

*** Jornal O GLOBO, 04 de dezembro de 2004

Afonso Romano de Santa'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (3)

Aconhecida lenda de Hans Christian Andersen "A nova roupa do


imperador" é uma variante do tópico que estamos estudando. Aqui não se
trata da cegueira biológica, senão da incapacidade de ver e do medo de
enfrentar o real. O conto de quatro páginas e meia tem tal força simbólica
que incorporou-se ao inconsciente coletivo da modernidade. Por isto, essa
história é dada como pertencente a vários folclores, como o português, onde
o menino que denuncia a nudez do rei é substituído por um estranho-
estrangeiro-negro. Seja como for, quando as pessoas dizem "o rei está nu"
estão denunciando o embuste em várias situações. Em relação à arte de
nosso tempo essa metáfora é a mais usual. Não há estudo sobre a arte atual
que não recorra a essa lenda. Por quê? Seria assunto para uma instrutiva
pesquisa.
Diz a história de Andersen (1805-1875) que houve um imperador que
gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as
do que cuidando das outras coisas do reino. (Já na abertura aparece este
tópico curioso, que podemos batizar de neofilia: a paixão pela coisa nova,
pela moda, pelo aspecto superficial, exterior, que fazia com que o imperador
se desinteressasse da realidade de seu reino). Isto propiciou que dois
espertalhões surgissem em suas terras dizendo que produziam uma roupa
que não apenas tinha cores deslumbrantes, mas que possuía uma qualidade
única: só pessoas muito especiais poderiam vê-la e que apenas pessoas
destituídas de inteligência, que não estavam aptas para ocupar cargos no
reino, iam dizer que a roupa era invisível ou que não existia.

Assim, estabeleceu-se um processo de seleção, quase um rito de


iniciação pelo qual o imperador poderia testar a inteligência de seus
auxiliares, pois só os escolhidos eram capazes de ver a roupa invisível que
ninguém via. Os falsos tecelões simulavam tecer panos no tear e iam
exigindo dinheiro e fios de ouro em troca. E como o monarca quisesse já
testar a inteligência de seus auxiliares, pediu ao velho ministro que fosse ver
como andavam as coisas. Lá chegando, o principal auxiliar do imperador
ficou perplexo, porque os teares estavam vazios. "Não consigo ver nada!".
Mas, temeroso de expressar seu sentimento, começou a ouvir a descrição
que os falsos costureiros faziam do tecido maravilhoso. E ele se dizia: "Será
que sou tão estúpido? Não vejo nada! Vai ver que sou inapto para o cargo
que ocupo". E como temesse perder o cargo e os tecelões do nada
cobrassem dele a visão que eles tinham, acabou declarando: "É
maravilhoso! Que padrões! Que cores! Vou dizer ao imperador que fiquei
encantado".

Além da trapaça financeira, observe-se que a palavra ocupa o lugar da


coisa, o conceito no lugar da obra. Não só o imperador acreditou, desde o
princípio, na palavra dos arrivistas, como também o ministro, por medo e
insegurança, abriu mão da sua palavra (ou visão) em benefício da palavra
(ou visão) dos ilusionistas. E a cena se repete quando o imperador, para
testar outro conselheiro, pede que ele faça a visita ao ateliê do nada. A
reação foi a mesma. Ele não via nada. Pensou em dizer que não estava
vendo nada, mas receoso de passar por estúpido e perder o emprego, partiu
para os elogios a inventar verbalmente o inexistente tecido.

E o mesmo vai ocorrer com o imperador quando decide ir ver a tal


roupa fabulosa. Ao defrontar-se com coisa nenhuma, pensou igual ao velho
ministro e ao conselheiro - "Estão me fazendo de idiota!" - mas para não
passar publicamente por imbecil, já que dois de seus principais auxiliares
viam no vazio coisas fascinantes, passou a exclamar "lindo, maravilhoso,
excelente". Assim fechou-se o circuito de invenção verbal da coisa
inexistente. Ao qual se incorporou o resto da corte quando auxiliares tiveram
que fingir carregar o manto invisível no dia de sua exibição no palácio. A
ousadia dos falsários leva o imperador admirar-se diante do espelho. Então,
consuma-se a alucinação: "o imperador diante do espelho admirava a roupa
que não via".

Assim, toda a corte passou a se curvar diante do inexistente com a


anuência do imperador e seus auxiliares. "Nenhum deles queria admitir que
não estava vendo nada, pois se alguém o fizesse estaria admitindo que era
estúpido ou incompetente. Nunca uma roupa do imperador fez tanto
sucesso".
E como termina a história? No folclore português, ao invés de auxiliares
competentes da versão de Andersen, só os "filhos legítimos" poderiam ver a
roupa invisível do rei. Seria, como em outros mitos, a senha da legitimidade
para sucessão no trono. Desta feita quem denuncia o embuste é um
estranho-estrangeiro-negro. Na lenda de Andersen é uma criança - essa
espécie de olhar estranho e virgem - que, descompromissada, grita em meio
à multidão: "Ele está sem roupa!". O povo começa a abrir os olhos e
concordar com a visão do garoto. Enquanto a multidão gritava, o imperador
acuado pensava: "Tenho que levar isto até o fim do desfile. E continuou a
andar orgulhoso e, com ele, dois cavaleiros e o camareiro real seguiram e
entraram numa carruagem que também não existia".

É um belo final irônico, em aberto.

Noutras versões menos instigantes, que até circulam na internet, o rei


ficou envergonhado de ter se deixado levar pela vaidade, arrependeu-se e
desculpou-se, enquanto os falsos tecelões foram enganar outros em outros
reinos, até serem presos e condenados.
Essa é uma lenda sobre um pacto de não-ver, onde toda uma comunidade
brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada. E
porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos deixam de ver
(e ter opinião). É um caso de cegueira social. Isto ocorre, visivelmente, nas
agremiações políticas e religiosas: a produção de um discurso que ordena o
que deve ser visto ou não. No caso de grande parte da arte contemporânea
isto é um caso de voluntária cegueira artística, próximo do que La Boetie
chamava "servidão voluntária".

Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de descrever


as sutilezas da inexistente veste real, o rei está ou não está nu? Está e não
está. Como diria Nathalie Heinich, "o rei está vestido pelo olho do outro". A
linguagem pode ocultar ou desvelar. E esse é um jogo difícil e perigoso de se
jogar.

*** Jornal O GLOBO, 11 de dezembro de 2004

Affonso Romano de Sant'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (4)

Antes de virar marca de chocolate, Lady Godiva era uma lenda que
ilustra uma das variantes do tema que estamos tratando. Aí ressurgem as
questões do ver e do não- ver, porém envoltas com o problema da
transgressão e da punição. Diz a lenda que entre os anos 968-1057, na
Inglaterra, na região de Coventry, havia um rei, Leofric III, que cobrava
pesados impostos de seu povo. Sua mulher, Lady Godiva, implorava ao
marido que fosse mais humano com seus súditos. Ele não cedia. E um dia,
como ela tornasse a insistir, ele fez uma contraproposta, evidentemente, para
humilhá-la e mostrar uma vez mais seu poder sobre o povo. Que ela
desfilasse nua sobre um cavalo pela cidade e ele aboliria os impostos
excessivos.
Pois a Lady aceitou o desafio. O marido, aparentemente liberal, era, no
entanto, ciumento, e botou uma condição: ninguém poderia vê-la desfilar
nua, todas as portas e janelas deveriam estar trancadas. Pode-se imaginar
como essa nudez se tornava logo mais erotizada não só pela presença
desse cavalo em pêlo onde ela ia peladíssima, "vestida" apenas de sua
longa cabeleira, mas a interdição tornava a cena ainda mais erótica. E no dia
ansiado, lá estava Lady Godiva sobre o cavalo ondeando suas formas,
oferecendo sua nudez real e imaginária, posto que ninguém deveria ou
poderia vê-la. Mas como em toda lenda, há um transgressor; e um certo
Peeping Tom resolveu fazer um buraco na janela de sua casa para ver a
nudez real passar. Dizem que é daí que veio a expressão "peeping tom" em
inglês, significando o voyeurista, o que sente prazer sexual em ver as
intimidades alheias.

O fato é que o cidadão curioso foi punido com a cegueira. Ele viu o que
não deveria ver. Nem sempre a autoridade permite que se veja o que ela não
quer que seja visto. Se alguém insiste em ver o interditado deve ser cegado,
para que a autoridade e o sistema permaneçam. É interessante, no entanto,
observar duas coisas. Primeiro que, apesar deste incidente, o rei aboliu os
impostos. E, em segundo lugar, um detalhe que não pode passar em branco
na seqüência de histórias que estamos analisando: o voyeurista, aquele que
quis ver a nudez da Lady Godiva era um alfaiate. Não deve ter sido por
acaso que a lenda se constituiu deste modo incluindo aí um alfaiate, da
mesma maneira que não é à toa que naquela lenda de Andersen que citei
noutra crônica os dois tecelões( variantes do alfaiate) tecem a roupa
inexistente para o rei.
Ao contrário da lenda de Andersen e de seus tecelões charlatães, aqui o
alfaiate, que sabia cobrir o corpo alheio com as roupas mais apropriadas, é
aquele que ousa ver a anti-roupa, ou melhor, a roupa original, a Lady vestida
pelo esplendor de sua nudez. Portanto, aquele que por profissão cobre a
nudez do corpo é o mais curioso para ver a Lady Godiva nua, desvestida.

Essa lenda tem sua parte de verdade, pois esses personagens são
reais, há a sepultura da Lady na Trinity Church, e desde 1678 realiza-se um
desfile lembrando o episódio. Uma lenda sobrevive na medida em que
expressa conteúdos do imaginário coletivo.

Freud interessou-se por essa história ao estudar o "Conceito


psicanalítico das perturbações psicogênicas da visão" (1910). Ele estava
interessado em analisar a cegueira histérica estudada por Charcot, Janet e
Binet. Nos hospitais e clínicas constatara que a histeria provocava a
cegueira. Em circunstâncias de estresse e trauma, uma pessoa pode
fabricar, psicologicamente, sua própria cegueira. O que faz com que em
algumas sessões religiosas alguns desses histéricos voltem até a enxergar
de novo, destraumatizados pela fé. Mas há também os casos da cegueira
provocada psicologicamente por outra pessoa, quando um hipnotizador, por
exemplo, torna um cliente sonâmbulo ou faz que veja, como reais,
alucinações puras surgidas do comando do hipnotizador.

Líderes carismáticos podem provocar a cegueira histérica numa


comunidade e levar todo um país a horrores sem precedentes. É o caso de
hipnose social e histórica. Histórica e histérica. Hitler, Stalin, Mao são alguns
exemplos recentes. E a cegueira em que anda tanto o povo americano
atualmente como os comandados pelos fanáticos talibãs e por certos aiatolás
são exemplos complementares.
Mas na lenda de Lady Godiva, Freud destaca o que lhe interessava - a
questão da interdição. Estavam todos proibidos de ver a nudez da senhora.
E como os interditos sociais e psicológicos são muito mais fortes do que
pensamos, a quebra do pacto do não-ver por aquele que quer ver é punida
com a cegueira. É como se o expulsassem da comunidade. No viés erótico
freudiano o analista diz: "por haver querido fazer o mal uso de teus olhos,
utilizando-os para satisfazer tua sexualidade, mereces ter perdido a vista".
Ocorre a lei do Talião, paga-se o crime na mesma moeda, perde a vista
quem tentou ver. "Na bela lenda da Lady Godiva", diz Freud, "todos os
vizinhos ficam reclusos em suas casas e fecham as janelas para fazer
menos penosa à dama a sua exibição, nua sobre o cavalo, pelas ruas da
cidade. O único homem que espia através das madeiras de sua janela a
passagem da beleza nua perde, como castigo, a vista".

A complementariedade de significados entre "A nova roupa do rei" de


Andersen e a Lady Godiva é instigante. Se na primeira era o rei que estava
nu, aqui é a Lady - variante da rainha, que exibe sua nudez. O rei fingia estar
vestido, a rainha sabia-se nua. E em ambos os casos é alguém de fora da
corte que consegue ver o que os demais não podem ou não querem ver. Ver
é uma ousadia. Fazer falar o que se viu ou desmistificar a cegueira alheia é
ousadia dupla.

*** O VELHO URINOL: Inúmeros leitores enviam-me a notícia que corre


mundo de que o urinol de Duchamp foi eleito a obra mais influente e
conhecida da modernidade, mais que a "Guernica" de Picasso e outras
que tais. Pedem-me que comente o fato. Ele está já comentado em
"Desconstruir Duchamp" (Ed. Vieira&Lent). Essa "eleição",
paradoxalmente, confirma as teses que expus naquele livro.

*** Jornal O GLOBO, 18 de dezembro de 2004

Affonso Romano de Sant'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (5)


As histórias policiais clássicas, seja em Agatha Christie ou Sherlock
Holmes, mostram que o detetive é aquele que vê "melhor" que os outros as
pistas do crime. Esse olhar nos surpreende. Depois que nos desvenda os
fatos, então nos dizemos, é claro, por que não percebi isto antes? Mas o
conto de Edgar Allan Poe (1809-1849) "A carta roubada", que pode ser
encontrado no livro de mesmo título (editora L&PM), mostra que o olhar
policial, enquanto olhar oficial, às vezes não consegue resolver um enigma.
Assim é necessário que um outro olhar fora do sistema venha revelar o que
estava oculto.

Naquela história de Poe, o chefe de polícia de Paris procura um certo


Auguste Dupin para que o ajude a esclarecer o roubo de uma carta. O
curioso é que o policial sabe quem a roubou. Foi um ardiloso ministro do rei
que se apoderou do documento, substituindo-o por outro semelhante. E esse
ministro, tendo em seu poder tal carta, chantagearia a personagem -
provavelmente a rainha -, a quem a carta comprometedora se dirigia. Como
o chefe de polícia procura e revira tudo e não encontra a missiva, pede ajuda
a Dupin. Este aceita o desafio. Prontamente descobre e devolve a carta ao
policial que, pasmo e humilhado, pede que lhe explique como realizou tal
façanha. Em grande parte, o conto é a explicação de como o policial não viu
o óbvio. A carta roubada tinha sido posta num lugar bem evidente pelo
ladrão, e exatamente por estar tão evidente não era vista. Esse o paradoxo
que interessa à análise.

Sintomaticamente o texto de Poe começa por uma epígrafe, uma frase


de Sêneca: "Nada é tão prejudicial à sabedoria como a excessiva
sagacidade". Eis uma das linhas condutoras da história: a denúncia da
"excessiva sagacidade" do olhar que, por querer ver demais, não vê o
essencial, coisa que se dá em diversos campos do conhecimento humano.
Com efeito, o chefe de polícia confessa que havia procurado em "todas" as
partes, desmontado móveis, perfurado cadeiras, aberto gavetas, vasculhado
espelhos, chapas de vidro, assoalhos, porões, fendas de tijolos, argamassas,
encadernações de luxo, usado microscópios e nada encontrara. Por isto,
Dupin, ao ouvir-lhe a narrativa vai logo advertindo que "talvez o mistério seja
um tanto simples 'demais' (?) evidente 'demais'".

Como não lembrar uma vez mais a lenda do rei nu? Na narrativa de
Andersen é um menino, alguém também de fora, que aponta a nudez dos
fatos e no conto de Poe o narrador diz "que muitos meninos de escola
conseguem raciocinar melhor" que o policial. O olhar excessivo, o hiperolhar
da corte (e de certos críticos e analistas) vê "demais". Já diziam os chineses:
"o homem inteligente é o que descobre o óbvio". Ou, Guimarães Rosa:
"sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer coisa". E ilustrando essa
dificuldade que temos de não ver o óbvio, Dupin dá um exemplo: aquele jogo
em que uma pessoa escolhe uma palavra num mapa e o adversário tem que
dizer qual é ela. A tendência é o desafiado ir procurando a menor palavra e
que está mais escondida, quando às vezes a palavra escrita em letras
imensas e espaçadas, por ser visível, é ignorada.
A metáfora da visão é muito explorada no conto. Primeiro Dupin,
contrariando a lógica meridiana da polícia, diz que é melhor examinar certas
coisas "no escuro". É como se estivesse zerando nosso olhar, reinventando o
primeiro olhar, desviciando a maneira de ver. E a seguir, quando vai ao
gabinete do ministro que surrupiou a carta, chega aí com estranhos "óculos
verdes", queixando-se de problemas de visão. É um álibi às avessas. É
como se se disfarçasse de cego para ver melhor. Assim se a incapacidade
do chefe de polícia de achar a carta confirma que o pior cego é aquele que
não quer ver, o investigador Dupin mostra que o melhor "cego" é aquele que
sabe ver. Por isto, no "escuro", com seus "óculos verdes" percebe que a
carta tão procurada, na verdade, está à vista, num porta-papéis barato
pendurado por uma fita azul e ensebada dentro de um envelope amassado e
sujo. O esperto larápio da carta sabia que iriam procurá-la em lugares
secretos, por isto a colocou num lugar à vista. Ao percebê-la, Dupin,
espertamente, troca a carta por outra, usando da mesma tática do ministro
quando trocou a carta verdadeira na mesa real também por outra.
Nessa história, verdadeiro "jogo de cartas", Dupin afirma que o policial
conduziu a investigação erradamente porque não acreditou na inteligência e
astúcia do ministro, pois achava que o ministro era "tolo porque adquiriu a
fama de poeta". E na alma do policial "todos os idiotas são poetas". Neste
ponto, Poe, que era poeta e construía seus textos matematicamente, faz
algumas considerações sobre "poetas" e "matemáticos", revelando uma das
chaves do mistério. Expõe a tese de que o raciocínio matemático em si não
leva ao conhecimento se não estiver associado a algo mais, como a poesia.
E porque aquele que era investigado era ao mesmo tempo "matemático e
poeta", Dupin não poderia usar de um raciocínio lógico trivial, mas teria que
desenvolver diversas astúcias, sendo também "poeta e matemático".

Jacques Lacan em seus "Escritos", com aquele seu estilo meio


esotérico e apesar de algumas frases machistas, analisa esse conto
levantando outras questões. Refere-se ao primeiro "olhar que não vê nada",
ao segundo "olhar que vê que o primeiro não vê nada" e ao "terceiro que
desses dois olhares vê o que eles deixam a descoberto". Refere-se ainda a
alguns personagens que mereceriam um estudo particular: ao prestidigitador
ou ilusionista, que nos engana com seus gestos e palavras, e ao nos
convencer que o falso é verdadeiro nos transforma num ser de sua ficção.

E ironicamente refere-se também àqueles que, como "avestruzes",


enfiam a cabeça na areia não querendo ver a realidade enquanto outros
depenam-lhe o traseiro exposto.

*** Jornal O GLOBO, 25 de dezembro de 2004

Affonso Romano de Sant'Anna

A CEGUEIRA E O SABER (final)


Leio notícia que foi inaugurado em Paris um restaurante onde as
pessoas têm a oportunidade de viver a experiência da vida de um cego, pois
aí os clientes comem no mais completo escuro. Chama-se, apropriadamente,
"Dans le noir" ("No escuro"). Os garçons são cegos, e não apenas servem,
mas atuam como guias levando os fregueses até suas mesas. O restaurante
está na moda. Situa-se ali perto do Beaubourg e até o primeiro-ministro
Jean-Pierre Raffarin foi experimentar comer no escuro.
A coisa ocorre assim: "antes de entrar na sala totalmente escura, os clientes
deixam em armários com cadeados, no bar do restaurante, relógios,
isqueiros, celulares e qualquer outro objeto que emita a mínima luz. Os
pratos também são escolhidos antes de entrar no recinto. Entre as opções,
há ainda o 'menu surpresa', que só será descoberto quando o garfo for
levado à boca". A experiência supera qualquer instalação. As pessoas
passam por três ambientes com cortinas nos quais a luz vai rareando até a
sala escura, onde há muito barulho, pois para compensar a falta de visão as
pessoas falam alto. A surpresa aumenta quando o cliente descobre que tem
outras pessoas à sua mesa.

Foi um ex-banqueiro e consultor de marketing social quem teve essa


idéia. E diz a matéria veiculada num site da BBC e mandada pela médica
brasileira Mônica Campos, residente nos Estados Unidos, que alguns
clientes acham-se ridículos durante a experiência, outros têm crise de choro
e angústia, mas o fato é que o restaurante está sempre lotado. As pessoas
pagam para não ver.
É pitoresco, mas repito: as pessoas pagam para não ver, pagam para
comerem no escuro.

Não deixa de ser sintomático que se abra um restaurante onde os que


vêem vão experimentar a cegueira, exatamente numa cultura de
hipervisualização. Como se estivéssemos fatigados de ver, agora queremos
não-ver. Que seja por algumas horas, não importa. É como se a poluição
visual tivesse chegado a tal extremo, que se sentisse a necessidade de
recuperar outros sentidos, experimentando o desver para, quem sabe?, ver
de novo.

Tomo esse restaurante como uma metáfora paradoxal de nossa época.


A modernidade que descobriu e aperfeiçoou a fotografia, e que tendo
conseguido essa façanha mobilizou-a criando o cinema, e logo a seguir
instalou a televisão dentro de nossas casas para que víssemos o mundo e o
universo vinte e quatro horas por dia; a mesma modernidade que vem com
essa enxurrada de letras e palavras em camisetas, vitrines, anúncios
luminosos, que nos manda imagens dos planetas mais distantes e detalhes
das guerras e misérias mais horrendas; essa modernidade que é um
constante espetáculo de "strip-tease", no qual o público e o privado, ou
melhor, a sala de visitas e a privada se acoplaram, essa modernidade de
tanto ver, já não vê. O mundo é projetado como um clipping de imagens
esfaceladas acompanhadas por um ruído ou ritmo qualquer. E, de repente,
na "cidade-luz", pagamos caro para comer no escuro.
Nesta série de lendas, mitos e textos literários que comentamos nas cinco
crônicas precedentes várias coisas se destacaram. Há cegos, como o
adivinho Tirésias, que interpretam melhor os fatos do que os que enxergam.
Há, por outro lado, a comunidade dos cegos arrogantes, dos que negam que
se possa ver, como no conto de H.G.Wells. Há a cegueira que sobrevem a
uma comunidade como uma praga temporária, uma doença, uma ideologia,
como no "Ensaio sobre a cegueira" de Saramago. Há a visão excessiva com
sua racionalidade irritante, que não enxerga o óbvio, como em "A carta
roubada" de Poe. Há, na história de Lady Godiva, o ato de ver como forma
de desafiar a interdição instaurada pela autoridade, que ordena não ver. Ver
a nudez das coisas é já transgredir. E há, como na lenda "A nova roupa do
rei", de Andersen, a denúncia do pacto social da comunidade que faz um
acordo em torno do não-ver. Em vários desses casos é o estrangeiro, o
forasteiro, o menino, alguém não comprometido com o sistema que denuncia
a cegueira alheia.
"Homem cego" ( "Blind man") é o nome da revista que Marcel Duchamp
lançou em 1917 para criar polêmica sobre o urinol que mandou para a
exposição de vanguarda em Nova York, e que foi recusado pelo júri, também
de vanguarda. Esse título é significativo. Ele vem do homem que decretou a
morte da pintura, da gravura, do desenho e de outras artes a que chamava
de "retinianas", porque careciam do olho para existir. Em sua ojeriza à "arte
retiniana", Duchamp não reconhecia nem a fotografia nem o cinema como
arte, senão como "um meio mecânico de fazer alguma coisa". Dizia: "Não
acredito no cinema como meio de expressão" e fazia um jogo de palavras:
"CINEMA/ANEMIC". Propunha uma arte conceitual, na qual a idéia era mais
importante que a execução da obra pelas mãos do artista. Daí a sua série de
"ready-made" ou "object trouvé", objetos industriais que ele expunha como
obra de arte. Com isto ele "deixava de ver" ou "negava-se a ver" toda a arte
do passado e cegava o artista moderno deixando-o com um só olho na
direção de um pretenso futuro. Duchamp é o genial profeta da cegueira
artística do século XX. Paradoxalmente ele pretendia despertar uma nova
maneira de ver o mundo e as coisas. Achou que interditando o olhar se veria
melhor. Mas pode-se perguntar: será cegando o passado que veremos
melhor o futuro?

Segundo notícias nos jornais, o urinol de Duchamp acaba de ser


escolhido como a obra icônica da modernidade. Isto é um fato sintomático.
Isto explica as contradições do século XX. Duchamp é uma figura complexa.
Acertou e errou.
Errou porque o século XX, século do cinema, foi o século da
hipervisualidade. Acertou porque o século XX foi também o século de uma
visualidade cega. Não apenas na cegueira trazida por Stalin, Mao e Hitler,
mas outras formas de cegueira na arte, que é necessário rever. O desafio é
ver com novos olhos, com um terceiro olhar o século XX e analisar aí as
astúcias do "homem cego" que, paradoxalmente, pretende ter um ultra-olhar,
mas que não vê o óbvio.
Esse homem que prefere comer no escuro, porque passar por cego
virou moda.

*** Rede SACI:Solidariedade, Apoio, Comunicação e Informação Com um


Cego no Avião

Lista Cegos

10/01/2005
Crônica sobre o professor Edison Ribeiro Lemos

Affonso Romano de Sant'Anna

No avião, sentei-me ao lado de um cego. Fiquei um pouco ressabiado,


porque pensei que ia acabar tendo que participar de suas possíveis
dificuldades para interagir com aquele ambiente. Equivoquei-me. Ele lá
estava tranqüilo, na sua. Comecei a conversar com ele somente quando a
aeromoça começou a servir o lanche. Primeiro fiquei observando como ele
se comportaria. A aeromoça, veio com o carrinho servindo a um e a outro e
quando chegou a vez dele, ela pôs a bandeja na sua frente e explicou-lhe
tomando sua mão: "Aqui a salada". Pegou a outra mão: "Aqui a carne".
Pegou de novo a primeira mão: "Aqui a sobremesa". Eu, reparando. Dito isto,
ela foi se afastando. O cego virando a cabeça, antes que ela se afastasse de
todo, perguntou-lhe: Mas qual é a comida? Murmurei para ele: "Esta é que é
a informação fundamental". E era. Mais do que saber sumariamente onde
estavam as coisas, o important era preparar seu paladar, pois podia se dar
que o cego nem gostasse de um daqueles pratos. A aeromoça era gentil,
mas não se havia dado conta do tipo de atenção que tinha que dar ao cego.
E aí eu já estava conversando com o vizinho. Chamava-se Edson Ribeiro
Lemos, é professor, mora em Niterói e estava numa comitiva de meia dúzia
de cegos que iam ao Chile para um congresso internacional sobre os
problemas específicos que os afetam. Quando chegou a hora do cafezinho a
aeromoça passou de novo e colocou uma xícara na mão do cego. E ele, com
aquele sorriso de bondade, que só os cegos têm, disse-me confidencial e
ternamente: - Ela não foi treinada para isto, foi gentil, mas me serviu a xícara
com a asa ao contrário em minha mão. E assim íamos falando. Quando me
disse seu nome e eu lhe disse o meu, seu rosto abriu-se fraternalmente e se
indagou: Como é que não reconheci sua voz? Eu o ouço sempre na
televisão. E referiu-se também à Marina, sabia de nossa viagem à Moscou,
da Biblioteca Nacional etc. Cego, mas acompanhava as coisas. Até as
ínfimas como eu. Curioso, indago sobre a sua cegueira. É sempre uma
situação constrangedora. A pessoa pode pensar em perguntar, mas teme,
por pura delicadeza... Achei que ser franco, manter uma conversa direta era
a melhor forma de colocá-lo à vontade, ele que tão à vontade já estava
antes. Veio-lhe a cegueira aos treze anos, um glaucoma. Antes, aos dez
anos, ao dar uma cambalhota na praia de Icaraí, o nervo ótico foi comprimido
e houve um deslocamento da retina. Quando levantou-se da cambalhota só
via o sol pelo canto do olho, uma mancha amarela. Perguntei-lhe sobre os
sonhos de um cego. O que vê, quando sonha? Um dia antes, minha mulher
havia lido um artigo onde havia uma revelação: quando se sonha e as cenas
aparecem tão visíveis, é porque o nervo ótico está sendo acionado. De tal
modo que a gente imagina que está vendo as coisas, e está mesmo. - Com o
cego é diferente, me diz Edson. Devo confessar que quanto mais o tempo
passa, mesmo a pessoa que ficou cega depois de adulta, vai vendo as
coisas cada vez mais sombreadas. E isto vai se modificando até que vira
uma lembrança meio escura, na neblina. - Das coisas que vi, guardei as
cores; mas mesmo essas esmaeceram. Da minha casa tenho duas
lembranças: a da infância, com mais claridade. Aí vejo as coisas, os objetos
ainda. Mas minha casa de adulto, onde sei perfeitamente onde tudo está e
como me locomover lá dentro, esta está na meia luz, na penumbra. - Este
avião aqui, por exemplo: me situo perfeitamente aqui dentro, controlo o que
está ao redor, mas as coisas estão na penumbra. Disse-me algo mais que
não sabia. Que um pesquisador americano havia concluído que a cegueira é
colorida. Ele tem perguntado sobre isto a outros cegos, mas não confirmam:
O seu não-ver é amarelo. Há uma mancha amarela sempre à sua frente.
Mas quando se emociona ou se irrita a mancha fica vermelha. - Será que há
cegos daltônicos, pergunto-lhe, eu que sou daltônico confesso e cego para
tantas coisas. Rimos. Falo-lhe de Marco Antônio Queiroz, cujo livro "Sopro
no corpo", da editora Rocco, narra como ele, jovem da zona sul que vivia
uma típica e agitada vida de adolescente acabou cego por causa da
diabetes. Edson conhecia o livro, a história de Marco Antônio, sabia de tudo.
Lá pelas tantas me perguntou: - Vamos passar pelos Andes? - Vamos,
respondi, pensando se poderia explicar-lhe como eram as montanhas de
neve. Ele ficou cego na adolescência e poderia ter essa imagem na
memória. E assim ia a conversa. Falou-me ainda de sua família: a mulher
que enxerga, as três filhas e as netas. Leva uma vida a mais normal
possível. Quando passamos pelos Andes, ele dormia ao meu lado. Eu olhava
a neve. Como descrevê-la? O avião seguia. E eu olhava a neve.

Antes que elas cresçam

Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos de seus próprios filhos.

É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e


pássaros estabanados.

Crescem sem pedir licença à vida.

Crescem com uma estridência alegre e, às vezes com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira, crescem de repente.

Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal
maneira que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela
criatura.

Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu?

Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com


palhaços e o primeiro uniforme do maternal?

A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência


civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não
apenas cresça, mas apareça...

Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes e
cabelos longos, soltos.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com


uniforme de sua geração.

Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos
ventos, das colheitas, das notícias, e da ditadura das horas.

E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos


acertos e erros.

Principalmente com os erros que esperamos que não se repitam.

Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos filhos.

Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas.

Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô.

Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas.

Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvirmos sua alma
respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os
adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas
coloridas e discos ensurdecedores. Não os levamos suficientemente ao
Playcenter, ao shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueses e
refrigerantes, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que
gostaríamos de ter comprado.

Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto.

No princípio iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas,


engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhos.

Sim havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de


chicletes e cantorias sem fim.

Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um


esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros
namorados.

Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram,
mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes". Chega o
momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito para
que eles acertem nas escolhas em busca da felicidade.

E que a conquistem do modo mais completo possível.

O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos.

O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios


filhos e que não pode morrer conosco.

Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável


carinho.

Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.


Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Texto extraído do CD "Crônicas Escolhidas", lidas por Paulo Autran,


produzido por Luz da Cidade - Niterói, 1999. Veja como comprar o cd em
http://www.luzdacidade.com.br.

A Mulher Madura

Affonso Romano de Sant'Anna

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua


vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs.
Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura,
com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer
coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da


adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A
adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo
estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita
água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O


silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago.
Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos
não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre
seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um


tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas
manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem
dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de
adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um
violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na


madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela
mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos.
Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um
aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se


fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura
e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas
mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os
mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade
também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se
perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom
tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho
interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a
maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente.
Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um


relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do
tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor
do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde


acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças
a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à
Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por
isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram
de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem
prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde,


quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus
filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está
nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele
não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e
Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que


perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que
nunca pronta para quem a souber amar.
(15.9.85)

O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de
Janeiro, 1986, pág. 09.

Ler o Mundo

Affonso Romano de Sant'Anna

Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.

Depende de quem lê.

Penso nisto nesta semana em que a cidade experimenta uma


vez mais, e melhorado, o “ Paixão de Ler” , que Vânia Bonelli e
Vera Mangas administram.

Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não. Ou não, porque nem


sempre deciframos os sinais `a nossa frente. Ainda agora os
jornais estão repetindo, `a propósito das recentes eleições, “que
é preciso entender o recado das urnas”. Ou seja: as urnas falam,
emitem mensagens. O sambista dizia que “ as rosas não falam,
as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti”. Perfumes
falam. E as urnas exalaram um cheiro estranho. O presidente
diz que seu partido precisa tomar banho de “ cheiro de povo”. E
enquanto repousava nesses feriados e tomava banho em nossas
águas, ele tirou várias fotos com cheiro de povo.

Paixão de ler. Ler a paixão.

Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim, a paixão é


quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado
terremoto. Na paixão somos lidos `a nossa revelia .

O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns corpos, no


entanto, vêm em forma de hieroglifo, dificílimos. Ou, a
incompetência é nossa, iletrados diante dele?

Quantas são as letras do alfabeto do corpo amado? Como


soletrá-lo? Como sabê-lo na ponta da língua? Tem 24 letras?
Quantas letras estranhas, estrangeiras nesse corpo? Como achar
o ponto G na cartilha de um corpo? Quantas novas letras podem
ser incorporadas nesta interminavel e amorosa alfabetização?
Movido pelo amor, pela paixão pode o corpo falar idiomas que
antes desconhecia.

O médico até que se parece com o amante. Ele também lê o


corpo. Vem daí a semiologia. Ciência da leitura dos sinais. Dos
sintomas. Daí partiu Freud, para ler o interior, o invisível texto
estampado no insconsciente. Então, os lacanianos todos se
deliciaram jogando com as letras- a letra do corpo, o corpo da
letra.

Portanto, não é só quem lê um livro, que lê.

Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer


um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural. A paisagem
pode ter sotaque. Por isto se fala de um jardim italiano, de um
jardim francês, de um jardim inglês. E quando os jardineiros
barrocos instalavam assombrosas grutas e jorros d’água entre
seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério nos
extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.

O urbanista e o arquiteto igualmente escrevem, melhor dito,


inscrevem, um texto na prancheta da realidade. Traçados de
avenidas podem ser absolutistas, militaristas, e o risco das ruas
pode ser democrático dando expressividade `as comunidades.

Tudo é texto. Tudo é narração.


Um desfile de carnaval , por exemplo. Por isto se fala de “samba
enredo”. Enredo além da história pátria referida. A disposição das
alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas
narrativas.

Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma


partida -este o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor
esportivo. Ele, como o técnico, vê coisas no texto em jogo, que
só depois de lidas por ele, por nós são percebidas. Ler, então, é
um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o
texto e o leitor.

Paulinho da Viola dizia:”As coisas estão no mundo eu é que


preciso aprender”. Um arqueólogo lê nas ruínas a história antiga.
O astrônomo lê a epopéia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler
estrelas. Que estórias sublimes, suculentas, na Via Láctea.

Não é só Scheherazade que conta estórias. Um espetáculo de


dança é .narração. Uma exposição de artes plásticas é narração.
Tudo é narração. Até o quadro“ Branco sobre o branco” de
Malevich conta uma estória.

Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma como o


jornal é feita, a diagramação, a escolha dos títulos, das fotos e
ilustrações são já um discurso. E sobre isto se poderia aplicar o
que Umberto Eco disse sobre o “Finnegans Wake” de James
Joyce: “ o primeiro discurso que uma obra faz o faz através da
forma como é feita”.

Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construimos


sofisticadíssimos aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos
lêem melhor que nós mesmos. E mais: nós é que não os
sabemos ler. Isto se dá não apenas com os objetos eletrônicos
em casa ou com os aparelhos capazes de dizer há quantos
milhões de anos viveu certa bactéria. Situação paradoxal: não
sabemos ler os aparelhos que nos lêem. Analfabetismo
tecnológico.

A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto


também lê o mundo.`As vezes, sabiamente. Em nossa arrogância
o desclassificamos . Mas Levi-Strauss ousou dizer que algumas
sociedades iletradas eram ética e esteticamente muito
sofisticadas. E penso que analfabeto é apenas aquele que a
sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade
eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?

Vi na fazenda de um amigo aparelhos eletrônicos, que ao tirarem


leite da vaca, são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite,
da vaca , e até o pensamento de quem está assistindo `a cena.
Aparelhos sofisticadíssimos lêem o mundo e nos dão recados. A
camada de ozônio está berrando um S.O.S , mas os chefes de
governo, acovardados, tapam(economicamente) o ouvido. A
natureza está dizendo que a água além de infecta, está
acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia para
nossos netos.

É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a


interpretação. Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras
dos animais sacrificados e paredes dos palácios. Cartomantes
lêem no baralho, copo d’água, búzios.Tudo é leitura. Tudo é
decifração.

Ler é uma forma de escrever com mão alheia.

Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Mas bem


escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao
escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.
************************
LEITURA DO CRIME: disse o general Cardoso: “Crime está mais
organizado que nós”. A frase é verdadeira, mas com o enfoque
invertido. A desorganização social e econômica é que organiza o
crime.

Affonso Romano de Sant'Anna é poeta, cronista e professor


universitário. Foi presidente da Biblioteca Nacional de 1990 a
1996, onde criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER.
Foi Secretário das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas e
Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do
Livro na América Latina e no Caribe (CERLALC).

Affonso Romano de Sant'Anna é poeta, cronista e professor


universitário. Foi presidente da Biblioteca Nacional de 1990 a
1996, onde criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o
PROLER. Foi Secretário das Bibliotecas Nacionais Ibero-
Americanas e Presidente do Conselho do Centro Regional
para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe
(CERLALC).

FANTASIA ERÓTICA

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

O casal resolveu passar uma noite no motel. Ou melhor: Foi resolvido que o
casal deveria passar a noite lá. Resolvido não por eles, mas pelos filhos que
queriam dar uma festa na casa dos pais, mas sem a presença dos coroas. E
o afastamento de pai e mãe era pedido por duas razões que pareciam
pertinentes: primeiro que a festa era de jovens e o som seria da pesada;
segundo porque se armava um agito que iria ate as 8h.

No atual estágio de metamorfose de vida social e militar, os filhos são


acionistas do casamento. Houve tempo em que detinham 50% das ações,
hoje possuem a maioria. A situação, portanto, é muito diferente daquela que
antigamente na qual filho não dava palpite na organização da empresa
matrimonial. Não só se chamava pai ou mãe de senhor e senhora, mas tinha
que pedir a bênção , beijar a mão e chegar em casa às 22 h.

Mas no atual estágio da globalização, o casamento também está sendo


terceirizado. Por isso, os filhos desinibidamente disseram aos velhos que
gostariam muito de dar uma grande festa na casa e, mais ainda, gostariam
que ele passassem um final de semana fora. E num gesto de sedução
irrecusável, disseram à mãe: "Peça ao papai para te levar a um motel.".

Ora, não há mulher casada que resista a esse convite feito pelo marido.
Algumas não resistem nem ao convite feito por quem não é seu marido.
Durante o namoro os casais freqüentam motéis. Depois do casamento isto
praticamente acaba e toda mulher ouve com certa inveja quando uma amiga
lhe diz que o marido a levou a um motel. É um trunfo. É como se dissesse:
"Está vendo, não preciso de amante".

O fato é que o casal, tanto por amor aos filhos quanto movido por fantasias
arcaicas, topou a idéia. Os filhos sentiram orgulho daquilo. Até revelam aos
amigos o próximo paradeiro dos pais, como a dizer: "Eles são velhos, mas
ainda batem uma bola legal!".

E, de repente, o fato do casal ir para o motel acabou virando uma fantasia


que concorria com a fantasia da própria festa que os filhos queriam dar. Pois,
enquanto os filhos contavam como estavam saindo para comprar quantas e
quais bebidas, a mulher discutia com que roupa ia ao motel. Enquanto os
filhos faziam a lista de convidados , o casal começou a comprar revistas tipo
"Playboy", para ver o endereço dos melhores motéis. Era como se
estivessem fazendo licitação de obras. O marido até ligou para um amigo e
disse: "Olha, Armando, descolei uma gata mas não conte pra ninguém. Me
diga qual o melhor motel da cidade." O outro ficou intrigado, e mesmo depois
que o marido revelou que era para levar a própria mulher, o amigo ainda
disse que ia ver. Não queria revelar seu conhecimento nessa área.

Chegado o dia da festa, os filhos já não sabiam se prestavam mais atenção


na festa que preparavam ou na preparação que os pais faziam para sua
noite num jardim de delícias. Os velhos faziam alongamento, tomavam sol,
passaram-se cremes, beberam sucos, se preparando como se prepara
atletas para a Olimpíada.
Quando a galera começou a chegar à festa, a atenção se dirigia mais para o
casal que ia glorioso sair, do que para os que eufóricos chegavam.

E lá se foi o casal, Mas, já no carro, se deram conta de que esqueceram de


olhar e escolher o endereço do motel. Então tocaram para São Conrado.
Entraram naquela região do Joá com dezenas de motéis. E ele: "Mulher,
você escolhe.". Mas o panorama era pouco estimulante. Parecia promoção
de restaurante vendendo comida à quilo. Os preços de promoção
denunciavam, tanto quanto à arquitetura, que não correspondia à fantasia do
casal (e dos filhos). Chegaram a entrar num. O marido avisou: "Vou olhar
primeiro, se não gostar, voltamos". Pois foram, não gostaram e saíram logo.
Ficaram por ali uns 20 minutos, entrando e saindo de motel, vendo, não
gostando, arriscando serem vistos e difamados.

A noite ia avançando tanto quanto não ia avançando o trânsito na Barra e no


Recreio. Ao mesmo tempo, pelo celular, telefonam para casa para saberem
da festa. A festa queria era saber do motel. "Não, ainda estamos procurando.
Os que achamos não correspondem ao que queremos". (E isto foi repassado
para todos da festa, que os coroas estavam fazendo rali de motéis).
Finalmente acharam um motel, que parecia esplêndido. Era. Por isto havia
fila aguardando vaga. O casal escolheu uma fantasiosa suíte. E enquanto
aguardavam ao lado de outro carro, a marido disse: "Mulher, acho melhor
começarmos a fazer alguma sacanagem aqui, senão vão achar que somos
marido e mulher". A mulher disse: "Que é isto, me respeite, sou a mãe dos
seus filhos". Acabaram sendo chamados para a suíte.

Era espetacular. Tão espetacular que a mãe não resistiu e telefonou para os
filhos descrevendo o paraíso. A festa parou para ouvir a narrativa. E a mãe
falava como se fosse Sherazade no apogeu das "Mil e uma noites". A suíte
era ampla e tinha uma iluminação especial para cada recanto. Luzes saiam
debaixo da cama, luzes piscavam numa pista de dança. Espelhos para todo
lado, música de todo tipo e televisão com inúmeros canais estrangeiros.
Junto a um jardim iluminado, um chafariz jorrava água e emoção. Havia a
deliciosa banheira para hidromassagem. Cama giratória, saunas a vapor e
seca. Piscina de água corrente e um teto que se movia abrindo-se para uma
lua cheia. Isto, além das louças inglesas, do cardápio e da champagne que
rolava.

A descrição era de um verdadeiro filme de Cecil B. de Mille e Nelson


Rodrigues diria que naquele motel havia até cascatas com jacaré.

A garotada ouviu a narrativa com uma fantasiosa inveja. E eram 3h30min,


hora em que começavam a cair pelas tabelas. A partir daí a festa começou a
definhar, até que do fundo de sua adolescência um jovem saiu-se com esse
suspiro.

- Quando eu virar coroa, ainda vou ter uma noite como essa.
Uma guerra pós-moderna

Affonso Romano de Sant'Anna


Todo mundo sabe o que é uma guerra. Mas nem todo mundo sabe o que é pós-
modernismo. Bush, por exemplo, é pós-moderno, sem o saber. E se você não sabe
exatamente o que é pós-moderno, não se avexe. Os teóricos também não estão muito
seguros sobre isto. É comum encontrarmos nos bons ensaios a respeito (por exemplo,
“Poética do pós-modernismo”, de Linda Hutcheon, ed. Imago), a afirmação: “O pós-
moderno é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os
próprios conceitos que desafia”.

Esse termo — pós-modernismo — começou a ser usado mais insistentemente nas


últimas décadas do século passado. Vinha da arquitetura que reaproveitava formas
clássicas. Em breve, o termo transbordou, atingiu tudo: das artes plásticas à
literatura, e passou a ser usado para explicar a ideologia dominante, a cultura
contemporânea e a era da globalização. Logo logo estudos sobre pós-modernismo
viraram moda universitária, começaram a render bolsas de estudo e pesquisa, e
autores, que precisam de rótulos para aparecerem, começaram a se auto-intitularem
pós-modernos.

Bush, como lhes disse, é pós-moderno sem o saber. Não sei que curso ele fez lá no
Texas. (Dizem que antes da Casa Branca ele nunca tinha ido à Europa). Por que ele
seria pós-moderno? Porque um dos traços da malfadada pós-modernidade é o
pastiche. Em arte se diz: fulano fez um pastiche de sicrano. Quer dizer: copiou,
aproveitou o que já existia, escondeu sob a máscara do outro a sua precária
criatividade. Pois Bush filho é primeiramente o pastiche do Bush pai. O pastiche é a
impotência travestida de potência. A vontade de ser aquilo que não se é. O pastiche é
o oposto da paródia, esta sim, uma revivificação da linguagem. Enfim, a arte das
últimas décadas, confessadamente, vive recorrendo ao pastiche como outros recorrem
ao viagra.

Algumas charges, ilustrações e textos na imprensa mostram como Bush é pastiche


também de um César levando a pax romana (ou guerra?) a todas as províncias do
império. Nessa linha, Norman Mailer escreveu que Bush quer prolongar o sonho
imperial americano para o século XXI. Mas como quem quer repetir a História acaba
fazendo História de segunda mão, ou pastiche, os americanos estão reencenando o
neocolonialismo do século XIX e exercendo um imperialismo tardio. Bush e Blair
pensam estar repetindo Roosevelt e Churchill, mas estão mais próximos de Franco,
Mussolini e há quem bote neles o bigodinho de Hitler.

Na verdade, essa guerra no Iraque é o conflito entre o pós-moderno (Bush) e o pós-


antigo (Saddam). Ambos são um blefe, são pastiche. Assim como Bush pensa ser
César, Saddam pensa ser Nabudonosor. Bush estupidificou a democracia. Saddam
barbarizou a Mesopotâmia.

Outra característica da pós-modernidade é a “desterritorialização” dos indivíduos e


povos. Pessoas e culturas perdem suas raízes e ficam num delírio deambulatório pelos
shoppings e outros espelhos sem alma. E a globalização quer isto. Que sejamos todos
um mesmo e único mercado. Pessoas convertidas em consumidores, a abolição da
consciência crítica, a conversão de todos em objetos. Então, dando seqüência a essa
ideologia, Bush acha que pode cortar as raízes de um povo que começou na
Mesopotâmia, que teve em seu território a localização do Éden bíblico, da Torre de
Babel, dos Jardins Suspensos da Babilônia, etc. Aí, você lê os jornais e vê os militares
americanos, perplexos, dizendo: “Uai! Nos preparamos para lutar de um determinado
jeito e esse povo aqui quer lutar de outro!”. Ou seja: você pega seus planos de guerra
feitos nas salas de ar-refrigerado do Pentágono e quer que funcionem no deserto
iraquiano. Nisto a ideologia americana está ilustrando um outro item da pós-
modernidade, que ignora o “contexto” em favor de uma ingênua
“descontextualização”. Acredita-se, como ocorre em alguns exemplos artísticos, que
você pode “descontextualizar” um país e “recontextualizá-lo” ao seu modo. Ou, que
podem chegar lá com uma “democracia” pronta, como um hambúrger, e isto vai
descer pela goela iraquiana. Como diria Fredric Jameson, isto é acreditar que o
conteúdo pode ser definitivamente suprimido em favor da forma, como se as culturas
vivessem em livre flutuação. Daí a surpresa de outro soldado confessando que essa
guerra não é o “passeio” que lhe prometeram, e que não é “tão fácil conquistar uma
nação”.

Diante da “mãe de todas as bombas” — que lança fragmentos (e a fragmentação é


outra irônica sindrome pós-moderna), estão os “homens-bomba”. A grande e a
pequena fragmentação. A máquina e a impessoalidade contra o indivíduo e sua crença.
A irracionalidade pós-moderna, versus a irracionalidade pós-antiga.

Por essas e por outras é que deveriam dar mais cursos de História, de antropologia e
de arte contemporânea nos quartéis americanos. Uma das tolices do século XX foi,
através de silogismos fascinantes, anunciar a morte da História, a morte da arte, a
morte do homem. Pois a História está renascendo, a arte está renascendo, o homem
está renascendo no cemitério de mortes anunciadas do finado século. Essa guerra,
pelo avesso, pode ser a contestação e o princípio do fim da globalização e da cultura
pós-moderna que se comprazem no pastiche, na repetição inócua, na valorização da
quantidade sobre a qualidade, no culto à imagem e ao simulacro em detrimento do
real. Essa pós-modernidade que descontextualiza as pessoas e desterritorializa as
culturas.

Enfim, nessa batalha de textos e contextos, em que a pós-modernidade,


autofagicamente, desmoraliza os próprios conceitos que cria, devo convir que talvez a
pós-modernidade nem exista. Que, como disse o corajoso Michael Moore na festa do
Oscar, estamos diante de um presidente fictício que crê numa guerra fictícia. Talvez a
pós-modernidade realmente não exista. E embora eu tenha falado de um conflito entre
o pós-moderno (Bush) e o pós-antigo (Saddam), essa guerra, como todas as guerras,
insere-se mesmo é no pré-arcaico.

A Cimeira de Proust e Joyce

- O que conversam as pessoas importantes? Que coisas excelsas dizem entre si os


artistas? Como é o diálogo olímpico entre os deuses e como entre si falam os presidentes
numa Cimeira?
Não nos iludamos.
Ouçamos de novo as fitas do BNDES para constatarmos como são negociadas as
influências e decididos os acordos ou lembremo-nos das fitas do escândalo Watergate,
nos Estados Unidos, para ouvir os palavrões e ameaças que o ex-presidente Nixon, como
um Júpiter irado, desferia sobre os desafetos.
É claro que, às vezes, homens de pensamento conseguem nos impressionar com o
tipo de papo que sabem levar. Aliás, Sócrates ficou famoso por isto - por ficar batendo
papo com discípulos fora dos muros da cidade, e Platão ficou tão tocado que registrou ou
reinventou tudo de memória. Outra mostra disto é o famoso "Conversações de Goethe
com Eckermann", em que Johann Peter Eckermann relata perorações que durante nove
anos manteve com o autor de "Fausto". Confesso que nessa mesma linha de conversas
fabulosas cheguei a fazer umas anotações para uma peça de teatro em que Clarice
Lispector conversava com Guimarães Rosa. É que um dia me indaguei: - como é que
esses dois monstros da literatura viviam na mesma cidade, freqüentavam até o espaço do
Itamaraty e não se tem nenhum registro imaginário ou real de um possível diálogo entre
eles?
Pois, vejam só. Às vezes, a realidade desmente nossa ansiosa fantasia. Tomemos
como exemplo dois escritores que atingiram o ápice, que chegaram ao cume e que estão
na cúpula ou Cimeira da literatura do século XX: Proust e Joyce. O francês Marcel Proust
com os volumes "Em busca do tempo perdido" havia se tornado célebre a partir de 1913.
Asmático, sempre doentinho, queridinho da mamãe que o chamava de mon petit jaunet
(meu amarelinho), mon petit benêt (meu palerminha) ou mon petit nigaud (meu idiotinha),
logrou mesmo assim ser um dos grandes reinventores do romance moderno. Descobriu
técnicas de descrever de maneira minuciosa, fascinante e, às vezes, irritante um
determinado objeto ou uma cena. Podia, por exemplo, gastar 17 páginas para descrever
uma pessoa com insônia na cama. Mas era genial.
Já o irlandês James Joyce, em 1922, com a publicação de "Ulisses" implodiu de vez
o romance tradicional. Inventou palavras, criou técnicas para contar em cerca de 850
páginas algo que ocorreu no dia 16 de junho de 1904. Na verdade, não é romance para
se ler, é romance para se estudar.
O que conversariam Proust e Joyce, os dois gigantes da literatura de nosso tempo
no dia em que se encontrassem? Que coisas sublimes se diriam? Que revelações
deixariam cair do banquete verbal em que se refestelavam e que poderiam alimentar a
plebe e os cães vadios da literatura universal?
Leio um livro delicioso - traduzido por Luciano Trigo - "Como Proust pode mudar sua
vida" (Ed. Rocco), no qual Alain de Botton, num ensaio sem as chaturas acadêmicas (ele
nem diz de onde tira as citações), narra que em 1922 Proust e Joyce se encontraram. Isto
se deu no famoso restaurante Ritz, em Paris, num banquete oferecido a Stravinsky,
Diaghilev e aos membros do Balé Russo, para festejar a encenação de "Le Renard", de
Stravinsky. Era, como se vê, uma Cimeira artística.
Mas, contrariando a expectativa, Joyce chegou atrasado, e pior, sem smoking.
Proust já estava lá, mas como vivia doente (ele morreria nesse mesmo ano de 1922), nem
tirou o casaco de pele com medo talvez de alguma corrente de ar. Mais tarde Joyce
contaria como foi esse encontro entre os dois titãs da literatura: "Nossa conversa
constituiu somente na palavra ‘Non’. Proust me perguntou se eu conhecia o duque fulano-
de-tal. Eu respondi: ‘Non’. Nossa anfitriã perguntou a Proust se ele já tinha lido algum
trecho de ‘Ulisses’. Proust disse: ‘Non’".
O não-diálogo entre Proust e Joyce, contudo, não terminou ali. Continuou no táxi,
após a ceia. Joyce, meio rústico (como os estereótipos irlandeses) entrou, sem pedir
permissão, no carro que conduzia também os anfitriões da noite, Violet e Sidney Schiff. E
foi logo abrindo a janela e acendendo um cigarro. Acho que inconscientemente ele queria
matar acidentalmente seu concorrente no pódio da literatura do século, porque todo
mundo sabia que o petit Marcel era uma flor que podia fanar-se à qualquer corrente de ar.
Com efeito, repito, Proust morreu naquele ano e isto deixa Joyce sob suspeita.
Durante o trajeto que o táxi fazia, Proust ia falando sem parar com os seus anfitriões
Violet e Sydney Schiff, e Joyce o olhava meio de esguelha. Mas não se dirigiam um ao
outro. Tanto não estavam interessados em trocar palavras que, ao chegar à sua casa, na
Rua Hamelin, Proust cochichou no ouvido de Sydney Schiff: "Por favor, peça a Monsieur
Joyce que permita que o meu táxi o leve até em casa".
Assim foi. É possível que além daqueles dois "Non" durante o jantar eles tenham
trocado um "boa noite" ao se despedir. Mas não há registro disto.
Ia eu lendo essa narrativa no livro de Allain de Botton e já estava pensando em fazer
uma crônica sobre que outro diálogo poderia ter ocorrido entre Proust e Joyce quando o
ensaísta, adiantando-se ao meu gesto, criou no parágrafo seguinte um diálogo cortês
entre os dois, no qual à imaginária pergunta de Violet Schiff: ("Marcel, você conhece o
grande livro de James?"), Proust responderia: "Ulisses? Naturellement. Quem não leu a
obra-prima deste novo século?"
Diante disto, "Joyce enrubesce com modéstia, mas sem conseguir ocultar o seu
prazer", e Violet Schiff, de novo querendo fazer conversação, insiste: "Você se lembra de
algum trecho do livro? Ao que Proust imediatamente acrescenta: "Madame, eu me lembro
do livro inteiro. Por exemplo, quando o herói vai à biblioteca - desculpe o meu sotaque,
mas não posso resistir (começa a citar)..."
Contudo, esse diálogo generoso não corresponde à relação que os artistas em geral
mantém entre si.
Ao ler, contudo, aquele não-diálogo entre Joyce e Proust, pensei: isto está
parecendo conversa de mineiro. Aliás, Guimarães Rosa dizia que todo grande autor
nasce no sertão. Proust, sem dúvida, tinha alma de mineiro. Aquela coisa de passar anos
e anos num quarto forrado de cortiça ruminando na sua escrita o mundo à distância, não
me engana. Por outro lado, quanto a Joyce, apesar de seus viés paulista, poderia ser
mineiro, porque todo mundo sabe que o irlandês tem alma de mineiro ou vice-versa, daí
aquela ironia que está em Swift, Shaw, Beckett etc. Só não é totalmente mineiro aquele
diálogo, porque se Proust realmente mineiro fosse, ao ser indagado se havia lido o
"Ulisses", em vez de ter dito "Non", teria perguntado a respeito de Joyce
exclamativamente: "Ah, mas ele também escreve?".

30.6.99

A crise nossa de cada dia

Semana passada, no vôo 442, entre Rio e São Paulo, no horário de 9h34m, um
senhor dirigia-se ao assento para ele reservado no interior da chamada aeronave, mas
encontrou-o ocupado por uma americana. Nas condições normais de temperatura e
pressão da sociedade brasileira, aquele cidadão brasileiro teria dialogado com a turista ou
chamado a comissária de bordo para ser juíza do impasse.

No entanto, tomado de súbito ardor patriótico, fez um pronunciamento político para


que o avião e toda a nação o ouvisse: ‘‘Não basta o FMI se apoderar do país! Agora a
senhora quer me tirar até o meu lugar no avião!?’’

Dizem os que assistiram à cena que a acuada americana não tinha cara de ser do
FMI, mas mesmo assim escafedeu-se logo, e pode-se imaginar o que estará contando às
suas vizinhas no Arkansas sobre a fúria ideológica e econômica dos aborígines brasileiros.
O fato é que o indignado e ousado cidadão foi bem-sucedido. Mais bem-sucedido que os
economistas do Governo diante do Stanley Fischer ou que os governadores que estão
reclamando que o FMI está metendo a mão no orçamento deles.

Queridas leitoras e leitores não menos queridos: confesso-lhes que estou


preocupado. Preocupadíssimo. Vocês vão dizer ‘‘nós também’’, e vão sacar números
espantosos que mostram o beco sem saída onde a pavoneante política de Fernando
Henrique nos meteu. Mas não é desses números que se origina a minha preocupação.
Claro que saber que 75% dos brasileiros acham esse Governo péssimo/ruim/regular já é
uma calamidade. Claro que é assustador saber que alguns economistas estão começando
perigosamente a ver uma certa inflação com bons olhos, pois ela poderia fornecer aos
governos mais 23 bilhões. É como se estivessem adaptando aquela estúpida frase sobre o
estupro: ‘‘Já que é inevitável, aproveita e goza’’.

Mas o que me assusta é um detalhe. E assim como Guimarães Rosa dizia que Deus
está nos detalhes, estou para dizer que certos detalhes às vezes podem ser demoníacos.
Refiro-me a um fato que passou despercebido ao sofrido ouvido da nação. Ou seja, o
presidente outro dia começou uma frase com a palavra ‘‘repilo’’. Ele queria rechaçar
alguma coisa que andavam dizendo. Então, disse uma frase que começava com esse
verbo, algo tipo ‘‘repilo as insinuações’’...

É muito grave um presidente dizer ‘‘repilo’’. E lhes digo porquê. Não é que lhe seja
vedado repelir quem quer que seja. Não. Mas os dois presidentes que me lembro usaram
esse verbo foram Collor e Jânio Quadros. E vocês viram que fim levaram. Isto me faz
pensar que quando um presidente diz ‘‘repilo’’ é porque quem está sendo repelido é ele.

Além do mais, esse verbo que parece inofensivo quando a gente, no infinitivo, diz
‘‘repelir’’, fica esquisitíssimo na primeira pessoa do presente do indicativo, ou melhor, fica
indicativo de que o presente está esquisitíssimo na boca da primeira pessoa do país - o
presidente. Parece mesmo coisa de Jânio, tipo ‘‘fi-lo porque qui-lo’’.

Assim como os leitores me mandam cartas, artigos, manifestos e até andam me


parando na rua para sugerir que diga isto ou fale aquilo, porque todos estão querendo
usar a boca dos outros para botar a boca no mundo, outro dia acho que imaginei ou tive
um sonho de que o Chico Caruso estava fazendo uma série de charges sobre esse
episódio de o presidente não querer receber os governadores de oposição. Quer dizer,
não bastava ter essa crônica aqui, eu ainda queria invadir o espaço do colega, tomar o
lugar dele no avião.

A charge era assim: cena de uma partida de futebol, ou melhor, de uma pelada entre
garotos. De um lado, um garoto com a cara de Fernando Henrique. (Aliás, um amigo dizia
que ‘‘Fernando Henrique’’ soa como nome de filho único, mimado, com a mãe dizendo
‘‘Leva a suéter, Fernando Henrique, senão você pega um resfriado’’).

Mas voltando à fantasiosa charge do Chico Caruso, lá estava num canto, aliás, fora
da linha do campo, o Fernando Henrique abraçado com a bola e dizendo: ‘‘A bola é minha,
se eu não puder jogar do jeito que eu quero e fazer gols do meu jeito, ninguém joga’’.

Os demais ‘‘garotinhos’’ do Rio de Janeiro e outros estados gesticulam, argumentam


e dizem: ‘‘Ô Fernando, a gente sabe que a bola é sua, não fica emburrado, vamos jogar,
pô! A torcida tá esperando, cara! Bota a bola no chão!’’.

E a charge iria evoluindo a cada dia conforme o desenrolar do jogo.

Outro dia, a Miriam Leitão publicou aqui um artigo perturbador. Citou uma porção de
frases do presidente, do seu ministro da Fazenda, dos principais jornais e revistas do país
sobre a crise, a inflação, o câmbio, etc. Só que as frases que a gente pensava fossem de
Fernando Henrique, de Malan e outros, eram de Collor, Marcílio e, pasmem! do próprio
Armínio Fraga, quando ocupou, naquele tempo, uma direção do Banco Central. O artigo é
terrível, porque demonstra que o drama é o mesmo, só mudaram os personagens.

Por essas e por outras é que temos que olhar com desconfiança essa frase que
muita gente anda repetindo, que ‘‘o Brasil é maior que a crise’’, de que a ‘‘crise é
temporária e o Brasil, permanente’’. Tais frases são exercício de auto-indulgência. São
frases-bóias, são salva-vidas, que a gente lança para não submergir de vez na amargura.

O certo, porém, é constatar o contrário: nesses 500 anos a crise é a norma e alguma
estabilidade, uma exceção. No Brasil, a oração bíblica tem que ser corrigida pois em vez
de ‘‘pão nosso de cada dia’’, cada vez tem mais ‘‘a crise nossa de cada dia’’.

Assaltos insólitos

Assaltos não tem graça nenhuma, mas alguns, contados depois, até que são
engraçados. É igual certos incidentes de viagem, que quando acontecem deixam a gente
aborrecidíssimo, mas depois, narrados aos amigos num jantar, passam a ter um sabor de
anedota.
1. Uma vez me contaram de um cidadão que foi assaltado em sua casa. Até aí, nada
demais. Tem gente que é assaltada na rua, no ônibus, no escritório, até dentro de igrejas
e hospitais, mas muitos o são na própria casa. O que não diminui o desconforto da
situação.
Pois lá estava o dito-cujo em sua casa, mas vestido em roupa de trabalho, pois
resolvera dar uma pintura na garagem e na cozinha. As crianças haviam saído com a
mulher para fazer compras e o marido se entregava a essa terapêutica atividade, quando,
da garagem, vê adentrar pelo jardim dois indivíduos suspeitos.
Mal teve tempo de tomar uma atitude e já ouvia:
- É um assalto, fica quieto senão leva chumbo.
Ele já se preparava para toda a sorte das tragédias quando um dos ladrões
pergunta:
- Cadê o patrão?
Num rasgo de criatividade respondeu:
- Saiu, foi com a família ao mercado, mas já volta.
- Então vamos lá dentro, mostre tudo.
Fingindo-se então, de empregado de si mesmo, e ao mesmo tempo para livrar sua
cara, começou a dizer:
- Se quiserem levar, podem levar tudo, estou me lixando, não gosto desse patrão.
Paga mal, é um pão-duro. Por que não levam aquele rádio ali? Olha se eu fosse vocês
levava aquele som também. Na cozinha tem uma batedeira ótima da patroa. Não querem
uns discos? Dinheiro não tem, pois ouvi dizerem que botam tudo no banco, mas ali dentro
do armário tem uma porção de caixas de bombons, que o patrão é tarado por bombom.
Os ladrões recolheram tudo o que o falso empregado indicou e saíram apressados.
Daí a pouco chegavam a mulher e os filhos.
Sentado na sala, o marido ria, ria, tanto nervoso quanto aliviado do próprio assalto
que ajudara a fazer contra si mesmo.

2. No ônibus irrompe, de repente, um grupo de três pivetes que começam a colher


das pessoas dinheiro, brincos, pulseiras e relógios. É tudo, como sempre, muito rápido,
mas na hora parece uma eternidade.
Aí passam por uma mulata e lhe pedem o dinheiro da bolsa. Ela diz que só tem
quinhentos cruzeiros. O ladrão, num rasgo de generosidade, lhe diz:
- Pode ficar, você está pior do que eu.
Outro assaltante, no entanto, adverte: - Tira os brincos dela.
- Devem ser de lata - diz o ladrão.
- Insultada, e colocando-se em brios, a muleta começa a desatarraxar os brincos e
diz injuriada:
- Olha aqui, são de ouro, ouviu? Ganhei da minha sobrinha que veio de Salvador.
E jogou os brincos na sacola do ladrão.

3. Uma amiga ia encostando seu carro na esquina da Farme de Amoedo. Um tipo


com ar desses que tomam conta de carro na rua começou a ajudar para que ela
estacionasse o veículo.
O carro no lugar, ela desliga a chave, mas na hora em que ia abrir a porta, percebeu
que o guardador do carro dificultava a sua saída. Não era um guardador de carro, era um
ladrão. E pior, usava para o assalto uma arma jamais vista nessas sitações.
Abriu um jornal cheio de merda e disse:
- Se não passar a grana, lambuzo a senhora toda.
Ela não teve alternativa. Ainda sentada ao volante abriu a carteira e tirou vários
notas e deu ao assaltante, parecendo aos demais que apenas adiantava o pagamento do
estacionamento.

4. Lá ia pelo calçadão de Copacabana uma jovem senhora para a sua caminhada


matinal. Ia de bermuda, com o seu cachorrinho branco na coleira e com uma bela blusa
que havia comprado numa liquidação na véspera.
Vai andando, desviando-se de uma bicicleta ou outra, passando por um ginasta ou
outro, quando vê caminhando em sua direção duas bichas dengosas, que com um jeito
íntimo lhe dirigem a palavra:
- Bonita blusa, queridinha!
Ela já ia sorrir agradecendo quando as duas bichas, já convertidas em ladrões, mas
ainda sorrindo, diziam:
- Quer me dar essa blusa?
Claro que não queria. Mas mostraram-lhe uma arma e tornaram a exigir a blusa.
- Mas estou sem sutiã, vou ficar nua! - ponderou a vítima.
- Ora, queridinha, vista-se com seu cachorro.
E assim foi. Dada a blusa, a jovem senhora afastou-se abraçada em seu cãozinho
branco e peludo que lhe cobria os seios na luminosa manhã de Copacabana.

2.10.91

Celular: o monólogo exterior

Monólogo (ou solilóquio) era no teatro a cena em que o personagem, falando


consigo mesmo ou com alguma entidade imaginária, exprimia em alta voz os seus mais
íntimos e perturbadores sentimentos. No final do século passado, a literatura inventou o
"monólogo interior": um momento, também de introspecção, no qual o personagem do
romance deixava fluir seu pensamento sem ponto nem vírgula, num jorro surrealista e
onírico de sensações. Dizem que foi o francês Edouard Dujardin quem inventou isto, mas
Joyce foi quem capitalizou a descoberta.
Pois agora a telefonia celular acaba de criar o monólogo exterior. Como o
precedente monólogo interior, o monólogo exterior telefônico também não carece de
pontos e vírgulas, é, em muitos casos, um encachoeirado de palavras aflitas e
desnecessárias, pura sonorização de ansiedades. Mas diferentemente do monólogo
teatral clássico, não nasce de uma introspecção, não é um momento grave de intimismo,
não é nada metafísico, é, na maioria das vezes, um blablablá para ocultar o vazio e o oco
de muitas cabeças.
Não, não sou contra o progresso e o avanço tecnológico, adianto aos pós-modernos.
Estou apenas tentando circunscrever um dos mais importantes fenômenos sócio-
psíquico-comunicativos desses dias. Dizem que o Brasil já tem uns dez milhões de
celulares. Mas a França, que possui um quarto de nossa população já registra 13 milhões
desses aparelhos e até o fim deste ano alcançará 20 milhões. Estão prevendo que dentro
de quatro anos, 500 milhões de pessoas em todo o mundo terão seu celular particular.
Não sei se isto acarretará um zumbido intergaláctico capaz de fazer colidir todos os
satélites, mas, pelo que já está acontecendo, dá para imaginar o parlatório cósmico.
Dizem que Freud já se referia ao telefone como uma espécie de "prótese" do homem
civilizado. Ou seja, um objeto que se tornou um adendo, um apêndice em nossa vida.
Freud se referia ao telefone com fio. Imaginem se ele visse o que está ocorrendo com o
sem fio?
Os estudiosos de nosso cotidiano assinalam que o celular acabou por fundir,
misturar e compactar o que seria a vida profissional, a vida social e a vida familiar. E
assim como há os teóricos da "celularmania", já há também seus historiadores - pois
vivemos numa época em que a história e a interpretação da história ocorrem ao mesmo
tempo, de tal modo que não sabemos se estamos vivendo a história ou a sua
interpretação teórica. Pois dizem tais historiadores que já houve três momentos na
evolução dessa tecnologia: primeiro o aparelho era visto apenas com guardas e
funcionários da área de comunicação; depois passou para o ouvido dos executivos e
dondocas; agora é símbolo de status de todos os serviçais, dos lixeiros às domésticas.
Resulta daí, que os que se querem de elite comecem a ter vergonha de usar o celular em
público.
Vejam o que é a aceleração dos tempos. Em alguns países desenvolvidos da
Europa, o telefone com fio levou cem anos para se democratizar. (No Brasil, nunca). E o
celular, em três ou cinco anos, se popularizou tão avassaladoramente quanto o jeans. Os
benefícios são óbvios. Vários criminosos no mundo estão sendo presos rapidamente,
porque testemunhas da cena chamam a polícia imediatamente. Também dizem que os
pais estão tendo melhor controle dos filhos, e os casais estão monitorando seus próprios
passos. Há até uma estatística de que a metade das chamadas originam-se ou destinam-
se dos e para os lares.
Mas nem tudo são flores. Outro dia a televisão mostrou que todos os alunos numa
sala de aula tinham celular e se o professor não agisse energicamente interditando-os, a
sala se transformaria num teatro onde se executava um concerto para celulares e voz
humana.
Por outro lado, a famosa Brasserie Lipp, em Paris, proibiu o celular no seu recinto. E
o mais ameaçador é que médicos estão alardeando que o celular dá câncer. Estava
demorando. Fizeram uma experiência com ratos, pobres ratos, mas há quem diga que
isto é um exagero.
Vi uma charge numa revista européia onde num amplo restaurante todos estavam
falando em seus celulares. Ninguém falava com ninguém presente, só com o ausente. Foi
o retrato mais perfeito do que chamo de monólogo exterior. Assim como Beckett fez uma
peça - "A última gravação" - onde o personagem solitário conversa com gravações que
fez em certos momentos de sua vida, já imagino uma peça onde todos os personagens
estarão falando entre si através do celular. Comprovariam que ninguém fala com
ninguém. As pessoas falam com o celular. O interlocutor é o objeto.
E isto me leva a pensar numa coisa paradoxal. Ao mesmo tempo em que os
solitários estão podendo ligar para alguém e sonorizar suas ansiedades, está ocorrendo
uma "banalização" da fala e da linguagem oral semelhante à "banalização" da linguagem
escrita através do e-mail. As pessoas, em muitos casos, não estão falando entre si, estão
falando com o aparelho; do outro lado da linha, o interlocutor é um pretexto. Ou, melhor,
um pós-texto. O texto é um simples blablablá.
Sentem-se melhor as pessoas externando a ansiedade ou tendo a impressão que
estão conectadas com o mundo? Ou é isto mais um exercício de exterioridade, de
movimento e de ação que se justifica em si mesmo como a maioria dos filmes
americanos, em que acabadas as explosões, tiroteios e brigas não fica nada na cabeça
de quem os viu?
Por essas e por outras é que nessa sociedade enfartada de tanta visualidade e de
tanto apelo à exterioridade é que é necessário valorizar a introspecção e a leitura, esta,
uma espécie remanescente do monólogo interior.
Falar já foi uma arte. Saber encadear os argumentos, introduzir ironizas, seduzir pelo
ritmo e melodia do discurso era fundamental ao êxito social. Vindas da Antiguidade, a arte
de falar e a retórica tiveram o seu apogeu nos séculos XVII e XVIII e entraram em declínio
no final do século XIX.
Vejam bem, não sou contra o celular. Mas não é de hoje que sinto uma inveja
daquele personagem de Jean Christophe, de Romain Roland - o tio Gottfried, que tinha
em toda sua vida dito apenas 70 palavras, as essenciais.

7.7.99

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