Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A MULHER DO VIZINHO
QUINTA EDIÇÃO
EDITORA SABIÁ
Agradeço a Otto Lara Resende sua contribuição, que não se limitou ao desenho da capa e à
ajuda na escolha dos 70 trabalhos, de preferência os mais curtos, reunidos neste livro – inspirador
e mesmo personagem que vem a ser de vários dêles.
F. S.
ESCRITÓRIO
Aluguei um escritório. Minha senhoria é a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Pe-
nitência – o que quer dizer que começo bem, sob a égide de um santo de minha particular devoção.
Espero que êle me assista nesta grave emergência.
Grave, porque assumi compromisso, com contrato registrado e sacramentado, de cumprir fiel-
mente o regulamento do prédio, na minha nova condição de inquilino. Não posso, por exemplo, ter
explosivos no imóvel, objeto da referida locação – o que significa que os terroristas desta praça não
devem mais contar comigo. Também não posso utilizar-me do mesmo para reuniões subversivas –
estando, pois, assegurado que minhas atividades daqui por diante não ameaçarão mais a ordem vi-
gente nem a segurança do regime. Não posso, outrossim, colocar pregos que danifiquem as paredes.
A Venerável me entrega o imóvel em perfeito estado, e assim deverá ser devolvido, findo o prazo
de locação a que se refere o supradito contrato – automaticamente prorrogável, seja dito a bem da
verdade. Serviu de fiador meu venerável amigo Otto, que responde pelo bom cumprimento das con-
dições estipuladas.
Mas escritório de quê? Advocacia? A tanto não ousaria, sendo certo que minha qualidade de
bacharel nunca me animou sequer a ir buscar o diploma na Faculdade (onde, confio, esteja ainda
bem guardado à minha espera, se dêle precisar para qualquer eventualidade: a de ser inesperada-
mente convocado à vida pública, por exemplo, com uma honrosa nomeação, sacrifício a que seria
difícil esquivar-me). Pelo que, não ousaria, a esta altura da minha vida, iniciar-me na profissão a
que o dito diploma presumivelmente me habilita. Além do mais, eu não poderia mesmo colocar o
prego para dependurá-lo na parede.
Fica sendo então escritório, tão sòmente. Nem mesmo de literatura: apenas um local onde
possa acender diàriamente o forno (no sentido figurado, apresso-me a tranqüilizar o condomínio)
desta padaria literária de cujo produto cotidiano, fresco ou requentado, vou vivendo como São Fran-
cisco é servido. Levo para o meu nôvo covil uma mesa, uma cadeira, a máquina de escrever – e me
instalo, à espera de meus costumeiros clientes.
Estranhos clientes êstes, que entram pela janela, pelas paredes, pelo teto, trazidos pelas vozes
de antigamente, vindos numa página de jornal, ou num simples ruído familiar: projeção de mim
mesmo, ecos de pensamento, fantasmas que se movem apenas na lembrança, figuras feitas de ar e
imaginação.
BURRO-SEM-RABO
São dez horas da manhã. O carreto que contratei para transportar minhas coisas acaba de che-
gar. Vejo sair a mesa, a cadeira, o arquivo, uma estante, meia dúzia de livros, a máquina de escre-
ver. Quatro retratos de criança emoldurados. Um desenho de Portinari, outro de Pancetti. Levo tam-
bém êste cinzeiro. E êste tapête, aqui em casa êle não tem serventia. E esta outra fotografia, ela
pode fazer falta lá.
A mesa é velha, me acompanha desde menino: destas antigas, com uma gradinha de madeira
em volta, como as de tabelião do interior. Gosto dela: curti na sua superfície muita hora de estudo
para fazer prova no ginásio; finquei cotovelos em cima dela noites seguidas, à procura de uma idéia.
Foi de meu pai. É austera, simpática, discreta, acolhedora e digna: lembra meu pai.
Esta cadeira foi presente de Hélio Pellegrino, que também me acompanha desde a infância: é
giratória e de palhinha. Velha também, mas confortável como as amizades duradouras. Mandei re-
formá-la, e tem prestado serviços, inspirando-me sempre a sábia definição de Sinclair Lewis sôbre o
ato de escrever: é a arte de sentar-se numa cadeira.
– Mais alguma coisa? – pergunta o homem que faz o carreto.
– Mais nada – respondo, um pouco humilhado.
E lá vai êle, puxando a sua carroça, no cumprimento da humilde profissão que lhe vale o in-
justo designativo de burro-sem-rabo. Não tendo mais nada a fazer, vou atrás.
Vou atrás, cioso das coisas que êle carrega, as minhas coisas; parte de minha vida, pelo menos
parte material, no que sobrou de tanta atividade dispersa: o meu cabedal.
Pouca coisa, convenhamos. Mas ali dentro daquele arquivo, por exemplo, vão documentos,
originais, cartas recebidas ao longo dos anos, testemunhas do convívio. Vem-me a idéia de que, po-
bres coisas que sejam, com êste mesmo carreto é que subirei um dia para dar conta do que fiz e dei-
xei de fazer cá na Terra. E me esbofarei como um propagandista ambulante, tentando fazer entrar
pela porta estreita esta carga que me sobrou da aflição do espírito e que, burro-sem-rabo, teimosa-
mente transporto comigo ao longo da vida até o seu termo.
MILHO E FUBÁ
Oscar tinha um sítio. Um dia Oscar resolveu levar na camioneta um pouco de esterco do sítio,
que era no interior de Minas, para o jardim de sua casa na capital. Na barreira foi interpelado pelo
guarda:
– O que é que o senhor está levando aí nesse saco?
– Estêrco – respondeu Oscar, farejando aborrecimento: – Por quê? Não lhe cheira bem?
– O senhor tem a guia? – o guarda perguntou, imperturbável.
– Guia?
– É preciso de uma guia, o senhor não sabia disso?
Oscar não sabia. Perguntou ao guarda como é que se arranjava uma guia.
– No Departamento Estadual do Estêrco.
O guarda explicou a Oscar como é que êle devia fazer. Oscar deixou o carro na barreira, pe-
gou uma carona e foi até o DEB, no centro da cidade.
– DEB? Devia ser DEE – observou Oscar.
– Devia ser mas não é – informou o funcionário: – É DEB mesmo. Aliás, isso não é comigo: é
com seu Redelvim, no segundo andar.
Seu Redelvim acabou de rabiscar num papel, repousou a caneta e voltou-se para atendê-lo:
– Em que lhe posso ser útil?
– Dá-se o seguinte – explicou Oscar, muito amável, procurando despertar simpatia: – Eu
trouxe um saco de estêrco do meu sítio…
– Olha o pèzinho na cadeira.
– Como?
– O senhor estava encostando o pé na minha cadeira, isso me dá uma aflição danada – seu Re-
delvim explicou, com vozinha mansa. – Pode prosseguir. Um saco de estêrco, o senhor disse?
– De estêrco – prosseguiu Oscar, e só fazia prestar atenção para não encostar mais o pé na ca-
deira do homem. – Trouxe do meu sítio. Lá embaixo no primeiro andar um funcionário, seu Alcides
se não me engano, me informou que era com o senhor.
Inesperadamente, seu Redelvim se queimou:
– Seu Alcides disse que era comigo? Pois olha, vou lhe dizer uma coisa: eu estava exatamente
redigindo uma representação ao Secretário contra êsse abuso: tudo é comigo, até estêrco! O senhor
já esteve no Serviço de Seleção?
– Seleção de quê?
– De estêrco, ora essa! Meu amigo, tem estêrco de vaca, de galinha, até de passarinho, o se-
nhor pode não acreditar, mas tem.
– Eu acredito – balbuciou Oscar.
– Pois então? – e seu Redelvim sorriu, triunfante.
– O meu é de vaca, se me permite informar.
– Seja do que fôr, o senhor tem de ir ao Serviço de Seleção.
No Serviço de Seleção perguntaram a Oscar quantos quilos de estêrco de vaca êle transpor-
tava. Oscar não soube dizer: um punhado, um saquinho dêste tamanho, mostrou, erguendo as mãos.
O funcionário disse que assim não era possível: tinha de saber o pêso exato. Pesasse o esterco e vol-
tasse, querendo. Oscar perdeu a paciência, deixou escapar um palavrão. Voltou à barreira, pegou
seu carro e regressou ao sítio com o estêrco.
Ao chegar, a mulher lhe disse que êle devia ter corrido um dinheirinho no guarda, ficava tudo
por isso mesmo… Eu venho com o milho e ela já volta com o fubá, resmungou Oscar. Mal compa-
rando.
UM DOADOR UNIVERSAL
Tomo um táxi e mando tocar para o hospital do IPASE. Vou visitar um amigo que foi ope-
rado. O motorista volta-se para mim:
– O senhor não está doente e agora não é hora de visita. Por acaso é médico? Ùltimamente
ando sentindo um negócio esquisito aqui no lombo…
– Não sou médico.
Êle deu uma risadinha:
– Ou não quer dar uma consulta de graça, hein, doutor? É isso mesmo, deixa pra lá. Para dizer
a verdade, não tem cara de médico. Vai doar sangue?
– Quem, eu?
– O senhor mesmo, quem havia de ser? Não tem mais ninguém aqui.
– Tenho cara de quem vai doar sangue?
– Para doar sangue não precisa ter cara, basta ter sangue. O senhor veja o meu caso, por
exemplo. Sempre tive vontade de doar sangue. E doar mesmo, de graça, ali no duro. Deus me livre
de vender meu próprio sangue: não paguei nada por êle. Escuta aqui uma coisa, quer saber o quê
mais? Vou doar meu sangue e é já.
Deteve o táxi à porta do hospital, saltou ao mesmo tempo que eu, foi entrando:
– E é já. Êsse negócio tem de ser assim: a gente sente vontade de fazer uma coisa, pois então
faz e acabou-se. Antes que seja tarde: acabo desperdiçando êsse sangue meu por aí, em algum de-
sastre. Ou então morro e ninguém aproveita. Já imaginou quanto sangue desperdiçado por aí nos
que morrem?
– E nos que não morrem – limitei-me a acrescentar.
– Isso mesmo. E nos que não morrem! Esta eu gostei. Está se vendo que o senhor é môço dis-
tinto. Olha aqui uma coisa, não precisa pagar a corrida.
Deixei-me ficar, perplexo, na portaria (e êle tinha razão, não era hora de visitas) enquanto
uma senhora reclamava seus serviços:
– Meu marido está saindo do hospital, não pode andar direito…
– Que é que tem seu marido, minha senhora?
– Quebrou a perna.
– Então como é que a senhora queria que êle andasse direito?
– Eu não queria. Isto é, queria… Por isso é que estou dizendo – confundiu-se a mulher: – O
seu táxi não está livre?
– O táxi está livre, eu é que não estou. A senhora vai me desculpar, mas vou doar sangue. Ou
hoje ou nunca – e gritou para um enfermeiro que ia passando e que nem o ouviu: – Você aí, ô bran-
quinho, onde é que se doa sangue?
Procurei intervir:
– Atenda a freguesa…. O marido dela…
– Já sei: quebrou a perna e não pode andar direito.
– Teve alta hoje – acudiu a mulher, pressentindo simpatia.
– Não custa nada – insisti: – Êle precisa de táxi. A esta hora…
– Eu queria doar sangue – vacilou êle: – A gente não pode nem fazer uma caridade, pôxa!
– Deixa de fazer uma e faz outra, dá na mesma.
Pensou um pouco, acabou concordando:
– Está bem. Mas então faço o serviço completo: vai de graça. Vamos embora. Cadê o ca-
penga?
Afastou-se com a mulher, e em pouco passava de nôvo por mim, ajudando-a a amparar o ma-
rido, que se arrastava, capengando.
– Vamos, velhinho: te agüenta aí. Cada uma! Ainda acenou para mim de longe, se despe-
dindo.
O AFOGADO
– Vocês não souberam o que aconteceu com o carro dêle?
Como nenhum de nós soubesse, pôs-se a contar-nos, excitado:
– Imaginem que tinha um sujeito se afogando na Praia de Botafogo e vários carros já haviam
parado para ver. Êle parou atrás, junto à calçada. Então veio outro carro em disparada e bateu de
cheio no dêle.
– Estragou muito? – perguntou alguém da roda.
– Espere, não foi tudo: o dêle, por sua vez, bateu no da frente. O da frente atropelou duas mo-
ças que iam passando. Elas ficaram feridas levemente, mas os carros ficaram completamente amas-
sados. O dêle, então, virou sanfona.
– Mas que azar! – comentou um, consternado.
– Logo aquêle carro, novinho em fôlha! – disse outro.
– Pois foi isso: ficou em pandarecos.
– Então vai custar um dinheirão para consertar.
– Não tinha seguro? – tornou o primeiro.
– Êle não, mas o que bateu tem seguro contra terceiros: só que um seguro de cem mil, não dá
para cobrir o estrago de jeito nenhum.
– Além do mais, é um inferno tentar receber seguro nessas situações.
– Foi o que êle me disse. E tem os outros dois carros, que naturalmente vão pleitear parte
dêsse seguro também.
– Mas se a culpa foi do outro, tem que pagar tudo.
– Até provar que a culpa foi do outro…
– Não houve perícia?
– Não, parece que não houve perícia.
A conversa prosseguiu entre comentários em que todos lastimavam a falta de sorte do amigo.
Todos, menos eu, que me limitava a ouvir, pensativo.
– Você não disse nada – observou um deles.
É verdade, eu não disse nada, continuei calado. Não havia muito que dizer, além do que já
fôra dito pelos outros. Mas na realidade gostaria de saber o que foi que aconteceu com o homem
que estava se afogando.
VINHO DE MISSA
Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa
de bordo.
– Vamos à missa? – convidou Ovalle.
O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
– Missa eu? Deus me livre de missa.
– Não entendo – tornou Ovalle, intrigado: – O senhor pede justamente a Deus que o livre da
missa?
– No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colé-
gio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre – isso explica tudo, o senhor não acha?
Êle achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
– Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a
barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a idéia de furtar o vi-
nho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega – e um dia eu
fiz uma sortida ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a traves-
sura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se
denunciar.
Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação
eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um pa-
dre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: “Padre, como é que eu saio desta? Eu pe-
quei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar o padre-diretor descobre tudo, vou ser
castigado”. Êle, então, me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude re-
ceber comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era sus-
penso do colégio.
O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:
– Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, co-
mentou:
– O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
– Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
– O vinho era bom?
– Como?
– Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu, intrigado:
– Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais…. Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
– E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando
nessa asneira?
O homem o olhava, boquiaberto:
– Asneira? Que asneira?
– Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
– O barbeiro? – balbuciou o outro: É verdade…. O barbeiro! – Como é que na época não me
ocorreu…
– Vamos para a missa – ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
PENALIDADE MÁXIMA
Houve um tempo em que êle era môço e ia à praia. Agora era um homem de meia idade, pa-
letó e gravata, de regresso do trabalho, andando ao longo do mar. Lá na areia o futebol ia animado.
Deteve-se, ficou olhando. Futebol de areia era uma coisa que êle nunca chegaria a entender: não ti-
nha graça, a bola não pulava, ganhava efeito. E onde já se viu jogar descalço? Lembrava-se das pe-
sadas chuteiras de seu tempo com rodelas de couro no tornozelo, cordões compridos dando várias
voltas em tôrno do pé. E os cravos na sola, dêste tamanho! de meter mêdo nas bolas altas…
Sorriu, ficou olhando: é verdade que êsses meninos de hoje fazem miséria. Olha só como
aquêle mata a bola no peito, controla no joelho e vai levando a bichinha no ar. Mas chute forte
como os de antigamente êles não têm. No seu tempo…
Ia-se afastando, depois de acompanhar um último lance do jôgo lá na areia, quando um chute
espirrado atirou a bola cá fora na rua e ela veio rolando até seus pés. Olhou para um lado e para ou-
tro: algum conhecido ali por perto, e era uma vez a sua compostura. Não vendo ninguém, ajeitou
cuidadosamente a pelota na marca do pênalte, para cobrar a penalidade máxima. Lá embaixo os ra-
pazes aguardavam. Tomou distância, esperou o apito do juiz e, sob o silêncio de expectativa da tor-
cida, deu um pulinho, veio correndo, desferiu o chute. Sensação no Maracanã! Gol do Brasil.
O chute foi realmente perfeito e a bola executou a trajetória pretendida, indo cair na areia, en-
tre os rapazes. Mas a compostura foi por água abaixo: atrás da bola, como a cápsula de um foguete-
satélite, seguiu o sapato – sapato de verniz, fôra a uma missa de sétimo dia naquela manhã. O sa-
pato ultrapassou a bola e foi cair na areia lambida pelo mar.
Desequilibrado, êle começou a rodopiar, saltitando numa perna só, acabou caindo. Um dos jo-
gadores pescou o sapato e veio trazê-lo. Ajudou-o a erguer-se:
– O senhor se machucou?
– Não foi nada.
– Antes assim.
– Isso acontece…
O rapaz se despediu cordialmente, dando-lhe um tapinha nas costas. Tentou uma careta jovial,
calçou o sapato molhado e saiu chapinhando com êle no asfalto. Fazia fôrça para não capengar –
fôra como se tivesse querido atirar à distância, não a bola, mas a própria perna! Teria distendido al-
gum tendão? Longe da vista dos jogadores, sentou-se no banco da praia com um gemido. Isso acon-
tece – repetiu para si mesmo, conformado.
O MATA-BORRÃO
Uma de suas funções, como membro da Presidência da Câmara, era a de zelar pelos móveis e
demais pertences. Ao conferir a relação, deu por falta de uma mesa, uma cadeira e uma máquina de
escrever. Fêz sindicância e apurou que um deputado simplesmente havia levado aquelas peças para
casa no princípio da legislatura e até então não devolvera. Saiu à procura do ilustre colega:
– Estou fazendo um levantamento – explicou, o mais diplomàticamente que lhe foi possível: –
Queria que você providenciasse a devolução: uma cadeira, uma mesa e uma máquina de escrever,
não é isso mesmo? Naturalmente, você tomou emprestado…
– Eu?
O deputado resmungou umas desculpas, fêz-se de desentendido e tudo ficou por isso mesmo:
os dias iam passando e os objetos não apareciam. O homem ficava meio ressabiado quando cruzava
com êle nos corredores da Câmara:
– Mesa? Que mesa?
– Uma mesa, uma cadeira e uma máquina de escrever.
– Ah, você já me falou no assunto, estou me lembrando agora.
– Então não se esqueça também de devolver.
– Isso mesmo. Louvo o seu zêlo. Não tenha susto, vou providenciar.
– Quando?
– Qualquer dia dêsses.
Às vêzes o sacripanta mudava de tática – limitando-se a bater com a mão espalmada na testa:
– Que cabeça, a minha! Estava certo de já ter devolvido isso! Uma coisa tão à toa…
– À toa para você. São bens públicos: pertencem à União.
– Não precisa falar nesse tom, que diabo! Está duvidando de minha palavra?
– Estou querendo os objetos de volta.
– Não vamos brigar por causa de uma bobagem.
– Bobagem não: uma cadeira, uma mesa e uma máquina de escrever.
Um dia êle acabou perdendo a paciência e chamou seu relapso colega à Secretaria:
– Você é um deputado, compenetre-se! Já imaginou o escândalo que seria se essa história
transpirasse? Você, um parlamentar, envolvido num caso de desvio de bens da Câmara dos Deputa-
dos!
E, irritado, bateu na mesa com o mata-borrão:
– Se até amanhã à tarde você não tiver devolvido a cadeira, a mesa e a máquina de escrever,
mando um caminhão buscar em sua casa e conto para os jornais, faço um barulho louco.
O outro se viu perdido:
– Está bem, eu devolvo – resmungou, afinal, humildemente, depois de pensar um pouco. E
acrescentou, como um menino teimoso: – Mas só se você der para mim êsse mata-borrão.
O MELHOR AMIGO
A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou
um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo,
deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido, tentou
ainda ganhar tempo:
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la. Veio cami-
nhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que êle faz.
– Trate de levar embora êsse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe…. – já compondo uma cara de chôro.
– Tem dez minutos para botar êsse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa.
Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado: a
gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco.
Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou esperando a
reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não faço mais
nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de nôvo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apêlo: tinha dez minutos para brincar com seu
nôvo amigo, e depois… Ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva êsse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais ninguém
nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Êle saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa
idade, uma injustiça praticada e êles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa tôda…
Meia hora depois, o menino voltava da rua, radiante:
– Pronto, mamãe! E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor
amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que êle dava – murmurou, pensativo.
NUMA CURVA DA ESTRADA
Ao dobrar uma curva da estrada, vejo de relance o automóvel conversível cruzar-se com o
meu, a caminho de Petrópolis. Olho para trás, espantado: a minha barata!
Até hoje não me esqueço do dia em que me vi motorizado pela primeira vez, em plena Copa-
cabana, graças a um generoso presente de meu irmão, que comprara outro carro.
Atrás do volante de uma poderosa barata conversível a que ninguém diante de mim ousaria
chamar de calhambeque – e hoje em dia nem ao menos de barata – considerei-me desde logo o Rei
da Zona Sul, até que o primeiro fiscal de trânsito me multasse. Em vão tentei convencê-lo de que
passara por cima da calçada ao fazer a curva porque a traseira da conversível era maior do que su-
punha a minha vã sabedoria.
No dia seguinte sofreria humilhação maior, ao retirá-la com estrépito da garagem, numa im-
prudente marcha ré que levou de arrastão a bicicleta do quitandeiro, carregada de laranjas e ovos.
Os ovos se espatifaram numa chuva de claras e gemas, as laranjas se espalharam pela rua. Era inútil
– sorria eu, como explicação aos curiosos que logo me cercaram: não podia sair de cima da bicicleta
do homem, com a roda já em forma de oito, simplesmente porque naquele instante não havia meios
de fazer o motor funcionar.
Tinha o estranho capricho de não funcionar nas circunstâncias mais embaraçosas. Assim
aconteceu dentro do Túnel Nôvo, à frente de um bonde; no Largo da Carioca, à espera do sinal; na
Rua 1.º de Março, às cinco horas da tarde. Nesta última vez, um prestimoso chofer de caminhão se
dispôs a empurrar-me, mas o fêz com tanta galhardia que para não abalroar o carro que me ia à
frente, entrei prudentemente na Rua do Ouvidor e me transformei em monumento.
Um mecânico de nome Mundial se dispunha a comprá-la, mas, quando o procurei para efeti-
var a transação, humilhou-me dizendo que gastara o dinheiro adquirindo um terno meia-confecção.
Vergonha para mim, que me tornara íntimo de todos os Mecânicos do Rio de Janeiro e adjacências!
Quando finalmente a vendi (seu dono me disse que a transformaria em camioneta, para trans-
porte de produtos de sua fazenda) não quis nem olhar da janela para vê-la partir. A minha poderosa
conversível, glorificado, durante meu reinado sem coroa e sem capota, prestando-se a transporte de
bananas, aves e porcos! No fundo temia que não dessa partida e o homem voltasse para que eu lhe
devolvesse o dinheiro.
Pois agora vejo-a passar por mim numa curva da estrada. Ainda funciona, louvado seja meu
irmão! Vou pensando num momento já perdido para sempre, do qual aquêle carro foi apenas a parte
mais pitoresca. E no homem ainda tonto de mocidade, a quem êle transportava para lugar ne-
nhum… Nada como um carro depois de outro! – concluo então. E acelero, mais conformado, em di-
reção ao futuro.
A MULHER DO VIZINHO
Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava
(ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia.
Ora, às vêzes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a
paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho.
O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.
O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante
industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente êle o era. Obede-
cendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo
o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte:
– O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer?
Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de conhecer as
leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada Exército Brasileiro, que o senhor tem de res-
peitar? Que negócio é êsse? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem
entende, como se isso aqui fôsse a casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro:
“dura lex”! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o
General, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.
Tudo isto com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um
canto. O vizinho do general pediu, com delicadeza, licença para se retirar. Foi então que a mulher
do vizinho do general interveio:
– Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?
O delegado apenas olhou-a, espantado com o atrevimento.
– Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não é
gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso importunaram o General, êle que viesse falar
comigo, pois o senhor também está nos importunando. E fique sabendo que sou brasileira, sou
prima de um Major do Exército, sobrinha de um Coronel, e filha de um General! Morou?
Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em sêco e balbuciar humildemente:
– Da ativa, minha senhora?
E, ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços, desalentado:
– Da ativa, Motinha. Sai dessa.
NOTÍCIA DE JORNAL
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de côr branca, 30
anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade,
permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto
Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que
acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso
(morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem
de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser identifi-
cado. Nada se sabe dêle, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na
rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um
proscrito, um bicho, uma coisa – não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de
passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que
morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar ne-
nhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sòzinho, isolado, perdido entre os homens,
sem socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser
da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome,
diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo provi-
dências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem.
Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer se-
não esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais
movimentada da Cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
OPERAÇÃO-LEBRE
Os serventuários da Justiça voltam a falar numa operação-tartaruga – desta vez a propósito do
anunciado aumento de custas. Consiste a referida operação em reduzir as atividades ao mínimo ne-
cessário para o andamento dos serviços.
Acredito que o recurso seja eficiente. Sempre acreditei no lema da tartaruga: devagar e sem-
pre – com o qual logrou vencer a própria lebre naquela célebre corrida.
Mas operação-tartaruga (que os serventuários me desculpem, também já fui um deles) a nossa
justiça sempre fêz. Ocorreu-me sugerir então aos meus ex-colegas uma operação-lebre, certamente
de muito mais efeito, salvo melhor juízo.
– Quéde o processo que estava aqui?
– Lebre comeu.
– Como?!
– Foi despachado.
– Já? Que diz o despacho?
– “Expeça-se o alvará”. Foi expedido.
– Expedido? Se não faz nem quinze minutos…
– E já foi cumprido, o prêso já foi sôlto…
– Foi sôlto como, senhor! Que brincadeira é essa?
– … e já tornou a delinqüir, foi prêso de nôvo, autuado, indiciado, processado, condenado, e
está cumprindo pena.
O advogado entra descansadamente no cartório:
– Conversei com o perito. Prometeu o laudo para esta semana, sem falta. Queria que você fi-
zesse…
O escrevente não o deixa terminar:
– Já fiz. O laudo já está aqui, fiz a juntada, abri vista para a outra parte, já falou, todos os fis-
cais já falaram, fiz conclusão para sentença.
– Será que o juiz decide ainda êste mês?
– Já decidiu. O senhor teve ganho de causa. A sentença foi registrada, publicada e já está cer-
tificada.
– Quer dizer que, se a outra parte não recorrer…
– Já recorreu. A petição foi despachada, juntada, autos conclusos, alegação procedente, nova
sentença: senhor perdeu a questão.
– Não é possível! Também posso recorrer da sentença.
– Podia, não pode mais: já transitou em julgado.
– Que transitou em julgado coisa nenhuma! Estou dentro do prazo.
– Prazo? Que prazo? O mandado já foi expedido, o pagamento já foi feito, o processo já foi
arquivado. Operação-lebre, meu amigo.
E, se o advogado ousa protestar, o escrevente acolhe imediatamente a reclamação em forma
de petição, colhe assinatura, autua, abre conclusão e cobra as custas, por ser de integral JUSTIÇA!
antes que o advogado fale gato.
Ou lebre.
ISENÇÃO DE ÂNIMO
Redator de um vespertino desde a sua fundação, tendo comprado um apartamento, foi à repar-
tição dar entrada nos papéis requerendo isenção de impôsto de transmissão, como jornalista. Um
funcionário pálido e de bigodinho antipático o atendeu. Depois de examinar os documentos, sorriu
sadicamente:
– O senhor não vai conseguir isenção.
– Posso saber por quê? – perguntou o jornalista.
– Porque – explicou o homenzinho, juntando os dedos no ar e escandindo as palavras com
precisão – estou aqui para selecionar os papéis.
– Isso não quer dizer que eu não consiga a isenção.
– Perdão: e quem disse que os seus papéis estão em ordem?
– Então examine e veja se não estão.
O funcionário começou a examinar meticulosamente os papéis, com um sorriso de quem diz:
“Já lhe mostro…. Já lhe mostro….” E mostrou mesmo:
– Olha aqui, falta reconhecer a firma dêste documento.
Continuou a procurar, mas não encontrou qualquer outra irregularidade.
– Ainda assim, posso assegurar-lhe que não vai conseguir – afirmou, com delicadeza profissi-
onal.
– Não vou conseguir por quê? estourou o jornalista.
– Não se exalte. Não se exalte. Estou aqui para selecionar… Fazemos rigorosa sindicância nos
jornais. O seu nome não deve constar nas fôlhas de pagamento.
– Pois fique sabendo que consta.
– Um momentinho! – interrompeu o funcionário: – Não deve constar do registro no Ministé-
rio do Trabalho.
– Consta também.
– Pode ser, pode ser…. Mas o senhor não vai conseguir.
– Pois se não conseguir vou à Justiça, faço valer os meus direitos. O senhor vai ver só.
– Duvidê-ó-dó… – suspirou o funcionário.
E voltou-se polidamente para outro cidadão que esperava a sua vez:
– O senhor? Em que lhe posso ser útil?
– Dar entrada nestes papéis – disse o homem com truculência.
– Isenção? Deixa ver aqui…. O senhor não vai conseguir.
– Por quê?
– O documento diz aqui: “Por ter servido durante a guerra…” servido! e não prestado serviço.
Meu amigo, há uma diferença entre servir e prestar serviço. Servir é compulsório; prestar serviço,
quer dizer: fazer algum serviço vo-lun-tà-ria-men-te. O senhor não vai conseguir.
– Se não conseguir eu pago o impôsto – resignou-se o homem.
– O problema é seu – encerrou o funcionário: – Estou aqui para selecionar os papéis.
O CORAÇÃO DO VIOLINISTA
De repente, meu amigo tentou liquidar a discussão, dizendo que bateria não era instrumento
de música.
– Como não é instrumento de música? É instrumento de quê, então?
– De jazz.
– E jazz não é música?
– Música para você: para mim não é.
– Tôda orquestra sinfônica tem bateria.
– Nem por isso ela fica sendo instrumento de música.
– Por que não?
– Tôda orquestra sinfônica tem maestro. Maestro é instrumento de música?
– Em certo sentido, é.
– Ora, você está é bêbado.
Discutíamos por discutir, levados pela necessidade de manter aceso o interêsse da conversa,
enquanto tomávamos a nossa cerveja. Meu amigo voltou à carga:
– Você não entende de instrumento de música. Se entende, me diga uma coisa: bateria é ins-
trumento de percussão, não é isso mesmo?
– Tenho a impressão que sim.
– Tem a impressão, não: é instrumento de percussão. Agora me diga uma coisa: o piano. O pi-
ano é instrumento de corda ou de percussão?
Embatuquei. Sempre tivera o piano na conta de instrumento de corda, ora essa era muito boa.
Mas o diabo daqueles martelinhos lá dentro, percutindo nas cordas…. Percussão?
– De corda – arrisquei.
– Não senhor: de percussão – arrematou êle, triunfante, e chamou o garçom com um gesto,
pedindo outra cerveja.
Veio-me a certeza de que se eu tivesse falado “de percussão”, êle diria: “não senhor: de
corda”. Agarrei-me à corda:
– Percussão aonde, senhor! De corda.
– Percussão.
– Corda.
Dali partiríamos para os sopapos, se de súbito não tivesse entrado no bar o violinista triste.
Vinha de um programa de televisão, onde mal aparecia, na terceira fila de uma orquestra. Mas não
era por isso que ùltimamente vivia triste: andava apaixonado, sabia-se, e não tivera ainda nem cora-
gem de se declarar à sua amada, “uma mulher pra muito luxo”, dizia êle. Foi sentar-se a um canto,
como sempre, pediu um conhaque. Imediatamente o convocamos para a nossa mesa, e veio, olhos
de vaca mansa, trazendo seu cálice. Para êle tanto fazia sentar-se nesta como naquela, ora dane-se!
estava apaixonado.
– Você que é músico de verdade vai dizer aqui uma última palavra: bateria é ou não é instru-
mento de música?
– Piano é instrumento de percussão ou de corda?
Mas o violinista triste não queria saber de nada, muito menos de conversa fiada de botequim.
Largou-nos um olhar desconsolado, soltou um suspiro que era um mugido tristíssimo, ergueu-se, le-
vando o cálice ao peito:
– E o coração… É instrumento de sôpro ou de percussão?
ABRE O ÔLHO, CAMILO
Hoje pela manhã a campainha do telefone me acordou: alguém queria falar comigo.
– Quem?
– O Camilo. Como vai o senhor?
– Vou bem obrigado. Mas quem é mesmo que está falando?
– O Camilo: não está conhecendo a minha voz?
– Que Camilo?
Era evidente que eu não estava conhecendo a voz do Camilo. Êle se pôs a rir, mineirão:
– Que é isso, doutor? o Camilo, do Beco dos Perdões…. Não se lembra?
– Ah, sim, do Beco dos Perdões…
Mas eu não me lembrava mesmo:
– O senhor vai me desculpar, seu Camilo, tenho uma memória péssima: não estou me lem-
brando não. Beco dos Perdões, o senhor disse? Onde fica isso?
O homem então falou em Juiz de Fora, mas, como eu continuasse na mesma, acabou estra-
nhando, repetiu meu nome, perguntou se era realmente comigo que êle estava falando. Eu disse que
era.
– O escritor?
– Sim. A menos que haja outro com o mesmo nome.
– Então não tem dúvida – insistiu êle, a voz já meio aborrecida: – É o senhor, não há outro
não. Não entendo o que está acontecendo…
Quem se aborrecia agora era eu:
– E eu muito menos, companheiro.
Êle voltou à carga:
– É o Camilo, doutor. Será possível?
– Que Camilo? – perguntei conformado. Ia começar tudo de nôvo: o Beco dos Perdões, etc…
– Está bem, é o Camilo: e daí?
– O senhor não costuma aparecer tôda tarde no Ministério da Agricultura?
– Absolutamente: nunca na minha vida fui ao Ministério da Agricultura.
– Então não compreendo – suspirou êle, desapontado.
– Nem eu – respondi.
– É o Camilo, doutor – êle se lamuriou ainda.
– Você já me disse, ó Camilo – e como o Camilo não falasse mais nada, acabei desligando o
telefone.
Agora estou aqui pensando no que diabo êsse Camilo queria comigo. Eu devia ter perguntado.
Que não está me tomando por outra pessoa é evidente, desde que declinou meu nome, minha condi-
ção de escritor. A menos que eu seja mesmo outra pessoa. Um golpe de esperteza não pode ser, pois
está se vendo que o Camilo ficou desapontado porque eu não me lembrava dêle. Donde se conclui
que o golpe deve ser de outra pessoa contra êle, e não dêle contra mim. Cuidado, Camilo, que tem
alguém usando meu nome para te fazer de bôbo, lá no Ministério da Agricultura. Abre o ôlho com
êle.
A menos que eu é que esteja usando o nome dêsse outro para te fazer de assunto. Neste caso,
abre o ôlho comigo.
VALE POR DOIS
Pela manhã, ao sair de casa, olha antes à janela:
– Estará fazendo frio ou calor?
Veste um terno de casimira, torna a tirar, põe um de tropical. Já pronto para sair, conclui que
está frio, devia ter ficado com o de casimira. Enfim… Consulta aflitivamente o céu nublado: será
que vai chover?
Volta para pegar o guarda-chuva – um homem prevenido vale por dois: pode ser que chova.
Já no elevador, resolve mudar de idéia: mas também pode ser que não chova. Carregar êsse trambô-
lho! Torna a subir, larga em casa o guarda-chuva.
Já na esquina, coça a cabeça, irresoluto: de ônibus ou de táxi? Se passar um ônibus jeitoso eu
tomo. Eis que aparece um: não é jeitoso. Vem em disparada, quase o atropela, para deter-se ao sinal
que lhe fêz. Não, não entro: êsse é dos doidos, que saem alucinados por aí.
Deixa que outros passageiros entrem – quando afinal se decide também a entrar, é barrado
pelo motorista: não tem mais lugar. De táxi, pois. Passa um táxi vazio, fica na dúvida, não lhe faz
sinal algum. Logo virá outro – pensa, irritado, e se vê de súbito entrando num ônibus. Ainda bem
não se sentara, já se arrependia: é um absurdo, são desvairados êsses motoristas, como é que deixam
gente assim tirar carteira? Assassinos – assassinos do volante. Melhor saltar aqui, logo de uma vez.
Poderia esperar mais dois ou três quarteirões, ficaria mais perto… Deu o sinal: salto aqui, decidiu-
se. O ônibus parou.
– Pode tocar, foi engano – balbuciou para o motorista.
Já de pé na calçada, vacila entre as duas ruas que se oferecem: uma, mais longa, sombreada;
outra, direta, castigada pelo sol. Não vai chover, pois: sua primeira vitória neste dia.
– Se fôr por esta rua, chego atrasado, mas por esta outra, com tanto calor…
Só então se lembra que ainda não tomou café. Entra no bar da esquina e senta-se numa das
mesas:
– Um cafèzinho.
O garçom lhe informa que não servem cafèzinho nas mesas, só no balcão. Pensa em levantar-
se, chega mesmo a empurrar a cadeira para trás, mas reage: pois então tomará outra coisa, ora essa.
Como também pode simplesmente sair do bar sem tomar nada, não é isso mesmo?
– Me traga uma média – ordena, com voz segura que a si mesmo espantou. Interiormente sorri
de felicidade – mais um problema resolvido.
– Simples ou com leite? – pergunta o garçom, antes de servir.
Êle ergue os olhos aflitos para o seu algoz, e sente vontade de chorar.
O REVÓLVER DO SENADOR
O senador ainda estava na cama, lendo calmamente os jornais, e eram dez horas da manhã.
Súbito ouve a voz do netinho de quatro anos de idade por detrás da fôlha aberta, bem junto de sua
cabeça:
– Vovô, eu vou te matar.
Abaixou o jornal e viu, aterrorizado, que o menino empunhava com as duas mãos o revólver
apanhado na gaveta da cabeceira. Sempre tivera a arma ali ao seu alcance, para qualquer eventuali-
dade, carregada e com uma bala na agulha. Nunca essa eventualidade se dera, na longa seqüência de
riscos e tropeços que a política lhe proporcionara. No entanto, ali estava, agora, apanhado de sur-
prêsa, sob a mira de um revólver. O menino começou a rir de sua cara de espanto:
– Eu vou te matar – repetiu, dedinho já no gatilho.
O menor gesto precipitado e a arma dispararia. Pensou em estender o braço e ao menos afastar
o cano de sua testa, que já começava a porejar suor. Mas temeu o susto da criança, o dedo se con-
traindo no gatilho…. Tentou falar e de seus lábios saíram apenas sons roufenhos e mal articulados.
– Não me mata não – gaguejou, afinal: – Você é tão bonzinho…
– Pum! Pum! – e o demônio do menino, sempre a rir, só fêz dar um passo para trás, que o co-
locou fora de seu alcance. Agora estava perdido.
– Cuidado, que tem bala… – deixou escapar, e a voz de nôvo lhe faltou. Tôda uma vida de lu-
tas e conquistas que terminava ali, estùpidamente, nas mãos de uma criança – de que adiantara?
Tudo aflição de espírito e esforço vão. Se alguém entrasse no quarto de repente, a mãe, a avó do
menino… Que é isso, menino! Você mata seu avô! Com o susto… Sentia o pijama já empapado de
suor. Era preciso fazer alguma coisa, terminar logo com aquela agonia. Estendeu mansamente o
braço trêmulo:
– Me dá isso aqui…
– Mãos ao alto! – berrou o menino, ameaçador, dando outro passo para trás, e as mãos peque-
ninas se firmaram ainda mais no cabo da arma.
O Senador não teve outra coisa a fazer senão obedecer. E assim se compôs o quadro grotesco:
o velho com os braços erguidos, o guri a dominá-lo com o revólver. De repente, porém, o telefone
tocou.
– Atende aí – pediu o Senador, num sôpro.
Estava salvo: o menino tomou do fone, descobrindo brinquedo nôvo, e abaixou o revólver. O
Senador aproveitou a trégua para apoderar-se da arma. Então pôs-se a tremer, descontrolado, en-
quanto retirava as balas com dedos aflitos. O menino começou a chorar:
– Me dá! Me dá!
A mulher do Senador vinha entrando:
– Que foi que você fêz com êle? Está com uma cara esquisita…
– Nada não. Só que acabo de nascer de nôvo – explicou simplesmente.
LEMBRANÇA DE OURO PRÊTO
De automóvel não se chega a Ouro Prêto: brota-se em pleno centro da cidade, ao pé da estátua
de Tiradentes. É aquela côr esbranquiçada de osso muito sêco e esquecido há séculos sob a luz do
sol – tonalidade que nenhum pintor surpreendeu ainda – a da cidade morta e descarnada.
Na janela uma velha desdentada espia a rua. Está ali há cento e cinqüenta anos. Me lembro do
museu – se eu perguntar pelo museu, ela é capaz de me indicar o caminho.
– Pela rua da escadinha?
–…
– Mas me desculpe, meu carro não sobe escadinha.
–…
– Não há outro caminho?
– … o museu?
– Sim, o museu.
Ela sacode a cabeça como se estivesse viva:
– Môço, a cidade tôda é um museu.
Com essa, arrepio caminho – a cidade me repele, repele os automóveis: para reencontrá-la eu
devia ter vindo a pé, palmilhando a poeira das longas estradas de Minas.
Então vou comprar de lembrança uns objetos de pedra-sabão. E me despeço, sem ter encon-
trado, em apenas meia hora de passagem, a lembrança de outros dias. Naquele clube houve um
baile: vermelho, estrêlas, coração. Na sacada em penumbra comparei a um raio de lua a lívida mão
de namorada que pousou na minha mão. E outras emoções de juventude ainda mais puras, que estas
ladeiras testemunharam: encontros, desejos, promessas de amor – ânsia de eternidade de um candi-
dato ao esquecimento. E foi um instante apenas, muito fugaz para ser lembrado, é pouco, o tempo é
pouco, tenho de partir.
– Quanto tempo o senhor acha que eu precisava para rever Ouro Prêto, visitar essas igrejas,
dar uma olhada em tudo isso?
– Uns cinqüenta anos, talvez nem tanto – responde o velho, coçando a barba, irresoluto.
Descubro, então, que está ali outro tanto, naquela esquina, esperando um encontro qualquer –
talvez comigo – que desvende para êle o mistério de Ouro Prêto e a fatalidade que o faz habitante.
SÓSIA
Não há quem não seja um dia confundido com outra pessoa. Mas não como êle que volta e
meia recebe cumprimentos de desconhecidos e às vêzes chega mesmo a ser abordado na rua de ma-
neira inesperada:
– Como é, quando é que você aparece?
– O negócio continua firme?
– O pessoal está afiado, hein?
Não tem a mais longínqua idéia de que pessoal se trata, mas sorri e vai seguindo. Sabe que o
tomam por outro, não se incomoda:
– Deve ser um sujeito bastante popular. Ainda não pude descobrir quem é, mas não tem
dúvida que se parece comigo.
Deixou-se tomar de íntima satisfação por empréstimo, quando foi felicitado por mais de um
“O senhor estêve magnífico!” Algum político? Um jornalista desabusado? Artista de televisão?
Quem sabe algum delegado de polícia em evidência pela apuração de um crime? Um dia foi apon-
tado na esquina por um cidadão,a título de cumprimento: “gostei de ver! Assim é que se faz. Dê
duro nessa gente!” Antes que pudesse aproximar-se para esclarecer o comentário, o outro saltou
num ônibus que passava, arrematando:
– E não tenha mêdo, que êles não são de nada!
Desta êle não gostou. Deduziu que seu presumível sósia devia estar se metendo em perigosas
empreitadas, que não são muito de seu temperamento. Começou a ficar apreensivo ao receber na
rua alguns olhares hostis, e chegou a temer sèriamente pela sua sorte ao ser cumprimentado de pas-
sagem por alguém: “Cuidado, você anda facilitando!”
Há pouco tempo, um capitão do Exército o deteve na Avenida e foi logo dizendo:
– Pode passar lá para receber que já está tudo arranjado. Desta vez não haverá complicação al-
guma.
Intimidado, preferiu não esclarecer o equívoco. Agradeceu e ia seguindo seu caminho, mas
um súbito impulso o fêz mudar de idéia. Deteve-se, chamou o outro:
– Olha aqui, capitão, não vou passar lá coisa nenhuma. Se der complicação, tanto melhor. Que
se danem.
E foi-se embora, deixando o capitão estatelado de surprêsa.
– Desta vez atrapalhei um negocinho dêle – conta-me, esfregando as mãos alegremente: –
Para usar a minha cara daqui por diante vai ter de me pedir licença.
SARDINHAS DO BÁLTICO
Entrou num botequim, pediu cerveja e sanduíche de sardinha. De repente surgiu o outro, con-
siderado o Prêmio Nobel da Mitomania. “Estou perdido”, lastimou-se êle: “se não tivesse encomen-
dado ao garçom, era o caso de dar o fora”.
– Não sei como é que você tem coragem de comer sardinha brasileira – comentou o chato,
aboletando-se a seu lado.
– Brasileira, não: portuguêsa – resmungou.
– Dá na mesma. Sardinha é a do Báltico. É a melhor do mundo, você sabe disso.
– Não sabia não. E seria muito perguntar onde é que se pode comer sardinha do Báltico?
– Em lugar nenhum, a não ser no Báltico.
– E você já estêve no Báltico?
– Não. Isto é, já, mas há muito tempo. Mas tenho aí meus macêtes, o que é que há? Mando
importar diretamente.
– Manda importar diretamente o quê?
– Sardinha do Báltico. Qualquer dia dêsses você aparece lá em casa para experimentar, uma
delícia.
– Escuta, eu não sou de comer sardinha. Só porque hoje…
Acabou perdendo a paciência:
– Quer saber de uma coisa? Vai ser agora, então. Vamos até lá.
O outro vacilou:
– Hoje está meio tarde… Minha mulher já deve estar dormindo.
– Pois eu gostaria de experimentar é hoje. Não sei por que, me deu de repente uma vontade
desgraçada de comer sardinha do Báltico.
– Já que você insiste…
Saíram juntos, e êle caminhava duro, decidido a ir até o fim. Sardinhas do Báltico! Tiveram
de entrar pela cozinha, e êle se prevenia contra qualquer pretexto do outro para escapar. Desta vez o
apanhara. A carta do Hemingway que acabara de receber, pena que tivesse deixado em casa; sua
amizade com Chaplin; a viagem que fizera numa jangada; sua atuação no passado, como integrante
do selecionado brasileiro de futebol! Desta vez, porém, estava perdido. Sardinhas do Báltico.
– Espere um instante, que minha mulher é que sabe onde estão.
E o homem foi lá dentro. Via-se que estava sem jeito, completamente encafifado. Em pouco
voltava, carregando uma pilha de latas:
– Ela mandou pedir desculpas por não aparecer, você não repare, já estava recolhida. Olhe aí,
tem de diversas marcas. Vamos experimentar esta aqui, na minha opinião é a melhor.
Êle tomou das latas e pôs-se a examiná-las com cuidado. Teve de render-se à evidência: eram
latas de sardinha, não havia dúvida. E tôdas do Báltico.
A VOLTA
Já não me lembro se foi lido, inventado, escrito por mim mesmo ou contado por alguém. O
certo é que êle, ao dobrar uma esquina, esbarrou com um velho amigo, a quem não via desde os
tempos de mocidade.
– Mas você!
– Não me diga.
– Quanto tempo, senhor!
Antes que dessem por terminada a efusão do encontro, outro amigo daquele tempo saltou de
um ônibus exatamente diante deles. Era muita coincidência. Passado o primeiro instante de perple-
xidade, vieram os abraços, as indagações, a satisfação de riso fácil, as lembranças misturadas da an-
tiga convivência.
– Mas, positivamente, está pedindo uma celebração.
E os três, confraternizados na alegria do encontro, se encaminharam imediatamente para um
bar.
Os outros dois trocavam confidências. Êle se deixou ficar meio à margem, renovando fre-
qüentemente o copo, e sorrindo à lembrança de outro tempo, que lhe voltava agora, vagamente me-
lancólica. Quis partir, mas instaram com êle que ficasse:
– Espere aí, ainda nem começamos. Temos muito que conversar.
– A noite é uma criança, mal acabada de nascer.
– Hoje é dia de enchermos a alma até o rabo, como antigamente.
– Vamos em frente! Ou você já deixou que a mulher lhe pusesse o cabresto?
Acabou ficando, e entraram pela noite, passando de um a outro bar. Limitou-se a acompanhá-
los, bebendo sempre, no início pouco à vontade, como um intruso a invadir território que já não lhe
pertencia. A horas tantas, quando a conversa de fim de noite já se arrastava, pôs-se a dormir, derre-
ado na cadeira. Chegara a hora da retirada e não houve fôrça humana que o fizesse suster-se sôbre
as pernas. Os outros dois, um pouco melhorzinhos, se entreolharam:
– Vamos ter de levá-lo.
– Eu por mim ainda tomava mais um.
Carregaram-no aos trambolhões até um táxi e mandaram tocar para a sua casa, de cuja direção
ainda se lembravam.
– Até que êle não bebeu tanto assim.
– Você também não está muito bom das pernas.
– A alma vai bem, mas o corpo não ajuda!
– Já fomos melhores, meu velho.
Chegaram. Subiram com dificuldade a escada até a varanda, amparando o amigo, tocaram a
campainha. Diante da mulher, a quem provàvelmente haviam tirado da cama, esboçaram uma expli-
cação, mas as palavras acudiam difíceis. Ela se limitou a olhá-los, silenciosa. Confiaram-lhe então a
sua carga e bateram em retirada, antes que as coisas se complicassem. Ainda tiveram ânimo de to-
mar um último no botequim da esquina.
Na manhã seguinte, vítima da maior ressaca dêste mundo, êle acordou sem saber onde estava.
Aquêle quarto não lhe era estranho, mas… De súbito uma voz de mulher, voz que em outro tempo
já lhe dissera alguma coisa, sussurrando lá fora, na sala:
– Não faz barulho não, filhinho, que seu pai voltou, está dormindo aí no quarto.
A CULPA DA SOCIEDADE
Ajuntamento na Praça 15. Um rapaz de côr preta, rodeado de caras e dedos acusadores,
olhava envergonhado para o chão.
– No ônibus. Quando a mulher olhou… Ladrão!
– Ladrão não senhor – ousou protestar o prêto: – Não cheguei a roubar.
– Não chegou porque não deu tempo. Ora essa é muito boa: não chegou a roubar!
E o senhor gordo e meio calvo que o acusava segurou-o pelo pulso:
– Desta você não escapa, ladrão. E o guarda? Já chamaram o guarda?
Ninguém se movia para chamar o guarda. Todos queriam saber o que havia acontecido.
– Imagine o senhor – e o gordo acusador voltou-se para mim – que êste porcaria estava num
ônibus ao lado de uma senhora, e mete a mão na bolsa dela para furtar dinheiro. Se não fôsse eu es-
tar olhando… Foi apanhado com a bôca… com a mão… com a bôlsa…
Vim em sua ajuda:
– Com a bôca na botija.
– Isso – confirmou êle: – Na botija. Agora está dizendo que não chegou a roubar. Ah! Não
chegou porque não deixei, essa é muito boa. E o guarda? Onde está êsse guarda?
– Não houve flagrante – resmungou o prêto.
– Já viu só? Ainda por cima vem dizer que não houve flagrante. Ladrão!
– A culpa não foi minha.
– Não foi sua? – e o gordo lhe deu um safanão: – Mete a mão na bôlsa da mulher e depois diz
que a culpa não é dêle. De quem é a culpa, então? Minha?
– Da sociedade.
Todos os olhares se voltaram para o prêto, respeitosamente estupefatos. Por essa ninguém
contava: a culpa da sociedade. Um carro buzinou pedindo passagem. O passageiro do carro in-
clinou-se para fora:
– Psiu! Ô Souto! Que diabo você está fazendo aí?
O acusador do prêto voltou-se vivamente ao chamado:
– Ah, Dr. Faria! Quanto prazer… Imagine o senhor… Eu… Êste homem aqui…
Acabou largando o braço do prêto e se aproximou do carro.
– Vamos para Copacabana – ordenou o outro: – Entre aí.
Enquanto isso, alguém sussurrava aos ouvidos do prêto:
– Aproveita agora, foge.
Êsse alguém era eu. O rapaz voltou-se para mim, impassível:
– Fugir por quê? Não fiz nada. Não houve flagrante.
O Dr. Faria abria naquele instante a porta de seu carro e o Souto entrava lampeiro, esquecido
de sua vítima. O prêto pôs as mãos nos bolsos e afastou-se em passos lentos, sem ser molestado.
NONE, BUT A LONELY HEART
O elevador da frente não estava funcionando. Entrei pela porta dos fundos:
– Queria ver o apartamento.
O homem que me introduziu à cozinha, mecânico ou garagista – pelo menos vestia um maca-
cão da Shell – comia uma banana de sobremesa: via-se pelo prato com resto de comida, sôbre o
mármore da pia, que acabava de almoçar.
– É muito grande, muito espaçoso. Por aqui.
Eu ainda não havia entendido bem o que diabo fazia ali aquêle vendedor de gasolina, quando
dei com o dono da casa, ao entrar no “living”.
– Não adianta falar com êle – foi me avisando logo o empregado, vendo-me avançar para
cumprimentar o homem. E bateu com a mão na testa: – É biruta.
Olhei a figura que tinha à minha frente, sentada numa “bergère”. O homem também me
olhava, com docilidade, murmurando qualquer coisa ininteligível. Magro, de cabelos brancos e
olhos azuis, estava vestido com extrema correção: terno prêto, colête, gravata de laço bem dado. Ti-
nha as pernas cruzadas, deixando entrever as meias de sêda preta e os sapatos finos. Suas mãos, lon-
gas e brancas, repousavam sôbre os joelhos.
– O que é que êle tem?
– Sei lá. Fica assim o dia todo.
– E vai se mudar para onde?
– Não sei. Tem um doutor aí cuidando disso.
O homem continuava a murmurar sua ladainha sem me dar a mínima atenção. Disfarcei a cu-
riosidade, observando os livros que enchiam as estantes – excelente biblioteca, tôda em inglês. Ha-
via de tudo: de Marlowe a Eliot, de Scott a Joyce, de Bacon a Bowra. Admirado, tornei a olhar o
homem.
– New-cow-dim-rim-now-them-low-down… – balbuciava êle, para si mesmo, completamente
alheio à minha presença.
– Êle só fala inglês? – perguntei.
– Não fala coisa nenhuma. É inglês. Escreveu uma porção de livros. Pensava muito, sabia
uma porção de coisas. Acabou gastando a cabeça, sabe como é? Agora eu tomo conta dêle.
– Não faz mais nada?
– Nada – respondeu o mecânico, a olhar o doente como se fôsse um automóvel. – Esqueceu
tudo. Ouve música o dia todo.
Em verdade o rádio estava ligado, ou a vitrola – tocavam Bach.
– Dim-cow-rye-them-down-rim-so-why – continuava o homem, a olhar-me.
– Do you like music? – tentei, tìmidamente. O empregado fêz um gesto a dizer que era inútil,
mas de súbito o homem se calou, voltou-se para mim com interêsse.
– Oh, yes… – respondeu, numa voz delicada, quase um sussurro, vindo de outro tempo. Por
um instante tive a impressão de que ia dizer mais alguma coisa – mas logo retomava seu cantochão
monótono:
– So-why-ring-how-so-green-in-them-down…
Sôbre a estante havia retratos seus, quando ainda vivia no nosso mundo: na Inglaterra, no
tombadilho de um navio, na África… Num, aparecia cercado de amigos; noutro, ao lado de uma
bela mulher; noutro, com uma espingarda de caça na mão. Dando-lhe um último olhar, resolvi sair.
– Low-dim-them-low-there-so… – despediu-se êle.
FUGA
Mal colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fa-
zendo um barulho infernal.
– Pára com êsse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.
Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não
estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira.
– Pois então pára de empurrar a cadeira.
– Eu vou embora – foi a resposta.
Distraído, o pai não reparou que êle juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas
coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com
apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa? – a
mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande
aventura, um botão amarrado num barbante.
A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor
e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
– Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário que descansava diante da obra
do outro lado da rua, sentado no meio-fio.
– Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou êle.
Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do
muro. A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o
pedaço de biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Chamou-o, mas êle aper-
tou o passinho, abriu a correr em direção à avenida, como disposto a atirar-se diante do ônibus que
surgia à distância.
– Meu filho, cuidado!
O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto.
O menino, assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como a um
animalzinho:
– Que susto você me passou, meu filho – e apertava-o contra o peito, comovido.
– Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.
Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:
– Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.
– Me larga. Eu quero ir embora.
Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala tendo antes o cuidado de fechar a porta da
rua e retirar a chave, como êle fizera com a da despensa.
– Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.
– Fico, mas vou empurrar esta cadeira.
E o barulho recomeçou.
PATÉTICA
Tocava violão num bar elegante de Copacabana. Era um gênio. Incompreendido, mas gênio.
Quando os fregueses já não podiam mais com o borbulhar do seu gênio e esperavam uma pausa
bendita, entre tangos e boleros, para afinal poder conversar um pouco, êle anunciava com ímpeto:
– Agora eu vou interpretar para vocês uma composição de minha autoria, intitulada: “Sinfonia
Patética”.
Começava com o rufar dos dedos na caixa do violão, como num tambor, anunciando o princí-
pio da guerra. E terminava com a música dos jornais da “Paramount”. De permeio era ruído de me-
tralha, silvo de granadas, explosões, entre alguns trechos de música que significavam, certamente, a
vida pregressa do soldado, em seus momentos mais felizes. A bem dizer, ninguém sabia o que
aquilo significava, nem mesmo o gerente, que um dia se encheu e o despediu.
Então é que a coisa ficou mesmo patética. Na noite seguinte, êle entrou inesperadamente no
bar.
– Não sei se você entendeu – o gerente veio explicar, meio constrangido (já havia contratado
outro violonista): – Não vamos precisar mais de seus serviços.
– Eu sei – êle meneou a cabeça gravemente.
– E então?
– Vim aqui tomar um drinque.
E acrescentou, cheio de brios:
– Posso? Eu tenho dinheiro, olha aí.
Aboletou-se junto ao balcão, pediu um uísque. E ficou a ouvir, com olhos críticos, o nôvo vio-
lonista, que tocava baixinho, para que se pudesse conversar.
Então, tôdas as noites era assim: chegava, pedia um uísque, e ficava ouvindo. De vez em
quando soltava um risinho, sacudia a cabeça: tocar violão não era para qualquer um. Quando êle to-
cava, todo mundo ficava calado, ouvindo. Às vêzes se arriscava a comentar para o freguês do lado:
– Não desfazendo ali o meu colega, mas essa música está fora do tom.
Não raro um velho freqüentador, já meio alto, o reconhecia, cochichava para os outros, fazia-
se sério, vinha insistir com êle:
– Toca ali para nós a “Sinfonia Patética”.
– Não posso – se escusava êle, feliz, com um sorriso de modéstia: – Não fica bem. Aqui eu
sou apenas um freguês.
Uma noite, tendo gasto ali todo o dinheirinho que recebera, não voltou mais. E todo mundo o
esqueceu.
Todo mundo, menos eu – pois, ao entrar num bar em São Paulo, dou com êle, sorridente,
anunciando:
– Agora, eu vou interpretar para vocês uma composição de minha autoria, intitulada “Sinfonia
Patética”.
LUGAR RESERVADO
Cheguei ao aeroporto, em São Paulo, a uma da tarde. O próximo avião para o Rio seria o de
uma e meia.
– O de uma e meia está lotado. Só no das duas e meia.
Marquei a passagem para o das duas e meia, e fiquei banzando por ali, fazendo hora. Às duas
e vinte me encaminhei para o embarque.
Encontrei o Sampaio aguardando alguma desistência. Sempre encontro o Sampaio nessas oca-
siões:
– Está lotado – me disse a funcionária da companhia: – Não tem mais lugar.
– Não tem para êle, evidentemente – concordei, apontando o Sampaio: – Estou com a passa-
gem marcada, olha aqui a minha ficha.
Outro funcionário se aproximou, tomando-me pelo braço com delicadeza, como se enquanto
falava pretendesse afastar-me do portão de embarque:
– Alguma confusão, com certeza, cavalheiro. O senhor vai no próximo. Arranjamos uma cor-
tesia.
– Cortesia é me deixar embarcar. Estou aqui desde uma hora! Com licença.
Eu tinha mesmo de estar no Rio até quatro da tarde. Havendo já desistido, o Sampaio ria-se à
minha custa:
– Olha lá a cortesia: estão tirando a escada.
– Minha mala já está lá dentro.
– A mala vai na frente – sugeriu o funcionário, e ousou sorrir: – O senhor vai no próximo.
– Alguém embarcou no meu lugar. Êle que vá no próximo, esta é boa! Eu tenho lugar reser-
vado.
O funcionário, intimidado, acabou indo lá dentro do avião, para buscar o passageiro.
– Quero só ver a cara dêle ao descer – disse o Sampaio, às gargalhadas, colocando-se em posi-
ção estratégica. Eu não via motivo para graça. Já arrependido, fiquei de costas para o avião: minha
esperança era de que pensassem ser o Sampaio o importuno.
Olhei com o rabo do ôlho e vi surgir no alto da escada a aeromoça, segurando uma gaiola. De-
pois o funcionário, segurando um jacá. Atrás dêle o passageiro.
– Olha só! – exclamou o Sampaio, estourando de rir. – Não sei como você tem coragem.
Era uma velhinha! Ela parou no alto da escada, meio desorientada, sem saber direito o que es-
tava acontecendo. Desceu, e o próprio Sampaio, para acabar de liquidar-me, deu-lhe o braço, como
se fôsse a sua vovòzinha. Recuar, agora, não era mais possível. Impaciente, o pilôto aguardava que
eu embarcasse para dar partida. Subi a escada e entrei, com ar de cachorro que quebrou a panela. Os
demais passageiros me olharam com indiferença, mas julguei ver nêles uma indisfarçável indigna-
ção. Êste avião vai cair – concluí, já sentado, colocando o cinto de segurança com mãos nervosas:
eu tenho lugar reservado é no inferno! Devia ter desistido: além do mais, pensando bem, não tinha
nada de realmente importante a fazer no Rio naquele dia.
Nem nos dias seguintes – senão pensar com remorso na velhinha que ficara em São Paulo.
MÔÇA NA REPARTIÇÃO
É funcionária de uma autarquia e trabalha numa grande sala em meio a outras môças. Ao en-
trar, antes de dirigir-se à sua mesa, detém-se e grita para as colegas:
– Nesta sala tôdas hão de morrer solteiras, menos eu!
E vai sentar-se, sem se importar com o protesto das outras. Folheia um processo, distraìda-
mente, atira-o sôbre a mesa:
– Não trabalho mais! Eu quero casar!
Ergue-se e vai em direção de outra môça, que está contando a uma terceira como será sua
próxima viagem a Buenos Aires, em lua-de-mel: está noiva, vai casar-se dentro de dois meses.
Ouve em silêncio a conversa da outra durante um momento, depois ergue os braços, em protesto:
– Todo mundo casa! Todo mundo viaja! Todo mundo descansa! Menos eu! Não trabalho
mais.
Volta para a sua mesa, tira da gaveta uma caixa de bombons:
– Não faço mais regime. Já que não caso mesmo, deixa eu comer.
Enquanto mastiga um bombom, fica a contemplar, embevecida, uma fotografia que retirou da
bôlsa. De repente, nôvo grito:
– Êle é lindo, lindo, lindo! Ai, que saudade, minha Nossa Senhora!
Todos se voltam para olhá-la. O chefe, já habituado, ergue-se lá de sua mesa, vem cami-
nhando lentamente até ela:
– Minha filha, toma juízo. Trabalha primeiro, depois casa. Com todo mundo é assim.
– Comigo não é.
– Mas por quê? Por que você há de ser diferente das outras?
– Eu sou diferente mesmo, pronto. Ah, se até os trinta anos eu não estiver casada, eu faço uma
bobagem.
– Você está é com idéia fixa. Casamento acontece quando menos se espera.
– Eu é que sei o que acontece quando menos se espera.
– Pois então? E o lindo? Casa com êle.
– Quisera eu. Fala em tudo, menos casamento.
O chefe sorri:
– Então casa comigo, está resolvido.
– O senhor é casado, seu velho saliente.
Êle volta para a sua mesa, a rir, sem se importar mais com ela. Sabe que na hora devida ela es-
tará com o expediente pronto: trabalha mais que tôdas as outras juntas.
– Ah, é? Pois não trabalho mais.
E ela senta-se no chão, debaixo da mesa, mão no queixo, emburrada. Se por acaso alguém
vem procurá-la para assunto de serviço e se surpreende ao dar com ela assim escondida, as outras
explicam:
– Não se incomode, ela é assim mesmo. O senhor é casado?
A INEXISTÊNCIA DO CONVIDADO
Estávamos em São Paulo. Depois de jantarmos num restaurante, propus-lhe que déssemos
uma volta pela Cidade. Inesperadamente êle se recusou:
– Não posso. Vou para o hotel.
– Por quê? Está se sentindo mal?
– Preciso voltar para o hotel – insistiu êle, irredutível.
Como eu levantasse maliciosas suposições sôbre sua atitude naquela noite – algum encontro
secreto? – acabou confessando:
– Vou para o hotel escrever um conto. Estou com essa história na cabeça há mais de cinco
anos. Hoje tenho a impressão de que ela sai. Chegou a hora.
Sendo êle um escritor, não era de estranhar que de súbito se sentisse inspirado. Mas logo
agora, me deixar assim sòzinho no meio da rua! Em vão lhe acenei com promessas de voltar mais
cedo, naquela noite não iríamos a nenhum bar, como era de nosso feitio. Daria tempo de escrever
mais tarde: afinal, já esperara cinco anos!
Êle disse que não – a inspiração irresistível como uma cólica. E me deixou, saiu correndo pela
rua antes que eu o retivesse à fôrça.
Quando cheguei ao hotel, tarde da noite, dei com êle ainda acordado, caneta em riste, debru-
çado febrilmente sôbre um bloco de papel. Havia fôlhas amassadas para todo lado. Mal tirara o pa-
letó e afrouxara a gravata.
– Como é: escreveu?
Voltou para mim uns olhos vidrados, sem nem chegar a me ver. Estava atuado; limitou-se a
sacudir a cabeça como um boi de presépio e voltou-se furiosamente para o bloco de papel.
Para não perturbá-lo – nestes instantes, sei de experiência própria, seria capaz de ímpetos ho-
micidas – recolhi-me então, em silêncio, afastando de minha cama, com delicadeza, o pé ainda cal-
çado que êle, perna esticada, apoiava sôbre a colcha. Pedi-lhe que tivesse a gentileza de virar um
pouco a lâmpada da mesa, para que eu pudesse dormir. Não creio que tivesse sequer me ouvido: na-
quele instante punha-se a escrever como um desatinado, soltando pequenos grunhidos de satisfação.
Um minuto depois amassava no ar a fôlha de papel como se esganasse um frango, para atirá-la por
cima do ombro e recomeçar outra.
Pela manhã, ao acordar, vi que êle ressonava na cama ao lado: dormira vestido, vencido pelo
cansaço, depois de passar a noite inteira em claro, a mercê da inspiração.
Quando me dirigia ao banheiro, olhei casualmente para a mesa: a lâmpada fôra esquecida
acesa e o número de fôlhas amassadas redobrara, o cinzeiro se enchera de restos de cigarro.
Debrucei-me sôbre o bloco de papel, para ver o resultado de seu trabalho. Havia uma fôlha
onde estava escrito, em letras desenhadas, cheias de bordados caprichosos, apenas isto:
“O CONVIDADO – Conto”