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FERNANDO SABINO

A MULHER DO VIZINHO
QUINTA EDIÇÃO
EDITORA SABIÁ

Agradeço a Otto Lara Resende sua contribuição, que não se limitou ao desenho da capa e à
ajuda na escolha dos 70 trabalhos, de preferência os mais curtos, reunidos neste livro – inspirador
e mesmo personagem que vem a ser de vários dêles.
F. S.
ESCRITÓRIO
Aluguei um escritório. Minha senhoria é a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Pe-
nitência – o que quer dizer que começo bem, sob a égide de um santo de minha particular devoção.
Espero que êle me assista nesta grave emergência.
Grave, porque assumi compromisso, com contrato registrado e sacramentado, de cumprir fiel-
mente o regulamento do prédio, na minha nova condição de inquilino. Não posso, por exemplo, ter
explosivos no imóvel, objeto da referida locação – o que significa que os terroristas desta praça não
devem mais contar comigo. Também não posso utilizar-me do mesmo para reuniões subversivas –
estando, pois, assegurado que minhas atividades daqui por diante não ameaçarão mais a ordem vi-
gente nem a segurança do regime. Não posso, outrossim, colocar pregos que danifiquem as paredes.
A Venerável me entrega o imóvel em perfeito estado, e assim deverá ser devolvido, findo o prazo
de locação a que se refere o supradito contrato – automaticamente prorrogável, seja dito a bem da
verdade. Serviu de fiador meu venerável amigo Otto, que responde pelo bom cumprimento das con-
dições estipuladas.
Mas escritório de quê? Advocacia? A tanto não ousaria, sendo certo que minha qualidade de
bacharel nunca me animou sequer a ir buscar o diploma na Faculdade (onde, confio, esteja ainda
bem guardado à minha espera, se dêle precisar para qualquer eventualidade: a de ser inesperada-
mente convocado à vida pública, por exemplo, com uma honrosa nomeação, sacrifício a que seria
difícil esquivar-me). Pelo que, não ousaria, a esta altura da minha vida, iniciar-me na profissão a
que o dito diploma presumivelmente me habilita. Além do mais, eu não poderia mesmo colocar o
prego para dependurá-lo na parede.
Fica sendo então escritório, tão sòmente. Nem mesmo de literatura: apenas um local onde
possa acender diàriamente o forno (no sentido figurado, apresso-me a tranqüilizar o condomínio)
desta padaria literária de cujo produto cotidiano, fresco ou requentado, vou vivendo como São Fran-
cisco é servido. Levo para o meu nôvo covil uma mesa, uma cadeira, a máquina de escrever – e me
instalo, à espera de meus costumeiros clientes.
Estranhos clientes êstes, que entram pela janela, pelas paredes, pelo teto, trazidos pelas vozes
de antigamente, vindos numa página de jornal, ou num simples ruído familiar: projeção de mim
mesmo, ecos de pensamento, fantasmas que se movem apenas na lembrança, figuras feitas de ar e
imaginação.
BURRO-SEM-RABO
São dez horas da manhã. O carreto que contratei para transportar minhas coisas acaba de che-
gar. Vejo sair a mesa, a cadeira, o arquivo, uma estante, meia dúzia de livros, a máquina de escre-
ver. Quatro retratos de criança emoldurados. Um desenho de Portinari, outro de Pancetti. Levo tam-
bém êste cinzeiro. E êste tapête, aqui em casa êle não tem serventia. E esta outra fotografia, ela
pode fazer falta lá.
A mesa é velha, me acompanha desde menino: destas antigas, com uma gradinha de madeira
em volta, como as de tabelião do interior. Gosto dela: curti na sua superfície muita hora de estudo
para fazer prova no ginásio; finquei cotovelos em cima dela noites seguidas, à procura de uma idéia.
Foi de meu pai. É austera, simpática, discreta, acolhedora e digna: lembra meu pai.
Esta cadeira foi presente de Hélio Pellegrino, que também me acompanha desde a infância: é
giratória e de palhinha. Velha também, mas confortável como as amizades duradouras. Mandei re-
formá-la, e tem prestado serviços, inspirando-me sempre a sábia definição de Sinclair Lewis sôbre o
ato de escrever: é a arte de sentar-se numa cadeira.
– Mais alguma coisa? – pergunta o homem que faz o carreto.
– Mais nada – respondo, um pouco humilhado.
E lá vai êle, puxando a sua carroça, no cumprimento da humilde profissão que lhe vale o in-
justo designativo de burro-sem-rabo. Não tendo mais nada a fazer, vou atrás.
Vou atrás, cioso das coisas que êle carrega, as minhas coisas; parte de minha vida, pelo menos
parte material, no que sobrou de tanta atividade dispersa: o meu cabedal.
Pouca coisa, convenhamos. Mas ali dentro daquele arquivo, por exemplo, vão documentos,
originais, cartas recebidas ao longo dos anos, testemunhas do convívio. Vem-me a idéia de que, po-
bres coisas que sejam, com êste mesmo carreto é que subirei um dia para dar conta do que fiz e dei-
xei de fazer cá na Terra. E me esbofarei como um propagandista ambulante, tentando fazer entrar
pela porta estreita esta carga que me sobrou da aflição do espírito e que, burro-sem-rabo, teimosa-
mente transporto comigo ao longo da vida até o seu termo.
MILHO E FUBÁ
Oscar tinha um sítio. Um dia Oscar resolveu levar na camioneta um pouco de esterco do sítio,
que era no interior de Minas, para o jardim de sua casa na capital. Na barreira foi interpelado pelo
guarda:
– O que é que o senhor está levando aí nesse saco?
– Estêrco – respondeu Oscar, farejando aborrecimento: – Por quê? Não lhe cheira bem?
– O senhor tem a guia? – o guarda perguntou, imperturbável.
– Guia?
– É preciso de uma guia, o senhor não sabia disso?
Oscar não sabia. Perguntou ao guarda como é que se arranjava uma guia.
– No Departamento Estadual do Estêrco.
O guarda explicou a Oscar como é que êle devia fazer. Oscar deixou o carro na barreira, pe-
gou uma carona e foi até o DEB, no centro da cidade.
– DEB? Devia ser DEE – observou Oscar.
– Devia ser mas não é – informou o funcionário: – É DEB mesmo. Aliás, isso não é comigo: é
com seu Redelvim, no segundo andar.
Seu Redelvim acabou de rabiscar num papel, repousou a caneta e voltou-se para atendê-lo:
– Em que lhe posso ser útil?
– Dá-se o seguinte – explicou Oscar, muito amável, procurando despertar simpatia: – Eu
trouxe um saco de estêrco do meu sítio…
– Olha o pèzinho na cadeira.
– Como?
– O senhor estava encostando o pé na minha cadeira, isso me dá uma aflição danada – seu Re-
delvim explicou, com vozinha mansa. – Pode prosseguir. Um saco de estêrco, o senhor disse?
– De estêrco – prosseguiu Oscar, e só fazia prestar atenção para não encostar mais o pé na ca-
deira do homem. – Trouxe do meu sítio. Lá embaixo no primeiro andar um funcionário, seu Alcides
se não me engano, me informou que era com o senhor.
Inesperadamente, seu Redelvim se queimou:
– Seu Alcides disse que era comigo? Pois olha, vou lhe dizer uma coisa: eu estava exatamente
redigindo uma representação ao Secretário contra êsse abuso: tudo é comigo, até estêrco! O senhor
já esteve no Serviço de Seleção?
– Seleção de quê?
– De estêrco, ora essa! Meu amigo, tem estêrco de vaca, de galinha, até de passarinho, o se-
nhor pode não acreditar, mas tem.
– Eu acredito – balbuciou Oscar.
– Pois então? – e seu Redelvim sorriu, triunfante.
– O meu é de vaca, se me permite informar.
– Seja do que fôr, o senhor tem de ir ao Serviço de Seleção.
No Serviço de Seleção perguntaram a Oscar quantos quilos de estêrco de vaca êle transpor-
tava. Oscar não soube dizer: um punhado, um saquinho dêste tamanho, mostrou, erguendo as mãos.
O funcionário disse que assim não era possível: tinha de saber o pêso exato. Pesasse o esterco e vol-
tasse, querendo. Oscar perdeu a paciência, deixou escapar um palavrão. Voltou à barreira, pegou
seu carro e regressou ao sítio com o estêrco.
Ao chegar, a mulher lhe disse que êle devia ter corrido um dinheirinho no guarda, ficava tudo
por isso mesmo… Eu venho com o milho e ela já volta com o fubá, resmungou Oscar. Mal compa-
rando.
UM DOADOR UNIVERSAL
Tomo um táxi e mando tocar para o hospital do IPASE. Vou visitar um amigo que foi ope-
rado. O motorista volta-se para mim:
– O senhor não está doente e agora não é hora de visita. Por acaso é médico? Ùltimamente
ando sentindo um negócio esquisito aqui no lombo…
– Não sou médico.
Êle deu uma risadinha:
– Ou não quer dar uma consulta de graça, hein, doutor? É isso mesmo, deixa pra lá. Para dizer
a verdade, não tem cara de médico. Vai doar sangue?
– Quem, eu?
– O senhor mesmo, quem havia de ser? Não tem mais ninguém aqui.
– Tenho cara de quem vai doar sangue?
– Para doar sangue não precisa ter cara, basta ter sangue. O senhor veja o meu caso, por
exemplo. Sempre tive vontade de doar sangue. E doar mesmo, de graça, ali no duro. Deus me livre
de vender meu próprio sangue: não paguei nada por êle. Escuta aqui uma coisa, quer saber o quê
mais? Vou doar meu sangue e é já.
Deteve o táxi à porta do hospital, saltou ao mesmo tempo que eu, foi entrando:
– E é já. Êsse negócio tem de ser assim: a gente sente vontade de fazer uma coisa, pois então
faz e acabou-se. Antes que seja tarde: acabo desperdiçando êsse sangue meu por aí, em algum de-
sastre. Ou então morro e ninguém aproveita. Já imaginou quanto sangue desperdiçado por aí nos
que morrem?
– E nos que não morrem – limitei-me a acrescentar.
– Isso mesmo. E nos que não morrem! Esta eu gostei. Está se vendo que o senhor é môço dis-
tinto. Olha aqui uma coisa, não precisa pagar a corrida.
Deixei-me ficar, perplexo, na portaria (e êle tinha razão, não era hora de visitas) enquanto
uma senhora reclamava seus serviços:
– Meu marido está saindo do hospital, não pode andar direito…
– Que é que tem seu marido, minha senhora?
– Quebrou a perna.
– Então como é que a senhora queria que êle andasse direito?
– Eu não queria. Isto é, queria… Por isso é que estou dizendo – confundiu-se a mulher: – O
seu táxi não está livre?
– O táxi está livre, eu é que não estou. A senhora vai me desculpar, mas vou doar sangue. Ou
hoje ou nunca – e gritou para um enfermeiro que ia passando e que nem o ouviu: – Você aí, ô bran-
quinho, onde é que se doa sangue?
Procurei intervir:
– Atenda a freguesa…. O marido dela…
– Já sei: quebrou a perna e não pode andar direito.
– Teve alta hoje – acudiu a mulher, pressentindo simpatia.
– Não custa nada – insisti: – Êle precisa de táxi. A esta hora…
– Eu queria doar sangue – vacilou êle: – A gente não pode nem fazer uma caridade, pôxa!
– Deixa de fazer uma e faz outra, dá na mesma.
Pensou um pouco, acabou concordando:
– Está bem. Mas então faço o serviço completo: vai de graça. Vamos embora. Cadê o ca-
penga?
Afastou-se com a mulher, e em pouco passava de nôvo por mim, ajudando-a a amparar o ma-
rido, que se arrastava, capengando.
– Vamos, velhinho: te agüenta aí. Cada uma! Ainda acenou para mim de longe, se despe-
dindo.
O AFOGADO
– Vocês não souberam o que aconteceu com o carro dêle?
Como nenhum de nós soubesse, pôs-se a contar-nos, excitado:
– Imaginem que tinha um sujeito se afogando na Praia de Botafogo e vários carros já haviam
parado para ver. Êle parou atrás, junto à calçada. Então veio outro carro em disparada e bateu de
cheio no dêle.
– Estragou muito? – perguntou alguém da roda.
– Espere, não foi tudo: o dêle, por sua vez, bateu no da frente. O da frente atropelou duas mo-
ças que iam passando. Elas ficaram feridas levemente, mas os carros ficaram completamente amas-
sados. O dêle, então, virou sanfona.
– Mas que azar! – comentou um, consternado.
– Logo aquêle carro, novinho em fôlha! – disse outro.
– Pois foi isso: ficou em pandarecos.
– Então vai custar um dinheirão para consertar.
– Não tinha seguro? – tornou o primeiro.
– Êle não, mas o que bateu tem seguro contra terceiros: só que um seguro de cem mil, não dá
para cobrir o estrago de jeito nenhum.
– Além do mais, é um inferno tentar receber seguro nessas situações.
– Foi o que êle me disse. E tem os outros dois carros, que naturalmente vão pleitear parte
dêsse seguro também.
– Mas se a culpa foi do outro, tem que pagar tudo.
– Até provar que a culpa foi do outro…
– Não houve perícia?
– Não, parece que não houve perícia.
A conversa prosseguiu entre comentários em que todos lastimavam a falta de sorte do amigo.
Todos, menos eu, que me limitava a ouvir, pensativo.
– Você não disse nada – observou um deles.
É verdade, eu não disse nada, continuei calado. Não havia muito que dizer, além do que já
fôra dito pelos outros. Mas na realidade gostaria de saber o que foi que aconteceu com o homem
que estava se afogando.
VINHO DE MISSA
Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa
de bordo.
– Vamos à missa? – convidou Ovalle.
O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
– Missa eu? Deus me livre de missa.
– Não entendo – tornou Ovalle, intrigado: – O senhor pede justamente a Deus que o livre da
missa?
– No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colé-
gio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre – isso explica tudo, o senhor não acha?
Êle achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
– Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a
barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a idéia de furtar o vi-
nho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega – e um dia eu
fiz uma sortida ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a traves-
sura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se
denunciar.
Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação
eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um pa-
dre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: “Padre, como é que eu saio desta? Eu pe-
quei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar o padre-diretor descobre tudo, vou ser
castigado”. Êle, então, me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude re-
ceber comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era sus-
penso do colégio.
O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:
– Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, co-
mentou:
– O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
– Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
– O vinho era bom?
– Como?
– Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu, intrigado:
– Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais…. Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
– E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando
nessa asneira?
O homem o olhava, boquiaberto:
– Asneira? Que asneira?
– Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
– O barbeiro? – balbuciou o outro: É verdade…. O barbeiro! – Como é que na época não me
ocorreu…
– Vamos para a missa – ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
PENALIDADE MÁXIMA
Houve um tempo em que êle era môço e ia à praia. Agora era um homem de meia idade, pa-
letó e gravata, de regresso do trabalho, andando ao longo do mar. Lá na areia o futebol ia animado.
Deteve-se, ficou olhando. Futebol de areia era uma coisa que êle nunca chegaria a entender: não ti-
nha graça, a bola não pulava, ganhava efeito. E onde já se viu jogar descalço? Lembrava-se das pe-
sadas chuteiras de seu tempo com rodelas de couro no tornozelo, cordões compridos dando várias
voltas em tôrno do pé. E os cravos na sola, dêste tamanho! de meter mêdo nas bolas altas…
Sorriu, ficou olhando: é verdade que êsses meninos de hoje fazem miséria. Olha só como
aquêle mata a bola no peito, controla no joelho e vai levando a bichinha no ar. Mas chute forte
como os de antigamente êles não têm. No seu tempo…
Ia-se afastando, depois de acompanhar um último lance do jôgo lá na areia, quando um chute
espirrado atirou a bola cá fora na rua e ela veio rolando até seus pés. Olhou para um lado e para ou-
tro: algum conhecido ali por perto, e era uma vez a sua compostura. Não vendo ninguém, ajeitou
cuidadosamente a pelota na marca do pênalte, para cobrar a penalidade máxima. Lá embaixo os ra-
pazes aguardavam. Tomou distância, esperou o apito do juiz e, sob o silêncio de expectativa da tor-
cida, deu um pulinho, veio correndo, desferiu o chute. Sensação no Maracanã! Gol do Brasil.
O chute foi realmente perfeito e a bola executou a trajetória pretendida, indo cair na areia, en-
tre os rapazes. Mas a compostura foi por água abaixo: atrás da bola, como a cápsula de um foguete-
satélite, seguiu o sapato – sapato de verniz, fôra a uma missa de sétimo dia naquela manhã. O sa-
pato ultrapassou a bola e foi cair na areia lambida pelo mar.
Desequilibrado, êle começou a rodopiar, saltitando numa perna só, acabou caindo. Um dos jo-
gadores pescou o sapato e veio trazê-lo. Ajudou-o a erguer-se:
– O senhor se machucou?
– Não foi nada.
– Antes assim.
– Isso acontece…
O rapaz se despediu cordialmente, dando-lhe um tapinha nas costas. Tentou uma careta jovial,
calçou o sapato molhado e saiu chapinhando com êle no asfalto. Fazia fôrça para não capengar –
fôra como se tivesse querido atirar à distância, não a bola, mas a própria perna! Teria distendido al-
gum tendão? Longe da vista dos jogadores, sentou-se no banco da praia com um gemido. Isso acon-
tece – repetiu para si mesmo, conformado.
O MATA-BORRÃO
Uma de suas funções, como membro da Presidência da Câmara, era a de zelar pelos móveis e
demais pertences. Ao conferir a relação, deu por falta de uma mesa, uma cadeira e uma máquina de
escrever. Fêz sindicância e apurou que um deputado simplesmente havia levado aquelas peças para
casa no princípio da legislatura e até então não devolvera. Saiu à procura do ilustre colega:
– Estou fazendo um levantamento – explicou, o mais diplomàticamente que lhe foi possível: –
Queria que você providenciasse a devolução: uma cadeira, uma mesa e uma máquina de escrever,
não é isso mesmo? Naturalmente, você tomou emprestado…
– Eu?
O deputado resmungou umas desculpas, fêz-se de desentendido e tudo ficou por isso mesmo:
os dias iam passando e os objetos não apareciam. O homem ficava meio ressabiado quando cruzava
com êle nos corredores da Câmara:
– Mesa? Que mesa?
– Uma mesa, uma cadeira e uma máquina de escrever.
– Ah, você já me falou no assunto, estou me lembrando agora.
– Então não se esqueça também de devolver.
– Isso mesmo. Louvo o seu zêlo. Não tenha susto, vou providenciar.
– Quando?
– Qualquer dia dêsses.
Às vêzes o sacripanta mudava de tática – limitando-se a bater com a mão espalmada na testa:
– Que cabeça, a minha! Estava certo de já ter devolvido isso! Uma coisa tão à toa…
– À toa para você. São bens públicos: pertencem à União.
– Não precisa falar nesse tom, que diabo! Está duvidando de minha palavra?
– Estou querendo os objetos de volta.
– Não vamos brigar por causa de uma bobagem.
– Bobagem não: uma cadeira, uma mesa e uma máquina de escrever.
Um dia êle acabou perdendo a paciência e chamou seu relapso colega à Secretaria:
– Você é um deputado, compenetre-se! Já imaginou o escândalo que seria se essa história
transpirasse? Você, um parlamentar, envolvido num caso de desvio de bens da Câmara dos Deputa-
dos!
E, irritado, bateu na mesa com o mata-borrão:
– Se até amanhã à tarde você não tiver devolvido a cadeira, a mesa e a máquina de escrever,
mando um caminhão buscar em sua casa e conto para os jornais, faço um barulho louco.
O outro se viu perdido:
– Está bem, eu devolvo – resmungou, afinal, humildemente, depois de pensar um pouco. E
acrescentou, como um menino teimoso: – Mas só se você der para mim êsse mata-borrão.
O MELHOR AMIGO
A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou
um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo,
deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido, tentou
ainda ganhar tempo:
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la. Veio cami-
nhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que êle faz.
– Trate de levar embora êsse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe…. – já compondo uma cara de chôro.
– Tem dez minutos para botar êsse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa.
Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado: a
gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco.
Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou esperando a
reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não faço mais
nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de nôvo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apêlo: tinha dez minutos para brincar com seu
nôvo amigo, e depois… Ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva êsse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais ninguém
nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Êle saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa
idade, uma injustiça praticada e êles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa tôda…
Meia hora depois, o menino voltava da rua, radiante:
– Pronto, mamãe! E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor
amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que êle dava – murmurou, pensativo.
NUMA CURVA DA ESTRADA
Ao dobrar uma curva da estrada, vejo de relance o automóvel conversível cruzar-se com o
meu, a caminho de Petrópolis. Olho para trás, espantado: a minha barata!
Até hoje não me esqueço do dia em que me vi motorizado pela primeira vez, em plena Copa-
cabana, graças a um generoso presente de meu irmão, que comprara outro carro.
Atrás do volante de uma poderosa barata conversível a que ninguém diante de mim ousaria
chamar de calhambeque – e hoje em dia nem ao menos de barata – considerei-me desde logo o Rei
da Zona Sul, até que o primeiro fiscal de trânsito me multasse. Em vão tentei convencê-lo de que
passara por cima da calçada ao fazer a curva porque a traseira da conversível era maior do que su-
punha a minha vã sabedoria.
No dia seguinte sofreria humilhação maior, ao retirá-la com estrépito da garagem, numa im-
prudente marcha ré que levou de arrastão a bicicleta do quitandeiro, carregada de laranjas e ovos.
Os ovos se espatifaram numa chuva de claras e gemas, as laranjas se espalharam pela rua. Era inútil
– sorria eu, como explicação aos curiosos que logo me cercaram: não podia sair de cima da bicicleta
do homem, com a roda já em forma de oito, simplesmente porque naquele instante não havia meios
de fazer o motor funcionar.
Tinha o estranho capricho de não funcionar nas circunstâncias mais embaraçosas. Assim
aconteceu dentro do Túnel Nôvo, à frente de um bonde; no Largo da Carioca, à espera do sinal; na
Rua 1.º de Março, às cinco horas da tarde. Nesta última vez, um prestimoso chofer de caminhão se
dispôs a empurrar-me, mas o fêz com tanta galhardia que para não abalroar o carro que me ia à
frente, entrei prudentemente na Rua do Ouvidor e me transformei em monumento.
Um mecânico de nome Mundial se dispunha a comprá-la, mas, quando o procurei para efeti-
var a transação, humilhou-me dizendo que gastara o dinheiro adquirindo um terno meia-confecção.
Vergonha para mim, que me tornara íntimo de todos os Mecânicos do Rio de Janeiro e adjacências!
Quando finalmente a vendi (seu dono me disse que a transformaria em camioneta, para trans-
porte de produtos de sua fazenda) não quis nem olhar da janela para vê-la partir. A minha poderosa
conversível, glorificado, durante meu reinado sem coroa e sem capota, prestando-se a transporte de
bananas, aves e porcos! No fundo temia que não dessa partida e o homem voltasse para que eu lhe
devolvesse o dinheiro.
Pois agora vejo-a passar por mim numa curva da estrada. Ainda funciona, louvado seja meu
irmão! Vou pensando num momento já perdido para sempre, do qual aquêle carro foi apenas a parte
mais pitoresca. E no homem ainda tonto de mocidade, a quem êle transportava para lugar ne-
nhum… Nada como um carro depois de outro! – concluo então. E acelero, mais conformado, em di-
reção ao futuro.
A MULHER DO VIZINHO
Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava
(ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia.
Ora, às vêzes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a
paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho.
O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.
O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante
industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente êle o era. Obede-
cendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo
o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte:
– O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer?
Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de conhecer as
leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada Exército Brasileiro, que o senhor tem de res-
peitar? Que negócio é êsse? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem
entende, como se isso aqui fôsse a casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro:
“dura lex”! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o
General, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.
Tudo isto com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um
canto. O vizinho do general pediu, com delicadeza, licença para se retirar. Foi então que a mulher
do vizinho do general interveio:
– Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?
O delegado apenas olhou-a, espantado com o atrevimento.
– Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não é
gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso importunaram o General, êle que viesse falar
comigo, pois o senhor também está nos importunando. E fique sabendo que sou brasileira, sou
prima de um Major do Exército, sobrinha de um Coronel, e filha de um General! Morou?
Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em sêco e balbuciar humildemente:
– Da ativa, minha senhora?
E, ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços, desalentado:
– Da ativa, Motinha. Sai dessa.
NOTÍCIA DE JORNAL
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de côr branca, 30
anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade,
permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto
Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que
acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso
(morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem
de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser identifi-
cado. Nada se sabe dêle, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na
rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um
proscrito, um bicho, uma coisa – não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de
passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que
morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar ne-
nhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sòzinho, isolado, perdido entre os homens,
sem socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser
da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome,
diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo provi-
dências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem.
Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer se-
não esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais
movimentada da Cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
OPERAÇÃO-LEBRE
Os serventuários da Justiça voltam a falar numa operação-tartaruga – desta vez a propósito do
anunciado aumento de custas. Consiste a referida operação em reduzir as atividades ao mínimo ne-
cessário para o andamento dos serviços.
Acredito que o recurso seja eficiente. Sempre acreditei no lema da tartaruga: devagar e sem-
pre – com o qual logrou vencer a própria lebre naquela célebre corrida.
Mas operação-tartaruga (que os serventuários me desculpem, também já fui um deles) a nossa
justiça sempre fêz. Ocorreu-me sugerir então aos meus ex-colegas uma operação-lebre, certamente
de muito mais efeito, salvo melhor juízo.
– Quéde o processo que estava aqui?
– Lebre comeu.
– Como?!
– Foi despachado.
– Já? Que diz o despacho?
– “Expeça-se o alvará”. Foi expedido.
– Expedido? Se não faz nem quinze minutos…
– E já foi cumprido, o prêso já foi sôlto…
– Foi sôlto como, senhor! Que brincadeira é essa?
– … e já tornou a delinqüir, foi prêso de nôvo, autuado, indiciado, processado, condenado, e
está cumprindo pena.
O advogado entra descansadamente no cartório:
– Conversei com o perito. Prometeu o laudo para esta semana, sem falta. Queria que você fi-
zesse…
O escrevente não o deixa terminar:
– Já fiz. O laudo já está aqui, fiz a juntada, abri vista para a outra parte, já falou, todos os fis-
cais já falaram, fiz conclusão para sentença.
– Será que o juiz decide ainda êste mês?
– Já decidiu. O senhor teve ganho de causa. A sentença foi registrada, publicada e já está cer-
tificada.
– Quer dizer que, se a outra parte não recorrer…
– Já recorreu. A petição foi despachada, juntada, autos conclusos, alegação procedente, nova
sentença: senhor perdeu a questão.
– Não é possível! Também posso recorrer da sentença.
– Podia, não pode mais: já transitou em julgado.
– Que transitou em julgado coisa nenhuma! Estou dentro do prazo.
– Prazo? Que prazo? O mandado já foi expedido, o pagamento já foi feito, o processo já foi
arquivado. Operação-lebre, meu amigo.
E, se o advogado ousa protestar, o escrevente acolhe imediatamente a reclamação em forma
de petição, colhe assinatura, autua, abre conclusão e cobra as custas, por ser de integral JUSTIÇA!
antes que o advogado fale gato.
Ou lebre.
ISENÇÃO DE ÂNIMO
Redator de um vespertino desde a sua fundação, tendo comprado um apartamento, foi à repar-
tição dar entrada nos papéis requerendo isenção de impôsto de transmissão, como jornalista. Um
funcionário pálido e de bigodinho antipático o atendeu. Depois de examinar os documentos, sorriu
sadicamente:
– O senhor não vai conseguir isenção.
– Posso saber por quê? – perguntou o jornalista.
– Porque – explicou o homenzinho, juntando os dedos no ar e escandindo as palavras com
precisão – estou aqui para selecionar os papéis.
– Isso não quer dizer que eu não consiga a isenção.
– Perdão: e quem disse que os seus papéis estão em ordem?
– Então examine e veja se não estão.
O funcionário começou a examinar meticulosamente os papéis, com um sorriso de quem diz:
“Já lhe mostro…. Já lhe mostro….” E mostrou mesmo:
– Olha aqui, falta reconhecer a firma dêste documento.
Continuou a procurar, mas não encontrou qualquer outra irregularidade.
– Ainda assim, posso assegurar-lhe que não vai conseguir – afirmou, com delicadeza profissi-
onal.
– Não vou conseguir por quê? estourou o jornalista.
– Não se exalte. Não se exalte. Estou aqui para selecionar… Fazemos rigorosa sindicância nos
jornais. O seu nome não deve constar nas fôlhas de pagamento.
– Pois fique sabendo que consta.
– Um momentinho! – interrompeu o funcionário: – Não deve constar do registro no Ministé-
rio do Trabalho.
– Consta também.
– Pode ser, pode ser…. Mas o senhor não vai conseguir.
– Pois se não conseguir vou à Justiça, faço valer os meus direitos. O senhor vai ver só.
– Duvidê-ó-dó… – suspirou o funcionário.
E voltou-se polidamente para outro cidadão que esperava a sua vez:
– O senhor? Em que lhe posso ser útil?
– Dar entrada nestes papéis – disse o homem com truculência.
– Isenção? Deixa ver aqui…. O senhor não vai conseguir.
– Por quê?
– O documento diz aqui: “Por ter servido durante a guerra…” servido! e não prestado serviço.
Meu amigo, há uma diferença entre servir e prestar serviço. Servir é compulsório; prestar serviço,
quer dizer: fazer algum serviço vo-lun-tà-ria-men-te. O senhor não vai conseguir.
– Se não conseguir eu pago o impôsto – resignou-se o homem.
– O problema é seu – encerrou o funcionário: – Estou aqui para selecionar os papéis.
O CORAÇÃO DO VIOLINISTA
De repente, meu amigo tentou liquidar a discussão, dizendo que bateria não era instrumento
de música.
– Como não é instrumento de música? É instrumento de quê, então?
– De jazz.
– E jazz não é música?
– Música para você: para mim não é.
– Tôda orquestra sinfônica tem bateria.
– Nem por isso ela fica sendo instrumento de música.
– Por que não?
– Tôda orquestra sinfônica tem maestro. Maestro é instrumento de música?
– Em certo sentido, é.
– Ora, você está é bêbado.
Discutíamos por discutir, levados pela necessidade de manter aceso o interêsse da conversa,
enquanto tomávamos a nossa cerveja. Meu amigo voltou à carga:
– Você não entende de instrumento de música. Se entende, me diga uma coisa: bateria é ins-
trumento de percussão, não é isso mesmo?
– Tenho a impressão que sim.
– Tem a impressão, não: é instrumento de percussão. Agora me diga uma coisa: o piano. O pi-
ano é instrumento de corda ou de percussão?
Embatuquei. Sempre tivera o piano na conta de instrumento de corda, ora essa era muito boa.
Mas o diabo daqueles martelinhos lá dentro, percutindo nas cordas…. Percussão?
– De corda – arrisquei.
– Não senhor: de percussão – arrematou êle, triunfante, e chamou o garçom com um gesto,
pedindo outra cerveja.
Veio-me a certeza de que se eu tivesse falado “de percussão”, êle diria: “não senhor: de
corda”. Agarrei-me à corda:
– Percussão aonde, senhor! De corda.
– Percussão.
– Corda.
Dali partiríamos para os sopapos, se de súbito não tivesse entrado no bar o violinista triste.
Vinha de um programa de televisão, onde mal aparecia, na terceira fila de uma orquestra. Mas não
era por isso que ùltimamente vivia triste: andava apaixonado, sabia-se, e não tivera ainda nem cora-
gem de se declarar à sua amada, “uma mulher pra muito luxo”, dizia êle. Foi sentar-se a um canto,
como sempre, pediu um conhaque. Imediatamente o convocamos para a nossa mesa, e veio, olhos
de vaca mansa, trazendo seu cálice. Para êle tanto fazia sentar-se nesta como naquela, ora dane-se!
estava apaixonado.
– Você que é músico de verdade vai dizer aqui uma última palavra: bateria é ou não é instru-
mento de música?
– Piano é instrumento de percussão ou de corda?
Mas o violinista triste não queria saber de nada, muito menos de conversa fiada de botequim.
Largou-nos um olhar desconsolado, soltou um suspiro que era um mugido tristíssimo, ergueu-se, le-
vando o cálice ao peito:
– E o coração… É instrumento de sôpro ou de percussão?
ABRE O ÔLHO, CAMILO
Hoje pela manhã a campainha do telefone me acordou: alguém queria falar comigo.
– Quem?
– O Camilo. Como vai o senhor?
– Vou bem obrigado. Mas quem é mesmo que está falando?
– O Camilo: não está conhecendo a minha voz?
– Que Camilo?
Era evidente que eu não estava conhecendo a voz do Camilo. Êle se pôs a rir, mineirão:
– Que é isso, doutor? o Camilo, do Beco dos Perdões…. Não se lembra?
– Ah, sim, do Beco dos Perdões…
Mas eu não me lembrava mesmo:
– O senhor vai me desculpar, seu Camilo, tenho uma memória péssima: não estou me lem-
brando não. Beco dos Perdões, o senhor disse? Onde fica isso?
O homem então falou em Juiz de Fora, mas, como eu continuasse na mesma, acabou estra-
nhando, repetiu meu nome, perguntou se era realmente comigo que êle estava falando. Eu disse que
era.
– O escritor?
– Sim. A menos que haja outro com o mesmo nome.
– Então não tem dúvida – insistiu êle, a voz já meio aborrecida: – É o senhor, não há outro
não. Não entendo o que está acontecendo…
Quem se aborrecia agora era eu:
– E eu muito menos, companheiro.
Êle voltou à carga:
– É o Camilo, doutor. Será possível?
– Que Camilo? – perguntei conformado. Ia começar tudo de nôvo: o Beco dos Perdões, etc…
– Está bem, é o Camilo: e daí?
– O senhor não costuma aparecer tôda tarde no Ministério da Agricultura?
– Absolutamente: nunca na minha vida fui ao Ministério da Agricultura.
– Então não compreendo – suspirou êle, desapontado.
– Nem eu – respondi.
– É o Camilo, doutor – êle se lamuriou ainda.
– Você já me disse, ó Camilo – e como o Camilo não falasse mais nada, acabei desligando o
telefone.
Agora estou aqui pensando no que diabo êsse Camilo queria comigo. Eu devia ter perguntado.
Que não está me tomando por outra pessoa é evidente, desde que declinou meu nome, minha condi-
ção de escritor. A menos que eu seja mesmo outra pessoa. Um golpe de esperteza não pode ser, pois
está se vendo que o Camilo ficou desapontado porque eu não me lembrava dêle. Donde se conclui
que o golpe deve ser de outra pessoa contra êle, e não dêle contra mim. Cuidado, Camilo, que tem
alguém usando meu nome para te fazer de bôbo, lá no Ministério da Agricultura. Abre o ôlho com
êle.
A menos que eu é que esteja usando o nome dêsse outro para te fazer de assunto. Neste caso,
abre o ôlho comigo.
VALE POR DOIS
Pela manhã, ao sair de casa, olha antes à janela:
– Estará fazendo frio ou calor?
Veste um terno de casimira, torna a tirar, põe um de tropical. Já pronto para sair, conclui que
está frio, devia ter ficado com o de casimira. Enfim… Consulta aflitivamente o céu nublado: será
que vai chover?
Volta para pegar o guarda-chuva – um homem prevenido vale por dois: pode ser que chova.
Já no elevador, resolve mudar de idéia: mas também pode ser que não chova. Carregar êsse trambô-
lho! Torna a subir, larga em casa o guarda-chuva.
Já na esquina, coça a cabeça, irresoluto: de ônibus ou de táxi? Se passar um ônibus jeitoso eu
tomo. Eis que aparece um: não é jeitoso. Vem em disparada, quase o atropela, para deter-se ao sinal
que lhe fêz. Não, não entro: êsse é dos doidos, que saem alucinados por aí.
Deixa que outros passageiros entrem – quando afinal se decide também a entrar, é barrado
pelo motorista: não tem mais lugar. De táxi, pois. Passa um táxi vazio, fica na dúvida, não lhe faz
sinal algum. Logo virá outro – pensa, irritado, e se vê de súbito entrando num ônibus. Ainda bem
não se sentara, já se arrependia: é um absurdo, são desvairados êsses motoristas, como é que deixam
gente assim tirar carteira? Assassinos – assassinos do volante. Melhor saltar aqui, logo de uma vez.
Poderia esperar mais dois ou três quarteirões, ficaria mais perto… Deu o sinal: salto aqui, decidiu-
se. O ônibus parou.
– Pode tocar, foi engano – balbuciou para o motorista.
Já de pé na calçada, vacila entre as duas ruas que se oferecem: uma, mais longa, sombreada;
outra, direta, castigada pelo sol. Não vai chover, pois: sua primeira vitória neste dia.
– Se fôr por esta rua, chego atrasado, mas por esta outra, com tanto calor…
Só então se lembra que ainda não tomou café. Entra no bar da esquina e senta-se numa das
mesas:
– Um cafèzinho.
O garçom lhe informa que não servem cafèzinho nas mesas, só no balcão. Pensa em levantar-
se, chega mesmo a empurrar a cadeira para trás, mas reage: pois então tomará outra coisa, ora essa.
Como também pode simplesmente sair do bar sem tomar nada, não é isso mesmo?
– Me traga uma média – ordena, com voz segura que a si mesmo espantou. Interiormente sorri
de felicidade – mais um problema resolvido.
– Simples ou com leite? – pergunta o garçom, antes de servir.
Êle ergue os olhos aflitos para o seu algoz, e sente vontade de chorar.
O REVÓLVER DO SENADOR
O senador ainda estava na cama, lendo calmamente os jornais, e eram dez horas da manhã.
Súbito ouve a voz do netinho de quatro anos de idade por detrás da fôlha aberta, bem junto de sua
cabeça:
– Vovô, eu vou te matar.
Abaixou o jornal e viu, aterrorizado, que o menino empunhava com as duas mãos o revólver
apanhado na gaveta da cabeceira. Sempre tivera a arma ali ao seu alcance, para qualquer eventuali-
dade, carregada e com uma bala na agulha. Nunca essa eventualidade se dera, na longa seqüência de
riscos e tropeços que a política lhe proporcionara. No entanto, ali estava, agora, apanhado de sur-
prêsa, sob a mira de um revólver. O menino começou a rir de sua cara de espanto:
– Eu vou te matar – repetiu, dedinho já no gatilho.
O menor gesto precipitado e a arma dispararia. Pensou em estender o braço e ao menos afastar
o cano de sua testa, que já começava a porejar suor. Mas temeu o susto da criança, o dedo se con-
traindo no gatilho…. Tentou falar e de seus lábios saíram apenas sons roufenhos e mal articulados.
– Não me mata não – gaguejou, afinal: – Você é tão bonzinho…
– Pum! Pum! – e o demônio do menino, sempre a rir, só fêz dar um passo para trás, que o co-
locou fora de seu alcance. Agora estava perdido.
– Cuidado, que tem bala… – deixou escapar, e a voz de nôvo lhe faltou. Tôda uma vida de lu-
tas e conquistas que terminava ali, estùpidamente, nas mãos de uma criança – de que adiantara?
Tudo aflição de espírito e esforço vão. Se alguém entrasse no quarto de repente, a mãe, a avó do
menino… Que é isso, menino! Você mata seu avô! Com o susto… Sentia o pijama já empapado de
suor. Era preciso fazer alguma coisa, terminar logo com aquela agonia. Estendeu mansamente o
braço trêmulo:
– Me dá isso aqui…
– Mãos ao alto! – berrou o menino, ameaçador, dando outro passo para trás, e as mãos peque-
ninas se firmaram ainda mais no cabo da arma.
O Senador não teve outra coisa a fazer senão obedecer. E assim se compôs o quadro grotesco:
o velho com os braços erguidos, o guri a dominá-lo com o revólver. De repente, porém, o telefone
tocou.
– Atende aí – pediu o Senador, num sôpro.
Estava salvo: o menino tomou do fone, descobrindo brinquedo nôvo, e abaixou o revólver. O
Senador aproveitou a trégua para apoderar-se da arma. Então pôs-se a tremer, descontrolado, en-
quanto retirava as balas com dedos aflitos. O menino começou a chorar:
– Me dá! Me dá!
A mulher do Senador vinha entrando:
– Que foi que você fêz com êle? Está com uma cara esquisita…
– Nada não. Só que acabo de nascer de nôvo – explicou simplesmente.
LEMBRANÇA DE OURO PRÊTO
De automóvel não se chega a Ouro Prêto: brota-se em pleno centro da cidade, ao pé da estátua
de Tiradentes. É aquela côr esbranquiçada de osso muito sêco e esquecido há séculos sob a luz do
sol – tonalidade que nenhum pintor surpreendeu ainda – a da cidade morta e descarnada.
Na janela uma velha desdentada espia a rua. Está ali há cento e cinqüenta anos. Me lembro do
museu – se eu perguntar pelo museu, ela é capaz de me indicar o caminho.
– Pela rua da escadinha?
–…
– Mas me desculpe, meu carro não sobe escadinha.
–…
– Não há outro caminho?
– … o museu?
– Sim, o museu.
Ela sacode a cabeça como se estivesse viva:
– Môço, a cidade tôda é um museu.
Com essa, arrepio caminho – a cidade me repele, repele os automóveis: para reencontrá-la eu
devia ter vindo a pé, palmilhando a poeira das longas estradas de Minas.

Então vou comprar de lembrança uns objetos de pedra-sabão. E me despeço, sem ter encon-
trado, em apenas meia hora de passagem, a lembrança de outros dias. Naquele clube houve um
baile: vermelho, estrêlas, coração. Na sacada em penumbra comparei a um raio de lua a lívida mão
de namorada que pousou na minha mão. E outras emoções de juventude ainda mais puras, que estas
ladeiras testemunharam: encontros, desejos, promessas de amor – ânsia de eternidade de um candi-
dato ao esquecimento. E foi um instante apenas, muito fugaz para ser lembrado, é pouco, o tempo é
pouco, tenho de partir.
– Quanto tempo o senhor acha que eu precisava para rever Ouro Prêto, visitar essas igrejas,
dar uma olhada em tudo isso?
– Uns cinqüenta anos, talvez nem tanto – responde o velho, coçando a barba, irresoluto.
Descubro, então, que está ali outro tanto, naquela esquina, esperando um encontro qualquer –
talvez comigo – que desvende para êle o mistério de Ouro Prêto e a fatalidade que o faz habitante.
SÓSIA
Não há quem não seja um dia confundido com outra pessoa. Mas não como êle que volta e
meia recebe cumprimentos de desconhecidos e às vêzes chega mesmo a ser abordado na rua de ma-
neira inesperada:
– Como é, quando é que você aparece?
– O negócio continua firme?
– O pessoal está afiado, hein?
Não tem a mais longínqua idéia de que pessoal se trata, mas sorri e vai seguindo. Sabe que o
tomam por outro, não se incomoda:
– Deve ser um sujeito bastante popular. Ainda não pude descobrir quem é, mas não tem
dúvida que se parece comigo.
Deixou-se tomar de íntima satisfação por empréstimo, quando foi felicitado por mais de um
“O senhor estêve magnífico!” Algum político? Um jornalista desabusado? Artista de televisão?
Quem sabe algum delegado de polícia em evidência pela apuração de um crime? Um dia foi apon-
tado na esquina por um cidadão,a título de cumprimento: “gostei de ver! Assim é que se faz. Dê
duro nessa gente!” Antes que pudesse aproximar-se para esclarecer o comentário, o outro saltou
num ônibus que passava, arrematando:
– E não tenha mêdo, que êles não são de nada!
Desta êle não gostou. Deduziu que seu presumível sósia devia estar se metendo em perigosas
empreitadas, que não são muito de seu temperamento. Começou a ficar apreensivo ao receber na
rua alguns olhares hostis, e chegou a temer sèriamente pela sua sorte ao ser cumprimentado de pas-
sagem por alguém: “Cuidado, você anda facilitando!”
Há pouco tempo, um capitão do Exército o deteve na Avenida e foi logo dizendo:
– Pode passar lá para receber que já está tudo arranjado. Desta vez não haverá complicação al-
guma.
Intimidado, preferiu não esclarecer o equívoco. Agradeceu e ia seguindo seu caminho, mas
um súbito impulso o fêz mudar de idéia. Deteve-se, chamou o outro:
– Olha aqui, capitão, não vou passar lá coisa nenhuma. Se der complicação, tanto melhor. Que
se danem.
E foi-se embora, deixando o capitão estatelado de surprêsa.
– Desta vez atrapalhei um negocinho dêle – conta-me, esfregando as mãos alegremente: –
Para usar a minha cara daqui por diante vai ter de me pedir licença.
SARDINHAS DO BÁLTICO
Entrou num botequim, pediu cerveja e sanduíche de sardinha. De repente surgiu o outro, con-
siderado o Prêmio Nobel da Mitomania. “Estou perdido”, lastimou-se êle: “se não tivesse encomen-
dado ao garçom, era o caso de dar o fora”.
– Não sei como é que você tem coragem de comer sardinha brasileira – comentou o chato,
aboletando-se a seu lado.
– Brasileira, não: portuguêsa – resmungou.
– Dá na mesma. Sardinha é a do Báltico. É a melhor do mundo, você sabe disso.
– Não sabia não. E seria muito perguntar onde é que se pode comer sardinha do Báltico?
– Em lugar nenhum, a não ser no Báltico.
– E você já estêve no Báltico?
– Não. Isto é, já, mas há muito tempo. Mas tenho aí meus macêtes, o que é que há? Mando
importar diretamente.
– Manda importar diretamente o quê?
– Sardinha do Báltico. Qualquer dia dêsses você aparece lá em casa para experimentar, uma
delícia.
– Escuta, eu não sou de comer sardinha. Só porque hoje…
Acabou perdendo a paciência:
– Quer saber de uma coisa? Vai ser agora, então. Vamos até lá.
O outro vacilou:
– Hoje está meio tarde… Minha mulher já deve estar dormindo.
– Pois eu gostaria de experimentar é hoje. Não sei por que, me deu de repente uma vontade
desgraçada de comer sardinha do Báltico.
– Já que você insiste…
Saíram juntos, e êle caminhava duro, decidido a ir até o fim. Sardinhas do Báltico! Tiveram
de entrar pela cozinha, e êle se prevenia contra qualquer pretexto do outro para escapar. Desta vez o
apanhara. A carta do Hemingway que acabara de receber, pena que tivesse deixado em casa; sua
amizade com Chaplin; a viagem que fizera numa jangada; sua atuação no passado, como integrante
do selecionado brasileiro de futebol! Desta vez, porém, estava perdido. Sardinhas do Báltico.
– Espere um instante, que minha mulher é que sabe onde estão.
E o homem foi lá dentro. Via-se que estava sem jeito, completamente encafifado. Em pouco
voltava, carregando uma pilha de latas:
– Ela mandou pedir desculpas por não aparecer, você não repare, já estava recolhida. Olhe aí,
tem de diversas marcas. Vamos experimentar esta aqui, na minha opinião é a melhor.
Êle tomou das latas e pôs-se a examiná-las com cuidado. Teve de render-se à evidência: eram
latas de sardinha, não havia dúvida. E tôdas do Báltico.
A VOLTA
Já não me lembro se foi lido, inventado, escrito por mim mesmo ou contado por alguém. O
certo é que êle, ao dobrar uma esquina, esbarrou com um velho amigo, a quem não via desde os
tempos de mocidade.
– Mas você!
– Não me diga.
– Quanto tempo, senhor!
Antes que dessem por terminada a efusão do encontro, outro amigo daquele tempo saltou de
um ônibus exatamente diante deles. Era muita coincidência. Passado o primeiro instante de perple-
xidade, vieram os abraços, as indagações, a satisfação de riso fácil, as lembranças misturadas da an-
tiga convivência.
– Mas, positivamente, está pedindo uma celebração.
E os três, confraternizados na alegria do encontro, se encaminharam imediatamente para um
bar.
Os outros dois trocavam confidências. Êle se deixou ficar meio à margem, renovando fre-
qüentemente o copo, e sorrindo à lembrança de outro tempo, que lhe voltava agora, vagamente me-
lancólica. Quis partir, mas instaram com êle que ficasse:
– Espere aí, ainda nem começamos. Temos muito que conversar.
– A noite é uma criança, mal acabada de nascer.
– Hoje é dia de enchermos a alma até o rabo, como antigamente.
– Vamos em frente! Ou você já deixou que a mulher lhe pusesse o cabresto?
Acabou ficando, e entraram pela noite, passando de um a outro bar. Limitou-se a acompanhá-
los, bebendo sempre, no início pouco à vontade, como um intruso a invadir território que já não lhe
pertencia. A horas tantas, quando a conversa de fim de noite já se arrastava, pôs-se a dormir, derre-
ado na cadeira. Chegara a hora da retirada e não houve fôrça humana que o fizesse suster-se sôbre
as pernas. Os outros dois, um pouco melhorzinhos, se entreolharam:
– Vamos ter de levá-lo.
– Eu por mim ainda tomava mais um.
Carregaram-no aos trambolhões até um táxi e mandaram tocar para a sua casa, de cuja direção
ainda se lembravam.
– Até que êle não bebeu tanto assim.
– Você também não está muito bom das pernas.
– A alma vai bem, mas o corpo não ajuda!
– Já fomos melhores, meu velho.
Chegaram. Subiram com dificuldade a escada até a varanda, amparando o amigo, tocaram a
campainha. Diante da mulher, a quem provàvelmente haviam tirado da cama, esboçaram uma expli-
cação, mas as palavras acudiam difíceis. Ela se limitou a olhá-los, silenciosa. Confiaram-lhe então a
sua carga e bateram em retirada, antes que as coisas se complicassem. Ainda tiveram ânimo de to-
mar um último no botequim da esquina.
Na manhã seguinte, vítima da maior ressaca dêste mundo, êle acordou sem saber onde estava.
Aquêle quarto não lhe era estranho, mas… De súbito uma voz de mulher, voz que em outro tempo
já lhe dissera alguma coisa, sussurrando lá fora, na sala:
– Não faz barulho não, filhinho, que seu pai voltou, está dormindo aí no quarto.
A CULPA DA SOCIEDADE
Ajuntamento na Praça 15. Um rapaz de côr preta, rodeado de caras e dedos acusadores,
olhava envergonhado para o chão.
– No ônibus. Quando a mulher olhou… Ladrão!
– Ladrão não senhor – ousou protestar o prêto: – Não cheguei a roubar.
– Não chegou porque não deu tempo. Ora essa é muito boa: não chegou a roubar!
E o senhor gordo e meio calvo que o acusava segurou-o pelo pulso:
– Desta você não escapa, ladrão. E o guarda? Já chamaram o guarda?
Ninguém se movia para chamar o guarda. Todos queriam saber o que havia acontecido.
– Imagine o senhor – e o gordo acusador voltou-se para mim – que êste porcaria estava num
ônibus ao lado de uma senhora, e mete a mão na bolsa dela para furtar dinheiro. Se não fôsse eu es-
tar olhando… Foi apanhado com a bôca… com a mão… com a bôlsa…
Vim em sua ajuda:
– Com a bôca na botija.
– Isso – confirmou êle: – Na botija. Agora está dizendo que não chegou a roubar. Ah! Não
chegou porque não deixei, essa é muito boa. E o guarda? Onde está êsse guarda?
– Não houve flagrante – resmungou o prêto.
– Já viu só? Ainda por cima vem dizer que não houve flagrante. Ladrão!
– A culpa não foi minha.
– Não foi sua? – e o gordo lhe deu um safanão: – Mete a mão na bôlsa da mulher e depois diz
que a culpa não é dêle. De quem é a culpa, então? Minha?
– Da sociedade.
Todos os olhares se voltaram para o prêto, respeitosamente estupefatos. Por essa ninguém
contava: a culpa da sociedade. Um carro buzinou pedindo passagem. O passageiro do carro in-
clinou-se para fora:
– Psiu! Ô Souto! Que diabo você está fazendo aí?
O acusador do prêto voltou-se vivamente ao chamado:
– Ah, Dr. Faria! Quanto prazer… Imagine o senhor… Eu… Êste homem aqui…
Acabou largando o braço do prêto e se aproximou do carro.
– Vamos para Copacabana – ordenou o outro: – Entre aí.
Enquanto isso, alguém sussurrava aos ouvidos do prêto:
– Aproveita agora, foge.
Êsse alguém era eu. O rapaz voltou-se para mim, impassível:
– Fugir por quê? Não fiz nada. Não houve flagrante.
O Dr. Faria abria naquele instante a porta de seu carro e o Souto entrava lampeiro, esquecido
de sua vítima. O prêto pôs as mãos nos bolsos e afastou-se em passos lentos, sem ser molestado.
NONE, BUT A LONELY HEART
O elevador da frente não estava funcionando. Entrei pela porta dos fundos:
– Queria ver o apartamento.
O homem que me introduziu à cozinha, mecânico ou garagista – pelo menos vestia um maca-
cão da Shell – comia uma banana de sobremesa: via-se pelo prato com resto de comida, sôbre o
mármore da pia, que acabava de almoçar.
– É muito grande, muito espaçoso. Por aqui.
Eu ainda não havia entendido bem o que diabo fazia ali aquêle vendedor de gasolina, quando
dei com o dono da casa, ao entrar no “living”.
– Não adianta falar com êle – foi me avisando logo o empregado, vendo-me avançar para
cumprimentar o homem. E bateu com a mão na testa: – É biruta.
Olhei a figura que tinha à minha frente, sentada numa “bergère”. O homem também me
olhava, com docilidade, murmurando qualquer coisa ininteligível. Magro, de cabelos brancos e
olhos azuis, estava vestido com extrema correção: terno prêto, colête, gravata de laço bem dado. Ti-
nha as pernas cruzadas, deixando entrever as meias de sêda preta e os sapatos finos. Suas mãos, lon-
gas e brancas, repousavam sôbre os joelhos.
– O que é que êle tem?
– Sei lá. Fica assim o dia todo.
– E vai se mudar para onde?
– Não sei. Tem um doutor aí cuidando disso.
O homem continuava a murmurar sua ladainha sem me dar a mínima atenção. Disfarcei a cu-
riosidade, observando os livros que enchiam as estantes – excelente biblioteca, tôda em inglês. Ha-
via de tudo: de Marlowe a Eliot, de Scott a Joyce, de Bacon a Bowra. Admirado, tornei a olhar o
homem.
– New-cow-dim-rim-now-them-low-down… – balbuciava êle, para si mesmo, completamente
alheio à minha presença.
– Êle só fala inglês? – perguntei.
– Não fala coisa nenhuma. É inglês. Escreveu uma porção de livros. Pensava muito, sabia
uma porção de coisas. Acabou gastando a cabeça, sabe como é? Agora eu tomo conta dêle.
– Não faz mais nada?
– Nada – respondeu o mecânico, a olhar o doente como se fôsse um automóvel. – Esqueceu
tudo. Ouve música o dia todo.
Em verdade o rádio estava ligado, ou a vitrola – tocavam Bach.
– Dim-cow-rye-them-down-rim-so-why – continuava o homem, a olhar-me.
– Do you like music? – tentei, tìmidamente. O empregado fêz um gesto a dizer que era inútil,
mas de súbito o homem se calou, voltou-se para mim com interêsse.
– Oh, yes… – respondeu, numa voz delicada, quase um sussurro, vindo de outro tempo. Por
um instante tive a impressão de que ia dizer mais alguma coisa – mas logo retomava seu cantochão
monótono:
– So-why-ring-how-so-green-in-them-down…
Sôbre a estante havia retratos seus, quando ainda vivia no nosso mundo: na Inglaterra, no
tombadilho de um navio, na África… Num, aparecia cercado de amigos; noutro, ao lado de uma
bela mulher; noutro, com uma espingarda de caça na mão. Dando-lhe um último olhar, resolvi sair.
– Low-dim-them-low-there-so… – despediu-se êle.
FUGA
Mal colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fa-
zendo um barulho infernal.
– Pára com êsse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.
Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não
estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira.
– Pois então pára de empurrar a cadeira.
– Eu vou embora – foi a resposta.
Distraído, o pai não reparou que êle juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas
coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com
apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa? – a
mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande
aventura, um botão amarrado num barbante.
A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor
e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
– Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário que descansava diante da obra
do outro lado da rua, sentado no meio-fio.
– Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou êle.
Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do
muro. A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o
pedaço de biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Chamou-o, mas êle aper-
tou o passinho, abriu a correr em direção à avenida, como disposto a atirar-se diante do ônibus que
surgia à distância.
– Meu filho, cuidado!
O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto.
O menino, assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como a um
animalzinho:
– Que susto você me passou, meu filho – e apertava-o contra o peito, comovido.
– Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.
Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:
– Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.
– Me larga. Eu quero ir embora.
Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala tendo antes o cuidado de fechar a porta da
rua e retirar a chave, como êle fizera com a da despensa.
– Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.
– Fico, mas vou empurrar esta cadeira.
E o barulho recomeçou.
PATÉTICA
Tocava violão num bar elegante de Copacabana. Era um gênio. Incompreendido, mas gênio.
Quando os fregueses já não podiam mais com o borbulhar do seu gênio e esperavam uma pausa
bendita, entre tangos e boleros, para afinal poder conversar um pouco, êle anunciava com ímpeto:
– Agora eu vou interpretar para vocês uma composição de minha autoria, intitulada: “Sinfonia
Patética”.
Começava com o rufar dos dedos na caixa do violão, como num tambor, anunciando o princí-
pio da guerra. E terminava com a música dos jornais da “Paramount”. De permeio era ruído de me-
tralha, silvo de granadas, explosões, entre alguns trechos de música que significavam, certamente, a
vida pregressa do soldado, em seus momentos mais felizes. A bem dizer, ninguém sabia o que
aquilo significava, nem mesmo o gerente, que um dia se encheu e o despediu.
Então é que a coisa ficou mesmo patética. Na noite seguinte, êle entrou inesperadamente no
bar.
– Não sei se você entendeu – o gerente veio explicar, meio constrangido (já havia contratado
outro violonista): – Não vamos precisar mais de seus serviços.
– Eu sei – êle meneou a cabeça gravemente.
– E então?
– Vim aqui tomar um drinque.
E acrescentou, cheio de brios:
– Posso? Eu tenho dinheiro, olha aí.
Aboletou-se junto ao balcão, pediu um uísque. E ficou a ouvir, com olhos críticos, o nôvo vio-
lonista, que tocava baixinho, para que se pudesse conversar.
Então, tôdas as noites era assim: chegava, pedia um uísque, e ficava ouvindo. De vez em
quando soltava um risinho, sacudia a cabeça: tocar violão não era para qualquer um. Quando êle to-
cava, todo mundo ficava calado, ouvindo. Às vêzes se arriscava a comentar para o freguês do lado:
– Não desfazendo ali o meu colega, mas essa música está fora do tom.
Não raro um velho freqüentador, já meio alto, o reconhecia, cochichava para os outros, fazia-
se sério, vinha insistir com êle:
– Toca ali para nós a “Sinfonia Patética”.
– Não posso – se escusava êle, feliz, com um sorriso de modéstia: – Não fica bem. Aqui eu
sou apenas um freguês.
Uma noite, tendo gasto ali todo o dinheirinho que recebera, não voltou mais. E todo mundo o
esqueceu.
Todo mundo, menos eu – pois, ao entrar num bar em São Paulo, dou com êle, sorridente,
anunciando:
– Agora, eu vou interpretar para vocês uma composição de minha autoria, intitulada “Sinfonia
Patética”.
LUGAR RESERVADO
Cheguei ao aeroporto, em São Paulo, a uma da tarde. O próximo avião para o Rio seria o de
uma e meia.
– O de uma e meia está lotado. Só no das duas e meia.
Marquei a passagem para o das duas e meia, e fiquei banzando por ali, fazendo hora. Às duas
e vinte me encaminhei para o embarque.
Encontrei o Sampaio aguardando alguma desistência. Sempre encontro o Sampaio nessas oca-
siões:
– Está lotado – me disse a funcionária da companhia: – Não tem mais lugar.
– Não tem para êle, evidentemente – concordei, apontando o Sampaio: – Estou com a passa-
gem marcada, olha aqui a minha ficha.
Outro funcionário se aproximou, tomando-me pelo braço com delicadeza, como se enquanto
falava pretendesse afastar-me do portão de embarque:
– Alguma confusão, com certeza, cavalheiro. O senhor vai no próximo. Arranjamos uma cor-
tesia.
– Cortesia é me deixar embarcar. Estou aqui desde uma hora! Com licença.
Eu tinha mesmo de estar no Rio até quatro da tarde. Havendo já desistido, o Sampaio ria-se à
minha custa:
– Olha lá a cortesia: estão tirando a escada.
– Minha mala já está lá dentro.
– A mala vai na frente – sugeriu o funcionário, e ousou sorrir: – O senhor vai no próximo.
– Alguém embarcou no meu lugar. Êle que vá no próximo, esta é boa! Eu tenho lugar reser-
vado.
O funcionário, intimidado, acabou indo lá dentro do avião, para buscar o passageiro.
– Quero só ver a cara dêle ao descer – disse o Sampaio, às gargalhadas, colocando-se em posi-
ção estratégica. Eu não via motivo para graça. Já arrependido, fiquei de costas para o avião: minha
esperança era de que pensassem ser o Sampaio o importuno.
Olhei com o rabo do ôlho e vi surgir no alto da escada a aeromoça, segurando uma gaiola. De-
pois o funcionário, segurando um jacá. Atrás dêle o passageiro.
– Olha só! – exclamou o Sampaio, estourando de rir. – Não sei como você tem coragem.
Era uma velhinha! Ela parou no alto da escada, meio desorientada, sem saber direito o que es-
tava acontecendo. Desceu, e o próprio Sampaio, para acabar de liquidar-me, deu-lhe o braço, como
se fôsse a sua vovòzinha. Recuar, agora, não era mais possível. Impaciente, o pilôto aguardava que
eu embarcasse para dar partida. Subi a escada e entrei, com ar de cachorro que quebrou a panela. Os
demais passageiros me olharam com indiferença, mas julguei ver nêles uma indisfarçável indigna-
ção. Êste avião vai cair – concluí, já sentado, colocando o cinto de segurança com mãos nervosas:
eu tenho lugar reservado é no inferno! Devia ter desistido: além do mais, pensando bem, não tinha
nada de realmente importante a fazer no Rio naquele dia.
Nem nos dias seguintes – senão pensar com remorso na velhinha que ficara em São Paulo.
MÔÇA NA REPARTIÇÃO
É funcionária de uma autarquia e trabalha numa grande sala em meio a outras môças. Ao en-
trar, antes de dirigir-se à sua mesa, detém-se e grita para as colegas:
– Nesta sala tôdas hão de morrer solteiras, menos eu!
E vai sentar-se, sem se importar com o protesto das outras. Folheia um processo, distraìda-
mente, atira-o sôbre a mesa:
– Não trabalho mais! Eu quero casar!
Ergue-se e vai em direção de outra môça, que está contando a uma terceira como será sua
próxima viagem a Buenos Aires, em lua-de-mel: está noiva, vai casar-se dentro de dois meses.
Ouve em silêncio a conversa da outra durante um momento, depois ergue os braços, em protesto:
– Todo mundo casa! Todo mundo viaja! Todo mundo descansa! Menos eu! Não trabalho
mais.
Volta para a sua mesa, tira da gaveta uma caixa de bombons:
– Não faço mais regime. Já que não caso mesmo, deixa eu comer.
Enquanto mastiga um bombom, fica a contemplar, embevecida, uma fotografia que retirou da
bôlsa. De repente, nôvo grito:
– Êle é lindo, lindo, lindo! Ai, que saudade, minha Nossa Senhora!
Todos se voltam para olhá-la. O chefe, já habituado, ergue-se lá de sua mesa, vem cami-
nhando lentamente até ela:
– Minha filha, toma juízo. Trabalha primeiro, depois casa. Com todo mundo é assim.
– Comigo não é.
– Mas por quê? Por que você há de ser diferente das outras?
– Eu sou diferente mesmo, pronto. Ah, se até os trinta anos eu não estiver casada, eu faço uma
bobagem.
– Você está é com idéia fixa. Casamento acontece quando menos se espera.
– Eu é que sei o que acontece quando menos se espera.
– Pois então? E o lindo? Casa com êle.
– Quisera eu. Fala em tudo, menos casamento.
O chefe sorri:
– Então casa comigo, está resolvido.
– O senhor é casado, seu velho saliente.
Êle volta para a sua mesa, a rir, sem se importar mais com ela. Sabe que na hora devida ela es-
tará com o expediente pronto: trabalha mais que tôdas as outras juntas.
– Ah, é? Pois não trabalho mais.
E ela senta-se no chão, debaixo da mesa, mão no queixo, emburrada. Se por acaso alguém
vem procurá-la para assunto de serviço e se surpreende ao dar com ela assim escondida, as outras
explicam:
– Não se incomode, ela é assim mesmo. O senhor é casado?
A INEXISTÊNCIA DO CONVIDADO
Estávamos em São Paulo. Depois de jantarmos num restaurante, propus-lhe que déssemos
uma volta pela Cidade. Inesperadamente êle se recusou:
– Não posso. Vou para o hotel.
– Por quê? Está se sentindo mal?
– Preciso voltar para o hotel – insistiu êle, irredutível.
Como eu levantasse maliciosas suposições sôbre sua atitude naquela noite – algum encontro
secreto? – acabou confessando:
– Vou para o hotel escrever um conto. Estou com essa história na cabeça há mais de cinco
anos. Hoje tenho a impressão de que ela sai. Chegou a hora.
Sendo êle um escritor, não era de estranhar que de súbito se sentisse inspirado. Mas logo
agora, me deixar assim sòzinho no meio da rua! Em vão lhe acenei com promessas de voltar mais
cedo, naquela noite não iríamos a nenhum bar, como era de nosso feitio. Daria tempo de escrever
mais tarde: afinal, já esperara cinco anos!
Êle disse que não – a inspiração irresistível como uma cólica. E me deixou, saiu correndo pela
rua antes que eu o retivesse à fôrça.
Quando cheguei ao hotel, tarde da noite, dei com êle ainda acordado, caneta em riste, debru-
çado febrilmente sôbre um bloco de papel. Havia fôlhas amassadas para todo lado. Mal tirara o pa-
letó e afrouxara a gravata.
– Como é: escreveu?
Voltou para mim uns olhos vidrados, sem nem chegar a me ver. Estava atuado; limitou-se a
sacudir a cabeça como um boi de presépio e voltou-se furiosamente para o bloco de papel.
Para não perturbá-lo – nestes instantes, sei de experiência própria, seria capaz de ímpetos ho-
micidas – recolhi-me então, em silêncio, afastando de minha cama, com delicadeza, o pé ainda cal-
çado que êle, perna esticada, apoiava sôbre a colcha. Pedi-lhe que tivesse a gentileza de virar um
pouco a lâmpada da mesa, para que eu pudesse dormir. Não creio que tivesse sequer me ouvido: na-
quele instante punha-se a escrever como um desatinado, soltando pequenos grunhidos de satisfação.
Um minuto depois amassava no ar a fôlha de papel como se esganasse um frango, para atirá-la por
cima do ombro e recomeçar outra.
Pela manhã, ao acordar, vi que êle ressonava na cama ao lado: dormira vestido, vencido pelo
cansaço, depois de passar a noite inteira em claro, a mercê da inspiração.
Quando me dirigia ao banheiro, olhei casualmente para a mesa: a lâmpada fôra esquecida
acesa e o número de fôlhas amassadas redobrara, o cinzeiro se enchera de restos de cigarro.
Debrucei-me sôbre o bloco de papel, para ver o resultado de seu trabalho. Havia uma fôlha
onde estava escrito, em letras desenhadas, cheias de bordados caprichosos, apenas isto:

“O CONVIDADO – Conto”

E logo abaixo, esta única frase – categórica, definitiva:

“O convidado não existe”.


COMUNICAÇÃO
Ao chegar em casa, recebo o recado: chamar a telefonista internacional. Assumo um ar displi-
cente de quem recebe telefonema internacional todos os dias, mas corro ao telefone: por favor, tele-
fonista internacional!
Enquanto aguardo, percorro mentalmente a lista de amigos no exterior: alguma notícia grave?
A telefonista internacional me atende, informando que realmente há uma chamada para mim. De
onde? De Boston? Sim, faço o favor de aguardar.
Fico aguardando. Vozes e ruídos estranhos se cruzam, ouço pedaços de diálogos em inglês.
Queira desculpar, diz ela afinal, mas a pessoa que chamou desistiu da ligação.
– Posso saber quem foi?
As duas telefonistas voltam a se entender em inglês. Meu nome e o número de meu telefone
são repetidos de cá para lá e de lá para cá. E o nome de certo comandante.
– Comandante o quê?
– Comandante Herman: foi quem chamou.
– Mas eu não conheço nenhum Comandante Herman.
A telefonista volta a afirmar que a ligação era para mim mesmo, quanto a isso não havia a me-
nor dúvida. Só que o Comandante pediu que cancelassem a ligação. E a ligação foi cancelada.
– Pois então pede à telefonista de Boston que me ligue com o Comandante – ordeno, deci-
dido. – Agora quem quer falar com êle sou eu.
Penso ainda que o Comandante vai me sair caro, mas não volto atrás. A telefonista obedece:
chamará depois.
Volta a chamar às dez horas da noite, informando que o Comandante não atende.
Mais duas horas, outra informação: êle agora vai atender.
A ligação será completada a uma da manhã.
Às duas a telefonista pede que eu aguarde – está tentando localizar o Comandante Herman.
Ficamos nisso a noite tôda. Acabo indo dormir e mandando às favas o Comandante Herman,
quem quer que êle seja. Passo o mistério para a frente. É desconfortável saber que neste instante al-
guém, e ainda mais um Comandante, deseja falar comigo de uma casa, um clube ou um bar em Bos-
ton, Massachussets. Mas de minha parte fiz o que pude e o que quer que seja – equívoco, brinca-
deira, distração – continua sendo para mim apenas êste grave acontecimento que vem a ser um ho-
mem buscando comunicação.
MOTORISTAS A POSTOS
– O diretor não tolera um minuto de atraso – o guarda avisou. – Já dirigiu automóvel alguma
vez?
Se dissesse que sim, estava perdido: como, se não tinha habilitação para dirigir? Se dissesse
que não, como queria tirar carteira, se nunca havia dirigido? Oscilou a mão no ar:
– Mais ou menos.
– Quais são as ruas que saem da Praça da República?
– Os inválidos, pela constituição de Buenos Aires, são senhores de seus passos, mas Azeredo
Coutinho e Moncorvo Filho pediram a Frei Caneca que os levasse ao Presidente Vargas.
– Como?! – saltou o guarda.
– Rua dos Inválidos, Constituição, Buenos Aires, Senhor dos Passos, Azeredo Coutinho,
Moncorvo Filho, Frei Caneca e Presidente Vargas – recitou êle.
– Praça da Independência.
– A sete de setembro, no teatro, o Visconde do Rio Branco encontrou a Imperatriz Leopol-
dina. Rua Sete de Setembro…
– Já entendi. Largo de São Francisco.
– No Beco do Rosário, Luís de Camões encontrou Ramalho Ortigão.
Por pouco não põe a Imperatriz Leopoldina entrando no Teatro para ver o Presidente Vargas
recitar Luís de Camões.
– Sabe todos os sinais de apito?
– Sei. Tem um poema do Drummond…
– Um silvo breve e um longo?
– Motoristas a postos.
– Não senhor: trânsito impedido. Um silvo longo?
– Motoristas a postos.
– Não senhor: diminua a marcha. Três silvos longos?
– Acenda o farol.
– Não senhor: motoristas a postos.
E agora, motoristas a postos! Seguir o cortejo. A palavra cortejo sugere a lentidão dos enter-
ros, mas os carros saem em disparada. No canal do Mangue o tráfego está congestionado. Pânico!
Cada um por si e Deus por todos.
– Siga o cortejo!
– Que cortejo? O cortejo sumiu!
Resolve ir para casa, mandar ao diabo o cortejo e o exame de habilitação. Agora, porém, é o
cabeça do cortejo – meia-dúzia de carros o seguirão até o fim do mundo.
– Tenham paciência, parem de me seguir! Vou para casa, perdi o cortejo há muito tempo, o
exame que se dane.
De repente, milagre! o cortejo passa lá na esquina, como num desenho animado. Vamos pegá-
lo! Contramão de direção, sinal avançado, carro sôbre a calçada, excesso de velocidade – em pouco
tempo não resta mais uma só infração a cometer. Um guarda de motocicleta o faz parar.
– O senhor está multado. Sua carteira.
– Estou tirando – explica êle.
E arranca com o carro, aos solavancos.
FESTA DE ANIVERSÁRIO
Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa dêste mundo:
– Engoli uma tampa de coca-cola.
Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário
dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:
– Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a bôca, minha filha.
Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma
tampa de cerveja? De cerveja, não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta – urgia que tomásse-
mos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo: vem cá, minha filhinha,
conta só para mim: você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? – Engoli sim, papai – ela afir-
mava com decisão. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Êle foi buscar uma tampa de
garrafa, separou a cortiça do metal:
– O que é que você engoliu: isto… ou isto?
– Cuidado que ela engole outra – adverti.
– Isto – e ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era me-
lhor que ela fôsse andando: auxiliava a digestão.
No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:
– Dói aqui, minha filha?
Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-
Socorro da cidade.
Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
– Vamos já ver isto.
Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:
– Engoliu foi a garrafa.
– A garrafa? – exclamei. Mas era uma gracinha dêle, cujo espírito passava muito ao largo da
minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar – não
haveria de sair por si mesma.
O médico pôs-se a rir de mim:
– Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.
– Engoli – afirmou a menininha.
Voltei-me para ela:
– Como é que você ainda insiste, minha filha?
– Que eu engoli, engoli.
– Pensa que engoliu – emendei.
– Isso acontece – sorriu o médico: – Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pen-
sou ter engolido o apito.
– Pois eu engoli mesmo – comentou ela, intransigente.
– Você não pode ter engolido – arrematei, já impaciente: – Quer saber mais do que o médico?
– Quero. Eu engoli, e depois desengoli – esclareceu ela.
Nada mais havendo a fazer, engoli em sêco, despedi-me do médico e bati em retirada com
tôda a comitiva.
BARBAS DE MOLHO
Passei alguns dias sem precisar sair de casa e, por conseguinte, de barbear-me. Descubro, al-
voroçado, alguns tufos brancos a repontar no queixo. Rejubilo-me: eis que chegará um dia o tempo
da velhice. Está decidido: deixo crescer.
Saio à rua e recebo olhares de desconfiança. Nunca me fôra dado sentir a procedência daquele
anúncio, no qual um senhor Barbelino afirma que o homem barbado é mal encarado, para acrescen-
tar, todo risonho: barba bem feita, cara satisfeita. Assumo um ar sombrio e preocupado, como se a
barba por fazer correspondesse a graves problemas na minha vida. Só assim não me julgarão
egresso de alguma penitenciária ou colônia de alienados.
E vou provocando inquietação por onde passo. Alguns arregalam os olhos. Outros lançam-me
apenas um olhar maroto: quem deixa crescer a barba é porque está apaixonado sem ser correspon-
dido.
Descubro, aliás, que às mulheres uma barba, pelo menos de poucos dias como é a minha, não
desperta nem curiosidade nem atenção, senão esquivança e indiferença de olhares. Estou a meio ca-
minho do mendigo e, mesmo sem vestir andrajos, sinto que, se estender a mão, os mais distraídos
deixarão cair uma esmola. Na rua, principalmente à noite, positivamente constituo o que se conven-
cionou chamar de um indivíduo suspeito: as pessoas, ao passar por mim, apressam o passo; as mães
recolhem as filhas para junto de si; os homens de cara satisfeita olham através de mim como se eu
fôsse invisível. Até um táxi que chega a diminuir a marcha a um sinal meu, se recusa a deter-se, ba-
seado talvez no tal anúncio, Barbelino afirma! No café-em-pé sou servido com maus modos pelo ra-
pazinho imberbe, enquanto um guarda municipal me olha à sorrelfa.
Reconheço que além da barba, pròpriamente, é preciso ter peito. Os conhecidos são justa-
mente os que mais se inquietam:
– Cinema nacional?
– Fêz promessa?
– Alguma aposta?
É um elemento de perturbação. Ameaça violentar a ordem constituída, transgredir o habitual,
o já aceito, o estabelecido como èticamente normal. Sou levado a lançar mão da aposta, para que me
deixem em paz.
– Mas apostou o quê?
– Apostei apenas que seria capaz de deixar crescer a barba.
– Com quem?
– Comigo mesmo.
Não tenho dúvida: vou perder.
SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA
Memória boa tinha aquêle velho. Correu os olhos pelo cartório onde eu era escrivão e veio di-
reto à minha mesa:
– Sr. Escrivão, meus respeitos – fêz um salamaleque: – Queria que o senhor me desse infor-
mações sôbre um inventário.
– Às suas ordens – e retribuí o cumprimento: – Inventário de quem?
– Já lhe digo o nome do falecido. Minha memória ainda é das melhores – apesar de ter sofrido
uma comoção cerebral há poucos dias, ainda não estou inteiramente bom. Espera aí, deixa eu ver…
Sou advogado há mais de quarenta anos, não esqueço o nome de um constituinte, vivo ou morto.
Hoje em dia… Benvindo!
– Como?
– O nome do falecido era Benvindo. Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha cozinheira. Fale-
ceu há pouco tempo. Ela já não está boa da cabeça e se eu não me lembrasse o nome do marido
dela, quem é que haveria de lembrar? Levindo Lopes.
– O senhor disse Benvindo.
– Eu disse Benvindo? Veja o senhor!
– É Levindo ou Benvindo?
Êle ficou pensativo um instante:
– Benvindo seja – respondeu afinal, muito sério.
Depois de verificar no fichário, expliquei-lhe que deveria trazer uma petição. O velho agrade-
ceu e saiu, assegurando-me que sim, não esqueceria. Nem dez minutos haviam decorrido e tornou a
surgir na porta:
– Sr. Escrivão, já que o senhor ainda há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe
pedir uma informação? É sôbre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa,
mas sofri há dias uma comoção cerebral…
– O senhor me disse – sorri-lhe, solícito: – Qual é o inventário, desta vez?
– Inventário de… de… Não vê o senhor? A minha cozinheira… O marido dela…
– Benvindo Lopes?
– Isso! Benvindo Lopes. Como é que o senhor sabe?
– O senhor já me tinha dito.
– Mas sim senhor! Vejo que também tem boa memória.
Tornei a explicar-lhe a mesma coisa, isto é, que deveria trazer uma petição. Não esquecesse.
– Não, não me esqueço.
Agradeceu e se afastou. Deteve-se a meio caminho da porta:
– Veja o senhor! Já ia me esquecendo é do motivo principal que me trouxe aqui: a minha co-
zinheira, que está mais velha do que eu, perdeu o marido há pouco tempo e estou cuidando do in-
ventário dêle…
– Sabe o nome do falecido? – perguntei, sem me alterar.
– Como não? Minha memória ainda funciona, para nomes então, principalmente. Ora, pois. É
Levindo não sei o quê…
– Não será Benvindo?
– Isso! Benvindo… Benvindo Lopes, se não me engano.
– Êste nome não me é estranho – limitei-me a murmurar.
TURCO
Assim que chegou a Paris, foi cortar o cabelo – coisa que não tivera tempo de fazer ao sair do
Rio. O barbeiro, como os de tôda parte, procurou logo puxar conversa:
– Eu tenho aqui uma dúvida, que o senhor podia me esclarecer.
– Pois não.
– Eu estava pensando… A Turquia tomou parte na última guerra?
– Parte ativa, pròpriamente, não. Mas de certa maneira esteve envolvida, como os outros paí-
ses. Por quê?
– Por nada, eu estava pensando… A situação política lá é meio complicada, não?
Seu forte não era a Turquia. Em todo caso respondeu:
– Bem, a Turquia, devido a sua situação geográfica… Posição estratégica, não é isso mesmo?
O senhor sabe, o Oriente Médio…
O barbeiro pareceu satisfeito e calou-se, ficou pensando.
Alguns dias depois êle voltou para cortar novamente o cabelo. Ainda não se havia instalado
na cadeira, o barbeiro começou:
– Os ingleses devem ter muito interêsse na Turquia, não?
Que diabo, êsse sujeito vive com a Turquia na cabeça – pensou. Mas não custava ser amável –
além do mais, ia praticando o seu francês:
– Devem ter. Mas têm interêsse mesmo é no Egito. O canal de Suez.
– E o clima lá?
– Onde? No Egito?
– Na Turquia.
Antes de voltar pela terceira vez, por via das dúvidas procurou informar-se com um conterrâ-
neo seu, diplomata em Paris e que já servira na Turquia.
– Dessa vez eu entupo o homem com Turquia – decidiu-se.
Não esperou muito para que o barbeiro abordasse seu assunto predileto:
– Diga-me uma coisa, e me perdoe a ignorância: a capital da Turquia é Constantinopla ou Só-
fia?
– Nem Constantinopla nem Sófia: é Âncara.
E despejou no barbeiro tudo que aprendera com seu amigo sôbre a Turquia. Nem assim o ho-
mem se deu por satisfeito, pois na vez seguinte foi começando por perguntar:
– O senhor conhece muitos turcos aqui em Paris?
Era demais:
– Não, não conheço nenhum. Mas agora chegou a minha vez de perguntar: por que diabo o se-
nhor tem tanto interêsse na Turquia?
– Estou apenas sendo amável tornou o barbeiro, melindrado: – Mesmo porque, conheço ou-
tros turcos além do senhor.
– Além de mim? Quem lhe disse que sou turco? Sou brasileiro, essa é boa.
– Brasileiro? – e o barbeiro o olhou, desconsolado: – Quem diria! Eu seria capaz de jurar que
o senhor era turco…
Mas não perdeu tempo:
– O Brasil fica é na América do Sul, não é isso mesmo?
MENINO
Menino, vem pra dentro, olha o sereno! Vai lavar essa mão. Já, escovou os dentes? Toma a
bênção a seu pai. Já pra cama!
Onde é que aprendeu isso, menino? coisa mais feia. Toma modos. Hoje você fica sem sobre-
mesa. Onde é que você estava? Agora chega, menino, tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu gosto: menino educado,
obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desce daí, menino! Me prega cada susto… Pára com
isso! Joga isso fora. Uma boa surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem te en-
sinou êsses modos? Passe pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise seu pai que o jantar está na mesa. Você prometeu, tem de cumprir. Que é você vai ser
quando crescer? Não, chega: você já repetiu duas vêzes. Por que você está quieto aí? Alguma você
está tramando… Não anda descalço, já disse! vai calçar o sapato. Já tomou o remédio? Tem de co-
mer tudo: você acaba virando um palito. Quantas vêzes já te disse para não mexer aqui? Êsse baru-
lho, menino! seu pai está dormindo. Pára com essa correria dentro de casa, vai brincar lá fora. Você
vai acabar caindo daí. Pede licença a seu pai primeiro. Isso é maneira de responder a sua irmã? Se
não fizer, fica de castigo. Segura o garfo direito. Põe a camisa pra dentro da calça. Fica pergun-
tando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente grande. Depois eu te dou. Depois eu deixo.
Depois eu te levo. Depois eu conto. Depois.
Agora deixa seu pai descansar – êle está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito
bonzinho com êle, meu filho. Êle gosta tanto de você. Tudo que êle faz é para o seu bem. Olha aí,
vestiu essa roupa agorinha mesmo, já está tôda suja. Fêz seus deveres? Você vai chegar atrasado.
Chora não, filhinho, mamãe está aqui com você. Nosso Senhor não vai deixar doer mais.
Quando você fôr grande você também vai poder. Já disse que não, e não, e não! Ah, é assim?
pois você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale de bôca cheia. Junta a comida no meio do
prato. Por causa disso é preciso gritar? Seja homem. Você ainda muito pequeno para saber essas
coisas. Mamãe tem muito orgulho de você. Cale essa bôca! Você precisa cortar êsse cabelo.
Sorvete não pode, você está resfriado. Não sei como você tem coragem de fazer assim com
sua mãe. Se você comer agora, depois não janta. Assim você se machuca. Deixa de fita. Um menino
dêsse tamanho, que é que os outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você?
Continua assim que eu te dou umas palmadas. Pensa que a gente tem dinheiro para jogar fora?
Toma juízo, menino.
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer no dia de seus anos?
Agora não, que eu tenho o que fazer. Não fica triste não, depois mamãe te dá outro. Você teve sau-
dades de mim? Vou contar só mais uma, que está na hora de dormir. Agora dorme, filhinho. Dá um
beijo aqui – Papai do Céu te abençoe. Êste menino, meu Deus.
O BARBEIRO DO MARECHAL
Contou-me que depois de alguns uísques, na espera de um amigo que afinal não apareceu, de-
cidiu aproveitar o tempo e cortar o cabelo. Desceu do bar para a barbearia do próprio hotel. O bar-
beiro lhe pareceu lento e cansado, depois de um longo dia de trabalho:
– Aqui onde o senhor me vê, estou de pé desde cinco horas da manhã – explicou êle.
Espantou-se:
– Cinco horas? A que horas abre esta barbearia?
– Às nove. Mas me levanto todo dia às cinco para pegar um serviço às seis.
E o barbeiro aprumou-se:
– Sou barbeiro do Marechal. Há dezesseis anos.
– Dezesseis anos? Mas então você já devia estar bem de vida.
– Eu estou bem de vida – suspirou o barbeiro, batendo automàticamente a tesoura em tôrno de
sua cabeça: – Não tenho de que me queixar.
– Continua barbeiro.
– Como?
– Continua barbeiro: já devia ter-se arranjado.
O barbeiro ficou a olhá-lo em silêncio. Buscou posição mais cômoda na cadeira:
– Você faz a barba do homem há dezesseis anos, e até hoje não se arranjou?
– Que é que o senhor quer? É um bom freguês.
– Quanto é que êle paga?
– O que todos me pagam. Barba fácil, não exige nada de especial…
– Só exige acordar todo dia às cinco horas.
O barbeiro continuou a reger o seu trabalho com o pente e a tesoura:
– É um bom homem – insistiu: – Me trata com tôda consideração.
– Pois olha, vou lhe contar: conheci o barbeiro de um Presidente que pegou uma boa nomea-
ção e hoje tem o seu apartamentinho, as filhas nos melhores colégios… É o que todos fazem. Isso é
que eu chamo de consideração.
O barbeiro deteve a tesoura no ar, ficou pensando:
– Qual… Quem nasceu para barbeiro… Conto com êle e êle conta comigo: nunca falhei um
só dia e êle nunca me falhou.
– Mas nunca lhe arranjou nada?
– Uma ocasião me deu uma carta de recomendação. Com tôda boa vontade, bastou que eu pe-
disse. Negócio aí de um empréstimo no Instituto… Ficou por isso mesmo, mas não foi culpa dêle.
– Isso até eu arranjava. Vou lhe dar meu telefone, caso ainda venha a precisar.
Findo o serviço, ergueu-se da cadeira, vestiu o paletó, pagou, deu uma boa gorjeta:
– E lhe digo mais: o que você merecia era uma condecoração.
Foi-se embora, depois de dar-lhe o seu cartão. Na manhã seguinte a mulher veio acordá-lo:
– Tem um recado esquisito para você.
A partir do qual, não se espantem os vizinhos do Marechal, se derem por aí com a sua figura
familiar pela primeira vez de barba por fazer. Êste era o recado:
– O barbeiro mandou avisar que não foi fazer a barba do Marechal.
APÊLO À AUSENTE
No princípio achei até bom que a empregada tivesse tomado férias. Gostei de poder andar
para lá e para cá sem encontrar ninguém varrendo o chão ou espanando os móveis, sair do banheiro
só de chinelos, trocar de roupa com a porta aberta. Na cozinha, enquanto houver xícara limpa e não
faltarem os ingredientes necessários, vou fazendo pachorrentamente o meu café, depois de apanhar
o pão que o padeiro deixa aí fora (tendo antes o cuidado de me vestir, para que a porta não se feche,
impulsionada pelo vento, e me deixe do lado de fora como na história do homem nu).
Esticar a roupa de cama não é tarefa assim tão complicada, o escoteiro é alegre e sorri nas di-
ficuldades. Além do mais, também não precisa ficar tão esticadinha, se à noite vou desarrumá-la de
nôvo. Faço refeições na rua, às vêzes filo o jantar de algum amigo incauto, e vou, pois, me agüen-
tando, enquanto a empregada não voltar.
Espero, porém, que volte logo. Aos poucos a casa vai tomando um ligeiro ar de navio abando-
nado. A geladeira começou a fazer gêlo por todos os lados – só não há água gelada, pois não pude
encher as garrafas: a água da talha se acabou e se eu abrir a torneira do filtro, depois não estarei
aqui para fechá-la. A um canto o monte de roupa cresce assustadoramente. A roupa suja lava-se em
casa? Não sei o nome da tinturaria que levou meu terno, é possível que o tenha levado para sempre.
E como batem na porta! O movimento dela lá nos fundos, descubro abismado, é muito maior do que
o meu cá na frente. É gente de tôda espécie – vendedores, rifas, contrabando, cobradores de presta-
ção, outras empregadas perguntando por ela.
– Está de férias – informo, truculento.
Aos poucos uma fina camada de poeira foi cobrindo tudo e não posso nem mais retirar um li-
vro da estante sem dar dois espirros. Os jornais continuam chegando e já há jornal velho para todo
lado, sem que eu saiba como pôr a funcionar o mecanismo que os faz desaparecer. Descubro tam-
bém, para meu espanto, que no apartamento simplesmente não tem lata de lixo, e tôda hora tenho de
ir ali fora na área para jogar na caixa coletora um pedacinho de papel ou esvaziar um cinzeiro.
Há outros problemas difíceis de enfrentar. O mais angustiante, porém, é o do pão: tôdas as
manhãs o padeiro deixa lá fora um pão quilométrico, do qual como apenas uma pontinha – e aqui já
está juntando pão que daria para alimentar um batalhão, não sei como fazer parar. Nem só de pão
vive o homem.
Enfrento tôdas as vicissitudes, mas estar ensaboado debaixo do chuveiro e ouvir lá na sala o
telefonema esperado sem que eu possa sair correndo para atender é demais para a minha aflição de
espírito.
Tudo considerado, resolvo fazer daqui um dramático apelo à ausente, para que me salve das
conseqüências de minha insensatez, por lhe ter dado férias. Onde quer que esteja, tenha paciência,
volte! sob solene promessa de um imediato aumento de ordenado.
PISCINA
Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e tendo ao
lado uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do
morro, comprometesse tanto a paisagem.
Diàriamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’água
na cabeça. De vez em quando surgia sôbre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes e aten-
tos, espiando o jardim.
Outras vêzes eram as próprias mulheres que se detinham e ficavam olhando. Naquela manhã
de sábado êle tomava seu gim-tônico no terraço, e a mulher um banho de sol, estirada de maiô à
beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo portão entreaberto.
Era um ser encardido, cujos mulambos em forma de saia não bastavam para defini-la como
mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho. Por um
instante as duas mulheres se olharam, separadas pela piscina.
De súbito pareceu à dona da casa que a estranha criatura se esgueirava, portão a dentro, sem
tirar dela os olhos. Ergueu-se um pouco, apoiando-se no cotovêlo, e viu com terror que ela se apro-
ximava lentamente: já transpusera o gramado, atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azule-
jos, sempre a olhá-la, em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou
uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco sumia-se pelo por-
tão.
Lá no terraço o marido, fascinado, assistiu a tôda a cena. Não durou mais de um ou dois minu-
tos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que antecedem um com-
bate.
Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa.
REFLEXÕES DE BANHEIRO
Tento desajeitadamente escrever uma peça de teatro, fico encravado no diálogo. “Êle vai te
matar!”, exclama um personagem. “Por quê?”, pergunta outro. “Me disse ontem”, torna o primeiro.
Qualquer coisa nessa maneira de dizer me parece muito sucinta, muito direta demais, muito pouco
teatral. Continuando assim, êle acaba mesmo matando o outro, mal se iniciou o primeiro ato, e lá se
foi o meu personagem.
Aqui não é o personagem apenas que fala, como num romance, quem quiser que acredite que
êle tenha falado: é também um ator que vai repetir, vai falar mesmo, alto e bom som: se não falar
direito ninguém o leva a sério.
Como será, afinal, o diálogo para o teatro? – me pergunto, perdido já nessa seara alheia onde
não me devia ter metido. “Êle vai te matar!” “Por quê?” Talvez o outro devesse responder: “Posso
saber que motivo tens para fazer tão leviana afirmação?” De outra maneira o ator quase nada terá
para dizer. Que gente mais lacônica, êstes meus personagens!
Desanimado, resolvo desistir e tomar o meu banho. A empregada há pouco veio avisar que
hoje temos água. Estou sem água há alguns dias – depois de ter acreditado que essa agonia se aca-
bara para sempre. A banheira cheia e a cuia voltaram a se tornar nesta casa uma instituição, que eu
aceito humildemente, embora às vêzes me dê ímpetos de banhar-me no sangue das autoridades pú-
blicas responsáveis.
Mas hoje temos água e tomarei um banho ortodoxo, antes que outros moradores do prédio o
façam e a água se vá. Resolvo levar comigo um tema de meditação ao chuveiro, para tornar mais re-
quintada a sua fruição. Vacilo entre uma idéia e outra, acabo elegendo o teatro. Como será mesmo o
diálogo do teatro? – torno a perguntar-me, como ponto de partida, enquanto o jôrro de água tépida
me amortece o pensamento. Diferente do diálogo do romance, não tem dúvida – e abro a torneira
fria, que assim também está quente demais. O do romance é síntese, não é isso mesmo? Uma sín-
tese. Mas síntese de quê? Do diálogo da vida real? Uma seleção, uma transposição, por assim dizer
– daquilo que os personagens realmente falariam. Muito bem: aqui está o sabão. E o do teatro? O
diálogo do teatro, já que não pode ser análise, é também uma síntese – decido, enquanto me ensa-
bôo. Mas síntese de quê? Ora, de quê! Uma síntese de tôda a situação! – concluo, já meio atrapa-
lhado com o sabão que me entra pelos olhos. Abro a torneira. Um, dois, três, quatro pingos – uma
síntese do banho que eu tomaria, e pronto: a água se acabou. Em resumo: o diálogo do romance
deve ser romanesco e o diálogo do teatro deve ser teatral. Não creio que êsse banho me inspire re-
flexão mais inteligente.
NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO
Foi muito mal recebido pelo delegado da cidadezinha mineira, onde esteve, como advogado,
tratando dos interesses de um cliente. O homenzinho era mesmo de maus bofes:
– O senhor não vê que estou ocupado?
– Queria apenas uma informação.
– Isto aqui não é seção de informações.
– Não seja estúpido! Sou advogado, estou no exercício de meu direito.
– Te ensino já qual é o exercício do seu direito.
Chamou um guarda:
– Prende êsse môço. Desacato. Veio com conversa de doutor para cima de mim.
Por mais que esbravejasse, ameaçasse, esperneasse, o advogado foi literalmente trancafiado
no xadrez, como um criminoso qualquer.
E estava escrito que aquêle dia seria o de encontros singulares. No xadrez encontrou compa-
nhia:
– Chega-te aos bons, menino.
Era um prêto gigantesco, de braços longos como os de um gorila, que se pôs logo a resmun-
gar:
– Você vê, meu filho, o que nos acontece: estou aqui só porque mandei a minha sogra conver-
sar com São Pedro. Ela vivia me enchendo, fui um santo em agüentar tanto tempo. Um dia não pude
mais, esmigalhei o tampo da velha com um tijolo. Por causa disso me prenderam.
E o santo homem voltou para êle os olhos injetados:
– Você, meu branco… Que andou fazendo?
– Eu? Nada…
Antes que pudesse referir-se à arbitrariedade de que fôra vítima, viu-se agarrado ao pescoço
por duas manoplas, erguido no ar como uma pluma e sacudido violentamente em seus alicerces:
– Não manga comigo não, mocinho! Te contei o que fiz com tôda distinção, não vem ban-
cando o bonifrate que eu te dou uma esfrega. Faz o favor de abrir o bico e ir dando o serviço. Al-
guém você despachou, não despachou? Anda, confessa!
– Despachei… – balbuciou êle, aterrorizado, assim que o prêto afrouxou um pouco as tenazes
no seu pescoço.
– Quem? Não vai me dizer que você matou qualquer um aí… Tem ar de almofadinha, dêsses
que fazem serviço caprichado.
– Caprichado – concordou êle com fôrça, sacudindo a cabeça.
– Quem? Conta logo, menino.
– Minha filha – inventou, tomando fôlego.
– Sua filha? – o prêto parecia duvidar: – Quantos anos ela tinha?
– Três.
– Matou como? Conta direitinho isso, filho de Deus.
– Afoguei na banheira.
O prêto o olhava, impressionado:
– Você devia ter alguma razão. Que é que ela fêz?
– Nada não: vivia me enchendo.
Só então o outro passou a olhá-lo com algum respeito.
NÍLSON
Nílson tem onze anos de idade e é guardador de automóveis junto ao cinema. Estuda num co-
légio em Jacarepaguá: toma o ônibus 13 até a Cidade, depois um trem até Madureira, depois um
ônibus até Taquara, depois o pau-dos-pobres até o colégio. Pau-dos-pobres é um caminhão velho
improvisado em ônibus. Ao todo, quatro conduções. Mas gosta do colégio: tem comida e tem fute-
bol. De estudo, gosta mais de Geografia e História.
– Então me diga quem foi que descobriu o Brasil.
– Pedro Álvares Cabral.
– Quem foi Pedro II?
– Foi filho de Pedro I.
Em História êle é bom. Passo à Geografia do Brasil:
– Qual é a capital de Minas Gerais?
– Goiás.
– Não, Goiás é Estado. Qual é a capital de Goiás?
– Brasília.
– João Pessoa é capital de que Estado?
– Estado Nôvo.
– Me diga o nome dos dois maiores rios do Brasil.
– Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.
– Qual o time brasileiro que levantou o Campeonato do Mundo?
– Gilmar, Djalma Santos, Mauro, Zózimo e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá,
Amarildo e Zagalo.
Fica a olhar-me com uma carinha vitoriosa, como a dizer: pergunta mais, que isso eu sei.
Faço-lhe outras perguntas sôbre futebol, que não é o meu forte, acabo aprendendo com êle. Torce
também para o Botafogo. Mora numa casa de cômodos, com a mãe e a irmã. A irmã tem dezesseis
anos, trabalha numa loja. A mãe é enfermeira num hospital. O pai é da polícia e vive por aí, com
outra mulher. De vez em quando êle aparece.
– Gosta de você?
– Não.
– Por quê?
– Vai chegando e dando a bronca comigo.
Olhos tristes e confirmados, de cachorro batido. Quando crescer, não será da Polícia: será me-
cânico. Não quer se casar nunca: vai ficar tomando conta da mamãe. Gosta de cinema, assistiu a
uma fita chamada “Mulher de Prêto”. Fica na rua até uma da manhã, vigiando automóveis, dorme
até as oito, é quem arruma a casa. Já leu um livro chamado “A Rapôsa e o Coelhinho”, gostou
muito. O Presidente da República não é o Jânio mais não, é o Juscelino. Tem saudade do tempo em
que morava na Rua Real Grandeza, junto com o pai. Tem saudade do pai.
– Você ainda gosta dêle, Nílson?
Apertou os lábios, virou a cara para o outro lado:
– Gosto – murmurou, afinal.
A MINHA SALAMANDRA
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei saber se uma salamandra tinha quatro ou seis per-
nas. Já não me lembro em que episódio novelesco pretendia envolver as pernas da minha salaman-
dra, mas a verdade é que precisava saber – e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias pernas? – pensava então, deixando que elas me le-
vassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vêzes precisa saber coisas muito esquisitas. A experiência própria nem sem-
pre ajuda. Passei, por exemplo, a minha infância nos galhos de uma mangueira, chupando manga o
dia todo, e não soube responder a um meu amigo, excelente romancista, quanto tempo levava para
germinar um caroço de manga. Contou-me êle, na época, que andou precisando de saber êste por-
menor, em razão de uma história que estava escrevendo. Depois de perguntar a um e outro, e não
obtendo senão respostas vagas, telefonou para a repartição do Ministério da Agricultura que lhe pa-
receu mais apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário que o atendeu ficou simplesmente per-
plexo:
– Caroço de manga? Que brincadeira é essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente, havia quem talvez soubesse – um especia-
lista no assunto, lotado num departamento ao qual estava afeto o setor de fruticultura. Discou para
lá – mas só conseguiu colhêr vagos palpites:
– Um caroço de manga? Bem, deve levar um ou dois meses, o senhor não acha?
– Não acho nada: preciso saber com exatidão.
– Por quê?
– Bem, porque…
Outros telefonemas, que sòmente despertavam reminiscências infantis:
– Na minha casa tinha uma mangueira. A manga-espada, por exemplo, se bem me lembro…
– Boa é a manga-carlota, aquela pequenina, sem fibra nenhuma… Lá no norte chamam de ita-
maracá.
– O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer com franqueza…
Resolveu telefonar para o Gabinete do Ministro:
– Queria uma informaçãozinha de Vossa Excelência.
O Ministro não sabia. Que futuro tem um país de economia essencialmente agrícola se nin-
guém, nem o próprio Ministro da Agricultura, sabe informar quanto tempo leva para germinar um
caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e silenciosa a deslisar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se não sei dizer com quantas pernas se faz uma sala-
mandra? O mundo anda cheio de pernas, e o coração do poeta já perguntou para que tanta perna,
meu Deus. As da salamandra – quatro, ou seis – nada acrescentam ao meu mundo interior, senão a
ligeira desconfiança de que acabo tendo quatro. No entanto, as de uma jovem galgando as pedras do
Arpoador, por exemplo, apenas duas, podem sustentar o universo – vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que um caroço de manga. Onde se acendem estrêlas inexis-
tentes e os astros desandam nas suas órbitas. Onde se abrem abismos de uma profundeza que nem a
imaginação do romancista ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais exóticas que uma man-
gueira de quintal, em cujas sombras se arrastam sêres vorazes e bem mais misteriosos que a sala-
mandra, salamandras…
A PAZ NA RUA CANING
Reinava a paz na Rua Caning.
Ùltimamente, porém, deu para haver agitação durante a noite: na residência aqui ao lado inau-
guraram um clube de bridge. Há garçons se movimentando pelas salas iluminadas, servindo a uns e
outros. E à saída, alta noite, há risadas, comentários, discussões – tôdas de ordem estritamente téc-
nica, justiça seja feita: “não devia ter jogado aquêle ás”; “saiu para mim o dois de paus”; “e aquela
dama, você viu só aquela dama?”
Outro dia os jogadores já se tinham retirado, pondo ruidosamente em funcionamento seus au-
tomóveis, mas os residentes da rua Caning nem por isso recuperaram a sua paz: os garçons, reuni-
dos no jardim do clube, resolveram promover seu barulhozinho particular. Eram três ou quatro e
discutiam em altas vozes, antes de se recolherem aos quartos do fundo, onde moram. Uma janela se
abriu e alguém gritou para a noite:
– Essa conversa aí! Quero dormir!
Fui também à janela, disposto a assistir de camarote a tôda a cena, que não se fêz esperar.
Como a discussão continuasse, cada vez mais animada, o velho que gritara saiu de pijama para a rua
e entrou no clube:
– Vamos acabar com essa conversa porque senão eu encho de bala a bôca de cada um.
Um general de pijama, sem dúvida; seria muita temeridade sua se, òbviamente, não estivesse
armado. Foi o que pensaram os garçons, olhando para o bôlso de seu pijama. Um deles se arriscou a
um protesto:
– O senhor não pode…
– Cala a bôca – atalhou o velho.
– Não pensa que eu…
– Cala a bôca.
Depois voltou-lhe as costas e disse para o ar, numa satisfação aos vizinhos:
– É um absurdo, essa gente a fazer barulho de madrugada! A polícia precisa acabar com êste
clube.
E foi-se embora, recolhendo-se à sua casa sob meu olhar de admiração. Um dos garçons se
lastimava:
– Nunca ninguém falou em me encher a bôca de bala. Eu ainda acerto êsse velho.
– Acerta nada! – saltou a voz de um, debruçado à janela fronteira. – Tu não acerta ninguém, o
homem é macho pra burro. E tem tôda razão, essa jogatina é um absurdo.
– Isso mesmo! – secundei de minha janela, mas o velho apareceu na sua:
– Cala a bôca – berrou.
Retirei-me, prudentemente, antes que êle fizesse pontaria. Fui dormir, convencido de que nem
tudo que se passa de madrugada na minha zona está sob minha jurisdição.
E a paz voltou a reinar na rua Caning.
PÓ SUSTENIDO
Alguns anos atrás êle tocava na orquestra do Copacabana, e era excelente pianista. Um dia,
porém, chamou o diretor:
– Não posso continuar tocando aqui. Está caindo um pòzinho na minha cabeça.
– Pòzinho? Que história é essa?
Não sabia explicar o que era: quando começava a tocar, desprendia-se pó do teto mesmo em
cima de sua cabeça – devia ser caliça.
– Talvez vibração do som. Sei lá: só sei que, quando toco determinadas notas, começa a cair
pó.
O diretor ficou apreensivo: os outros músicos jamais se tinham queixado disso. Mandou fazer
uma inspeção no teto, mandou que a orquestra tocasse em todos os tons durante o ensaio, e nada de
pó. Êle sempre se queixando:
– Estou dizendo ao senhor: basta eu tocar certas notas que começa a cair pó. Quer ver?
Sentava-se ao piano, começava a tocar. De súbito saltava, triunfante, passando a mão na ca-
beça:
– Não falei? O senhor está vendo?
O diretor não via nada, mas concordou em passá-lo do “grill” para a boate assim que mudas-
sem o “show”.
Foi inútil: também lá caía um estranho pòzinho do teto, mesmo em cima da sua cabeça, tão
logo êle se punha a tocar.
Sòmente então se pôde chegar à definitiva conclusão de que o homem estava era ficando ma-
luco. Foi internado numa casa de saúde, submetido a tratamento. Meses depois reapareceu, aceitou
emprêgo numa estação de televisão. Fazia acompanhamentos, era pau para tôda obra.
– Parece que está completamente curado – diziam todos.
Certa noite, porém, designaram-no para ocupar o lugar do pianista da orquestra, que não havia
comparecido. A horas tantas êle se levanta, sem nenhum aviso, interrompendo a execução em pleno
programa: ficou tentando arrastar o piano, mudá-lo de lugar.
– Que é que houve?
A câmera foi rapidamente desviada, a execução se encerrou de qualquer maneira. E o produ-
tor do programa veio reclamar, furibundo:
– Que molecagem foi essa?
– Não foi molecagem: é que eu…
– Não vai me dizer que começou a cair um pòzinho na sua cabeça.
– Justamente. O senhor pode não acreditar, mas foi justamente o que aconteceu.
O produtor ergueu as mãos para o céu:
– Pronto: endoidou de nôvo.
O clarinetista da orquestra veio em ajuda do colega:
– Não é por falar, mas eu tive a impressão de que estava mesmo caindo um pòzinho na cabeça
dêle.
Antes que a solidariedade se generalizasse, o próprio pianista, desgostoso, deixou o emprêgo.
E acabou deixando também o Brasil, deixou tudo, embarcou para a Argentina.
E hoje vive em Buenos Aires, muito feliz da vida, tocando música brasileira para os porte-
nhos, num bar do qual se tornou a maior atração. De vez em quando aparece um patrício e êle vem
conversar, pedir notícias.
– Sinto muita saudade daquilo lá – confessa, nostálgico: – Mas não volto para o Brasil nem
por um decreto: lá cai muito pó na cabeça da gente.
ORGANOGRAMA
Dizem que em matéria de organização aquêle Ministério é de amargar. De vez em quando um
processo cai no vazio e desaparece para nunca mais. Por quê? Porque o único Ministro que se lem-
brou de organizá-lo, segundo me contaram, tinha mania de organização.
Mania oriunda de uma sensibilidade estética o seu tanto exacerbada, capaz de exteriorizar-se
em requintes de planejamento burocrático. Aparentemente, essa marca de sua personalidade condi-
zia com as altas funções que lhe cabiam.
Mas só aparentemente: a primazia do fator estético, feito de equilíbrio, proporção e harmonia,
passou a ser a determinante principal de todos os seus atos – tudo mais no Ministério que se da-
nasse. Como no remédio para nascer cabelo: não nascia, mas dava brilho.
Dizem que, quando tomou posse do cargo, a primeira coisa que fêz foi encomendar a confec-
ção de um artístico organograma.
– De um artístico o quê, Sr. Ministro?
Um organograma, ó imbecil: não sabia o que vinha a ser organograma? A distribuição gráfica
dos diversos departamentos e serviços sob sua gestão.
– Mas quero coisa caprichada, está entendendo?
Quando lhe trouxeram o trabalho, encomendado no Departamento do Pessoal, que por sua vez
o encomendou a um desenhista particular, o Ministro não fêz mais nada a não ser estudar a galharia
daquela árvore geométrica, em função da qual as atividades de sua Pasta passariam a desenvolver-
se. Notou, todavia, que as divisões e subdivisões de cada repartição eram muito mais numerosas do
lado esquerdo que do lado direito. Acontecia que a primeira grande divisão à direita não tinha a
mesma importância de sua correspondente à esquerda e se desdobrava em poucos serviços.
– Êste organograma está uma droga. Não posso dependurar uma coisa destas na parede de
meu Gabinete.
Pôs-se imediatamente a inventar novas repartições, serviços disso e daquilo – tudo fictício, ir-
real, imaginário – para restabelecer o equilíbrio organogramático: Departamento do Contrôle Admi-
nistrativo, Serviço de Fiscalização Interna, Seção do Contrôle Processual:
– Se fôr preciso, a gente cria mesmo os serviços, faz as nomeações.
Não sei se chegou a fazê-lo; o certo é que nôvo organograma foi executado, e todo aquêle que
tivesse a ventura de penetrar em seu Gabinete podia admirá-lo:
– Tudo isso sob seu contrôle, Ministro?
E o Ministro, num gesto resignado:
– Para você ver, meu filho: não fôsse eu, e todo êsse complexo administrativo já teria desa-
bado para um lado, como uma árvore desgalhada.
Dizem, mesmo, que até hoje o magnífico organograma figura no tal Ministério, como uma das
mais importantes realizações de sua gestão.
CONVERSINHA MINEIRA
– É bom mesmo o cafèzinho daqui, meu amigo?
– Sei dizer não senhor: não tomo café.
– Você é dono do café, não sabe dizer?
– Ninguém tem reclamado dêle não senhor.
– Então me dá café com leite, pão e manteiga.
– Café com leite só se fôr sem leite.
– Não tem leite?
– Hoje, não senhor.
– Por que hoje não?
– Porque hoje o leiteiro não veio.
– Ontem êle veio?
– Ontem não.
– Quando é que êle vem?
– Tem dia certo não senhor. Às vêzes vem, às vêzes não vem. Só que no dia que devia vir em
geral não vem.
– Mas ali fora está escrito “Leiteria”!
– Ah, isto está, sim senhor.
– Quando é que tem leite?
– Quando o leiteiro vem.
– Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
– O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
– Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que
vai indo a política aqui na sua cidade?
– Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
– E há quanto tempo o senhor mora aqui?
– Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um
pouco menos.
– Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?
– Ah, o senhor fala a situação? Dizem que vai bem.
– Para que Partido?
– Para todos os Partidos, parece.
– Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
– Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida…
– E o Prefeito?
– Que é que tem o Prefeito?
– Que tal é o Prefeito daqui?
– O Prefeito? É tal e qual êles falam dêle.
– Que é que falam dêle?
– Dêle? Uai, êsse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
– Você, certamente, já tem candidato.
– Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
– Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
– Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí…
A ESPERA
Mal dobro a esquina de minha rua, dou-me conta de não ter trazido a chave para entrar.
Ponho-me a remexer nos bolsos, mal-humorado, a andar de um lado para outro em frente ao edifí-
cio. Confio ainda na chegada eventual de alguma doméstica, egressa da gafieira. Noite de domingo,
são quase duas horas da manhã.
Espero em vão até as três. Do clube de bridge ao lado de meu prédio emergem de vez em
quando casais felizes, que logo embarcam nos seus automóveis a caminho de casa – dispondo to-
dos, é óbvio, de chave para entrar. Impaciente, dou umas pancadinhas discretas e inúteis na porta
principal, desejando e ao mesmo tempo temendo acordar alguém. Logo me afasto: que dirá a vizi-
nha do andar térreo se, de camisola, estremunhada, vier à janela e der comigo aqui, no escuro, ten-
tando forçar a porta de entrada? Certamente não virá abrir, essa idéia jamais lhe ocorreria: é capaz
de dar-me com a janela na cara e chamar a Polícia. Tudo indica que nesta triste e lêda madrugada,
no silêncio e na solidão da minha rua, venho a constituir o que se convencionou chamar de um indi-
víduo suspeito.
Resolvo ir-me embora para algum lugar, dar um telefonema, tomar providências. Mas não me
ocorre lugar nenhum onde possa ir a esta hora, nem onde haja telefone disponível, nem que provi-
dência deva tomar. Tomaria de preferência um café – mas se me afastar daqui, em busca de algum
bar ainda aberto, perco a chegada da tal mucama, ou daquele rapazinho que bebe chope até mais
tarde, ou daquela senhora que, no dizer do cronista social, resolve em noites como esta dar uma esti-
cada na boate. Descubro além do mais que, dispondo ainda de alguns cigarros para prosseguir na to-
caia, já não tenho fósforos. E são quatro horas da manhã, quando começa a chover.
Abrigo-me junto à porta e deixo que a noite siga o seu curso. Agora me sinto de súbito con-
formado e tranqüilo, imaginando que numa guerra êste canto de porta seria o melhor dos mundos,
seguro e acolhedor. Chego mesmo a estudar a possibilidade de aceitar a sugestão do mendigo que,
fugindo à chuva, veio abrigar-se à entrada da garagem: “Aqui é melhor, companheiro, não chove de
jeito nenhum”. Minha esperança agora é o leiteiro, que já devia ter chegado, mas o mau tempo cer-
tamente o reteve pelo caminho – ou algum madrugador impávido que vá para o trabalho ou o ser-
viço militar. Julgo mesmo ouvir lá dentro a campainha de um despertador – ou terá sido ilusão? Al-
guém vai sair dentro em pouco. Sento-me no degrau de mármore, e espero. Encostado à coluna,
deixo-me ficar, pensando em outras portas que não se abrem. Em breve a noite se acabará, mais
cedo ou mais tarde acabarei entrando, alguém há de abrir esta porta para mim… Assim me fôsse a
certeza de tudo que tenho esperado.
LAR, DOCE BAR
Um dia a mulher acabou estranhando:
– Onde é que você vai tôda noite e não me leva?
– Tomar uma cervejinha – explicou êle.
– E por que não me leva?
– Você não gosta de cerveja, ora essa.
– Posso tomar outra coisa. Lá não tem coca-cola?
– Lá onde?
– Nesse lugar que você vai tôda noite.
– É num bar. Você queria que fôsse onde?
– Não queria nada. Só que eu acho muito esquisito isso.
– Esquisito o quê? Eu tomar uma cerveja de vez em quando? Pode ficar tranqüila que é cer-
veja mesmo, não tem mulher nisso não.
– De vez em quando… tôda noite, não sei como é que pode. Vai me enganar que você fica sò-
zinho, todo bonitinho.
– Às vêzes aparece algum amigo. Mas não faço questão: também gosto de ficar sòzinho, todo
bonitinho.
– Então você podia muito bem tomar em casa – saltou ela, vitoriosa.
– Ora, você tem cada idéia. Poder eu podia, o que é que me impede? Mas não é a mesma
coisa.
– Não é a mesma coisa por quê? Acho que você não gosta é da minha companhia, por que não
fala logo?
– Deixa de inventar coisa.
– Pois então olha: se não fôr por minha causa, você hoje vai tomar cerveja em casa. Vou man-
dar pedir uma garrafa no armazém.
– Uma garrafa é modo de dizer – resmungou êle: – A gente toma enquanto tem vontade.
– Meia dúzia, então – concordou ela, pródiga.
Êle se conformou, meio ressabiado. E à noite sentou-se na sala, como menino de castigo, di-
ante da cerveja que a mulher lhe servira com solicitude. Ela o olhava, curiosa, enquanto êle rapida-
mente dava cabo da primeira garrafa.
– O que é que você está me olhando? Nunca me viu?
– Você está tão engraçado, sentado aí, calado dêsse jeito… A gente pode conversar, não
pode?
– Pode, uê. Não estamos conversando? Me traz outra garrafa.
Mais tarde, ao chegar a hora de dormir, êle passou a mão na garrafa e no copo:
– Você não se incomoda se eu levar êsse resto para acabar no quarto?
– De forma alguma. Só que ainda tem quatro lá na geladeira.
Êle achou graça:
– Não sou obrigado a beber tudo hoje, essa é boa.
Em pouco ela dormia e êle bebia a contragôsto sua cerveja. Em vez de sentir sono, começou a
se sentir mal, a digestão difícil, pesada. Passou o resto da noite em repetidas incursões ao banheiro.
Na noite seguinte, quando apareceu no bar para a cerveja habitual com os amigos, êstes se
queixaram:
– Você ontem não apareceu, o que é que houve?
Êle se aboletou à mesa, pediu um copo para si:
– Querem saber de uma coisa? – limitou-se a comentar, enquanto se servia: – Tomar cerveja
em casa, sòzinho com a mulher, é o mesmo que tomar purgante.
O ADVOGADO DA PREFEITURA
– Foi meu colega na Faculdade de Direito. Depois o perdi de vista. Eis senão quando um dia
êle me aparece no escritório: “Sei que você está bem de vida, é muito relacionado, queria um favor-
zinho seu”. Eu disse pois não, às suas ordens – mas ar de cliente em perspectiva é que êle não tinha.
– Então êle me sai com essa: “Estou vendo se arranjo minha situação, queria que você me aju-
dasse – gostaria de ser nomeado advogado da Prefeitura”. Fiquei olhando para êle, boquiaberto: eu
também gostaria, foi o que consegui dizer. Êle sorriu: “Está em suas mãos arranjar isso para mim”.
Quase caí da cadeira: em minhas mãos como? Então êle fêz um gesto me apontando e disse apenas:
“Prestígio”. Prestígio, eu! Mas escuta aqui uma coisa, meu velho, se eu tivesse algum prestígio
nesse mundo eu arranjava era para mim, você me desculpe a franqueza.
– Êle parece que não gostou: “Basta uma penada” – falou, aborrecido, como se eu estivesse
apenas com má vontade. Mas penada de quem, meu caro? Minha? Se fôr, disponha à vontade, aqui
está a caneta. Onde é que você foi tirar uma idéia dessas, que eu tenho prestígio para conseguir no-
meação de quem quer que seja? “Tenho tentado tudo”, disse êle, apenas. Fiquei olhando para êle e
êle olhando para mim. Mas eu que passo o dia feito barata tonta nos corredores do fôro, e êsse aí
quer ser nomeado – só achando graça. “Há uma vaga” – êle insistiu. E daí? – eu perguntei. “Está
bem, até logo” – e êle se foi, sem mais nada.
– Dias depois me aparece com outra conversa: “Pode ficar com aquela vaga da Prefeitura para
você”. Ah, bondade sua, muito obrigado: a que devo tamanha generosidade? – não pude deixar de
perguntar. Êle se compenetrou, assumindo ares de mistério: “Soube de outra vaga no Banco do Bra-
sil”. Ah, outra vaga… de advogado? Fechei a cara: olha, é até uma impertinência você vir dizer isso
a mim, que exerço advocacia e ninguém se lembra de nomear. Êle ficou triste: “Também não pre-
cisa me ofender, que diabo. Me arrume então um lugar de fiscal na Prefeitura, pronto, aceito, está
acabado.” Então eu lhe fiz ver que também aceitava se êle me arranjasse.
– Passei tempos sem vê-lo. E agora pasme: um dia eu ia seguindo pela Rua do Ouvidor, fazia
um calor miserável. Quando cheguei ali na esquina da Rua Primeiro de Março, resolvi tomar um pi-
colé. É uma coisa que nem sempre me arrisco a fazer, pode ter algum cliente por perto, é preciso
muita compostura. Sei de um caso de advogado que perdeu um gordíssimo inventário onde se en-
costar só porque um dos herdeiros o surpreendeu um dia encostado numa mulata em Copacabana.
Mas mulata é coisa muito diferente de picolé, não é mesmo? Parei junto da carrocinha: me dá um de
chocolate, eu pedi. O homem estendeu o sorvete e quando fui pegar, olhei na cara dêle, quem você
pensa que era? E de boné branco e avental, vendendo sorvete de carrocinha! Pensei até em disfar-
çar, mas êle me reconheceu logo com um sorriso: “Estou aqui, o que é que há? Foi o melhor que ar-
ranjei” – e se voltou para atender outro freguês. Fiquei ali esperando, completamente sem jeito: não
pude deixar de fazer um comentário qualquer sôbre o fato de um sujeito da categoria dêle, advo-
gado, etc. – mas êle protestou: “É uma profissão digna como outra qualquer. Não tenho de que me
queixar. Consegui êste ponto aqui, até que fui de uma sorte desgraçada, é disputadíssimo. E além do
mais, é divertido, sabe disso? Ainda outro dia servi a uma freguesa que já foi minha namorada. En-
contro muita gente conhecida. Você, por exemplo, há quanto tempo!” – e me estendeu de nôvo o pi-
colé, de que eu até me esquecera: “Olha, de chocolate, não precisa pagar, foi um prazer, apareça
sempre.”
VELHINHO
Na cidade francesa de Poitiers, dizem os jornais, de uns tempos a esta parte começou a regis-
trar-se um estranho fenômeno: os carros parados nas ruas volta e meia apareciam com os pneus fu-
rados.
Em vão as queixas na Polícia se acumulavam: tem uma verdadeira quadrilha de moleques fu-
rando pneu de nossos carros! – protestavam os habitantes da localidade. O assunto foi ventilado no
Conselho Municipal, discutiu-se o fracasso das investigações, verberou-se a incompetência dos in-
vestigadores.
– Temos feito o possível – defendeu-se o delegado: – Redobramos a vigilância. Os guardas
têm ordem de prender qualquer tipo suspeito que encontrarem.
Os investigadores, por sua vez, se justificavam alegando que até então não haviam encontrado
ninguém próximo aos carros estacionados.
– A não ser, de vez em quando, o Sr. Jouteau – informaram.
– Quem é êsse?
– Aquêle velho que foi conselheiro municipal há muitos anos… êle até que nos tem ajudado a
procurar o culpado.
– Me tragam o velhinho – ordenou o delegado.
Os guardas trouxeram à delegacia o Sr. Eugene Jouteau, um respeitável ancião de 83 anos – e
seu comparecimento foi, então, muito a propósito: encontraram-no agachado junto à roda de um
carro, em atitude francamente suspeita.
– Que é que o senhor estava fazendo, vovô? – perguntou o delegado.
O velhinho confessou cândidamente:
– Furando pneu…
Contou que já furara mais de uma centena: era um modo como outro qualquer de distrair-se.
Na sua idade encontrava tão poucos divertimentos… O mais divertido era, depois de furado o pneu,
esperar o proprietário do carro:
– Em geral êle fica furioso. Às vêzes espero para oferecer auxílio. Só para ver a cara dêle…
Ou então vou embora e fico em casa, imaginando a cena.
O delegado passou-lhe um pito: mas francamente, vovô, na sua idade! Muito feio, fazer uma
coisa dessas. Depois o mandou embora, não sem que êle antes prometesse de pés juntos nunca mais
furar pneus.
A MÁQUINA DO TEMPO
Um amigo trouxe à minha casa um aparelho de gravar, para nos divertirmos com êle. Grava-
mos nossa voz e as alheias, inventamos brincadeiras, surpreendemos as visitas. Depois, passada a
fase pròpriamente lúdica, o aparelho aqui ficou, esquecido durante todo êsse tempo, pois cheguei à
conclusão de que para mim êle é tão inútil como um automóvel sem gasolina ou uma caneta sem
tinta.
Não sei cantar; reconheço-me suficientemente estúpido em línguas estrangeiras para pretender
aperfeiçoar-me em dicção; também seria incapaz de escrever qualquer coisa que não fôsse direta-
mente aqui nesta máquina. Depois, ditar para quê? Para que eu mesmo venha no dia seguinte escu-
tar o que ditei e, aborrecido, ter ainda de datilografar? Não, o aparelho não teria para mim nem essa
utilidade.
Que fazer com êle, então? Devolvê-lo. Antes porém, quero experimentá-lo uma última vez, e
me ponho a ouvir tudo o que nele ficou gravado. Estou sòzinho no quarto e a distração é boa. Aos
poucos, todavia, vai-se fazendo impertinente e cansativa. São trechos de conversas, em datas diver-
sas; um longo poema lido em voz soturna; alguém que tocou e cantou ao piano; alguém que deixou
gravar uma risada alegre e fácil; uma discussão sôbre política – tudo truncado, regravado, super-
posto, numa seqüência confusa do que já devia ser passado…
Aqui, um amigo que já não vejo há meses e então me freqüentava diàriamente está dizendo ao
microfone, num arremedo de discurso: “Neste momento solene…” Volto a fita do aparelho e o ouço
novamente: “Neste momento solene…” Poderia ouvi-lo indefinidamente, quantas vêzes quisesse:
aqui o tenho aprisionado, num instante de sua vida. Pode êle, afastar-se, tomar outros rumos, enve-
lhecer, tornar-se industrial, diplomata ou agiota – que não escapará de mim, e eu lhe direi: “Aqui te
tenho, meu velho. Houve um momento na tua vida que foste gaiato e alegremente amigo, naquele
momento solene eras môço e nos entendíamos”. Essa outra conversa, entrecortada de risadas, foi
um aniversário que já não celebro mais. E êsse diálogo improvisado numa noite de alegria faz ridí-
culo o que na época nos pareceu irresistìvelmente engraçado, porque a alegria daquela noite se per-
deu.
Deixemos de lado êste aparelho, que não serve para nada. De tudo que ficou gravado nele,
mesmo de uma voz de criança chamando pelo pai ou uma voz de mulher dizendo “desliga isso aí e
vamos jantar”, colho apenas uma lição: não se brinca impunemente com o tempo. E esta lição é
mais antiga que o Antigo Testamento.
GENTE DIREITA
Estavam ambos encostados ao balcão do botequim, e tomavam uma cachaça. Um era negro,
alto e desdentado. O outro era branco, mas encardido de pobreza. Ambos velhos, maltrapilhos, e a
despeito da pretendida compostura, não podiam estar mais bêbados.
– Gostei da sua cara – dizia o branco, mastigando um tôco de cigarro. – O senhor parece um
homem direito.
– Direito? – tornou o prêto, arreganhando a bôca murcha: – Saiba o senhor que eu já sou avô!
– Não estou dizendo? Pois eu também sou avô, fique sabendo o senhor! Venha de lá um
abraço.
Cambalearam, como numa dança macabra, e caíram nos braços um do outro.
– Pois olha aqui uma coisa – e o branco estendeu o braço com dificuldade, mostrando três de-
dos: – Tenho uma filha que já tem três filhos.
– O quê, seu môço! Pois eu também tenho uma filha que já tem três filhos!
E o prêto compenetrou-se:
– Não sou malandro que fica aí em conversa de safadeza. Gosto de conversar é assim: con-
versa de gente direita.
– Conversa de família é que é bom de conversar – gaguejou o outro.
– Eu também acho.
– Então vem de lá um abraço.
Tornaram a abraçar-se.
– O senhor é homem direito, está se vendo.
– Só tenho conversa de família.
– Eu também. Estou com uma filha que já tem três filhos, sabe o que é isso?
Pediram mais uma cachaça, confraternizados:
– Êta conversinha boa, essa conversa de família.
– Danada de boa. Não é feito a dêsses malandros, que só conversam safadeza.
– Então vamos conversar mais.
– Então vamos.
– Eu já sou avô, aqui onde o senhor está me vendo: tenho uma filha que já tem…
– A minha também já tem.
– Pois então? O senhor já é avô! Me dá um abraço, que eu também sou.
E os dois avôs, no maior pileque dêste mundo, tornaram a se abraçar, realizando, sem saber, o
ritual da mais espontânea, gratuita e fraterna convivência entre dois homens. Depois lançaram um
olhar benevolente para as demais pessoas ao longo do balcão:
– Olha aí, êsses vagabundos todos, na conversa de safadeza… Comigo não, há de ser con-
versa direita.
– O senhor é homem direito, está se vendo.
– Ah, comigo é assim! Conversa de família é que eu gosto de conversar.
MEDÉCIN MALGRÉ LUI
Um emprêgo público cedo desviou sua atenção das doenças do homem para as doenças do
Brasil. Mas outro dia estava numa animada roda de pôquer em casa de um amigo, quando a cozi-
nheira começou a sentir-se mal. Era um domingo, havia pouca probabilidade de se encontrar um
médico. O jôgo foi interrompido.
– Vê se me dá uma olhada na mulher – pediu o dono da casa.
– Há muito tempo que não clinico – escusou-se êle.
– Uê, você é médico? – espantou-se um dos parceiros, seu amigo íntimo.
– Há muito tempo que êle nunca clinicou – gracejou outro.
– Deixa disso – insistiu o dono da casa: – Veja o que há com a mulher. Ela está se sentindo
mal.
Acabou acedendo. Ergueu-se da mesa e, seguido dos demais, penetrou no recesso da casa. No
quarto das empregadas uma preta jazia na cama, de olhos grandes diante daquela gente tôda.
– O doutor aqui vai dar um jeito em você – explicou o dono da casa.
O doutor, já compenetrado, curvou-se e, sob o olhar de expectativa dos presentes, cotucou a
barriga da mulher, pediu que mostrasse a língua, tomou-lhe o pulso. Depois se lembrou de per-
guntar-lhe o que estava sentindo.
– Umas fisgadas assim por dentro, doutor.
Êle voltou-se para o dono da casa:
– Me traga papel para eu receitar uma coisinha. Ela vai ficar boa logo.
De nôvo para a mulher:
– Você vai ficar boa logo, minha filha.
Providenciaram papel e caneta para êle. Concentrou-se, firmando os óculos sôbre o nariz e a
consciência profissional na lembrança dos exames do último ano de Faculdade (segunda época).
Sua mão, depois de descrever no ar uma espiral, pousou no papel e rabiscou durante alguns segun-
dos.
– Mande preparar estas cápsulas numa farmácia – disse então, estendendo o papel ao dono da
casa e respirando fundo: – Bem, pessoal, vamos ao jôgo?
De nôvo à volta da mesa. Em pouco o moleque que fôra mandado à farmácia regressava di-
zendo:
– Seu doutor, o farmacêutico mandou dizer ao senhor pra corrigir a receita, que ela está er-
rada.
– Errada? – respondeu êle, escandindo a palavra: – Diga a êle que ninguém está pedindo sua
opinião. É para aviar a receita como está escrito.
Mais um pouco, e o garoto novamente com a receita na mão:
– Seu doutor – tentava conter o riso: – O farmacêutico mandou dizer que esta receita aqui não
dá cápsula não, a única coisa que pode fazer com ela é empadinhas.
A receita estava certa, não havia dúvida; apenas, em vez de doze gramas, êle havia escrito 1
quilo e 200 gramas. O dono da casa lhe bateu às costas, bem humorado:
– Por pouco não me matas a preta, hein, doutor?
OUSADIA
A môça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao saltar, a contrariedade se anunciou:
– A sua passagem já está paga – disse o motorista.
– Paga por quem?
– Êsse cavalheiro aí.
E apontou um mulato bem vestido que acabara de deixar o ônibus, e aguardava com um sor-
riso junto à calçada.
– É algum engano, não conheço êsse homem. Faça o favor de receber.
– Mas já está paga…
– Faça o favor de receber! insistiu ela, estendendo o dinheiro e falando bem alto para que o
homem ouvisse: – Já disse que não conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando, o senhor
não está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba minha passagem.
O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo: melhor para êle, ganhava duas vêzes.
A môça saltou do ônibus e passou fuzilando de indignação pelo homem. Foi seguindo pela
rua, sem olhar para êle.
Se olhasse, veria que êle a seguia, meio ressabiado, a alguns passos.
Sòmente quando dobrou à direita para entrar no edifício onde morava, arriscou uma espiada:
lá vinha êle! Correu para o apartamento, que era no térreo, pôs-se a bater, aflita:
– Abre! Abre aí!
A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala, contando aos pais atônitos, em têrmos confu-
sos, a sua aventura:
– Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até aqui!
De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o homem ainda estava lá fora, no saguão.
Protegida pela presença dos pais, ousou enfrentá-lo:
– Olha êle ali! É êle, venham ver! Ainda está ali, o sem-vergonha. Mas que ousadia!
Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou as mãos à cabeça:
– Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.
– Marcelo? Que Marcelo? – a môça se voltou, surpreendida.
– Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece êle, foi quem pintou o apartamento.
A môça só faltou morrer de vergonha:
– É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci! Você me desculpe, Marcelo, por fa-
vor.
No saguão, Marcelo torcia as mãos encabulado:
– A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia…
PRÊTO E BRANCO
Perdera o emprêgo, chegara a passar fome, sem que ninguém soubesse: por constrangimento,
afastara-se da roda boêmia que antes costumava freqüentar – escritores, jornalistas, um sambista de
côr que vinha a ser o seu mais velho companheiro de noitadas.
De repente, a salvação lhe apareceu na forma de um americano, que lhe oferecia emprêgo
numa agência. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, vale dizer, ao americano, para garan-
tir na sua nova função uma relativa estabilidade.
E um belo dia vai seguindo com o chefe pela Rua México, já distraído de seus passados trope-
ços, mas tropeçando obstinadamente no inglês com que se entendiam – quando vê do outro lado da
rua um prêto agitar a mão para êle.
Era o sambista seu amigo.
Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade, e mais ainda:
incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. Lembrou-se num
átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu crité-
rio de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odi-
osa deformação. Por via das dúvidas, correspondeu ao cumprimento de seu amigo da maneira mais
discreta que lhe foi possível, mas viu em pânico que êle atravessava a rua e vinha em sua direção,
sorriso aberto e braços prontos para um abraço.
Pensou ràpidamente em se esquivar – não dava tempo: o americano também se detivera,
vendo o prêto aproximar-se. Era seu amigo, velho companheiro, um bom sujeito, dos melhores
mesmo que já conhecera – acaso jamais chegara sequer a se lembrar que se tratava de um prêto?
Agora, com o gringo ali a seu lado, todo branco e sardento, é que percebia pela primeira vez: não
podia ser mais prêto. Sendo assim, tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo, haveria de com-
preender. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsun, lidos depois do jantar, e
sem credores à porta. Não teve mais dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que
não o via, que não era com êle.
E não era mesmo com êle.
Porque antes de cumprimentá-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços para
acolher o americano – também seu amigo.
MINHA CASTA DULCINÉIA
Estou numa esquina de Copacabana, são duas horas da madrugada. Espero uma condução que
me leve para casa. À porta de um dancing, homens conversam, mulheres entram e saem, o porteiro
espia, sonolento. Outras se esgueiram pela calçada, fazendo a chamada vida fácil.
De súbito a paisagem se perturba. Corre um frêmito no ar, há pânico no rosto das mulheres
que fogem. Que aconteceu? De um momento para outro, não se vê mais uma saia pelas ruas – e
mesmo os homens se recolhem discretamente junto aos edifícios.
– Que aconteceu? – pergunto a alguém que passa apressado.
É a radiopatrulha: vejo o carro negro surgir da esquina como um deus blindado e vir rodando
devagar, enquanto os olhos terríveis da Polícia espreitam aqui e ali. Não se sabe como, sua aparição
foi antecedida de um aviso que veio rolando pelas ruas, trazido talvez pelo vento, espalhando o
mêdo e possibilitando a fuga.
Eis, porém, que surgem da esquina duas mulheres, desavisadas e tranqüilas. Uma é mulata e
alta, outra é baixa e tão preta que só o vestido se destaca dentro da noite – ambas pobres e feias.
Vêem o inimigo, perdem a cabeça e saem em disparada, cada uma para o seu lado. O carro da Polí-
cia acelera, ao encalço da mulata: em dois minutos ela é alcançada e arrastada para o interior aos
pescoções.
A outra, trêmula de mêdo, se encolhe a meu lado como um animal, tentando ocultar-se. O
carro faz a volta e vem se aproximando.
– Pelo amor de Deus, môço, diga que está comigo.
Já não há tempo de fugir. A pretinha me olha assustada, pedindo licença para tomar-me o
braço, e, assim protegida, enfrenta o olhar dos policiais. Tomado de surprêsa, fico imóvel, e somos
como um feliz, ainda que insólito, casal de namorados. Compenetro-me, forças secretas dentro de
mim endireitam-me o corpo para enfrentar a situação. Ouço a voz de Quixote sussurrar-me que
agora, ou vou prêso com ela, ou ninguém vai. Na verdade, neste instante de heroísmo, unido a um
ser humano pelo braço, sinto-me capaz de enfrentar até o Juízo Final, quanto mais a Delegacia de
Costumes.
Passado o perigo, a preta retira humildemente o braço do meu, faz um trejeito, agradecendo,
desaparece na escuridão. Eu é que agradeço, minha senhora – é o que pensa aqui o fidalgo. Tomo
alegremente o meu ônibus e vou para casa com a alma leve, pensando na existência daquelas peque-
nas coisas, como diria o poeta, pelas quais os homens morrem.
OS DESÍGNIOS DA SORTE
Passei a noite sonhando com o número 322. Quase fui atropelado por um carro cuja placa ter-
minava em 322. Ao entrar em casa, verifiquei que morava no prédio número 322 de uma rua sem
nome e, por espantosa coincidência, no apartamento 322.
Tão espantosa que, ainda dentro do sonho, resolvi jogar no 322. Por mais que procurasse fazê-
lo, contudo, não conseguia. Ninguém para iniciar-me nos segredos do jôgo do bicho, nenhum cam-
bista de loteria pelas imediações do meu sonho.
Acordei em flor e saí por aí, contando aos outros o meu sonho. Jogue no bicho – recomenda-
vam todos, e me esclareciam: é a cabra. Como para ratificar a minha predestinação, fui num só dia
chamado de cabra por três nortistas. Mas não tive meios de jogar nem de comprar bilhete: na
mesma tarde seguia para Belo Horizonte, de automóvel, em companhia de um amigo. Uma só vez
quis saber quantos quilômetros faltavam para chegar.
– Trezentos e vinte e dois quilômetros – meu companheiro leu numa placa da estrada.
Dizer que no hotel ficamos no quarto 322 seria mentira – mas fomos almoçar exatamente às 3
horas e 22 minutos da tarde. Confesso que não procurei mais surpreender a série de coincidências
que certamente estaria condicionando a minha viela aos secretos desígnios desta simpática cifra de
três algarismos. Se procurasse, estou certo de que acabaria encontrando.
A lembrança do sonho, porém, continuava a perseguir-me. Cambistas apregoavam bilhetes da
loteria mineira. Não ousava perguntar pelo bilhete 322: sabia que, não o tendo, far-me-iam comprar
outro número qualquer. Confiei tais cuidados ao meu amigo.
– Vamos ali na Giácomo – sugeriu êle.
Descíamos juntos a rua da Bahia e nos detivemos em frente à casa tão familiar aos nossos
olhos. Desde que nos entendemos por gente, fixamos na lembrança o famoso anúncio ali dependu-
rado, de um menino com cabelos louros de mulher jogando diabolô, ao lado de um pai todo frajola,
sob o aviso: “Você ainda era criança e a Casa Giácomo já vendia sortes grandes.” Entramos:
– Procuro o bilhete número 322 – pedi com disposição.
Deu-se então um fato extraordinário:
– Pus êsse número num envelope fechado agora mesmo – disse o homem, pensativo, coçando
o queixo: – São muitos, agora não posso abrir todos. De qualquer maneira, vamos ver.
Pegou uma pilha de envelopes, escolheu um ao acaso, abriu-o com decisão, e sorriu:
– É êle – exclamamos, sôfregos.
Era o bilhete número 322, a correr no dia seguinte. Depois de comprá-lo e dividi-lo ao meio,
saímos ambos, nem querendo fazer conjecturas para não perturbar a delicada tessitura de fenômenos
fortuitos que no dia seguinte nos tornaria milionários.
No dia seguinte deu o 11.985.
EM CÓDIGO
Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:
– Recebi de Belo Horizonte um recado dêle para o senhor. É uma mensagem meio esquisita,
com vários itens, convém tomar nota: o senhor tem um lápis aí?
– Tenho. Pode começar.
– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
– Precisa de quê?
– De uma nora.
– Que história é essa?
– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?
– Continue.
– Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.
– Isso é alguma brincadeira.
– Não é não, estou repetindo o que êle escreveu. Tem mais. Quarto: sou amarelo, mas não
opilado. Tomou nota?
– Mas não opilado – repeti, tomando nota. – Que diabo êle pretende com isso?
– Não sei não senhor. Mandou transmitir o recado, estou transmitindo.
– Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.
– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na bôca de
muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo…
– Chega! – protestei, estupefacto. – Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.
– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e êle vacilou: – Estou dizendo ao senhor que
também não entendi, mas enfim… Posso continuar?
– Continua. Falta muito?
– Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena.
Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo-primeiro: não sou pipoca mas também dou meus
pulinhos.
– Não tem dúvida, ficou maluco.
– Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio idiota…
Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha:
– Que Rocha?
– Não sei: é capaz de ser a assinatura.
– Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!
– É, mas que foi êle que mandou, isso foi.
Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só então me
lembrei: haviam-me encomendado uma crônica sôbre essas frases que os motoristas costumam pin-
tar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja sempre pelo interior
fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e variado material. E
êle viajou, o tempo passou, acabei me esquecendo completamente o trato, na suposição de que o
mesmo lhe acontecera.
Agora, o material ali estava, era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado: Ro-
cha era o motorista, Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.
ASPIRADOR
Antes que eu lhe pergunte o que deseja, o gordinho começa a exibir-me uma aparelhagem
complicada, ainda na porta da rua. São tubos que se ajustam, fio para ligar na tomada, escovinhas
de sucção e outros apetrechos.
– Entre – ordenei.
Ora, acontece que jamais prestei sentido na existência dos aspiradores de pó. Por isso é que
fui logo cometendo a imprudência de convidar o gordinho a exibir-se de uma vez no interior da
sala. Na porta da rua venta e faz muito pó, disse-lhe ainda, tentando um trocadilho infeliz. Entramos
os dois, para a tradicional peleja entre comprador e vendedor.
Vi o gordinho desdobrar-se, suando, estica o fio, não dá até a tomada, arrasta a cadeira um
pouco para lá, não é isso mesmo? assim, com licença, quer limpar êsse tapête?
É um tapête que arrasto comigo há anos, por todos os lugares em que venho morando. Já aba-
fou meus passos em dias de inquietação, já recebeu alguns pulos meus de alegria, e manchas de
café, de tempo, de poeira dos sapatos. Pois olhe só – em dois tempos o gordinho pôs a engenhoca a
funcionar, esfrega daqui e dali, praticamente mudou, a côr do meu tapête. – Agora é que o senhor
vai ver – anunciou, feliz, revelando-me a existência, dentro do aparelho, de uma sacola onde o pó se
acumulava. Exibiu-me seu conteúdo com um sorriso de puro êxtase, o tarado.
Aquilo me decepcionou: pois se tinha de despejar o pó no lixo, por que não recolhê-lo de uma
vez com a vassoura? Evidente burrice da minha parte – o gordinho devia estar pensando: com cer-
teza eu esperava que o pó se volatilizasse dentro do aspirador, num passe de mágica?
Deixei que êle me enumerasse as outras aplicações do miraculoso aparelho: servia para esco-
var um terno, por exemplo, quer ver? E voltou para mim o cano da arma, que num terrível chupão
quase me leva a manga do paletó.
– Serve também para massagens. Com a sua licença – e passou-me no rosto a ponta do tubo.
Minha pele foi repuxada sob a improvisada ventosa descolando-se ruidosamente num violento beijo
de cavalo.
– Basta! – protestei: – Estou convencido. Compro o aspirador.
– E digo mais – prosseguiu êle, sem me ouvir: – Serve para refrescar o ambiente. Duvida? É
só virar ao contrário…
– Não duvido não. Já está comprado.
– … e funciona como um perfeito ventilador.
Fui buscar o dinheiro, paguei e despedi sumàriamente o gordinho que, perplexo, continuava
ainda a recitar sua lição: – Aspira o pó dos lugares mais inacessíveis: aspira atrás das estantes, as-
pira cinzeiros, aspira…
– Obrigado, obrigado – e fechei a porta atrás dêle.
Passei o resto da tarde me distraindo com a nova aquisição. De tôdas as maneiras: aspirei cin-
zeiros, estofados, cortinas, ternos, aspirei atrás das estantes, fiz desaparecer, até o último grão, o pó
existente na casa.
Então tentei retirar das entranhas do aspirador a tal sacola, como o gordinho havia me ensi-
nado. Para meu júbilo estava bojuda como um balão. Só não me lembrei foi de desligar o aparelho
que, como êle me havia ensinado também, virado ao contrário funciona como um perfeito ventila-
dor: de súbito, explode no ar uma bomba de pó acumulado. Tudo voltou ao que era dantes, fui à co-
zinha buscar uma vassoura. És pó e em pó reverterás – pensei comigo.
NEGÓCIO DE OCASIÃO
Quando mandou colocar mármore no chão de seu apartamento, o vizinho de baixo veio recla-
mar: às oito horas da manhã os operários começavam a quebrar mármore mesmo em cima de sua
cabeça. Durma-se com um barulho dêsses!
– Está bem, está bem – concordou êle, acalmando o vizinho: – Vou mandar começar mais
tarde.
Mandou que os operários só começassem a trabalhar a partir das nove horas. Dois dias depois
tornava o vizinho:
– Assim não é possível. Já reclamei, o senhor prometeu, e o barulho continua!
– Mas é só por uns dias – argumentou êle: – O senhor vai ter paciência…
E mandou que os trabalhos só se iniciassem a partir de dez horas. Com isso pensava haver
contentado o vizinho. Para surprêsa sua, todavia, o homem voltou ainda para protestar, e desta vez
furibundo, armado de revólver:
– Ou o senhor pára com êsse barulho ou eu faço um estrago louco.
Olhou espantado para a arma e, cordato, convidou-o a entrar:
– Não precisa se exaltar, que diabo. Vamos resolver a coisa como gente civilizada. Eu disse
que era só por uns dias… Se o senhor quiser que eu pare, eu paro. Cuidado com êsse negócio, cos-
tuma disparar. Qual é o calibre?
– Trinta e dois.
– Prefiro trinta e oito. Mas êsse parece ser muito bom… Que marca?
– Smith-Wesson.
– Ah! Então deve ser muito bom. Cabo de madrepérola… Quanto o senhor pagou por êle?
– Cinqüenta.
– Não foi caro. Sempre tive vontade de ter um revólver dêsses. Quem sabe o senhor me ven-
deria?
– Não vim aqui para vender revólver – explodiu o outro – mas para lhe avisar que êsse baru-
lho…
– Não haverá mais barulho, esteja tranqüilo. Agora, quanto ao revólver… Quer vender?
– O senhor está brincando…
– Não estou não: pela vida de minha mãezinha. Quer saber de uma coisa? Dou cem por êle.
Sempre tive vontade… Vamos, aceite! Cem, ali na bucha, pago na hora.
O homem começou a titubear. Olhou o revólver, pensativo: cem era um bom preço. Já pen-
sara mesmo em vendê-lo… Olhou o dono da casa, tornou a olhar o revólver:
– Toma: é seu – decidiu-se.
Antes de entrar na posse da arma, o comprador foi lá dentro buscar o dinheiro e estendeu-o ao
vizinho. Depois empunhou o revólver e chegou-lhe aos peitos:
– Bem, agora ponha-se daqui para fora. E fique sabendo que eu faço o barulho que quiser e
quando quiser, entendeu? Venha aqui outra vez reclamar e vai ver quem é que acaba fazendo um es-
trago louco.
A PÊRA
Ontem, depois do jantar, eu comia distraidamente uma pêra – quando de súbito me veio a
consciência da significação profunda dêste ato tão simples, que é o de comer uma pêra.
Enquanto mastigava, ia vivendo em retrocesso todo o gigantesco e ininterrupto fenômeno or-
gânico a que meu corpo dava seguimento, já digerindo e ruminando o que da pêra fôra comido.
O cerne da pêra que meus dentes violaram; a pêra ainda na mão, rendida à minha voragem; ao
ser colhida na árvore; e quando ainda era verde fruto; e antes de ser fruto, a flor em que já existia; e
a árvore que brotou da semente vinda de outra pêra, que por sua vez viera de outra – e assim até a
primeira, que Deus criou num momento de tersa inspiração: para ser comida por mim em espécie
feita à imagem e semelhança da Pêra.
Era assim que eu, pobre criatura, interferia na obra do Criador, sem interromper o eterno ciclo
da Natureza, em que nada se perde e nada se cria.
Olhei então o que restava ainda daquela pêra, com o respeito que me inspira algo destinado a
perpetuar-se: aquela pêra não morreria nunca, pois tinha na própria condição vegetal de sua perecí-
vel substância a garantia de sobreviver integralmente como entidade noutras peras.
Eu sabia daquela pêra, mas ela, que poderia saber de mim?
Segurei-a no ar, a meio caminho da bôca, com a determinação de quem enfrentava um enigma
com outro enigma: decifra-me, ou devoro-te.
Mas eu nada posso contra essa pêra já meio devorada – concluí logo: que sou eu ante a forma
perene de uma pêra?
Não passo de um ínfimo acidente nesta eterna linhagem de peras – eu, o indivíduo a que dou
meu nome, parte de uma espécie que desaparecerá comigo, pois que nem valia a pena repetir-se:
mesmo o animal glutão a mastigar lerdo uma pêra há de morrer para êste mundo e ressuscitar para o
outro, restituído à sua origem.
Eu morro. As peras continuam.
Foi preciso que eu mastigasse e deglutisse ontem uma pêra, imaginando o misterioso processo
de ruminação que se põe a funcionar nas minhas entranhas, para descobrir de repente que as pêras
na realidade não morrem.
Atirei fora o que sobrou do miolo, para não sucumbir à tentação da pequenina semente em
que latejava a perenidade das peras, a desafiar-me – é inútil: o meu fim já vem de meu princípio, ao
contrário das sementes – posso reagir, rebelar-me, posso até multiplicar-me em filhos, como as pe-
ras – eu agora sei que um dia vou morrer.
Eis pois o fruto de minha experiência, colhida num fruto das mãos de Deus: daqui a algum
tempo, não importa se alguns minutos ou alguns anos, daqui a algum tempo hei de me lembrar,
quando chegar a minha hora – foi naquela noite, depois do jantar, sòzinho em minha casa e esque-
cido de meus cuidados, já no fim da mocidade, enquanto comia uma pêra, que pela primeira vez
aceitei serenamente a idéia de morrer.
CARONA
– Comigo era a mesma coisa – disse êle, acomodando-se no carro, a meu lado, ontem, quando
eu voltava da Cidade.
Referia-se ao que andei escrevendo há pouco tempo sôbre as atribulações de quem tem auto-
móvel.
– E o que aconteceu com o seu?
– Vendi. Era um falso símbolo de prosperidade, responsável pela maioria dos meus inimigos.
Todo mundo me supunha rico e às vêzes eu não tinha dinheiro nem para a gasolina. Só porque me
viam de carro americano… Se ainda fôsse destes carrinhos brasileiros – você sabe o apelido deles.
– Sei.
– Pois é: todo mundo tem. Mas é um bom carrinho, não há dúvida: tendo gasolina, êle anda.
– Por falar nisso…
– Não vá me dizer que se esqueceu de botar gasolina. É sempre assim. A gente diz: ponho na
volta. Espero que dê. Sempre dá. Mas a preocupação fica. Até que um dia não dá e o carro pára
mesmo, no meio do túnel, como acontecia comigo. A gente desce, fica olhando os outros carros
passando sem dar a menor confiança, começa a desejar a desgraça de todos êles, até que surge um
de boa-vontade, caído do céu por descuido. Quer me dar uma empurradinha? O sujeito olha, diz que
os pára-choques não coincidem, e você fica lá, feito palhaço, abrindo os braços dramàticamente
para todo mundo que passa. Se tiver alguém mais com você, há de censurar a sua distração, mas
nem sempre se lembrará de descer também, para ajudar a empurrar. Você não traz sempre alguém
da Cidade?
– Sempre. E daqueles que avisam delicadamente: me deixa onde fôr melhor para você.
– Contanto que seja na porta da casa dêle, o que te obriga a uma volta desgraçada e um atraso
de mais de meia hora: é lógico que você não vai deixar o sujeito na porta de sua casa, que êle acaba
entrando. Principalmente se estiver chovendo. Comigo sempre estava. E o barulhinho?
– Que barulhinho?
– Você não escuta um barulhinho? Há sempre um barulhinho que só o dono do carro escuta.
Acaba dando com a gente na oficina. Tem um grilo neste carro, pelo amor de Deus, me tira isso que
senão eu acabo louco. Vem o mecânico e em vez de grilo, descobre um defeito no motor. Se fôr na
coroa e no pinhão, você está perdido. Em geral é.
– Por falar nisso…
– Mas suponhamos que o carro esteja funcionando perfeitamente: estacionar onde? Todos os
lugares são proibidos. A multa não é nada: agora tem essa história de “área de reboque”, você já viu
a tabuleta? A princípio eu, feito imbecil, pensava que só fôsse permitido estacionar reboque, ima-
gine. Pois o que acontece é que rebocam seu carro, já pensou? Sai do trabalho, vai pegar o carro,
quéde o carro? Rebocado. A menos que tenha sido roubado – só essa idéia é de tirar o sono. Rouba-
ram o de um amigo meu outro dia. Êle ficou fora de si, sem querer afastar-se do local, teimoso
como um jumento, procurando na rua vazia, como se tivesse perdido uma moeda, ou qualquer coisa
assim. Até atrás do poste êle olhou.
– Por falar nisso…
– E o problema da garagem? Se guardar na garagem, não tira mais, porque a saída estará obs-
truída por outro carro do edifício. Se deixar na rua, adeus pijama depois do jantar! Terá de sair para
guardar o carro, e acaba levando a mulher ao cinema. Já reparou como as mulheres se aproveitam
disso para ir ao cinema? Não bastasse baterem sempre a porta com fôrça. Quando não deixam
aberta.
– Por falar nisso…
– E sempre há um amigo para lhe dizer: você está precisando de mandar lubrificar êste carro.
A gente já sabe, mas preferiria que não se tocasse no assunto. Êste seu, por exemplo, acho que está
precisando. Aliás eu, se fôsse você, francamente: vendia êste carro.
– Por falar nisso, onde é mesmo a sua casa?
Êle me olha, muito sério:
– Me deixe onde fôr melhor para você.
O PRIMO PAGÃO
Chama-se Pagão e se diz meu primo. Tem a mão fria como a de um defunto. A primeira vez
que o vi limitou-se a pedir-me cem cruzeiros. Na segunda repetiu o pedido e, depois de atendê-lo,
tive a curiosidade de perguntar:
– Por que você pede dinheiro?
– Porque não tenho – foi a resposta pronta que me deu, o que fêz minha pergunta parecer um
tanto imbecil.
Magro, pálido (e aquela mão gelada), parecia alguém que morrera noutro planeta e ressusci-
tara aqui. Não punha na voz ou nas maneiras nada de subserviente ou miserável, para despertar pie-
dade. Pelo contrário: sem ser insolente, aparentava segurança e despreocupação. Assegurou-me que
não era doente, tinha 38 anos, sentia-se forte e bem disposto. Quanto a trabalhar, confessou que
nunca havia pensado nisso, mas que sim, certamente a idéia não deixava de ser interessante.
Quando voltou a procurar-me é que veio com essa história de primo. Talvez por sermos da
mesma cidade, ou pelo fato de se chamar Pagão, o certo é que se julgou com direito de optar pela
família de origem que melhor lhe aprouvesse e escolheu a minha. Passou então a tratar-me com a
discreta intimidade de parentes que não se vêem há muito. Era primo para cá, primo para lá, como
num romance de Eça de Queiroz. Aprendeu, não sei como, o nome de meus irmãos e perguntava
por êles, enviava lembranças.
– Pois vou lhe arranjar um emprêgo, primo Pagão – prometi-lhe um dia, sem que êle me pe-
disse nada, além dos indefectíveis cem cruzeiros.
Forneci-lhe um terno, uma camisa, um par de meias, um par de sapatos, um lenço e uma gra-
vata, tudo usado mas em boas condições, para que êle pudesse vestir-se da cabeça aos pés. Além
disso levou dinheiro para fazer a barba e tomar um banho, e o enderêço de um escritório eleitoral,
onde o emprêgo já lhe estava assegurado.
Algumas semanas depois, ao passar pela praça Paris, num ônibus, vejo-o refestelado num
banco, às duas horas da tarde, coçando o pé através de um buraco no sapato. Vestia-se como sempre
e deixara crescer definitivamente a barba.
Passou uns tempos desaparecido, até que, certa manhã, a empregada me estendeu um tele-
grama:
– Tem aí fora um vagabundo que veio trazer isso e está esperando a resposta.
Não era pròpriamente um telegrama, ou, pelo menos, ainda não fôra remetido: era um im-
presso do telégrafo onde êle redigira a lápis a sua mensagem, que viera trazer pessoalmente: “Faço
votos feliz natal próspero ano nôvo solicitando sua habitual ajuda – abraços do primo J. Pagão”. Es-
távamos em março.
A partir de então me felicita a propósito de tudo, desde a celebração da Páscoa ao resultado de
um jôgo de futebol, passando por tôdas as datas históricas, existentes ou não em nosso calendário.
Ontem, porém, mandou pedir-me que o atendesse pessoalmente.
Tão logo me viu, foi dizendo:
– Hoje, primo, não quero nada. Vim me despedir, mudo para Niterói. Tem lá um parente
nosso que está precisando de meus serviços.
E, despedindo-se, pediu-me apenas mil cruzeiros para tomar a barca.
HOMENS DE CANIVETE
Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são, e os que não
são de canivete.
Eu, por mim, confesso que sou homem de canivete. Meu pai também era: tinha na gaveta da
escrivaninha um canivete sempre à mão, um canivetinho alemão com inscrições de propaganda da
Bayer. Não se tratava de arma de agressão, mas, ao contrário, destinava-se, como todo canivete, aos
fins mais pacíficos que se pode imaginar: fazer ponta num lápis, descascar uma laranja, limpar as
unhas.
É, aliás, o que sucede com todos os homens arrolados nesta categoria a que honrosamente me
incluo – os homens de canivete: são pessoas de boa paz e que só lançariam mão dêle como arma de-
fensiva quando se fizesse absolutamente necessário.
Alegria da criança que não abandona o homem feito: a de ter um canivete. Era de se ver a ex-
citação com que meu filho de dez anos me pediu que não deixasse de lhe comprar um na Alemanha
– o que certamente farei, para o que já dei os primeiros passos, visitando com deslumbramento cada
uma das excelentes cutelarias que me surgem diante dos olhos, à procura do tipo de canivete que
melhor lhe convenha. É perigoso – advertem os mais velhos, cautelosos – cautela que não resiste à
minha convicção de que o menino saberá lidar com êle como é mister, pois tudo faz crer que virá a
ser, como o pai, um homem de canivete.
Os mineiros geralmente são. Quem descobriu isso, penso, foi Otto Lara Resende, que não
deixa de sê-lo, ainda que de chaveiro e certamente por atavismo – pois me lembro da primeira per-
gunta que lhe fêz seu pai ao chegar um dia ao Rio:
– Você sabe onde fica uma boa cutelaria?
Eu lhe recomendaria aquelas próximas ao Mercado: a Casa dos Anzóis e a outra na Rua Clapp
que hoje, infelizmente, não existe mais, foi destruída pelo fogo. Sei disso porque namorei um belo
canivete em sua vitrine durante muitos dias, pensando em comprá-lo.
Sempre fui um grande freqüentador de cutelarias. Quando o poeta Emílio Moura aparece pelo
Rio, não deixo de acompanhá-lo a uma dessas casas para olhar uns canivetes – pois se trata de um
dos mais autênticos homens de canivete que conheço, e dos de fumo de rôlo. Entre meus amigos
mais chegados, embora nem todos o confessem, muitos fazem parte dessa estranha confraria. Paulo
Mendes Campos não se esqueceu de recomendar-me os canivetes alemães ao saber de minha via-
gem – e, se bem me lembro, seu pai é um dos mais infalíveis portadores de canivete de que se tem
notícia. Rubem Braga também se deixou denunciar numa esplêndida crônica, “A Herança”, que
pode ser lida em “Borboleta Amarela”, a respeito de um irmão que abria mão de tudo, mas recla-
mava de outro a posse de um canivete.
Alguns continuam sendo homens de canivete, mesmo que hajam perdido o seu ainda na infân-
cia. Aliás, os homens de canivete vivem a perdê-lo, não sei se pelo prazer de adquirir outro. Para
identificá-los, basta estender a mão e pedir: me empresta aí seu canivete. Se se tratar de alguém que
o seja, logo levará naturalmente a mão ao bolso e retirará seu canivete. Foi o que fêz Murilo Ru-
bião, por exemplo, e que é outro: ao chegar da Espanha, a primeira coisa que me exibiu foi seu belo
canivete, adquirido em Sevilha. Em Londres, quando confessei ao Ministro Castelo Branco que um
dos meus objetivos em ir à Alemanha era o de comprar um bom canivete, seus olhos brilharam e se
revelou homem de canivete, mostrando-me imediatamente o seu.
Para terminar, digo que não há desdouro algum em não ser homem de canivete. Há homens de
ferramenta, de isqueiro, de chaveiro, e até de tesourinha. Graciliano Ramos não era homem de na-
valha? Homens de revólver é que não são uma categoria das que mais admiro: até parecem que não
são homens, para precisar de uma proteção que lhe poderia eventualmente propiciar, em caso de ne-
cessidade, um simples canivete.
Pois bem: o objetivo desta crônica é, fundamentalmente, o de comunicar aos meus compa-
nheiros de inocente, mas, quando necessário, decidida distração, que adquiri numa cutelaria de
Francforte o mais admirável canivete que jamais tive a alegria de possuir.
O CAMPEÃO
Eu era menino ainda, e Jack Dempsey já entrara em decadência. De tanto ouvir, porém, os
mais velhos falarem nele, resolvi incorporá-lo retroativamente à galeria de meus heróis. Fiz de Jack
Dempsey um ídolo e uma inspiração; era preciso dar muito murro para vencer na vida.
Mas nunca fui grande adepto do box: guardo como advertência da primeira vez que tentei se-
guir o glorioso caminho de Dempsey a recordação de um ôlho roxo durante uma semana, resultado
de um direto de Armando Anastasia, que me pôs “knock-out” no primeiro “round”. Foi preciso que
o chofer dos Carneiro Resende viesse me socorrer e só então, briga providencialmente apartada,
pude dizer a meu adversário que aquilo não ficava assim, havia de pegá-lo noutra oportunidade.
Afinal de contas, Firpo pusera Dempsey para fora do “ring” com um soco, o que não impediu que
Dempsey voltasse ao “ring” e o derrotasse.
Felizmente, porém, outra oportunidade nunca apareceu.
Minha carreira, como se vê, foi curta. Mas não esqueci Jack Dempsey, pelo contrário: o Leão
de Utá era ainda o grande ídolo de minha infância e seu nome significava para mim a quintessência
da invencibilidade: não era verdade que Tunney pudesse com êle, nem poderia Schmelling, Car-
nera, Max Baer, Joe Louis. Estava para sempre incorporado ao mundo lendário de Buck Jones, Tar-
zan, Buffalo Bill, todos invencíveis. Cada um no seu ramo, evidentemente, era uma pena mas nunca
se encontrariam.
Já nem acreditaria mais, se me dissessem, que Jack Dempsey existia, e com a lembrança de
seu rosto familiar entronizada na galeria dos mitos infantis, cheguei distraìdamente a homem.
Um dia me vejo em Nova Iorque, na Sexta Avenida, e precisando trocar uma nota de cin-
qüenta dólares, abordei outro homem:
– O senhor pode trocar isso para mim?
Lembro-me bem que êle estava parado junto ao meio-fio, de costas, era alto, corpulento, e ti-
nha os cabelos grisalhos cortados rente. Voltou-se lentamente para mim, sem ter entendido a per-
gunta, olhou-me desconfiado. Ao vê-lo assim de perto, a um passo de mim, vivo e, o que é pior, já
pesadão e envelhecido, não sei o que senti. Vacilei, como se estivesse na iminência de receber um
soco na cara. Pensei em fugir, refugiar-me na infância de onde nunca deveria ter saído – proporcio-
nar ao menino aquêle puro instante de emoção que o tempo irreversível lhe havia furtado e que o
homem feito já não sabia merecer.
– O senhor é Jack Dempsey? – perguntei, tìmidamente, e reparei que êle, embora bem vestido,
não usava gravata. De súbito fiquei triste, daquela tristeza dos desencontros fatais, dos mal-entendi-
dos irreparáveis, dos acontecimentos que, por muito esperados, decepcionam. Êle disse que não ti-
nha troco, pediu desculpas – Jack Dempsey me pediu desculpas! – e sorriu, amável, como a dizer
que ser reconhecido na rua era uma instância normal de sua vida, mas em todo caso, agradecia. De-
pois se foi, e seus braços não pareciam pretender esmurrar ninguém, nem suas pernas se moviam
ágeis ante nenhum adversário – fiquei olhando. Mãos nos bolsos, caminhando devagar, pacìfica-
mente, êle era um velho e cansado ídolo, que se afastava afinal de minha infância para perder-se
logo na multidão.
O INDESEJÁVEL ESPECTADOR
Alguém se surpreende ao dar comigo à saída de um teatro: ouvi dizer que você não gosta de
teatro, me diz.
Não é verdade. Não gosto é de ir ao teatro, o que é coisa muito diferente. Questão de como-
dismo. Teatro em geral é uma incômoda aventura de paletó e gravata. Há o calor. Seja qual fôr a es-
tação do ano, a idéia de ir ao teatro, mesmo refrigerado, é sempre quente. A pressa ainda esquenta
mais. Mal há tempo de jantar: chega-se atrasado ao teatro, o que é penoso como chegar adiantado
em velório. Há pessoas que também fazem calor, e sempre encontro uma nos intervalos, para dizer
que viu em Paris, com Barrault, não há termo de comparação; que caiu um pouco no segundo ato;
que neste “ela” está muito melhor do que êle.
E então, de pura preguiça, que explico mas não justifico, vou deixando de ir. E um dia me
vejo sentado na platéia como um dois de paus, em meio aos iniciados, o ouvido duro e a atenção re-
belde, voltada para o acessório e distraída do essencial. O leque da vizinha da direita me hipnotiza.
Vem-me o impulso de perguntar “como?”, quando não ouço bem, pedindo ao ator para fazer o favor
de repetir. Compenetro-me de meu papel de espectador em luta com a vontade de acender um ci-
garro. Sinto-me mortificado como se estivesse representando: mêdo de que os atôres esqueçam a
fala, errem, a vez, gaguejem, tropecem em cena – e a responsabilidade, evidentemente, será tôda
minha. Farejo pavoroso incêndio em qualquer cheirinho de fumaça: basta que acendam uma vela no
palco para que eu, da platéia, já imagine a manchete do dia seguinte nos jornais. Fico atento às mi-
nhas mãos, pela traiçoeira tendência que elas têm de aplaudir em hora errada – aquela palminha
única, chôcha, encabulada e sem seguidores é sempre minha. Ou a desastrosa gargalhada fora de
propósito, que faz vários rostos hostis se voltarem. E a vontade de sair, tropeçando em joelhos, ir ao
toalete, beber água, ou simplesmente andar um pouco, respirar ar puro, regressar ao meu feio
mundo cotidiano e improvisado, sem deixas, sem marcações, sem intervalos e, péssimo espectador,
deixar-me devorar pelo espetáculo que no teatro, em suas verdadeiras dimensões de equilíbrio e
harmonia, não sou suficientemente humilde para merecer.
O PREÇO DA CONSULTA
Êle acabava de atender o primeiro cliente e ia mandar entrar outro, quando ouviu um barulho
no corredor. Foi ver o que era.
Era um prêto baixo, forte e desdentado, que ao sair do elevador dera dois passos, vacilara e
caíra mesmo em frente à porta de seu consultório. Várias pessoas tinham acorrido e cercavam agora
o pobre homem:
– Que foi isso, meu Deus – dizia, aflita, uma senhora gordinha, aliás cliente sua, que acabava
de chegar.
– Um médico! Não tem um médico por aqui?
Na porta do consultório estava escrito em letras enormes: “MÉDICO”. Êle se compenetrou:
– Calma, calma. Vamos ver de que se trata. Não fiquem assim tão perto que o homem morre
sufocado.
Agachou-se e tomou o pulso do prêto. Os outros o olhavam com respeito, guardando seu pro-
nunciamento. Sacudiu a cabeça: nada de grave, murmurou. Levantou a pálpebra do homem, desco-
brindo um ôlho branco e esbugalhado: é, não me parece que seja nada grave não. O prêto abriu os
olhos e ficou à espera; como o médico não fizesse mais nada, tentou erguer-se.
– Que aconteceu com você, meu velho? – e o médico ajudou-o a levantar-se.
– Nada…
– Vamos ver isso direito. Venha até aqui no meu consultório.
Avisou à enfermeira que mandasse a gordinha aguardar e levou o homem direto ao seu gabi-
nete.
– O que é que você está sentindo? Pode dizer, eu sou médico.
O prêto balbuciava umas desculpas, mas acabou confessando: fome. Viera a pé de Barra do
Piraí, não encontrava emprêgo, a família doente, o menino também morrendo de fome.
– Deita aqui para eu te examinar.
Não encontrou nada de anormal: devia ser só fome mesmo.
– Pode ficar aí descansando um pouco, se quiser. Vou mandar a enfermeira buscar alguma
coisa para você comer.
– Muito obrigado, eu…
E o prêto, titubeante, se ergueu para sair.
– Você precisa se alimentar, não pode ficar assim.
Indeciso (a gordinha lá fora, esperando), acabou se decidindo por um impulso de generosi-
dade: afinal de contas, numa consulta ganhava pelo menos vinte mil cruzeiros.
– Toma aqui – e estendeu ao homem duas notas de dez.
– Doutor, eu não sei se devo.
– Ora essa! Deixa de bobagem.
– Aceito, porque vou levar para minha família, nem que tenha de voltar a pé.
– Não faça isso: coma, depois compre uma passagem e tome o trem. Olha aqui, se você qui-
ser, volte para a semana que talvez lhe arranje recomendação para um emprêgo. Às vêzes, quem
sabe? Não custa tentar.
O prêto foi-se embora muito agradecido, prometendo rezar pela sua alma. Passou o resto do
dia numa inusitada sensação de bem-estar espiritual: tinha a consciência tranqüila de quem afinal
sempre merecia um pouco de crédito lá no céu.
À tarde, como sempre, voltou para casa em companhia de um amigo, que trabalhava nas ime-
diações. Conversa vai, conversa vem, o outro lhe contava:
– Hoje lá no meu edifício assisti a uma cena realmente dolorosa. Imagine você que um ho-
mem desmaiou de fome ao sair do elevador, perto do meu escritório. Um pobre prêto, veio a pé de
Barra do Piraí até aqui, sabe lá o que é isso? Deixou a mulher doente, o filho morrendo de fome…
– Quanto você deu a êle?
– Mil cruzeiros. Por quê?
– Merecia vinte mil – encerrou êle, categórico.
O IMPÉRIO DA LEI
– Mas meu amigo, isso que o senhor está pretendendo é contra a lei.
– Contra a lei como?
– Contra a lei: existe uma lei regulando a matéria.
– Regulando a matéria? Que matéria?
– O senhor está de brincadeira comigo? A matéria sôbre a qual versa a sua pretensão, falei
claro?
– Claríssimo. E daí?
– Daí o quê?
– Não entendo aonde o senhor quer chegar.
– Eu não quero chegar a lugar nenhum. O senhor é que quer que eu aprove uma pretensão que
incide diretamente contra a lei.
– Lei? Aqui na Prefeitura?
– Aqui na Prefeitura.
– Mas isso nem é Prefeitura mais, é Govêrno do Estado da Guanabara.
– E daí? chegou a minha vez de perguntar. A lei continua a mesma. Não posso decidir contra
a lei.
– O senhor me desculpe, mas longe de mim querer que o senhor decida contra a lei. Eu queria
só que decidisse a meu favor.
– O que vem a dar na mesma.
– Dar na mesma como?
– Decidindo a seu favor eu estou decidindo contra a lei. Morou?
– Morei. Longe de mim pretender uma coisa dessas. Aliás, louvo muito o seu zêlo. No meu
caso, todavia, creio que não há problema: é só aprovar…
– Será possível que o senhor não entenda? Se dependesse de mim, eu aprovava…
– Pois então?
– … mas acontece que a lei é taxativa, diz expressamente que não é permitido.
– O senhor por favor não me leve a mal, mas nunca na minha vida ouvi falar que não fôsse
permitido.
– Nunca ouviu falar, mas nem por isso deixa de ser. Quer ver o texto da lei?
– Só se fôr alguma coisa nova, que eu não conheça.
– Não é não: é antiga pra burro. Eu já lhe mostro. Que o senhor não conhece, está se vendo…
Aqui está ela, olhe só.
– Ah, mas agora estou entendendo! O senhor falava era essa lei aí? Bem vi que havia coisa.
Essa lei eu conheço não é de hoje. Não pegou.
– Como assim?
– Ela não pegou não, o senhor não sabia?
– Quer dizer que lei é feito vacina, umas pegam e outras não pegam.
– Isso mesmo. Essa, por exemplo, não houve jeito de pegar. Pode aprovar, por minha conta!
Puxa, que o senhor chegou a me assustar.
DEZ MINUTOS DE IDADE
A enfermeira surgida de uma porta me impôs silêncio com o dedo junto aos lábios e mandou-
me entrar. Estava nascendo! Era um menino.
Nem bonito nem feio; tem bôca, orelhas, sexo e nariz no seu devido lugar, cinco dedos em
cada mão e em cada pé. Realizou a grande temeridade de nascer, e saiu-se bem da empreitada. Já
enfrentou dez minutos de vida. Ainda traz consigo, nos olhinhos esgazeados, um resto de eterni-
dade.
Portanto, alegremo-nos. A vida também não é bonita nem feia. Tem bôcas que murmuram
preces, orelhas sábias no escutar, sexos que se contentam, perfumes vários para o nariz, mãos que se
apertam, dedos que acariciam, múltiplos caminhos para os pés. É verdade que algumas palavras,
melhor fôra nunca dizê-las, outras nunca escutá-las. Olhos há que procuram ver o que não podem,
alguns narizes se metem onde não devem. Há muito prazer insatisfeito, muito desejo vão. Mãos que
se fecham. Pés que se atropelam. Mas o simples ato de nascer já pressupõe tudo isso, o primeiro ar
que se respira já contém as impurezas do mundo. O primeiro vagido é um desafio. A vida aceitou
um nôvo corpo e o batismo vai traçar-lhe um destino. A luta se inicia: mais um que será salvo. Por-
tanto, alegremo-nos.
Menino sem nome ainda, não te prometo nada. Não sei se terás infância: brinquedos, quintal,
monte de areia, fruta verde, casca de árvore, passarinho, porão de fantasmas, formigas em fila, beira
de rio, galinha no chôco, caco de vidro, pé machucado. O mundo de hoje, tal como o estou vendo da
janela do meu apartamento, desconfio que te reserva para a infância um miraculoso aparelho eletro-
cosmogônico de brincar. Ou apenas uma eterna garrafa de coca-cola e um delicioso chica-bom.
Aceita, menino, êsses inofensivos divertimentos. Leva-os a sério, com tôda aquela seriedade
grave da infância, chupa o chica-bom, bebe a coca-cola, desmonta e torna a montar a miraculosa
máquina de brincar de nosso século que a imaginação de teu pai jamais poderia sequer conceber.
Impõe a essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a sofreguidão da tua bôca, a ou-
sadia de teus olhos e a fôrça de tuas mãos. Imprime a tudo que tocares a alegria que me deste por
nasceres. Qualquer que seja a tua infância, conquista-a, que te abençôo. Dela te nascerá uma con-
vicção. Conquista-a também – e vá viver, em meu nome. Nada te posso dar senão um nome.
Nada te posso dar. No teu primeiro instante de vida minha estrêla não se apagou. Partiu-se em
duas e lá no alto uma delas te espera, será tua. Nada te posso dar senão um nome e esta estrêla. Se
acreditares em estrêla, vai buscá-la.

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