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No 93
Resumo
Revista Jurídica
ISSN 1808-2807
www.presidencia.gov.br/revistajuridica
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Conselho Editorial
Coordenador de Editoração
Paulo Massi Dallari
Coordenadora Técnica
Maria Estefania Ponte Pinheiro
Projeto Gráfico
Heloisa Neves Castro
Desenvolvimento Web
Heloisa Neves Castro
Ana Cristina Rodrigues de Mendonça
Ficha Catalográfica
1. Introdução
1
Procurador da Fazenda Nacional em São Paulo/SP, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Bacharel em Administração pela Universidade de Pernambuco (UPE), Especialista em
Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Tributário – IBDT - matheus_carneiro@yahoo.com.br.
2
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la nuova economia. Disponível em:
<http://www.lafactoriaweb.com/articulos/castells12.htm>. Acesso em: 14 fev. 2006. Tradução livre. Original: “(La
Nuova Economia) És una economía que está centrada en el conocimiento y en la información como bases de
producción, como bases de la productividad y bases de la competitividad, tanto para empresas como para
regiones, ciudades y países”.
3
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. p. 19.
4
Sobre tanto, ensina o renomado tributarista italiano Victor Uckmar, em artigo entitulado “Diritto Tributario e
Tecnologia”: “Di certo l´aspetto più delicato del commercio elettronico è la difficoltà per l´Amministrazione
finanziaria di accertare situazioni che potrebero dar luogo ad oneri fiscali, ma che non si manifestano all´esterno, il
che può avvenire particolarmente nella cessione di beni e la prestazioni di servizi on-line”. In: MARINS, James
(Coord.). Tributação e tecnologia. Curitiba: Juruá, 2003. p. 45.
5
GRECO, Marco Aurelio. Estabelecimento tributário e sites na internet. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO,
Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes. Bauru: Edipro, 2001. p. 314.
6
BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro dos Santos. Brasília:
Universidade de Brasília, 1997. p. 19.
7
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005. p. 87.
8
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 2.
9
VILANOVA, op. cit., p. 163.
10
Tomamos emprestada a doutrina kelseniana de que a ordem jurídica “não é um sistema de normas jurídicas
ordenadas no mesmo plano, situada umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de normas jurídicas”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de João
Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 247.
11
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 2001. p. 174.
12
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 27.
13
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 143.
14
ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1996. p. 9.
O referido dispositivo legal afirma ser vedado à lei tributária modificar conceitos
utilizados por lei superior para a definição ou limitação da competência tributária, não sendo
mera regra interpretativa, mas preceito endereçado ao legislador, eis que concernente ao
15
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
p. 467.
16
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004. p. 70.
17
AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 99.
18
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 239.
19
OLIVEIRA, Júlio Maria de. Internet e competência tributária. São Paulo: Dialética, 2001. p. 22.
20
Cf. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao direito tributário. 5. ed. Revista e atualizada por Flávio Bauer
Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p.106-107.
Logo, não poderá o legislador ordinário ampliar, ao seu talante, o alcance conceitual
de expressões utilizadas por normas situadas em nível hierárquico superior dentro do
ordenamento jurídico brasileiro. Nessa tônica de argumentos, vale memorar o escólio de
Hugo de Brito Machado:
Se a Constituição referiu-se a um instituto, conceito ou forma de Direito
privado para definir ou limitar competências tributárias, obviamente esse
elemento não pode ser alterado pela lei. Se a Constituição fala de
mercadoria ao definir a competência dos Estados para instituir e cobrar o
ICMS, o conceito de mercadoria há de ser o existente no Direito Comercial.
Admitir-se que o legislador pudesse modificá-lo seria permitir ao legislador
alterar a própria Constituição Federal, modificando as competências
23
tributárias ali definidas.
Pois bem. Já se sabe que a Constituição Federal confere aos Estados competências
tributárias determinadas materialmente, dentre as quais a competência para instituírem
imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (art. 155, II). Sabe-se
também que o legislador infraconstitucional está submetido à observância dos princípios
tributários plasmados na Carta Maior, e que não poderá ele ampliar o alcance de conceitos
21
Cf. AMARO, Luciano Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 102.
22
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro.11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 1999. p. 687.
23
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 130.
A hipótese das regras jurídicas tributárias é formada pela descrição de uma classe de
eventos recolhidos dentro do mundo dos fatos e transpostos para o mundo jurídico, por meio
do direito positivo. Nesse processo, o legislador seleciona critérios de verificação da
ocorrência do fato jurídico, a fim de possibilitar o seu reconhecimento na realidade. Com a
agudez que lhe é peculiar, destaca Paulo de Barros Carvalho25:
Na hipótese (descritor), haveremos de encontrar um critério material
(comportamento de uma pessoa), condicionado no tempo (critério temporal)
e no espaço (critério espacial). Já na conseqüência (prescritor),
depararemos com um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e um
critério quantitativo (base de cálculo e alíquota).
O critério material identifica o evento que a lei transpôs do mundo real para o mundo
jurídico, através da linguagem. Tal evento, contudo, deve possuir coordenadas temporais -
indicativas do instante de acontecimento do fato jurídico tributário - e espaciais, que lhe
permitam a individualização em determinado lugar.
24
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 242.
25
Ibid., p. 243.
26
EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB, 2003. p. 119.
Seja na definição das condutas (eventos jurídicos), seja na delimitação dos aspectos
temporais e espaciais da norma tributária, a liberdade do legislador infraconstitucional é
limitada, guardando direta vinculação com os princípios concernentes ao poder de tributar. A
ele não é permitido inovar no estabelecimento de descritores, estando estritamente preso às
diretrizes impostas no Texto Maior, sobretudo quando da elaboração de lei complementar na
forma do art. 146, III, “a”.
27
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 108.
28
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 155.
29
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 249.
30
Ibid., p. 250.
31
A utilização da expressão fato gerador é fonte de acerbadas críticas doutrinárias. Alfredo Augusto Becker
chegou a afirmar: “Esta última expressão é a mais utilizada pela doutrina brasileira de Direito Tributário e, de
todas elas, a mais infeliz porque o’fato gerador’ não gera coisa alguma além de confusão intelectual.” BECKER,
Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002. p. 318. Todavia, dada a larga
difusão e popularidade do termo, é ele também adotado neste trabalho, no mesmo sentido do “fato imponível”,
mencionado por Geraldo Ataliba como o “fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar,
configurando rigorosamente a hipótese de incidência”. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6.
ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 54.
32
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: RT, 1974. p. 26.
33
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 31-32.
34
CARVALHO, Paulo de Barros. Regra Matriz do ICM. Tese apresentada para a obtenção do Título de Livre
Docente da Faculdade de Direito da PUC, São Paulo, 1981, p. 170. Apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS:
teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2003. p. 12.
35
ATALIBA, Geraldo. ICMS. Incorporação ao Ativo – Empresa que loca, oferece em ‘Leasing’ seus Produtos –
Descabimento do ICMS. Revista de Direito Tributário, v. 52, p. 74, apud MELO, op. cit., p. 13.
No direito positivo brasileiro, vemos que a Constituição não traz uma definição de
mercadoria, embora limite a amplitude do conceito ao estabelecer o leque de competências
tributárias. Deve tal definição, portanto, ser buscada nos institutos do Direito Empresarial,
ramo do conhecimento jurídico que agasalha a normatização das operações mercantis36.
Nesta visão, pode-se dizer que o significado de mercadoria é historicamente ligado à
suscetibilidade de um bem móvel ser comprado ou vendido, em atos de mercancia,
consoante se extrai do art. 191 do Código Comercial de 1850.
36
A bem da verdade, consoante nos ensina Alfredo Augusto Becker, não existe um legislador tributário distinto e
contraponível a um legislador comercial, pois “os vários ramos dos direito não constituem compartimentos
estanques, mas são partes de um único sistema jurídico”. In: BECKER, Alfredo Augusto. op. cit., p. 122. Todavia,
a divisão de ramos do Conhecimento Jurídico – como o Direito Empresarial - é perfeitamente válida para fins
didáticos, mormente em face dos inúmeros subsistemas normativos que integram o ordenamento jurídico
brasileiro.
37
LUNNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. Tributação na Internet. Revista Dialética de Direito Tributário,
São Paulo, v. 59, p. 84, ago. 2000.
38
O art. 156, II, da Constituição Federal de 1988 robustece esse entendimento majoritário, ao sujeitar operações
de circulação jurídica de bens imóveis ao Imposto de Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, de competência dos
Municípios, e não ao ICMS.
39
FERNANDES, Adaucto. Direito comercial brasileiro: parte terrestre. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº,
1956. p. 327.
40
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 473.
41
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 170-171.
42
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. t. 15, p. 449.
43
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. 7. ed. São Paulo: Freitas
Bastos, 1963. v. 5, livro III, parte I. p. 28-29.
Não queremos dizer, contudo, que exista uma definição severa e inalterável de
“mercadoria”. A própria Constituição alargou o conceito tradicional do vocábulo (associado a
coisas palpáveis) para alcançar a energia elétrica, bem intangível por natureza.
Paralelamente, restringiu a largueza do art. 191 do Código Comercial (o qual considerava
títulos de crédito e outros valores financeiros como mercadorias), ao estabelecer a
competência da União para instituir o imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro,
ou relativas a títulos ou valores mobiliários (art. 153, V), operações estas excluídas da
incidência do ICMS.
44
BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1995. p. 170.
45
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 41.
46
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2003. p. 18.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, essa caminhada adquire novos
contornos. Revogada expressamente a primeira parte do Código Comercial (inclusive o art.
191), o conceito de comerciante (praticante de atividade mercantil) é substituído pelo de
empresário e a idéia de mercadoria se desvincula da teoria dos atos de comércio para ser
abrigada pela teoria da empresa, de conteúdo finalístico, encetado pelo art. 966 do vigente
Diploma Civil:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão
intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso
de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir
elemento de empresa.
A nosso ver, é a compra e venda mercantil, por excelência, o negócio jurídico hábil
para oportunizar a incidência do “ICMS – Mercadorias”. Tanto assim que o Superior Tribunal
de Justiça assinalou em julgado recente: “a configuração da hipótese de incidência do ICMS
reclama a ocorrência de ato de mercancia, vale dizer, a venda da mercadoria”47.
Anteriormente regrada pelo art. 191 do Código Comercial, a sua apreensão é hoje tomada a
partir da conjugação entre o disposto no art. 966 supracitado e o art. 481 do Código Civil.
Fábio Ulhoa Coelho remarca que a compra e venda mercantil é o contrato que
melhor retrata a atividade de circulação do comércio, pois através dele o comerciante obtém
47
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº.
19010/GO. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário da Justiça, Brasília, 23 nov. 2006, p. 213. No mesmo sentido: AgRg
no REsp 601140/MG, Relator: Min. Denise Arruda, Diário da Justiça, Brasília, 10 abr. 2006; AgRg no Ag
642229/MG. Relator: Min. Luiz Fux, Diário da Justiça, Brasília, 26 set. 2005; e REsp 659569/RS, Relator: Min.
Castro Meira, Diário da Justiça, Brasília, 09 maio 2005. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 20 jan.
2007
48
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 54.
49
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 40.
Na verdade, a proteção dos direitos autorais sobre essa espécie de obra do intelecto
humano é explicitamente consagrada pelo art. 5º, incisos XXVII e XXVIII da Constituição
Federal:
Art. 5º. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação
ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que
a lei fixar;
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
50
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades,
tais como: (...).
51
LEITE, Eduardo Lycurgo. Direito de autor. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 214-215.
Isso porque a linha limítrofe que separa determinadas hipóteses de incidência pode
se revelar bastante tênue em algumas situações concernentes às transferências de direitos
de propriedade intelectual, dando ensejo a profundas controvérsias tributárias. Prova disso é
a polêmica distinção tributária entre as modalidades de software, diante da qual se polarizam
as possibilidades de incidência do ICMS e do ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza). Tratando-se de softtware transmitido via download, a problemática ainda guarda
detalhes mais sutis, para cuja análise os tópicos seguintes hão de se encaminhar.
52
CARBONI, Guilherme C. Direito de autor na multimídia. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 142.
O contrato de compra e venda (art. 481 do Código Civil) tem por objeto a
transferência do domínio de certa “coisa”, entendida como “qualquer entidade suscetível de
objetividade jurídica, ou simplesmente, tudo que pode ser objeto de relações jurídicas”53, em
contraprestação ao pagamento de determinado preço. O conceito jurídico de coisa, assim,
não se extrema naquilo que se vê ou se toca com as mãos, estendendo-se ao que se
percebe com a inteligência54. Sob essa perspectiva, é possível pensar que o software,
enquanto coisa, poderia ser objeto de contrato de compra e venda, cuja etapa conclusiva
levaria à transferência em definitivo dos direitos autorais sobre o programa. É o que afirma
Guilherme Cezaroti:
O programa de computador pode ser objeto de contrato de compra e venda,
hipótese em que ocorre a transferência em definitivo dos direitos sobre o
programa. Por meio desse contrato o titular cede os seus direitos autorais,
inclusive os de comercialização.
O fato de o art. 9º da Lei nº. 9.069/98 prever somente o contrato de licença
não veda ao titular do direito autoral ceder todos os direitos relativos à sua
criação, mas apenas indica que esse é um comportamento pouco usual e
55
não encorajado pelo legislador.
Na maioria das vezes, softwares não passam por transferências de domínio, mas sim
têm seu uso “licenciado” pelo titular dos respectivos direitos autorais. O que freqüentemente
se tornam objeto de compra e venda são os suportes físicos nos quais se armazenam as
informações dos programas a serem licenciados. A obra imaterial, consistente em um
53
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. 7. ed. São Paulo: Freitas
Bastos, 1963. v. 5, livro III, parte I. p. 5.
54
Ibid., loc. cit.
55
CEZAROTI, Guilherme. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005. p. 101.
56
Cf. WEIKERSHEIMER, Deana. Comercialização de software no Brasil: uma questão legal a ser avaliada. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 11-12.
Mas o que tudo isso tem a ver com incidência tributária? A resposta é: muito. A
problemática da tributação dos softwares divide a doutrina. Para uns, a natureza do contrato
de licenciamento de uso de software impede que sobre tal negócio jurídico incida ICMS, sob
pena de afronta à competência municipal para instituir e cobrar o ISSQN, único imposto que
poderia ser exigido nessa situação. Para outros, deve-se distinguir o licenciamento de uso
de programa desenvolvido especificamente para certo usuário (“por encomenda”) daquele
licenciamento padrão dos chamados softwares “de prateleira” (off the shelf), ou seja, dos
programas colocados em larga escala no mercado, padronizados e de pronta instalação. No
primeiro caso (desenvolvimento por encomenda), incidiria o ISSQN; no segundo
(oferecimento à venda em prateleira), o ICMS.
57
Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 325.
58
De acordo com a lista de serviços da Lei Complementar nº. 116/2003, tanto a elaboração de programas de
computadores (item 1.04) quanto o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas (item 1.05) são
hipóteses de incidência do ISSQN.
59
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso extraordinário nº. 176626/SP. Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. Diário Justiça, Brasília, 11 dez 1998, p. 10; RTJ vol.168-01, p. 305.
60
Nesse sentido, conferir os seguintes acórdãos do Superior Tribunal de Justiça: RESP 123.022-RS, Diário
Justiça, Brasília, 27 out. 1997. Relator: Ministro: José Delgado; RESP 216.967-SP. Diário Justiça, Brasília, 22
abr. 2002, Relator: Min. Eliana Calmon; ROMS 5.934-RJ, Diário Justiça, Brasília, 01 abr. 1996. Relator: Min.
Hélio Mosimann.
61
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 123.022/RS.
Relator: Min José Delgado. Diário Justiça, Brasília, 27 out. 1997. p. 54729.
62
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Eletrônico, n. 421, de 05.04.2006.
Nas transferências de domínio sobre bens móveis – como é o caso das mercadorias -
a tradição é elemento essencial, que configura o suporte fático da aquisição. Destaca Pontes
de Miranda que a tradição no direito brasileiro “é fundada no acordo de transmissão da
propriedade mais a entrega-tomada simples, ou mais o acordo de transmissão
possessória”64. Em virtude do seu caráter causal, não pode o negócio jurídico para a
63
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 43.
64
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. t. 15. p. 299.
Sucede que os downloads de bens digitais (v.g. softwares e músicas), via de regra,
não importam transferências de titularidade sobre as obras intelectuais (art. 37 da Lei nº.
9.610/98), ou seja, o poder de disposição jurídica. Sob o ponto de vista dos direitos autorais,
“a disposição jurídica decorrente do ato negocial é tão limitada que não se presta a
caracterizar uma verdadeira operação de circulação jurídica”65. Há apenas transferências de
informações constantes no hardware de um computador para outro, as quais são fornecidas
para fins de utilização em estrita obediência ao respectivo licenciamento de uso da obra.
Noutro dizer, o adquirente de um software ou de uma música através da Internet não realiza
a “compra” desses bens, no sentido de alienação de propriedade. Ele tão-somente paga por
cópias de pacotes de dados que, uma vez traduzidos pelo computador do usuário em
linguagem apropriada, gerarão certa utilidade.
Vê-se, assim, que o mecanismo das transferências digitais escapa à noção usual de
“circulação”, ao permitir que certa pessoa adquira um bem a partir do site de uma empresa
sem que haja qualquer mudança de domínio sobre a utilidade em si mesma considerada. O
download de softwares não importa alteração de posse ou propriedade, mas mera
reprodução de informações, de sorte que o “estoque” da empresa que as comercializa no
ciberespaço continua inalterado independentemente de quantidade de aquisições.
65
LANARI, Flávia de Vasconcellos. A tributação do comércio eletrônico. São Paulo: Del Rey, 2005. p. 207.
José Eduardo Soares de Melo entende que os bens digitais não consubstanciam as
características de âmbito legal e constitucional de mercadoria, alertando que o software
representa um produto intelectual, objeto de cessão de direitos, de distinta natureza jurídica,
o que tornaria imprescindível uma alteração normativa66.
Ao seu modo, Hugo de Brito Machado acentua que não sendo um bem corpóreo, o
software adquirido mediante download não pode ser entendido como mercadoria,
configurando verdadeiro absurdo a exigência de ICMS sobre sua aquisição67.
Para nós, a problemática deve ser analisada a partir de três vertentes, que se
relacionam entre si: (i) possibilidade de existirem mercadorias intangíveis; (ii) distinção entre
a obra intelectual e o suporte que a contém; (iii) destinação econômica do conjunto de
elementos que formam os softwares.
66
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 19.
67
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Tributação na Internet. São Paulo: RT, 2001. p. 97.
68
BIFANO, Elidie Palma. O negócio eletrônico e o sistema tributário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin,
2004. p. 227.
69
EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB, 2003. p. 158.
70
CEZAROTI, Guilherme. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005. p. 118.
O art. 83, I, do vigente Diploma Civil considera as energias que tenham valor
econômico bem móvel para os efeitos legais. Já o art. 155, §º 3, da Carta Magna, prevê a
incidência de ICMS sobre “operações relativas a energia elétrica”. Fica patente, assim, a
possibilidade de um bem imaterial ser alocado no conceito de mercadoria, compondo o
objeto de contratos de compra e venda mercantil, por força de expressa disposição
constitucional.
A obra intelectual não se confunde com o veículo material no qual esteja inserida.
Nada impede, por exemplo, a distribuição de exemplares do Windows Vista por empresas
revendedoras das quais sequer a Microsoft ouviu falar. Os suportes que contêm o software
padronizado circulam na cadeia de distribuição independentemente dos direitos patrimoniais
sobre a obra intelectual, que permanecem com a Microsoft. O usuário final, ao adquirir um
exemplar do programa, tal como acontece na compra de CDs musicais, não arremata os
direitos autorais sobre a obra, mas apenas uma “licença”, que permitirá o uso do legal do
bem, dentro das limitações da legislação que protege as criações do intelecto. O fato de
inexistir transferência de titularidade da obra não impede, porém, a tributação das operações
concernentes à circulação do suporte que a contenha.
Com a tecnologia digital, passa a ser possível alcançar informações sem recorrer ao
suporte físico74, e a idéia de corpus mechanicum torna-se relativa. As obras imateriais
começam cada vez mais a se abstraírem do corpo que as veicula, rompendo a tradição
materialista existente. Como constata Nicholas Negroponte, a mudança dos átomos para os
bits mostra-se irrevogável, e não há como detê-la75.
71
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário nº. 176626/SP. Relator: Min.
Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 fev. 2007.
72
Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário n°. 191732/SP. Relator: Min.
Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 18 jun. 1999, p. 24.
73
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n°. 203522/SP. Relator: Min. Castro
Meira. Diário da Justiça, Brasília, 03 dez. 2005, p. 160.
74
CARBONI, Guilherme C. Direito de autor na multimídia. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 138.
75
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 10.
De outra banda, calha ter em mente que a própria lógica do comércio eletrônico
facilita uma crescente “desintermediação” dos processos de produção e distribuição77,
diminuindo a cadeia de intermediários do comércio tradicional, e contribuindo para o que Bill
Gates chama de “capitalismo sem força de atrito”78. Em outras palavras, a tecnologia digital
otimiza o contato direto entre compradores e produtores, reduzindo dramaticamente a
quantidade de intermediações usualmente existentes no comércio tradicional, e
conseqüentemente os custos da transação.
76
JARDIM NETO, José Gomes. Os produtos digitais vendidos na internet e o ICMS. In: SCHOUERI, Luís
Eduardo (Org.). Internet: o direito na era virtual. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 288.
77
Cf. CORABI, Giampaolo; MCLURE JUNIOR, Charles E. La tributación sobre el comercio electrónico:
objetivos econômicos, restricciones tecnológicas y legislación tributaria. Buenos Aires: Depalma, 2000. p. 14.
78
GATES, Bill. A estrada do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 199-201.
4. Conclusões
O presente estudo não tem a vã pretensão de solidificar conclusões absolutas. O
Direito é um fenômeno social que permite várias abordagens, não circunscritas aos limites
da dogmática. As conclusões obtidas ao cabo de nossa análise, vinculadas a premissas
metodologicamente cerradas ao espectro do direito positivo vigente, são apenas uma das
vertentes possíveis do debate acerca da incidência do ICMS nas transferências eletrônicas
de software.
Assim, vimos que a Constituição Federal de 1988 traça a moldura das competências
para a instituição e cobrança do ICMS pelos Estados, que deve ser exercida em observância
aos princípios constitucionais tributários e às regras limitativas da atuação do legislador
infraconstitucional. Em acréscimo, frisamos que a regra-matriz de incidência do ICMS-
Mercadorias pode ser decomposta e estruturada logicamente a partir de determinados
critérios, dentre os quais o critério material.
5. Referências
Livros e artigos:
AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro.11. ed. atualizada por Misabel Abreu
Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
BIFANO, Elidie Palma. O negócio eletrônico e o sistema tributário brasileiro. São Paulo:
Quartier Latin, 2004.
CARBONI, Guilherme C. Direito de autor na multimídia. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2005.
COELHO, Fábio Ulhoa.. Curso de direito comercial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v.3.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004.
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: RT,
1974.
GATES, Bill. A estrada do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996.
LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos
jurídicos relevantes. Bauru: Edipro, 2001.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Tributação na internet. São Paulo: RT, 2001.
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005.
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988.
OLIVEIRA, Júlio Maria de. Internet e competência tributária. São Paulo: Dialética, 2001.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1976.
SHOERI, Luís Eduardo (Org.). Internet: o direito na era virtual. Rio de Janeiro: Forense,
2001.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
______. Lei nº. 556, de 25 de Junho de 1850. Código Comercial. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L0556-1850.htm>. Acesso em: 20 abr. 2006.
______. Lei nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 04 abr. 2006.
MATO GROSSO (Estado). Lei nº. 7.098, de 30 de dezembro de 1998, consolidada até a
Lei nº. 8.433 de 30 de dezembro de 2005. Disponível em:
<http://www1.sefaz.mt.gov.br:8080/Sistema/Legislacao/legfinan.nsf/7c7b6a9347c50f5503256
9140065ebbf/4f7a43f654f34a6304256da4006eb06d?OpenDocument>. Acesso em: 12 abr.
2006.
Jurisprudência:
______. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n°. 203522/SP.
Relator: Min. Castro Meira. Diário da Justiça, Brasília, 03 out. 2005, p. 160.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 123.022/RS. Relator: Min José
Delgado. Diário da Justiça, Brasília, 27 out.1997, p. 54729.
______. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário n°. 191732/SP.
Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 18 jun.1999, p. 24.
1. Introdução
1
Procurador judicial do Município do Recife, Ex-professor do curso de Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Advogado e professor universitário. Trabalho de conclusão submetido ao Curso de Pós-
Graduação Latu Sensu em Direito Constitucional da UNISUL - SC.
Por mais tênue que seja a linha divisória entre a razão jurídica e a emoção da paixão,
há de se deixar claro que o intuito da discussão que ora se apresenta é o de levantar os
pontos cruciais de uma relação – Estado e Religião – que pode ser notada desde os
primórdios da história humana e, desde então, é alvo de inúmeras reflexões.
A temática dos direitos fundamentais pode ser retratada como um dos pilares do
moderno Estado Constitucional. Tal concepção é de fácil constatação quando se vislumbra
que tal matéria é abrangida pelo que se designa como sendo o conceito material de
Constituição, ou seja, aquele conjunto de normas constantes do corpo constitucional que
dão a essência ao Estado e, assim, como bem salienta Celso Bastos, “lhe conferem a
estrutura, definem as competências dos seus órgãos superiores, traçam limites da ação do
Estado, fazendo-o respeitar o mínimo de garantias individuais”.2
2
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 46.
Assim, cumpre salientar um documento que grande parte dos autores coloca como
sendo o precursor das declarações de direitos propriamente ditas, qual seja, a Magna Carta
da Inglaterra de 1215. Nesse ponto, Vladimir Brega Filho evidencia que
3
BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 6.
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 205-6.
5
BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 9.
Diante dessa assertiva, portanto, torna-se fácil denotar o caráter negativo dessa
primeira dimensão de direitos fundamentais, eis que, conforme salienta Henrique Savonitti
Miranda,
Outrossim, o que deve restar claro é que a própria submissão do Estado ao direito e
a uma ordem jurídica estabelecida acaba por fulminar a intromissão irrestrita do ente estatal
nas relações privadas, eis que, diante do império do direito, qualquer agir estatal só seria
realizável no plano fático quando autorizado por lei.
6
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 189.
7
SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 19-20.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 563.
Estes direitos fundamentais (também chamados sociais pela íntima ligação com um
princípio de justiça social) caracterizam-se, em suma, pelo deslocamento na atuação estatal
que, anteriormente, se quedava inerte perante o cidadão e agora deveria assumir uma
postura nitidamente promocional galgada, sobretudo, na promoção de uma igualdade
material. No dizer de Ingo Sarlet, tais direitos
9
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2003. p. 52.
10
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo, Malheiros, 2006. p. 229.
11
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 12 - 22.
12
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2003. p. 53-54.
Diante do até aqui exposto – afirmação histórica dos direitos fundamentais – ressalta-
se que o enfoque a ser explorado no presente trabalho parte da análise da já aludida
primeira dimensão ou geração de direitos: dimensão essa que apresenta como valor
fundamental o da liberdade. Ademais, o que se pretende debater são as relações existentes
entre Estado e Religião e, bem assim, de que forma tais relações podem vir a interferir
indevidamente na seara da liberdade dos indivíduos que, há muito, já vislumbram tal
liberdade como uma notória consagração da luta contra o absolutismo e o totalitarismo e,
sobretudo, como um dos pilares dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Para que seja possível se tratar do tema liberdade no âmbito do direito e, sobretudo,
no âmbito específico do direito constitucional, faz-se necessário que se estabeleça uma
premissa basilar, qual seja: o signo lingüístico liberdade, em si, apresenta inúmeras
acepções e conformações possíveis, sendo fácil de se notar que tal signo, particularmente, é
dotado de um viés plurívoco, ou seja, capaz de ser concebido sob diversas óticas distintas.
De fato, o que deve restar claro é a notória dificuldade em se estipular, dentro ou fora
da seara jurídica, um conceito para o tema liberdade que possa abarcar todas as distintas
acepções em que o mesmo pode vir a ser utilizado.
De toda forma, há de se perquirir, então, qual seria o conceito de liberdade a ser aqui
trabalhado e quais as acepções da mesma que devem ser abordadas quando a pauta
específica de trabalho gira em torno das implicações existentes entre Estado e Religião.
13
WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ‘novos’ direitos. In: LEITE,
José Rubens Morato; WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Os “novos” direitos no Brasil. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 6.
14
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da inconfidência. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 88.
15
Id., p. 91.
a liberdade política não consiste em fazer o que se quer. Num Estado, isto é,
numa sociedade onde há leis, a liberdade não pode consistir senão em
poder fazer o que se deve querer, e a não ser constrangido a fazer o que
16
não se deve querer.
Ainda nas palavras do citado autor, interessa mencionar que “essa noção de
liberdade, contudo, é perigosa, se não se aditar que tais leis devem ser consentidas pelo
povo”.17
Outrossim, na contínua busca por um conceito que melhor reflita o verdadeiro teor do
que pode vir a representar a liberdade, importante trazer à baila a construção francesa
advinda da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que, em consonância
com a construção de Montesquieu acima aludida por José Afonso da Silva, assim dispõe
acerca do tema:
Vale lembrar, ademais, a distinção que pode e deve ser feita dentro da conceituação
de liberdade, qual seja: a liberdade negativa e a liberdade positiva. Nesse contexto, Aldir
Guedes Soriano bem esclarece que
Com isso, resta claro que pode ser visto como livre, em uma perspectiva negativa,
aquele que, negando a autoridade, afasta uma eventual atuação ilegítima da mesma por
expressa oposição – em uma nítida resistência contra uma interferência indevida. Por outro
lado, sob uma ótica positiva, é tido como livre todo aquele que, ao participar da autoridade
ou do poder, o utiliza como um instrumento para a concretização e efetivação de tal status.
16
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
17
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
18
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1789.htm>. Acesso em: 24 set. 2008.
19
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 2.
Tal é a força dessa temática em nossa atual ordem constitucional que, em variados
trechos de seu texto, a Constituição brasileira aborda de forma expressa a liberdade como
valor magno a ser tutelado. Assim, fácil identificar que, nessas diversas abordagens
expressas, o valor liberdade é tutelado pelo ordenamento com uma distinta acepção, isto é,
o valor magno ‘liberdade’ é desdobrado em variadas órbitas a fim de que possa ser tutelado
da melhor e mais efetiva forma possível.
CF/88 – Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
21
e à propriedade, nos termos seguintes:
20
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
21
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 12.
22
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.
Seguindo-se à linha perfilhada por José Afonso da Silva, importa ressaltar, por ora,
que a tutela jurídica da liberdade é efetivada e buscada tendo-se em vista a já mencionada
pluralidade que o termo ‘liberdade’ é capaz de representar.
De fato, a divisão conceitual aplicada pelo autor acima mencionado acaba por obter
grande aceitação na seara do Direito Constitucional, eis que, em inúmeras obras doutrinárias
que abordam o tema, a mesma ou semelhante proposta didática é seguida.
Após essa construção inicial, necessário discriminar as cinco grande acepções que
podem ser notadas a partir do valor liberdade, ou seja, a partir da liberdade tratada em um
sentido amplo. São elas, nos termos do eminente constitucionalista já aludido:
23
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.
24
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 234.
Diante de tal construção, resta claro que a tutela jurídica do valor liberdade há de ser
especializada, isto é, demandando conformação jurídica diferenciada a depender da forma
de liberdade que se pretende proteger.
Todo modo – e nos termos do trabalho aqui realizado – salta aos olhos a
configuração que se produz em torno da liberdade religiosa, já que, no dizer de Aldir Guedes
Soriano
Nessa esteira, vale notar que a liberdade de religião é uma das manifestações da
liberdade de pensamento que, por sua vez, constitui uma das facetas possíveis para o
conceito de liberdade em seu sentido amplo.
Ainda nesse ponto, salutar é a definição trazida por José Afonso da Silva para a
questão da liberdade de pensamento quando diz que
25
Id., p. 234.
26
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.
27
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 240.
De início, importante trazer alguns conceitos para que se possa melhor trabalhar com
a liberdade religiosa – sobretudo quando se vislumbra que tal liberdade a ser tutelada pelo
Estado e pelo Direito não é, no mais das vezes, efetivada no caso concreto. É que não é
difícil notar, conforme será visto mais adiante, que a prática estatal atual muitas vezes traz
consigo elementos e manifestações confessionais que representam credos específicos.
E continua o aludido autor ao dizer que, “em outras palavras, poder-se-ia dizer que
esse direito confere ao homem a possibilidade de adorar a Deus, conforme sua própria
consciência”.29
Em verdade, o que deve ser notado nesse ponto é que a liberdade religiosa vai além,
inclusive, da possibilidade de que o indivíduo possa adorar a Deus como melhor lhe
aprouver – seja qual for a divindade ou entidade superior por ele adorada. O que deve ficar
claro, ademais, é que dentro desse grande espectro da liberdade religiosa há, acima de
tudo, o espaço a ser tutelado de uma possível não-adoração a qualquer Deus ou entidade
superior, isto é, a tutela tanto do ceticismo, do ateísmo e do agnosticismo dentro do patamar
maior que se vislumbra no âmbito da liberdade religiosa.
28
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 5.
29
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 5.
30
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 240.
Outrossim, não há de ser outra a conclusão quando se trata do tema, eis que, como
bem salienta Elza Galdino, a liberdade religiosa, dentro do arcabouço criado pelas
liberdades de pensamentos, se consubstancia no
Ainda nessa esteira, vale notar que o tema da liberdade religiosa é também tratado
de forma minuciosa na órbita internacional – isto é, para além do texto constitucional
consolidado.
Não há como se negar, assim, que a proteção ao valor liberdade, em sua concepção
religiosa, já é notada há muito na esfera internacional, tendo sido universalizada, sobretudo,
com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos que assim dispõe em seu
artigo 2º:
31
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41.
32
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 11.
33
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em: 25 set. 2008.
Diante do exposto, notório que o valor da liberdade religiosa se traduz como um dos
pilares a serem protegidos no Estado brasileiro e, também, na ordem internacional. Nessa
toada, exemplar é a lição de Aldir Guedes Soriano quando ao salientar que
Assim, resta claro que dentro do espectro da liberdade religiosa podem ser inseridas
e discutidas variadas acepções e significações específicas. Na mesma esteira, a
contribuição de Aldir Guedes Soriano é salutar, no momento em que preceitua que
34
Id.
35
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 9.
36
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41.
37
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 10.
De fato, o próprio texto constitucional pátrio traz – nos incisos do art. 5º - a previsão
expressa de tais subespécies da liberdade religiosa:
Alcançado tal ponto, importa traçar, de forma sintética, as distinções existentes entre
as três subespécies da liberdade religiosa apontadas por José Afonso da Silva: liberdade de
crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.
Ainda sobre o mesmo tema, Aldir Guedes Soriano complementa ao enunciar que,
38
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 247.
39
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 13.
40
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 248.
No que tange à liberdade de culto, vale lembrar que a Constituição Federal de 1988
assegura, em seu art. 5º, VI, o livre exercício dos cultos religiosos e garante, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Bem de ver, pois, que seria bastante difícil dissociar a liberdade de crença – já
analisada – da liberdade de culto. Nesse ponto – e salientando a impossível dissociação já
aludida –, José Afonso da Silva coloca que
De toda sorte, há de se ter em vista que a proteção ao culto deve ser buscada pelo
Direito enquanto tal exteriorização da crença não for contrária à ordem, tranqüilidade e
sossego, por exemplo. Nessa esteira, Alexandre de Moraes enfatiza que
a questão das pregações e curas religiosas deve ser analisada de modo que
não obstaculize a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem
tampouco acoberta práticas ilícitas.
41
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 12.
42
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 210.
43
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 248.
44
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 13.
Importa ressaltar, ainda assim, que a liberdade de organização religiosa detém íntima
ligação com a ingerência estatal nas instituições religiosas – o que nos remonta ao terceiro
capítulo do presente trabalho, onde serão expostas as possíveis e plausíveis formas de
relacionamento entre Estado e Religião. Nesse tocante, José Afonso da Silva aduz de forma
contundente que a liberdade de organização religiosa “diz respeito à possibilidade de
estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado”.47
Em uma análise inicial do tema ora proposto resta claro que, ao longo do curso da
história, as implicações entre Estado e Religião são amplamente notadas e, no mais das
vezes, acabam por demonstrar ou delinear o rumo da vida política em uma determinada
sociedade.
Desta feita, é fácil notar que inúmeras guerras e insurgências sociais tiveram algum
tipo de legitimação religiosa, vastas estruturas sociais foram redefinidas com base em
preceitos religiosos e grande parte do conhecimento e do desenvolvimento científico,
filosófico e artístico da humanidade tiveram como grande vetor algum tipo de manifestação
religiosa.
45
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 42-43.
46
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 13.
47
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249.
Todo modo, o que deve ser analisado no presente trabalho é a forma como tais
manifestações religiosas acabam por influenciar na postura estatal como um todo, ou seja,
de que forma Religião e Estado se relacionam e qual é a resultante desse relacionamento –
sobretudo na seara dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Inicialmente, a primeira concepção nas relações entre Estado e Religião a ser aqui
debatida é a da confusão ou simplesmente fusão. Nesse contexto, o Estado acaba por se
confundir com uma determinada religião, formando aquela espécie estatal que se denomina
Estado Teocrático (do qual são exemplos, na atualidade, no dizer de José Afonso da Silva, o
Vaticano e alguns Estados islâmicos).49
Neste modelo de relações a religião é tão forte e tão incrustada nas instituições do
Estado que acaba por ocupar por completo o nicho do poder político. Em tais casos, o chefe
de Estado é o próprio Deus ou, ainda, um seu representante na Terra, ou seja, o líder
espiritual acaba por ocupar, ao mesmo tempo, o posto de liderança política no Estado.
48
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249.
49
Id., p. 249.
Ainda no tema, bem coloca Antonio Carlos Wolkmer quando preceitua que
Não restam dúvidas, pois, que no espectro da confusão (ou fusão) entre Estado e
Religião tanto o Direito como o próprio Estado são absorvidos pela força da ordem religiosa,
que domina o poder político e dita por completo a ordenação social, não deixado qualquer
espaço para a existência de uma eventual escolha religiosa dos indivíduos.
Tal concepção de relação entre Estado e Igreja foi bastante notada no curso da
história e ainda se mostra presente, nos dias atuais, em alguns Estados, como a Argentina.52
Válido comentar, ademais, que o Estado brasileiro, até 1890, foi configurado como
um Estado confessional, ou seja, durante todo o período do Brasil Império. Para
fundamentar tal assertiva, basta vislumbrar o art. 5º da Constituição brasileira de 1824, que
assim dispõe:
50
WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antigüidade clássica à
modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 57.
51
Id., p. 56.
52
A Constituição Argentina atual (datada de 1853, mas alvo de inúmeras reformas amplas – a última ocorrida
1994) invoca Deus como fonte de toda razão e justiça e, em seu artigo 2º, dispõe expressamente que ‘El
gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano’.
53
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil de 25 de Março de 1824.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 25
set. 2008.
De fato, o que se extrai de tal contexto é um nítido feixe de relações existentes entre
a estrutura oficial do Estado e um determinado credo – no caso a Igreja Católica Apostólica
Romana – que, em uma atuação conjunta, intentam construir e moldar uma sociedade sob a
égide dessa tal determinada manifestação religiosa.
54
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249-
250.
55
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 211.
56
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 250.
Não há dúvidas, assim, que tal valor foi tido como uma das bases para que a atuação
estatal pudesse ser pensada sob uma nova ótica, pautada, sobretudo, nas chamadas
liberdades públicas que, no campo da religião, representariam a adoção de uma postura
neutra por parte do Estado. Desta feita, importa ressaltar as disposições constitucionais que
acabam por abordar o presente tema, isto é, a chamada laicidade do Estado brasileiro de
1988.
57
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 11.
Realmente, embora não seja o caso de uma volta a uma postura confessional, a
presença do Deus no preâmbulo da atual Constituição é muito contestada e debatida,
havendo, notadamente, fortes defensores e ferrenhos críticos de tal postura do legislador
constituinte. Vale notar, ainda no tema, que os argumentos – favoráveis ou contrários –
giram em torno da função ou papel a que se atribui ao preâmbulo constitucional.
Sintetizando tal celeuma, Marcelo Novelino anota que
Inconteste, pois, que o preâmbulo não tem força para fazer retomar uma postura
confessional, embora a alusão a Deus seja, sem sombra de dúvidas, descabida para a
introdução do texto constitucional. Nesse sentido, também, é a expressão de Elza Galdino
que, demonstrando sua notória insurgência contra a presença de Deus no preâmbulo
constitucional como uma nódoa ao Estado laico proposto pela Constituição de 1988, explicita
que
58
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro
de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso
em: 25 set. 2008.
59
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 81.
60
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 81.
CF/88 – Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
Por derradeiro, vale lembrar que toda esse disciplinamento expresso acerca da
laicidade do Estado brasileiro deve ser interpretado em consonância com aquele que foi
instaurado como valor fundamental da construção de nosso ordenamento: a liberdade em
um sentido amplo, tal qual já trabalhada nos capítulos anteriores.
61
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 17.
62
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 302.
63
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 250-
251.
O que deve ser respondido, nesse ponto, é até que ponto os súditos do Direito e do
Estado estão dispostos a conviver pacificamente com uma suposta liberdade religiosa em
um Estado que se auto-declara laico, quando, na prática, as manifestações confessionais
tomam conta do ambiente estatal de atuação política.
Assim, ao que parece, o povo – em sua autotutela dos direitos fundamentais – ainda
não provou maturidade suficiente para discutir as inúmeras ostentações religiosas – mesmo
que veladas – existentes em nosso atual Estado laico. Diante disso, Alexandre de Moraes
bem explicita que “a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira
consagração de maturidade de um povo”65, o que, na realidade brasileira, ainda nos parece
distante.
Por outro lado e em uma postura otimista bastante contundente, Elza Galdino
discorre sobre a mesma temática, deixando transparecer sua nada velada fé no povo
brasileiro ao salientar que
o povo brasileiro já demonstra maturidade para não ser tutelado em sua fé, e
para tanto o Estado deve-se abster de toda e qualquer opção religiosa, seja
ela materializada através de símbolos afixados em paredes ou apostos em
mesas de trabalho, seja ela por palavras impressas em expedientes oficiais,
seja ela gravada em cédulas de dinheiro ou, ainda, concretizada pela
autoridade de qualquer de seus prepostos. E tal abstenção, por ser medida
garantidora de direito fundamental, deve ter sua imediata aplicação pelos
Poderes Constituídos e – caso não cumprida – deve ser fiscalizada e exigida
66
pelo Supremo Tribunal Federal, no seu papel de guardião da Constituição.
64
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 105.
65
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da
Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 125.
66
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 101.
5. Considerações finais
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
1999.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
______. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
______. Do Estado liberal ao Estado social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva,
2001.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. ampl.
Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2003.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. rev. atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2002.
______. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ‘novos’ direitos. In: LEITE,
José Rubens Morato; WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Os “novos” direitos no Brasil.
São Paulo: Saraiva, 2003. p. 1-30.
Sumário: 1. Introdução – 2. Normas versus valores: uma crítica de Habermas sobre a falsa
compreensão do controle da constitucionalidade no direito alemão sob a ótica da
legitimidade da jurisdição constitucional - 2.1. Diferença entre normas e valores - 2.2.
Relação entre normas e valores com princípios - 2.3. Legitimidade do controle da
constitucionalidade - 2.3.1. O Controle da gênese das normas - 3. Considerações finais - 4.
Referências
1. Introdução
Neste breve artigo, procuraremos abordar com simplicidade e clareza esta parte da
obra de Jürgen Habermas, demonstrando as diferenças críticas sobre as normas e os
valores, nos atendo com fidelidade ao texto, e, como o próprio autor diz, apresentar uma
análise sobre a falsa compreensão do Controle da Constitucionalidade no Direito Alemão,
isto na ótica da legitimidade da jurisdição constitucional, onde não se percebe que o
1
O autor é Bacharel em Direito pela UEL, Advogado licenciado OAB/PR, Assessor de Desembargador do TJPR,
Especialista em Direito Processual Civil pelo IBEJ, Especialista em Direito Empresarial pela UEL, Mestrando em
Direito Constitucional pela UniBrasil.
2
Busca o autor, ao falar das normas em um sentido deontológico, que elas são, sob um ponto de visão ética, o
fundamento do próprio direito (normas = direito pela ética).
3
Já o sentido da expressão teleológico, para o autor, é a especulação aplicada ao intento finalístico dos
fenômenos jurídicos (a busca de um fim).
Mas a probabilidade disso acontecer não é remota, a exemplo, se dois juízes julgam
situações análogas ao mesmo tempo, com a preocupação de aterem-se muito mais ao fim a
que se destina a pretensão do que com os fundamentos do próprio direito, podem acarretar
4
Segundo a Teoria de Hans Kelsen, in obra Teoria Pura do Direito, a Norma Fundamental (Grundnorm) é uma
norma pressuposta, de premissa maior no silogismo jurídico, ou seja, uma norma máxima, que está acima de
todas as outras normas e cuja regra não é contestável.
5
Segundo a Teoria de Herbert Hart, in obra O Conceito de Direito, existe uma regra de reconhecimento onde sua
aceitação exige determinada prática social, cujo controle se faz pela própria pressão social. Esta regra comporta
critérios utilizados para a identificação das regras primárias pertencentes a um determinado sistema jurídico. E
segundo a Teoria de Ronald Dworkin in obra Levando os Direitos a Sério, diz-se que os princípios tem uma
dimensão de peso, pois quando há conflito de regras no caso concreto, aplica-o, ou seja, se há extrapolação na
interpretação do conteúdo das regras, os princípios vêm para auxiliar.
6
Segundo a Teoria de Robert Alexy, in obra Teoria da Argumentação Jurídica, interpretar os princípios
transformando-os em valores como mandamentos de otimização, de maior ou menor intensidade, vem ao
encontro do discurso da "ponderação de valores".
a) normas válidas são normas que obrigam seus destinatários sem exceção, de igual
forma e igual medida a um comportamento de expectativas generalizadas. Já os valores
expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinada sociedade,
de acordo com o agir destinado a um fim;
b) normas surgem com validade binária, ou seja, podem ser válidas ou inválidas em
relação a proposições normativas e os valores, determinam relações de preferência, as
quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros, podendo ser
maior ou menor;
7
Segundo Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito, "as normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas)
porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não
porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem
jurídica for eficaz...".
8
Conforme Miguel Reale em sua Teoria Tridimensional do Direito, os valores constituem experiência jurídica e
pelo fato dos bens materiais serem constituídos de interesses, há implicância na tomada de decisões, que se
realizam com a sucessão de vários elementos normativos, traduzidos nas valorações humanas através do tempo
e do espaço. Norma é conduta; valor é intuição.
Se exemplificarmos com uma situação de agir, com certeza não obteremos uma
mesma resposta, pois sob a ótica das normas, será possível decidir o que deve ser feito com
base na legislação aplicável ou seja, mediante a conduta a ser tomada e na ótica dos
valores, no máximo será possível saber qual o melhor comportamento, o pertinente,
recomendável, mas nunca, o absoluto por si9, diante da questão intuitiva que venha a
parecer a melhor solução10.
9
Diz o autor, quanto à aplicação da norma ou valor, que "O problema da aplicação exige naturalmente, em
ambos os casos, a seleção da ação correta; porém, no caso de normas, "correto" é quando partimos de um
sistema de normas válidas, e a ação é igualmente boa para todos; ao passo que, numa constelação de valores,
típica para uma cultura ou forma de vida, é "correto" o comportamento que, em sua totalidade e a longo prazo, é
bom para nós." (op. cit., p. 317)
10
Carlos María Cárcova, em seu artigo ¿Qué Hacen los Jueces Cuando Juzgan? argumenta que: "Pensar el
derecho como una práctica social discursiva significa asumir que consiste en algo más que palabras; que es
también comportamientos, símbolos, conocimientos. Que es al mismo tiempo, lo que la ley manda, los jueces
interpretan los abogados argumentan, los litigantes declaran, los teóricos producen, los legisladores sancionan o
los doctrinarios critican y, además, lo que a nivel de los súditos opera como sistema de representaciones. (...).
Que hacen, entonces, los jueces cuando juzgan? Según parece: conocen, interpretan, valoran, deslindan,
estipulan. No de una manera monádica, aislados, solitarios y caprichosos. Sino como seres sociales, portadores
de una cultura técnica, pero irreductiblemente permeables al conjunto de representaciones, estados de
conciencia y visiones del mundo que comparten con sus congéneres y coadyuvan, con su trabajo, a veces a
conservar y outras veces a transformar."
11
Segundo Ronald Dworkin, in obra Levando os Direitos a Sério, os princípios são padrões de direito, tentando
ser regras e na ótica do positivismo jurídico, se assim o fossem, não seriam regras válidas de uma lei acima do
direito, isto porque não são regras.
Essas normas de ordem ontológicas, que tratam do ser enquanto ser, objetivam bens
e valores, transformando-os em entidades que existem em si mesmas.
12
Em "O Império do Direito", Ronald Dworkin destaca que se um juiz está convencido de que uma lei admite
apenas uma interpretação, então, executando-se o impedimento constitucional, ele deve colocar em prática essa
interpretação como sendo o direito, mesmo que considere tal lei incoerente, em princípio, com o direito entendido
em seu sentido mais amplo. Enfim, ressalta que o direito é um conceito interpretativo e os juízes devem decidir o
que é o direito interpretando o modo usual como os outros juízes decidiram o que é o direito.
No entanto, caso haja uma colisão de normas13, para Habermas, ocorrem pontos de
vista distintos que permitem introduzir argumentos no discurso jurídico, mas tais argumentos
não são mais do que princípios jurídicos à luz dos quais esses bens e princípios podem ser
justificados. Habermas (1997, p. 322) afirma:
13
Leia-se também princípios.
Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à
aplicação de normas de caráter constitucional, pressupostas como válidas. Por isso que a
distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas
ou valores oferece ao julgador, um critério lógico-argumentativo de delimitação de tarefas
tidas por legitimadoras da justiça e da legislação, inclusive. Habermas (1997, p. 324) afirma:
Neste caso, o Tribunal torna a desliguar-se dos argumentos com os quais o legislador
legitima suas proposições, a fim de mobilizá-los para uma decisão coerente e justa em cada
caso particular, de acordo com princípios do direito vigente. Vê-se aqui a atuação do
legislador sob moldes de casos abstratos e do judiciário, de casos concretos.
Todavia, o legislador não pode dispor desses argumentos para uma interpretação
imediata do Tribunal e para uma configuração do sistema do direito e, com isso, para uma
legislação implícita ou seja, o legislador não cria uma norma pensando na forma como ela
será aplicada pelo julgador, mas em razão de sua necessidade social, em prol dos cidadãos.
A partir do momento em que uma norma não mais permite tal aplicação coerente,
conforme à Constituição, ela coloca a questão do controle abstrato de normas a ser
empreendido basicamente na perspectiva do legislador.
Por isso, Habermas entende que o Tribunal Constitucional Alemão precisa examinar
os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos
comunicativos e as condições procedimentais do processo de legislação democrática.
Logo, o Tribunal tem que tomar as precauções necessárias para que permaneçam
intactos os "canais" entre os Poderes do Estado, para que o processo inclusivo de formação
14
No sentido prático, de argumentos úteis.
15
Entretanto, para Lênio Luiz Streck, na obra Verdade e Consenso, esta crítica é indevida, pois não entende ter
havido algum ativismo nessas decisões, ou seja, de aplicação da jurisprudência de valores negando a estrutura
mínima do texto constitucional.
16
Diz o citado professor que "Normas não tem estrutura comprobatória, isto é, não dizem como as coisas são,
porque não se referem aos fatos, mas a validades, a finalidades. Elas não fazem a atualização entre o passado e
o presente, pois não se restringem ao acontecido. Normas transcendem as determinações dos acontecimentos e
se projetam no futuro, como finalidade do universo simbólico. Enquanto as sentenças descritivas dizem respeito
aos fatos como eles são, as sentenças prescritivas dizem como os homens devem se portar. Os homens e não
as coisas. De cunho prático, as normas têm uma estrutura que não constitui a realidade, mas que a transforma
ao designar limites. Neste sentido, toda norma transcende e se distingue dos fatos, tanto quantitativa como
qualitativamente." (MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 56).
Quanto aos discursos jurídicos, esses podem pretender para si mesmos uma elevada
suposição de racionalidade, porque discursos de aplicação são especializados em questões
de aplicação de normas, sendo por isso institucionalizados no quadro da clássica
distribuição de papéis entre partidos e um terceiro imparcial.
Portanto, eles não podem substituir discursos políticos, que são talhados para a
fundamentação de normas e determinações de objetivos, exigindo a inclusão de todos os
atingidos, tanto mais que a racionalidade inerente ao processo político necessita de maiores
esclarecimentos.
Por esta razão é que o conceito básico de uma justiça procedimental de formação
política de opinião e da vontade pública exige uma teoria da democracia cujas feições, no
entanto, se revelam cada vez mais convencionais ao olhar de todos, mas perigosa ao olhar
dos juizes.
3. Considerações finais
À luz das normas, ao Tribunal Constitucional é possível saber o que fazer, mas no
horizonte dos valores, somente é possível decidir qual o comportamento recomendável.
Isto não é bom, pois pela validade das normas, as decisões se aderem ao absoluto,
mas pela validade dos valores, ao relativo. Criteriosamente, um valor pode até ser
4. Referências
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria
da justificação juridica. São Paulo: Landy, 2001.
CÁRCOVA, Carlos Maria. ¿Qué hacen los jueces cuando juzgan?. Revista da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Paraná, v. 33, v. 35, 2001. Disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/ article/view/1806/1502.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1983.
1. Introdução
Assim está escrito no livro de Gênesis, o primeiro livro do Pentateuco3, de autoria do
profeta Moisés:
No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma
e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava
sobre as águas.
1
Este artigo foi extraído, sintetizado e adaptado do trabalho monográfico, de mesmo nome, apresentado na
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, perante a banca composta pelo Des. Nagib Slaibi Filho
(presidente), Des. Fed. Poul Erik Dyrlund (orientador) e Dr. Humberto Peña de Moraes (convidado), o qual
recebeu, por unanimidade, o grau máximo.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho, Pós-Graduado e Professor de Direito Constitucional da
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) - mjmota@oi.com.br.
3
O Pentateuco, do grego pentateuchos, “livro em cinco volumes”, integra a primeira seção do Antigo Testamento
na Bíblica Cristã. É composto pelos livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e Deuteronômio. De acordo com
os teólogos, todos foram escritos pelo profeta Moisés.
4
Livro de Gênesis, I.1-31; II.1-2. Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000, p.
8-10.
5
Existe grande controvérsia doutrinária a respeito da utilização das expressões “direitos humanos”, “direitos
fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”. Entende-se que a preferência terminológica adotada por este
artigo, direitos humanos fundamentais, expressa maior compatibilidade com a realidade contemporânea
globalizada.
6
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p.138.
7
A doutrina não é pacífica no entendimento de os direitos e garantias individuais englobarem os direitos sociais.
Entretanto, num Estado Social e Democrático de Direito, os direitos sociais são os que mais carecem de
efetivação e proteção, um vez que “[...] a democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – aponta para
a realização dos direitos políticos, que apontam para a realização dos direitos econômicos e sociais, que
garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante. Os direitos
econômicos e sociais são de natureza igualitária, sem os quais os outros não se efetivam realmente”. SILVA,
José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 132.
8
Deve ser feita ressalva no sentido de ser a titularidade indeterminável característica dos interesses difusos, pois
os direitos meta ou transindividuais englobam, ainda, os interesses coletivos e os individuais homogêneos, cuja
titularidade é determinável ou determinada, respectivamente. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses
difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 52.
9
Alexandre de Moraes. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 59. Ingo W.
Sarlet. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004.
p. 54-58.
10
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno – MS n. 22.164/SP. Relator: Ministro Celso de Mello. Diário da
Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206.
11
“Como conclui Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ‘a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a
segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade,
igualdade e fraternidade”. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 60.
12
Alguns entendem haver quatro gerações, a saber: direitos de primeira geração, os direitos individuais; os de
segunda geração, os direitos políticos; os de terceira geração, os direitos sociais; e os de quarta geração, os
direitos difusos. Outros entendem por bem unir os direitos de primeira e segunda geração, expostos pela corrente
doutrinária oposta, em apenas uma geração, ou seja, direitos de primeira geração, os direitos individuais e
políticos; os de segunda geração, os direitos sociais; e os de terceira geração, os direitos difusos. O presente
artigo adotará esta última posição.
Sob o aspecto da legitimidade, a norma encerra algo nunca antes visto em qualquer
outra seara do Direito, uma vez que confere o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado para “as presentes e futuras gerações”. Ora, se na seara cível são assegurados,
desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2º, Código Civil), eis aqui um direito
garantido àqueles que nem pré-concebidos estão. A amplitude com que se expressou o
constituinte originário demonstra, de plano, a grandeza do direito que ambicionou
resguardar.
13
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004, p. 53.
14
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 60. BARROSO, Luis Roberto. O
direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 102.
O conteúdo diferenciado do direito em exame já se faz sentir, uma vez que, com base
no texto constitucional, é possível tratar “desigualmente aos desiguais, na medida em que se
desigualam”. Com efeito, a defesa do meio ambiente importa adoção de critérios distintos
em relação aos atores econômicos. Na verdade, o artigo encerra a possibilidade de se
flexibilizar o princípio da isonomia, vale dizer, quem exerce uma atividade econômica sem
observância da proteção ao meio ambiente merecerá tratamento diverso em relação àquele
que se amolda aos ditames constitucionais. Trata-se da aplicação daquilo que se poderia
definir como princípio da isonomia ambiental.
15
“Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um típico direito de
terceira geração” (BRASIL. Superior Tribunal Federal. 1ª Turma. RExtr. n. 134.297-8/SP. Relator: Ministro Celso
de Mello. Diário da Justiça, Brasília, Seção I, 22 set. 1995, p. 30.597).
16
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 48.
Finalmente, uma última consideração merece ser feita em relação aos interesses
difusos e o princípio da dignidade da pessoa humana, diferenciando-se “dignidade da
pessoa humana” e “dignidade humana”.
O termo meio ambiente pode ser empregado para designar quatro19 espécies
distintas: meio ambiente natural ou físico, meio ambiente artificial ou urbano, meio ambiente
cultural e meio ambiente do trabalho.
19
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 3-5. LEITE,
José Adércio Sampaio; WOOD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de direito ambiental: na dimensão
internacional e comparada. Belo Horizonte, Del Rey, 2003. p. 47, nota de rodapé n. 15. MAZZILLI, Hugo Nigro. A
defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 137.
Outra espécie de meio ambiente contida no próprio capítulo que trata do meio
ambiente ecologicamente equilibrado é o meio ambiente pré-intra-uterino, disciplinado pelo
art. 225, § 1º, II, da Carta. Atualmente, existe grande controvérsia a respeito dos embriões
excedentários20, que consiste em saber o que pode ser feito com esses embriões, se seriam
passíveis de experimentação ou simplesmente poderiam ser descartados21. O estudo da
principiologia dessa espécie de meio ambiente poderá solucionar o debate que, em verdade,
gravita em torno do próprio início da existência humana, tema diretamente relacionado à
bioética.
20
Aqueles que não foram utilizados pela técnica de reprodução assistida e, por isso, colocados a baixíssimas
temperaturas, em hibernação, também denominados criopreservados.
21
A Lei n. 8974/95, regulamenta os incisos II e V do parágrafo primeiro do art. 225, e a Lei n. 11.105/05,
o
regulamenta os incisos II, IV e V do § 1 do art. 225, ambos da Constituição da República.
22
Por conta da imperiosa exigüidade que merece este artigo, foram suprimidos, além de vários outros, os
conteúdos relativos à proposta de classificação dos direitos humanos fundamentais, que tem como pressuposto a
existência de um núcleo primário e quatro núcleos secundários (e a aparente contraditio in terminis nesta
proposição, uma vez que o verbete “núcleo” denota a característica da unicidade), assim como o
desenvolvimento do estudo dos deveres fundamentais.
Para que seja caracterizado um dever fundamental é necessário que o direito esteja
ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana ou a qualquer dos outros núcleos
secundários dos direitos humanos fundamentais.
23
Conforme doutrina clássica, as normas definidoras de direitos se classificam como normas de eficácia plena
(note-se que essa classificação é, em verdade, inviável, pois os direitos devem ser harmonizados, na hipótese de
colisão; por isso, a característica de relatividade dos direitos humanos fundamentais), normas de eficácia contida,
e normas de eficácia limitada (uma espécie daquilo que se poderia chamar, em analogia ao Direito Penal, de
norma constitucional em branco).
24
“De outra parte, como já demonstrado a partir das considerações tecidas a respeito da obra de Holmes e
Sunstein, não apenas os direitos econômicos, sociais e culturais implicam políticas públicas, mas também direitos
habitualmente designados de individuais ou identificados (no nosso sentir equivocadamente) como os direitos de
liberdade, já que para assegurar a efetividade de qualquer direito, não há como prescindir da alocação de toda
uma gama de recursos públicos [...]”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto
Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 221. Esse tema não passou despercebido das lições de José Afonso da Silva,
ao afirmar que, pela dinâmica econômico-social do nosso tempo, “[...] o desfrute de qualquer direito fundamental
exige a atuação ativa dos poderes públicos”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.
São Paulo: Malheiros, 2003. p. 177.
Aspecto que também deve ser levado em consideração nesta temática é a eficácia
horizontal dos direitos humanos fundamentais, porquanto são postuláveis não apenas em
face do Estado, mas também no âmbito das relações interprivadas25, vale dizer, diante de
todo aquele que for destinatário de um dever fundamental, como ocorre, por exemplo, com o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
25
“[...] a idéia de os direitos fundamentais irradiarem efeitos também nas relações privadas e não constituírem
apenas direitos oponíveis aos poderes públicos vem sendo considerada um dos mais relevantes desdobramentos
da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 158.
26
À semelhança do que acontece com o princípio da dignidade da pessoa humana, a função social também é
continente, englobando vários outros valores ou princípios para formação de seu conteúdo.
27
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 100.
28
BRASIL. Superior Tribunal Justiça. MS n. 1856-2/DF -1ª Seção. Relator: Ministro Milton Luiz Pereira.
Ementário STJ, Brasília, n. 8/318.
A referência à função social põe termo à divisão entre direito público e privado, pois
“[...] dentro de uma ordem jurídica de caráter social, o direito público e o direito privado não
se acham um ao lado do outro, separados por uma fronteira rígida. Pelo contrário, tendem a
29
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 282.
30
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 119 e 121.
31
Nesse sentido, o art. 9º, § 3º, da Lei 8629/93, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à
reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Carta.
32
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p.230.
33
SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1999. v.1, p. 137.
O art. 1º, caput, da Carta Política de 1988, dispõe que a República Federativa do
Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito. No entanto, seus objetivos
fundamentais, expressos pelo art. 3º, vão ao encontro de todo o sistema de idéias
desenvolvido pela social-democracia, o que permite afirmar a adoção, pelo constituinte
originário, de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito.37
Assim, a aplicabilidade da função social bem pode ser resumida através dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, isto é, a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, em que haja a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades
sociais, com a promoção do bem de todos, sem nenhuma espécie de preconceitos ou
quaisquer outras formas de discriminação, garantido o desenvolvimento nacional.
34
MORAES, José Diniz de. A unção social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 105.
35
Concepção política decorrente do marxismo, que buscava a transição para uma sociedade socialista de forma
pacífica, por meio de uma evolução democrática, sem necessidade da via revolucionária.
36
Bernstein se convenceu estarem equivocadas as teses marxistas diante da evolução das sociedades em que a
economia capitalista estava implementada, pois ao invés de aumentar a pobreza, o capitalismo promovia o bem
estar da população por meio da geração de riqueza e, em razão disso, era importante seu desenvolvimento, e
não sua abolição como defendiam Marx e Engels.
37
Prefere José Afonso da Silva não adotar a expressão Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que
“[...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa
quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha
e da Monarquia Espanhola para chamá-lo de Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o
qualificativo social ligado a Estado, engasta-se aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State,
(...) delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116 a 120.
38
Roberto Mangabeira Unger afirma: “[...] O que definiu a formação da social-democracia no curso do século
vinte foi o abandono da tentativa de reorganizar o Estado e o mercado em favor da adoção de políticas de
redistribuição econômica e proteção social. Políticas que humanizariam as instituições que os social-democratas
deixaram de contestar (...) Em todas as social-democracias européias, a base social de acesso aos setores
avançados da produção e do ensino se estreitou a tal ponto que só pequena minoria consegue ascender a eles.
As maiorias, ainda quando protegidas contra a insegurança econômica, estão condenadas a empregos rotineiros,
sem futuro (...) A social-democracia européia é um ídolo de barro. Em vez de adorá-lo, tratemos de evitar seus
erros [...]”. Disponível em: < www.law.harvard.edu/faculty/unger/ >. Acesso em: 23 maio 2008.
Nos países que adotam o sistema capitalista, a função social, quando prevista em
legislação, encontra-se, com freqüência, relacionada aos bens de produção, em especial, à
propriedade.
Contudo, em que pese a função social da propriedade ter tido esse escopo,
modernamente, a preservação do meio ambiente também se encontra nela inserida, vale
dizer, se antes a função social era mera decorrência de um sistema econômico, pelo
complexo normativo hodierno, passou a ter uma coloração mais ecológica, seja por força da
nova sistemática civilística, em que foi instituída a função sócio-ambiental da propriedade,
seja pelo comprometimento da Carta com a preservação dos ecossistemas, alçando-a a
condição de princípio geral da atividade econômica.
No entanto, não pode ser considerada como verdadeira a afirmativa de que apenas
a propriedade e os contratos possuem função social. Tratá-la como atributo exclusivo dos
39
Entretanto, o que deveria ocorrer num mundo de economia globalizada, em que o grande capital se tornou
apátrida, descompromissado com o Estado nacional, é o desenvolvimento da democracia participativa nas
esferas locais, com maior autonomia dos núcleos de poder próximos aos cidadãos.
40
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 67.
41
Contudo, o próprio autor, refutando o entendimento de Orlando Gomes, afirma mais adiante: “Só apedeuta,
podemos afirmar, atribuiria a uma obra de arte, a um edifício antigo, a um apartamento residencial, a qualidade
de bens produtivos. Todavia, não se duvida de que em determinadas situações desempenham elas veras e
próprias funções sociais. O proprietário de uma obra de arte, pelo princípio da função social, tem a obrigação de
preservá-la, pode ser obrigado a dar preferência ao Estado em caso de alienação, ela pode ser desapropriada
por interesse social etc.”. MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal
de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 146.
Retorne-se as máximas de Léon Duguit, “[...] todo homem tem uma função social a
cumprir [...]”, e de GüntherJakobs, “[...] os seres humanos encontram-se num mundo social
na condição de portadores de um papel [...]”. De tal modo, o art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.906/94,
Estatuto da Advocacia, ao afirmar que o advogado, no seu ministério privado, “[...] presta
serviço público e exerce função social”.
Corroborando essa linha de entendimento, cite-se a Lei n. 9.787/99, que dispôs sobre
a vigilância sanitária e estabeleceu o medicamento genérico. Em observância ao dever
fundamental da saúde, contido expressamente noart.196, da Constituição, o governo federal
mitigou a proteção patentária e outros direitos de exclusividade de diversos laboratórios, ao
fundamento de que os medicamentos, em razão de sua relevante função social, não
poderiam ter suas fórmulas restritas aos interesses daqueles. De tal sorte, tornaram-se
públicas as patentes e os medicamentos genéricos passaram a ser comercializados por um
valor mais baixo do que os originais de marca, o que franqueou o seu acesso às populações
mais carentes.
Resta enfrentar a questão concernente a saber qual seria a função social a ser
desempenhada pelos bens móveis, em especial, os bens de uso e consumo.
O ser humano do século XXI vive numa sociedade que transformou a máxima de
René Descartes, cogito, ergosum, para consumo, ergo sum. Torna-se utópica a concepção
de vida em sociedade dissociada da idéia de consumo. O útil e o supérfluo tomam conta do
imaginário do homem. O avanço das tecnológicas, a propagação dos meios de comunicação
de massa, as técnicas de merchandising, enfim, todo o desenvolvimento da era atual modela
sua personalidade. O aumento do consumo encontra previsão, e.g., na Constituição
42
Nesse sentido, a norma de gerenciamento ISO 14000.
4. Da reciclagem43
43
Foram suprimidos deste artigo o histórico sobre leis e cartas internacionais relativas à matéria ambiental, assim
como os conceitos de lixo, permacultura, cores na reciclagem, os materiais recicláveis, suas especificações e
legislação pertinente (papel e papelão, vidro, plásticos, metais, pneus, pilhas e baterias, e-waste, entulho da
construção civil, resíduos de serviço de saúde e embalagens agrotóxicas), e, por fim, as considerações sobre a
incineração e os aterros sanitários.
Em direito comparado, embora o conceito seja em sentido restrito, pode ser citada a
Diretiva 94/62/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 1994,
relativa às embalagens e resíduos de embalagens.45
44
É o caso, e.g., da Lei n. 9976/00; do Decreto n. 98.816/00, que regulamenta a Lei n. 7802/90; e da Lei
10.357/01.
45
É o “[...] reprocessamento, num processo de produção, dos resíduos para o fim inicial ou para outros fins,
incluindo a reciclagem orgânica, mas não a valorização energética”.
46
Ecodesign significa a moderna tendência na criação de produtos, levando em consideração a funcionalidade, o
manuseio e a eficiência, com o objetivo de maximizar o reaproveitamento e buscar não apenas a produção limpa,
ou a ecoeficiência, mas a otimização ambiental na manufatura dos produtos. Como forma de sua não
observância, cite-se um exemplo bem comum, o copo d’água vendido nos estabelecimentos comerciais. O
recipiente é de plástico, porém sua cobertura é de alumínio. Melhores, portanto, são as garrafas plásticas de
água, pois tanto o recipiente, como a tampa, são de plástico. O mesmo ocorre com determinados gêneros
alimentícios como patês, conservas, requeijão, extratos e molhos de tomate. Muitas vezes, o recipiente é de
vidro, a tampa é de alumínio e o sistema de pressurização possui uma pequena tampa de plástico no centro da
tampa de alumínio. Há, portanto, três materiais diferentes em apenas um único produto, o que dificulta o correto
descarte.
47
A Lei n. 11.097, de 13 de janeiro de 2005, dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz energética
brasileira.
48
Consiste no processo de decomposição de matéria orgânica, animal ou vegetal, que gera como resultado final,
o composto orgânico, utilizado como fertilizante para o melhoramento das propriedades físicas, químicas e
bioquímicas do solo. Estima-se que mais de 60% do lixo coletado no País seja formado por restos de vegetais e
De acordo com o art. 23, VI, da Carta, é da competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, proteger o meio ambiente e combater a
poluição em qualquer de suas formas.
Já pelo art. 24, VI, compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição.
animais. Contudo, apenas 2% desse total tem sido reaproveitado como fertilizante agrícola ou encaminhado às
usinas de compostagem.
De acordo com o art. 170, VI, da Carta, a defesa do meio ambiente se caracteriza
como um dos princípios gerais da ordem econômica e, de acordo com a nova redação
instituída pela emenda constitucional n. 42/2003, é possível estabelecer um tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação.
O art. 174, caput, do Diploma, prevê que o Estado exercerá, enquanto agente
normativo e regulador da atividade econômica, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
49
No que concerne à esfera federal, cite-se os Projetos de Lei do Senado (PLS) 269/1999, 137/2001 e 160/2002.
Com relação à legislação estadual do Rio de Janeiro, merecem destaque a Lei n. 4195/03; Lei n. 3206/99; Lei n.
2110/93; Lei n. 3606/01; Lei n. 4169/03; Lei n. 1831/91; Lei n. 1838/91; e, por fim, a Lei n. 4178/03.
50
No Estado do Rio de Janeiro, cuida-se da Lei n. 4191/2003.
51
Observando-se, contudo, o que dispõe o princípio 12º, da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento: “As medidas de política comercial para fins ambientais não devem constituir um meio de
discriminação arbitrária ou injustificável, ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional”.
Outro ponto diz respeito à colocação de recipientes adequados nas vias públicas que
permitam o descarte adequado, sendo necessário, de igual modo, que os meios de
transporte utilizados para a limpeza urbana estejam capacitados para realizar essa coleta,
poisseria inócua a separação dos materiais se o fim a lhes ser dado for a incineração ou os
lixões.
Assim, ao Estado compete o dever de oportunizar a coleta seletiva, pois o outro elo
desta cadeia está nas mãos dos particulares.
52
Vide a Lei n. 2011/92, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a obrigatoriedade da implementação de
programa de redução de resíduos.
53
Assim é a Lei n. 1862, de 4 de fevereiro de 2005, do Município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de
Janeiro, que instituiu, em seu artigo 1º, a taxa de recomposição ambiental.
54
Cite-se o art. 1º, § 1º, VI, da Lei n. 10.831/2003.
55
A Lei n. 1831/91, do Estado do Rio de Janeiro, tornou obrigatória a coleta seletiva do lixo nas Escolas Públicas
do Estado.
56
Assim é a Lei n. 3706/02, do Município de Americana, São Paulo, que instituiu a Semana Municipal de
Reciclagem do Lixo.
De início, é importante ressaltar que nenhuma empresa produz lixo à toa. Ele é
gerado ao mesmo tempo em que se produz riqueza e desenvolvimento para a nação. Isso
não quer dizer que fabricantes e produtores não venham a ser responsabilizados pelos
produtos que coloquem no mercado, mas sim, que o principal nesse processo é a
participação conjunta entre setor público e setor privado.
De igual modo, o art. 931, do Código Civil, dispõe que “os empresários individuais e
as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos
postos em circulação”. Diferentemente do que ocorre no Código de Defesa do Consumidor,
57
Há um conceito empresarial denominado triple-bottom-line, que diz respeito à mensuração do desempenho de
uma empresa tendo em conta parâmetros de responsabilidade econômica, social e ambiental.
58
É comum, atualmente, em jornais e revistas, a publicação das ações sociais empreendidas por grandes
empresas, redefinindo o próprio conceito de publicidade, uma vez que não mais se apresenta o produto ou
serviço, mas, por meio do novo marketing corporativo, é divulgado aquilo que está sendo desenvolvido em favor
da sociedade.
59
A União Européia, por meio da Comunicação da Comissão sobre enquadramento comunitário dos auxílios
estatais a favor do ambiente (2001/C 37/03), define, em seu item 6, o princípio do poluidor pagador como o
princípio segundo o qual os custos da luta contra a poluição devem ser imputados aos poluidores por ela
responsáveis.
Para que o artigo em exame não seja considerado mera repetição da norma
consumeirista, deve-se buscar uma interpretação na qual se possa extrair mais do que
aquilo que já encontra previsão legal. Afirmar que a norma civil incidiria nos casos em que
não se tratasse de relações de consumo parece não ser suficiente, e até mesmo
equivocado, pois a utilização dos termos “produto” e “circulação” denotam que o legislador
teve por finalidade tratar de relações de consumo.
Assim, é possível fazer uma interpretação no sentido de que a norma civil trata de
relações de consumo, mas não está limitada àquelas disposições contidas na
leiconsumeirista, abrangendo pela expressão dano, o dano ambiental, coadunando-se,
portanto, com o dispositivo constitucional supra citado.
60
A Lei n. 6938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, IV, conceitua poluidor
como pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade
causadora de degradação ambiental. Na União Européia, a Comunicação da Comissão sobre enquadramento
comunitário dos auxílios estatais a favor do ambiente (2001/C 37/03), define, em seu item 6, o conceito de
poluidor como todo aquele que contribui, direta ou indiretamente, para a degradação do ambiente ou cria as
condições conducentes à sua degradação.
61
No total, a Diretiva 2004/35/CE, de abril de 2004, possui um rol de 31 considerandas, 21 artigos a respeito do
princípio do poluidor pagador, e seis anexos à legislação.
62
Na União Européia, a Comunicação da Comissão sobre enquadramento comunitário dos auxílios estatais a
favor do ambiente (2001/C 37/03), conceitua, em seu item 6, a internalização dos custos: “[...] por internalização
dos custos deve entender-se a necessidade de as empresas absorverem nos seus custos de produção o
conjunto dos custos associados à proteção do ambiente”.
63
As taxas de disposição têm por objetivo internalizar os custos para o gerenciamento de resíduos dos produtos
industrializados e suas embalagens. Entretanto, é importante ressaltar que o princípio da internalização dos
custos acaba fazendo com que todo o financiamento de políticas econômicas sustentáveis seja suportado pelo
consumidor final, o que torna sem efeito o princípio do poluidor pagador.
64
Biodegradável significa a possibilidade de decomposição por meio de bactérias, geralmente em meio aquático.
Quanto mais se consome, mais se extrai do meio ambiente e mais lixo é gerado.
Nesse circulo vicioso, tanto os seres humanos, como o meio ambiente saem perdendo.
65
Cite-se, como exemplo, as Resoluções n. 9, 257, 258, 283, 307 e 334 do Conselho.
66
Como, por exemplo, a Adbusters, Buy Nothing Christmas, Global Exchange, Fair Trade, Anti-Consumerism
Action e a Christmas Resistance. O programa Buy Nothing Day encontra-se presente em diversos países como
Alemanha, Itália, Dinamarca, Suécia, Portugal, Japão, Nova Zelândia e outros.
67
Entenda-se por consumismo, expressão cunhada somente a partir do século XX, a distorção do ato de gastar,
ou o gastar como elemento substitutivo e compensatório de outros valores interiores mais elevados e importantes
ao desenvolvimento humano.
Dessa sorte, cria-se aquilo que poderia ser denominado de teoria do fornecedor por
equiparação.
De acordo com o art. 2º, caput, da lei consumeirista, consumidor é toda pessoa física
ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Em seu
parágrafo único, bem como nos arts. 17 e 29, a lei trata dos consumidores por equiparação.
68
Um passo nesse sentido seria a compulsoriedade de empresas que obtivessem um determinado faturamento
anual fizessem aquilo que algumas já desenvolvem por meio do novo marketing corporativo, ou seja, a
divulgação de suas ações sociais perante a mídia.
69
A logística tradicional consiste no gerenciamento do fluxo de materiais do ponto de origem até o ponto de
consumo. Entretanto, existe também o fluxo contrário, isto é, do ponto de consumo até o ponto de origem. A isso
se denominou logística reversa, que pode ser definida como a área da logística empresarial que planeja, opera e
controla o fluxo de retorno dos bens de pós-venda e de pós-consumo ao ciclo de negócios ou ao ciclo produtivo,
agregando valores legais, econômicos e ecológicos.
Por meio da logística reversa, inclui-se, nesse rol de atividades dos fornecedores, a
devoluçãode produtos a ser empreendida pelos consumidores.
A teoria se justifica por meio do próprio texto constitucional quando trata do direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao afirmar ser dever de todos, inclusive da
coletividade, defendê-lo e preservá-lo.
Vale dizer, por fim, que tratar o consumidor como o fornecedor por equiparação não
significa que todas as disposições contidas na lei consumeirista dirigidas aos fornecedores
incidiriam sobre ele, como, por exemplo, propaganda enganosa, mas sim, que lhe seria
A isenção vem prevista pelo art. 175, I, do CTN, como forma de exclusão70 do crédito
tributário.
Contudo, a utilização dos denominados impostos verdes não é uma ferramenta que
encontra uniformidade entre os economistas, porquanto os custos para a preservação
70
Todavia, o entendimento doutrinário mais moderno rechaça tal concepção, uma vez que “[...] a isenção não
exclui crédito algum, pois é fator impeditivo do nascimento da obrigação tributária, ao subtrair fato, ato ou pessoa
da hipótese de incidência da norma impositiva”. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 737. No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres. TORRES, Ricardo
Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 273.
71
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e direito econômico. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 718.
72
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. RESP n. 55.895/RJ. Relator: Ministro Ari Pargendler. Diário
da Justiça, Brasília, 17 de mar. 1999, p. 7462.
73
BROWN, Lester R. Eco-economia: construindo uma economia para a terra. Salvador: Universidade Livre da
Mata Atlântica (UMA), 2003. p. 251.
Uma medida com maior aceitação nos países da Europa é o remanejamento fiscal.
Consiste, basicamente, na composição dos impostos, isto é, “[...] reduzir impostos sobre a
74
renda, compensando-os com impostos sobre atividades ambientalmente destrutivas [...]” ,
como emissões de carbono, geração de lixo tóxico, uso de matérias-primas virgens,
emissões de mercúrio, uso de agrotóxicos etc.
Todos os Municípios brasileiros têm direito a receber parte dos recursos tributários
arrecadados pela União e pelos Estados, conforme dispõe a Constituição da República, na
seção que cuida da repartição das receitas tributárias (arts. 157 a 162).
Além dos impostos federais, são repassados aos Municípios 25% do produto da
arrecadação do ICMS, conforme o art. 158, IV, da Carta. Esse percentual, por sua vez, é
disciplinado da seguinte forma: três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado
nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços,
realizadas em seus territórios, e até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual
ou, no caso dos Territórios, lei federal (art. 158, § único, I e II).
Com relação a esse último aspecto, isto é, os 25% disciplinados mediante lei
estadual, é que enseja o ICMS-Ecológico.
Assim, não se trata de novo imposto, mas sim, de uma forma que se vale de um
critério ambiental, com fundamento no princípio do desenvolvimento sustentável, de
redistribuir parte dos recursos arrecadados pelos Estados com o ICMS, constitucionalmente
74
BROWN, Lester R. Eco-economia: construindo uma economia para a terra. Salvador: Universidade Livre da
Mata Atlântica (UMA), 2003. p. 252.
75
O PL n. 203, de 1991, trata do acondicionamento, coleta, tratamento, transporte e destinação final dos resíduos
de serviços de saúde. Sua origem é o PLS 354/1989.
76
Trata-se de um projeto que visa instituir a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), seus princípios,
objetivos e instrumentos, bem como estabelecer diretrizes e normas de ordem pública e interesse social para o
gerenciamento dos diferentes tipos de resíduos sólidos, contendo mais de 180 artigos.
Em nível municipal, vale fazer nota que a Lei Complementar n. 116, de 2003, que
dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), incluiu em sua lista
anexa, a varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e
destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, como fato gerador do referido
tributo.
A modificação promovida na legislação vai de encontro com o que ocorre nas esferas
estadual e federal, uma vez que se busca favorecer empresas voltadas à reciclagem com
incentivos fiscais, e não considerar tal atividade como fato gerador de tributação.
7. Considerações finais
Desde a Revolução Industrial, que teve início no final do século XVIII, na Inglaterra,
os bens de uso e consumo estão se acumulado em grandes proporções por todas as
metrópoles do mundo e, atualmente, a sociedade do século XXI experimenta padrões de
consumo insustentáveis para a manutenção da sadia qualidade de vida por meio de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
77
Com relação aos incentivos fiscais concedidos no Estado do Rio de Janeiro, merecem destaque a Lei n.
4169/2003 e a Lei n. 4178/2003.
Assim sendo, o novo milênio se inicia impondo a consciência de que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado se constitui num arrendamento a ser transferido ao homem do
futuro. Cabe, portanto, ao homem do presente cuidar desse legado ambiental para que a
própria existência humana não seja ameaçada de extinção.
8. Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 203, de 01 de abril de 1991. Dispõe
sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em: http://www.camara.gov.br.
Acesso em: 23 maio 2008.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 203, de 1991. Dispõe sobre o
acondicionamento, a coleta, o tratamento, o transporte e a destinação final dos resíduos de
serviços de saúde. Disponível em: http://www.senado.gov.br. Acesso em: 26 maio 2008.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 2002.
LEITE, José Adércio Sampaio; WOOD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de direito
ambiental: na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva,
2003.
RIO DE JANEIRO (Estado). Lei n. 4191, de 30 de setembro de 2003. Dispõe sobre a política
estadual de resíduos sólidos e dá outras providências. Disponível em:
http://www.alerj.gov.br. Acesso em: 15 jan. 2005.
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e direito
econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2004.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997.
SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1999. v.1.
1. Introdução
Por fim, tentaremos buscar traçar um perfil ideal da atuação do judiciário pátrio frente
aos limites impostos pela estrutura democrática do Estado.
1
Procurador Federal com exercício na Procuradoria Federal em Maringá/Pr, Graduado em Direito pela
Universidade Estadual de Maringá/Pr, Especialista em Direito Constitucional pela PUC/PR.
Atualmente, ante um legislativo que cada vez menos consegue traduzir de maneira
satisfatória os anseios da sociedade, e a aparente necessidade de respostas imediatas aos
problemas existentes, passa-se a perceber um maior grau de importância assumido pela
função jurisdicional.
Por outro lado, algumas questões precisam ser mais bem analisadas antes de se
imaginar que o judiciário é a solução para os problemas da sociedade moderna.
A teoria do Estado liberal do fim do século XVIII, que tem em Montesquieu um dos
seus mais importantes expoentes, se baseava na necessidade de que houvesse uma
ruptura com o antigo modelo absolutista de Estado – em que o soberano era o senhor de
todo o povo2.
Como opção àquele sistema, pois, o sistema liberal apresentava uma resposta que
se fundava em dois principais pilares, quais sejam: a limitação ao poder do Estado sobre o
indivíduo e a apresentação de instrumentos que traduzissem os anseios populares e, em
conseqüência, fizessem ser ouvidos pelo poder público, principalmente através de
parlamentares eleitos entre seus pares.
2
A respeito dos aspectos do Estado absolutista, vide TOLEDO, Cezar Arnaut; BERNARDO, Leandro Ferreira.
Virtù e Fortuna no pensamento de Maquiavel. Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, fev., 2002.
Por outro lado, tendo em vista a mudança das relações dos indivíduos com o Estado
e entre si, e a necessidade de respostas mais céleres para os problemas que lhes atingem,
uma vertente da teoria do estado moderno vêm buscando novos fundamentos e uma nova
divisão das funções estatais.
Não é em outro sentido que Häberle justifica a necessidade de uma revisão dos
fundamentos daquele Estado como acima exposto:
O tipo do Estado Constitucional ocidental livre e democrático não é, como
tal, imutável. Séculos foram necessários para se moldar o ‘conjunto’ dos
3
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. i, p. 184
4
Ibid., p. 116
5
HABERMAS, op. cit., p. 326.
6
Vide cap. III.
Sem adentrar no mérito daquelas tendências teóricas, não se pode deixar de apontar
para os riscos que trazem para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Nesse ponto, primeiramente se mostra necessário observar, assim como faz Jürgen
Habermas11, que o aumento da importância dada atualmente ao judiciário como regulador de
matérias que requereriam um tratamento legislativo ocorre em razão da pura inoperância de
um legislativo que não consegue agir a contento para aquelas atribuições a que é chamado.
Deve ser comedida a ação do juiz, de modo que não aja, ainda que a propósito de
cumprir a constituição, mas a despeito da legislação vigente (mesmo que não observada
qualquer inconstitucionalidade), em substituição ao legislador.
7
HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 1.
8
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991.
9
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 9.
10
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. ii, p. 173: “O pivô da atual crítica ao direito, num Estado
sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei
parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o princípio da separação dos poderes corre perigo”
(HABERMAS, ii, p. 173)”.
11
HABERMAS, id., v. ii, p. 183.
Ademais, tendo em vista que a sociedade é composta por diversos grupos e defende
valores distintos, presume-se que os parlamentares eleitos refletirão aquela diversidade, de
modo que as leis que vierem a aprovar traduzirão da forma mais perfeita, dentro dos regimes
existentes, a vontade do povo.
John Rawls entende que “o debate político procura concluir um acordo razoável14”.
Neste aspecto se observa quão incoerente se mostra a ‘justiça’ eleger certos valores quando
não discutidos e acordados minimamente. Caso se caminhasse nesse sentido, teríamos, aí,
uma situação de total ausência de legitimidade – eis que não eleitos pelo povo – e de
controle – tendo em vista que não se submetem a aprovação popular.
12
RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot, seleção, apresentação e glossário
Catherine Audard. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 192.
13
No capítulo seguinte serão melhor tratadas as situações em que se admite uma maior desvinculação do juiz
frente ao legislador.
14
RAWLS, op. cit., p. 343.
Entretanto, entende-se que não seja possível vencer aquele obstáculo referente à
relação “representatividade – eleição – controle popular”; pelo menos não de uma forma
mais útil do que acontece quando se dá primazia ao legislativo.
15
Para Habermas, “Perante o legislador político, o tribunal não pode arrogar-se o papel de crítico da ideologia;
ele está exposto à mesma suspeita de ideologia e não pode pretender nenhum lugar neutro fora do processo
político” (HABERMAS, op. cit., v. ii, p. 343).
16
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2007. p.163.
17
HABERMAS, op. cit., v. i., p. 327.
18
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho, coordenação e supervisão
de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
Ainda que se tenha que grande parte do pensamento do autor – p. ex., a a respeito de que no Estado
contemporâneo a função executiva devesse ocupar a posição de primazia frente as demais funções e que a ele
caberia a função de guardião da Constituição – seja rechaçada pela ciência política moderna, tal como por
Habermas, não se pode deixar de ter em conta a importância de suas críticas lançadas no tocante ao assunto
objeto deste capítulo.
19
Ibid., p. 56: “No Estado de Direito, existe justiça somente como sentença judicial com base em uma lei”
20
Na sua obra, Schmitt aponta que: “A posição especial do juiz no Estado de Direito – sua objetividade, seu
posicionamento acima das partes, sua independência e sua inamovibilidade – baseia-se no fato de que ele
decide justamente com base em uma lei e de que sua decisão, em seu conteúdo, é derivada de uma outra
decisão de modo mensurável e calculável já contida na lei” (Ibid., p. 56-57).
Embora se reconheça que, como dito acima, o autor tenha como parâmetro o
constitucionalismo norte-americano, em que há maior limitação ao alcance do controle
exercido pela jurisdição constitucional, não deixa de ser útil à análise crítica do nosso
ordenamento jurídico pátrio – como, também, a grande maioria dos países da tradição
românica.
Em outro ponto o autor critica as, então, novas teorias que nas primeiras décadas do
século XX já idealizavam a possibilidade de, em suas palavras
Do mesmo modo, trata da judicialização das questões que deveriam estar afetas aos
órgãos políticos23. Igualmente, seu argumento rebate em vários aspectos aquela
necessidade, enxergada por alguns, de que o tribunal constitucional (onde se admita sua
função de guardião da Constituição) possua legitimidade integrante, ou seja, que os seus
membros possam refletir a diversidade de regiões, culturas e posições sociais.
Nesse sentido, Carl Schmitt deixa claro o alerta lançado ao perigo que pode
representar a transferência de atribuições do legislativo ao judiciário.
21
Ibid., p. 229.
22
Ibid., p. 5-6.
23
Vide capítulo III.
24
DWORKIN, op. cit., p. 133: “... o sistema político da democracia representativa” “funciona melhor que um
sistema que permite que juizes não eleitos, que não estão submetidos a lobistas, grupos de pressão ou a
cobranças do eleitorado por correspondência, estabeleçam compromissos entre os interesses concorrentes em
suas salas de audiência”
É patente que adviria de tal relação a total insegurança jurídica27 como efeito
primário, que acarretaria outros efeitos, inclusive de ordem econômica.
25
ALEXY, op. cit., p. 162: “O problema da ponderação é o problema principal da dimensão metodológica da
jurisdição constitucional. O problema principal de sua dimensão institucional deixa formular-se na questão, como
a competência jurídica de um tribunal constitucional, de deixar sem validez atos do parlamento, pode ser
justificada. Com essa questão nós chegamos ao eterno problema da relação de jurisdição constitucional e
democracia”.
26
Nos capítulos seguintes será mais detalhadamente abordado o tema referente os efeitos danosos gerados pela
apropriação pelo judiciário do poder de eleger os valores reitores da sociedade política.
27
Refutamos a linha de raciocínio que parte da premissa de que não há direitos, mas, tão-somente, expectativas
de direito, e conclui, dessa forma, que é impossível se pretender a segurança jurídica. Seria como dissessem que
não existe, p. ex., o direito à vida, mas somente uma expectativa a tal e que por este motivo, não devemos
busca-lo. Aquela segurança jurídica é um valor que devemos buscar, ainda que não exista plenamente na
prática.
28
COASE, Ronald. The problem of the social cost. Journal of Law and Economics. Oct., 1960, p. 10: “pareceria
desejável que os tribunais entendessem as conseqüências econômicas das suas decisões e, à medida que isto é
possível sem criar demasiada incerteza sobre a própria posição legal, levassem em conta essas conseqüências
tomando as suas decisões (tradução nossa).
29
No direito pátrio, Fabio Ulhoa Coelho apresenta preocupação parecida:
“Exige-se do comercialista não só dominar conceitos básicos de economia, administração de empresas, finanças
e contabilidade, como principalmente compreender as necessidades próprias do empresário e a natureza de
elemento de custo que o direito muitas vezes assume para este (COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito
comercial. 13. ed. rev. e atual. de acordo com o novo código civil (Lei 10406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva,
2002, p. 24).
30
DWORKIN, op. cit., p. 11.
Por outro lado, ganhou força nas últimas décadas as teorias que buscam imprimir
uma maior eficácia aos direitos fundamentais positivos, especialmente aqueles sociais32.
Nesse sentido, são vários os argumentos que buscam justificar a imprescindibilidade de uma
plena aplicação dos direitos fundamentais previstos na constituição.
Extremamente relevante e positivo que o direito caminhe neste sentido, qual seja, o
de, cada vez mais, como instrumento para a realização de justiça que é, colocar as garantias
básicas de vida do homem no centro das discussões.
31
Na esteira de Sarlet e Alexy, não fazemos a relação direitos individuais – direitos à atuação negativa do estado
e direitos sociais – direitos à atuação positiva do Estado, eis que existem direitos individuais que exigem uma
necessária atuação do poder político e, da mesma forma, direitos sociais há que se contentam com a simples
abstenção estatal.
32
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Ver. atual, e ampl. Porto Alegre: Liv.
do Advogado, 2006.
A se acatar este fundamento, seria mais facilmente aceitável uma mudança das
regras entre as funções estatais, para que fossem “liberadas” ao judiciário maiores
liberdades na aplicação do direito constitucional, ainda que houvesse conflito entre a
vontade legislativa.
Fique claro que quando dizemos que há conflito entre a vontade explicitada pelo
parlamento e aquela exteriorizada pelo juiz não estamos nos atendo necessariamente à
situação de inconstitucionalidade, mas, também, da eleição de divergentes valores como
vetores no exercício de suas atribuições.
Jürgen Habermas apresenta interessante visão sobre o assunto, quando expõe que
Segundo aquele autor, a preocupação cada vez maior pelos direitos fundamentais
traz, necessariamente, mudança de conceitos, aplicação e interpretação do direito35.
33
HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 1
34
HABERMAS, op. cit., p. 308.
35
A essa mudança correspondem, sob pontos de vista metodológicos, ‘conceitos-chave do direito
constitucional’(Denninger), tais como, por exemplo, o princípio da proporcionalidade, a reserva do possível, a
limitação de direitos fundamentais de terceiros, a protecao dos direitos fundamentais através de organização e
procedimentos etc”. Ibid., p. 308.
36
DWORKIN, op. cit., p. 128-129.
Observe que o autor situa sua doutrina dentro do contexto jurídico dos Estados Unidos, qual seja, o da common
law, em que tem fundamental importância a construção jurisprudencial como fonte do direito. É dentro desse
contexto que o autor apresenta a figura do juiz hercúleo: “Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz
filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios
jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico
construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria,
paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hercules (Ibid., p. 165)”.
Em primeiro lugar, chama a atenção a teoria de Dworkin pelo fato de que, embora
admita a criação de regras jurídicas pelo juiz – situação em parte explicável pelo
ordenamento jurídico que toma por base, qual seja, o da common law –, exige, nas
situações acima referidas, que os juizes ajam “como se fossem delegados do poder
legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se
vissem diante do problema40.
37
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 22. “Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e
preservação da força normativa da Constituição”.
38
HESSE, op. cit., p. 14.
39
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 325.
40
DWORKIN, op. cit., p. 128-129.
Dessa forma, será possível um conceito de justiça mais perfeito, quanto mais traduzir
a vontade geral e trazer estabilidade temporal.
Não destoa deste fundamento Habermas, para quem o direito traz uma tensão
natural entre facticidade e validade, no sentido de que (de forma resumida) a norma jurídica
somente pode ser considerada valida socialmente se respondesse à vontade geral. Para
este autor, aquela tensão somente encontra o ponto ideal quando consegue equilibrar o
“princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas42”
Por fim, entende-se que não há garantias existentes no ordenamento estatal que
garanta que a correção das decisões judiciais sem que sejam baseadas nos valores
traduzidos pelo legislador. Haveria, em tal situação, um grande risco de se formar um
desequilíbrio incontornável dentro da estrutura estatal.
41
RAWLS, op. cit., p. 245.
42
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 245.
Exemplifica-se a questão central deste ponto com uma suposta situação em que o
juiz se utiliza das prerrogativas que o ordenamento lhe atribui e ordena a vinculação de
receitas do Estado para determinados fins. Suponha-se a situação em que, para garantir
determinado direito fundamental, o juiz extraia do orçamento global do governo uma “fatia”, a
qual não poderá ser utilizada por outro órgão.
Desse modo, surgiria, aí, um conflito de atribuições entre duas funções estatais.
Dois pontos que merecem uma observação crítica que entendemos preponderantes
neste ponto estão relacionados à harmonia entre as funções estatais e a necessidade de
analise da situação fática de cada nação e a eficácia da função legislativa.
43
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o
especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente
sobre:
I - sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas;
II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e emissões
de curso forçado; (...)
Não obstante a riqueza cultural que surge da soma dos fatores acima relatados, não
se pode deixar de observar alguns possíveis problemas, daí decorrentes, para a existência
de um Estado melhor organizado. De fato, aquela diversidade de origem e de cultura,
somada à imensa população dividida em uma grande extensão territorial podem ser
interpretados como fatores que, no mínimo, atrasariam a formação de um Estado mais
coeso. Some-se a isto a existência de um grande percentual de pessoas às margens de uma
educação de qualidade para poder melhor exercer sua cidadania.
Talvez esta linha de raciocínio seja, de forma consciente ou não, um dos principais
fundamentos para justificar, no nosso país, a existência de um ativismo judicial, eis que
aquela situação daria maior legitimidade à atividade jurisdicional.
O ponto é que minha teoria da decisão judicial atribui mais poder aos juizes
do que o positivismo e que deveríamos recomendar minha teoria somente
se (ou quando) estivéssemos convencidos de que queremos que os juízes
mais que os legisladores ou os outros funcionários, tenham este poder44.
44
DWORKIN, op. cit., p. 553.
Ante esta compreensão do autor, a primeira questão que se impõe seria no sentido
de se descobrir se o judiciário alcançaria em algum momento a legitimidade de, não só dizer,
mas, também, criar o direito.
Interessante a divisão que faz Dworkin entre filosofias a serem defendidas para
justificar a atividade judicial (especialmente a constitucional) frente situações controversas
ou difíceis. Segundo o autor, aquelas filosofias se dividiriam em basicamente duas: a do
“ativismo judicial” e a da “moderação judicial”. O ativismo judicial sustentaria a necessidade
do judiciário se apegar aos princípios gerais estampados na constituição e, a partir daí,
direcionar a atividade judicante, ainda que a despeito de regras menos genéricas, previstas
pelo constituinte ou pelo legislador ordinário. Tal teoria daria ampla liberdade ao judiciário,
que teria como limite cláusulas vagas, de difícil conformação prática46.
Por outro lado, a teoria da moderação judicial caminha mais no sentido da tradição
positivista de maior vinculação à vontade do legislador. A lei passa a ser não só o limite, mas
também o fundamento à atividade jurisdicional47.
45
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 183.
46
DWORKIN, op. cit., p. 215.
47
Segundo Carl Schmitt, “a vinculação à lei, unicamente à qual o juiz está subordinado pelo art. 102, não significa
apenas o limite, mas verdadeira justificação para a liberdade da decisão (...)”. Continua o referido autor dizendo
que “... o problema do movimento do livre direito e da magistratura ‘criadora’ é, em primeiro lugar, um problema
constitucional (SCHMITT, op. cit., p. 29)”.
Todavia, atualmente são defendidas teorias que não apontam para posições
extremadas como a de Dworkin – ativismo ou moderação judicial –, mas, pelo contrário,
tentam justificar uma maior liberdade judicial, sem que haja rompimento com a ordem
estatal. Dentre tais teorias, merece especial referência aquela defendida por Robert Alexy49.
Habermas, por outro lado, apresenta importante crítica sobre os parâmetros trazidos
pela teoria de Alexy de interpretação e aplicação do direito. Segundo aquele, a proposta de
Alexy “consiste em interpretar os princípios transformados em valores como mandamentos
de otimização, de maior ou menor intensidade. Essa interpretação vem ao encontro do
discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre juristas, o qual, no entanto, é frouxo51”.
Embora Habermas trate a teoria da ponderação como uma defesa sem limites ao
ativismo judicial, não se pode deixar de fazer referência às palavras do próprio Alexy, em
interessante e rara análise do direito brasileiro, quando afirma que:
48
DWORKIN, op. cit., p. 225.
49
O presente trabalho não tem o intento de esgotar a obra de Alexy (nem de qualquer outro autor), possuidora de
grande riqueza de fundamentos. por outro lado, a simples referência à sua teoria da ponderação já traz novos
pontos de debate a respeito do assunto tratado no presente capítulo.
50
ALEXY, op. cit., p. 68-69.
51
HABERMAS, op. cit., v. i, p.315.
Habermas, mais uma vez, aponta um aspecto determinante para referida questão:
Habermas aponta outros aspectos que lhe faz rechaçar o ativismo judicial
peremptoriamente, dentre os quais se destaca os seguintes: a) interesse público na
52
ALEXY, op. cit., p. 68-69.
53
Ibid., p. 96.
54
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 306.
Mais uma vez somos levados a citar interessante trecho da obra de Habermas:
O autor constata algo que parece ter recebido pouco valor dos contemporâneos
estudiosos do direito: o aumento da preocupação do ser humano com os riscos sociais e a
relação que o direito pode ter para a redução dos riscos das relações sociais.
As relações econômicas que se dão entre pessoas, empresas e até mesmo entre
diferentes países necessitam de regulamentação que, via de regra, seja observada por todas
as partes envolvidas. Tome-se o exemplo de hipotética empresa estrangeira atuante na área
de construção civil de estradas. Suponhamos que referida empresa queira investir sua força
produtiva no Brasil, para a construção de uma malha rodoviária.
55
HABERMAS refuta o desprezo moderno pela segurança jurídica quando afirma que: “O interesse público na
uniformização do direito destaca uma característica pregnante na lógica da jurisprudência: o tribunal tem que
decidir cada caso particular, mantendo a coerência da ordem jurídica em seu todo (Ibid., p. 295)”.
56
“No Estado social, o direito não pode diluir-se em política, pois, neste caso, a tensão entre facticidade e
validade, que lhe é inerente, bem como a normatividade do direito, se extinguiriam (Ibid., v. ii, p. 171)”.
57
“Ao deixar-se conduzir pela idéia de realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito
constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instancia autoritária (ibid., v. i, p. 321)”.
58
Ibid., v. i, p. 176.
59
SCHMITT, op. cit., p. 118: “Em qualquer Estado moderno, a relação do Estado com a economia compõe o
verdadeiro objeto das questões de política interna imediatamente atuais”.
Deste entender não destoa Ronald Coase, segundo o qual “a delimitação inicial de
direitos legais realmente tem um efeito na eficiência com a qual o sistema econômico
funciona. Um acordo de direitos pode ocasionar um maior valor de produção do que algum
outro61”.
Ronald Dworkin, por outro lado, parece dar menor atenção à questão da segurança
jurídica e parece buscar justificar a aplicação do direito segundo valores utilitaristas de um
maior bem-estar médio62.
Assim, para Dworkin, em eventual conflito entre os valores da garantia dos direitos
fundamentais e da segurança jurídica aquele deve prevalecer, em regra. Contudo, do
exemplo citado pelo autor, poder-se-ia questionar se em eventual conflito entre qualquer
60
COELHO, op. cit., p. 24.
61
COASE, op. cit., p. 8. Tradução nossa para o original em inglês: “In these conditions the initial delimitation of
legal rights does have an effect on the efficiency with which the economic system operates. One arrangement of
rights may bring about a greater value of production than any other. .
62
Segundo DWORKIN, op. cit., p. 494-495: “Coase afirmou que, se desconsiderarmos os custos das transações,
não fará diferença alguma para a eficiência geral da alocação de recursos o fato da responsabilidade contratual
ou de delitos civis incidir sobre uma ou outra das partes de uma transação ou de um fato, embora certamente
faça muita diferença para as partes”.
63
DWORKIN, op. cit., p. 307.
Além do mais, não se pode crer que o judiciário consiga traduzir melhor as
necessidades e anseios da sociedade do que as funções essencialmente políticas.
Neste ponto, John Rawls faz incontornável observação retirada da análise histórica
de que até hoje não foi possível a qualquer sociedade política reunir de forma inconteste
pelos cidadãos seus valores direcionadores.
Segundo Rawls:
Dessa forma, parece incabível a defesa do ativismo judicial como solução para os
impasses da sociedade contemporânea, eis que não há como se aferir se, de fato, a sua
razão de decidir, quando destoada da lei criada pelo parlamento, seja a mais correta.
Por outro lado, não se pode deixar de analisar a situação fática e traçar comparações
entre a efetividade do legislativo nacional e aquela apresentada por outros países, com
condições distintas das nossas, em que exista uma atuação a contento do parlamento, e não
de forma insuficiente.
Ainda assim, embora a função jurisdicional seja tentada a agir a despeito dos valores
democraticamente criados pelo parlamento e elegendo valores políticos a par dos
governantes, os malefícios para a manutenção da organização social como conhecida na
atualidade seriam incalculáveis.
Tratamos dos limites que devem balizar a atividade do juiz e os riscos de invasão
daquela função nas atividades eminentemente políticas, em especial a executiva.
Antes mesmo de responder a esta questão, necessário se faz proceder à divisão dos
direitos fundamentais propostos pela doutrina, qual seja, aquela que se dá entre direitos
negativos e os direitos prestacionais.
64
RAWLS, op. cit., p. 49.
Segundo o autor:
Os direitos também podem ser absolutos: uma teoria política que considera
absoluto o direito à liberdade de expressão não aceitará nenhuma razão
para que não se assegure a todos os indivíduos a liberdade por ela exigida;
65
isto é, nenhuma razão a não ser a impossibilidade.
De fato, ainda que possa parecer excesso de generalização afirmar que os direitos
fundamentais negativos são absolutos – não podemos afirmar que não existe gastos
públicos para sua manutenção, eis que as forças de segurança e as funções essências à
justiça tem seu fundamento na garantia da aplicação do direito, o que gera dispêndios aos
cofres públicos66 – estes direitos não apresentam grandes problemas referente aos limites
orçamentários.67
Afirma Robert Alexy que “existe não só o perigo de um demasiado pouco em direitos
fundamentais, mas também o de um em demasia e, como institucionalização da razão, eles
estão, como a razão, bem genericamente, sempre ameaçados pelos demônios da
irracionalidade.” 68
Segundo o autor, o problema da “reserva do possível” é uma questão real que deve
ser encarada. Segundo explica, os direitos fundamentais devem ter aplicação numa
graduação tão alta quanto lhe permitir as possibilidades de fato do Estado.69
65
DWORKIN, op. cit., p. 144.
66
SARLET, op. cit., p. 299: “É justamente nesse sentido que deve ser tomada a referida ‘neutralidade’
econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos
fundamentais na condição de direitos negativos) e a efetividade naquilo que depende da possibilidade de
implementação jurisdicional não tem sido colocada na dependência da sua possível relevância econômica”.
67
Segundo SARLET, id., p. 200: “... seguimos convictos (...) que para o efeito de se admitir a imediata aplicação
pelos órgãos do Poder Judiciário, o corretamente apontado ‘fator custo’ de todos os direitos fundamentais, nunca
constituiu um elemento impeditivo da efetivação pela via jurisdicional (no sentido pelo menos da negativa da
prestação jurisdicional) quando em causa direitos subjetivos de conteúdo ‘negativo’”.
68
ALEXY, op. cit., p. 14.
69
ALEXY, op. cit., p. 110.
70
SARLET, op. cit., p. 302-303. Reconheça-se que o autor prevê a necessidade de uma maior discussão a
respeito do limite representado pela reserva do possível à garantia dos direitos fundamentais.
71
Ibid., p. 302.
Pode ser considerada, igualmente, uma resposta ao ativismo judicial dos diversos
juízos espalhados pelo país, tendo em vista que passa a concentrar no Supremo Tribunal
Federal o poder de lhes vincular obrigatoriamente o entendimento da questão constitucional.
72
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 224.
A súmula vinculante inviabiliza este amplo e irrestrito debate sobre qual o melhor
entendimento deva prevalecer.
Por outro lado, oportuno o entendimento de Radbruch, citado por Robert Alexy, de
que no atual contexto aquele instrumento surge como um “mal necessário” para garantir a
segurança jurídica e, consequentemente, a harmonia entre as funções estatais.
De acordo com aquele primeiro autor “o conflito entre justiça, portanto, a correção
quanto ao conteúdo, e a certeza jurídica, sem dúvida, fundamentalmente, deve ser
solucionado a favor da certeza jurídica, mas isso não vale ilimitadamente.” 73
7. Considerações finais
Além disso, independente das correntes filosóficas adotadas por cada cidadão,
buscou-se tratar de questões que parecem estar mais próximas de um suposto senso
comum, ainda que muitas vezes não observado – como buscamos mostrar, p.ex., no caso
pátrio.
73
ALEXY, op. cit., p. 31-32.
Por outro lado, é evidente a necessidade cada vez mais sentida nos estados de se
dar maior efetividade possível aos valores mais caros estabelecidos nas suas constituições75
e muitas vezes o choque entre os poderes constituídos pode ser inevitável.76
Por fim, entende-se que uma sociedade formada por cidadãos realmente
interessados nas questões públicas tende a ter as funções políticas mais representativas, de
modo que tais funções consigam traduzir seus interesses individuais e coletivos.77 Caso
contrário, passaremos a confiar em um “poder judiciário” que não deveria ter esta atribuição.
74
RAWLS, op. cit, p. 13-14.
75
HESSE, op. cit., p. 32: “A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou
um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como
de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a nós”.
76
HABERMAS, op. cit, v. i, p. 308.
77
RAWLS, op. cit, p. 372: “Uma maioria que persista ou uma aliança duradoura de interesses bastante sólidos
podem fazer da constituição o que quiserem”.
78
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. p. 17: “Esta é,
em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação”.
No Brasil, uma rara radiografia da ordem jurídica de meados do século XIX é apresentada por FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15 ed. rev. São Paulo:
Global, 2004. p. 513. Em um exemplo pitoresco, escreveu o autor: “O direito de galopar ou esquipar ou andar a
trote pelas ruas da cidade repita-se que era exclusivo dos militares e milicianos. O de atravessa-los montados
senhorialmente a cavalo era privilégio do homem vestido e calçado à européia”. O exemplo é tirado da antiga
Recife do século XIX, num momento em que passava por um processo de “reuropeização” e aversão aos
costumes da terra. Por óbvio, aquelas proibições existentes naquela sociedade tinha destinatário certo, o negro,
com suas culturas, costumes e ausência de condições econômicas de se adequar aos padrões de vestimenta
exigidos.
COASE, Ronald. The problem of the social cost. Journal of Law and Economics. oct.,
1960.
COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito comercial. 13. ed. rev. e atual. de acordo com o
novo código civil (Lei 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Ver. atual, e ampl.
Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2006.