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Educomunicadora e integrante de aliança global da Unesco sobre alfabetização
midiática, discorre a respeito dos riscos das notícias falsas e a importância de uma
educação para a informação
JANUÁRIA ALVES, 2 DE JUNHO DE 2020
Como combater as notícias falsas? Como dar um fim à disseminação galopante das fake
news, que já matam mais do que o coronavírus, corroem as liberdades individuais, direito
de todos, e desidratam a ciência, as universidades e as instituições democráticas? Essa é,
nos dias de hoje, a pergunta que não quer calar.
Uma exposição maior e mais constante às informações sobre a pandemia trouxe resultados
preocupantes. Se na Inglaterra e nos Estados Unidos, segundo o Global Web Index, os
consumidores veem a Organização Mundial de Saúde (OMS) como a fonte de informações
mais confiável para quaisquer atualizações relacionadas à covid-19 – na Inglaterra a fonte
mais confiável é o sistema de saúde pública – o mesmo não se pode dizer do Brasil.
Pesquisa realizada pelo Fantástico, programa dominical da TV Globo, atestou que os
brasileiros não sabem em quem confiar. O levantamento, feito no início de maio, revela que
nove entre cada dez brasileiros com acesso à internet já receberam
pelo menos um conteúdo falso ou desinformação sobre o
coronavírus. Desses dez brasileiros, sete acreditaram no que leram.
Na América latina, as constatações sobre a relação das populações com as notícias falsas
também preocupa. Segundo estudos desenvolvidos pela Kaspersky, empresa global
de cibersegurança, em parceria com a empresa de pesquisa CORPA, que compõem a
campanha de conscientização Iceberg Digital, que busca analisar a atual situação da
segurança dos internautas da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru, no Brasil,
16% dos entrevistados desconhecem completamente o termo fake news e 62% da população
não sabe reconhecer uma notícia falsa.
Na América Latina, cerca de 70% das pessoas não sabe identificar, ou não têm certeza se
conseguem diferenciar se uma notícia na internet é falsa ou verdadeira. Os peruanos são os
que menos conseguem reconhecer, 79%, seguidos pelos colombianos, 73%, e chilenos,
70%. Argentinos e mexicanos estão um pouco atrás, com 66%, e por último aparecem os
brasileiros. Por outro lado, nem tudo está perdido: apenas 2% dos latino-americanos
consideram as notícias falsas inofensivas. Já quase metade dos brasileiros, 42%,
ocasionalmente, questiona o que lê. Quem mais compartilha notícias falsas em seus perfis e
as comentam sem verificar sua veracidade são os usuários entre 25 e 34 anos; contudo, os
que menos praticam são os de 18 a 24 anos.
Um negócio lucrativo
Os dados mostram um cenário desalentador e já se sabe que as notícias falsas são, além de
tudo, uma indústria lucrativa, financeiramente falando. Segundo uma estimativa do estudo
da Global Disinformation Index (literalmente, “índice global de desinformação”), aliança
entre governos, empresas e representantes da sociedade civil formada com o objetivo de
“restaurar a confiança na mídia”, ao menos US$ 235 milhões (quantia
equivalente a mais de R$ 1 bilhão) são movimentados anualmente
em banners de publicidade que aparecem em sites extremistas e
que produzem fake news.
Para tentar combater mais essa “fábrica de fake news” nasceu, a quatro anos, nos Estados
Unidos, o grupo de ativistas denominado “Sleeping Giants” (literalmente “gigantes
adormecidos”) que criou uma conta no Twitter dedicada exclusivamente a avisar aos
anunciantes que suas marcas estão sendo veiculadas – e monetizadas – em sites e canais de
extrema direita, dedicados à disseminação de notícias falsas. A versão brasileira dessa conta
(@slnpg_giants_pt) chegou ao Brasil no último dia 17 de maio. “Sempre pensei em formas
de combater notícias falsas, mas nunca havia encontrado uma eficiente até que descobri
essa maneira simples de aplicar usando a desmonetização”, disse ao jornal El País, o
administrador da versão brasileira, que se apresenta como um estudante que pesquisa as
fake news e que prefere não ser identificado. O objetivo do perfil brasileiro é “impedir que
sites preconceituosos ou de fake news monetizem através da publicidade”.
Em apenas dois dias, a conta nacional do Sleeping Giants ganhou mais de 20.000
seguidores e conseguiu que diversas empresas e marcas famosas se desvinculassem desses
canais. Uma vitória e tanto. Como disse o colunista da Folha de São Paulo, Ronaldo
Lemos: “Em quatro dias, a versão brasileira conseguiu resultados no combate a
desinformação de fazer inveja ao Tribunal Superior Eleitoral, à CPI das fake news e ao
Congresso”. Identificar e avisar às marcas que seus anúncios estavam sendo veiculados
sem que soubessem foi uma estratégia eficiente para combater a desinformação com critério
e com… informação!
Parece lógico que, para combater a desinformação, o melhor caminho seja oferecer mais
informação, desde que seja informação criteriosa, de qualidade. Porém, essa também não é
uma solução fácil.
Isso porque estamos no meio de uma guerra de (des)informações,
na qual a maior arma são as narrativas, cada dia mais elaboradas
e sofisticadas, utilizando elementos que constituem uma boa
história e uma notícia confiável.
E é aí que mora o perigo: como diferenciar uma informação falsificada de uma verdadeira?
Como reconhecer uma narrativa sedutora, mas “vazia” de conteúdo relevante e ainda por
cima, mentirosa?
Michel de Montaigne, filósofo que criou o gênero textual ensaio e escreveu a partir de sua
própria experiência, afirmava que a verdade é relativa, pois não existe uma universalidade
aplicável a todas as pessoas. Somos complexos e, também, somos únicos. Isso nos leva a
concluir que o exercício de identificar as verdades e as mentiras está para além de elaborar
uma lista de ações a serem executadas num “fact-checking”, tem muito mais a ver com a
habilidade de saber ler e analisar o mundo, como dizia o educador pernambucano Paulo
Freire. E isso requer um exercício constante de identificar o que está contido no texto, no
subtexto, compreender o contexto. E essa é uma habilidade que não se aprende “por
decreto” e muito menos de repente.
E também não é por acaso que esses países tradicionalmente investem em educação desde a
mais tenra idade e formam leitores fieis aos livros e periódicos desde a infância. Na
Finlândia, seus 5,5 milhões de habitantes pegam emprestado nas bibliotecas públicas
aproximadamente 68 milhões de livros por ano. É provável que isso explique as razões
pelas quais o país detém a maior pontuação do Pisa para desempenho de leitura na União
Europeia.
Desde 2014 os finlandeses já ensinavam em sala de aula sobre os riscos das deefakes e das
ameaças da Rússia e seu exército de bots e trolls. “A desinformação é inútil contra
cidadãos bem-educados”, tweetou Rob Goldman, vice-presidente do Facebook, sobre essa
ação finlandesa de combate à guerra informacional russa.
A Educação para as Mídias é apenas uma parte da abordagem em diversas frentes que o
país está adotando para preparar seus cidadãos para atuarem com segurança no complexo
universo digital em que vivemos. Para eles, um sistema de educação pública forte e robusto
é uma arma fortíssima para combater a desinformação. Diversas pesquisas atestam que há
uma relação intrínseca entre o acesso à uma educação de qualidade e a disposição para não
acreditar em fake news. Um estudo realizado em 2016 por um grupo de pesquisadores de
psicologia social na Holanda constatou que pessoas adequadamente educadas estão menos
suscetíveis às teorias conspiratórias, aquelas que afirmam com toda convicção que a terra é
plana.
Ou seja, o conceito é complexo e envolve uma série de ações educativas que não se
constroem do dia para a noite.
É preciso que compreendamos que o fenômeno das notícias falsas é um resultado da era em
que vivemos, na qual crenças e opiniões importam mais que os fatos e a ciência, em que o
“estar de acordo” é mais importante que a verdade, ainda que ela seja relativa e sujeita à
revisões.