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PUCSP
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP
MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO
SUB-ÁREA DE DIREITO URBANÍSTICO E AMBIENTAL
RICARDO BOSQUESI
Dissertação apresentada à
Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em
Direito do Estado, sob a orientação
da Professora Doutora Lucia Valle
Figueiredo.
São Paulo
2006
2
RICARDO BOSQUESI
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito e
aprovada em sua forma final pela Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Direito
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na área de Direito do Estado.
Banca examinadora:
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
4
Agradeço à Danny, minha esposa, pela força e
compreensão de sempre.
5
A aprovação da presente Dissertação não
significará o endosso do Professor Orientador,
da Banca Examinadora e da Pontifícia
Universidade Católica à ideologia que a
fundamenta ou que nela é exposta.
6
RESUMO
Trata-se do solo criado, instituído pela Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 –
Estatuto da Cidade, como instituto jurídico e político adotado pela Política Urbana. Sua
estrutura, elementos constitutivos, fundamentos e finalidades são objetos de
investigação deste trabalho.
Analisa-se a viabilidade de sua aplicação na concretização das diretrizes gerais
propostas no Estatuto da Cidade e princípios contidos na Constituição Federal, em
relação ao controle do uso do solo e ordenação adequada das cidades. Porém, serve para
alertar da possibilidade de seu desvirtuamento, quando ausente um plano de instituição
e controle objetivo, criterioso, impessoal e antes de tudo, moral, por parte do Município.
Mal empregado, servirá como fator de agravamento das desigualdades sociais,
permitindo práticas especulativas, socializando-se as perdas e privatizando-se os lucros
decorrentes da atividade urbanística do Poder Público.
Diante do quadrante normativo do Estatuto da Cidade em relação ao solo criado (por
ser norma geral), pouco se pode afirmar acerca da sua eficiência, como instrumento
político e jurídico da Política Urbana.
Dependerá muito mais do Município, da maneira que foi estruturado o solo criado, por
meio de seu Plano Diretor e Lei Municipal específica, o sucesso ou insucesso na
concretização dos objetivos da Política Urbana. Vários aspectos do solo criado foram
deixados ao Município para que os instituíssem de forma mais próxima a sua realidade,
no âmbito de sua competência discricionária. Neste ponto, sobreleva-se o papel da
doutrina e jurisprudência que estão se formando (haja vista a recente positivação pelo
Estatuto da Cidade), a fim de que possam ofertar parâmetros para orientar sua criação e
melhoria ou, ao menos, apontar os pontos que fatalmente poderão levar ao desvio de
finalidade.
7
ABSTRACT
This one is about the created ground, instituted by the Federal Law nº 10,257, of July,
10th of 2001 - Statute of the City, as legal and politician institute adopted for the Urban
Politics. Its structure, constituent elements, base and purposes are objects of inquiry of
this work.
It is analyzed the viability of its application, in the concretion of the general lines of
direction proposals in the Statute of the City and principles contained in the Federal
Constitution, relation to the control of the use of the ground and adequate ordinance of
the cities. However, it serves to alert of the possibility of its disparagement, when absent
a plan of institution and objective control, careful, impersonal and before everything,
moral, by the City. Badly employee, will serve as an aggravation factor of the social
inaqualities, allowing speculatives practices, socializing the losses and privatizing the
decurrent profits of the urbanistic activity of the Public Power.
Ahead of the normative quadrant of the Statute of the City in relation to the created
ground (for being general norm), little can affirm concerning its efficiency, as legal and
politician instrument of the Urban Politics.
It will depend much more on the City, in the way that was structuralized the created
ground, by its Managing Plan and specific City Law, the success or failure in the
concretion of the objectives of the Urban Politics. Some aspects of the created ground
had been left to the City so that they instituted them close to reality, in the scope of its
discretional ability. In this point, important is the role of the doctrine and jurisprudence
that are forming (has seen the recent normatization by the Statute of the City), so that
they can offer parameters to guide its creation and improvement or, at least, to point the
points that fatally will be able to lead to the purpose shunting line.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO……………………...…………………………….....................…..........
… 10
2. O SOLO CRIADO
…………............................................................................................. 23
5. DA CONTRAPARTIDA
….............................................................................................… 52
CONCLUSÃO
…………..............................................................................................……. 73
REFERÊNCIAS
……………........................................................................................……. 79
9
INTRODUÇÃO
10
Propriedade e sua Função Social”, do “desenvolvimento e relevância das normas
urbanísticas”. Fixa-se neste tópico o contexto o regime do “direito de propriedade”,
estritamente relacionado ao instituto do solo criado, que nela intervém como
instrumento da Política Urbana. Este é um ponto de contextualização econômica, social,
política e jurídica do solo criado, em face da função social da sociedade e dos
instrumentos normativos que visam concretizar referido princípio.
Na segunda parte serão verificados os fundamentos ou
pressupostos teóricos do atual solo criado, fazendo-se uma análise sobre o solo criado
da Carta de Embu. Fixados os pressupostos teóricos e os fundamentos do solo criado,
na seqüência será analisado o solo criado, conforme positivado no Estatuto da Cidade.
Será enfrentado o instrumento do solo criado em relação aos objetivos da Política
Urbana, dos mecanismos possíveis de sua implementação para que seja um instrumento
eficiente da Política Urbana.
Nas outras seções que seguirão, serão analisados com mais
detalhes os elementos que constituem o solo criado: o coeficiente de aproveitamento
básico, coeficiente de aproveitamento máximo e a contrapartida. No que toca ao
coeficiente de aproveitament básico, cuidar-se-á de sua definição; da distinção quanto
aos outros índices urbanísticos; se poderá ser único ou diferenciado; dos limites de sua
fixação; da antinomia dos interesses envolvidos e dos critérios assecuratórios da
isonomia. Quanto ao coeficiente de aproveitamento máximo, será analisado o limite de
sua fixação; sua função; se deverá ser único ou diferenciado e suas distinções com o
coeficiente de aproveitamento básico.
Em seguida, como importantíssimo elemento do solo criado, será
analisada a contrapartida, ou seja, os encargos decorrente da outorga (onerosa,
portanto) do direito de construir. Serão abordados os seguintes pontos: definição;
exigência ou isenção; da forma de exigí-la; dos fundamentos da exigência; das
finalidades dos recursos provenientes do adimplemento da contrapartida; natureza
jurídica; controle do recurso e sua aplicação.
Por fim, a última parte cuidará de verificar se o solo criado possui
a transferência do direito de construir como elemento indispensável, se é ou não
necessário para sua configuração; dos cuidados e critérios para adoção da transferência
de potencial adicional construtivo, caso utilizado.
11
1 DIREITO DE PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL.
DESENVOLVIMENTO E RELEVÂNCIA DAS NORMAS
URBANÍSTICAS.
13
construir.” As intervenções, na grande maioria, eram de cunho estético, fundadas numa
concepção monumentalista ou estética do monarca (CORREIA, 2001, p.145).
Com o desenvolvimento das idéias iluministas, no Século XVIII,
a burguesia, que já detinha um poder econômico forte, confrontou-se com o modelo
vigente, desencadeando-se na Revolução Francesa, em que se apregoou a intervenção
mínima do Estado, o seu enfraquecimento, a fim de que fossem assegurados os direitos
inatos ao homem, dentre eles o direito à propriedade, como expressão “jus-naturalista”.
Pela doutrina do Estado liberal (também denominado Estado –
mínimo ou Estado – polícia), que se corporificou no Século XIX, a ele caberia somente
a função de vigilância da ordem social e proteção contra as ameaças externas. Neste
contexto de não – intervenção, a propriedade foi erigida como garantida pessoal,
natural, inviolável e sagrada, nos termos do art. 2º e 17 da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (SANTOS, M. W. et al., 2005, p. 209).
Com a inviolabilidade do direito de propriedade, houve neste
período escassa intervenção do Poder Público na propriedade e, por conseguinte, pouca
produção de norma de conteúdo urbanístico, prevalecendo o princípio da liberdade de
construção, que somente se infirmava por meio de parcos regulamentos, fundados em
razões de segurança, ordem pública e salubridade das edificações.
É importante consignar ainda que, diferentemente do período
absolutista, toda a intervenção na propriedade por parte do Poder Público somente se
legitimaria mediante lei, submetendo-se o próprio Estado ao princípio da legalidade,
para proporcionar segurança jurídica aos administrados.
Se a consolidação do modelo liberal de Estado proporcionou, por
um lado, um progresso econômico acentuado, fomentou a revolução industrial,
valorizou o indivíduo como ser livre; por outro, trouxe sérios problemas que
influenciaram na sua própria superação.
Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 235), retrata muito bem este
aspecto:
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Como reflexo da revolução industrial, surgiu uma classe de
proletariado, que foi se aglomerando nas cidades, sem um mínimo de dignidade quanto
ao acesso ao trabalho, remuneração, moradia, saúde, lazer, higiene, etc. Este efeito
nefasto do liberalismo impulsionou, em contrapartida, o aparecimento de idéias
socialistas que proclamavam a intervenção do Estado, para socorrer a maioria excluída e
garantir os direitos fundamentais do homem.
Portanto, verificamos deste escorço histórico que, enquanto na
Monarquia Absoluta o Estado era considerado opressor da liberdade individual, no
liberalismo, o individualismo exacerbado da classe ou pessoas mais fortes, sob o ponto
de vista sócio-econômico, acabou ocasionando opressão da maioria da população, pela
falta de acesso aos direitos e garantias fundamentais.
Esta conjuntura propiciou o desenvolvimento de idéias socialistas,
chegando-se no século XX à configuração de um modelo de Estado – social ou Estado
de serviço (DALLARI, D. A., 1991, p. 237), que interfere na sociedade para diminuir os
efeitos das desigualdades econômicas e sociais, impondo, por meio de sua força
legítima, direitos e garantias fundamentais do ser humano.
Influenciados pelas Constituições da Alemanha (Weimar) e do
México, muitos países passaram a consignar em sua Carta Política expressas
disposições sobre garantias e direitos fundamentais do homem.
Afirma Correia (2001, p. 138) que foi exatamente nesta época, ou
seja, desde o final do século XIX, que houve um incremento da legislação urbanística,
“com a finalidade de minorar os males decorrentes das chamadas cidades industriais,
também apelidadas de ‘cidades carvão’, repletas de bairros operários [...] caracterizados
pelas condições desumanas e carecidos dos requisitos mínimos de higiene e de
habitabilidade”.
O direito urbanístico tornou-se relevante, desenvolvendo seus
institutos na medida em que Poder Público intervinha concretamente, de forma ativa e
não meramente regulamentar, para sanar os problemas do crescimento desordenado das
cidades e outros oriundos da concentração urbana.
Houve, com isto, profunda alteração no direito de propriedade,
atrelando-o a uma função social, por meio de expressa previsão constitucional,
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conforme artigo 14, nº 2, da Constituição Alemã; artigo 33, nº 2, da Constituição
Espanhola e o artigo 42, da Constituição Italiana.
Na Espanha, a promulgação da Constituição de 1978 deu ênfase
ao princípio da função social da propriedade, fomentando o desenvolvimento do direito
urbanístico. Inferem-se do texto constitucional diretrizes aos Poderes Públicos para
atuarem na melhoria da qualidade de vida dos habitantes, promover acesso à moradia,
evitando a especulação imobiliária e distribuindo os encargos e benefícios da atividade
urbanística. Antonio Carceller Fernández (1997, p.21) sintetiza bem estes preceitos:
Com efeito, pode-se dizer que no campo urbano, a função social que deve
cumprir o direito de propriedade de acordo com a Constituição, concretiza-se,
indubitavelmente, numa “função urbanística” que permite ao legislador o
estabelecimento de limitações, obrigações, restrições e contribuições sobre a
propriedade por razão de interesse urbanístico.
Desta forma, a propriedade do solo urbano está muito longe de ser uma
propriedade absoluta e ilimitada. Ao contrário, tem sido talvez a “função
urbanística” um dos elementos que mais tem contribuído no mundo
1
No original: “1. El que reconoce el derecho a la propriedad privada y determina que la función social de
este derecho delimita su contenido, de acuerdo con las leyes (art. 33.1 y 2).
2. El que obriga a los poderes públicos a promover las condiciones necesarias y a
establecer las normas pertinentes para hacer efectivo el derecho a una vivienda digna y adecuada,
regulando la utilización del suelo de acuerdo con el interes general para impedir la especulación y
haciendo participar a la comunidad em las plusvalías que genere la acción urbanística de los entes
públicos (art. 47)”.
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contemporâneo para a transformação radical do direito de propriedade. 2
2 No original: “En efecto, puede decirse que em el campo urbano, la función social que debe cumplir el
derecho de propriedad de acuerdo com la Constitución, se concretiza, indubitablemente, en uma “función
urbanística” que permite al legislador el establecimiento de limitaciones, obligaciones, restricciones y
contribuciones sobre la propriedad, por razón de interes urbanístico.
En esta forma, la propriedad privada del suelo urbano está muy lejos de ser una propriedad absoluta e
ilimitada. Al contrario, ha sido contribuído em el mundo contemporâneo a la transformación radical del
derecho de propriedad”.
3
No original: “La semplice lettura dell’art. 42 della Carta fondamentale consentiva di dare per pacifica la
legittimità costituzionale del diritto urbanístico e, nel contempo, di individuarne il fondamento
costituzionale: é piú che noto, infatti, che tale norma afferma che la proprietà privata puó essere per legge
limitata per fini sociali. E non é dubbio che il corretto uso e governo del território sia um interesse
generale, rappresenti un bene comune, costituisca, quindi, un fine sociale”.
17
havendo, inclusive, necessidade de alterações das legislações infraconstitucionais, a fim
de cumprirem a nova ordem constitucional. O direito de propriedade passou a ter
vocação para o atendimento de uma função social, de maneira que somente se legitima
sua tutela jurídica se estiver perseguindo mencionada finalidade.
A Professora Lucia Valle Figueiredo (2004, p.13), com muita
sobriedade, esclarece-nos como está configurado o regime jurídico do direito de
propriedade, em virtude do novo paradigma constitucional:
18
Constituição Federal de 1988, existe expressa previsão de sua função social. É o que se
nota do § 1º, do artigo 1.228:
19
entre direitos individuais, do proprietário, e direitos sociais, ao se vincular o direito de
propriedade à função social, pois é a própria norma que lhe imprime esta fisionomia.
Neste sentido, é oportuna a lição de Celso Antonio Bandeira de
Mello (2004, p. 714), ao afirmar que “não se deve confundir liberdade e propriedade
com direito de liberdade e direito de propriedade. Estes últimos são as expressões
daquelas, porém tal como admitidas em um dado sistema normativo”.
Lucia Valle Figueiredo (2004, p.295), corrobora este
entendimento ao dizer que:
20
compreendendo condutas omissivas e comissivas. Aliás, o Poder Público é o
responsável pelo controle sobre os particulares, quanto ao cumprimento das normas
urbanísticas.
Nota-se que o texto constitucional não especifica qual direito de
propriedade atenderá a função social, inferindo-se daí que todos estão afetados, recaindo
sobre a propriedade de bem imóvel, móvel, isolado ou conjuntamente, materiais,
imateriais e outros.
Daremos ênfase neste trabalho, por óbvio, à propriedade do bem
imóvel urbano. Concluímos, então, que o direito de propriedade e os demais direitos
que dele se originam, tais como o de construir, estarão vinculado aos novos parâmetros
estabelecidos pela Carta Política e normas infraconstitucionais que a regulamenta, com
vista a atingir a função social da cidade e propriedade urbana.
Foi muito feliz a iniciativa do Constituinte de 1988 ao criar um
capítulo próprio para o desenvolvimento urbano - o Capítulo II que trata da “Política
Urbana” – inserido propositadamente no Título VII, que dispõe “Da Ordem Econômica
e Financeira”. O § 2º, do artigo 182, da aludida Carta Política, estabelece que “a
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais
de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” Os artigos subseqüentes, da mesma
forma, visam concretizar o princípio da função social da cidade e propriedade.
A Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho, de 2001 – Estatuto da
Cidade - surgiu para regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelecendo diretrizes gerais para o desenvolvimento da política urbana, bem como os
instrumentos que visam concretizar referida política. Em relação ao presente trabalho,
será analisado o instrumento previsto na alínea n, do inciso V, do artigo 4º, do aludido
Estatuto, denominado outorga onerosa do direito de construir, qualificado como
instituto jurídico e político.
Pelo que foi exposto, sobreleva-se, desta forma, a importância do
Direito Urbanístico, de seus institutos, fundamentos e princípios, que determinam a
compreensão do direito de propriedade e do direito de construir.
As demais normas, estatuídas pelo Poder Público, principalmente
pelo Município, tais como o Plano Diretor, Lei de Zoneamento, Código de Obras, de
Postura e outras leis específicas, da mesma forma, não devem se afastar do aludido
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princípio da função social da propriedade.
Ao deixarem de perseguir esta finalidade, haverá
inconstitucionalidade, por afronta aos dispositivos supramencionados, e ainda, ao inciso
III, do art. 1º, incisos I e III, do art. 3º, que são os fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil.
Portanto, não restam dúvidas de que é totalmente legítima a
intervenção do Poder Público na propriedade privada, limitando seu exercício, com base
nas normas urbanísticas mencionadas. Todavia, hoje se fala da superação ou crise do
Estado Social, situação em que não mais possuiria condições de, por si só, promover as
soluções e atender as necessidades sociais.
Apregoam que os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de
regulação já não são suficientes para dar conta de resolver as necessidades atuais. Em
razão deste “enfraquecimento” do Poder Público quanto à capacidade financeira e de
eficácia jurídica para impor suas soluções, diante do quadro atual da sociedade, o
mecanismo encontrado fora sua aproximação com a iniciativa privada, por meio de uma
parceria.
Não negamos o reflexo desta “nova ordem” na Constituição (por
exemplo, a Emenda Constitucional nº 19) e nas legislações infraconstitucionais,
inclusive no campo do direito urbanístico, de propositura de novos instrumentos de
financiamento das infra-estruturas urbanas, por meio da iniciativa privada, bem como de
adoção de institutos jurídicos que estavam afetos somente ao campo do direito privado e
que hoje se vêem adotados pelas Administrações Públicas.
Todavia, os valores sociais consagrados em 1988, em nossa
Constituição Federal, não poderão ser desprestigiados em face da crise do Estado-
providência.
A despeito desta nova conjuntura, o importante é que os valores
sociais devam ser preservados e nossa Constituição Federal encontra-se aberta a esta
nova realidade, considerando as previsões da gestão democrática da cidade, por meio de
audiências públicas, iniciativa de lei pelo cidadão, controle social (por meio de
Conselhos), atribuição de competência ao Ministério Público na defesa dos interesses
sociais e coletivos e outros instrumentos de garantias dos valores fundamentais.
Não basta, contudo, a previsão abstrata na Constituição Federal.
22
Medidas concretas devem ser tomadas a fim de proporcionar eficácia a estas normas.
Sabe-se que a sociedade ainda não está preparada para o exercício destes instrumentos
democráticos. Desta forma, as autoridades deverão fomentar a participação popular, por
meio da sociedade organizada e melhoria no acesso às informações.
Por fim, é importante ressaltar que, o não acatamento das
sugestões ofertadas pela sociedade, na gestão da Administração Pública, deverá ser
expressamente motivado, sob pena de tornar-se inócua aludida participação. Embora as
sugestões não vinculem, não podem ser ignoradas por completo.
23
2 O SOLO CRIADO
24
determinada área da cidade, sem que se possa comprometer a qualidade de vida, faz-se
necessário preparar as infra-estruturas urbanas, tais como vias, águas, esgotos,
transportes urbanos, saneamento básico, bem como outras infra-estruturas sociais, como
escolas, creches, postos de saúde, etc.
Em outros termos, se por um lado esta nova técnica de construção
se desenvolveu para aumentar o uso do solo urbano, por outro lado, gerou preocupações
no que concerne ao planejamento, gestão e controle da atividade urbanística. Isto
impulsionou discussões entre os profissionais envolvidos no estudo do desenvolvimento
urbano, de diversas áreas, tais como engenheiros, arquitetos, economistas, juristas e
outros. Estes, diante da nova realidade urbana, apregoavam maior interferência do Poder
Público na promoção, controle do uso e ocupação do solo urbano, para ordenamento
adequado das cidades.
É neste contexto que surge a idéia do solo criado, visando servir
como instrumento de controle urbanístico e de correção do adensamento urbano. Ainda,
o solo criado é considerado uma importante estratégia de repartição dos benefícios e
ônus ocasionados pelas atividades urbanísticas realizadas pelo Poder Público, tais como
construções e alargamentos de avenidas, ampliação dos serviços públicos, infra-
estruturas e equipamentos sociais. Desta forma, também evita a apropriação, pelo
particular, das mais valias sobre seus imóveis, em razão daquelas obras públicas.
Por outro lado, não se deve olvidar da existência de diferentes
realidades, causas peculiares a cada país, que levaram à elaboração do instituto do solo
criado ou análogo, dotados de mecanismos diferenciados, a fim de responderem às
respectivas necessidades. Todavia, não se nega a influência recíproca entre os diversos
institutos, de suas legislações, que são adaptadas às diferentes situações.
O solo criado foi suscitado originalmente em 1971, como criação
de um grupo de estudiosos, especialistas da Comissão Econômica da Organização das
Nações Unidas - ONU, na cidade de Roma, que tinham por preocupação ordenar os
espaços urbanos (FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA – CEPAM, 2001, p. 335).
Para eles o direito de edificar não era um direito inerente ao
direito de propriedade, mas pertencente à coletividade. Desta forma, para que o
proprietário de um determinado imóvel pudesse construir além de uma determinada
área, deveria obter uma concessão ou autorização do Poder Público (GRAU, 1983, p.
25
60).
Na França, o denominado Teto Legal de Densidade (“Plafond
Legal de Densité”), instituído pela Lei nº 75-1.328 de 31 de dezembro de 1975,
estipulava-se que ao proprietário corresponde o direito de construir, limitado a um
coeficiente, fixado em lei. Este coeficiente legal representava a quantidade de
construção permitida, índice que expressa a proporção da área construída sobre a área
do terreno.
Fixou-se por meio da lei francesa que em todo o território francês
seria permitida a construção correspondente ao coeficiente “1”, ou seja, na extensão
igual à área do terreno, enquanto que, para a região de Paris, o coeficiente fixado era de
“1,5” (que corresponde a uma área e meia do terreno).
Caso o proprietário do terreno, ou quem de direito, pretendesse
construir além daqueles patamares legais de densidade, acima mencionados, estaria
subordinado ao pagamento de uma soma igual ao valor do terreno. A razão disto se
funda no ressarcimento do beneficiário junto à coletividade. Esta seria a titular do
direito de construir acima do patamar legal, enquanto aquele o titular do direito de
construir aquém do patamar legal (MARQUES NETO, 2002, p. 225).1
Na Itália, a Lei nº 10, de 28 de janeiro de 1977 separou o direito
de construir do direito de propriedade. Toda e qualquer construção, transformação
edilícia ou urbana, independentemente da extensão, estaria submetida a uma concessão
do direito de construir, específica, por parte do Prefeito (“sindaco”), consoante seu art.
1º, “in fine”.
Por esta lei, o direito de construir na Itália não mais seria
decorrência natural do direito de propriedade, mas dele se destaca para constituir
concessão do Poder Público. Em outros termos, o direito de construir não estaria
atrelado ao direito de propriedade, sendo que a possibilidade e forma de edificação
decorreriam dos planos urbanísticos.
Esta lei previu, ainda, uma contrapartida para a concessão do
direito de edificar, sendo que os recursos daí decorrentes já estavam afetados para
realização de obras de urbanização, restauração do patrimônio cultural imobiliário e
outros programas públicos.
1
In: Estatuto da Cidade – Comentários à Lei Federal 10.257/2001, Obra coletiva, publicada pela
Malheiros, sob a coordenação de Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz.
26
Segundo Santos (2004, p. 208), a Corte Constitucional Italiana,
em 1980, após a entrada em vigor da Lei nº 10, de 28 de janeiro de 1977, acabou
considerando que o direito de construir é inerente ao direito de propriedade. Sendo
assim, fracassou na Itália a tentativa de separação entre o direito de propriedade e o
direito de construir.
Nos Estados Unidos, o instituto do Space Adrift encontra-se
atrelado ao da transferência do direito de construir. No caso em que um imóvel que teve
seu potencial construtivo reduzido, em virtude de ter sido declarado como de interesse
histórico pelo Poder Público, autorizava-se ao proprietário alienar este potencial, não
utilizado, para que este fosse acrescentado em outro imóvel, que somente assim poderia
ver excedida a área construída.
No Brasil, as preocupações de cunho urbanístico surgiram mais
tarde, pois, a urbanização iniciou-se com o processo de industrialização, a partir de
1930, sendo que no período compreendido entre 1940 e 1980 houve um enorme
crescimento econômico. Começaram a despontar as grandes metrópoles, especialmente
São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, para onde se dirigiam grande parte da
população rural, em busca de melhoria da qualidade de vida e garantia de emprego, já
que no campo a oferta de trabalho se definhava.
Ocorre que, o crescimento exacerbado das cidades e o
adensamento populacional, desprovido de uma política urbana adequada, acarretaram
conseqüências negativas, tais como poluição do ar e das águas, enchentes,
desmoronamentos, crianças abandonadas, violência, epidemias, congestionamento no
trânsito de veículos automotores, proliferação de habitações precárias e insalubres,
ausência de saneamento básico, surgimento de favelas e patente segregação social.
De acordo com Silva (1981, p. 54-55), na década de 60 houve
tentativa de implantar uma política urbana no Brasil, criando-se o Banco Nacional da
Habitação – BNH, as Sociedades de Crédito Imobiliário e o Serviço Federal de
Habitação – SERFHAU, consoante Lei 4.380, de 21 de agosto de 1964. O artigo 1º da
aludida Lei “determinou que o Governo Federal, através do Ministério do
Planejamento, formulasse a política nacional de habitação e planejamento territorial e
deu ao SERFHAU atribuições ligadas ao desenvolvimento urbano”.
27
A produção de legislações esparsas não foi suficiente para dar
conta do processo de urbanização, que se acelerou após a 2ª Grande Guerra. Sofrendo
influência das Constituições do México e da Alemanha, no Brasil, a Constituição de
1934, seguidas pelas Constituições de 1946 e 1967, passaram a prever direitos e
garantias aos interesses sociais, (SOUZA et al., 1991, p. 150-151)2. Contudo, somente
com o advento da Constituição de 1988 é que ocorreu a sistematização da Política
Urbana.
Conforme mencionado, frisa-se que foi numa conjuntura de
degradação do ambiente urbano, que a discussão acerca dos fundamentos e princípios
correlatos ao instituto do solo criado ganhou corpo em nosso país. Observava-se, nesta
época o seguinte quadro: a) crescimento desordenado das cidades; b) redução
quantitativa e qualitativa dos espaços habitáveis; c) aumento da especulação imobiliária
e conseqüente dificuldade de acesso à moradia digna; d) ausência de infra-estruturas
urbanísticas e equipamentos comunitários; d) insuficiência de transportes coletivos; de
saneamento básico adequado para todos; e) restrito acesso à água tratada, etc.
Com o objetivo de criar um instrumento que pudesse minimizar
referidos problemas, observando as experiências estrangeiras, no Brasil se desenvolveu
a idéia do solo criado, consolidada num documento denominado “O Solo Criado/Carta
de Embu”, emanado num seminário realizado em São Paulo, no mês de junho de 1976,
elaborado por vários especialistas de renome nacional. Pela atualidade e importância de
suas conclusões, é oportuna a transcrição abaixo (Fundação Prefeito Faria Lima –
CEPAM, 1977):
2
In: “Um caminho para minorar os problemas urbanos”, Obra Coletiva, publicada pela Revista dos
Tribunais, sob o título “Temas de Direito Urbanístico”, coordenada por Adilson Abreu Dallari e Lucia
Valle Figueiredo. Ainda, a respeito da evolução histórica das legislações urbanísticas no Brasil, é
interessante a exposição de SILVA (1981, p. 49-55).
28
2.1. O proprietário de imóvel sujeito a limitações administrativas, que
impeçam a plena utilização do coeficiente único de edificação, poderá
alienar a parcela não-utilizável do direito de construir.
2.2. No caso de imóvel tombado, o proprietário poderá alienar o direito de
construir correspondente à área edificada ou ao coeficiente único de
3
edificação.
3
Segundo Silva (1981, p. 315): “Ao que consta, a primeira vez que se tocou no assunto coube a Eros
Grau, Antonio Carlos Cintra do Amaral e Jorge Bartholomeu Carneiro da Cunha, em seminário interno do
antigo Grupo Executivo da Grande São Paulo – CEGRAN, que, no início de 1975, aventaram a idéia de
definição, por lei federal, de que há distinção entre direito de propriedade e direito de construir, de que
decorreria uma conclusão importante, qual seja a de que ‘não existem limitações administrativas ao
direito de edificação do proprietário, visto que tal direito não lhe pertence, sendo lhe atribuído mediante
autorização ou concessão do poder público’. Em verdade, essa idéia é ainda mais avançada do que a do
solo criado, porque não constitui simples limitação ao direito de construir, como neste, mas dissocia este
direito do direito de propriedade. Nesses termos, a idéia não prosperou.” Ainda, ressalta este autor que o
solo criado emanou de um documento que serviu de base para futuros seminários, até culminar na Carta
de Embu, redigido em 1975 pelos técnicos: Antonio Cláudio Moreira Lima e Moreira, Dalmo do Valle
Nogueira Filho, Domingos Theodoro de Azevedo Neto e Clementina de Ambrosis.
4
Vide comentário à nota número “1”, desta Seção.
29
Para tanto, o beneficiário do solo criado deverá entregar ao Poder
Público uma contrapartida, que consiste na doação de áreas ao Poder Público, na
proporção da extensão do solo criado, ou, no caso de inexistir tais áreas ou não
corresponder aos requisitos legais, deverá entregar o equivalente econômico.
Outro fundamento que se infere da Carta de Embu, diz respeito à
justa distribuição de benefícios e encargos da atividade urbanística. É legítimo cobrar
uma contrapartida do beneficiário do solo criado, que teve seu imóvel valorizado,
revertendo-se para a coletividade a devida compensação econômica. Demais, objetiva-
se desestimular a especulação imobiliária atrelada à política urbana, forma totalmente
odiosa, pois, se determinado lote poderá valer mais em função do potencial construtivo,
resultante do planejamento urbano, esta mais-valia deverá ser custeada por seu
proprietário. Enfim, todos estes fundamentos buscam concretizar o princípio da função
social da propriedade.
No Brasil é recente a positivação do instituto do solo criado,
ocorrendo apenas em 10 de julho de 2001, com a Lei Federal n 10.257,
especificamente na Seção IX, do Capítulo II.
No entanto, ressalta-se que muitos municípios, mesmo antes do
advento do Estatuto da Cidade, já dispunham em suas legislações acerca deste instituto,
sendo os casos, entre outros, de Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, João Pessoa,
Natal e Recife5. Se isto era válido ou não, sob o ponto de vista constitucional,
atualmente pouco importa, uma vez que esta controvérsia foi superada com a entrada
em vigor do Estatuto da Cidade. No entanto, esta questão será tratada adiante.
Visto brevemente o contexto histórico e os fundamentos básicos
do instituto, interessa perscrutar acerca de seu conceito. Primeiro, é necessário ressaltar
que o solo artificial ou solo virtual, decorrente daquelas técnicas construtivas, não deve
ser encarado como sinônimo de solo criado.
Enquanto o primeiro, isoladamente, pode ser considerado mero
5
Respectivamente: Lei Complementar n° 16, de 4 de junho de 1992; Leis municipais números 9.725, de 2
de julho de 1984 e 10.209, de 9 de dezembro de 1986; Lei Complementar n° 315, de 1994; Lei
Complementar n° 3, de 30 de dezembro de 1992; Lei Complementar n° 7, de 5 de agosto de 1994 e Lei n°
15.547/91.
30
evento, ato jurídico lícito ou ilícito, a depender das circunstâncias6, consubstanciado
pelo emprego de técnicas, mão de obra e materiais na construção sobre ou sob certo
terreno urbano, além da extensão do solo natural; o solo criado, por sua vez, é a
terminologia jurídica empregada nos casos em que ocorre a possibilidade de criação do
solo artificial, após a devida outorga onerosa do direito de criar referido solo, mediante
o atendimento de determinadas condicionantes normativas, fixadas pela autoridade
competente.
Nesta esteira, se o solo artificial foi construído mediante prévia
outorga onerosa do Poder Público Municipal, tratar-se-á de solo criado. Todavia, se o
solo artificial foi construído sem prévia outorga onerosa do Poder Público Municipal,
poderá ser mero evento ou, quando vertido em linguagem competente em auto de
infração à legislação urbanística, fato jurídico ilícito.
A infração às normas de cunho urbanístico, no caso em tela,
poderá ocorrer de duas formas, quando na área onde estiver situado o solo urbano não
for possível aplicar o instituto do solo criado, com base nas normas edilícias municipais
ou quando admitido, a construção ultrapassar o coeficiente máximo previsto em lei,
consoante será visto adiante. Também poderá ocorrer na hipótese em que, embora seja
possível aplicar-se o instituto do solo criado, na área onde está situado o solo urbano
edificado, o interessado não obteve previamente a outorga onerosa do direito de
construir. Neste caso, entende-se que seja possível sua regularização, mediante o
pagamento de uma contrapartida e outorga posterior do direito de construir.
Não se adentrará, por ora, na análise dos casos em que a lei
municipal poderá permitir a venda pelos particulares do adicional construtivo. O que
importa destacar é que, originariamente, este adicional construtivo parte da outorga do
Poder Público, e que só depois, se for o caso, será concedida a transferência de um
particular ao outro, mediante controle do próprio Poder Público que o outorgou.
Retomando-se a distinção entre solo criado e solo artificial,
6
Entendemos que a construção do solo artificial, enquanto não vertido numa linguagem competente, por
meio da aplicação da norma jurídica, seja por meio do ato administrativo da outorga onerosa do direito de
construir, seja por meio de um auto de infração à ordem urbanística, será mero evento pertencente ao
campo do mundo social, mas não ao direito. É o que conclui Tárek Moysés Moussallem (2001, p. 146-
147): “Então, fato jurídico é o resultado da incidência da linguagem normativa sobre a linguagem da
realidade social, só possível pelo ato de aplicação do direito [...] Em suma: o fato jurídico é o enunciado
protocolar resultante de ato de aplicação que executa a incidência da linguagem normativa sobre a
linguagem da realidade social, localizado no antecedente de uma norma concreta”.
31
conclui-se que, o solo artificial somente será solo criado se for reconhecido
juridicamente pela autoridade pública competente, por meio do ato administrativo da
outorga onerosa do direito de construir.7
Segundo Carvalho Filho (2005, 191-192) o solo criado “é o
instituto jurídico em si, que pode ser, ou não, adotado em determinado ordenamento
jurídico [...] a outorga onerosa do direito de construir é o ato administrativo que resulta
do acolhimento do instituto; [...] é o efeito jurídico da existência do solo criado no
ordenamento”.
Conceitua-se o solo criado, portanto, como o direito de construir
resultante do ato administrativo de outorga, acima de um determinado índice de
aproveitamento básico, fixado em lei, em solo urbano situado numa zona específica, em
que haja permissão para adoção deste instituto, mediante o adimplemento, pelo
beneficiário, da prestação de uma contrapartida, fixada pela autoridade competente, para
o fim de assegurar o equilíbrio entre os encargos e benefícios resultantes da atividade
urbanística e a função social da propriedade.
Na mesma esteira, Di Sarno (2004, p. 76):
7
Com o mesmo posicionamento, Marques Neto (et.al, 2003, p 232): “A outorga onerosa do direito de
construir não substitui ou se confunde com a noção de solo criado. A onerosidade da outorga é, na
verdade, uma conseqüência do estabelecimento do instituto do solo criado”.
32
Está correta a assertiva de que o “solo criado nada mais é que a
possibilidade conferida pelo Poder Público de edificar acima do coeficiente previsto em
lei” (SANTOS, M. W. et al., 2004, p. 211).8 Se o pode Público conferiu a possibilidade
de edificar acima do coeficiente previsto em lei, é porque emitiu o ato administrativo da
outorga onerosa do direito de construir e o beneficiário cumpriu o encargo, ou seja, a
contrapartida correspondente.
O solo criado é justamente esta possibilidade, ou melhor, esta
faculdade de edificar além do coeficiente básico, que surgiu da outorga do Poder
Público Municipal, com base nas leis urbanísticas. Se houve construção material ou não
sobre determinado solo urbano é irrelevante para sua caracterização, o que importa é
que o ato administrativo de outorga foi emitido.
Esta é mais uma razão pela qual o solo criado não poderá ser
confundido com o solo artificial, pois, o primeiro é um “direito subjetivo”, que consiste
na faculdade jurídica de construir além do coeficiente de aproveitamento básico
(observados os limites legais), de natureza imaterial; enquanto o segundo é a própria
construção que exorbita da extensão do solo natural, pertencente ao campo da realidade
física, do mundo material.
A fixação de limites construtivos (coeficientes básicos e
máximos) consectários ao solo criado constitui limitação à propriedade e não restrição.
Sendo assim, sua constituição pelo Plano Diretor não gera direito à indenização, em
razão de seu caráter geral. Em relação ao “direito de propriedade”, não há que se falar
nem em limitação, pois, seu conteúdo é resultado do conjunto de normas que traçam seu
regime jurídico.
Se o direito de propriedade tem conteúdo e forma definidos pelas
normas jurídicas, que lhe atribuem uma função social, não entendemos que o solo
criado seja uma limitação ou restrição ao “direito de propriedade”, mas sim um fator
que participa no delineamento de seu perfil.
Aliás, com os problemas de ordenação do solo urbano, que
surgiram com a urbanização, temas ligados ao Direito Urbanístico (planejamento,
gestão e controle urbanísticos) passaram a ser preocupações inevitáveis e mais
freqüentes para os estudiosos e governantes.
8
In: “Dos Instrumentos da Política Urbana”, Obra Coletiva, publicada pela Revista dos Tribunais, sob o
título “Estatuto da Cidade”, coordenada por Odete Medauar e Fernando Dias Menezes de Almeida.
33
Todavia, nem sempre em todo e qualquer município será admitida
a adoção do solo criado. Os Municípios têm a faculdade de utilizar, ou não, deste
instrumento urbanístico, conforme sua peculiar necessidade. A Política Urbana de cada
município será dotada dos instrumentos urbanísticos que melhor aprouver para o caso
concreto, na tríplice função Estatal de ordenação do solo urbano: planejamento, gestão e
controle.
34
3 OUTORGA ONEROSA DO SOLO CRIADO PREVISTA NO
ESTATUTO DA CIDADE
Seção IX
Da outorga onerosa do direito de construir
Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir
poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado,
mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
§ 1º. Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre
a área edificável e a área do terreno.
§ 2º. O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único
para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona
urbana.
§ 3º. O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos
coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a
infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperada em cada área.
Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida
alteração de uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo
beneficiário.
Art. 30. Lei Municipal específica estabelecerá as condições a serem
observadas para a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso,
determinando:
I – a fórmula de cálculo para a cobrança;
II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;
III – a contrapartida do beneficiário.
Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de
construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos
incisos I a IX do art. 26 desta Lei.
35
A Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM (2005, p. 118-119),
considera que a outorga onerosa do direito de construir se divide em duas categorias
distintas: o solo criado e a alteração de uso. Vejamos:
36
Na verdade, consoante se extrai do art. 4º, inciso V, alínea n;
artigos 30 e 31, do Estatuto da Cidade, existem dois atos administrativos distintos:
outorga do direito de construir e a outorga do direito de alteração de uso. Todavia,
ocupam lugar comum no Estatuto da Cidade pelas seguintes razões: a) possuem
natureza onerosa, como regra geral; b) são tidos como espécies de instrumentos
jurídicos e políticos da Política Urbana, no Estatuto da Cidade; c) estão submetidos à
determinada Lei municipal específica, que irá dispor sobre as condições da emissão do
respectivo ato, quanto ao tipo e fórmula do cálculo da contrapartida e quanto aos casos
possíveis de isenção da contrapartida; d) têm implicações diretas com o ordenamento da
cidade; e) têm o mesmo destino da aplicação dos recursos, provenientes das
contrapartidas, cobradas pela emissão dos respectivos atos administrativos, ou seja, às
finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei.
Não será abordada a outorga onerosa do direito de alteração do
uso do solo, com profundidade merecida, por transbordar o objetivo desta dissertação, o
que se permite dizer, tão somente, que sua aplicação afronta aos objetivos da Política
Urbana, pois esta demanda um controle rigoroso do zoneamento e uso do solo. Destarte,
o art. 29, do Estatuto da Cidade é inconstitucional.
Interessa, por ora, o estudo da outorga onerosa do direito de
construir, ato administrativo pelo qual se concede a um indivíduo o direito de construir
além do coeficiente de aproveitamento básico, fixado em lei, mediante exigência de
uma contrapartida.
Em outros termos, seria correto dizer que a outorga onerosa do
direito de construir é o ato administrativo pelo qual se constitui o solo criado. Pode-se
denominá-la, portanto, de outorga onerosa do solo criado.
Gasparini (2002, p. 170), por sua vez, conceitua a outorga
onerosa do direito de construir como “a licença dada pelo Município ao particular,
proprietário de certo imóvel situado em área urbana, delimitada pelo plano diretor, para,
mediante contrapartida, construir acima do coeficiente de aproveitamento”.
Consoante Figueiredo (L.V., 2005, p. 124) a “outorga onerosa
consiste na possibilidade de edificação maior mediante contrapartida do construtor e,
além disso, deve haver possibilidade de a área comportar tal edificação”.
Ainda:
37
É, portanto, a outorga onerosa uma exceção que o Poder Público permite a um
particular de construir acima do coeficiente de aproveitamento previsto na área
em que se situa o imóvel, desde que este particular, em contrapartida, faça uma
prestação em prol do desenvolvimento das funções sociais da cidade e do bem-
estar de seus habitantes. (FRANCISCO, 2001, p. 206)
38
referido direito, que, aquiescendo ou não, consoante interesse da coletividade,
constituir-se-á ou não em prol daquele o direito de construir, se e quando as condições
legais e concretas autorizarem, e desde que haja a devida compensação da outorga do
direito, por meio de uma contrapartida do beneficiário.
Sendo assim, é um ato discricionário (FIGUEIREDO, L. V.,
2005, p. 125), em que a autoridade competente deverá analisar cada pedido, diante das
circunstâncias, podendo, inclusive, não deferir o pedido de outorga.
Contrariando este entendimento, Gasparini (2002, p. 172)
defende a natureza vinculada do ato administrativo da outorga onerosa do direito de
construir:
39
razões para se negar o ato de outorga. Diante disto, acaba por categorizar o ato
administrativo de outorga do direito de construir como vinculado.
No entanto, não se pode concordar com esta posição. Já foi dito
que o solo criado encontra-se no Estatuto da Cidade como um instrumento jurídico e
político de efetivação da política urbana. Sendo assim, deverá estar em consonância
com o plano urbanístico. No entanto, admite-se que nenhum plano é infalível ao ponto
de afastar eventual equívoco ou imprevisão.
As autoridades municipais e os técnicos envolvidos no
planejamento não devem conceber o Plano Diretor como um fim em si mesmo, mas
como um instrumento, veículo de identificação da realidade urbana, que propõe
mecanismos de alterações ou manutenções desta realidade, conforme o caso,
objetivando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantindo o
bem-estar de seus habitantes.
De acordo com as peculiaridades de cada município, de cada área
ou região, serão necessários mecanismos distintos para solucionarem os problemas
existentes. O Plano Diretor não é mera formalidade legal, deve estar sensível a tudo
isto, para que assim, possam ser previstos quais os tipos de instrumentos que irão
atender a específica necessidade.
Dependendo da peculiaridade do Município, poderá optar pela
instituição ou não de determinados instrumentos, entre eles, o solo criado.
40
Frisamos nosso entendimento, no sentido de que há
discricionariedade tanto no momento da avaliação política quanto à adoção ou não
deste instituto, da forma e extensão na previsão normativa, bem como há
discricionariedade no momento da emissão do ato administrativo da outorga onerosa.
Fala-se em discricionariedade para o legislador municipal. O
Estatuto da Cidade estabeleceu um quadrante normativo, no âmbito das normas gerais
de fixação de diretrizes do instituto do solo criado. Por outro lado, deixou vários pontos
a serem preenchidos pela legislação municipal, tal com fixação de índices, estipulação
do “quantum” da contrapartida e outros, conforme as peculiaridades do Município.
Em relação ao ato administrativo da outorga onerosa, também
defendemos sua natureza discricionária. Não se pretendendo delongar no conceito de
discricionariedade, por suplantar o objetivo deste trabalho, é válido adotar, por ora, o
ensinamento de Celso Antonio Bandeira de Mello (2003, p. 09; 48):
41
específica deverão prever os critérios a serem considerados no momento da apreciação
do requerimento de outorga onerosa do direito de construir. Estes critérios deverão, por
sua vez, afinar com os objetivos da política urbana.
Desta assertiva, dois pontos merecem esclarecimentos: 1) quais
serão estes critérios?; 2) quais serão os objetivos da política urbana a serem perseguidos
pelo solo criado?
Em relação à primeira indagação, a resposta insere-se no campo
do poder discricionário do legislador municipal. Substitui-se o problema? Há de se
dizer que no momento da criação do solo criado no Plano Diretor e no momento da
criação da norma municipal específica, deverão ser analisadas as peculiaridades de
cada Município e assim, fixá-los em sintonia com a realidade que lhe serviu de
substrato. Desta forma, fica difícil estabelecer aqui quais seriam os critérios específicos
a serem observados, pois cada realidade moldará o tipo ideal.
O certo é que todos deverão perseguir os objetivos da política
urbana. Admitimos que, ao dizer que os objetivos da política urbana se fundam no
“bem estar social de seus habitantes”, na “finalidade pública” em nada esclarece o
problema, pois estaríamos utilizando termos vagos por demais, com imprecisão
semântica que impossibilitaria vislumbrar-se, pelo menos, a idéia do que se pretende
com referida política. A parte final do “caput” do art. 182, também possui referido
conceito jurídico indeterminado: “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
Embora contenha uma imprecisão semântica, não são termos
ocos, tendo um norte, que nos faz inferir um conteúdo possível à luz das circunstâncias
reais do caso concreto. Em relação específica ao solo criado, considerando seus
elementos fundamentais, como instrumento jurídico e político da política urbana, pode-
se de antemão expressar os objetivos por ele visados, que serão vistos adiante, cabendo
agora somente o elenco: a) promover o ordenamento adequado da cidade, evitando-se o
adensamento das áreas em face de novas construções; b) servir de instrumento de
isonomia, na justa distribuição dos ônus e benefícios da atividade urbanística; c) servir
como instrumento de correção ou redução das externalidades negativas do mercado
imobiliário.
Se da aplicação do instrumento do solo criado resultar no
42
sacrifício destas metas, a autoridade deverá negar o pedido de outorga. Para tanto,
deverá motivar expressamente sua decisão, com base nas circunstâncias do caso
concreto, explicitando as previsões do plano em antinomia com a realidade posta no
momento da outorga, prejudicial aos preceitos da Política Urbana.
Demais, quanto mais se executa o plano urbanístico, mais ele se
torna obsoleto. Como o desenvolvimento urbano é mutante, o que se planejou ontem
como ideal, hoje poderá ser prejudicial, em virtude da alteração da realidade que lhe
serviu de base ao planejamento.
Assim, deve-se tomar a devida cautela no momento da concessão
da outorga onerosa do direito de construir, ao se verificar se é útil ou prejudicial a
aplicação do instituto do solo criado. O Plano Diretor e demais normas urbanística
possuem caráter dinâmico. A Política Urbana pode fracassar se houver aplicação cega
do plano, sem se perscrutar, a cada momento de sua aplicação, sobre a subsunção do
plano à realidade.
Se houve alteração dos pressupostos fáticos considerados pelo
plano, em face da nova realidade, posta em análise no momento da outorga, não há
como aplicá-lo formalmente, sob pena de se desvirtuar dos objetivos e dos
fundamentos de determinado instrumento urbanístico. Em suma: não se aplica o mesmo
instrumento, para necessidade diversa, ou seja, se a “ratio” é outra, outro deve ser o
instituto aplicado.
Em virtude destes argumentos, não há como sustentar que a
outorga onerosa do direito de construir possua natureza vinculada. Encará-la como tal é
um erro, que poderá comprometer o ordenamento adequado da cidade e a consecução
de sua finalidade social.
Ilustrando, temos a seguinte hipótese: um Município instituiu em
seu Plano Diretor e Lei Municipal Específica o instrumento do solo criado; tomou por
base a infra-estrutura existente em determinada área e seu entorno, bem como o
adensamento provável (§ 3 , do art. 28, do Estatuto da Cidade), fixando o coeficiente
de aproveitamento máximo e respectivo estoque para a zona. Por meio da lei específica
aludida, determinou as condições a serem observadas para a outorga, a forma do
cálculo para sua cobrança e a contrapartida do beneficiário.
Passado um tempo, referida zona e seu entorno adensou-se mais
43
que o previsto, tanto pelo volume quanto pelo período esperados, acarretando
congestionamentos nas ruas e transtornos decorrentes da falha na prestação dos
serviços públicos em geral. Esta situação poderia não ter sido prevista, seja pela própria
impossibilidade de vislumbrá-la, seja pela falha do planejamento. Perante esta situação,
seria correto exigir da autoridade responsável conceder novas outorgas? Isto não iria
agravar mais ainda o problema?
Não se trata de apologia ao descumprimento das normas de
cunho urbanístico. Frisa-se que a atividade urbanística está calcada no princípio da
legalidade, contudo, o que se pretende, de fato, é assegurar a finalidade da Política
Urbana, bem como todos os demais princípios correlatos a esta atividade. No caso,
acima de qualquer interesse individual, prevalece o interesse público.
Na gestão e controle do desenvolvimento urbano, as autoridades
e técnicos envolvidos, freqüentemente se deparam com o inesperado ou com fatores
negativos que acabam se desenvolvendo de forma mais célere que o estimado. Por isto,
esta preocupação não é ignorada pelas legislações.
Exemplo disto é o Plano Diretor de São Paulo (Lei nº 13.430, de
13/09/2002), que no art. 212, §§ 3º e 4º, exige monitoramento freqüente sobre o
impacto na infra-estrutura e no meio ambiente, decorrente da concessão da outorga do
potencial construtivo adicional, e, caso este monitoramento constate que haja uma
tendência de saturação da ocupação de determinada área da Cidade, no período de um
ano, a concessão da outorga onerosa do potencial construtivo adicional e a
transferência do direito de construir poderão ser suspensas, no prazo de 180 (cento e
oitenta) dias, por meio de Decreto do Executivo.
Este posicionamento está em sintonia com o princípio da coesão
dinâmica, implícito ao planejamento urbano. Daniela Campos Libório Di Sarno (2004,
p. 51) explica que:
44
Se este princípio parte da premissa, já constatada, de que a
própria aplicação do plano altera a realidade, demandando a alteração do planejado,
pela mesma razão poderá deixar de se outorgar o direito de construir (ou seja, aplicar o
solo criado), caso se verifique que este ato não mais se coaduna com o interesse
público. Não quer dizer que a autoridade tenha um poder arbitrário. Há sim um poder
discricionário, em que se exige a devida motivação do ato denegatório da outorga.
Como dispositivos que concretizam aludidos princípios, temos,
também, o § 3º, do art. 40, do Estatuto da Cidade, que obriga a revisão do Plano Diretor
pelo menos a cada 10 (dez) anos, ao passo que no inciso III, do art. 42, do mesmo
Estatuto, dispõe que o plano diretor deverá conter, no mínimo, sistema de
acompanhamento e controle.
Foi dito alhures que muitos municípios no Brasil, mesmo antes
do advento do Estatuto da Cidade, já dispunham nas suas legislações acerca do solo
criado. No entanto, apesar da doutrina e Carta de Embu terem delineado aludido
instituto, posicionou-se no sentido de que havia inconstitucionalidade na sua
implantação, somente com base na legislação municipal, sem que houvesse prévia Lei
Federal que o regulamentasse.
Bastos (1993, p. 223-224), em parecer acerca do projeto de Lei
do Plano Diretor do Município de São Paulo, emitido em 25 de março de 1991,
concluiu haver inconstitucionalidade da previsão de instrumentos da política urbana,
fundando-se na necessidade de prévia lei federal:
46
sobre seus princípios e objetivos, além de estabelecer a competência municipal para seu
desenvolvimento. O Estatuto da Cidade regulamenta a Constituição Federal quanto a
esta matéria, estabelecem-se as diretrizes gerais, fundamentos e finalidades da Política
Urbana. Para tanto, ele ainda define os diversos instrumentos que atuam no
planejamento, gestão e controle de referida política.
O Plano Diretor, por sua vez, é o instrumento básico da política
de desenvolvimento e de expansão urbana1. Nele se farão constar:
a) Os aspectos físicos, econômicos e sociais atuais e os desejados pela sociedade, com
mecanismos que visem alterar a realidade presente, na busca de uma melhor qualidade
de vida da população, propiciando o exercício de seus direitos básicos, tais como
moradia, transporte público, saneamento básico, saúde, educação, lazer e trabalho
(consoante o art. 182, § 1º, da Constituição Federal);
b) Planejamento do desenvolvimento urbano, explicitando os objetivos básicos da
política urbana (consoante o art. 30, VIII, da Constituição Federal e o art. 4º, III, a, do
Estatuto da Cidade), estabelecendo diretrizes a serem observadas pelo proprietário da
terra urbana, para que se possa cumprir a função social, obstaculizando seu uso nocivo;
c) Previsão do instituto do solo criado, fixando as áreas onde será aplicável;
d) Coeficiente de aproveitamento básico único para toda zona urbana ou, se for o caso,
diferenciado para áreas específicas na zona urbana (questão controvertida, que será
vista adiante);
e) Definição dos limites máximos a serem atingidos pelo coeficiente de
aproveitamento, considerando a “proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e
aumento de densidade esperada em cada área” (§ 3º, do art. 28, do Estatuto da Cidade).
Importante observar, ainda, a forma de positivação do Plano
Diretor. Para a aprovação do Plano Diretor, deverão ser observados os procedimentos
previstos no Estatuto da Cidade, no art. 40, § 4º, incisos I ao III, consistentes em
“audiências públicas e debates com a participação da população e de associações
1
José Afonso da Silva, em parecer sobre “Aspectos Relevantes da Lei nº 13.260/01 – Operação Urbana
Água Espraiada”, sob a organização da EMURB – Empresa Municipal de Urbanização e Centro de
Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral do Município de São Paulo – CEJUR, emitido em data de 04, de
abril, de 2002, explica que: “O sistema de planos urbanísticos concebido pela Constituição e agora
consolidado no Estatuto da Cidade se assemelha ao sistema italiano que agrupa os planos urbanísticos em
duas categorias: planos urbanísticos gerais e planos urbanísticos especiais. O plano diretor é o plano
geral do sistema brasileiro. É assim que a Constituição o concebe quando estatui que o plano diretor é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão. [...] É plano, porque estabelece os
objetivos a serem atingidos. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano municipal”.
47
representativas dos vários segmentos da comunidade”; “publicidade quanto aos
documentos e informações produzidos” e “acesso de qualquer interessado aos
documentos e informações produzidos”.
A inobservância deste procedimento é causa de nulidade, a ser
declarada pelo Judiciário. Não é mera formalidade, mas mecanismo de controle por
parte da sociedade civil, sendo garantia da gestão democrática da cidade. Na audiência
pública deverão ser registradas em ata todas as sugestões.
As autoridades municipais não têm obrigação de incluir o
instituto do solo criado no Plano Diretor, como instrumento da política urbana. Tudo
irá depender de sua necessidade peculiar. É mais freqüente sua inclusão nos grandes
centros, nas capitais, onde o problema do adensamento populacional e escassez da
infra-estrutura urbana são maiores.
Contudo, se na audiência pública houver sugestão no sentido de
instituir o solo criado, o não acatamento demandará expressa motivação. As sugestões
deverão ser apreciadas quanto à conveniência e oportunidade na elaboração do Plano
Diretor. O ato discricionário que não acatar referidas sugestões demandará expressa
motivação, sob pena da exigência da participação popular tornar-se inócua, mera
formalidade, desprovida de propósitos.
A falta do Plano Diretor impede a instituição do solo criado.
Nesta hipótese, não haveria fixação do coeficiente básico e máximo de aproveitamento
(§§ 2º e 3º, do art. 28, do Estatuto da Cidade), e, por conseguinte, imposição de limites
normativos expressos ao exercício do direito de construir.
Se o direito de propriedade é resultado do plexo de normas que
ditam seu regime jurídico, o que dizer, neste caso, da ausência do Plano Diretor e de
fixação dos aludidos índices? Carvalho Pinto (2005, p. 280-281) nos responde,
socorrendo-se à teoria alemã do princípio da vinculação situacional:
48
Não entendemos que possa o Judiciário, na ausência de previsão
do solo criado no Plano Diretor, exigir das autoridades sua inclusão. Se forem
observados todos os trâmites legais exigidos para a elaboração do Plano Diretor e se
optou por não instituí-lo, não poderá o Judiciário usurpar a função do Executivo, que
teve a iniciativa do projeto e do legislativo, que deliberou a respeito. Não há de se falar,
no presente caso, de ausência de política urbana. Esta fora instituída com o perfil
adequado à realidade.
A ausência do instituto, no caso, não pode ser considerada como
omissão ou negligência das autoridades que elaboraram o planejamento urbano, mas
sim, fora opção de não consagrá-lo como instrumento, preferindo outros em face da
peculiaridade local.
Ainda quanto ao arcabouço legislativo necessário para a
instituição do solo criado, não devemos olvidar da importância da Lei de Zoneamento,
que, a despeito de ser norma distinta do Plano Diretor, integra-o, por meio do
mapeamento e fixação dos limites territoriais das diversas áreas urbanas, bem como seu
respectivo regulamento. Em relação ao solo criado, a Lei de Zoneamento exerce seu
papel em conjunto com o Plano Diretor, ao estabelecer um zoneamento rigoroso,
delimitando as áreas urbanas, fixando as dimensões mínimas dos lotes e, por fim,
classificando os tipos de uso permitidos para cada área.
Por fim, de acordo com expressa previsão do art. 30, do Estatuto
da Cidade, para instituir o solo criado é necessário criar lei específica, que irá tratar das
condições a serem observadas para a outorga onerosa; da espécie e “quantum” da
contrapartida; da fórmula de cálculo para a cobrança da contrapartida e dos casos
passíveis de isenção do pagamento da outorga.
Pensamos que o objetivo de se exigir “lei específica” prende-se à
razão de proporcionar maior flexibilidade na sua instituição, respondendo às
circunstâncias, possibilidades, objetivos e interesses públicos do momento e de cada
área. Se tudo fosse previsto abstratamente no Plano Diretor, para toda e qualquer
ocasião, haveria um distanciamento muito grande das reais necessidades, das
peculiaridades e condições que orientarão a concessão da outorga do direito de
construir, por parte do Poder Público Municipal.
49
4 COEFICIENTE DE APROVEITAMENTO BÁSICO E
COEFICIENTE DE APROVEITAMENTO MÁXIMO
50
coeficiente de aproveitamento básico, fixado no Plano Diretor, poderá ser único para
toda a zona urbana, bem como poderá ser distinto para áreas específicas dentro da zona
urbana. Portanto, coeficiente de aproveitamento básico não se confunde com
coeficiente único.
A estipulação de coeficiente de aproveitamento básico
diferenciado pelo Plano Diretor poderá configurar uma situação de iniqüidade, de
desrespeito ao princípio da isonomia, estimulando, inclusive, a especulação imobiliária.
Constata o mesmo problema Júlia Verna Ferreira de Souza (et al.,
1991, p. 161-162), apregoando-se a adoção de coeficiente único como solução:
51
garantindo o mínimo de conteúdo ao direito de propriedade. Isto porque é a União o
ente da federação competente para esta matéria, nos termos do inciso I, do art. 22, da
Constituição Federal. No entanto, a fixação de índice de aproveitamento acima deste
patamar básico possui cunho urbanístico, de competência municipal.
É o que fez a França por meio da Lei nº 75-1.328 de 31 de
dezembro de 1975 (“Plafond Legal de Densité”), que instituiu coeficiente construtivo
correspondente a “1” para todo o território francês, enquanto que, para a região de Paris,
fixou-se o coeficiente de “1,5”.
Não se tem pela Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 o conteúdo exato do direito de propriedade. Ela o reconhece e o condiciona a
uma função social, segundo visto anteriormente. Contudo, a dificuldade é de se saber
decifrar e entender o conceito jurídico indeterminado da “função social da propriedade”.
A despeito desta imprecisão, há como compreendê-lo em face da
realidade de cada Município. O art. 182, § 2º, estatui que a “propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressa no plano diretor”. Portanto, será o Plano Diretor que determinará referido
conceito da função social, da maneira que melhor satisfaça o interesse local, respeitado
o direito fundamental do conteúdo mínimo da propriedade.
Para que o Município elabore seu Plano Diretor, como
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º,
C.F./88), prevendo o solo criado, inclusive, como instrumento de sua consecução, deve
existir prévia lei federal que disponha sobre as diretrizes gerais de referida política.
Embora o Estatuto da Cidade não tenha já fixado o coeficiente de
aproveitamento básico, seria um erro afirmar, categoricamente, que toda e qualquer
fixação deste índice pelo Município desemboca na inconstitucionalidade.
Esta conclusão dependerá da forma como foi instituído. Para se
preservar a constitucionalidade do instituto do solo criado, é evidente que o Poder
Público Municipal não poderá prescindir da razoabilidade, restringindo demasiadamente
o exercício do direito de construir, fixando coeficiente e aproveitamento básico
restritíssimo, que leve ao esvaziamento do direito de propriedade. Deve-se reservar um
mínimo possível de coeficiente construtivo ínsito ao direito de propriedade, que faculte
ao seu titular o exercício deste direito.
52
Segundo Bastos (1993, p. 214), o conteúdo do direito de
propriedade pode ser retirado do próprio sistema constitucional:
É certo que a própria Constituição não explicita a substância deste direito. Isto,
contudo, não significa que tenha utilizado uma palavra oca cuja significação
fique inteiramente ao talante da legislação ordinária. Embora com nuanças, em
todos os países onde a propriedade privada é consagrada, há um núcleo de
prerrogativas asseguradas e tidas como um componente mínimo de sua
essência.
53
aproveitamento básico deverá observar três parâmetros, a saber:
A taxa de ocupação refere-se a área do terreno que poderá ser utilizada para a
construção. Significa dizer que, se por hipótese for fixada a taxa de 0,3, a
construção poderá ocupar 30% da projeção horizontal do terreno. Esse fator,
portanto, jamais será superior a 1 e, via de regra, aproxima-se de 0,5 (50% do
terreno); a utilização é controlada através de coeficiente de aproveitamento,
que é a relação entre área do lote e o total de construção. Uma área de
1.000m2 localizada em zona onde o coeficiente é 2 poderá receber construção
de até 2.000m2. A primeira, pois, indica o espaço que a edificação ocupa do
terreno e o segundo, a sua densidade.
54
O Estatuto da cidade refere-se ao coeficiente de aproveitamento
máximo, no § 3º, do art. 28, que remete ao Município a fixação dos limites máximos
daquelas construções que ultrapassem o coeficiente de aproveitamento básico. Este
índice é o teto admitido para construção oriunda da outorga onerosa do direito de
construir. Em outras palavras, o coeficiente de aproveitamento máximo é o volume
máximo de construção permitido para o solo criado, de acordo com previsão do Plano
Diretor. A fixação do coeficiente de aproveitamento máximo é de competência
municipal, sendo um típico índice urbanístico.
Para que seja estabelecido este coeficiente máximo, no momento
da elaboração do Plano Diretor, os técnicos e autoridades municipais deverão tomar por
base a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade
esperada em cada área.
Segundo Carvalho Filho (2005, p. 201):
55
parâmetro de limitação da criação do solo não a infra-estrutura projetada ou
potencialmente a ser desenvolvida, e sim a infra-estrutura já existente quando
da definição dos limites máximos (é dizer, quando da elaboração do plano
diretor). Outra, que a proporcionalidade preconizada deverá ser
detalhadamente demonstrada e deverá ser detalhada para cada região da
cidade. Se acima criticamos a possibilidade de diferenciação local entre os
coeficientes básicos de aproveitamento, considerando-a inconveniente e
incompatível com o instituto do solo criado, no tocante aos limites máximos a
diferenciação é de rigor. Só com a regionalização destes limites é que se pode
ter o solo criado com um forte caráter de ordenação urbanística, esvaziando
seu caráter de instrumento de arrecadação.
56
transferências do direito de construir.
57
5 DA CONTRAPARTIDA
58
apresentam numa relação conjuntiva (as duas justificativas estão presentes), ora numa
relação disjuntiva (somente se justifica em relação a um ponto), a depender do caso
concreto. A primeira justificativa é que a contrapartida atua como mecanismo de
indenização ao Poder Público (ou seja, da própria coletividade), quanto ao adensamento
proporcionado pelo particular, em virtude do aumento de construção. Portanto, o
recurso proveniente da contrapartida age na correção do adensamento urbano, às
expensas do causador do “adensamento”.
A segunda justificativa prende-se ao princípio da justa
distribuição do benefício e encargo da atividade urbanística. Visa-se corrigir as
externalidades negativas do mercado imobiliário, evitando que o particular se aproprie
das “mais valias” em seu imóvel, resultante de obras públicas ou se beneficie de favor
legal, decorrente do plano urbano e outras leis de cunho urbanístico.
Neste último caso, nota-se que, por circunstâncias específicas da
cidade e por razões técnicas que nortearam a elaboração do Plano Diretor, no âmbito da
opção dos instrumentos e índices construtivos disponíveis ao adequado ordenamento da
cidade, algumas áreas passam a ganhar maior relevo econômico que outras,
valorizando-se em relação às demais.
Isto ocorre, por exemplo, quando a norma estabelece que
determinado terreno urbano, pertencente à zona “X”, é permitida a construção até três
vezes a área do lote, enquanto que em outro lote, situado na zona “Y”, permite-se a
construção na extensão restrita à área do terreno. Neste exemplo, por certo, os terrenos
situados na zona “X” tendem a se valorizar mais que os terrenos situados na zona “Y”,
em função da maior potencialidade construtiva.
Não restam dúvidas, então, de que existem situações criadas por
normas de planejamento que, mesmo de forma indireta ou que não tenham almejado,
acabam beneficiando alguns proprietários de terrenos urbanos em prejuízo de outros.
Quanto ao primeiro ponto, todavia, observa-se que a construção
em solo artificial, ou seja, além do solo natural, representa um fator preocupante para o
adequado ordenamento urbano, configurando provável fator de adensamento da área.
Esta situação demanda providências do Poder Público, para ampliação da infra-estrutura
e aparelhamento urbano, que se tornaram necessários em razão do adensamento
provocado pelo beneficiário da construção.
59
Em outros termos, se um empreendedor lucra com a construção
do solo artificial, mas, conseqüentemente, gera os problemas urbanísticos acima
relatados, é inadmissível que o Poder Público empregue seus recursos em atividades
urbanísticas reparadoras, sem que se exija do beneficiário uma compensação
(contrapartida).
Há de se dizer que, para alguns urbanistas, a criação de solo
artificial pode até não culminar, necessariamente, num fator de adensamento urbano,
argumentando que isto ocorre na maioria das vezes, em bairros periféricos, onde habita
a classe econômica mais baixa da população. Portanto, nem sempre a extensão
construída em determinado terreno está diretamente e proporcionalmente relacionada ao
adensamento populacional.
Conforme constata Rolnik (et al., 2002, p. 210-211):
60
como instrumento de justa repartição dos encargos e benefícios, que eventualmente
possam decorrer da atividade urbanística. Se pelo plano urbano é possível construir
além de determinado coeficiente, que elevará o valor do imóvel, deve-se pagar um
preço por isto, tanto para que o recurso auferido retorne em obras de infra-estruturas ou
outras finalidades urbanísticas, bem como para evitar locupletamento do particular
decorrente da lei.
61
Externalidade é o nome que se dá a um desvio de mercado e para se
compreender o fenômeno é necessária uma breve visitação às ciências
econômicas [...]
Externalidade pode ser positiva ou negativa, quando no preço do bem
colocado no mercado não estão incluídos os ganhos e as perdas sociais
resultantes de sua produção ou consumo, respectivamente [...]
Para ter-se outro exemplo de externalidade negativa, basta pensar numa rede
de lanchonetes que se instale próxima ao acostamento de uma via pública.
Nesse caso, pergunta-se: os produtos que ali são vendidos têm embutido nos
seus preços o custo social de um aumento do trânsito no local, da poluição
sonora, da poluição visual, etc? Ainda, é justo que aqueles que não compram
os produtos sejam “consumidores” desse efeito social negativo?
No mesmo sentido:
62
proprietários ou grupos para orientar as soluções do plano na direcção das suas
intenções.
Estes objetivos elencados pelo legislador não se situam no mesmo nível.
Enquanto o primeiro – o da redistribuição das mais-valias atribuídas pelo
plano aos proprietários – constitui um objectivo essencial daqueles
mecanismos, uma vez que se apresenta como conatural ao princípio da
perequação dos benefícios e encargos resultantes dos planos municipais, os
restantes são uma mera conseqüência ou um efeito do funcionamento dos
mecanismos perequativos (CORREIA, 2001, p. 490).
63
de corrigi-las. Entretanto, nem o mercado nem a técnica atuam em um vazio
institucional. A eficiência do mercado depende das regras que o organizam. Da
mesma forma, a aplicação das técnicas urbanísticas variará conforme as regras
que organizam o sistema político.
64
de outorga do direito têm como fundamento o exercício do poder de polícia
pelo Município (polícia de construções e uso do solo), eis que o ato, como foi
visto, poderá ser expedido com licença ou como autorização. Esse fato gerador
está expresso no art. 145, II, da CF, e no art. 77, do Código Tributário
Nacional. Assim, quando a lei fala em “fórmula de cálculo para a cobrança”,
deve ler-se que se trata de cobrança da respectiva taxa, única contraprestação
pecuniária que guarda adequação à hipótese.
65
construir e de alteração de uso na alínea “n”, do inciso V, do Art. 4º, categorizando-a
entre os “instrumentos jurídicos e políticos”. Se fosse um instrumento tributário e
financeiro, comporia o elenco do inciso IV, do Artigo 4º, do Estatuto da Cidade.
Se tivesse natureza tributária, o artigo 31 do Estatuto da Cidade
que vincula a aplicação dos recursos auferidos pela contrapartida às finalidades
previstas nos incisos I ao IX do art. 26 do mesmo estatuto, seria inconstitucional, nos
termos do art. 167, IV, da Constituição Federal, que veda afetação de receita de
“impostos” a órgão, fundo ou despesa, salvo as exceções deste mesmo dispositivo.
Ver o instituto do solo criado como tributo, é admitir a existência
de mais uma via de arrecadação, em que o Poder Público criaria uma dificuldade
(impondo coeficientes de aproveitamentos restritíssimos) para que assim, pudesse
vender facilidades (outorga onerosa do direito de construir) mediante o pagamento de
uma contrapartida. Esta intenção é odiosa, desvirtuando a finalidade crucial do instituto:
de servir como mecanismo de controle do adequado ordenamento da cidade e de
utilização do solo.
No que tange à fórmula do cálculo da contrapartida, também
deverá estar prevista na referida lei municipal específica (inciso I, do art. 30, do Estatuto
da Cidade). O Poder Público Municipal pode estabelecer vários critérios para calcular o
valor da contrapartida, inserindo-se dentro do campo da competência discricionária,
pois o Estatuto da Cidade não adentrou em minúcias quanto ao procedimento de
apuração, deixando ampla liberdade ao legislador e executivo municipal.
Embora não se tenha uma fórmula geral de apuração do valor pelo
Estatuto da Cidade, adverte Carvalho Filho (2005, p. 204) que:
1 Na cidade de São Paulo, por meio de seu Plano Diretor (Lei nº 13.430, de 13/09/2002), adotou-se o
seguinte critério: “Art. 213 - A contrapartida financeira, que corresponde à outorga onerosa de potencial
construtivo adicional, será calculada segundo a seguinte equação: Ct = Fp x Fs x B, onde: Ct =
contrapartida financeira relativa a cada m² de área construída adicional; Fp = fator de planejamento, entre
0,5 e 1,4; Fs = fator de interesse social, entre 0 e 1,0;
B significa o benefício econômico agregado ao imóvel, calculado segundo a seguinte equação: vt ÷ CAb,
sendo vt = valor do m² do terreno fixado na Planta Genérica de Valores - PGV e CAb = Coeficiente de
Aproveitamento Básico.
§ 1º - Os fatores Fp e Fs da equação prevista no "caput" deste artigo poderão ser fixados para as zonas ou
parte delas, distritos ou subperímetros destes, áreas de Operação Urbana Consorciada e de Projetos
Estratégicos ou seus setores.
§ 2º - Os fatores mencionados no parágrafo 1º deverão variar em função dos objetivos de
desenvolvimento urbano e das diretrizes de uso e ocupação do solo, estabelecidas neste Plano Diretor
Estratégico.
§ 3º - Ficam mantidos os critérios de cálculo das contrapartidas financeiras estabelecidos nas leis de
Operações Urbanas em vigor.
§ 4º - Em caso de não cumprimento da destinação que motivou a utilização do fator Fs, o Poder
Executivo procederá à cassação ou ao cancelamento da isenção ou redução, bem como a sua cobrança
com multa, juros e correção monetária.
§ 5º - Quando o coeficiente de aproveitamento básico puder ser acrescido nas condições estabelecidas nos
artigos 166 e 297 desta lei, na fórmula de cálculo da contrapartida financeira definida no "caput" deste
artigo, o coeficiente de aproveitamento básico deverá ser substituído pelo coeficiente de aproveitamento
que resultou da redução da taxa de ocupação”.
Ainda: No caso da cidade de Natal, estabeleceu-se uma densidade básica e se vende densidades acima
desta pelo valor de 1,5% do montante total o investimento na edificação. No caso da cidade de Porto
Alegre, se realiza periodicamente um leilão de estoques de solo criado. Em outros casos, estabeleceu-se
uma porcentagem (em torno de 70%) do valor vendal do imóvel por cada metro quadrado adicional
concedido (ROLNIK et al., 2002, p. 210)
67
urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; criação de
unidades de conservação ou proteção de outras áreas verdes; criação de unidades de
conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental e proteção de áreas de
interesse histórico, cultural ou paisagístico.
Este elenco é taxativo, conclusão que se chega ao analisar as
razões do veto do Presidente da República sobre o inciso IX, do art. 26, do Estatuto da
Cidade, que previa “outras finalidades de interesse social ou de utilidade pública,
definidas no Plano Diretor”.
O art. 2º, do Estatuto da Cidade, estabelece as diretrizes gerais da
Política Urbana. Conforme CEPAM (2005, p. 121-122), as diretrizes que deverão ser
perseguidas pelo instituto do solo criado, que possuem afinidade com os objetivos
traçados pelos incisos I ao VIII, do art. 26, do mesmo dispositivo legal, são os
seguintes:
69
problemas enfrentados pelo empresariado.
O Conselho não terá atribuição deliberativa em relação ao solo
criado, pois o próprio Estatuto da Cidade exige lei municipal específica acerca desta
matéria (art. 30), o que usurparia a função do legislativo. Todavia, é importante que o
Conselho atue na fase da elaboração do Plano Diretor e referida lei específica como
órgão consultivo e, após sua implantação, como órgão fiscalizador.
Por fim, o recurso proveniente da contrapartida deve estar
vinculado à respectiva área na qual ocorreu a outorga onerosa do direito de construir ou
seu entorno. Seria incoerente admitir a desvinculação espacial deste recurso, em face
do que foi explicitado. Se uma área específica sofreu os efeitos do aumento de
construção, a contrapartida se justifica para atuar na correção ou atenuante do
correspondente efeito. Pensar diferente é se distanciar dos fundamentos e justificativas
que lhe deram arrimo.
Contudo, diante do art. 31, que vincula a aplicação dos recursos
às finalidades previstas nos incisos I ao VIII, do art. 26, poder-se-ia, à primeira vista,
concluir que se tornou difícil, senão quase impossível sua vinculação à zona objeto da
outorga. Neste sentido, calharia indagar da possibilidade, por exemplo, da vinculação
do recurso na área em que ocorreu a outorga onerosa para a regularização fundiária
(inciso I, do art. 26)? Ou até mesmo para execução de programas e projetos
habitacionais de interesse social (incisoII, do art. 26)?
Se for considerado o pressuposto de aplicação do recurso na área
em que se deu a outorga onerosa do direito de construir, deverá o Poder Público
Municipal destiná-lo às necessidades de cada área, dentre o elenco do art. 26, e de
forma motivada. Se no caso concreto for impossível carrear o recurso para certas
finalidades previstas no art. 26, do Estatuto da Cidade, outras existirão neste mesmo
elenco que encontrarão perfeita utilidade, tal como implantação de equipamentos
urbanos e comunitários (inciso V, art. 26); proteção de áreas de interesse histórico,
cultural ou paisagístico (inciso VIII, art. 26) ou criação de espaços públicos de lazer
(inciso VI, art. 26).
As características da área que deverão ser levadas em
consideração, por parte do Poder Público Municipal, no momento da destinação do
recurso a certa finalidade. Não é necessário exaurir o elenco previsto no art. 26 e não há
70
impedimento em repetir a destinação do recurso quanto à mesma finalidade. Há
margem de discricionariedade dentro do elenco previsto no art. 26, do Estatuto da
Cidade, que não deixa de ser abrangente.
Ainda em relação à vinculação do recurso quanto à área onde
ocorreu o ato de outorga onerosa do direito de construir, outra questão deve ser
levantada. Nos casos em que a lei municipal permite a transferência do potencial
construtivo, de uma zona para outra, conforme será visto adiante, também é importante
verificar o destino do recurso, proveniente da contrapartida. Isto porque, pode o
município emitir vários Certificados de Potenciais Adicionais Construtivos, em relação
à determinada área e a construção decorrente do potencial ocorrer em outra.
Para evitar este desequilíbrio, mantendo a aplicação do recurso
na área onde ocorreu a construção por meio do solo criado, deverá a legislação
municipal estabelecer um mecanismo de vinculação do recurso à área onde
efetivamente ocorreu a construção. Embora todo recurso ingresse no Fundo Municipal
de Desenvolvimento Urbano, nada impede a afetação de recursos na área onde
efetivamente se construiu.
Da mesma forma que o Poder Público Municipal deverá prever
mecanismos de controle da aplicação dos Certificados de Potencial Adicional
Construtivo – CEPAC (baixa do certificado, no momento da outorga, observados os
critérios legais; bem como controle do estoque em relação à área), no momento da
emissão da outorga onerosa do direito de construir, deverá também manter um sistema
de informação ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, para afetação do
recurso na área onde se utilizou o CEPAC.
71
6 SOLO CRIADO E TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE
CONSTRUIR
72
solo natural, ou seja, coeficiente “1”, como fora defendido.
É necessário considerar um conteúdo mínimo ao direito de
propriedade ao imóvel urbano, que tem sua expressão na possibilidade exercer a
edificação, pois, a propriedade está prevista na Constituição Federal, no art. 5º, “caput”,
como direito e garantia fundamental do homem.
Embora este dispositivo constitucional tenha aplicabilidade
imediata (nos termos do § 1º, do art. 5o. da C.F./88), não quer dizer que haja óbice
quanto a sua regulamentação. Para atender o interesse público, as leis poderão,
perfeitamente, condicionar ou limitar seu exercício1.
Se nossa Carta Magna exige que a propriedade cumpra sua
função social, ela deixa de ser absoluta e passa a ser condicionada pelas normas e
institutos da Política Urbana. Diante deste novo regime jurídico, resta desvencilhar dos
“pré-conceitos” ditados pela ordem jurídica anterior, impregnados dos valores liberais,
a fim de ser encarada a questão da separação do direito de propriedade e o direito de
construir com neutralidade, nos termos acima explicitados. Sendo assim, é correto o
pensamento de Carvalho Pinto (2005, p. 278-279-324), abaixo transcrito:
1 Segundo Victor Carvalho Pinto (2005, p. 275): “As restrições aos direitos fundamentais devem ser
gerais e abstratas, ou seja, não podem discriminar ou favorecer nenhuma pessoa ou grupo em particular.
Um ou outro segmento pode ser indiretamente beneficiado ou prejudicado, mas este não pode ser o
objetivo de quem impõe a restrição. As restrições são gratuitas, ou seja, não geram em favor do indivíduo
qualquer direito à indenização contra o Poder Público. Constituem um ônus normal, decorrente a vida em
sociedade, caracterizando como condição de convivência, a fim de que o exercício do direito de uma
pessoa não prejudique o direito de outra. Uma indenização poderá ser devida, entretanto, se a restrição
incidir sobre apenas um segmento determinado da sociedade, obrigando-o a suportar um sacrifício em
favor dos demais”.
73
ONU “acordou sobre a necessidade de afirmar a separação entre o direito de
propriedade e o direito de edificar, delegando a cada país representado na comissão o
desenvolvimento de critérios e mecanismos legais próprios quanto à sua aplicação”
(FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA – CEPAM, 2001, p. 335).
No Brasil, quando Eros Grau, Antonio Carlos Cintra do Amaral e
Jorge Bartholomeu Carneiro da Cunha, de forma pioneira, trataram das questões
envolvendo o solo criado, adotaram claramente esta linha. Todavia, a Carta de Embu
acabou não acolhendo esta tese.
Fixada a posição acerca da possibilidade da separação entre do
direito de propriedade e o direito de construir, sem descurar do conteúdo mínimo do
direito de propriedade, indaga-se, agora, se o instituto do solo criado traz ínsita a idéia
da transferência do direito de construir.
Inicialmente, é importante analisar a transferência do direito de
construir tratada no final da “Carta de Embu/Solo Criado”, aplicável nas seguintes
hipóteses:
A) Em imóvel sujeito às limitações administrativas, que impeçam a plena utilização
do coeficiente único de edificação, dando azo à alienação da parcela não-
utilizável do direito de construir;
B) Em imóvel tombado, podendo o proprietário alienar o direito de construir
correspondente à área edificada ou ao coeficiente único de edificação.
Com base nos preceitos acima, não há como concordar que o
Clássico solo criado tenha a transferência do direito de construir como elemento
essencial em sua composição. Em outros termos, analisando a natureza ontológica do
instituto do solo criado, conclui-se que a transferência do direito de construir não é um
requisito necessário para sua configuração. O mesmo se diga em relação ao Estatuto da
Cidade, pois, não se vislumbra qualquer dispositivo expresso que possa levar à
conclusão quanto ao entrelaçamento necessário entre o solo criado e a transferência do
direito de construir.
A Seção IX, do Capítulo II, do Estatuto da Cidade, que dispõe
sobre a outorga do direito de construir e alteração de uso (do art. 28 ao art. 30), não diz
expressamente, também, que uma vez outorgado o direito de construir, acima do
coeficiente básico de aproveitamento, poderia o beneficiário vender referido direito a
74
terceiro.
A Seção X do Estatuto da Cidade se refere às operações urbanas
consorciadas, sendo que em seu art. 34 dispõe que lei específica poderá prever emissão
pelo município de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de
construção - CEPAC, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no
pagamento das obras necessárias à operação urbana. No § 1 º, do dispositivo
mencionado, há previsão de que os certificados mencionados possam ser negociados
livremente, sendo conversíveis em direitos de construir dentro da área objeto de
operação.
No art. 35, do Estatuto da Cidade, há previsão do instituto da
transferência do direito de construir, aplicável nas hipóteses em que o direito de
construir sobre determinado imóvel se restringe, por ter sido considerado necessário
para um dos objetivos previstos no inciso I ao III neste dispositivo.
Embora não se possa depreender que no Estatuto da Cidade o
instituto do solo criado esteja intrinsecamente atrelado à possibilidade de transferência
do potencial construtivo (potencial construtivo adicional decorrente da outorga onerosa
do solo criado), muitas legislações municipais têm admitido esta possibilidade.
Não se permite entender que isto seja uma inconstitucionalidade,
pois se o Estatuto da Cidade prevê os dois institutos, não haveria problema a utilização
destes dois, desde que não afronte os objetivos da Política Urbana. Demais, o que se
transfere não é, propriamente, o direito de construir, mas o potencial construtivo. O
direito de construir será constituído no ato da outorga, quando expedido pela autoridade
competente.
A questão que o caso envolve é a potencialidade construtiva,
muitas vezes representada por um certificado (CEPAC), que tem estreita ligação com o
consumo de infra-estrutura para determinada área e cumprimento do respectivo ônus
urbanístico (contrapartida).
Assim, existindo esta previsão em lei, o sujeito interessado na
construção, além do coeficiente de aproveitamento básico, terá opção de adquirir o
potencial construtivo do Poder Público Municipal, por meio da outorga do solo criado,
ou pelos particulares, por meio da transferência do aludido potencial (MARQUES
NETO et al., 2002. p. 233).
75
Alerta-se que a comercialização e transferência dos potenciais
construtivos, caso haja previsão na lei Municipal, deverá ser procedida de forma
cautelosa. O potencial construtivo pertencente a cada Município não é um bem
ilimitado, devendo estar previsto no plano diretor um estoque de área passível de
construção, observada a infra-estrutura existente (§ 3º, do art. 28, do Estatuto da
Cidade).
Sendo assim, o Poder Público Municipal não poderá se utilizar de
expedição de potencial construtivo, visando exclusivamente auferir recursos, desviando-
se de sua finalidade urbanística principal, ou seja, controlar a utilização do solo urbano e
promover o adequado ordenamento da cidade.
No Plano Diretor Estratégico de São Paulo, instituído pela Lei nº
13.430, de 13 de setembro de 2002, houve previsão expressa no art. 215, da
possibilidade de expedição do Certificado de Potencial Construtivo Adicional –
CEPAC, bem como a transferência de referido potencial, na modalidade objetiva e
subjetiva. A modalidade objetiva é a que se permite a transferência do potencial de um
lote para o outro, sendo ambos de titularidade da mesma pessoa; enquanto que a
modalidade subjetiva, ao revés, permite a negociação do potencial adicional construtivo,
para transferi-lo a outra pessoa (e outro lote, por conseguinte)2.
Ainda, conforme observou a lei paulistana, deve haver critérios de
aplicação e controle da aludida transferência, por parte do Poder Público Municipal,
para que o instituto não desvie de seu objetivo. Com base nesta lei, nos princípios e
2
Vejamos: “Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002 - Art. 215. Quando o Potencial Construtivo
Adicional não for solicitado diretamente vinculado à aprovação de projeto de edificação, o Executivo
poderá expedir Certidão de Outorga Onerosa de Potencial Construtivo Adicional, vinculada a
determinado lote ou lotes, que será convertida em direito de construir com a aprovação do respectivo
projeto de edificação.
§ 1º - As certidões expedidas na forma que dispõe o ‘caput’ deste artigo, que ainda não tiverem sido
convertidas em direito de construir, poderão ser negociadas a critério da Prefeitura, desde que sejam
atendidas todas as condições estabelecidas nesta Seção, para o lote que passará a receber o Potencial
Construtivo Adicional.
§ 2º - Apresentada solicitação de transferência da certidão para outro lote, o Executivo:
a) verificará se o lote para o qual se pretende transferir a certidão localiza-se em áreas passíveis de
aplicação de outorga onerosa e se há estoque disponível, não sendo possível a transferência para as áreas
de Operações Urbanas e Áreas de Intervenção Urbana;
b) determinará o novo potencial construtivo adicional por meio da relação entre os valores dos lotes
calculada, utilizando-se os valores que constam para o metro quadrado de terreno na Planta Genérica de
Valores - PGV;
c) poderá expedir nova certidão cancelando a certidão original, com a anuência do titular desta, realizando
os procedimentos necessários à atualização e ao controle de estoque”.
76
diretrizes próprios do instituto, sugerem-se os seguintes critérios:
A) O lote destinatário da transferência do potencial adicional construtivo (onde o
CEPAC será convertido em direito de construir) submeter-se-á às mesmas
normas contidas no Plano Diretor e Lei Específica Municipal, quanto ao regime
e condições para utilização do instituto do solo criado;
B) O lote destinatário da transferência do potencial adicional construtivo (onde o
CEPAC será convertido em direito de construir) deverá ter a mesma natureza de
uso (zona de uso industrial, comercial, residencial ou misto) que o lote em que
se originou o potencial construtivo;
C) O Poder Público Municipal deverá verificar se o lote receptor do CEPAC está
inserido em área na qual se permite a aplicação do solo criado;
D) O Poder Público Municipal deverá verificar se na área onde está situado o lote
receptor, não se esgotaram os estoques para utilização do solo criado;
E) O Poder Público Municipal deverá verificar se há compatibilidade do CEPAC
com a nova área, no que concerne aos valores divergentes entre o lote que
originou o potencial construtivo e o do lote que irá recebê-lo. Por meio de um
cálculo, previsto em Lei Municipal específica, o CEPAC será convertido e
adequado para um Novo Potencial Construtivo, considerando a proporção entre
o valor representado por cada CEPAC e a exigência para o novo lote, com a
respectiva correspondência pecuniária à extensão em metros quadrados3;
F) Lei Municipal específica deverá prever a quantidade de estoque de Potencial
Adicional Construtivo (em metros quadrados), destacados por zonas e prazo
mínimo de sua duração;
G) O Poder Público Municipal deverá controlar a evolução do consumo de
estoques, acima referidos, considerando-se consumo por zona os decorrentes da
outorga onerosa do solo criado e as decorrentes de transferências do potencial
construtivo;
H) Lei Municipal específica e/ou Plano Diretor deverão prever a possibilidade de
suspensões das outorgas onerosas do direito de construir, quando na iminência
de esgotamento dos estoques, em relação a cada área.
3
No mesmo sentido, o Município de Curitiba estabelece uma fórmula que insere no cálculo os diferentes
valores das áreas emissoras e receptoras do potencial construtivo, conforme os artigos 4º e 5º, da Lei nº
9.803, de 03 de janeiro de 2000.
77
É importante destacar o item “B” acima, dispondo que o “lote
destinatário da transferência do potencial adicional construtivo (onde o CEPAC será
convertido em direito de construir) deverá ter a mesma natureza de uso (zona de uso
industrial, comercial, residencial ou misto) que o lote em que se originou o potencial
construtivo”.
Esta condição é necessária e deverá constar expressamente de lei.
Permitir a transferência do potencial construtivo para outra zona de diferente uso
significa alterar substancialmente a natureza da construção e do potencial originário. O
Plano Diretor, ou ao menos a Lei Municipal específica, deverão constar como
impedimento transferências do potencial construtivo entre áreas onde os usos sejam
diferentes.
Não se pode transferir o potencial construtivo de um lote onde a
zona seja industrial para zona onde a zona seja residencial. Em cada tipo de uso existem
critérios distintos de apreciação da realidade, para se permitir a construção por meio da
aplicação adicional do potencial construtivo, representado pelo CEPAC. Permitir a
alteração qualitativa do potencial construtivo, ao invés de atuar como fator de
ordenamento adequado da cidade, será um obstáculo ao estabelecimento de um
planejamento rigoroso.
No que tange ao procedimento de distribuição dos potenciais
adicionais de construção, representados pelos Certificados de Potencial Adicional de
Construção – CEPAC, caso este seja adotado pelo município como forma de viabilizar
o solo criado, não se deve olvidar de sua vinculação ao princípio da legalidade, da
indisponibilidade dos bens públicos e, por fim, pelo princípio da licitação. Assim, estará
vinculado a um procedimento que proporcione isonomia entre os interessados e a
melhor vantagem para o Município.
Deve-se adotar procedimento licitatório, na modalidade do leilão,
sendo que e o valor pago será o da proposta vencedora, ou seja, a mais vantajosa: o
maior preço, desde que seja igual ou superior ao cálculo do preço mínimo, previsto em
lei municipal específica (inciso I, do art. 30).
A propósito, Floriano de Azevedo Marques Neto (et al., 2002, p.
240) entende que:
78
simplificado, sendo admissível inclusive, no nosso entender, a previsão, na
legislação municipal, de modalidade licitatória específica, para o que a
modalidade de leilão se nos apresenta como paradigma bastante adequado.
Não se diga, em oposição a este entendimento, que assim se estaria ferindo o
art. 22, XXVII, da Constituição, conjugado com o art. 22, § 8º, da Lei
8.666/1993. Primeiro porque a modalidade de leilão já está prevista na Lei
Geral de Licitações, cuidando-se aqui apenas de ampliar as hipóteses de sua
aplicação, para colher situação não prevista naquela lei nacional. Segundo
porque o Estatuto da Cidade, também lei nacional e superveniente, acabou por
dar expressa autorização para que lei fixe condições para a outorga onerosa (o
que, a nosso ver, envolve procedimentos), sem ressalvar qualquer exigência à
licitação. Por fim, porquanto o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no
sentido de considerar inconstitucional a previsão na Lei Nacional de
Licitações de regras que limitassem a autonomia dos demais entes federados
para dispor dos bens de que são titulares (ADIN 927-3-RS, J. 3.11.1993, IN
RTDP 12/173 E SS., SÃO PAULO, MALHEIROS EDITORES; 1995).
81
CONCLUSÃO
82
outorga onerosa do direito de construir com a outorga onerosa de alteração do uso,
pois são atos administrativos distintos, que se referem, respectivamente, ao solo criado
e outorga do direito de alteração do uso do solo.
4. A outorga onerosa do direito de construir não se confunde com
a licença para construir. Esta última se dá quando a construção é realizada em extensão
abaixo ou igual ao coeficiente de aproveitamento básico e a construção que ultrapassar
referido índice será objeto da outorga onerosa do direito de construir.
A licença para construir possui natureza constitutivo-formal, pois
o beneficiário já possuía seu direito subjetivo inerente ao direito de propriedade, sendo
este ato meramente liberatório de direito. A outorga onerosa do direito de construir, por
sua vez, é ato constitutivo de direito, pois o beneficiário não possuía o direito de
construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, que só se constituiu após a
concessão por meio do Poder Público Municipal. Por fim, enquanto a licença é ato
administrativo vinculado, a outorga onerosa do direito de construir é ato administrativo
discricionário, pois para sua concessão é necessário avaliar um conjunto de situações
referentes à realidade urbanística do momento, em face do princípio da coesão
dinâmica, tal como a evolução e existência de estoque para a área ou outros fatores que
possam acarretar dano ao interesse público.
5. O coeficiente de aproveitamento básico, elemento constitutivo
do solo criado, é a linha distintiva da titularidade do direito de construir entre o
proprietário do lote e a coletividade, sendo que abaixo e igual a ele o direito de
construir é inerente ao direito de propriedade (conteúdo mínimo do direito de
propriedade, objeto da licença para construir), enquanto que, acima dele, o titular é a
coletividade (objeto de outorga onerosa do direito de construir). Sem descurar do
conteúdo mínimo do direito de propriedade, neste ponto admite-se a separação entre o
direito de propriedade e o direito de construir.
Embora previsto pelo § 2º, do art. 28, do Estatuto da Cidade,
fixação de coeficiente de aproveitamento básico diferenciado para diversas áreas, isto
poderá representar afronta à isonomia entre os distintos proprietários. Uma área que
possui coeficiente de aproveitamento básico maior que outra, possivelmente valorizará
mais que a outra. Portanto, não se admite a apropriação deste benefício, de forma
gratuita, sem qualquer esforço do proprietário, por mero “favor legal”.
83
Para evitar referida iniqüidade, propôs-se a fixação de coeficiente
de aproveitamento básico único no Plano Diretor, para todo o território municipal.
Ainda, para que não haja esvaziamento do direito de propriedade, mantendo-se o
mínimo possível de seu conteúdo, apregoou-se a fixação do índice “1”, representativo
da área do solo natural. Neste coeficiente, o proprietário do lote poderá construir no
limite da área do próprio lote, sem se utilizar do instituto do solo criado.
6. O Plano Diretor também deverá fixar o coeficiente de
aproveitamento máximo, que ao contrário do coeficiente de aproveitamento básico,
deverá ser diferenciado em relação às zonas, conforme a proporcionalidade da infra-
estrutura existente e o aumento de densidade esperada para cada área (§ 3º, do art. 28,
do Estatuto da Cidade).
O estabelecimento diferenciado de índices, no caso do
coeficiente de aproveitamento máximo, é justificado pelas condições de cada área, ou
seja, da infra-estrutura existente, apuradas e justificadas por meio de critérios objetivos.
Não representa, portanto, afronta ao princípio da isonomia entre os proprietários de
diversas áreas, pois a construção acima do coeficiente de aproveitamento básico não é
gratuita, não representando, desta forma, um favor legal ao proprietário, considerando
que a construção dentro deste limite está atrelada ao cumprimento de uma
contrapartida, por parte do beneficiário.
7. Mencionada contrapartida é elemento crucial para a
compreensão do solo criado. Sua cobrança se ampara em dois pontos, que ora se
apresentam numa relação conjuntiva (as duas justificativas estão presentes), ora numa
relação disjuntiva (somente se justifica em relação a um ponto), a depender do caso
concreto. A primeira justificativa é que a contrapartida atua como mecanismo de
indenização ao Poder Público (ou seja, da própria coletividade), quanto ao adensamento
proporcionado pelo particular, em virtude do aumento de construção. Portanto, o
recurso proveniente da contrapartida age na correção do adensamento urbano, às
expensas do causador do referido “adensamento”.
A segunda justificativa prende-se ao princípio da justa
distribuição do benefício e encargo da atividade urbanística. Visa-se corrigir as
externalidades negativas do mercado imobiliário, evitando que o particular se aproprie
das “mais valias” em seu imóvel, resultante de obras públicas ou se beneficie de favor
84
legal, decorrente do plano urbano e outras leis de cunho urbanístico.
8. A contrapartida tem natureza de preço e não de tributo, pelas
seguintes razões:
A) Não é compulsória, pois decorre de uma faculdade do beneficiário, que poderá
requerer ou não o acréscimo de construção sobre seu imóvel. Não nasce de uma relação
subordinada, mas coordenada;
B) A contrapartida nem sempre será representada por uma “prestação pecuniária”, pois,
consoante previsão em lei, poderá ser prestada “in natura”, compreendendo entrega de
bens, serviços ou obras, impossível para os tributos;
C) A contrapartida não é cobrada “mediante atividade administrativa plenamente
vinculada” (lançamento);
D) O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), ao tratar dos instrumentos da Política
Urbana, fez constar a outorga onerosa do direito de construir na alínea “n”, do inciso
V, do Art. 4º, categorizando-a entre os “instrumentos jurídicos e políticos”. Se fosse um
instrumento tributário e financeiro, comporia o elenco do inciso IV, do Artigo 4º, do
Estatuto da Cidade;
E) Se tivesse natureza tributária, o artigo 31 do Estatuto da Cidade que vincula a
aplicação dos recursos auferidos pela contrapartida às finalidades previstas nos incisos I
ao IX do art. 26 do mesmo estatuto, seria inconstitucional, nos termos do art. 167, IV,
da Constituição Federal, que veda afetação de receita de “impostos” a órgão, fundo ou
despesa, salvo as exceções deste mesmo dispositivo.
9. O recurso proveniente da contrapartida deve estar vinculado às
finalidades previstas nos incisos I ao VIII, do art. 26 do Estatuto da Cidade (consoante
art. 31 do mesmo Estatuto). Para tanto, deverá ser criado um Fundo de
Desenvolvimento Urbano, para que não se dê entrada do recurso no caixa geral da
Prefeitura e se perca o controle e afetação legal. Também deverá ser criado um
Conselho de Desenvolvimento Urbano (com composição paritária público/privada,
sendo esta última distribuída entre os diversos segmentos da sociedade), com atribuição
consultiva e fiscalizadora.
10. Entende-se que a vinculação do recurso também se dá em
relação à área na qual ocorreu a outorga onerosa do direito de construir ou seu entorno.
Seria incoerente admitir a desvinculação espacial deste recurso, em face dos
85
fundamentos que justificam a cobrança da contrapartida, pois se uma área específica
sofreu os efeitos do aumento de construção, será nela o emprego do recurso para
correção ou atenuante do correspondente efeito.
Embora seja difícil conciliar a aplicação do recurso na área
específica em que ocorreu a outorga onerosa do direito de construir, em face da
vinculação do art. 31 (que vincula a aplicação dos recursos às finalidades previstas nos
incisos I ao VIII, do art. 26), o certo é que dentro do elenco do art. 26, conforme o caso
concreto (ou seja, as características da área que deverão ser levadas em consideração,
por parte do Poder Público Municipal, no momento da destinação do recurso a certa
finalidade), conclui-se que não é necessário exaurir o elenco previsto no art. 26 e não
há impedimento em repetir a destinação do recurso quanto à mesma finalidade. Sendo
assim, há margem de discricionariedade dentro do elenco previsto no art. 26, do
Estatuto da Cidade, que não deixa de ser abrangente.
11. A mesma vinculação espacial do recurso deverá ser
observada no caso da transferência do potencial adicional construtivo de uma área para
outra. Neste caso, o recurso deverá ficar onde foi aproveitado o potencial adicional
construtivo, ou seja, onde ocorreu a outorga onerosa do direito de construir (e fora dado
o CEPAC como pagamento da contrapartida). Para tanto, Lei Municipal específica
deverá prever mecanismos de controle da aplicação dos recursos, por meio de um
sistema de informação ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, para afetação
do recurso na área onde se utilizou o CEPAC.
12. A transferência do direito de construir não é elemento
indispensável para a configuração do instituto do solo criado. Na realidade, o que
ocorre é a transferência de potencial adicional construtivo, de um lote para outro
(dentro da mesma área ou área distinta, conforme a previsão legal). O solo criado
somente passará a existir após o ato da outorga onerosa do direito de construir, que
utilizará do potencial adicional construtivo, anteriormente adquirido, dando-se baixa no
CEPAC (Certificado de Potencial Adicional Construtivo) como adimplemento da
contrapartida.
13. É evidente que deverão existir critérios firmes para a
aplicação da transferência do potencial adicional construtivo atrelada à outorga
onerosa do direito de construir, a fim de que esta não se afaste do objetivo de controlar
86
o uso do solo urbano e promover o adequado ordenamento da cidade. Destacam-se,
portanto, os seguintes:
A) O lote destinatário da transferência do potencial adicional construtivo (onde o
CEPAC será convertido em direito de construir) submeter-se-á às mesmas
normas contidas no Plano Diretor e Lei Específica Municipal, quanto ao regime
e condições para utilização do instituto do solo criado;
B) O lote destinatário da transferência do potencial adicional construtivo (onde o
CEPAC será convertido em direito de construir) deverá ter a mesma natureza de
uso (zona de uso industrial, comercial, residencial ou misto) que o lote em que
se originou o potencial construtivo;
C) O Poder Público Municipal deverá verificar se o lote receptor do CEPAC está
inserido em área na qual se permite a aplicação do solo criado;
D) O Poder Público Municipal deverá verificar se na área onde está situado o lote
receptor, não se esgotaram os estoques para utilização do solo criado;
E) O Poder Público Municipal deverá verificar se há compatibilidade do CEPAC
com a nova área, no que concerne aos valores divergentes entre o lote que
originou o potencial construtivo e o do lote que irá recebê-lo. Por meio de um
cálculo, previsto em Lei Municipal específica, o CEPAC será convertido e
adequado para um Novo Potencial Construtivo, considerando a proporção entre
o valor representado por cada CEPAC e a exigência para o novo lote, com a
respectiva correspondência pecuniária à extensão em metros quadrados;
F) Lei Municipal específica deverá prever a quantidade de estoque de Potencial
Adicional Construtivo (em metros quadrados), destacados por zonas e prazo
mínimo de sua duração;
G) O Poder Público Municipal deverá controlar a evolução do consumo de
estoques, acima referidos, considerando-se consumo por zona os decorrentes da
outorga onerosa do solo criado e as decorrentes de transferências do potencial
construtivo;
H) Lei Municipal específica e/ou Plano Diretor deverão prever a possibilidade de
suspensões das outorgas onerosas do direito de construir, quando na iminência
de esgotamento dos estoques, em relação a cada área.
14. O CEPAC deverá ter um prazo para ser utilizado, pois, caso
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contrário poderá servir de especulação, desvirtuando-se a finalidade para o qual foi
constituído. Portanto, Lei Municipal específica ou o próprio Plano Diretor deverá
prever o prazo decadencial de sua utilização.
15. Diante do quadrante normativo do Estatuto da Cidade em
relação ao solo criado (por ser norma geral), pouco se pode afirmar acerca da sua
eficiência, como instrumento político e jurídico da Política Urbana. Contudo, dois
pontos prejudiciais foram apontados:
a) O § 2º, do art. 28, “in fine”, que prevê a possibilidade de fixação de coeficientes de
aproveitamentos distintos para diversas áreas: pelos motivos afirmados no item “5”,
acima;
b) O art. 31, que vincula a aplicação do recurso aos incisos I ao VIII, do art. 26, quando
se parte do pressuposto necessário de aplicação do recurso na mesma área da outorga
onerosa do direito de construir: pelos motivos afirmados no item “10”, acima.
16. Por outro lado, dependerá muito mais do Município, da
maneira que foi estruturado o solo criado, por meio de seu Plano Diretor e Lei
Municipal específica, o sucesso ou insucesso na concretização dos objetivos da Política
Urbana. Vários aspectos do solo criado foram deixados ao Município para que os
instituíssem de forma mais próxima a sua realidade, no âmbito de sua competência
discricionária. Neste ponto, sobreleva-se o papel da doutrina e jurisprudência que estão
se formando (haja vista a recente positivação pelo Estatuto da Cidade), a fim de que
possam ofertar parâmetros para orientar sua criação e melhoria ou, ao menos, apontar
os pontos que fatalmente poderão levar ao desvio de finalidade.
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