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O lado B das fake news e como combatê-

las
Educomunicadora e integrante de aliança global da Unesco sobre alfabetização
midiática, discorre a respeito dos riscos das notícias falsas e a importância de uma
educação para a informação
JANUÁRIA ALVES, 2 DE JUNHO DE 2020

Como combater as notícias falsas? Como dar um fim à disseminação galopante das fake
news, que já matam mais do que o coronavírus, corroem as liberdades individuais, direito
de todos, e desidratam a ciência, as universidades e as instituições democráticas? Essa é,
nos dias de hoje, a pergunta que não quer calar.

Desde as eleições presidenciais americanas, em 2016, quando o mundo assistiu estarrecido


à eleição de um presidente que foi definida a partir da disseminação de notícias
“produzidas” sob medida para distorcerem os fatos e moldarem as opiniões, as fake news
são pauta diárias, tanto nos órgãos da grande imprensa, passando pelas redes sociais,
chegando às escolas e discussões nos almoços de domingo de todas as famílias do planeta.
Sim, precisamos combater o fenômeno da desinformação urgentemente, a questão está
posta, mas vai além do como ou do que fazer. É mais complexa e envolve muitos elementos
que rendem muita discussão.

Leia: As diferenças entre fake news, pós-verdade, deepfakes e o papel da escola

O que dizem as pesquisas


O Global Web Index realizou uma pesquisa com mais de quatro mil usuários da internet
entre 16 e 64 anos, nos Estados Unidos e na Inglaterra, e constatou que, durante essa
pandemia, os hábitos de consumo da informação se modificaram. A pesquisa averigou que
68% dos consumidores buscaram atualizações sobre a pandemia online, mais do que sobre
qualquer outro assunto ou atividade. O levantamento também revelou que mais de 80% dos
consumidores nos EUA e no Reino Unido consumiram mais conteúdo informativo desde o
início do surto, sendo a TV aberta e vídeos online (YouTube, TikTok) os meios de
comunicação prediletos, entre todas as gerações e sexos.

Uma exposição maior e mais constante às informações sobre a pandemia trouxe resultados
preocupantes. Se na Inglaterra e nos Estados Unidos, segundo o Global Web Index, os
consumidores veem a Organização Mundial de Saúde (OMS) como a fonte de informações
mais confiável para quaisquer atualizações relacionadas à covid-19 – na Inglaterra a fonte
mais confiável é o sistema de saúde pública – o mesmo não se pode dizer do Brasil.
Pesquisa realizada pelo Fantástico, programa dominical da TV Globo, atestou que os
brasileiros não sabem em quem confiar. O levantamento, feito no início de maio, revela que
nove entre cada dez brasileiros com acesso à internet já receberam
pelo menos um conteúdo falso ou desinformação sobre o
coronavírus. Desses dez brasileiros, sete acreditaram no que leram.

Na América latina, as constatações sobre a relação das populações com as notícias falsas
também preocupa. Segundo estudos desenvolvidos pela Kaspersky, empresa global
de cibersegurança, em parceria com a empresa de pesquisa CORPA, que compõem a
campanha de conscientização Iceberg Digital, que busca analisar a atual situação da
segurança dos internautas da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru, no Brasil,
16% dos entrevistados desconhecem completamente o termo fake news e 62% da população
não sabe reconhecer uma notícia falsa.

Na América Latina, cerca de 70% das pessoas não sabe identificar, ou não têm certeza se
conseguem diferenciar se uma notícia na internet é falsa ou verdadeira. Os peruanos são os
que menos conseguem reconhecer, 79%, seguidos pelos colombianos, 73%, e chilenos,
70%. Argentinos e mexicanos estão um pouco atrás, com 66%, e por último aparecem os
brasileiros. Por outro lado, nem tudo está perdido: apenas 2% dos latino-americanos
consideram as notícias falsas inofensivas. Já quase metade dos brasileiros, 42%,
ocasionalmente, questiona o que lê. Quem mais compartilha notícias falsas em seus perfis e
as comentam sem verificar sua veracidade são os usuários entre 25 e 34 anos; contudo, os
que menos praticam são os de 18 a 24 anos.

Um negócio lucrativo
Os dados mostram um cenário desalentador e já se sabe que as notícias falsas são, além de
tudo, uma indústria lucrativa, financeiramente falando. Segundo uma estimativa do estudo
da Global Disinformation Index (literalmente, “índice global de desinformação”), aliança
entre governos, empresas e representantes da sociedade civil formada com o objetivo de
“restaurar a confiança na mídia”, ao menos US$ 235 milhões (quantia
equivalente a mais de R$ 1 bilhão) são movimentados anualmente
em banners de publicidade que aparecem em sites extremistas e
que produzem fake news.

No estudo, foram pesquisados aproximadamente 20 mil domínios suspeitos de propagar


notícias falsas, cruzando dados sobre audiência e o quanto os anunciantes pagam por
visitante.

Para tentar combater mais essa “fábrica de fake news” nasceu, a quatro anos, nos Estados
Unidos, o grupo de ativistas denominado “Sleeping Giants” (literalmente “gigantes
adormecidos”) que criou uma conta no Twitter dedicada exclusivamente a avisar aos
anunciantes que suas marcas estão sendo veiculadas – e monetizadas – em sites e canais de
extrema direita, dedicados à disseminação de notícias falsas. A versão brasileira dessa conta
(@slnpg_giants_pt) chegou ao Brasil no último dia 17 de maio. “Sempre pensei em formas
de combater notícias falsas, mas nunca havia encontrado uma eficiente até que descobri
essa maneira simples de aplicar usando a desmonetização”, disse ao jornal El País, o
administrador da versão brasileira, que se apresenta como um estudante que pesquisa as
fake news e que prefere não ser identificado. O objetivo do perfil brasileiro é “impedir que
sites preconceituosos ou de fake news monetizem através da publicidade”.

Leia: Em tempos de fake news, prevalece a lacração e o uso matreir o

Em apenas dois dias, a conta nacional do Sleeping Giants ganhou mais de 20.000
seguidores e conseguiu que diversas empresas e marcas famosas se desvinculassem desses
canais. Uma vitória e tanto. Como disse o colunista da Folha de São Paulo, Ronaldo
Lemos: “Em quatro dias, a versão brasileira conseguiu resultados no combate a
desinformação de fazer inveja ao Tribunal Superior Eleitoral, à CPI das fake news e ao
Congresso”. Identificar e avisar às marcas que seus anúncios estavam sendo veiculados
sem que soubessem foi uma estratégia eficiente para combater a desinformação com critério
e com… informação!

Combater a desinformação com informação

Parece lógico que, para combater a desinformação, o melhor caminho seja oferecer mais
informação, desde que seja informação criteriosa, de qualidade. Porém, essa também não é
uma solução fácil.
Isso porque estamos no meio de uma guerra de (des)informações,
na qual a maior arma são as narrativas, cada dia mais elaboradas
e sofisticadas, utilizando elementos que constituem uma boa
história e uma notícia confiável.
E é aí que mora o perigo: como diferenciar uma informação falsificada de uma verdadeira?
Como reconhecer uma narrativa sedutora, mas “vazia” de conteúdo relevante e ainda por
cima, mentirosa?

Michel de Montaigne, filósofo que criou o gênero textual ensaio e escreveu a partir de sua
própria experiência, afirmava que a verdade é relativa, pois não existe uma universalidade
aplicável a todas as pessoas. Somos complexos e, também, somos únicos. Isso nos leva a
concluir que o exercício de identificar as verdades e as mentiras está para além de elaborar
uma lista de ações a serem executadas num “fact-checking”, tem muito mais a ver com a
habilidade de saber ler e analisar o mundo, como dizia o educador pernambucano Paulo
Freire. E isso requer um exercício constante de identificar o que está contido no texto, no
subtexto, compreender o contexto. E essa é uma habilidade que não se aprende “por
decreto” e muito menos de repente.

Investir em educação para a leitura e a escrita


Não à toa, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Suécia e Estônia estão no topo do Índice de
Alfabetização em Mídia de 2019, segundo as conclusões Media Literacy Index, realizado
pela European Policies Initiative (EuPI) do Open Society Institute, em Sofia, Bulgária. A
Finlândia está na primeira posição entre 35 países, com uma vantagem de 78 pontos. Esses
países são considerados os mais bem instrumentalizados para lidar com o impacto de
notícias falsas devido à qualidade da sua educação, à mídia gratuita e à alta confiança entre
as pessoas.

O índice avalia o potencial de resiliência às notícias falsas em 35 países europeus, usando


os indicadores: liberdade de mídia, grau de educação e confiança nas pessoas. Como esses
indicadores têm importâncias diferentes, eles recebem um peso diferenciado nesse modelo.
Os indicadores de liberdade de mídia têm o maior peso (Freedom House e Repórteres sem
Fronteiras), juntamente com os de educação (medidos pelos resultados do PISA), tendo a
alfabetização em leitura a maior participação dentre eles. O indicador de participação
eletrônica (ONU) e a confiança nas pessoas (Eurostat) possuem um peso menor.

E também não é por acaso que esses países tradicionalmente investem em educação desde a
mais tenra idade e formam leitores fieis aos livros e periódicos desde a infância. Na
Finlândia, seus 5,5 milhões de habitantes pegam emprestado nas bibliotecas públicas
aproximadamente 68 milhões de livros por ano. É provável que isso explique as razões
pelas quais o país detém a maior pontuação do Pisa para desempenho de leitura na União
Europeia.
Desde 2014 os finlandeses já ensinavam em sala de aula sobre os riscos das deefakes e das
ameaças da Rússia e seu exército de bots e trolls. “A desinformação é inútil contra
cidadãos bem-educados”, tweetou Rob Goldman, vice-presidente do Facebook, sobre essa
ação finlandesa de combate à guerra informacional russa.

A Educação para as Mídias é apenas uma parte da abordagem em diversas frentes que o
país está adotando para preparar seus cidadãos para atuarem com segurança no complexo
universo digital em que vivemos. Para eles, um sistema de educação pública forte e robusto
é uma arma fortíssima para combater a desinformação. Diversas pesquisas atestam que há
uma relação intrínseca entre o acesso à uma educação de qualidade e a disposição para não
acreditar em fake news. Um estudo realizado em 2016 por um grupo de pesquisadores de
psicologia social na Holanda constatou que pessoas adequadamente educadas estão menos
suscetíveis às teorias conspiratórias, aquelas que afirmam com toda convicção que a terra é
plana.

Como diz o filósofo Pierre Levy:


“Eu já venho dizendo há muito tempo que não podemos dominar o software, a maneira
como os dados são tratados, se não dominamos a leitura e a escrita. Não é possível ser um
cidadão consciente com o pensamento crítico capaz de discernir coisas razoáveis das
coisas que não são, se não sabemos ler e escrever. Se você ler em uma tela ou em um
papel, isso é secundário. A importância está no texto.”

Leia: Criatividade e força de vontade marcam comprometimento dos professores para


adaptarem o ensino às aulas online

A Educação para as Mídias começa desde a infância

Se é consenso que a aquisição de competências e habilidades leitoras (e escritoras) está no


cerne da formação de leitores críticos e, portanto, mais preparados para discernir as
armadilhas das fake news, é fato que a Educação Midiática deve ser introduzida nas
famílias e na escola ainda na infância. Não é aleatoriamente que a Unesco entende que a
Educação para as Mídias deve ser abordada como Alfabetização Midiática e
Informacional (AMI ou Media Literacy), ou seja, que é preciso, antes de mais nada,
construir uma aprendizagem sobre o que é e como se produz a informação, matéria prima
das mídias.

A Unesco define a AMI como a área que “Refere-se às competências essenciais


(conhecimentos, habilidades e atitudes) que permitem que os cidadãos engajem-se junto às
mídias e outros provedores de informação de maneira efetiva, desenvolvendo o pensamento
crítico e a aprendizagem continuada de habilidades, a fim de socializarem-se e de
tornarem-se cidadãos ativos.(…) A compreensão e o uso das mídias de massa de maneira
incisiva ou não, incluindo um entendimento bem informado e crítico das mídias, das
técnicas que elas empregam e dos seus efeitos. Também inclui a capacidade de ler,
analisar, avaliar e produzir a comunicação em uma série de formatos de mídias. Pode
ainda ser compreendida como a capacidade de decodificar, analisar, avaliar e produzir
comunicações de diversas formas.”

Segundo o Office of Communications, conhecido como Ofcom, que é a autoridade


reguladora e de concorrência aprovada pelo governo para as indústrias de radiodifusão,
telecomunicações e correios do Reino Unido, a Educação Midiática é “uma habilidade para
acessar, entender e criar comunicação em uma variedade de contextos”. Um dos maiores
estudiosos desse assunto, o inglês David Buckingham explicita o que isso quer
dizer: “Acessar” inclui as habilidades e competências necessárias para localizar
conteúdos de mídia, usando tecnologias e softwares disponíveis. […] “Entender” inclui a
habilidade de decodificar e ou interpretar mídia, por exemplo, através da consciência de
convenções formais e genéricas, recursos de design e dispositivos retóricos. Envolve
também o conhecimento sobre o processo de produção e os padrões de controle
institucional, e a habilidade crítica da mídia, por exemplo, em termos de veracidade e
confiabilidade de suas representações do mundo real. E “criar” envolve a habilidade de
usar a mídia para produzir e comunicar suas próprias mensagens, em uma proposta de
auto expressão para influenciar ou interagir com outras pessoas”.

Ou seja, o conceito é complexo e envolve uma série de ações educativas que não se
constroem do dia para a noite.

Como se trata de um processo, e processos levam tempo e requerem muito esforço – e


normalmente de mais de uma instituição – o trabalho com a AMI não é simples de ser
implementado e nem apresenta resultados imediatos. Com afirma o professor David
Buckingham “Não compartilho do otimismo bastante fácil sobre o potencial de
empoderamento da mídia digital. Também não acredito que o entendimento crítico ocorra
automaticamente a partir da experiência de produção ou participação criativa. A
alfabetização de mídia não é simplesmente uma questão de saber como usar dispositivos
específicos, para acessar ou criar mensagens de mídia. Também deve envolver uma
compreensão crítica profunda de como essas mídias funcionam, como se comunicam, como
representam o mundo e como são produzidas e usadas. Compreender a mídia hoje exige
que reconheçamos a complexidade das formas modernas de ‘capitalismo digital’. E se
realmente queremos que os cidadãos tenham conhecimento da mídia, precisamos de
programas abrangentes, sistemáticos e sustentados de educação para a mídia como um
direito básico para todos os jovens.”

Combater a desinformação é antes de tudo, uma ação multisetorial

De fato, a Alfabetização para a informação e para as Mídias, passa pelo reconhecimento de


que é um direito de todos os cidadãos do mundo terem acesso à informações de qualidade e
principalmente, à reflexão e prática de como podem atuar de maneira consciente, tanto
como consumidores como produtores e disseminadores de informações e notícias. Por outro
lado, parece simples apontar o leitor comum como o grande disseminador das fake news,
quando na verdade ele é apenas mais um elo numa cadeia imensa e intricada que faz essa
engrenagem girar, como vimos anteriormente.

As instituições governamentais, a imprensa, a academia, também são sujeitos importantes


nessa cadeia. A propagação desse fenômeno da desinformação tem trazido prejuízos
concretos em muitas áreas: políticas, sociais, educacionais e agora assistimos ao estrago que
estão causando também na área de saúde. Portanto, políticas públicas serão necessárias para
uma mudança desse cenário.

Para combatermos o discurso de ódio que alimenta os extremismos, os preconceitos de toda


ordem que minam a democracia, a censura que contribui para a ignorância, é preciso um
movimento de conciliação e cooperação, um trabalho simultâneo no plano individual e no
social.
Provocar a consciência de que todo leitor também “é dono da história” e tem o poder de
recontá-la, repassá-la, reescrevê-la e retransmiti-la segundo seus interesses, poderá fazer
com que ele comece a abrir mão de suas “verdades pessoais” em prol da transmissão de
informações e conhecimentos cientificamente comprovados, bem como de informações
devidamente checadas. Isso tem a ver com a formação de um leitor capaz de empreender
um esforço consciente para escapar de suas certezas e opiniões, de resistir “ao canto da
sereia” do autoengano, que o leva a acreditar apenas naquilo que reforça os seus
(pre)conceitos, para tornar-se um espectador mais exigente de tudo o que lê, vê, escreve e
compartilha, mostrando um ceticismo saudável, mesmo em relação às informações que lhes
causam desconforto e incertezas.

É preciso que compreendamos que o fenômeno das notícias falsas é um resultado da era em
que vivemos, na qual crenças e opiniões importam mais que os fatos e a ciência, em que o
“estar de acordo” é mais importante que a verdade, ainda que ela seja relativa e sujeita à
revisões.

É certo que a “vacina” contra a desinformação é a informação e o conhecimento. Mas, não


apenas isso. Porque nada garante que, mesmo tendo acesso à educação, muitas pessoas
escolham o caminho do exercício de um outro tipo de poder, que não emana do exercício da
cidadania em prol do bem comum. É preciso que as ações que envolvem o
compartilhamento de informações sejam pautadas pela ética e responsabilidade social.

A verdade desconfortável que temos de enfrentar nesse momento em relação à proliferação


da desinformação é que não há saídas fáceis para esse problema. Isso exigirá uma mudança
cultural longa e profunda na sociedade planetária. É preciso que, mais do que reconhecerem
a importância de conhecer para poder fazer escolhas mais criteriosas e funcionais, as
pessoas queiram e decidam buscar (o) saber.

*Januária Cristina Alves é jornalista e educomunicadora. Foi agraciada com o Prêmio


Jabuti de Literatura Brasileira por duas vezes, Prêmio Abril de Jornalismo e Prêmio
Wladimir Herzog de Direitos Humanos. Autora do livro ‘Como não ser engando pelas
Fake News’ (ed. Moderna), em parceria com Flávia Aidar, com quem também elaborou o
currículo da eletiva de Educação Midiática para a Secretaria Estadual de Educação de
São Paulo. Faz parte da GAPMIL, a aliança global para parcerias em Alfabetização
Midiática e Informacional da Unesco.

Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br.

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