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Expediente – Ed.

No 93

Resumo
Revista Jurídica
ISSN 1808-2807
www.presidencia.gov.br/revistajuridica

Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva

Ministra - Chefe da Casa Civil da Presidência da República


Dilma Vana Rousseff

Subchefe para Assuntos Jurídicos


Beto Ferreira Martins Vasconcelos

Presidente do Centro de Estudos da Subchefia para Assuntos Jurídicos


Beto Ferreira Martins Vasconcelos

Conselho Editorial

 Eros Roberto Grau - Ministro do Supremo Tribunal Federal;


 Friedrich Muller - Doutor em Direito e Professor Catedrático da Universidade de Heidelberg;
 Gilmar Ferreira Mendes - Ministro do Supremo Tribunal Federal;
 Ives Gandra da Silva Martins Filho - Ministro do Tribunal Superior do Trabalho;
 Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha - Ministra do Superior Tribunal Militar
 Menelick de Carvalho Netto - Professor Doutor da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais;
 Misabel Abreu Machado Derzi - Professora Doutora da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais;
 Roger Stiefelmann Leal - Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e
Professor do Centro Universitário de Brasília;
 Samantha Ribeiro Meyer Pflug - Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e Professora do Centro Universitário de Brasília.

Coordenador de Editoração
Paulo Massi Dallari

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, fev./mai. 2009 1


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Equipe Editorial

Coordenadora Técnica
Maria Estefania Ponte Pinheiro

Projeto Gráfico
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Heloisa Neves Castro
Ana Cristina Rodrigues de Mendonça

Colaboraram nesta edição


Ana Paula Fernandes Jubran
Anna Claudia Pardini Vazzoler
Carolina Nogueira Lannes
Denise Caldas
Eduardo Gulart Monteiro
Eduardo Xavier
Fábio Teixeira de Oliveira Pinto
Isabela Marques Seixas
Maria Paula Amorim de Barros Lima
Rodrigo Zerbone Loureiro

Endereço para correspondência


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Ficha Catalográfica

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O ICMS nas transferências eletrônicas de software

Matheus Carneiro Assunção1

Sumário: 1. Introdução – 2. O sistema tributário brasileiro e o ICMS – 2.1. Sistema


constitucional tributário – 2.2. A competência dos Estados para a instituição do ICMS – 2.3.
Fenomenologia da incidência tributária – 2.4. O critério material da hipótese de incidência do
ICMS-Mercadorias – 3. O ICMS-Mercadorias e o download de software – 3.1. O download
de bens digitais: aspectos gerais – 3.2. A proteção do software no Brasil – 3.3. As diferentes
modalidades de software: tratamento tributário – 3.4. A “circulação” eletrônica de software:
peculiaridades – 3.5. Enquadramento do software no conceito de mercadorias? – 4.
Conclusões – 5. Referências

1. Introdução

Os avanços tecnológicos vivenciados nas últimas décadas, com o desenvolvimento


vertiginoso da informática e das telecomunicações, ocasionaram mudanças profundas nas
relações sociais. Produção e consumo, cada vez mais, passaram a se fundamentar na
oferta e circulação de bens intangíveis, através de uma rede mundial sem fronteiras: a
Internet.

Entrelaçada a estas transformações, alvorece a chamada “economia informacional”,


consoante explica o sociólogo espanhol Manuel Castells, caracterizada por ser “uma
economia centrada no conhecimento e na informação como bases de produção, como bases
da produtividade e da competitividade, tanto para empresas como para regiões, cidades e
países”2. Trata-se de uma economia global, no sentido de que as atividades econômicas

1
Procurador da Fazenda Nacional em São Paulo/SP, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Bacharel em Administração pela Universidade de Pernambuco (UPE), Especialista em
Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Tributário – IBDT - matheus_carneiro@yahoo.com.br.
2
CASTELLS, Manuel. La ciudad de la nuova economia. Disponível em:
<http://www.lafactoriaweb.com/articulos/castells12.htm>. Acesso em: 14 fev. 2006. Tradução livre. Original: “(La
Nuova Economia) És una economía que está centrada en el conocimiento y en la información como bases de

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dominantes se articulam e funcionam como uma unidade em tempo real, em torno de dois
sistemas: a globalização dos mercados financeiros interconectados por meios eletrônicos e a
organização a nível planetário da produção e da gestão de bens e serviços. Nesta nova
realidade de trocas econômicas, a empresa virtual não pode ser situada precisamente: “seus
elementos são nômades, dispersos, e a pertinência de sua posição geográfica decresceu
muito”3.

Diante do novo cenário de trocas econômicas trazido com o desenvolvimento da


Internet, começam a reverberar diversos questionamentos quanto à aplicabilidade de regras
de incidência tributária no comércio eletrônico. No escopo de analisar alguns desses
questionamentos, especificamente aqueles relativos à possibilidade de incidência do ICMS
nas transferências digitais de programas de computador, é que desponta o presente estudo
monográfico.

De fato, a virtualidade dos canais de distribuição, desmaterializando fronteiras


territoriais, torna extremamente difícil a fiscalização de transações inteiramente
empreendidas através da Internet, as quais não se manifestam externamente4. Nestes
casos, ante a ausência de normas específicas, a interpretação dos atuais dispositivos legais
que prevêem obrigações tributárias pode apresentar diferentes vieses, a depender da
amplitude que se dê a certos conceitos utilizados pela Constituição e pela legislação
infraconstitucional.

No Direito Tributário, os conceitos desempenham papel de suma importância para a


aferição dos limites da incidência normativa, sendo imprescindível ter cuidado redobrado
tanto na formulação de juízos de subsunção dos novos fatos surgidos com o
desenvolvimento da Internet às leis vigentes, quanto na elaboração de normas
infraconstitucionais. Isso porque o alargamento de conceitos tradicionalmente utilizados pelo
legislador na previsão de obrigações tributárias, para fins de adequação prática à atual
realidade das trocas econômicas virtuais, pode implicar violação a princípios basilares do
ordenamento jurídico pátrio.

Deveras, é preciso adotar uma postura científica na busca de soluções para os


problemas da tributação do comércio eletrônico envolvendo bens digitais. Como alerta o
professor Marco Aurelio Greco, o momento é de um esforço conjunto com vistas a construir

producción, como bases de la productividad y bases de la competitividad, tanto para empresas como para
regiones, ciudades y países”.
3
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. p. 19.
4
Sobre tanto, ensina o renomado tributarista italiano Victor Uckmar, em artigo entitulado “Diritto Tributario e
Tecnologia”: “Di certo l´aspetto più delicato del commercio elettronico è la difficoltà per l´Amministrazione
finanziaria di accertare situazioni che potrebero dar luogo ad oneri fiscali, ma che non si manifestano all´esterno, il
che può avvenire particolarmente nella cessione di beni e la prestazioni di servizi on-line”. In: MARINS, James
(Coord.). Tributação e tecnologia. Curitiba: Juruá, 2003. p. 45.

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“critérios que assegurem um equilíbrio, sob o ponto de vista axiológico, para que não se
instaurem distorções e privilégios, seja por afastar a aplicabilidade absoluta das normas, seja
por impor cegamente sua aplicação a hipóteses manifestamente inadequadas”5.

Em um cenário de aumento prodigioso das trocas comerciais realizadas através da


Internet, procuraremos discutir, nas linhas vindouras, a possibilidade de tributação das
transferências eletrônicas de software pelo imposto sobre operações relativas à circulação
de mercadorias e prestações de serviços – o ICMS.

Primeiramente, procuraremos traçar um breve panorama do sistema constitucional


tributário brasileiro no que diz respeito ao ICMS, analisando a fenomenologia da incidência
tributária e delineando os critérios que compõem a sua regra-matriz de incidência sobre
operações de circulação de mercadorias. Em sucessivo, com fundamento nos referenciais
cotejados, será abordada a possibilidade de enquadramento das transferências digitais de
software sob o pálio da regra-matriz de incidência estudada. Daí será possível passar ao
tópico derradeiro deste estudo: as conclusões obtidas.

Apresentado o escorço do trabalho, é tempo de percorrer os labirintos do espaço


virtual, atentando-se para suas implicações jurídicas. É tempo de conhecer o novo,
problematizar o atual e pensar o futuro. É tempo, pois, de iniciar o verbo.

2. O sistema tributário brasileiro e o ICMS

2.1. Sistema constitucional tributário

As normas jurídicas nunca existem isoladas6, encontrando-se sempre ao lado de


outras, em um todo complexo que se denomina “ordenamento jurídico”, o qual não é mero
aglomerado de proposições normativas, mas um conjunto de elementos jurígenos
organizado logicamente, dotado de sistematicidade. A própria finalidade do direito positivo,
de “ordenar racionalmente a conduta humana”7, exige que ele se apresente como um
sistema.

Todo sistema implica a existência de elementos (que podem ser reais ou


proposicionais), relações e unidade8. Em sentido estrito, consoante adverte Lourival

5
GRECO, Marco Aurelio. Estabelecimento tributário e sites na internet. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO,
Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes. Bauru: Edipro, 2001. p. 314.
6
BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro dos Santos. Brasília:
Universidade de Brasília, 1997. p. 19.
7
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005. p. 87.
8
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 2.

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Vilanova, um sistema “existe onde as partes são proposições e entre elas há relações que
as agrupam num todo consistente, interiormente coerente”9.

O ordenamento jurídico brasileiro, composto por um conjunto normas escalonadas10,


reunindo elementos proposicionais que se relacionam entre si de acordo com um princípio
unificador, enquadra-se com plenitude no conceito de sistema. Não um sistema imutável,
estático, mas sim um sistema dinâmico, em permanente transformação, onde normas são
elaboradas (processo legislativo), entram em vigor, atuam, são substituídas por outras, ou
simplesmente perdem sua atualidade, em função de modificações nas situações
normatizadas11.

Na dinâmica de transformações do ordenamento jurídico, a Constituição assume


papel de primazia, na medida em que todas as normas infraconstitucionais com ela deverão
manter consonância, sob pena de serem excluídas do sistema. Afinal, como bem salienta
Marcelo Neves, “a unidade do ordenamento jurídico, enquanto unidade formal, é inseparável
da hierarquia das fontes de produção jurídica, diretamente vinculada, por sua vez, à
hierarquização das autoridades produtoras de normas jurídicas”12, não se podendo admitir
construções normativas desvencilhadas da moldura constitucional vigente.

Ao mesmo tempo, a própria Constituição também compõe um sistema


(proposicional), dentro do qual diversos subconjuntos de normas se inter-relacionam. Um
desses subconjuntos, formado pelo quadro orgânico das normas que versam matéria
tributária em nível constitucional13, merece especial destaque para os fins deste estudo: o
sistema constitucional tributário.

Nas palavras de Geraldo Ataliba, por sistema constitucional tributário entende-se o


“conjunto ordenado das normas constitucionais que tratam da matéria tributária, matéria
essa tomada como princípio de relação que as unifica”14. Haja vista as características da
Constituição de 1988, tal sistema foi imbuído de uma rigidez extrema, não tendo o legislador
ordinário liberdade de atuação para a criação de tributos. Com efeito, toda e qualquer
exação deverá encontrar amparo em normas de competência.

9
VILANOVA, op. cit., p. 163.
10
Tomamos emprestada a doutrina kelseniana de que a ordem jurídica “não é um sistema de normas jurídicas
ordenadas no mesmo plano, situada umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de normas jurídicas”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Tradução de João
Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 247.
11
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 2001. p. 174.
12
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 27.
13
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 143.
14
ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1996. p. 9.

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2.2. A competência dos Estados para a instituição do ICMS

Por competência tributária entende-se a aptidão para criar abstratamente tributos,


“descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus
sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”, segundo a lição de Roque
Antonio Carrazza15. A Constituição – lembra o professor Sacha Calmon Navarro Coêlho –
“não cria tributos, simplesmente atribui competências às pessoas políticas para instituí-los
através de lei (princípio da legalidade da tributação)”16. Sobre tanto, ressalta Luciano Amaro:
Obviamente, ainda que referidas na Constituição as notas que permitem
identificar o perfil genérico do tributo (por exemplo, “renda”, “prestação de
serviços” etc.), a efetiva criação de tributo sobre tais situações depende de a
competência atribuída a este ou àquele ente político ser exercitada, fazendo
atuar o mecanismo formal (também previsto na Constituição) hábil à
17
instituição do tributo: a lei.

Desse modo, a competência de cada ente da Federação Brasileira para instituir


tributos se manifesta faticamente ao “desencadearem-se os mecanismos jurídicos do
processo legislativo, acionado, respectivamente, nos plano federal, estadual e municipal”,
consoante explicita Paulo de Barros Carvalho18. Da atuação desses mecanismos surgem
normas gerais e abstratas, “construídas a partir de enunciados constitucionais que delimitam
o campo de atuação dos entes com aptidão para legislar e inovar no sistema jurídico em
matéria tributária”19.

A autonomia dos Estados para instituírem impostos dentro da esfera de


competências estabelecida rigidamente pela Constituição, portanto, é limitada. Não há
espaço para inovações fora dessa esfera, tampouco para alterações conceituais de
enunciados demarcativos do poder de atuação tributária dos entes federados. Demais disso,
a interpretação a ser dada a dispositivos da partilha constitucional relacionados a impostos
cujo fato gerador é designado pela indicação de conceitos de direito privado (ex: circulação
de mercadorias) há de ser restrita20, em atenção ao art. 110 do Código Tributário Nacional.

O referido dispositivo legal afirma ser vedado à lei tributária modificar conceitos
utilizados por lei superior para a definição ou limitação da competência tributária, não sendo
mera regra interpretativa, mas preceito endereçado ao legislador, eis que concernente ao

15
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
p. 467.
16
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004. p. 70.
17
AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 99.
18
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 239.
19
OLIVEIRA, Júlio Maria de. Internet e competência tributária. São Paulo: Dialética, 2001. p. 22.
20
Cf. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao direito tributário. 5. ed. Revista e atualizada por Flávio Bauer
Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p.106-107.

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estabelecimento de fronteiras no campo de atuação da lei de incidência de tributos21. Em
comentário ao artigo, frisa Aliomar Baleeiro:
O texto menciona “lei tributária” em geral, podendo ser, portanto, não só a
de caráter complementar da Constituição, quanto a da Pessoa Jurídica
investida da competência para decretar o tributo.
A lei complementar supre a Constituição, mas não a substitui. Se esta
instituiu um tributo, elegendo para fato gerador dele um contrato, ato ou
negócio jurídico, o legislador não pode restringir, por via complementar, o
campo de alcance de tal ato ou negócio, nem dilatá-lo a outras situações. A
22
menção constitucional fixa rígidos limites.

Logo, não poderá o legislador ordinário ampliar, ao seu talante, o alcance conceitual
de expressões utilizadas por normas situadas em nível hierárquico superior dentro do
ordenamento jurídico brasileiro. Nessa tônica de argumentos, vale memorar o escólio de
Hugo de Brito Machado:
Se a Constituição referiu-se a um instituto, conceito ou forma de Direito
privado para definir ou limitar competências tributárias, obviamente esse
elemento não pode ser alterado pela lei. Se a Constituição fala de
mercadoria ao definir a competência dos Estados para instituir e cobrar o
ICMS, o conceito de mercadoria há de ser o existente no Direito Comercial.
Admitir-se que o legislador pudesse modificá-lo seria permitir ao legislador
alterar a própria Constituição Federal, modificando as competências
23
tributárias ali definidas.

Importa salientar, contudo, que o preceito em comento não impede a alteração de


conceitos do direito privado pela própria Constituição, a qual pode estabelecer significados
diferentes (de maior ou menor amplitude) para expressões tradicionalmente utilizadas por
quaisquer subsistemas do direito positivo, haja vista a posição hierárquica que ocupa no
ordenamento jurídico brasileiro. Repise-se: o art. 110 é dirigido ao legislador ordinário dos
entes federados, para estes não alarguem, ao seu bel prazer, os círculos de competência
traçados constitucionalmente.

Pois bem. Já se sabe que a Constituição Federal confere aos Estados competências
tributárias determinadas materialmente, dentre as quais a competência para instituírem
imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (art. 155, II). Sabe-se
também que o legislador infraconstitucional está submetido à observância dos princípios
tributários plasmados na Carta Maior, e que não poderá ele ampliar o alcance de conceitos

21
Cf. AMARO, Luciano Direito tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 102.
22
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro.11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 1999. p. 687.
23
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 130.

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léxicos de termos utilizados por norma superior no exercício do poder de tributar. Resta,
contudo, perquirir: no que tais noções se relacionam com a problemática da incidência do
ICMS nas transferências eletrônicas de software? Para responder tal questionamento, é
força dissecar primeiramente a fenomenologia da incidência tributária, retendo os principais
conceitos atrelados ao surgimento da obrigação do sujeito passivo de pagar determinado
tributo.

2.3. Fenomenologia da incidência tributária

As regras jurídicas visam a regular condutas humanas, mediante a atribuição de


mandamentos em face de determinadas hipóteses fáticas, abstratamente previstas.
Apresentam-se como juízos hipotético-condicionais, que associam conseqüências jurídicas a
dados eventos, através de um “dever-ser”.

As regras tributárias seguem essa mesma estrutura lógica de relação entre


antecedentes (hipóteses) e conseqüentes (prescrições). Conforme leciona Paulo de Barros
Carvalho, “a hipótese alude a um fato e a conseqüência prescreve os efeitos jurídicos que o
acontecimento irá propagar”.24

A hipótese das regras jurídicas tributárias é formada pela descrição de uma classe de
eventos recolhidos dentro do mundo dos fatos e transpostos para o mundo jurídico, por meio
do direito positivo. Nesse processo, o legislador seleciona critérios de verificação da
ocorrência do fato jurídico, a fim de possibilitar o seu reconhecimento na realidade. Com a
agudez que lhe é peculiar, destaca Paulo de Barros Carvalho25:
Na hipótese (descritor), haveremos de encontrar um critério material
(comportamento de uma pessoa), condicionado no tempo (critério temporal)
e no espaço (critério espacial). Já na conseqüência (prescritor),
depararemos com um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e um
critério quantitativo (base de cálculo e alíquota).

Ao passo que a hipótese prevê critérios para o reconhecimento de um fato para o


qual a lei tributária atribui relevância jurídica, no conseqüente são previstos critérios para o
reconhecimento do vínculo que se forma (em virtude desse fato) com o sujeito acometido do
dever jurídico de cumprir a prestação prevista na norma26.

O critério material identifica o evento que a lei transpôs do mundo real para o mundo
jurídico, através da linguagem. Tal evento, contudo, deve possuir coordenadas temporais -
indicativas do instante de acontecimento do fato jurídico tributário - e espaciais, que lhe
permitam a individualização em determinado lugar.

24
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 242.
25
Ibid., p. 243.
26
EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB, 2003. p. 119.

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Na esfera do conseqüente, pelo critério pessoal, identifica-se o sujeito ativo - titular
da capacidade para exigir o cumprimento da obrigação tributária (União, Estados, Municípios
ou outra pessoa jurídica que a lei estabeleça); e o sujeito passivo - pessoa física ou jurídica
de quem se exige tal cumprimento. Pelo critério quantitativo, a base de cálculo (ou base
imponível, dimensão do aspecto material da hipótese de incidência27) e a alíquota,
percentual que, aplicado sobre a base de cálculo, indica o valor devido do tributo28.

Através da incidência da norma tributária, ocorre a subsunção do conceito do fato ao


conceito previsto na norma, ocasionando efeitos jurídicos típicos29. Haverá essa subsunção
quando o conceito do fato for idêntico ao conceito desenhado normativamente na hipótese,
instalando-se a relação jurídica tributária30. Tal relação apenas pode ser constituída com a
ocorrência do fato gerador31, ou seja, “o fato a que o legislador vincula o nascimento da
obrigação jurídica de pagar um tributo determinado”32, realizado no plano concreto.

Os elementos definidores dos critérios integrantes da hipótese de incidência tributária


são determinados em consonância com o princípio da estrita legalidade, não sendo
permitido ao aplicador da norma formalizar juízos integrativos de situações concretas não
juridicizadas, com base em analogia, para fins de impor exações tributárias (princípio da
tipicidade cerrada).

Ademais, na definição de tais critérios (por via de lei), é imperiosa a observância do


arquétipo constitucional relativo às normas matrizes de incidência tributária, bem assim aos
princípios que balizam a sua estruturação. A Constituição Federal fixa de forma rígida os
parâmetros a serem atendidos pelas hipóteses de incidência criadas no exercício das
competências tributárias por ela relacionadas.

Seja na definição das condutas (eventos jurídicos), seja na delimitação dos aspectos
temporais e espaciais da norma tributária, a liberdade do legislador infraconstitucional é
limitada, guardando direta vinculação com os princípios concernentes ao poder de tributar. A
ele não é permitido inovar no estabelecimento de descritores, estando estritamente preso às
diretrizes impostas no Texto Maior, sobretudo quando da elaboração de lei complementar na
forma do art. 146, III, “a”.

27
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 108.
28
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 155.
29
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 249.
30
Ibid., p. 250.
31
A utilização da expressão fato gerador é fonte de acerbadas críticas doutrinárias. Alfredo Augusto Becker
chegou a afirmar: “Esta última expressão é a mais utilizada pela doutrina brasileira de Direito Tributário e, de
todas elas, a mais infeliz porque o’fato gerador’ não gera coisa alguma além de confusão intelectual.” BECKER,
Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002. p. 318. Todavia, dada a larga
difusão e popularidade do termo, é ele também adotado neste trabalho, no mesmo sentido do “fato imponível”,
mencionado por Geraldo Ataliba como o “fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar,
configurando rigorosamente a hipótese de incidência”. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6.
ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 54.
32
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: RT, 1974. p. 26.

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Com efeito, não pode lei complementar que estabeleça normas gerais sobre o ICMS
alterar, por exemplo, a materialidade da hipótese de incidência do mencionado tributo, a fim
de incluir eventos alheios à previsão normativa constitucional. O mesmo se diga em relação
ao exercício das competências tributárias traçadas pela Carta Suprema. Nesse sentido, é
esclarecedor o escólio de Roque Antonio Carrazza:
Assim, ao mesmo tempo em que distribuiu competências tributárias, a
Constituição indicou padrões dentro dos quais o legislador ordinário de cada
pessoa política é livre para traçar os aspectos das normas jurídicas, dos
vários tributos que lhe dizem respeito.
Apenas para darmos fecho a este raciocínio, remarcamos que a
Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu –
ainda que, por vezes, de modo implícito e dando uma certa margem de
liberdade ao legislador – a norma-padrão de incidência (a regra-matriz, o
arquétipo) de cada exação. (...) O legislador (federal, estadual, municipal ou
distrital), enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo
33
constitucional.

Nessa linha de raciocínio, também o alcance conceitual de elementos léxicos da


materialidade das hipóteses de incidência, introduzidas no ordenamento jurídico através do
exercício das competências tributárias, precisa estar jungido ao sentido no qual foram
utilizados pela Constituição Federal. Aqui, vale o que já mencionamos anteriormente em
comentário ao art. 110 do CTN: ao legislador não é dado modificar conceitos constitucionais
para ampliar a amplitude de sua competência, ferindo o pacto federativo. Se assim o fizer,
estará elaborando hipóteses de incidência inconstitucionais, carentes de requisito
fundamental para a sua operabilidade, qual seja, a compatibilidade com o sistema tributário
vigente.

2.4. O critério material da hipótese de incidência do ICMS-Mercadorias

Estabelecidas – ainda que resumidamente – as noções básicas relativas à


fenomenologia da incidência tributária, impende trabalharmos com a aplicação dessas
noções na atual sistemática do ICMS. Nessa perspectiva, ganha vulto o traçado do critério
material da regra-matriz de incidência do imposto incidente sobre a circulação de
mercadorias (ICMS-Mercadorias), a partir das coordenadas que delimitam a sua instituição
pelos Estados federados, traçadas no art. 155, II, da Constituição da República:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)

33
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 31-32.

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II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação,
ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (grifamos)

Na análise do critério material da regra-matriz de incidência do imposto previsto no


art. 155, II, primeira parte, três elementos léxicos despontam explicitamente: “operações”,
“circulação” e “mercadorias”.

Em verdade, o primeiro elemento da hipótese consiste no verbo implicitamente


expresso na sua materialidade: “realizar”. Assim, para que haja a incidência do imposto,
operações relativas à circulação de mercadorias deverão ser realizadas pelo sujeito passivo.
Ademais, é a “operação” de circulação de mercadorias, consistente no negócio jurídico de
transferência da titularidade sobre estes bens mercantis, não a mera “circulação” em si, o
fato do mundo que interessa ao Direito Tributário. Mercadorias podem circular sem que isso
configure a incidência do ICMS, a exemplo da transferência de televisores da matriz de uma
empresa de eletrodomésticos para sua filial. Nesta hipótese, inexiste negócio jurídico
envolvendo mercadorias, mas tão-somente mero deslocamento físico de bens de um
estabelecimento para outro da mesma sociedade empresária. Desta feita, o imposto apenas
será devido se houver uma mudança de titularidade em relação aos bens objeto de
circulação no mercado, configurando a materialidade do tributo.

Argutamente, leciona o mestre Paulo de Barros Carvalho que “operações, no


contexto, exprime o sentido de atos ou negócios hábeis para provocar a circulação de
mercadorias. Adquire, neste momento, a acepção de toda e qualquer atividade, regulada
pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento”34. E pondera Geraldo Ataliba
que:
é a operação – e apenas esta – o fato tributato pelo ICMS. A circulação e a
mercadoria são conseqüências e meros aspectos adjetivos da operação
tributada. Prestam-se, tão-só a qualificar – dentro do universo possível das
operações mercantis realizáveis – aquelas que ficam sujeitas ao tributo, ex
vi de uma eficaz qualificação legislativa. Não é qualquer operação realizada
que se sujeita ao ICMS. Destas, apenas poderão ser tributadas as que
digam respeito à circulação atinente a uma especial categoria de bens: as
35
mercadorias.

34
CARVALHO, Paulo de Barros. Regra Matriz do ICM. Tese apresentada para a obtenção do Título de Livre
Docente da Faculdade de Direito da PUC, São Paulo, 1981, p. 170. Apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS:
teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2003. p. 12.
35
ATALIBA, Geraldo. ICMS. Incorporação ao Ativo – Empresa que loca, oferece em ‘Leasing’ seus Produtos –
Descabimento do ICMS. Revista de Direito Tributário, v. 52, p. 74, apud MELO, op. cit., p. 13.

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Não sendo quaisquer operações de circulação que interessam ao Direito Tributário
para fins de incidência do ICMS, mas apenas aquelas que envolvam mercadorias, sobeja de
importância a delimitação do seu conceito.

Sob o ponto de vista econômico, as mercadorias constituem a base das trocas no


mercado. Foram elas a base do surgimento da moeda, e são o sustentáculo do modo de
produção capitalista.

No direito positivo brasileiro, vemos que a Constituição não traz uma definição de
mercadoria, embora limite a amplitude do conceito ao estabelecer o leque de competências
tributárias. Deve tal definição, portanto, ser buscada nos institutos do Direito Empresarial,
ramo do conhecimento jurídico que agasalha a normatização das operações mercantis36.
Nesta visão, pode-se dizer que o significado de mercadoria é historicamente ligado à
suscetibilidade de um bem móvel ser comprado ou vendido, em atos de mercancia,
consoante se extrai do art. 191 do Código Comercial de 1850.

O artigo citado, embora não traga propriamente uma definição de mercadoria,


relaciona as características do contrato de compra e venda mercantil, separando-o da
compra e venda civil. Da sua leitura, chega-se a uma noção geral de mercadoria por via
reflexa, a partir de dois critérios: (i) critério do tipo contratual - como o bem móvel objeto de
um negócio jurídico de compra e venda mercantil; (ii) critério dos sujeitos envolvidos – como
o bem móvel transacionado por pessoa que exerça atividade comercial. Portanto, como
anota Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli, “o que define precisamente o termo mercadoria, a
partir do contido no art. 191 do Diploma Comercial, é estar seu objeto submetido a um
contrato de compra e venda de natureza mercantil, celebrado por pessoa considerada
comerciante”37.

Todavia, nem a doutrina nem a jurisprudência chegam a uma definição consensual


do vocábulo “mercadoria”, especialmente no que diz respeito à inserção de bens intangíveis
em seu conceito, embora se comungue do entendimento majoritário de que o termo
“mercadoria” comporta tão-somente bens móveis, não abarcando imóveis38.

36
A bem da verdade, consoante nos ensina Alfredo Augusto Becker, não existe um legislador tributário distinto e
contraponível a um legislador comercial, pois “os vários ramos dos direito não constituem compartimentos
estanques, mas são partes de um único sistema jurídico”. In: BECKER, Alfredo Augusto. op. cit., p. 122. Todavia,
a divisão de ramos do Conhecimento Jurídico – como o Direito Empresarial - é perfeitamente válida para fins
didáticos, mormente em face dos inúmeros subsistemas normativos que integram o ordenamento jurídico
brasileiro.
37
LUNNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. Tributação na Internet. Revista Dialética de Direito Tributário,
São Paulo, v. 59, p. 84, ago. 2000.
38
O art. 156, II, da Constituição Federal de 1988 robustece esse entendimento majoritário, ao sujeitar operações
de circulação jurídica de bens imóveis ao Imposto de Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, de competência dos
Municípios, e não ao ICMS.

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Para Adaucto Fernandes, comercialista da década de 1950, mercadorias seriam as
“utilidades materiais postas à compra e venda”39, apresentando como características a
“corporalidade”, a “movibilidade” e a “suscetibilidade de tráfego”. Fran Martins, a seu turno,
liga a idéia de mercadoria à atividade de revenda do comerciante:
É o comerciante um intermediário e, nessa qualidade, adquire, dos
produtores ou industriais, mercadorias que se destinam a ser vendidas a
terceiros, com o intuito de auferir lucros dessas operações. Chamam-se
mercadorias as coisas que comerciantes adquirem com a finalidade
específica de revender. Daí conceituar um tratadista as mercadorias como
“coisas móveis, consideradas como objeto de circulação comercial”. Desse
conceito que se conclui que não se consideram mercadorias os imóveis e as
40
coisas móveis fora do comércio.

Rubens Requião, ao listar os elementos que compõem o estabelecimento comercial,


aloca na classe de bens corpóreos as mercadorias, assim definindo-as:
Mercadorias são os produtos destinados ao mercado que estão preparados
para o consumo. O conjunto de mercadorias constitui o estoque de
mercadorias, cuja movimentação de venda célere dá importância ao
estabelecimento e desenvolve a sua clientela. GARRIDES indica os
elementos caracterizadores da mercadoria: a) corporalidade, que as
distingue dos direitos e dos bens imateriais; b) mobilidade, que exclui os
bens imóveis; c) aptidão para o tráfico; d) valor patrimonial próprio,
intrínseco da própria coisa, excluindo-se os títulos de crédito; e)
permanência atual no tráfico mercantil.
A própria palavra mercadoria põe em manifesto seu especial destino para o
mercado. E, como observa VIDARI, um mesmo objeto é coisa em mãos de
uma pessoa e mercadoria em mãos de outra; a diferença ocorre apenas
porque uma foi adquirida para fins de consumo e outra para especulação
41
através de revenda ou locação.

Em contraposição, Pontes de Miranda considera como mercadoria tanto os bens


corpóreos quanto os incorpóreos:
A expressão “mercadoria” que se empregou, estritamente, no sentido de
bem, corpóreo ou incorpóreo, com que se comercia (= mercancia), somente
se referia a bem que pode entrar em circulação comercial (Código
Comercial, arts. 200, 201, 219, 446, 816, 874, etc.), ou em sentido,
estritíssimo, de bem comercial que não fosse dinheiro, papéis de crédito,
efeitos e valores (Código Comercial, arts. 10, 4, 33, 273, etc.): há de ser

39
FERNANDES, Adaucto. Direito comercial brasileiro: parte terrestre. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº,
1956. p. 327.
40
MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 473.
41
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 170-171.

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recebida, hoje, no sentido de qualquer bem, corpóreo ou incorpóreo,
inclusive moeda, papel-moeda, títulos de crédito, créditos documentados,
propriedade intelectual e propriedade industrial, que possa ser alienado
como elemento de circulação comercial, portanto desde a produção
42
(indústria, agricultura).

Já o saudoso J. X. Carvalho de Mendonça, na maestria dos ensinamentos de seu


Tratado de Direito Comercial Brasileiro, sentencia:
Dissemos em o n. 5, supra, que as coisas móveis, consideradas como
objeto da circulação comercial, tomam o nome específico de mercadorias.
A mercadoria está, portanto, para a coisa, como a espécie para o gênero.
Tôdas as mercadorias são necessàriamente coisas; nem tôdas as coisas,
porém, são mercadorias. Não há, como se vê, diferença de substância entre
coisa e mercadoria: a diferença é de destinação.
Tudo que pode ser objeto de comércio, vendido ou locado, é mercadoria.
Mercadoria é a coisa comercial por excelência, na frase de VIDARI. Nesse
sentido fala-se de mercar, isto é, comprar e vender, especular, e de
mercância, significando mercadoria.
A palavra mercadoria não tem no Cód. Comercial sentido definido. Ora, é
empregada a antítese a coisas móveis, dinheiro, papéis de crédito, efeitos e
valores, ora compreende qualquer objeto que, tendo valor de troca, pode
entrar na circulação comercial.
No amplo sentido, a fórmula mercadoria abrange não sòmente as coisas
materiais, corpóreas, inclusive a moeda, o papel-moeda e os títulos ou
documentos, nos quais se incorporam os créditos, que destarte, são
considerados objetos de valor, como as coisas imateriais, entre elas os
direitos, os créditos, os riscos, etc.
Em sentido restrito, porém, aquela palavra limita-se ao conceito de coisa
material, corpórea. É nessa acepção que a Constituição Federal, as leis
43
comerciais e fiscais de ordinário a empregam.

Waldirio Bulgarelli reproduz o conceito de J. X. Carvalho de Mendonça, sem deixar


de ressaltar os aspectos da mobilidade e da circulação econômica, fundamentais para o
vínculo com a sistemática tributária do então ICM (substituído pelo atual ICMS):
Em relação aos bens móveis é necessário atentar para o conceito de
mercadoria, que engloba esses bens, enquanto objeto de circulação
econômica; o que toma especial oportunidade, em face da sistemática

42
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. t. 15, p. 449.
43
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. 7. ed. São Paulo: Freitas
Bastos, 1963. v. 5, livro III, parte I. p. 28-29.

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tributária brasileira, que consagrou um tipo de tributo, o ICM, justamente
44
sobre a circulação de mercadorias.

Dentre os tributaristas, Roque Antonio Carrazza adota um conceito finalista de


mercadoria, como o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis, sob o
regime jurídico comercial:
Para que um bem móvel seja havido por mercadoria, é mister que ele tenha
por finalidade a venda ou revenda. Em suma, a qualidade distintiva entre
bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-
45
se no propósito de destinação comercial.

Por outro lado, José Eduardo Soares de Melo esclarece:


“Mercadoria”, tradicionalmente, é bem corpóreo da atividade empresarial do
produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para
consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, distinguindo-se das
coisas que tenham qualificação diversa, segundo a ciência contábil, como é
o caso do ativo permanente.
Este conceito sofreu ampliação constitucional ao submeter o fornecimento
de energia elétrica (coisa incorpórea) ao âmbito de incidência do ICMS,
46
enquadrando-o no espectro mercantil (art. 155, §3º, CF).

De fato, o conceito de mercadoria remete à destinação econômica dada a


determinados bens móveis no desenvolver de atividades empresariais. Essa marca
finalística está presente nos ensinamentos doutrinários dos adrede reproduzidos, e dela não
pode o intérprete da lei tributária se afastar, sob pena de afronta direta à Constituição
Federal.

Não queremos dizer, contudo, que exista uma definição severa e inalterável de
“mercadoria”. A própria Constituição alargou o conceito tradicional do vocábulo (associado a
coisas palpáveis) para alcançar a energia elétrica, bem intangível por natureza.
Paralelamente, restringiu a largueza do art. 191 do Código Comercial (o qual considerava
títulos de crédito e outros valores financeiros como mercadorias), ao estabelecer a
competência da União para instituir o imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro,
ou relativas a títulos ou valores mobiliários (art. 153, V), operações estas excluídas da
incidência do ICMS.

A modelagem conceitual feita pela Constituição na partilha de competências


tributárias é perfeitamente compreensível – e defensável – na medida em que delimita o
alcance de expressões lingüísticas utilizadas por subsistemas normativos para adequá-los

44
BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1995. p. 170.
45
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 41.
46
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2003. p. 18.

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ao quadro geral de repartição das receitas tributárias abrigado na Carta Política. O que não
se ousa defender é a alteração infraconstitucional do conceito de “mercadoria” para fins de
alargar o alcance de hipóteses de incidência tributária. Sob esse prisma, impende que o
legislador ordinário caminhe rente à noção de “mercadoria” trazida pelo Direito Privado, sem
desfigurá-la em processos legislativos, nem para mais, nem para menos.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, essa caminhada adquire novos
contornos. Revogada expressamente a primeira parte do Código Comercial (inclusive o art.
191), o conceito de comerciante (praticante de atividade mercantil) é substituído pelo de
empresário e a idéia de mercadoria se desvincula da teoria dos atos de comércio para ser
abrigada pela teoria da empresa, de conteúdo finalístico, encetado pelo art. 966 do vigente
Diploma Civil:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão
intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso
de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir
elemento de empresa.

O conceito de “mercadoria” passa a ser alcançado no momento em que uma pessoa


enquadrada na hipótese do art. 966 adquire um dado bem móvel com vistas a colocá-lo em
circulação no mercado. Exatamente na etapa conclusiva do negócio jurídico celebrado pelo
empresário para promover tal circulação, com transferência do domínio sobre a coisa
comercializada, verificam-se os elementos materiais caracterizadores do fato gerador do
ICMS. Mas que tipo de negócio?

A nosso ver, é a compra e venda mercantil, por excelência, o negócio jurídico hábil
para oportunizar a incidência do “ICMS – Mercadorias”. Tanto assim que o Superior Tribunal
de Justiça assinalou em julgado recente: “a configuração da hipótese de incidência do ICMS
reclama a ocorrência de ato de mercancia, vale dizer, a venda da mercadoria”47.
Anteriormente regrada pelo art. 191 do Código Comercial, a sua apreensão é hoje tomada a
partir da conjugação entre o disposto no art. 966 supracitado e o art. 481 do Código Civil.

Fábio Ulhoa Coelho remarca que a compra e venda mercantil é o contrato que
melhor retrata a atividade de circulação do comércio, pois através dele o comerciante obtém

47
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº.
19010/GO. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário da Justiça, Brasília, 23 nov. 2006, p. 213. No mesmo sentido: AgRg
no REsp 601140/MG, Relator: Min. Denise Arruda, Diário da Justiça, Brasília, 10 abr. 2006; AgRg no Ag
642229/MG. Relator: Min. Luiz Fux, Diário da Justiça, Brasília, 26 set. 2005; e REsp 659569/RS, Relator: Min.
Castro Meira, Diário da Justiça, Brasília, 09 maio 2005. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 20 jan.
2007

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as mercadorias que irá revender com lucro48. Realmente, a representatividade da compra e
venda na circulação de mercadorias – e conseqüentemente na arrecadação do ICMS – é
esmagadora. Porém, não se pode dizer ser ela exclusiva. Segundo Roque Antonio Carrazza,
além da compra e venda, outras “operações” como a troca e a dação em pagamento
igualmente propiciam a circulação jurídica de mercadorias e são passíveis, em tese, de
tributação por meio do ICMS49.

Destarte, posto que a finalidade da atividade empresarial é a geração de lucros, a


apreensão da idéia de mercadoria deve pautar-se nesse desiderato, podendo alcançar bens
intangíveis (v.g., energia elétrica), quando sujeitos à circulação jurídico-econômica no
mercado. É o que se infere da interpretação sistemática do art. 155, II e § 3º, em conjugação
com o art. 966 do Código Civil. E é com essa noção a legislação tributária deve manter
consonância, sob pena de afronta direta ao art. 110 do CTN e ao próprio Texto
Constitucional.

3. O ICMS - Mercadorias e o download de software


3.1. O download de bens digitais: aspectos gerais
A Revolução Digital implementou transformações drásticas na realidade social,
inclusive no tocante aos modos pelos quais as empresas desenvolvem suas atividades
econômicas. A Internet abriu as portas para que um simples comando computacional possa
selar todas as etapas de uma contratação entre ausentes, desde sua formação até a
completa execução da avença, em apenas alguns segundos.

Rapidamente, popularizam-se novas espécies de bens, aptos a satisfazer


necessidades humanas tradicionalmente atendidas por utilidades corpóreas. São os
chamados “bens digitais”, cuja distribuição no mercado é totalmente desvinculada de
suportes tangíveis, realizando-se através de mecanismos de transferências de dados,
comumente chamados downloads.

Os downloads são operações que permitem a cópia de um arquivo de informações


em formato digital entre computadores, geralmente através da Internet. Empregados no
comércio eletrônico direto como meios de distribuição de bens digitais, os downloads se
tornaram parte indissolúvel do cotidiano das pessoas que gozam de acesso a computadores.
A exposição desses bens em sites espalhados pelo ciberespaço cria um inovador campo de
atuação para as empresas: o mercado de conteúdos digitais.

48
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 54.
49
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 40.

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Não demorou muito para as indústrias de desenvolvimento de softwares perceberem
o nicho que a Internet oferece para a comercialização dos produtos por elas desenvolvidos.
De pronto, inúmeras lojas virtuais eclodiram na web, oferecendo downloads de softwares,
com observância aos direitos de propriedade intelectual dos seus autores.

Ocorre que as movimentações financeiras desse segmento da economia têm


crescido de forma exponencial, alertando governos e organismos internacionais para um
detalhe das operações com bens digitais: enquanto os tradicionais meios de distribuição de
programas de computador possibilitam facilmente a arrecadação de receitas fiscais, as
transferências eletrônicas se beneficiam de um verdadeiro “limbo” jurídico-tributário, não
sendo alcançadas pelas exações incidentes no comércio de bens tangíveis. Em último plano,
a distorção pode soterrar o level playing field mínimo que deve existir entre os fornecedores
de bens semelhantes, destinados a satisfazerem necessidades semelhantes (ex: softwares
de prateleira vendidos em lojas versus arquivos transferidos via download).

3.2. A proteção do software no Brasil


No Brasil, a Lei Federal nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (“Lei de Direitos
Autorais”), em seu art. 7º, estabelece que os programas de computador (softwares) são
obras intelectuais protegidas independentemente do meio (físico ou intangível) em que
estejam expressas:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas
por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou
intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
(...)
XII - os programas de computador;
(grifamos)

Na verdade, a proteção dos direitos autorais sobre essa espécie de obra do intelecto
humano é explicitamente consagrada pelo art. 5º, incisos XXVII e XXVIII da Constituição
Federal:
Art. 5º. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação
ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que
a lei fixar;
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-35, Fev./Maio 2009 17


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a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução
da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que
criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às
respectivas representações sindicais e associativas; (grifamos)

Veja-se que os criadores de obras do intelecto (como são os programas de


computador) possuem verdadeiro direito de “propriedade”, acentuado pela marca da
“exclusividade”, sobre os bens por eles concebidos. Esse direito protege aprioristicamente a
obra imaterial dos autores, a criação do espírito (corpus mysticum), tendo importância
secundária o suporte físico (corpus mechanicum) no qual ela esteja incorporada. Na
realidade, o que se impede é a reprodução e a distribuição não autorizada das criações
intelectuais, ou seja, a sua livre exploração econômica por terceiros, bem como a utilização
dessas obras em ambientes ou meios que possam atingir o público em geral, conforme se
depreende da leitura do caput do art. 29 da Lei nº. 9.610/9850.

A redação do artigo em referência busca proteger duas dimensões clássicas dos


direitos patrimoniais relativos às “obras do espírito” (work of the mind), de espectro
internacional: a exclusividade de “reprodução ou cópia” (copyright) e de “execução pública”.
Todavia, os meios de divulgação acima grifados (art. 29), decorrentes das transformações
implementadas pela tecnologia digital e alastrados com o crescimento da Internet, anunciam
uma verdadeira crise no sistema de proteção dos Direito do Autor. Isso porque, segundo
menciona Eduardo Lycurgo Leite, com amparo em Pamela Samuelson, seis características
das mídias digitais, que as distinguem do universo analógico, dificultam a aplicação das
normas protetivas dos direitos autorais, a saber:
(1) a facilidade com a qual obras na forma digital podem ser replicadas ou
reproduzidas;
(2) a facilidade como podem ser transmitidas e com que podem ser
utilizadas simultaneamente;
(3) a facilidade como podem ser modificadas ou manipuladas ou a sua
plasticidade;
(4) a equivalência das obras na forma digital;
(5) a compactação; e
(6) a capacidade para possibilitar novos métodos de pesquisa no ambiente
51
digital e de conexão e junção de obras.

50
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades,
tais como: (...).
51
LEITE, Eduardo Lycurgo. Direito de autor. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 214-215.

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De fato, popularizadas as transferências digitais, os titulares de direitos de
propriedade intelectual passaram a enfrentar um novo cenário de distribuição de suas obras,
no qual cada vez mais perde importância o aspecto tangível que as reveste. É que a
tecnologia digital simplesmente desmaterializou o suporte físico, permitindo a criação de um
novo tipo de suporte, digital e intangível, desterritorializado no ciberespaço52. E a
transferências desse novo tipo de suporte foge completamente aos tradicionais conceitos
empregados na regulação jurídica das operações de circulação de bens no mercado. Afinal,
os downloads possibilitam em um piscar de olhos a reprodução idêntica, ilimitada e
simultânea de bens imateriais como softwares, sem qualquer necessidade de tradição de
suportes físicos. O grande problema é que a fiscalização dessas reproduções ainda é
extremamente tormentosa, dependendo do aprimoramento de ferramentas tecnológicas e
regulamentações a nível internacional.

Note-se que, a teor do art. 37 da Lei de Direitos Autorais, “a aquisição do original de


uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do
autor, salvo convenção em contrário entre as partes”. Conseqüentemente, o simples
download de bem digital, significando a cópia de informações contidas em suporte físico
(hardware) de um servidor na Internet, não importa a transferência dos direitos patrimoniais
sobre a obra, devendo ser observada a natureza do contrato firmado entre as partes. Essas
transferências são previstas no art. 49 da Lei nº. 9.610/98.

Segundo o mencionado artigo, os direitos patrimoniais do autor poderão ser


transferidos total ou parcialmente, mediante acordo escrito entre as partes. Para que isso
ocorra, estruturas físicas de armazenagem das obras intelectuais hão de ser utilizadas,
acessoriamente à prestação principal do negócio. O caráter econômico dessa transferência,
atrelado ao tipo de contrato assinado pelo produtor da obra (licenciamento, concessão,
cessão, etc.), por sua vez, é fundamental para a identificação dos efeitos tributários
inerentes à operação jurídica realizada.

Isso porque a linha limítrofe que separa determinadas hipóteses de incidência pode
se revelar bastante tênue em algumas situações concernentes às transferências de direitos
de propriedade intelectual, dando ensejo a profundas controvérsias tributárias. Prova disso é
a polêmica distinção tributária entre as modalidades de software, diante da qual se polarizam
as possibilidades de incidência do ICMS e do ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer
Natureza). Tratando-se de softtware transmitido via download, a problemática ainda guarda
detalhes mais sutis, para cuja análise os tópicos seguintes hão de se encaminhar.

52
CARBONI, Guilherme C. Direito de autor na multimídia. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 142.

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3.3. As diferentes modalidades de software: tratamento tributário
Dispõe o art. 1º da Lei Federal nº. 9.609, de 19 de fevereiro de 1998 (“Lei do
Software”):
Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado
de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico
de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de
tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos
periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar
de modo e para fins determinados.

A definição legal de programa de computador (software) é seguida de preceito


mencionando a sua proteção jurídica nos moldes do regime da propriedade intelectual das
obras literárias, sem prejuízo da possibilidade de proibição do seu aluguel comercial:
Art. 2º O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de
computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos
autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.
(...)
§ 5º Inclui-se dentre os direitos assegurados por esta Lei e pela legislação
de direitos autorais e conexos vigentes no País aquele direito exclusivo de
autorizar ou proibir o aluguel comercial, não sendo esse direito exaurível
pela venda, licença ou outra forma de transferência da cópia do
programa.
§ 6º O disposto no parágrafo anterior não se aplica aos casos em que o
programa em si não seja objeto essencial do aluguel. (grifamos)

Agora, atente-se para o que diz o art. 8º:


Art. 8º Aquele que comercializar programa de computador, quer seja titular
dos direitos do programa, quer seja titular dos direitos de comercialização,
fica obrigado, no território nacional, durante o prazo de validade técnica da
respectiva versão, a assegurar aos respectivos usuários a prestação de
serviços técnicos complementares relativos ao adequado funcionamento do
programa, consideradas as suas especificações.
Parágrafo único. A obrigação persistirá no caso de retirada de circulação
comercial do programa de computador durante o prazo de validade, salvo
justa indenização de eventuais prejuízos causados a terceiros. (grifamos)

Os termos “comercialização”, “circulação comercial”, “venda” e “outras formas de


transferência” empregados pela lei sugerem que cópias do software, como mercadorias,
podem se submeter à cadeia de intermediação própria do comércio. Por outro lado, a
interpretação conjugada e sistemática do art. 2º, caput, da Lei do Software com o art. 49,
caput, da Lei de Direitos Autorais reforça o entendimento de que não apenas cópias do

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-35, Fev./Maio 2009 20


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software, mas também os direitos patrimoniais sobre a obra podem ser objetos de
movimentações econômicas. Nada impede, pois, que o titular dos diretos de propriedade
intelectual sobre determinado software os aliene, a título oneroso, a outrem, e assim
sucessivamente. Configuraria, porém, essa alienação onerosa um contrato de compra e
venda?

O contrato de compra e venda (art. 481 do Código Civil) tem por objeto a
transferência do domínio de certa “coisa”, entendida como “qualquer entidade suscetível de
objetividade jurídica, ou simplesmente, tudo que pode ser objeto de relações jurídicas”53, em
contraprestação ao pagamento de determinado preço. O conceito jurídico de coisa, assim,
não se extrema naquilo que se vê ou se toca com as mãos, estendendo-se ao que se
percebe com a inteligência54. Sob essa perspectiva, é possível pensar que o software,
enquanto coisa, poderia ser objeto de contrato de compra e venda, cuja etapa conclusiva
levaria à transferência em definitivo dos direitos autorais sobre o programa. É o que afirma
Guilherme Cezaroti:
O programa de computador pode ser objeto de contrato de compra e venda,
hipótese em que ocorre a transferência em definitivo dos direitos sobre o
programa. Por meio desse contrato o titular cede os seus direitos autorais,
inclusive os de comercialização.
O fato de o art. 9º da Lei nº. 9.069/98 prever somente o contrato de licença
não veda ao titular do direito autoral ceder todos os direitos relativos à sua
criação, mas apenas indica que esse é um comportamento pouco usual e
55
não encorajado pelo legislador.

Rigorosamente, entretanto, não há contrato de compra e venda de programa de


computador56. Em virtude do tratamento específico das operações econômicas envolvendo
direitos autorais, mesmo nos casos de transferência total de titularidade sobre o software,
somente admitida mediante estipulação contratual escrita (art. 49, II, da Lei nº. 9.610/98), o
que existe em caráter principal é um negócio jurídico de cessão de direitos, ainda que
eventualmente acompanhado da compra e venda do suporte físico no qual esteja fixado o
programa (geralmente CDs).

Na maioria das vezes, softwares não passam por transferências de domínio, mas sim
têm seu uso “licenciado” pelo titular dos respectivos direitos autorais. O que freqüentemente
se tornam objeto de compra e venda são os suportes físicos nos quais se armazenam as
informações dos programas a serem licenciados. A obra imaterial, consistente em um
53
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. 7. ed. São Paulo: Freitas
Bastos, 1963. v. 5, livro III, parte I. p. 5.
54
Ibid., loc. cit.
55
CEZAROTI, Guilherme. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005. p. 101.
56
Cf. WEIKERSHEIMER, Deana. Comercialização de software no Brasil: uma questão legal a ser avaliada. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 11-12.

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conjunto organizado de instruções computacionais, permanece sob o domínio do
desenvolvedor (autor da criação), que somente autoriza a comercialização de suportes
físicos para fins de licenciamento de uso do software. Essas operações são albergadas pelo
art. 9º da Lei nº. 9.609/98. Ainda segundo a “Lei do Software” (art. 10), a atividade dos
intermediários entre o desenvolvedor e o usuário final igualmente é regulamentada com base
em contratos de licença.

Freqüentemente, confundem-se as expressões “cessão parcial” e “licença” de direitos


autorais. Embora ambas tenham alcance menor e mais delimitado do que a cessão total, a
licença realiza uma simples autorização de uso, não gerando transferência de direitos, ou
seja, despojamento de direitos patrimoniais sobre a obra intelectual, normalmente em troca
de prestação pecuniária57.

Mas o que tudo isso tem a ver com incidência tributária? A resposta é: muito. A
problemática da tributação dos softwares divide a doutrina. Para uns, a natureza do contrato
de licenciamento de uso de software impede que sobre tal negócio jurídico incida ICMS, sob
pena de afronta à competência municipal para instituir e cobrar o ISSQN, único imposto que
poderia ser exigido nessa situação. Para outros, deve-se distinguir o licenciamento de uso
de programa desenvolvido especificamente para certo usuário (“por encomenda”) daquele
licenciamento padrão dos chamados softwares “de prateleira” (off the shelf), ou seja, dos
programas colocados em larga escala no mercado, padronizados e de pronta instalação. No
primeiro caso (desenvolvimento por encomenda), incidiria o ISSQN; no segundo
(oferecimento à venda em prateleira), o ICMS.

A discussão foi abordada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento no


julgamento do Recurso Extraordinário nº. 176.626/SP, assentado a Primeira Turma daquela
Corte a distinção, para efeitos tributários, entre um exemplar standard de programa de
computador, ou “de prateleira”, e o licenciamento ou cessão do direito de uso de softwares
por encomenda ou customizados.

Segundo o entendimento do STF, a produção em massa para comercialização e a


revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que neles se materializa
não caracterizam serviços de licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra (hipótese
de incidência do ISSQN58), mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas
ao recolhimento do ICMS:
EMENTA: I. Recurso extraordinário: prequestionamento mediante embargos
de declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não

57
Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 325.
58
De acordo com a lista de serviços da Lei Complementar nº. 116/2003, tanto a elaboração de programas de
computadores (item 1.04) quanto o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas (item 1.05) são
hipóteses de incidência do ISSQN.

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prequestionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primitivo
sobre o qual "não foram opostos embargos declaratórios". Mas se, opostos,
o Tribunal a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la inexistente,
nada mais se pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence, DJ 19.6.98). II.
RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos
previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto
material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a
circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é
questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário. III.
Programa de computador ("software"): tratamento tributário: distinção
necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo,
sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de
programas de computador", matéria exclusiva da lide, efetivamente não
podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não
resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de
incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de
computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do
chamado "software de prateleira" (off the shelf) - os quais, materializando o
corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem
59
mercadorias postas no comércio.

Semelhantemente, o Superior Tribunal de Justiça entende que as operações


envolvendo a exploração econômica de programas de computador, quando feitas em larga
escala e de modo uniforme, são consideradas operações de compra e venda, sujeitando-se,
à tributação pelo ICMS60. No entanto, tratando-se de software por encomenda, ou seja, de
programas computacionais desenvolvidos em caráter específico para determinados
consumidores, caberia a tributação pelo ISSQN.

Para o STJ, a produção em massa de programas e a revenda de exemplares da obra


intelectual, por terceiros que não detêm os direitos autorais materializados nos suportes
físicos, não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas
operações de circulação de mercadorias. O julgado abaixo ilustra percucientemente o ponto:
Tributário. ICMS. ISS. Programas de Computador (software). Circulação.
1. Se as operações envolvendo a exploração econômica de programa de
computador são realizadas mediante a outorga de contratos de cessão ou
licença de uso de determinado "software" fornecido pelo autor ou detentor

59
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso extraordinário nº. 176626/SP. Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. Diário Justiça, Brasília, 11 dez 1998, p. 10; RTJ vol.168-01, p. 305.
60
Nesse sentido, conferir os seguintes acórdãos do Superior Tribunal de Justiça: RESP 123.022-RS, Diário
Justiça, Brasília, 27 out. 1997. Relator: Ministro: José Delgado; RESP 216.967-SP. Diário Justiça, Brasília, 22
abr. 2002, Relator: Min. Eliana Calmon; ROMS 5.934-RJ, Diário Justiça, Brasília, 01 abr. 1996. Relator: Min.
Hélio Mosimann.

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dos direitos sobre o mesmo, com fim específico e para atender a
determinada necessidade do usuário, tem-se caracterizado o fenômeno
tributário denominado prestação de serviços, portanto, sujeito ao pagamento
do ISS (item 24, da lista de serviços, anexo ao DL 406/68).
2- Se, porém, tais programas de computação são feitos em larga escala e de
maneira uniforme, isto e, não se destinando ao atendimento de
determinadas necessidades do usuário a que para tanto foram criados,
sendo colocados no mercado para aquisição por qualquer um do povo,
passam a ser considerados mercadorias que circulam, gerando vários tipos
de negócio jurídico (compra e venda, troca, cessão, empréstimo, locação,
etc.), sujeitando-se, portanto, ao ICMS.
3- Definido no acórdão de segundo grau que os programas de computação
explorados pelas empresas recorrentes são uniformes, a exemplo do "Word
6, Windows", etc., e colocados a disposição do mercado, pelo que podem
ser adquiridos por qualquer pessoa, não é possível, em sede de mandado
de segurança, a rediscussão dessa temática, por ter sido ela assentada com
base no exame das provas discutidas nos autos.
4- Recurso Especial improvido. Confirmação do acórdão hostilizado para
61
reconhecer, no caso, a legitimidade da cobrança do ICMS .

Tanto o STJ quanto o STF basearam suas decisões em situações concretas


envolvendo a circulação de softwares em suportes físicos, expostos à venda do público em
geral. Mas e se o software padronizado não for comercializado através de suportes físicos
(geralmente CDs), mas ofertado em larga escala para aquisição mediante download na
Internet, a maior das “prateleiras”? Poderiam eles ser considerados mercadorias para fins e
incidência do ICMS, apesar da inexistência de corpus mechanicum?

A questão é tormentosa. No Brasil, de modo incipiente, o Estado do Mato Grosso


intentou tributar downloads de bens digitais, nomeadamente de softwares. Almejando o
ingresso de novas receitas nos cofres públicos, o legislador ordinário do mato-grossense
teve a inegável ousadia de estipular, no art. 2º, § 1º, inciso VI, da Lei Estadual nº. 7.098/98,
a incidência de ICMS sobre operações com programas de computador, ainda que realizadas
por transferência eletrônica de dados:
Art. 2º O imposto incide sobre:
I - operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive fornecimento
de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos
similares;
(...)

61
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 123.022/RS.
Relator: Min José Delgado. Diário Justiça, Brasília, 27 out. 1997. p. 54729.

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§ 1º O imposto incide também:
(...)
VI - sobre as operações com programa de computador - software, ainda que
realizadas por transferência eletrônica de dados. (grifamos)

O preceito normativo em referência foi objeto de impugnação na Ação Direta de


Inconstitucionalidade nº. 1945/MT, proposta pelo Partido do Movimento Democrático
Brasileiro – PMDB, que alega a incompatibilidade da Lei nº. 7.098/98 com a Constituição
Federal. Segundo o partido, o estabelecimento de ICMS sobre operações com softwares
realizadas por meio de transferência eletrônica de dados afronta tanto a exigência de Lei
Complementar contida no art. 146 da Carta Maior, como também a competência tributária
dos municípios para instituírem e arrecadarem o ISSQN.

Submetida a controvérsia à apreciação do Plenário do STF no dia 19.04.1999, o


Ministro Octavio Gallotti, então Relator, votou no sentido de deferir, em parte, o pedido de
medida cautelar formulado pelo PMDB, para fins de suspender a eficácia da expressão
“ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados” contida no preceito normativo.
Em acréscimo, pugnou para que fosse dada interpretação conforme a Constituição à
primeira parte do art. 2º, § 1º, VI, da Lei Estadual nº. 7.098/98, de maneira a que, sem
redução de texto, se fixasse a exegese de restringir a incidência do ICMS às operações de
circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador, produzidos em série e
comercializados no varejo. Não seriam abrangidos pelo imposto, portanto, o licenciamento
ou cessão de uso dos ditos programas. Contudo, o julgamento da querela foi suspenso em
função de pedido de vista do Min. Nelson Jobim.

Aproximadamente sete anos depois desse pedido de vista, o Plenário retomou o


julgamento da ADIn. O Ex-Ministro e então Presidente daquela Corte, Min. Nelson Jobim, em
voto-vista, esboçou o entendimento de que o ICMS pode incidir sobre softwares adquiridos
por meio de transferência eletrônica de dados, julgando pela constitucionalidade do art. 2º, §
1º, inciso VI, e do art. 6º, § 6º, da Lei Estadual nº. 7.098/98. Para o ele, se o fato de ser o
bem incorpóreo fosse ressalva à incidência do ICMS, não poderia, da mesma forma, ser
cobrado o imposto na aquisição de programa de computador de prateleira, visto que, nesse
caso, estar-se-ia adquirindo não um disquete, CD ou DVD, a caixa ou o livreto de manual,
mas também, e principalmente, a mercadoria virtual gravada no instrumento de transmissão.
Assim, na ótica do Ex-Ministro, se o argumento é de que o bem incorpóreo não pode ser
objeto de incidência do ICMS, a assertiva haveria de valer para o caso de bens incorpóreos
vendidos por meio de bens materiais62.

62
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Eletrônico, n. 421, de 05.04.2006.

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O julgamento da ação de inconstitucionalidade referenciada foi suspenso em virtude
do pedido de vista do Min. Ricardo Lewandowski, mas quando retomado deverá trazer
importante indicativo do entendimento jurisprudencial a ser seguido quanto à tributação dos
negócios eletrônicos pelo ICMS, influenciando sobremaneira os rumos das legislações
tributárias estatais.

Em que pese a plausibilidade das razões de possível inconstitucionalidade das


normas apontadas pelo PMDB, temos certo que o grande mérito do legislador mato-
grossense foi colocar na pauta de discussão nacional a problemática da tributação das
transferências de bens digitais. Ainda que reconhecida eventual afronta do dispositivo à
Constituição Federal, seja por incompatibilidade com o alcance de conceitos vertidos na
regra-matriz de incidência do ICMS, seja por violação a princípios do sistema constitucional
tributário, ao menos foi alimentada a discussão sobre a tributação do comércio eletrônico
direto. Uma discussão que ora passamos a encarar frontalmente.

3.4. A “circulação” eletrônica de software: peculiaridades


O critério material da hipótese de incidência do “ICMS – Mercadorias” toma a
circunstância de realizar operações relativas à circulação de mercadorias como fundamento
para a exação tributária. Poderiam, porém, as transferências eletrônicas de bens digitais ser
entendidas como “operações de circulação”?

Consoante tivemos a oportunidade de aclarar anteriormente, a regra-matriz do ICMS


exige a concretização de um negócio jurídico de transferência da titularidade sobre
mercadorias, e não apenas a sua movimentação física. Nem é a “operação” (negócio
jurídico) nem a simples “circulação” (movimentação física das mercadorias) o fato eleito pelo
legislador para provocar o nascimento da obrigação tributária, mas sim a conjugação dessas
duas palavras. A simples assinatura de um contrato de compra e venda mercantil não gera a
incidência do ICMS, tampouco a mera saída de mercadorias de um estabelecimento: exige-
se a configuração de um negócio jurídico que importe a transferência de titularidade sobre a
mercadoria comercializada. Noutro dizer, o ICMS é devido “quando ocorrem operações
jurídicas que levam as mercadorias da produção para o consumo, com fins lucrativos”63.

Nas transferências de domínio sobre bens móveis – como é o caso das mercadorias -
a tradição é elemento essencial, que configura o suporte fático da aquisição. Destaca Pontes
de Miranda que a tradição no direito brasileiro “é fundada no acordo de transmissão da
propriedade mais a entrega-tomada simples, ou mais o acordo de transmissão
possessória”64. Em virtude do seu caráter causal, não pode o negócio jurídico para a

63
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 43.
64
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. t. 15. p. 299.

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transmissão de bem móvel existir sem a tradição, sob pena de cingir-se a meras relações
obrigacionais.

Sucede que os downloads de bens digitais (v.g. softwares e músicas), via de regra,
não importam transferências de titularidade sobre as obras intelectuais (art. 37 da Lei nº.
9.610/98), ou seja, o poder de disposição jurídica. Sob o ponto de vista dos direitos autorais,
“a disposição jurídica decorrente do ato negocial é tão limitada que não se presta a
caracterizar uma verdadeira operação de circulação jurídica”65. Há apenas transferências de
informações constantes no hardware de um computador para outro, as quais são fornecidas
para fins de utilização em estrita obediência ao respectivo licenciamento de uso da obra.
Noutro dizer, o adquirente de um software ou de uma música através da Internet não realiza
a “compra” desses bens, no sentido de alienação de propriedade. Ele tão-somente paga por
cópias de pacotes de dados que, uma vez traduzidos pelo computador do usuário em
linguagem apropriada, gerarão certa utilidade.

Embora não detenha os direitos de propriedade intelectual sobre os programas


computacionais que oferece à disposição de usuários da Internet para fins de reprodução via
download, a empresa que distribui bens digitais em larga escala acaba desempenhando
papel muito similar ao daquelas que distribuem CDs, fitas de vídeo, etc. A diferença é que
inexiste suporte físico apto a configurar uma “tradição”, no sentido convencional no termo,
como também não existem “estoques” em movimentação: as transferências digitais
permitem a realização de infinitas cópias, simultaneamente, através de um sistema de
distribuição sem fronteiras.

Vê-se, assim, que o mecanismo das transferências digitais escapa à noção usual de
“circulação”, ao permitir que certa pessoa adquira um bem a partir do site de uma empresa
sem que haja qualquer mudança de domínio sobre a utilidade em si mesma considerada. O
download de softwares não importa alteração de posse ou propriedade, mas mera
reprodução de informações, de sorte que o “estoque” da empresa que as comercializa no
ciberespaço continua inalterado independentemente de quantidade de aquisições.

Inexistindo circulação jurídica das obras intelectuais transmitidas eletronicamente,


vale dizer, mudança patrimonial, não se pode admitir a caracterização da materialidade da
norma de incidência do ICMS, com base na significação corrente da expressão “circulação”,
atrelada a atos de transferência de domínio. Afinal, nem o processo de cópia das
informações que compõem o bem digital nem o negócio jurídico de licenciamento ou cessão
parcial de uso ocasionam deslocamento de direitos patrimoniais.

65
LANARI, Flávia de Vasconcellos. A tributação do comércio eletrônico. São Paulo: Del Rey, 2005. p. 207.

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3.5. Enquadramento do software no conceito de mercadorias?
Conforme já aduzimos, o conceito de mercadoria está atrelado ao exercício da
atividade empresarial, que promove a circulação econômica de bens no mercado, visando o
lucro. Todavia, quando o objeto dessa “circulação” não é uma realidade tangível – como no
caso de programas de computador transferidos via download – fica mais árduo o trabalho de
ilação conceitual. Prova disso é a existência de opiniões doutrinárias diametralmente
opostas sobre o assunto.

José Eduardo Soares de Melo entende que os bens digitais não consubstanciam as
características de âmbito legal e constitucional de mercadoria, alertando que o software
representa um produto intelectual, objeto de cessão de direitos, de distinta natureza jurídica,
o que tornaria imprescindível uma alteração normativa66.

Ao seu modo, Hugo de Brito Machado acentua que não sendo um bem corpóreo, o
software adquirido mediante download não pode ser entendido como mercadoria,
configurando verdadeiro absurdo a exigência de ICMS sobre sua aquisição67.

Analogamente, Elidie Palma Bifano reputa que a atividade de download não se


caracteriza como operação mercantil sujeita ao ICMS, por carecer o bem digital das
características de mercadoria e por lhe faltar o corpus mechanicum68. Adelmo da Silva
Emerenciano, partindo da premissa de que a noção de mercadoria exige a materialidade da
coisa para ocorrer a sua respectiva tradição, também acredita que nem nos contratos de
licença que propiciam o fluxo de bens digitais nem nas operações de cessão de direitos de
bens digitais ocorre a incidência do ICMS69.

Contrariamente, Guilherme Cezaroti abraça a bandeira de que a corporalidade não é


um requisito intrínseco das mercadorias, podendo as cessões de direitos de propriedade
intelectual ser qualificadas como vendas de mercadorias intangíveis, sujeitas ao ICMS70.
Mas frise-se: apenas as cessões totais de direitos, não o licenciamento de uso de obras
protegidas por direitos autorais (imensa maioria dos casos).

Para nós, a problemática deve ser analisada a partir de três vertentes, que se
relacionam entre si: (i) possibilidade de existirem mercadorias intangíveis; (ii) distinção entre
a obra intelectual e o suporte que a contém; (iii) destinação econômica do conjunto de
elementos que formam os softwares.

66
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 19.
67
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Tributação na Internet. São Paulo: RT, 2001. p. 97.
68
BIFANO, Elidie Palma. O negócio eletrônico e o sistema tributário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin,
2004. p. 227.
69
EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB, 2003. p. 158.
70
CEZAROTI, Guilherme. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005. p. 118.

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Em relação à primeira delas, embora não haja consenso quanto à inserção de bens
intangíveis na categoria de mercadorias, acreditamos ser suficientemente elucidativa a
conjugação entre o art. 155, § 3º, da Constituição Federal, e o art. 83, I, do Código Civil.

O art. 83, I, do vigente Diploma Civil considera as energias que tenham valor
econômico bem móvel para os efeitos legais. Já o art. 155, §º 3, da Carta Magna, prevê a
incidência de ICMS sobre “operações relativas a energia elétrica”. Fica patente, assim, a
possibilidade de um bem imaterial ser alocado no conceito de mercadoria, compondo o
objeto de contratos de compra e venda mercantil, por força de expressa disposição
constitucional.

Todavia, tratando-se de bens imateriais protegidos pela legislação de direitos


autorais, a situação guarda maior complexidade, uma vez que tais espécies de bens se
sujeitam a regime jurídico específico, devendo qualquer ilação conceitual para fins tributários
ser empreendida atentando-se para as disposições encontradas nas leis nº. 9.609/98 e nº.
9.610/98. Aqui, nossa atenção deve voltar-se à distinção entre a criação intelectual e o seu
respectivo suporte.

A obra intelectual não se confunde com o veículo material no qual esteja inserida.
Nada impede, por exemplo, a distribuição de exemplares do Windows Vista por empresas
revendedoras das quais sequer a Microsoft ouviu falar. Os suportes que contêm o software
padronizado circulam na cadeia de distribuição independentemente dos direitos patrimoniais
sobre a obra intelectual, que permanecem com a Microsoft. O usuário final, ao adquirir um
exemplar do programa, tal como acontece na compra de CDs musicais, não arremata os
direitos autorais sobre a obra, mas apenas uma “licença”, que permitirá o uso do legal do
bem, dentro das limitações da legislação que protege as criações do intelecto. O fato de
inexistir transferência de titularidade da obra não impede, porém, a tributação das operações
concernentes à circulação do suporte que a contenha.

Ilustramos anteriormente que o STF e o STJ, ponderando acerca da circulação em


larga escala de softwares padrões (“de prateleira”), considerou que a destinação econômica
(distribuição em larga escala) do corpus mechanicum no qual repousam os direitos do autor
da obra leva à incidência do ICMS. Confira-se trecho do voto do Ministro Sepúlveda
Pertence:
O comerciante que adquire exemplares para revenda, mantendo-os em
estoque ou expondo-os em sua loja, não assume a condição de licenciado
ou cessionário dos direitos de uso que, em conseqüência, não pode
transferir ao comprador: sua posição, aí, é a mesma do vendedor de livros
ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o corpus
mechanicum de obra intelectual nele materializada. Tampouco, a fortiori, a

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assume o consumidor final, se adquire um exemplar do programa para dar
de presente a outra pessoa. E é sobre essa operação que cabe
71
plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado.

O mesmo raciocínio se aplica a outras obras intelectuais armazenadas em CDs, VHS


ou DVDs, qualificando-se como mercadorias72, de acordo com o STF:
TRIBUTÁRIO. FITAS DE VÍDEO. COMERCIALIZAÇÃO IMPESSOAL.
MERCADORIA. ICMS. INCIDÊNCIA. SÚMULA 135/STJ. APLICAÇÃO
RESTRITA À VENDA DE FITA POR ENCOMENDA.
1. Sobre a comercialização de fitas de vídeo produzidas em série e
ofertadas ao público em geral incide ICMS, porquanto, em tais condições
dessa monta, esse produto se qualifica como mercadoria.
2. O enunciado da Súmula 135/STJ aplica-se, tão-só, à venda de fitas de
vídeo produzidas por encomenda, de forma personalizada para um cliente,
quando é devido o ISS, ante a caracterização da prestação de serviço.
73
Recurso especial provido.

Tal entendimento jurisprudencial parte da premissa de que os suportes de obras


intelectuais produzidos em massa, de maneira uniforme, e colocados no mercado para
serem adquiridos livremente em processos de comercialização, evidenciam nítida circulação
de mercadorias, sendo devido o recolhimento do ICMS.

Ocorre que nas transferências eletrônicas de bens digitais simplesmente inexistem


suportes em estoque ou expostos fisicamente em lojas (corpus mechanicum), passíveis de
comercialização no mercado. Em fato, há apenas informações armazenadas em um
computador, as quais em última instância são “baixadas” eletronicamente por determinado
usuário, que adquire concomitantemente uma licença de uso da obra reproduzida através da
Internet.

Com a tecnologia digital, passa a ser possível alcançar informações sem recorrer ao
suporte físico74, e a idéia de corpus mechanicum torna-se relativa. As obras imateriais
começam cada vez mais a se abstraírem do corpo que as veicula, rompendo a tradição
materialista existente. Como constata Nicholas Negroponte, a mudança dos átomos para os
bits mostra-se irrevogável, e não há como detê-la75.

71
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário nº. 176626/SP. Relator: Min.
Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 fev. 2007.
72
Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário n°. 191732/SP. Relator: Min.
Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 18 jun. 1999, p. 24.
73
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n°. 203522/SP. Relator: Min. Castro
Meira. Diário da Justiça, Brasília, 03 dez. 2005, p. 160.
74
CARBONI, Guilherme C. Direito de autor na multimídia. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 138.
75
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 10.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-35, Fev./Maio 2009 30


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Entretanto, do ponto de vista do direito positivo vigente, tendo em conta as
peculiaridades das transferências de bens digitais, não se pode afirmar existente uma
operação de circulação jurídica entre autores e distribuidores, ou entre distribuidores e
usuários finais. O que há são contratos atípicos que permitem aos empresários a
disponibilização de informações para serem reproduzidas mediante download, sob as
balizas delimitadas no termo eletrônico de adesão submetido ao usuário final. Vê-se assim
que a posição do STF sobre a incidência do ICMS estampada no Recurso Extraordinário nº.
176626/SP, não se ajusta ao modelo do comércio eletrônico direto, vez que arrimada no
aspecto corpóreo das obras intelectuais, conforme declara José Gomes Jardim Neto:
Na verdade, a decisão que concluiu pela tributação do software de prateleira
fez isso baseando-se principalmente na presença de um suporte físico. Uma
vez que esse suporte físico já não existe mais, para que se tribute o software
vendido pela Internet teoricamente será necessária uma nova decisão, com
76
argumentos totalmente diversos.

De outra banda, calha ter em mente que a própria lógica do comércio eletrônico
facilita uma crescente “desintermediação” dos processos de produção e distribuição77,
diminuindo a cadeia de intermediários do comércio tradicional, e contribuindo para o que Bill
Gates chama de “capitalismo sem força de atrito”78. Em outras palavras, a tecnologia digital
otimiza o contato direto entre compradores e produtores, reduzindo dramaticamente a
quantidade de intermediações usualmente existentes no comércio tradicional, e
conseqüentemente os custos da transação.

Ora, sendo o ICMS um tributo baseado no princípio da não-cumulatividade, essa


desintermediação o afeta visivelmente. Na medida em que o próprio criador do bem digital
ou empresa distribuidora por ele autorizada interage diretamente com o destinatário final,
suprimindo instâncias de intermediação usuais (e.g. lojas de informática, supermercados,
etc.), fica difícil imaginar meios de realização do mencionado princípio.

Destarte, em face da própria sistemática do ICMS, e da interpretação doutrinária e


jurisprudencial do termo “mercadoria” vertido na sua regra-matriz de incidência, é de se notar
que, malgrado tal conceito comporte bens imateriais (como a energia elétrica), não alcança
as informações transferidas por meio digital. Pesa em favor dessa assertiva a completa
inaplicabilidade da atual jurisprudência do STF e do STJ sobre a tributação do “software de
prateleira” à realidade do comércio eletrônico direto, na qual inexiste um corpus mechanicum
sujeito a circulação econômica. Nada obstante, esse panorama pode mudar radicalmente

76
JARDIM NETO, José Gomes. Os produtos digitais vendidos na internet e o ICMS. In: SCHOUERI, Luís
Eduardo (Org.). Internet: o direito na era virtual. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 288.
77
Cf. CORABI, Giampaolo; MCLURE JUNIOR, Charles E. La tributación sobre el comercio electrónico:
objetivos econômicos, restricciones tecnológicas y legislación tributaria. Buenos Aires: Depalma, 2000. p. 14.
78
GATES, Bill. A estrada do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 199-201.

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acaso seja adotado pelo STF o entendimento do Ex-Ministro Nelson Jobim no julgamento da
ADIn nº. 1945/MT, no sentido de que o ICMS pode incidir sobre softwares padronizados
adquiridos através de transferência eletrônica de dados.

4. Conclusões
O presente estudo não tem a vã pretensão de solidificar conclusões absolutas. O
Direito é um fenômeno social que permite várias abordagens, não circunscritas aos limites
da dogmática. As conclusões obtidas ao cabo de nossa análise, vinculadas a premissas
metodologicamente cerradas ao espectro do direito positivo vigente, são apenas uma das
vertentes possíveis do debate acerca da incidência do ICMS nas transferências eletrônicas
de software.

Nesse passo, levantamos a hipótese de que os conceitos tradicionais utilizados pela


legislação tributária podem se revelar absolutamente inadequados aos novos fatos da
realidade trazidos com o advento da Internet. Para verificá-la, coube-nos expor
sinteticamente o quadro atual do sistema constitucional tributário brasileiro.

Assim, vimos que a Constituição Federal de 1988 traça a moldura das competências
para a instituição e cobrança do ICMS pelos Estados, que deve ser exercida em observância
aos princípios constitucionais tributários e às regras limitativas da atuação do legislador
infraconstitucional. Em acréscimo, frisamos que a regra-matriz de incidência do ICMS-
Mercadorias pode ser decomposta e estruturada logicamente a partir de determinados
critérios, dentre os quais o critério material.

Por derradeiro, partindo de um viés lógico-semântico, pudemos concluir que as


transferências eletrônicas (downloads) de softwares não se sujeitam à incidência do imposto
sobre operações relativas à circulação de mercadorias, haja vista a inadequação dos
conceitos que integram o aspecto material da sua regra-matriz.

5. Referências

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Segurança nº. 19010/GO. Relator: Min. Luiz Fux. Diário da Justiça, Brasília, 23 nov. 2006,
p. 213.

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Relator: Min. Castro Meira. Diário da Justiça, Brasília, 03 out. 2005, p. 160.

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______. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário nº.


176626/SP. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 10 fev. 2007.

______. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário n°. 191732/SP.
Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 18 jun.1999, p. 24.

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Estado e religião: implicações da laicidade do Estado nos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos

Bruno Santos Cunha1

Sumário: 1. Introdução - 2. A liberdade no direito constitucional - 2.1. Análise histórico-


política dos direitos fundamentais: os fundamentos da liberdade constitucionalmente
garantida - 2.2. As diversas facetas da liberdade: um conceito plurívocom - 2.3. Acepções da
liberdade na Constituição Federal de 1988 - 3. As formas de liberdade constitucionalmente
tuteladas: a liberdade religiosa e suas vertentes - 3.1. As diversas formas de liberdade
tuteladas pelo direito - 3.2. A liberdade religiosa e seus consectários - 3.3. As vertentes da
liberdade religiosa - 4. A laicidade como solução constitucional apropriada para o Estado
brasileiro - 4.1. Relações possíveis entre Estado e Religião - 4.2. A laicidade do Estado
brasileiro de 1988 - 4.3. Laicidade do Estado como proteção aos direitos fundamentais - 5.
Considerações finais - 6. Referências.

1. Introdução

O presente trabalho monográfico pretende analisar a forma como a Constituição


Federal de 1988 aborda o tema da laicidade do Estado e, ademais, o modo como os
poderes constituídos trabalham tal tema em suas diversificadas atuações
constitucionalmente reguladas.

O simples fato de a Constituição Federal de 1988 trazer em seu bojo expressa


regulamentação sobre a temática ora aludida fez nascer um incessante e notável debate
jurídico-político que, após 20 anos de vivência constitucional, ainda não comporta solução
pacífica.

1
Procurador judicial do Município do Recife, Ex-professor do curso de Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Advogado e professor universitário. Trabalho de conclusão submetido ao Curso de Pós-
Graduação Latu Sensu em Direito Constitucional da UNISUL - SC.

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Por certo, o grande embate que se vislumbra quando se discutem as relações e as
implicações entre Direito e Religião deve ser evidenciado no campo da argumentação
jurídica, isto é, fazendo com que eventuais impressões e elucubrações passionais sejam
deixadas de lado.

Por mais tênue que seja a linha divisória entre a razão jurídica e a emoção da paixão,
há de se deixar claro que o intuito da discussão que ora se apresenta é o de levantar os
pontos cruciais de uma relação – Estado e Religião – que pode ser notada desde os
primórdios da história humana e, desde então, é alvo de inúmeras reflexões.

Assim, o objetivo que ora se trava é o de discutir a possibilidade de o Estado trazer


consigo uma determinada manifestação confessional e, bem assim, o impacto de tal postura
estatal frente ao direito fundamental de liberdade dos cidadãos que, por meio da conjugação
de suas vontades políticas, determinam a instauração de um Estado notadamente laico.

2. A liberdade no direito constitucional

2.1. Análise histórico-política dos direitos fundamentais: os fundamentos da


liberdade constitucionalmente garantida

A temática dos direitos fundamentais pode ser retratada como um dos pilares do
moderno Estado Constitucional. Tal concepção é de fácil constatação quando se vislumbra
que tal matéria é abrangida pelo que se designa como sendo o conceito material de
Constituição, ou seja, aquele conjunto de normas constantes do corpo constitucional que
dão a essência ao Estado e, assim, como bem salienta Celso Bastos, “lhe conferem a
estrutura, definem as competências dos seus órgãos superiores, traçam limites da ação do
Estado, fazendo-o respeitar o mínimo de garantias individuais”.2

Nesse ponto, vale notar que as normas referentes à estrutura do Estado, à


organização dos Poderes e aos direitos fundamentais são consideradas como matérias
constitucionais clássicas, isto é, presentes no bojo da Constituição desde os primórdios do
movimento constitucionalista.

De fato, ademais de comporem um nicho constitucional já amplamente estabelecido,


há de se perquirir as razões da notória consagração de tal matéria – direitos fundamentais –
dentro do esquema de organização estatal atual. Assim, vale notar que os pressupostos
iniciais da construção de uma teoria jurídico-normativa ao redor dos direitos fundamentais
dos cidadãos fazem parte de uma nítida tentativa de se controlar o poder estatal e, por

2
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 46.

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conseguinte, determinar uma forma de atuação estatal que não seja manchada pela
utilização de violência ilegítima.

Bem de ver, pois, que a consagração de um arcabouço jurídico bem delineado em


torno dos direitos fundamentais representa o instrumental pré-ordenado e disposto a frear a
atuação estatal irresponsável e indiscriminada, dando azo ao que pode ser visto como a
grande ruptura política, filosófica e ideológica com o Estado Absolutista e totalitário.

Notório, assim, que a crescente luta pela implementação de um Estado de Direito,


com um nítido viés democrático, e a adoção da forma constitucional para o Estado têm seu
fundamento, em suma, na construção de um sistema que garanta um mínimo de direitos aos
cidadãos, sendo que, em razão disso, a estrutura constitucional moderna traz consigo uma
sistemática complexa de direitos e garantias fundamentais.

No entanto, o aspecto moderno desses direitos tidos como fundamentais remonta,


necessariamente, a um desenvolvimento histórico iniciado, sobretudo, com as chamadas
declarações de direitos.

Assim, cumpre salientar um documento que grande parte dos autores coloca como
sendo o precursor das declarações de direitos propriamente ditas, qual seja, a Magna Carta
da Inglaterra de 1215. Nesse ponto, Vladimir Brega Filho evidencia que

este documento representou importante contribuição para o progresso dos


direitos fundamentais, pois reconhecia direitos do homem contra o Estado.
Embora outorgada por João Sem Terra, ela foi resultado de um acordo entre
esse rei e os barões ingleses. A carta impunha restrições tributárias,
garantia a liberdade da Igreja, a proporcionalidade entre o delito e a sanção,
garantia o devido processo legal, a liberdade de locomoção e apontava a
judicialidade como um dos princípios do Estado de Direito, exigindo o crivo
do juiz para a prisão de homem livre (liberdade de locomoção), entre outros
3
direitos.

Ainda sobre o referido documento, notório era o alcance e a inovação que


representava, embora fosse claro que tinha como alvo uma pequena parcela da população
inglesa da época, especialmente os barões proprietários de terras. Sobre a questão, Dalmo
de Abreu Dallari aduz que

na realidade, não se pode dizer que as normas da Magna Carta constituam


uma afirmação de caráter universal, de direitos inerentes à pessoa humana
e oponíveis a qualquer governo. O que ela consagrou, de fato, foram os
direitos dos barões e prelados ingleses, restringindo o poder absoluto do

3
BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 6.

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monarca. Todavia, essa afirmação de direitos, feita em caráter geral e
obrigando o rei da Inglaterra no seu relacionamento com os súditos,
representou um avanço, tendo fixado alguns princípios que iriam ganhar
4
amplo desenvolvimento, obtendo a consagração universal.

O próximo passo, portanto, seria o desenvolvimento dessa doutrina de direitos e


garantias a fim de estabelecer um verdadeiro limite para a atuação estatal que fosse
disponibilizado para toda a população. Para tal, uma releitura e incorporação de preceitos da
teoria do direito natural seria importante, como forma de emprestar às futuras declarações
de direitos uma conotação fundamental, natural, superior e universal. Reconhecer-se-ia,
pois, a existência de direitos inatos, invioláveis e imprescritíveis que atuariam como
princípios de validez do Direito positivo.

Após o início desse movimento de reconhecimento de direitos se instaurar na


Inglaterra, resta claro que teve o seu desenvolvimento, também, na França e nas colônias da
América do Norte. O fato é que a partir da base traçada pelos barões ingleses o movimento
ganhou força, em especial, com a atuação dos burgueses ascendentes na Europa que,
alijados de uma participação política efetiva, buscaram

ampliar seu poder político e limitar a ação dos monarcas, patrocinaram


movimentos filosóficos, fazendo surgir na Europa, especialmente na França
– na época o principal centro de irradiação de idéias –, o pensamento de
que havia a necessidade da elaboração de um documento para definição
5
dos limites do Estado e dos direitos dos cidadãos.

Nesse contexto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela


Assembléia Nacional francesa em 26 de agosto de 1789, tem lugar de destaque, uma vez
que sintetiza os auspícios da burguesia francesa e, além disso, ratifica positivamente o
reconhecimento dos valores fundamentais da pessoa humana em discussão.

Todo modo, ainda dentro do contexto de afirmação histórica dos direitos


fundamentais – principalmente quando se tem em mente a teoria geracional ou dimensional
dos direitos fundamentais formulada por Karel Vasak e bastante difundida na obra de
Norberto Bobbio e Paulo Bonavides – vislumbra-se, claramente, o surgimento da chamada
primeira dimensão de direitos fundamentais que, em suma, representam a necessidade de
submissão do Estado ao Direito e a necessidade de limitação dos poderes estatais em face
de prerrogativas individuais ligadas à dignidade humana.

4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 205-6.
5
BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 9.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-29, Fev./Maio 2009 4


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Por certo, o valor fundamental a ser celebrado no âmbito dessa primeira dimensão de
direitos fundamentais é o da liberdade, sobretudo no que se refere à impossibilidade ou à
ilegitimidade da atuação estatal tendente a invadir a esfera privada do cidadão e a causar-
lhe malogro. Assim, a perspectiva que se vislumbra é a da inação ou da inércia estatal, isto
é, uma postura passiva por parte do ente estatal que, substancialmente, passa a ser exigida
como um direito fundamental dos cidadãos.

Diante dessa assertiva, portanto, torna-se fácil denotar o caráter negativo dessa
primeira dimensão de direitos fundamentais, eis que, conforme salienta Henrique Savonitti
Miranda,

bastava que o Estado se abstivesse de praticar atentados à vida, à


propriedade, prisões indevidas, desigualações entre os homens,
restringindo-se à esfera lícita de seu atuar, para que os direitos individuais
6
estivessem automaticamente implantados.

Outrossim, o que deve restar claro é que a própria submissão do Estado ao direito e
a uma ordem jurídica estabelecida acaba por fulminar a intromissão irrestrita do ente estatal
nas relações privadas, eis que, diante do império do direito, qualquer agir estatal só seria
realizável no plano fático quando autorizado por lei.

No mesmo sentido, Jairo Schäfer aponta que,

com estas influências históricas e políticas, surgiram os direitos


fundamentais de primeira geração. São os direitos da liberdade. Têm por
titular o indivíduo e são oponíveis ao Estado. Trata-se de uma relação de
exclusão, em que o Estado não pode interferir na situação jurídica do
individuo. Estes direitos, historicamente, caracterizam-se pela forte eficácia
negativa, segundo a qual a pretensão maior do cidadão é a limitação dos
7
poderes do Soberano.

E complementa Paulo Bonavides ao dizer que

os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a


constarem do instrumento normativo constitucional, a saber os direitos civis
e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico,
8
àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente.

De toda sorte, o que se extrai da já aludida primeira dimensão (ou geração) de


direitos fundamentais é que o seu valor primordial está centrado na liberdade; ainda que,

6
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 189.
7
SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 19-20.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 563.

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nesse momento, tal liberdade seja caracterizada sob uma perspectiva eminentemente
negativa – baseada na já mencionada inércia ou inação estatal frente aos indivíduos.

Após essa primeira construção, chega-se ao ponto do processo histórico-evolutivo


em que a não intervenção do Estado, já trazida no bojo das constituições, não mais se
apresentava como elemento hábil para uma ordenação social justa. Nesse tocante, ressai a
figura do industrialismo recente, fruto dos ideais liberais de cunho individualista, que
promovera um grande desajuste nos níveis sociais.

É dessa conjuntura que nasce a imperiosa necessidade de se promover uma


compatibilização dos níveis sociais aos padrões mínimos de dignidade humana, isto é,
estabelecer, por meio do próprio ente estatal que antes se comprometera a não intervir, uma
prestação positiva no sentido de garantir a concessão a todos indivíduos de, por meios
próprios, assegurar uma situação social razoável.

Nesse ponto, no transcurso histórico da afirmação dos direitos fundamentais, há de


se mencionar aquela que se denomina como segunda dimensão dos direitos fundamentais,
cujo valor motriz está centrado na igualdade, eis que se pretende, ante tal construção, a
efetivação de um desenvolvimento social capaz de fulminar eventuais desarranjos e
desníveis econômicos e sociais.

Estes direitos fundamentais (também chamados sociais pela íntima ligação com um
princípio de justiça social) caracterizam-se, em suma, pelo deslocamento na atuação estatal
que, anteriormente, se quedava inerte perante o cidadão e agora deveria assumir uma
postura nitidamente promocional galgada, sobretudo, na promoção de uma igualdade
material. No dizer de Ingo Sarlet, tais direitos

caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a


prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação,
trabalho, etc., revelando uma transição das liberdades formais abstratas
9
para as liberdades materiais concretas [...].

Assim, pois, a alçada de tais ‘direitos’ ao nível constitucional sinaliza a configuração


de um Estado Social em contraposição ao ideário puramente liberal de até então (Estado
Liberal). Nesse contexto e por derradeiro, importa trazer o pensamento de Bonavides sobre
essa mutação estrutural quando diz que,

em suma, no Estado liberal do século XIX, a Constituição disciplinava


somente o poder estatal e os direitos individuais (direitos civis e direitos

9
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2003. p. 52.

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políticos) ao passo que hoje o Estado social do século XX regula uma esfera
10
muito mais ampla: o poder estatal, a Sociedade e o indivíduo.

E continua o aludido ao autor, salientando que

o Estado social nasceu de uma inspiração de justiça, igualdade e liberdade;


é a criação mais sugestiva do século constitucional, o princípio governativo
mais rico em gestação no universo político do Ocidente. Ao empregar meios
intervencionistas para estabelecer o equilíbrio na repartição dos bens
sociais, instituiu ele ao mesmo passo um regime de garantias concretas e
objetivas, que tendem a fazer vitoriosa uma concepção democrática de
poder vinculada primacialmente com a função de fruição dos direitos
fundamentais, concebidos doravante em dimensão por inteiro distinta
daquela peculiar ao feroz individualismo das teses liberais e subjetivistas do
passado. Teses sem laços com a ordem objetiva dos valores que o Estado
concretiza sob a égide de um objetivo maior: o da paz e da justiça na
sociedade.[...] Enfim, o Estado social não é artigo ideológico nem postulado
metafísico nem dogma religioso, mas verdade da Ciência Política e axioma
11
da democracia.

Cronologicamente há de se falar, por ora, dos direitos da terceira dimensão que,


apesar de em sua maioria não estarem ainda reconhecidos nos modernos textos
constitucionais, encontram-se, sobremaneira, consagrados na esfera internacional em
diversos tratados e documentos. Vale destacar, ainda, que tais direitos são representados
pelo ideal da fraternidade, em um nítido movimento que aponta para a solidariedade com fim
último de toda a ordenação jurídica. No posicionamento de Ingo Sarlet, são

também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade,


trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da
figura do homem-individuo como seu titular, destinando-se à proteção de
grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se,
12
conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.

Por fim e a despeito de um lineamento histórico seqüencial no que concerne à


positivação de ‘outros direitos’ no âmbito constitucional, vale lembrar que não há, em
qualquer tempo, um processo substitutivo entre as mais variadas dimensões de direitos, uma

10
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo, Malheiros, 2006. p. 229.
11
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 12 - 22.
12
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2003. p. 53-54.

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vez que “esses direitos não são substituídos ou alterados de tempos em tempos, mas
resultam num processo de fazer-se e de complementaridade permanente.”13

Diante do até aqui exposto – afirmação histórica dos direitos fundamentais – ressalta-
se que o enfoque a ser explorado no presente trabalho parte da análise da já aludida
primeira dimensão ou geração de direitos: dimensão essa que apresenta como valor
fundamental o da liberdade. Ademais, o que se pretende debater são as relações existentes
entre Estado e Religião e, bem assim, de que forma tais relações podem vir a interferir
indevidamente na seara da liberdade dos indivíduos que, há muito, já vislumbram tal
liberdade como uma notória consagração da luta contra o absolutismo e o totalitarismo e,
sobretudo, como um dos pilares dos direitos fundamentais dos cidadãos.

2.2. As diversas facetas da liberdade

Para que seja possível se tratar do tema liberdade no âmbito do direito e, sobretudo,
no âmbito específico do direito constitucional, faz-se necessário que se estabeleça uma
premissa basilar, qual seja: o signo lingüístico liberdade, em si, apresenta inúmeras
acepções e conformações possíveis, sendo fácil de se notar que tal signo, particularmente, é
dotado de um viés plurívoco, ou seja, capaz de ser concebido sob diversas óticas distintas.

De fato, o que deve restar claro é a notória dificuldade em se estipular, dentro ou fora
da seara jurídica, um conceito para o tema liberdade que possa abarcar todas as distintas
acepções em que o mesmo pode vir a ser utilizado.

Nesse contexto e acerca da difusão plurívoca do tema liberdade, clara é a conclusão


de Cecília Meireles ao enunciar em seu Romanceiro da Inconfidência que “a palavra
Liberdade vive na boca de todos: quem não a proclama aos gritos, murmura-a em tímido
sopro”.14 E, ainda na mesma temática, declara em verso a aludida autora:

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique


15
e ninguém que não entenda!

De toda forma, há de se perquirir, então, qual seria o conceito de liberdade a ser aqui
trabalhado e quais as acepções da mesma que devem ser abordadas quando a pauta
específica de trabalho gira em torno das implicações existentes entre Estado e Religião.

13
WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ‘novos’ direitos. In: LEITE,
José Rubens Morato; WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Os “novos” direitos no Brasil. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 6.
14
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da inconfidência. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 88.
15
Id., p. 91.

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Ante tal premissa, válido destacar a conceituação de José Afonso da Silva que,
buscando inspiração na obra de Montesquieu, salienta que

a liberdade política não consiste em fazer o que se quer. Num Estado, isto é,
numa sociedade onde há leis, a liberdade não pode consistir senão em
poder fazer o que se deve querer, e a não ser constrangido a fazer o que
16
não se deve querer.

Ainda nas palavras do citado autor, interessa mencionar que “essa noção de
liberdade, contudo, é perigosa, se não se aditar que tais leis devem ser consentidas pelo
povo”.17

Outrossim, na contínua busca por um conceito que melhor reflita o verdadeiro teor do
que pode vir a representar a liberdade, importante trazer à baila a construção francesa
advinda da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que, em consonância
com a construção de Montesquieu acima aludida por José Afonso da Silva, assim dispõe
acerca do tema:

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

IV - A liberdade consiste em poder fazer tudo quanto não incomode o


próximo; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
limites senão nos que asseguram o gozo destes direitos. Estes limites não
18
podem ser determinados senão pela lei.

Vale lembrar, ademais, a distinção que pode e deve ser feita dentro da conceituação
de liberdade, qual seja: a liberdade negativa e a liberdade positiva. Nesse contexto, Aldir
Guedes Soriano bem esclarece que

aquela, ou seja, a liberdade no sentido negativo se opõe à autoridade como


forma de resistência à opressão. É a liberdade com ‘ausência de
impedimento ou de constrangimento’. A liberdade no sentido positivo é
aquela que se submete à autoridade legítima. Apresenta-se sob a forma de
19
heteronomia, portanto, de não-liberdade.

Com isso, resta claro que pode ser visto como livre, em uma perspectiva negativa,
aquele que, negando a autoridade, afasta uma eventual atuação ilegítima da mesma por
expressa oposição – em uma nítida resistência contra uma interferência indevida. Por outro
lado, sob uma ótica positiva, é tido como livre todo aquele que, ao participar da autoridade
ou do poder, o utiliza como um instrumento para a concretização e efetivação de tal status.
16
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
17
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
18
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1789.htm>. Acesso em: 24 set. 2008.
19
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 2.

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Nesse plano específico, José Afonso da Silva coloca que a “liberdade consiste na
possibilidade de coordenação dos meios necessários à realização da felicidade pessoal”.20

2.3. Acepções da liberdade na Constituição Federal de 1988

Não há dúvidas que a construção de um Estado (e, por assim dizer, de um


ordenamento jurídico) é feita sobre alguns pilares básicos que, em suma, servem de
sustentáculo para toda uma vasta gama de previsões e atuações estatais futuras.

Nessa temática, quando se analisa a criação do atual Estado Brasileiro – a atual a


República Federativa do Brasil criada juridicamente pela Constituição Federal de 1988 –
denota-se claramente que um desses pilares básicos que sustentam a atuação estatal pode
ser representado por meio do valor ‘liberdade’.

Tal é a força dessa temática em nossa atual ordem constitucional que, em variados
trechos de seu texto, a Constituição brasileira aborda de forma expressa a liberdade como
valor magno a ser tutelado. Assim, fácil identificar que, nessas diversas abordagens
expressas, o valor liberdade é tutelado pelo ordenamento com uma distinta acepção, isto é,
o valor magno ‘liberdade’ é desdobrado em variadas órbitas a fim de que possa ser tutelado
da melhor e mais efetiva forma possível.

De fato, se tomarmos como base o texto constitucional brasileiro de 1988, resta


límpido que o caput do art. 5º traz o direito à liberdade, em um sentido amplo, como um
direito fundamental ao enunciar o que segue:

CF/88 – Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
21
e à propriedade, nos termos seguintes:

Nessa esteira, ao tecer comentários sobre o direito à liberdade em acepção ampla


(trazido no caput do art. 5º) e suas mais variadas vertentes, Aldir Guedes Soriano salienta
que

os incisos desse dispositivo apresentam as mais variadas formas de


liberdade ou vertentes. Assim como a luz branca, ao passar por um prisma,
é decomposta nas cores do arco-íris, a liberdade – do caput do art. 5º – é
decomposta nas suas formas de liberdade e apresentada nos incisos que
22
seguem.

20
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232.
21
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 12.
22
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.

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Ademais, além de ser tratado no caput do art. 5º e em seus diversos incisos, o valor
liberdade é novamente colocado em pauta no texto constitucional no preâmbulo da
Constituição e no art. 3º, inciso I. Nessas diversas acepções possíveis, vale notar que a
liberdade ora é tratada como um princípio constitucional, ora como um direito fundamental.
Em cima dessa diferenciação – e já adentrando no espectro de possíveis relações entre a
Igreja (religião) e o Estado – Aldir Guedes Soriano explicita:

A liberdade é, também, princípio Constitucional inserto no preâmbulo e no


art. 3º, inciso I, da CF/88. Já no art. 5º, caput, a liberdade é apresentada
como um direito, conquanto esse dispositivo Constitucional abre o capítulo
‘dos direitos e deveres individuais e coletivos’. Destarte, a liberdade é, ao
mesmo tempo, um direito e um princípio recepcionado pelo
constitucionalismo pátrio. Como princípio, a liberdade assemelhar-se-ia a um
elemento hermenêutico, orientando a interpretação e a aplicação das
23
normas Constitucionais que regulam a relação entre a Igreja e o Estado.

3. As formas de liberdade constitucionalmente tuteladas: a liberdade religiosa e suas


vertentes

3.1. As diversas formas de liberdade tuteladas pelo direito

Seguindo-se à linha perfilhada por José Afonso da Silva, importa ressaltar, por ora,
que a tutela jurídica da liberdade é efetivada e buscada tendo-se em vista a já mencionada
pluralidade que o termo ‘liberdade’ é capaz de representar.

Assim, referido autor salienta que

é nesse sentido que se costuma falar em liberdades no plural, que, na


verdade, não passa das várias expressões externas da liberdade.
Liberdades, no plural, são formas da liberdade, que, aqui, em função do
24
Direito Constitucional positivo, vamos distinguir em cinco grandes grupos.

De fato, a divisão conceitual aplicada pelo autor acima mencionado acaba por obter
grande aceitação na seara do Direito Constitucional, eis que, em inúmeras obras doutrinárias
que abordam o tema, a mesma ou semelhante proposta didática é seguida.

Após essa construção inicial, necessário discriminar as cinco grande acepções que
podem ser notadas a partir do valor liberdade, ou seja, a partir da liberdade tratada em um
sentido amplo. São elas, nos termos do eminente constitucionalista já aludido:

23
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.
24
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 234.

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(1) liberdade da pessoa física (liberdades de locomoção, de circulação);

(2) liberdade de pensamento, com todas as suas liberdades (opinião,


religião, informação, artística, comunicação do conhecimento);

(3) liberdade de expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de


associação);

(4) liberdade de ação profissional (livre escolha e de exercício de trabalho,


ofício e profissão);

(5) liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade econômica, livre


iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual,
25
liberdade de ensino e liberdade de trabalho) [...]

Diante de tal construção, resta claro que a tutela jurídica do valor liberdade há de ser
especializada, isto é, demandando conformação jurídica diferenciada a depender da forma
de liberdade que se pretende proteger.

Todo modo – e nos termos do trabalho aqui realizado – salta aos olhos a
configuração que se produz em torno da liberdade religiosa, já que, no dizer de Aldir Guedes
Soriano

a liberdade religiosa – de religião – é uma vertente da liberdade insculpida


no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. É, também, uma
26
vertente ou especialização da liberdade de pensamento, [...]

Nessa esteira, vale notar que a liberdade de religião é uma das manifestações da
liberdade de pensamento que, por sua vez, constitui uma das facetas possíveis para o
conceito de liberdade em seu sentido amplo.

Ainda nesse ponto, salutar é a definição trazida por José Afonso da Silva para a
questão da liberdade de pensamento quando diz que

trata-se de liberdade de conteúdo intelectual e supõe o contacto do indivíduo


com seus semelhantes, pela qual o homem tenda, por exemplo, a participar
a outros suas crenças, seus conhecimentos, sua concepção do mundo, suas
opiniões políticas ou religiosas, seus trabalhos científicos.

Nesses termos, ela se caracteriza como exteriorização do pensamento no


seu sentido mais abrangente. É que, no seu sentido interno, como pura
consciência, como pura crença, mera opinião, a liberdade de pensamento é
27
plenamente reconhecida, mas não cria problema maior.

25
Id., p. 234.
26
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 4.
27
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 240.

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3.2. A liberdade religiosa e seus consectários

De início, importante trazer alguns conceitos para que se possa melhor trabalhar com
a liberdade religiosa – sobretudo quando se vislumbra que tal liberdade a ser tutelada pelo
Estado e pelo Direito não é, no mais das vezes, efetivada no caso concreto. É que não é
difícil notar, conforme será visto mais adiante, que a prática estatal atual muitas vezes traz
consigo elementos e manifestações confessionais que representam credos específicos.

Assim, Aldir Guedes Soriano aduz que

a liberdade religiosa é um direito humano fundamental, consagrado nas


Constituições dos países democráticos, bem como por diversos Tratados
Internacionais. Trata-se, portanto, de uma liberdade pública ou, se se
28
preferir, de uma prerrogativa individual, em face do poder estatal.

E continua o aludido autor ao dizer que, “em outras palavras, poder-se-ia dizer que
esse direito confere ao homem a possibilidade de adorar a Deus, conforme sua própria
consciência”.29

Em verdade, o que deve ser notado nesse ponto é que a liberdade religiosa vai além,
inclusive, da possibilidade de que o indivíduo possa adorar a Deus como melhor lhe
aprouver – seja qual for a divindade ou entidade superior por ele adorada. O que deve ficar
claro, ademais, é que dentro desse grande espectro da liberdade religiosa há, acima de
tudo, o espaço a ser tutelado de uma possível não-adoração a qualquer Deus ou entidade
superior, isto é, a tutela tanto do ceticismo, do ateísmo e do agnosticismo dentro do patamar
maior que se vislumbra no âmbito da liberdade religiosa.

Dentro de tal temática, salutar mencionar a esclarecedora opinião de José Afonso da


Silva que, ao tratar especificamente da liberdade de crença (uma das subespécies
encontradas no âmbito da liberdade religiosa), salienta incisivamente que

na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade


de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de
religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião
alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de
exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o
livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a
30
liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.

28
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 5.
29
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 5.
30
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 240.

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Da mesma forma, aduz Alexandre de Moraes que “a liberdade de convicção religiosa
abrange inclusive o direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado
respeito ao ateísmo”.31

Outrossim, não há de ser outra a conclusão quando se trata do tema, eis que, como
bem salienta Elza Galdino, a liberdade religiosa, dentro do arcabouço criado pelas
liberdades de pensamentos, se consubstancia no

direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião,


arte ou o que for.

Está ligada ao homem, e assim é garantida no Texto Constitucional, como


direito humano. Por isto mesmo não deve o Estado avocar a si qualquer
filiação científica, artística ou religiosa, em qualquer tipo ou grau,
exatamente pelo fato de ser esta garantia intrínseca do cidadão, do
32
indivíduo, do homem.

Ainda nessa esteira, vale notar que o tema da liberdade religiosa é também tratado
de forma minuciosa na órbita internacional – isto é, para além do texto constitucional
consolidado.

Não há como se negar, assim, que a proteção ao valor liberdade, em sua concepção
religiosa, já é notada há muito na esfera internacional, tendo sido universalizada, sobretudo,
com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos que assim dispõe em seu
artigo 2º:

Declaração Universal dos Direitos Humanos – ON

Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades


estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
33
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

E continua o aludido documento internacional, em seu artigo 18, ao adentrar


especificamente no tema da liberdade religiosa:

Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e


religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a
liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática,

31
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41.
32
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 11.
33
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em: 25 set. 2008.

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pelo culto e pela observâcia, isolada ou coletivamente, em público ou em
34
particular.

Diante do exposto, notório que o valor da liberdade religiosa se traduz como um dos
pilares a serem protegidos no Estado brasileiro e, também, na ordem internacional. Nessa
toada, exemplar é a lição de Aldir Guedes Soriano quando ao salientar que

a liberdade religiosa é um direito fundamental catalogado no pacto social


pátrio e não é só, repita-se, é também um dos princípios Constitucionais
consagradas na Carta Magna e no constitucionalismo de diversos países, a
35
exemplo dos Estados Unidos.

3.3. As vertentes da liberdade religiosa

Conforme já salientado anteriormente, a liberdade religiosa traz consigo uma vasta


gama de preceitos secundários, ou seja, abrange e tutela diferentes formas de expressão
dentro de um valor maior.

Sobre o tema da liberdade religiosa, Alexandre de Moraes preceitua que sua


abrangência é ampla,

pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos,


ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a
crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa
humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade
36
democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade espiritual.

Assim, resta claro que dentro do espectro da liberdade religiosa podem ser inseridas
e discutidas variadas acepções e significações específicas. Na mesma esteira, a
contribuição de Aldir Guedes Soriano é salutar, no momento em que preceitua que

o direito à liberdade religiosa, devido a sua multiplicidade, compreende


diversos direitos, os quais, assim reunidos, são considerados em sentido
amplo (lato sensu). Destarte, poder-se-ia, a nosso ver, afirmar tratar-se de
um direito composto. É dizer que se trata de um direito com possibilidade de
decomposição em quatro vertentes, a saber, vertentes da liberdade de
consciência, da liberdade de crença, da liberdade de culto e da liberdade de
organização religiosa, conforme previsão constitucional (art. 5º, VI, CF/88) e
37
o art. 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

34
Id.
35
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 9.
36
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41.
37
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 10.

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Notório, então, na esteira dos autores mencionados acima, que a espécie liberdade
religiosa é composta por distintas subespécies. No entanto, dentro das variadas concepções
plurais que se estabelecem ao redor da liberdade religiosa, a mais reconhecida é a
preceituada por José Afonso da Silva, na medida em que estipula que a liberdade religiosa

se inclui entre as liberdades espirituais. Sua exteriorização é forma de


manifestação do pensamento. Mas, sem dúvida, é de conteúdo mais
complexo pelas implicações que suscita. Ela compreende três formas de
expressão (três liberadades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de
culto; (c) e a liberdade de organização religiosa. Todas estão garantidas na
38
Constituição.

De fato, o próprio texto constitucional pátrio traz – nos incisos do art. 5º - a previsão
expressa de tais subespécies da liberdade religiosa:

CF/88 – Art. 5º, VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença,


sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa


nas entidades civis e militares de internação coletiva.

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de


convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
39
alternativa, fixada em lei.

Alcançado tal ponto, importa traçar, de forma sintética, as distinções existentes entre
as três subespécies da liberdade religiosa apontadas por José Afonso da Silva: liberdade de
crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.

No entanto, para que se possa adentrar em tal diferenciação – e já tratando


especificamente da liberdade de crença – cumpre distinguir tal liberdade (de crença) da
liberdade de consciência. No dizer de José Afonso da Silva,

fez bem o constituinte em destacar a liberdade de crença da de consciência.


Ambas são inconfundíveis – di-lo Pontes de Miranda –, pois, ‘o descrente
também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele
juridicamente tal direito’, assim como a ‘liberdade de crença compreende a
40
liberdade de ter uma crença e a de não ter crença.

Ainda sobre o mesmo tema, Aldir Guedes Soriano complementa ao enunciar que,

38
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 247.
39
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 13.
40
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 248.

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assim sendo, o direito à liberdade religiosa, no sentido lato sensu, interessa
tanto ao que crê como ao que não crê, porquanto crentes e descrentes são
igualmente amparados pelo direito. Esses, através das liberdades de crença
e de consciência, ao passo que aqueles, através da liberdade de
41
consciência.

Sepultando eventuais dúvidas sobre a temática, Henrique Savonitti Miranda leciona


que, “nesse sentido, resta claro que a liberdade de crença abarca a liberdade de descrença,
a de não aderir a qualquer religião e a de ser ateu.”42

No que tange à liberdade de culto, vale lembrar que a Constituição Federal de 1988
assegura, em seu art. 5º, VI, o livre exercício dos cultos religiosos e garante, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Bem de ver, pois, que seria bastante difícil dissociar a liberdade de crença – já
analisada – da liberdade de culto. Nesse ponto – e salientando a impossível dissociação já
aludida –, José Afonso da Silva coloca que

a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples


contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao
contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se
exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias,
manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma
43
indicada pela religião escolhida.

Da mesma forma, acentuando a nota distintiva entre a liberdade de crença e culto,


Aldir Guedes Soriano aduz que

a liberdade de crença diz respeito às faculdades de escolher, ou de aderir a


uma crença ou religião e de mudar de crença ou de religião. O culto resulta
da exteriorização da crença, que pode manifestar-se através de ritos,
44
cerimônias, reuniões, conforme a prescrição do credo escolhido.

De toda sorte, há de se ter em vista que a proteção ao culto deve ser buscada pelo
Direito enquanto tal exteriorização da crença não for contrária à ordem, tranqüilidade e
sossego, por exemplo. Nessa esteira, Alexandre de Moraes enfatiza que

a questão das pregações e curas religiosas deve ser analisada de modo que
não obstaculize a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem
tampouco acoberta práticas ilícitas.

41
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 12.
42
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 210.
43
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 248.
44
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 13.

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Obviamente, assim como as demais liberdades públicas, também a
liberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitidos a
qualquer religião ou culto atos atentatórios à lei, sob pena de
45
responsabilização civil e criminal.

Por derradeiro, necessário adentrar na questão da liberdade de organização religiosa


que, em suma, está ligada à liberdade de criação e manutenção de igrejas dos mais
variados credos. O que resta claro, nesse ponto, é que o Estado não pode embaraçar as
manifestações religiosas, desde que organizadas na forma da lei. Sobre o tema, expõe Aldir
Guedes Soriano que

a liberdade de organização religiosa, contudo, está sob a égide da


legislação civil, mais precisamente do Código Civil. As igrejas devem,
portanto, atuar como pessoas jurídicas. Devem seguir todo o iter previsto
46
para a formação de uma pessoa jurídica de direito privado.

Importa ressaltar, ainda assim, que a liberdade de organização religiosa detém íntima
ligação com a ingerência estatal nas instituições religiosas – o que nos remonta ao terceiro
capítulo do presente trabalho, onde serão expostas as possíveis e plausíveis formas de
relacionamento entre Estado e Religião. Nesse tocante, José Afonso da Silva aduz de forma
contundente que a liberdade de organização religiosa “diz respeito à possibilidade de
estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado”.47

4. A laicidade como solução constitucional apropriada para o Estado brasileiro

4.1. Relações possíveis entre Estado e Religião

Em uma análise inicial do tema ora proposto resta claro que, ao longo do curso da
história, as implicações entre Estado e Religião são amplamente notadas e, no mais das
vezes, acabam por demonstrar ou delinear o rumo da vida política em uma determinada
sociedade.

Desta feita, é fácil notar que inúmeras guerras e insurgências sociais tiveram algum
tipo de legitimação religiosa, vastas estruturas sociais foram redefinidas com base em
preceitos religiosos e grande parte do conhecimento e do desenvolvimento científico,
filosófico e artístico da humanidade tiveram como grande vetor algum tipo de manifestação
religiosa.

45
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 42-43.
46
SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2002. p 13.
47
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249.

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Importa notar, outrossim, que a religião é parte integrante e quase que inseparável da
cultura humana, e muito provavelmente sempre continuará sendo – principalmente quando
se vislumbra que, durante a maior parte da história da humanidade, religião e poder político
caminharam lado a lado na condução da vida política das sociedades humanas.

Todo modo, o que deve ser analisado no presente trabalho é a forma como tais
manifestações religiosas acabam por influenciar na postura estatal como um todo, ou seja,
de que forma Religião e Estado se relacionam e qual é a resultante desse relacionamento –
sobretudo na seara dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Assim, adentrando especificamente na análise das relações entre Estado e Religião,


bem salienta José Afonso da Silva quando coloca que “quanto à relação Estado-Igreja, três
sistemas são observados: a confusão, a união e a separação, cada qual com gradações.”48
Passe-se, então, à análise mais detida de cada uma dessas formas de relação, lembrando,
ademais, que tais formas de relação não representam uma perspectiva evolutiva
necessariamente linear e substitutiva no curso da história – embora seja clara a tendência ou
a busca, pelo menos no âmbito da modernidade ocidental, da separação entre Estado e
Religião, conforme ver-se-á a seguir.

Inicialmente, a primeira concepção nas relações entre Estado e Religião a ser aqui
debatida é a da confusão ou simplesmente fusão. Nesse contexto, o Estado acaba por se
confundir com uma determinada religião, formando aquela espécie estatal que se denomina
Estado Teocrático (do qual são exemplos, na atualidade, no dizer de José Afonso da Silva, o
Vaticano e alguns Estados islâmicos).49

Neste modelo de relações a religião é tão forte e tão incrustada nas instituições do
Estado que acaba por ocupar por completo o nicho do poder político. Em tais casos, o chefe
de Estado é o próprio Deus ou, ainda, um seu representante na Terra, ou seja, o líder
espiritual acaba por ocupar, ao mesmo tempo, o posto de liderança política no Estado.

Diante de tal configuração é interessante notar a construção teológica de Santo


Agostinho – um notado jusnaturalismo de cunho teocêntrico –, que fornece elementos para
justificar essa grande força da Igreja que a faz capaz de tomar para si o poder político na
ordem temporal. Ademais, Santo Agostinho coloca que o Estado, em si, é limitado e não
conseguiria alcançar a plenitude espiritual se não trouxesse consigo uma clara subordinação
à Igreja. Por certo, trata-se de uma doutrina política que prega a absorção do Direito do

48
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249.
49
Id., p. 249.

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Estado pelo da Igreja, uma vez que a lei eterna (de Deus) é a o fundamento das leis
humanas.50

Ainda no tema, bem coloca Antonio Carlos Wolkmer quando preceitua que

a construção teológica agostiniana traça os marcos iniciais de uma doutrina


do Estado e fornece os elementos teóricos para a justificação da Igreja
ocidental. Não só o Estado apresenta limites que a Igreja não conhece,
como só poderá integrar-se à Cidade de Deus subordinando-se à Igreja em
51
todos os assuntos ou gestões espirituais.

Não restam dúvidas, pois, que no espectro da confusão (ou fusão) entre Estado e
Religião tanto o Direito como o próprio Estado são absorvidos pela força da ordem religiosa,
que domina o poder político e dita por completo a ordenação social, não deixado qualquer
espaço para a existência de uma eventual escolha religiosa dos indivíduos.

Outrossim, há de se debater a hipótese da união entre Estado e Religião, que é


verificada quando existem relações jurídicas entre o Estado e determinada ordem religiosa
específica. Em tais casos, há uma religião específica eleita e estabelecida pelo Estado como
sendo a oficial – é o que se chama de Estado confessional.

Tal concepção de relação entre Estado e Igreja foi bastante notada no curso da
história e ainda se mostra presente, nos dias atuais, em alguns Estados, como a Argentina.52

Válido comentar, ademais, que o Estado brasileiro, até 1890, foi configurado como
um Estado confessional, ou seja, durante todo o período do Brasil Império. Para
fundamentar tal assertiva, basta vislumbrar o art. 5º da Constituição brasileira de 1824, que
assim dispõe:

Art. 5º – A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião


do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto
doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma
53
exterior do Templo.

Comentando tal dispositivo constitucional e o arcabouço histórico que o circundava,


José Afonso da Silva salienta que

50
WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antigüidade clássica à
modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 57.
51
Id., p. 56.
52
A Constituição Argentina atual (datada de 1853, mas alvo de inúmeras reformas amplas – a última ocorrida
1994) invoca Deus como fonte de toda razão e justiça e, em seu artigo 2º, dispõe expressamente que ‘El
gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano’.
53
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil de 25 de Março de 1824.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 25
set. 2008.

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realmente, a Constituição Política do Império estabelecia que a Religião
Católica Apostólica Romana era a Religião do Império (art. 5º), com todas as
conseqüências derivantes dessa qualidade de Estado confessional, tais
como a de que as demais religioes seriam simplesmente toleradas, a de que
o Imperador, antes de ser aclamado, teria que jurar manter aquela religião
(art. 103), a de que competia ao Poder Executivo nomear os bispos e prover
os benefícios eclesiásticos (art. 102, II), bem como conceder ou negar os
beneplácitos a atos da Santa Sé (art. 102, XIV), quer dizer, tais atos só
teriam vigor e eficácia no Brasil se obtivessem aprovação do governo
54
brasileiro.

De fato, o que se extrai de tal contexto é um nítido feixe de relações existentes entre
a estrutura oficial do Estado e um determinado credo – no caso a Igreja Católica Apostólica
Romana – que, em uma atuação conjunta, intentam construir e moldar uma sociedade sob a
égide dessa tal determinada manifestação religiosa.

No entanto – e já entrando na terceira forma de relação entre Estado e Religião: a


separação –, há de se dizer que o Estado brasileiro, no limiar da transição da do Império
para a República, acabou por expurgar o credo oficial de sua morada, determinando, pois, a
separação entre Estado e Religião. Sobre o tema, Henrique Savonitti Miranda explicita que

em 1890, ainda antes da promulgação da Constituição da República e


durante o período do Governo Provisório, o Brasil estabeleceu a liberdade
religiosa, separando o Estado da Igreja, o que, felizmente, perdura até os
dias atuais. A história recente tem mostrado o enorme risco à humanidade
da mistura entre Estado e religião. Desde então, o Estado brasileiro
55
apresenta-se leigo, laico ou não-confessional.

Na mesma esteira, bem esclarece o constitucionalista José Afonso da Silva quando


afirma que

a república principiou estabelecendo a liberdade religiosa com a separação


da Igreja do Estado. Isso se deu antes da constitucionalização do novo
regime, com Decreto 119-A, de 7.1.1890, da lavra de Ruy Barbosa,
expedido pelo Governo Provisório.

A Constituição de 1891 consolidou essa separação e os princípios básicos


da liberdade religiosa [...]. Assim, o Estado brasileiro se tornou laico,
56
admitindo e respeitando todas as vocações religiosas.

54
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 249-
250.
55
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 211.
56
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 250.

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Conforme já exposto, desenhava-se, então, o chamado Estado laico (leigo, secular
ou não-confessional), que é aquele que não tem, não apóia ou não traz consigo uma ordem
sacra pré-determinada – numa nítida aclamação dos valores advindos da liberdade religiosa.

4.2. A laicidade do Estado brasileiro de 1988

Conforme já aludido no decorrer do presente trabalho, a Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988 trouxe um sistema bem delineado que alçou o valor liberdade
como um dos fundamentos da construção do referido ordenamento jurídico e, bem assim, do
Estado brasileiro como um todo.

Não há dúvidas, assim, que tal valor foi tido como uma das bases para que a atuação
estatal pudesse ser pensada sob uma nova ótica, pautada, sobretudo, nas chamadas
liberdades públicas que, no campo da religião, representariam a adoção de uma postura
neutra por parte do Estado. Desta feita, importa ressaltar as disposições constitucionais que
acabam por abordar o presente tema, isto é, a chamada laicidade do Estado brasileiro de
1988.

A primeira discussão que se vislumbra nesse tema se dá com o preâmbulo de nossa


Constituição. O fato que salta aos olhos nesse ponto é que o preâmbulo da atual
constituição brasileira suscita a proteção de Deus no momento de sua promulgação,
vejamos:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional


Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
57
seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

De fato, a alusão a Deus no corpo constitucional faz pensar, em primeira análise, na


volta de uma postura confessional por parte do Estado. Nessa corrente, bastaria mencionar
que o preâmbulo da Constituição de 1891 não trazia a figura de Deus como protetor e, por
sua vez, trazia o seguinte:

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso


Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos,

57
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 11.

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decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos
58
Estados Unidos do Brasil.

Realmente, embora não seja o caso de uma volta a uma postura confessional, a
presença do Deus no preâmbulo da atual Constituição é muito contestada e debatida,
havendo, notadamente, fortes defensores e ferrenhos críticos de tal postura do legislador
constituinte. Vale notar, ainda no tema, que os argumentos – favoráveis ou contrários –
giram em torno da função ou papel a que se atribui ao preâmbulo constitucional.
Sintetizando tal celeuma, Marcelo Novelino anota que

a natureza jurídica do preâmbulo constitucional suscita divergências no


âmbito doutrinário. Há quem defenda o seu valor normativo e sua força
cogente, ao lado daqueles que lhe atribuem caráter meramente político-
ideológico, destituído de normatividade.

O entendimento adotado pelo STF é no sentido de que o preâmbulo, por


não possuir força cogente nem caráter normativo, não pode prevalecer
contra o texto da Constituição, nem servir de parâmetro para a declaração
de inconstitucionalidade.

Ao preâmbulo é atribuído o caráter de diretriz hermenêutica, por elencar os


59
valores supremos da sociedade brasileira.

Inconteste, pois, que o preâmbulo não tem força para fazer retomar uma postura
confessional, embora a alusão a Deus seja, sem sombra de dúvidas, descabida para a
introdução do texto constitucional. Nesse sentido, também, é a expressão de Elza Galdino
que, demonstrando sua notória insurgência contra a presença de Deus no preâmbulo
constitucional como uma nódoa ao Estado laico proposto pela Constituição de 1988, explicita
que

cabe, então, novamente perguntar, por que Deus está reverenciado na


Constituição Brasileira, uma vez que a vênia – no dizer dos doutos – deveria
ser feita ao ‘populus’. Populus que deve ter sua diversidade racial, cultural,
ideológica e religiosa respeitada e garantida, nunca afrontada por qualquer
exteriorização unilateralista do Estado. Em 1891 o preâmbulo da primeira
Constituição republicana, exemplarmente, falava em representação, em
povo, em liberdade e em democracia. Nada além. Ao incorporar valores
muito particulares em seu preâmbulo, a Constituição de 1988 trouxe uma
60
involução no tocante às liberdades que tentou garantir.

58
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro
de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso
em: 25 set. 2008.
59
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 81.
60
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 81.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-29, Fev./Maio 2009 23


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Avançando no tema da expressão da laicidade no Estado brasileiro de 1988, importa
ressaltar a maior representação de tal ocorrência, qual seja, o art. 19, I, to texto
constitucional:

CF/88 – Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes


o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
61
interesse público;

Nesse contexto, Marcelo Novelino nos relembra, ao comentar o referido dispositivo,


que

desde o advento da República, instauradora da separação entre a igreja e o


Estado, o Brasil tornou-se um Estado laico ou não-confessional, devendo
manter-se absolutamente neutro. Não pode estabelecer tratamento
discriminatório entre as diversas igrejas, seja para beneficiá-las ou prejudicá-
62
las, nem criar embaraços ao seu funcionamento (art. 19, I).

Na mesma toada, José Afonso da Silva aduz que

Pontes de Miranda esclareceu bem o sentido das várias prescrições


nucleadas nos verbos do dispositivo: estabelecer cultos religiosos está em
sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos
de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no
sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para
que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos
religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica
63
ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso.

Por derradeiro, vale lembrar que toda esse disciplinamento expresso acerca da
laicidade do Estado brasileiro deve ser interpretado em consonância com aquele que foi
instaurado como valor fundamental da construção de nosso ordenamento: a liberdade em
um sentido amplo, tal qual já trabalhada nos capítulos anteriores.

4.3. Laicidade do Estado como proteção aos direitos fundamentais

Após analisar as possíveis formas de relacionamento entre Estado e Religião e


examinar o caso especifico brasileiro retratado na Constituição Federal de 1988, chega-se à

61
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2006. p. 17.
62
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 302.
63
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 250-
251.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-29, Fev./Maio 2009 24


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nítida conclusão de que a opção política por um Estado notadamente laico traz consigo a
expressão maior do respeito à liberdade – sobretudo na acepção da liberdade religiosa.

De fato, ainda que se pense na grande influência trazida pelas manifestações de


cunho religioso para a formação cultural brasileira, há de se ter em vista que tal influência
deve se ater à vertente da história cultural de nosso povo – sem que, com isso, exerça
influência na criação do Direito, em sua práxis cotidiana e, sobretudo, na esfera privada dos
indivíduos que compõe a sociedade brasileira.

O que se busca, então, é a determinação de uma convivência harmoniosa entre, de


um lado, os aspectos histórico-culturais ligados às diversas manifestações religiosas adjetas
à criação da identidade nacional hodierna e, de outro, o direito fundamental de liberdade do
cidadão, consubstanciado, nesse ponto, na impossibilidade de quaisquer manifestações
confessionais por parte do ente estatal em sua atuação política.

Nesse âmbito, conforme já enfatizado no capítulo inicial do presente trabalho, a tutela


dos direitos fundamentais – principalmente quando se tem em mente os aspectos de luta
que permeiam sua notável afirmação histórica –, pode e deve ser colocada como alvo
central de todo o ordenamento jurídico, ou seja, toda a construção normativa deve buscar
proteger aqueles direitos historicamente construídos.

No caso específico do direito fundamental de liberdade (em sua acepção religiosa),


resta claro que somente a postura leiga do Estado pode ser aceita para que tal direito seja
efetivamente buscado, isto é, migre do formalismo do texto legal para a práxis cotidiano com
toda robustez.

O que deve ser respondido, nesse ponto, é até que ponto os súditos do Direito e do
Estado estão dispostos a conviver pacificamente com uma suposta liberdade religiosa em
um Estado que se auto-declara laico, quando, na prática, as manifestações confessionais
tomam conta do ambiente estatal de atuação política.

Apenas de forma exemplificativa, vale mencionar, dentre outros, o caso da


resistência religiosa – incrustada nas instituições oficiais – no tocante às discussões sobre
desenvolvimento biogenético, no combate às DST’s e AIDS, nas questões atinentes ao
aborto de fetos anencefálicos. Da mesma forma, evitando-se adentrar em casos tão
polêmicos de interferência religiosa como os já citados, basta fazer menção à utilização ou
ostentação de símbolos religiosos (bíblias, crucifixos, etc...) em prédios públicos, à utilização
do ensino religioso como forma de doutrinação irrestrita e outros casos mais.

Ante o contexto específico da ostentação de símbolos religiosos no ambiente estatal,


Elza Galdino traz, em posição marcada sobre o tema, notória afronta e sufocação aos
direitos fundamentais do indivíduo quando afirma que

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sendo o Estado Brasileiro laico por determinação constitucional, não é
aceitável que adote qualquer fé religiosa. É inegável, também, que a
ostentação de símbolos religiosos constitui-se a externação de fé religiosa
adotada. Por ser a liberdade religiosa compreendida não apenas como o
direito individual da prática de qualquer religião, mas igualmente a
abstenção da prática de qualquer dela, entende-se que é de ser abolida a
ostentação de símbolos religiosos os prédios públicos, eis que abrigam
serviços destinados ao atendimento de toda a população, de modo igual. Em
vista dos preceitos constitucionais até aqui expostos, é de se concluir que
qualquer prática no sentido contrário estará eivada de
64
inconstitucionalidade.

Assim, ao que parece, o povo – em sua autotutela dos direitos fundamentais – ainda
não provou maturidade suficiente para discutir as inúmeras ostentações religiosas – mesmo
que veladas – existentes em nosso atual Estado laico. Diante disso, Alexandre de Moraes
bem explicita que “a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira
consagração de maturidade de um povo”65, o que, na realidade brasileira, ainda nos parece
distante.

Por outro lado e em uma postura otimista bastante contundente, Elza Galdino
discorre sobre a mesma temática, deixando transparecer sua nada velada fé no povo
brasileiro ao salientar que

o povo brasileiro já demonstra maturidade para não ser tutelado em sua fé, e
para tanto o Estado deve-se abster de toda e qualquer opção religiosa, seja
ela materializada através de símbolos afixados em paredes ou apostos em
mesas de trabalho, seja ela por palavras impressas em expedientes oficiais,
seja ela gravada em cédulas de dinheiro ou, ainda, concretizada pela
autoridade de qualquer de seus prepostos. E tal abstenção, por ser medida
garantidora de direito fundamental, deve ter sua imediata aplicação pelos
Poderes Constituídos e – caso não cumprida – deve ser fiscalizada e exigida
66
pelo Supremo Tribunal Federal, no seu papel de guardião da Constituição.

Por fim, se analisarmos tais manifestações confessionais aludidas sob a ótica


registrada no capítulo inicial deste trabalho – no contexto da afirmação histórica dos direitos
fundamentais – há de se concluir, sem qualquer esforço, que a liberdade buscada e tutelada

64
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 105.
65
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da
Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 125.
66
GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
p. 101.

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como valor fundamental pelo Direito nunca existirá enquanto manifestações confessionais
específicas sejam preponderantes na ordem política e jurídica estatal.

Ademais – e no mesmo sentido –, tampouco a igualdade será alcançada enquanto


houver a ostentação (ainda que velada) de um credo específico no seio do Estado, já que é
nítida a opção constitucional brasileira, ao se criar e se formatar um Estado laico, de se
buscar a neutralidade religiosa e, bem assim, concretizar o direito fundamental de liberdade
em seu sentido amplo.

5. Considerações finais

O substrato histórico que permeia a discussão acerca do direito de liberdade – em


um sentido amplo – pode ser utilizado para que inúmeras outras discussões, em torno do
mesmo valor, sejam também fundamentadas. De fato, em qualquer que seja a acepção de
liberdade a ser analisada, é notória a influência da chamada construção ou afirmação
histórica dos direitos fundamentais, como base para que sejam determinados os valores com
os quais o Estado, por meio do instrumental do Direito, possa trabalhar o seu aspecto
hodierno de guia e protetor do bem-estar da sociedade.

Ademais, ainda que se pense em uma postura promocional do Direito – sobretudo


quando se vislumbra a segunda dimensão da já aludida afirmação histórica –, há de se ter
em vista que o Estado não pode olvidar de convergir seus esforços para a concretização dos
valores ligados à liberdade – então abrangidos pela primeira dimensão de direitos
fundamentais.

Nesse contexto, a concretização do valor liberdade por meio da tutela estatal é


vislumbrada como um dos pontos mais controversos, eis que, em se tratando de liberdade
religiosa, não há como se perseguir o ideal de liberdade enquanto o próprio ente estatal traz
consigo, de forma intrínseca, determinadas pré-compreensões que acabam por fulminar a
busca da convivência pacífica e harmoniosa de todos cidadãos e credos no bojo do Estado.

Por certo, a pregação da laicidade estatal como obrigação constitucional há de ser


efetivamente buscada, de forma a fazer valer o preceito fundamental da liberdade e garantir
o exercício dos direitos fundamentais ligados ao valor liberdade. É que a liberdade e a
igualdade só serão alcançadas no momento em que a norma a nortear a atuação estatal
seja destituída de qualquer caráter discriminatório ou de favoritismo.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-29, Fev./Maio 2009 27


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Normas versus valores uma análise a partir de Jürgen Habermas

Caio Augustus Ali Amin1

Sumário: 1. Introdução – 2. Normas versus valores: uma crítica de Habermas sobre a falsa
compreensão do controle da constitucionalidade no direito alemão sob a ótica da
legitimidade da jurisdição constitucional - 2.1. Diferença entre normas e valores - 2.2.
Relação entre normas e valores com princípios - 2.3. Legitimidade do controle da
constitucionalidade - 2.3.1. O Controle da gênese das normas - 3. Considerações finais - 4.
Referências

1. Introdução

Habermas em parte de sua obra "Direito e Democracia: entre facticidade e validade"


procura elevar as diferenças entre normas e valores, sustentando que as normas surgem
com uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou inválidas e que os valores,
ao contrário, determinam as relações de preferências, as quais significam que determinados
bens são mais atrativos do que outros. Assim, demonstra que as normas possuem um
sentido deontológico2 e os valores, um sentido teleológico3.

Neste breve artigo, procuraremos abordar com simplicidade e clareza esta parte da
obra de Jürgen Habermas, demonstrando as diferenças críticas sobre as normas e os
valores, nos atendo com fidelidade ao texto, e, como o próprio autor diz, apresentar uma
análise sobre a falsa compreensão do Controle da Constitucionalidade no Direito Alemão,
isto na ótica da legitimidade da jurisdição constitucional, onde não se percebe que o

1
O autor é Bacharel em Direito pela UEL, Advogado licenciado OAB/PR, Assessor de Desembargador do TJPR,
Especialista em Direito Processual Civil pelo IBEJ, Especialista em Direito Empresarial pela UEL, Mestrando em
Direito Constitucional pela UniBrasil.
2
Busca o autor, ao falar das normas em um sentido deontológico, que elas são, sob um ponto de visão ética, o
fundamento do próprio direito (normas = direito pela ética).
3
Já o sentido da expressão teleológico, para o autor, é a especulação aplicada ao intento finalístico dos
fenômenos jurídicos (a busca de um fim).

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-12, Fev./Maio 2009 1


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verdadeiro problema da falsa compreensão reside na adaptação de princípios de direito à
valores e não às normas propriamente ditas.

2. Normas versus valores: uma crítica de Habermas sobre a falsa compreensão do


controle da constitucionalidade no direito alemão sob a ótica da legitimidade da
jurisdição constitucional

Na República Federativa da Alemanha, os óbices existentes ao Poder Judiciário,


mais especificamente contra a legitimidade da jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal Alemão não dependem apenas das mudanças de paradigmas, mas também das
concepções metodológicas desenvolvidas e aplicadas diante da autocompreensão dos
juízes.

A crítica comentada por Habermas advém justamente da referência que se denota da


"doutrina da ordem de valores", desenvolvida por esta "autocompreensão" dos magistrados.

O problema é que às vezes a crítica à jurisprudência de valores se apresenta de


forma desnecessária e injusta, trazendo graves conseqüências à atuação do judiciário, pois
não esclarecem estas críticas se se tratam ou não de conseqüências de uma auto-
interpretação falsa do juiz, vindo a perder de vista a possibilidade de uma compreensão
correta, onde se tem por premissa maior, no silogismo jurídico, que direito não é valor, e,
portanto, norma não é valor, ou seja, não são a mesma coisa e nem possuem o mesmo
sentido.

É que, para o Tribunal Constitucional Federal Alemão, a Lei Fundamental4 não


constitui um sistema de regras e princípios5, mas sim, uma ordem concreta de valores, onde
as normas fundamentais objetivas devem apoiar-se em decisões valorativas6, em que pese o
cuidado com um conflito de valores, pois nenhum valor pode pretender a primazia sobre
outro valor, porém relativizá-lo.

Mas a probabilidade disso acontecer não é remota, a exemplo, se dois juízes julgam
situações análogas ao mesmo tempo, com a preocupação de aterem-se muito mais ao fim a
que se destina a pretensão do que com os fundamentos do próprio direito, podem acarretar
4
Segundo a Teoria de Hans Kelsen, in obra Teoria Pura do Direito, a Norma Fundamental (Grundnorm) é uma
norma pressuposta, de premissa maior no silogismo jurídico, ou seja, uma norma máxima, que está acima de
todas as outras normas e cuja regra não é contestável.
5
Segundo a Teoria de Herbert Hart, in obra O Conceito de Direito, existe uma regra de reconhecimento onde sua
aceitação exige determinada prática social, cujo controle se faz pela própria pressão social. Esta regra comporta
critérios utilizados para a identificação das regras primárias pertencentes a um determinado sistema jurídico. E
segundo a Teoria de Ronald Dworkin in obra Levando os Direitos a Sério, diz-se que os princípios tem uma
dimensão de peso, pois quando há conflito de regras no caso concreto, aplica-o, ou seja, se há extrapolação na
interpretação do conteúdo das regras, os princípios vêm para auxiliar.
6
Segundo a Teoria de Robert Alexy, in obra Teoria da Argumentação Jurídica, interpretar os princípios
transformando-os em valores como mandamentos de otimização, de maior ou menor intensidade, vem ao
encontro do discurso da "ponderação de valores".

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em decisões diversas e conflitantes, baseados em razões valorativas diversas do qual, não
se pode conceber a plenitude de uma decisão sobre a outra. Habermas (1997, p. 315)
afirma:

Quando princípios colocam um valor, que deve ser realizado de modo


otimizado e quando a medida de prenchimento desse mandamento de
otimização não pode ser extraído da própria norma, a aplicação de tais
princípios no quadro do que é faticamente possível impõe uma ponderação
orientada por um fim. E, uma vez que nenhum valor pode pretender uma
primazia incondicional perante outros valores, a interpretação ponderada do
direito vigente se transforma numa realização concretizadora de valores.

2.1. Diferença entre normas e valores

Conforme Habermas, as diferenças marcantes entre normas e valores são:

a) normas válidas são normas que obrigam seus destinatários sem exceção, de igual
forma e igual medida a um comportamento de expectativas generalizadas. Já os valores
expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinada sociedade,
de acordo com o agir destinado a um fim;

b) normas surgem com validade binária, ou seja, podem ser válidas ou inválidas em
relação a proposições normativas e os valores, determinam relações de preferência, as
quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros, podendo ser
maior ou menor;

c) a validade deontológica da norma tem sentido absoluto, de obrigação incondicional


e universal, ao passo que o valor teleológico tem sentido relativo, com a apreciação de bens,
no âmbito de formas de vida ou de uma cultura;

d) normas diferentes não podem se contradizer e devem estar sempre em um


contexto de coexistência e coerência, enquanto que os valores diferentes concorrem entre si
para obter a primazia, em que pese não sobressairem dessa forma, mas somente à uma
superior relevância.

Portanto, as normas7 e os valores8 distinguem-se totalmente. Para Habermas, quatro


são as justificações relevantes:

7
Segundo Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito, "as normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas)
porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não
porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem
jurídica for eficaz...".
8
Conforme Miguel Reale em sua Teoria Tridimensional do Direito, os valores constituem experiência jurídica e
pelo fato dos bens materiais serem constituídos de interesses, há implicância na tomada de decisões, que se
realizam com a sucessão de vários elementos normativos, traduzidos nas valorações humanas através do tempo
e do espaço. Norma é conduta; valor é intuição.

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A primeira, porque através de suas referências ao agir obrigatório é que a norma se
caracteriza como uma conduta e o valor como uma intuição.

A segunda, porque há gradual pretensão de validade, tanto da norma quanto do


valor.

A terceira, pela simples diferença de obrigatoriedade, sendo uma absoluta e outra


relativa, ou seja, a aplicação da norma é incondicional, mas a do valor não;

A quarta, porque há critérios que o sistema de normas ou de valores deve satisfazer.


Logo, a ponderação e aplicação de uma ou de outra é relevante. Conclui-se portano que as
normas e os valores não podem ser aplicados da mesma maneira.

Se exemplificarmos com uma situação de agir, com certeza não obteremos uma
mesma resposta, pois sob a ótica das normas, será possível decidir o que deve ser feito com
base na legislação aplicável ou seja, mediante a conduta a ser tomada e na ótica dos
valores, no máximo será possível saber qual o melhor comportamento, o pertinente,
recomendável, mas nunca, o absoluto por si9, diante da questão intuitiva que venha a
parecer a melhor solução10.

2.2. Relação entre normas e valores com princípios

Agora, quando se tratar da análise das normas e valores em correlação com


princípios11 do direito ou de bens jurídicos, a diferença entre as normas e os valores passa a
ser desconsiderada, tendo em vista que o direito positivado vale somente para uma
determinada área jurídica e um determinado círculo de destinatário ou seja, sua esfera de
atuação é limitada.

9
Diz o autor, quanto à aplicação da norma ou valor, que "O problema da aplicação exige naturalmente, em
ambos os casos, a seleção da ação correta; porém, no caso de normas, "correto" é quando partimos de um
sistema de normas válidas, e a ação é igualmente boa para todos; ao passo que, numa constelação de valores,
típica para uma cultura ou forma de vida, é "correto" o comportamento que, em sua totalidade e a longo prazo, é
bom para nós." (op. cit., p. 317)
10
Carlos María Cárcova, em seu artigo ¿Qué Hacen los Jueces Cuando Juzgan? argumenta que: "Pensar el
derecho como una práctica social discursiva significa asumir que consiste en algo más que palabras; que es
también comportamientos, símbolos, conocimientos. Que es al mismo tiempo, lo que la ley manda, los jueces
interpretan los abogados argumentan, los litigantes declaran, los teóricos producen, los legisladores sancionan o
los doctrinarios critican y, además, lo que a nivel de los súditos opera como sistema de representaciones. (...).
Que hacen, entonces, los jueces cuando juzgan? Según parece: conocen, interpretan, valoran, deslindan,
estipulan. No de una manera monádica, aislados, solitarios y caprichosos. Sino como seres sociales, portadores
de una cultura técnica, pero irreductiblemente permeables al conjunto de representaciones, estados de
conciencia y visiones del mundo que comparten con sus congéneres y coadyuvan, con su trabajo, a veces a
conservar y outras veces a transformar."
11
Segundo Ronald Dworkin, in obra Levando os Direitos a Sério, os princípios são padrões de direito, tentando
ser regras e na ótica do positivismo jurídico, se assim o fossem, não seriam regras válidas de uma lei acima do
direito, isto porque não são regras.

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Daí que do ponto de vista da análise conceitual, a distinção entre normas e valores
vem a perder seu sentido nas teorias clássicas que pretendem demonstrar que a validade
universal é para todos os bens e que os valores por si, são supremos.

Essas normas de ordem ontológicas, que tratam do ser enquanto ser, objetivam bens
e valores, transformando-os em entidades que existem em si mesmas.

Já as teorias contemporâneas pretendem demonstar que os bens ou valores


universais assumem formas abstratas, na qual facilmente se verificam as normas
deontológicas, ou seja, de caráter moral, ético.

De conseqüência, a jurisprudência de valores levanta o problema da legitimidade,


tomando-se como referência, aqui no caso, a prática de decisões do Tribunal Constitucional
Federal Alemão, pois ela implica em um tipo de concretização de normas que coloca a
jurisprudência constitucional no plano de uma legislação concorrente à própria norma, cujo
aspecto axiológico deriva da teoria do dever.

Conforme Habermas, ao deixar-se, o Tribunal, conduzir pela idéia da realização de


valores materiais, tem-se que, no direito constitucional, dados transforma-se-iam
liminarmente em uma instância autoritária e no caso de uma colisão, as razões postas
poderiam assumir o caráter de argumentos de colocação objetiva, imponente, o que faria ruir
o ponto principal do discurso jurídico diante da compreensão deontológica de normas e
princípios do direito.

No momento em que os direitos individuais se transformam em bens e valores, a


concorrência até então em pé de igualdade com as normas começa a ruir com a tentativa de
primazia em cada caso singular, onde cada valor é precioso como qualquer outro e cada
norma deve sua validade conforme sua utilidade universal, por isso que Ronald Dworkin12
passou a entender os direitos como "trunfos" a serem usados como contra argumentos de
colocação objetiva, até porque as normas e os princípios possuem uma força de justificação
maior do que a dos valores.

É que as normas podem pretender um obrigatoriedade geral devido ao sentido


deontológico de sua validade. Já a ordem de valores tem se inserido de forma transitiva, ou
seja, inseridas caso a caso, através de medidas racionais e intuitivas, onde a avaliação se
realiza de forma arbitrária e a bel prazer do juiz.

12
Em "O Império do Direito", Ronald Dworkin destaca que se um juiz está convencido de que uma lei admite
apenas uma interpretação, então, executando-se o impedimento constitucional, ele deve colocar em prática essa
interpretação como sendo o direito, mesmo que considere tal lei incoerente, em princípio, com o direito entendido
em seu sentido mais amplo. Enfim, ressalta que o direito é um conceito interpretativo e os juízes devem decidir o
que é o direito interpretando o modo usual como os outros juízes decidiram o que é o direito.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-12, Fev./Maio 2009 5


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Assim, na medida em que o Tribunal Constitucional adota a doutrina da ordem de
valores e a toma como base de sua prática de decisão, cresce o perigo dos juízos
irracionais, egoístas, porque neste caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os
argumentos normativos, por pura intenção do julgador.

No entanto, caso haja uma colisão de normas13, para Habermas, ocorrem pontos de
vista distintos que permitem introduzir argumentos no discurso jurídico, mas tais argumentos
não são mais do que princípios jurídicos à luz dos quais esses bens e princípios podem ser
justificados. Habermas (1997, p. 322) afirma:

Os direitos fundamentais, ao contrário, ao serem levados a sério em um


sentido deontológico, não caem sob uma análise dos custos e vantagens.
Isso também vale para normas "abertas", não referidas a casos exemplares
facilmente identificáveis - como é o caso dos programas condicionais - e
formuladas sem um sentido específico de aplicação, necessitando de uma
"concretização" metodicamente inofensiva. Tais normas encontram a sua
determinação clara num discurso de aplicação No caso de colidirem com
outras prescrições jurídicas, não há necesidade de uma decisão para saber
em que medida valores concorrentes são realizados.

Já as normas pertinentes e as normas retroativas não se relacionam entre si, ou seja,


não se colidem como ocorre com os valores concorrentes, os quais, na qualidade de
mandamentos de otimização, seriam realizados em diferentes níveis, porém, como normas
adequadas ou não adequadas como menciona Habermas (1997, p. 323):

Uma jurisprudência orientada por princípios precisa definir qual pretensão e


qual ação deve ser exigida num determinado conflito - e não arbitrar sobre o
equilíbrio de bens ou sobre o relacionamento entre os valores. É certo que
normas válidas formam uma estrutura relacional flexível, na qual as relações
podem deslocar-se segundo as circunstâncias de cada caso; porém esse
deslocamento está sob a reserva da coerência, a qual garante que todas
normas se ajuntam num sistema afinado, o qual admite para cada caso uma
única solução correta. A validade jurídica do juízo tem sentido deontológico
de um mandamento, não o sentido teleológico daquilo que é atingível no
horizonte dos nossos desejos, sob circunstâncias dadas. Aquilo que é o
melhor para cada um de nós não coincide eo ipso com aquilo que é
igualmente bom para todos.

13
Leia-se também princípios.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-12, Fev./Maio 2009 6


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2.3. Legitimidade do controle da constitucionalidade

Quanto à questão da legitimidade do controle judicial da constitucionalidade no direito


alemão, por uma consideração metodológica, há de se convir que há conseqüências práticas
e críticas em relação a uma autocompreensão falsa do sistema.

É que, no processo de aplicação nem sempre surgem lacunas de racionalidade em


ambos os tipos de interpretação, seja normativa ou valorativa.

Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à
aplicação de normas de caráter constitucional, pressupostas como válidas. Por isso que a
distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas
ou valores oferece ao julgador, um critério lógico-argumentativo de delimitação de tarefas
tidas por legitimadoras da justiça e da legislação, inclusive. Habermas (1997, p. 324) afirma:

Uma jurisprudência dirigida por princípios não precisa necessariamente ferir


a estrutura de decisão organizada hierarquicamente, destinada a garantir
preliminarmente ao respectivo processo de decisão os argumentos
legitimadores, através de resoluções de um nível de competência
hierarquicamente superiror.

Deve-se ater que o fato de o Tribunal Constitucional e o legislador político ligarem-se


às normas processuais não significa uma equiparação concorrente da justiça com o
legislador.

Sobretudo, os argumentos legitimadores a serem extraídos da Constituição, são


entregues preliminarmente ao Tribunal Constitucional, na perspectiva da aplicação do direito
e não na perspectiva de um legislador que interpreta e configura o sistema dos direitos à
medida que persegue suas políticas públicas.

Neste caso, o Tribunal torna a desliguar-se dos argumentos com os quais o legislador
legitima suas proposições, a fim de mobilizá-los para uma decisão coerente e justa em cada
caso particular, de acordo com princípios do direito vigente. Vê-se aqui a atuação do
legislador sob moldes de casos abstratos e do judiciário, de casos concretos.

Todavia, o legislador não pode dispor desses argumentos para uma interpretação
imediata do Tribunal e para uma configuração do sistema do direito e, com isso, para uma
legislação implícita ou seja, o legislador não cria uma norma pensando na forma como ela
será aplicada pelo julgador, mas em razão de sua necessidade social, em prol dos cidadãos.

A partir do momento em que uma norma não mais permite tal aplicação coerente,
conforme à Constituição, ela coloca a questão do controle abstrato de normas a ser
empreendido basicamente na perspectiva do legislador.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-12, Fev./Maio 2009 7


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Na Alemanha, na medida em que o controle de normas é feito pelo judiciário, levando
à rejeição das normas, argumentos pragmáticos14 e político-jurídicos podem falar em prol da
distribuição institucional de competências.

Precisa-se então saber se a delegação parlamentar dos juízes constitucionais é


suficiente para satisfazer a exigência de uma legitimação democrática da percepção judicial
de uma função que tem que ser entendida como uma delegação do autocontrole do
legislador ao Tribunal Constitucional.

Então, no Estado Democrático de Direito, a Constituição não pode mais ser


entendida apenas como uma "ordem" que regula primariamente a relação entre Estado e
cidadãos. De outro lado, porém, a Constituição também não pode ser entendida como uma
ordem jurídica global e concreta, destinada a impor uma determinada forma de vida sobre
uma determinada sociedade.

Partindo desta compreensão de que somente pelas condições processuais da


gênese democrática das leis, se asseguram a legitimidade do direito, é que seria possível
encontrar um sentido para as competências do Tribunal Constitucional, que correspondam à
intenção da divisão de poderes no âmago do Estado de direito.

A exemplo, o clássico modelo da separação dos poderes e da interdependência entre


os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção de divisão dos poderes, uma
vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais se apoiar nas concepções sociais
embutidas no paradigma do direito liberal. Segundo Habermas, não se pode mais limitar a
proteção dos cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal.

É que a autonomia privada também está ameaçada através de posições de poder,


econômicas e sociais, dependentes por sua vez, do modo e da medida em que os cidadãos
podem efetivamente assumir os direitos de participação e de comunicação de cidadãos do
Estado.

Por isso, Habermas entende que o Tribunal Constitucional Alemão precisa examinar
os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos
comunicativos e as condições procedimentais do processo de legislação democrática.

Tal compreensão procedimentalista da Constituição imprime uma virada teórico-


democrática ao problema de legitimidade do controle jurisdicional desta.

Logo, o Tribunal tem que tomar as precauções necessárias para que permaneçam
intactos os "canais" entre os Poderes do Estado, para que o processo inclusivo de formação

14
No sentido prático, de argumentos úteis.

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da opinião e da vontade, através do qual uma comunidade jurídica democrática se auto
organiza, também se mantenha.

Nesta perspectiva, os direitos de comunhão e de participação constitutiva dos


cidadãos são de suma importância para a formação democrática da vontade, adquirindo um
lugar privilegiado.

Por isso que o controle abstrato de normas deve referir-se, primeiramente, às


condições da gênese democrática das leis, iniciando-se pelas estruturas comunicativas de
uma esfera pública, passando pelas chances reais de se conseguir reclamar efetivamente os
direitos de participação de forma igualitária.

Baseados neste pensamento habermasiano, de que os Tribunal Constitucionais


acabam por enfraquecer a cidadania e a democracia, pois não são condizentes com o
pluralismo democrático, é que muitos autores criticam decisões importantes da jurisdição
constitucional, no sentido de que essas decisões não possuem a racionalidade
argumentativa.15

2.3.1. O controle da gênese das normas

O controle da gênese das normas deve estender-se à divisão de Poderes, entre o


Executivo e o Legislativo, e não apenas à implementação dos programas de leis através da
administração, chegando à inadmissível passividade de um legislador que esgota suas
competências delegando-as à administração.

Apoiando-se em tal compreensão procedimentalista, o Poder Judiciário só pode


conservar sua imparcialidade se resistir à tentação de preencher seu espaço de
interpretação com juízos de valores éticos e morais, mas podendo preencher-se com juízos
normativos.

Interessante destacar os universos normativos citados por Luiz Moreira16, no que


tange à hegemonia da normatividade estatal, tornada possível e somente operada pelo
Direito moderno a partir do monopólio da força. Segundo Moreira, a tese de Habermas de

15
Entretanto, para Lênio Luiz Streck, na obra Verdade e Consenso, esta crítica é indevida, pois não entende ter
havido algum ativismo nessas decisões, ou seja, de aplicação da jurisprudência de valores negando a estrutura
mínima do texto constitucional.
16
Diz o citado professor que "Normas não tem estrutura comprobatória, isto é, não dizem como as coisas são,
porque não se referem aos fatos, mas a validades, a finalidades. Elas não fazem a atualização entre o passado e
o presente, pois não se restringem ao acontecido. Normas transcendem as determinações dos acontecimentos e
se projetam no futuro, como finalidade do universo simbólico. Enquanto as sentenças descritivas dizem respeito
aos fatos como eles são, as sentenças prescritivas dizem como os homens devem se portar. Os homens e não
as coisas. De cunho prático, as normas têm uma estrutura que não constitui a realidade, mas que a transforma
ao designar limites. Neste sentido, toda norma transcende e se distingue dos fatos, tanto quantitativa como
qualitativamente." (MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 56).

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que este Direito seria o sucessor normativo de uma eticidade substancial em decomposição
padece de duas fraquezas:

a) A primeira, de caráter filosófico, onde se chegariam às sentenças normativas,


a partir da dedução das normas a partir dos fatos e às sentenças descritivas, através da
verificação da plausibilidade dos argumentos.

b) O segundo não é filosófico, mas histórico, consistindo na inadequação entre o


seu pressuposto fático e a sua inobservância histórica.

Quanto aos discursos jurídicos, esses podem pretender para si mesmos uma elevada
suposição de racionalidade, porque discursos de aplicação são especializados em questões
de aplicação de normas, sendo por isso institucionalizados no quadro da clássica
distribuição de papéis entre partidos e um terceiro imparcial.

Portanto, eles não podem substituir discursos políticos, que são talhados para a
fundamentação de normas e determinações de objetivos, exigindo a inclusão de todos os
atingidos, tanto mais que a racionalidade inerente ao processo político necessita de maiores
esclarecimentos.

Por esta razão é que o conceito básico de uma justiça procedimental de formação
política de opinião e da vontade pública exige uma teoria da democracia cujas feições, no
entanto, se revelam cada vez mais convencionais ao olhar de todos, mas perigosa ao olhar
dos juizes.

3. Considerações finais

Enfim, tem-se que Normas e valores distinguem-se, respectivamente, pelo(a): agir


obrigatório ou destinado a um fim; codificação binária ou gradual pretensão de validade;
obrigatoriedade absoluta ou relativa; critérios que cada um deve satisfazer, entretanto, não
podem ser aplicados da mesma maneira.

À luz das normas, ao Tribunal Constitucional é possível saber o que fazer, mas no
horizonte dos valores, somente é possível decidir qual o comportamento recomendável.

Na medida em que os Tribunais preferem decidir pelos valores ou através deles,


tornando-se prática reiterada esta decisão, há, de conseqüência, o risco de acarretar em
decisões distanciadas da normatividade, pois que os argumentos funcionais (valorativos)
prevalecem aos normativos em que pese o entendimento de que deveria ser o contrário.

Isto não é bom, pois pela validade das normas, as decisões se aderem ao absoluto,
mas pela validade dos valores, ao relativo. Criteriosamente, um valor pode até ser

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relativizado por outro valor, mas as normas, jamais, mesmo que se destaque um conflito,
que chamaríamos de mera aparência.

Neste sentido concordamos com Habermas, pois que se a autocompreensão


metodológica dos magistrados se apoiarem em sentidos de valoração, pode-se acarretar a
perda da interpretação correta na decisão, pois é inquestionável que direitos não podem e
não devem ser assimilados a valores ou por valores.

Segundo Habermas, a interpretação ponderada do direito vigente se transforma


numa realização concreta de valores ou seja, em uma "tirania de valores, sem perceber que
o verdadeiro problema está na adptação de princípios a valores."17

Por estas razões que, quando o problema da legitimidade do Controle Judicial da


Constitucionalidade pelo Tribunal ocorre por causa da metodologia aplicada (interpretação
por valoração e não normativa), as conseqüências podem ser drásticas se houver uma
"autocompreensão" falsa, pois que a interpretação dos princípios do direito são afastados e
os julgadores não se dão conta de que são esses princípios que estão interligados com a
interpretação das normas e não os valores.

Ademais, afastando tão somente a questão de que o Controle de Constitucionalidade


Alemão tem certas diferenças com o Controle de Constitucionalidade Brasileiro, o que não
vem ao caso discutir neste momento, a verdade é que, o Tribunal no Brasil, no que tange às
questãos de interpretação, de estarem tomando rumos valorativos, em nada difere do que se
critica, por Habermas, do Tribunal Alemão.

4. Referências

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria
da justificação juridica. São Paulo: Landy, 2001.

____________. La institucionalización dela justicia. Granada: Comares, 2005.

____________. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. Madrid. Fundacion


Beneficência et Peritia Juris, 2004.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação juridica. São Paulo:


Landy, 2000.

CÁRCOVA, Carlos Maria. ¿Qué hacen los jueces cuando juzgan?. Revista da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Paraná, v. 33, v. 35, 2001. Disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/ article/view/1806/1502.

DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução de Marta Guastavino. Barcelona:


Ariel, 1999.
17
Op. cit., p. 316.

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_________. O império do direito. Tradução de Jéferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de


Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Calousate Gulbenkian, 1986.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis:


Vozes, 2001.

KENNEDY, Duncan. Libertad y restricción en la decision judicial. Bogotá: Siglo del


hombre, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MOREIRA, Luiz. A Constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

NEVES, A. Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global


da filosofia. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. (Studia iurídica, 72)

NINO, Carlos Santiago. La Constituicón de la democracia deliberativa. Tradução de


Roberto Saba. Barcelona: Gedisa, 2003.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1983.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hemenêutica e teorias


discursivas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: Imprensa Nacional, 1979.

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Reciclagem: função social do bem móvel1
Hiroshi Togashi2

Sumário: 1. Introdução – 2. O meio ambiente como bem constitucionalmente tutelado - 2.1.


O meio ambiente ecologicamente equilibrado enquanto elemento dos direitos humanos
fundamentais - 2.2. O meio ambiente na Constituição de 1988 - 2.3. O meio ambiente e suas
classificações - 2.4. A preservação do meio ambiente: um dever fundamental – 3. A função
social dos bens móveis - 3.1. A influência da função social trazida pelo Código Civil de 2002
- 3.2. A função social na formação de um Estado Social e Democrático de Direito - 3.3. A
função social dos bens de uso e consumo - 3.4. Benefícios econômicos e sociais da
reciclagem – 4. Da reciclagem. CAPÍTULO – 5. Da responsabilidade pela implementação da
reciclagem - 5.1. Da responsabilidade pública - 5.1.1. Responsabilidade legislativa - 5.1.2.
Responsabilidade regulatória - 5.1.3. Responsabilidade conforme os 3Rs (redução,
reutilização e recuperação) - 5.1.4. Responsabilidade pela coleta seletiva - 5.2. Da
responsabilidade privada - 5.2.1. Responsabilidade de fabricantes e produtores - 5.2.2.
Responsabilidade dos consumidores – 6. Brevíssimas considerações sobre os incentivos
tributários para a reciclagem – 7. Considerações finais – 8. Referências

1. Introdução
Assim está escrito no livro de Gênesis, o primeiro livro do Pentateuco3, de autoria do
profeta Moisés:
No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma
e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava
sobre as águas.

1
Este artigo foi extraído, sintetizado e adaptado do trabalho monográfico, de mesmo nome, apresentado na
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, perante a banca composta pelo Des. Nagib Slaibi Filho
(presidente), Des. Fed. Poul Erik Dyrlund (orientador) e Dr. Humberto Peña de Moraes (convidado), o qual
recebeu, por unanimidade, o grau máximo.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho, Pós-Graduado e Professor de Direito Constitucional da
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) - mjmota@oi.com.br.
3
O Pentateuco, do grego pentateuchos, “livro em cinco volumes”, integra a primeira seção do Antigo Testamento
na Bíblica Cristã. É composto pelos livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e Deuteronômio. De acordo com
os teólogos, todos foram escritos pelo profeta Moisés.

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Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era boa; e fez
separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus à luz Dia e às trevas,
Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro dia.
E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas
e águas. Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo
do firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez. E chamou
Deus ao firmamento Céus. Houve tarde e manhã, o segundo dia.
Disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e
apareça a porção seca. E assim se fez. À porção seca chamou Deus Terra e
ao ajuntamento das águas, Mares. E viu Deus que isso era bom. E disse:
Produza a terra relva, ervas que dêem semente e árvores frutíferas que
dêem fruto segundo a sua espécie, cuja semente esteja nele, sobre a terra.
E assim se fez. A terra, pois, produziu relva, ervas que davam semente
segundo a sua espécie e árvores que davam fruto, cuja semente estava
nele, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom. Houve tarde e
manhã, o terceiro dia.
Disse também Deus: Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem
separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais, para estações,
para dias e anos. E sejam para luzeiros no firmamento dos céus, para
alumiar a terra. E assim se fez. Fez Deus os dois grandes luzeiros: o maior
para governar o dia, e o menor para governar a noite; e fez também as
estrelas. E os colocou no firmamento dos céus para alumiarem a terra, para
governarem o dia e a noite e fazerem a separação entre a luz e as trevas. E
viu Deus que isso era bom. Houve tarde e manhã, o quarto dia.
Disse também Deus: Povoem-se as águas de enxame de seres viventes; e
voem as aves sobre a terra, sob o firmamento dos céus. Criou, pois, Deus
os grandes animais marinhos e todos os seres viventes que rastejam, os
quais povoavam as águas, segundo as suas espécies; e todas as aves,
segundo as suas espécies. E viu Deus que isso era bom. E Deus os
abençoou, dizendo: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas dos
mares; e, na terra, se multipliquem as aves. Houve tarde e manhã, o quinto
dia.
Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua
espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua
espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua
espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os
répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre
todos os répteis que rastejam pela a terra. Criou Deus, pois, o homem à sua

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imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os
abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre
todo animal que rasteja pela terra.
E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão
semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que
há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os
animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra,
em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E
assim se fez. Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve
tarde e manhã, o sexto dia.
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército. E,
havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou
4
nesse dia de toda a sua obra que tinha feito .

Conforme se depreende da narrativa apresentada pelo profeta Moisés a respeito do


início da criação de todas as coisas, havia, no princípio, uma perfeita harmonia entre o
homem e o meio ambiente. Desse, retirava o alimento e as matérias-primas necessárias ao
seu desenvolvimento, de acordo com aquilo que o Criador lhe determinara. Haveria, pois, de
se multiplicar, sujeitando a terra às suas necessidades, presente a idéia de preservação. E
isso teria sido bom. Todavia, assim não ocorreu. Desobedecendo ao que lhe fora
determinado, o homem se colocou numa posição de desunião com Aquele que criara todas
as coisas, inclusive a ele próprio. Assim, quando lhe perguntado sobre sua desobediência,
enrubesceu. Com o passar dos tempos, enrudeceu, embruteceu; emudeceu para com o seu
Criador, e encrudeceu sua vida nesta Terra, que é seu habitat, feita para seu uso e gozo. E
isso não foi bom. E, atualmente, teme pela própria existência num planeta degradado e
poluído.

Ainda com base no Texto apresentado, é possível extrair-se uma perspectiva de


interpretação das normas ambientais, como também da própria necessidade de se proteger
o meio ambiente. Assim, a doutrina registra duas explicações a respeito do tema: a
ecocêntrica e a antropocêntrica.

Na interpretação ecocêntrica, também denominada deepecology, animais e plantas


passariam a ser sujeitos de direito, tal qual o ser humano. O meio ambiente se constituiria
num valor a ser defendido e preservado, por si e em si.

4
Livro de Gênesis, I.1-31; II.1-2. Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000, p.
8-10.

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Pela perspectiva antropocêntrica, a preservação se impõe não por ser o meio
ambiente um fim em si mesmo, mas porque sua qualidade é essencial à vida e à existência
humana. Esse parece ser o entendimento mais adequado.

Trata-se, a teoria ecocêntrica, de uma visão equivocada, pois parte do pressuposto


de que os diretos humanos fundamentais5 são egocêntricos e, portanto, animais e plantas
deveriam também alçar à condição de sujeitos de direito. Ora, se assim fosse, poderiam ser
estabelecidas relações jurídicas entre coisas e o homem, idéia que há muito foi abandonada
pelo Direito, haja vista, por exemplo, a evolução das teorias a respeito da propriedade. Não
há relação jurídica entre homem e coisa. Animais e plantas são objetos de direito, e não
sujeitos de direito. A lição de Hugo Nigro Mazzilli6 é apropriada, ao afirmar que “[...] se os
animais tivessem direitos, deveríamos supor que eles os teriam mesmo que não houvesse
homens, o que não seria verdade”.

Do mesmo modo, é equivocado imaginar que entre os direitos humanos


fundamentais não se encontre também o meio ambiente. A idéia de egocentrismo não se
sustenta, pois se volta apenas para a individualidade do ser, não percebendo o aspecto da
socialidade do ser, isto é, os direitos humanos fundamentais só revelarão o caráter
egocêntrico se sua análise for dirigida exclusivamente ao indivíduo como um fim e limite. A
partir do momento em que o ser humano passa a ser concebido como parte de um grupo
social, inserido em um meio ambiente, as fronteiras se expandem e passam a abranger
outros bens, inclusive animais e plantas, distante, portanto, do caráter egoístico propugnado.

Assim, cabe ao homosapiens a responsabilidade de transformar o contexto da


história para as futuras gerações, tomando atitudes verdadeiramente sábias para a
preservação do meio ambiente, visto como o planeta e a continuidade de todas as espécies,
inclusive a sua própria, dependem disso.

2. O meio ambiente como bem constitucionalmente tutelado

2.1. O meio ambiente ecologicamente equilibrado enquanto elemento dos


direitos humanos fundamentais

É costume dizer que os direitos humanos fundamentais são o direito constitucional


aplicado. A doutrina alemã ensina que tais direitos equivalem a um sismógrafo, porquanto a
maneira como são vistos e respeitados demonstra a forma como é visto o Direito
Constitucional num país, sendo a melhor percepção da relação Estado-sociedade.

5
Existe grande controvérsia doutrinária a respeito da utilização das expressões “direitos humanos”, “direitos
fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”. Entende-se que a preferência terminológica adotada por este
artigo, direitos humanos fundamentais, expressa maior compatibilidade com a realidade contemporânea
globalizada.
6
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p.138.

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Durante a vigência do Estado Liberal, também denominado laisser-faire, laissez-
passer, emergiram os direitos e as garantias individuais.

Com a falta de fôlego da política abstencionista para se sustentar diante das


desigualdades que seus ideais acarretavam na prática, a progressiva democratização
mundial fez nascer um novo modelo de Estado, o Estado Social.

O entendimento sobre o ser humano se expandia, que passava da visão meramente


individualista para a concepção do indivíduo integrado na coletividade, ressaltando-se, com
isso, o princípio da socialidade.

Foram agregados aos direitos e garantias individuais, os direitos sociais7. Esses


direitos, também chamados de prestacionais, provocaram uma releitura nas posições
jurídicas individuais, pois os direitos passaram a ser exercíveis não apenas em face do
Estado, mas também em relação aos demais indivíduos na sociedade.

O debate que se iniciou em meados do século XX, e que ganha projeção


modernamente, é o da existência de direitos humanos fundamentais que transcendem o
indivíduo, denominados direitos meta ou transindividuais, em razão da indeterminabilidade
de seus titulares8.

A divisão dos direitos humanos fundamentais em dimensões ou gerações encontra


assento tanto em doutrina9, como na jurisprudência10. Tornou-se corrente serem agrupados
de acordo com a relação de pertinência que guardam com os ideais da Revolução Francesa,
isto é, liberdade, igualdade e fraternidade ou solidariedade11. A classificação das gerações,
todavia, não encontra unanimidade doutrinária12.

7
A doutrina não é pacífica no entendimento de os direitos e garantias individuais englobarem os direitos sociais.
Entretanto, num Estado Social e Democrático de Direito, os direitos sociais são os que mais carecem de
efetivação e proteção, um vez que “[...] a democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – aponta para
a realização dos direitos políticos, que apontam para a realização dos direitos econômicos e sociais, que
garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante. Os direitos
econômicos e sociais são de natureza igualitária, sem os quais os outros não se efetivam realmente”. SILVA,
José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 132.
8
Deve ser feita ressalva no sentido de ser a titularidade indeterminável característica dos interesses difusos, pois
os direitos meta ou transindividuais englobam, ainda, os interesses coletivos e os individuais homogêneos, cuja
titularidade é determinável ou determinada, respectivamente. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses
difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 52.
9
Alexandre de Moraes. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 59. Ingo W.
Sarlet. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004.
p. 54-58.
10
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno – MS n. 22.164/SP. Relator: Ministro Celso de Mello. Diário da
Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206.
11
“Como conclui Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ‘a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a
segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade,
igualdade e fraternidade”. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 60.
12
Alguns entendem haver quatro gerações, a saber: direitos de primeira geração, os direitos individuais; os de
segunda geração, os direitos políticos; os de terceira geração, os direitos sociais; e os de quarta geração, os
direitos difusos. Outros entendem por bem unir os direitos de primeira e segunda geração, expostos pela corrente
doutrinária oposta, em apenas uma geração, ou seja, direitos de primeira geração, os direitos individuais e
políticos; os de segunda geração, os direitos sociais; e os de terceira geração, os direitos difusos. O presente
artigo adotará esta última posição.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-33, Fev./Maio 2009 5


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No que concerne ao aspecto formal, isto é, quanto à terminologia a ser empregada
para classificar os direitos humanos fundamentais em relação ao aspecto histórico-
cronológico de manifestação em berço constitucional, destaca-se o uso da expressão
“dimensão”, porquanto o termo “geração” importa, entre outros aspectos, mas
principalmente, a idéia de substituição. O próprio artigo da Constituição que consagra o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado dispõe que tal direito deve ser
preservado “[...] para as presentes e futuras gerações”. Entretanto, os diversos direitos que
consubstanciam o estudo dos direitos humanos fundamentais não apresentam essa marca
de alternância, de substitutividade, mas sim, de cumulatividade. Cada dimensão é
pressuposto para a próxima, formando-se um elo indissolúvel entre elas. Por isso, a primazia
terminológica no uso do termo dimensão, entendimento que se arrima com a doutrina
moderna13.

Quanto à divergência doutrinária a respeito do número de dimensões, parece ser de


melhor técnica aquela que reúne os direitos individuais e políticos em apenas uma
dimensão, no caso, a primeira, porquanto agrupa as liberdades clássicas idealizadas a partir
da Revolução Francesa numa mesma dimensão.

Com relação ao aspecto material, isto é, a qualificação do meio ambiente como um


direito de terceira dimensão, algumas considerações merecem ser feitas.

Dispõe o art. 225, caput, da Constituição da República de 1988, o seguinte:


Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder
público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.

Sob o aspecto da legitimidade, a norma encerra algo nunca antes visto em qualquer
outra seara do Direito, uma vez que confere o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado para “as presentes e futuras gerações”. Ora, se na seara cível são assegurados,
desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2º, Código Civil), eis aqui um direito
garantido àqueles que nem pré-concebidos estão. A amplitude com que se expressou o
constituinte originário demonstra, de plano, a grandeza do direito que ambicionou
resguardar.

Doutrina14 e jurisprudência15 costumam exemplificar o direito ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado como um direito de terceira dimensão. Essa dimensão, por sua
vez, encerra os interesses difusos.

13
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004, p. 53.
14
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 60. BARROSO, Luis Roberto. O
direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 102.

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Os direitos ou interesses difusos se classificam16 como aqueles cujo titular é
indeterminado, que têm origem numa situação de fato, e cujo dano é indivisível.

É válida a qualificação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como


um direito ou interesse difuso, uma vez que se amolda, com perfeição, à classificação
proposta pela doutrina. Contudo, seu conteúdo o difere de todos os demais congêneres.

A defesa do meio ambiente pode ser encontrada no texto constitucional em dois


dispositivos distintos: no art. 225, que faz parte do título sobre a ordem social, e no art. 170,
VI, com redação dada pela emenda constitucional n. 42, de 2003, inserido no título referente
à ordem econômica e financeira, como um dos princípios gerais da atividade econômica.
Essa última previsão merece destaque, uma vez que as atividades econômicas que afetem o
meio ambiente estarão ao arrepio dos ditames constitucionais e, de acordo a redação do
artigo, poderão receber “[...] tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.

O conteúdo diferenciado do direito em exame já se faz sentir, uma vez que, com base
no texto constitucional, é possível tratar “desigualmente aos desiguais, na medida em que se
desigualam”. Com efeito, a defesa do meio ambiente importa adoção de critérios distintos
em relação aos atores econômicos. Na verdade, o artigo encerra a possibilidade de se
flexibilizar o princípio da isonomia, vale dizer, quem exerce uma atividade econômica sem
observância da proteção ao meio ambiente merecerá tratamento diverso em relação àquele
que se amolda aos ditames constitucionais. Trata-se da aplicação daquilo que se poderia
definir como princípio da isonomia ambiental.

Igualmente importante é a questão relacionada à materialidade das dimensões.

Os direitos se dividem em três dimensões: a primeira, os direitos individuais e


políticos; a segunda, os direitos sociais; a terceira, os direitos difusos. Existe uma gradação
nas dimensões, pois na primeira, se considera o indivíduo como fim e limite; na segunda,
permanece o caráter individualista, mas sob a ótica prestacional estatal, ou seja, o foco se
volta para o Estado, a fim de que esse pratique condutas em prol do indivíduo, com o
objetivo de garantir a igualdade material; na terceira, surge a visão dos direitos
transindividuais, pertencentes a toda a coletividade, que transcendem o indivíduo, mas que
existem em benefício dele. Assim, ocorre uma relação de complementaridade, em que cada
dimensão é corolário da dimensão anterior.

15
“Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um típico direito de
terceira geração” (BRASIL. Superior Tribunal Federal. 1ª Turma. RExtr. n. 134.297-8/SP. Relator: Ministro Celso
de Mello. Diário da Justiça, Brasília, Seção I, 22 set. 1995, p. 30.597).
16
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 48.

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A terceira dimensão se caracteriza por uma titularidade difusa e coletiva. No entanto,
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se coloca num patamar superior, até
mesmo, aos direitos de primeira dimensão. De nada adiantaria, por exemplo, estar
assegurado o direito à saúde, direito de segunda dimensão, se o meio ambiente estiver a tal
ponto poluído e degradado que nem mesmo as técnicas mais avançadas da medicina
conseguiriam combater as doenças decorrentes dessa degradação. Observe-se a
problemática referente à camada de ozônio. De igual modo ocorre com o direito ambulatório,
uma liberdade clássica de primeira dimensão. Os seres humanos estariam tolhidos de
exercê-la plenamente se o meio ambiente em que vivem lhes restringisse a possibilidade de
ir, vir e ficar. Seriam garantias inócuas, da mesma forma, a fraternidade ou solidariedade,
direitos ligados à terceira dimensão, se não houver existência digna num ecossistema
ecologicamente equilibrado, onde a água seja passível de consumo, a flora, terrestre e
aquática, possa produzir oxigênio, os alimentos sejam produzidos de maneira saudável,
enfim, onde haja possibilidade de desenvolvimento quantitativo e qualitativo do ser humano.

Com base nesse entendimento, o direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado se descaracteriza como um direito de terceira dimensão, tampouco de segunda
ou de primeira dimensão. Em verdade, não se trata de garantir um direito fraternal, mas sim,
de um direito existencial, cuja previsão se torna obrigatória em todos os ordenamentos
jurídicos.

Finalmente, uma última consideração merece ser feita em relação aos interesses
difusos e o princípio da dignidade da pessoa humana, diferenciando-se “dignidade da
pessoa humana” e “dignidade humana”.

Conforme leciona Ingo W. Sarlet17, “[...] apenas a dignidade de determinada (ou


determinadas) pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a
dignidade da pessoa humana em abstrato”. Afirma, ainda, que: “[...] a dignidade constitui
atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato,
não sendo lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana
[...]” 18.

No entanto, quando se faz referência aos interesses transindividuais, especificamente


aos interesses difusos, cuja titularidade é caracterizada pela indeterminabilidade, a utilização
da expressão “dignidade humana” parece ser mais apropriada, pois o que singulariza um
interesse difuso é exatamente a impossibilidade de se individualizar os titulares do direito,
17
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p.
116.
18
Contudo, afirma o autor que “[...] não se descarta uma dimensão comunitária (ou social) da dignidade da
pessoa humana, na medida em que todos são iguais em dignidade e como tais convivem em determinada
comunidade ou grupo”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2004. p. 166.

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podendo haver, desse modo, atentados contra a coletividade abstratamente considerada,
até mesmo pelo caráter transcendental desses interesses. Deve-se diferenciar, todavia, os
interesses difusos que estão relacionados com o princípio da dignidade humana, como o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e aqueles que não estão.

A preferência terminológica pela expressão “dignidade humana”, em oposição à


“dignidade da pessoa humana”, não significa colocar em desacerto essa última. Busca-se,
isto sim, enfatizar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um
verdadeiro direito existencial, condição elementar de eficácia para o exercício de todos os
demais direitos. Antes de se debater a respeito de liberdade, igualdade ou fraternidade é
necessário que haja existência ambientalmente digna, tornando-se cabível, em última
análise, advogar a tese da dignidade ambiental da pessoa humana.

2.2. O meio ambiente na Constituição de 1988

A partir da Constituição de 1988, uma inovação de proporções nunca antes


presenciada ocorreu no trato do direito ao meio ambiente.

A expressão “meio ambiente” encontra-se prevista no texto constitucional dezessete


vezes, desde os direitos e garantias individuais (art. 5º, LXXIII), passando pela competência
legislativa concorrente de União, Estados, Distrito Federal (art. 24, VI), pela caracterização
de sua defesa como função institucional do Ministério Público (art. 129, III), princípio geral da
atividade econômica (art. 170, VI), elemento determinante da função social da propriedade
rural (art. 186, II), atribuição do sistema único de saúde (art. 200, VIII), elemento
condicionador das propagandas em rádio e televisão (art. 220, § 3º, II), até desaguar em
capítulo específico, intitulado Do Meio Ambiente (art. 225).

Assim, a relevância com que o constituinte originário tratou da matéria justifica a


elaboração do presente artigo, haja vista ter sido um dos poucos direitos previstos em quase
todos os títulos da Constituição, como também pelo fato de se tratar de um direito
existencial.

2.3. O meio ambiente e suas classificações

O termo meio ambiente pode ser empregado para designar quatro19 espécies
distintas: meio ambiente natural ou físico, meio ambiente artificial ou urbano, meio ambiente
cultural e meio ambiente do trabalho.

19
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 3-5. LEITE,
José Adércio Sampaio; WOOD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de direito ambiental: na dimensão
internacional e comparada. Belo Horizonte, Del Rey, 2003. p. 47, nota de rodapé n. 15. MAZZILLI, Hugo Nigro. A
defesa de interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 137.

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Além desse elenco, é possível ser acrescentado duas novas espécies de meio
ambiente, visto como ambas possuem assento constitucional.

O primeiro deles, com fundamento no art. 226, da Constituição da República, é o


meio ambiente familiar. Em todos os aspectos da vida social do ser humano, nenhum meio
ambiente é tão importante quanto esse não sendo, por outra razão, ter constituinte originário
definido que a família é a base da sociedade.

Outra espécie de meio ambiente contida no próprio capítulo que trata do meio
ambiente ecologicamente equilibrado é o meio ambiente pré-intra-uterino, disciplinado pelo
art. 225, § 1º, II, da Carta. Atualmente, existe grande controvérsia a respeito dos embriões
excedentários20, que consiste em saber o que pode ser feito com esses embriões, se seriam
passíveis de experimentação ou simplesmente poderiam ser descartados21. O estudo da
principiologia dessa espécie de meio ambiente poderá solucionar o debate que, em verdade,
gravita em torno do próprio início da existência humana, tema diretamente relacionado à
bioética.

2.4. A preservação do meio ambiente: um dever fundamental22

O estudo dos deveres fundamentais apresenta a mesma importância dos direitos


humanos fundamentais, senão serem verdadeiro verso desses.

De forma sintetizada, diz-se que um direito é materialmente fundamental quando, em


razão do conteúdo e importância que conferem às posições jurídicas dos indivíduos, são
retirados da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos. Assim, os direitos humanos
fundamentais podem ser encontrados por todo o texto constitucional, e até mesmo fora dele,
havendo, no próprio rol dos direitos e garantias individuais da Constituição da República,
direitos que apresentam fundamentalidade meramente formal.

O caráter de fundamentalidade material de um direito confere a ele não só o status


de ter seu núcleo essencial protegido contra deterioração por parte do legislador ordinário,
como também encerra uma obrigatoriedade de cumprimento diversa dos demais, não
significando, com isso, que determinados direitos devam ser mais cumpridos do que outros,
mas sim, que seja possível, no caso de sua inobservância, a adoção de medidas repressivas
mais intensas, conforme assegura o art. 5º, XLI, da Carta.

20
Aqueles que não foram utilizados pela técnica de reprodução assistida e, por isso, colocados a baixíssimas
temperaturas, em hibernação, também denominados criopreservados.
21
A Lei n. 8974/95, regulamenta os incisos II e V do parágrafo primeiro do art. 225, e a Lei n. 11.105/05,
o
regulamenta os incisos II, IV e V do § 1 do art. 225, ambos da Constituição da República.
22
Por conta da imperiosa exigüidade que merece este artigo, foram suprimidos, além de vários outros, os
conteúdos relativos à proposta de classificação dos direitos humanos fundamentais, que tem como pressuposto a
existência de um núcleo primário e quatro núcleos secundários (e a aparente contraditio in terminis nesta
proposição, uma vez que o verbete “núcleo” denota a característica da unicidade), assim como o
desenvolvimento do estudo dos deveres fundamentais.

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Com fulcro nesse entendimento é que deve serdesenvolvida a sistemática dos
deveres fundamentais. Constituem-se na obrigatoriedade diferenciada no que toca ao
cumprimento do direito ao qual se encontra ligado. Esse cumprimento diferenciado se impõe,
uma vez que o núcleo primário dos direitos humanos fundamentais é o princípio da
dignidade da pessoa humana. Assim, a satisfação de determinado dever é a satisfação do
próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo, um dever fundamental não será
garantido apenas por meio de medidas repressivas, mas, em especial, por intermédio de
medidas preventivas, haja vista o art. 5º, XXXV, da Constituição.

Para que seja caracterizado um dever fundamental é necessário que o direito esteja
ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana ou a qualquer dos outros núcleos
secundários dos direitos humanos fundamentais.

De igual modo, guarda pertinência com a matéria a questão relativa à aplicabilidade


das normas constitucionais23.

Conteúdo relevante para a sistemática dos deveres fundamentais é o princípio da


efetividade normativa da Constituição.

É importante ressaltar que o fato de determinadas normas serem consideradas como


programáticas não significa que lhes fora suprimido o caráter de fundamentalidade material a
qual possam ter. A programaticidade de uma norma implica ausência de um direito subjetivo,
mas que, nada obstante isso, quando encerrar um direito materialmente fundamental, será
possível buscar a tutela para esse direito, objetivando sua concretização, especialmente se
assegurar a existência digna da pessoa humana ou qualquer outro princípio do núcleo
secundário dos direitos humanos fundamentais.

Não se pode descurar, de igual modo, da impossibilidade prática da efetivação dos


direitos humanos fundamentais por parte do Estado, em especial dos direitos sociais ou de
segunda dimensão. Assim, a ponderação entre o mínimo existencial e a reserva do
financeiramente possível é uma exigência inafastável diante do custo dos direitos24, visto

23
Conforme doutrina clássica, as normas definidoras de direitos se classificam como normas de eficácia plena
(note-se que essa classificação é, em verdade, inviável, pois os direitos devem ser harmonizados, na hipótese de
colisão; por isso, a característica de relatividade dos direitos humanos fundamentais), normas de eficácia contida,
e normas de eficácia limitada (uma espécie daquilo que se poderia chamar, em analogia ao Direito Penal, de
norma constitucional em branco).
24
“De outra parte, como já demonstrado a partir das considerações tecidas a respeito da obra de Holmes e
Sunstein, não apenas os direitos econômicos, sociais e culturais implicam políticas públicas, mas também direitos
habitualmente designados de individuais ou identificados (no nosso sentir equivocadamente) como os direitos de
liberdade, já que para assegurar a efetividade de qualquer direito, não há como prescindir da alocação de toda
uma gama de recursos públicos [...]”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto
Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 221. Esse tema não passou despercebido das lições de José Afonso da Silva,
ao afirmar que, pela dinâmica econômico-social do nosso tempo, “[...] o desfrute de qualquer direito fundamental
exige a atuação ativa dos poderes públicos”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.
São Paulo: Malheiros, 2003. p. 177.

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como todos os direitos, inclusive as liberdades clássicas de primeira dimensão, demandam
gastos para sua satisfação.

Aspecto que também deve ser levado em consideração nesta temática é a eficácia
horizontal dos direitos humanos fundamentais, porquanto são postuláveis não apenas em
face do Estado, mas também no âmbito das relações interprivadas25, vale dizer, diante de
todo aquele que for destinatário de um dever fundamental, como ocorre, por exemplo, com o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Assim sendo, é possível classificar os deveres fundamentais quanto à legitimidade e


em relação ao direito materialmente fundamental aos quais se encontram ligados. Há,
portanto, deveres fundamentais pessoais, recíprocos, genéricos, estatais e mistos. Neste
último encontra-se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

3. A função social dos bens móveis

3.1. A influência da função social trazida pelo Código Civil de 2002

Inserida no aspecto socializante do novo Código Civil está o instituto da função


26
social , cuja aplicação recaiu, em especial, sobre a propriedade e os contratos. Ao se fazer
referência a essa, afirma José Diniz de Moraes27 “[...] pensa-se logo em algo que possa
satisfazer concretamente uma determinada necessidade social, sem se preocupar com a
natureza do interesse a ser satisfeito, se público, individual ou coletivo”. E conclui: “É o
elemento sociológico da definição, aferível apenas na realidade concreta da vida social”.

Com relação ao direito de propriedade, o novo Código trouxe uma relevante


modificação para seu exercício. Pela primeira vez se condicionou a propriedade à
preservação ambiental. Dispõe o art. 1.228, § 1º, que o direito de propriedade deverá ser
exercido de acordo com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados “[...] a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o instituto da propriedade foi alterado


substancialmente28. A expressa menção ao cumprimento da função social “[...] transforma a

25
“[...] a idéia de os direitos fundamentais irradiarem efeitos também nas relações privadas e não constituírem
apenas direitos oponíveis aos poderes públicos vem sendo considerada um dos mais relevantes desdobramentos
da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. p. 158.
26
À semelhança do que acontece com o princípio da dignidade da pessoa humana, a função social também é
continente, englobando vários outros valores ou princípios para formação de seu conteúdo.
27
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 100.
28
BRASIL. Superior Tribunal Justiça. MS n. 1856-2/DF -1ª Seção. Relator: Ministro Milton Luiz Pereira.
Ementário STJ, Brasília, n. 8/318.

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propriedade capitalista, sem socializá-la”29,que se converte, na lição de Pietro Perlingieri30,
numa situação jurídica subjetiva complexa.

Pelo direito positivo pátrio, portanto, passa a existir a função sócio-ambiental da


propriedade31. O bem-comum e o interesse social, que foram previstos nas constituições
anteriores, englobaram, por meio da nova norma infraconstitucional, o meio ambiente.

O instituto da função social, contudo, possui um campo de incidência muito mais


abrangente, verdadeiro modificadorestrutural jurídico e político.

3.2. A função social na formação de um Estado social e democrático de direito

A idéia de função social já havia se manifestado na seara penal, desde o final do


século XIX, por meio da teoria social da ação e, modernamente, pela teoria da imputação
objetiva, na linha desenvolvida por GüntherJakobs32, ao afirmar que os seres humanos
encontram-se num mundo social “[...] na condição de portadores de um papel, isto é, como
pessoas que devem administrar um determinado segmento do acontecer social conforme um
determinado padrão”.

Essa releitura do Direito a partir do instituto da função social promoveu profundas


alterações nas estruturas jurídicas, assim como no próprio Estado.

Em alusão à conferência sobre socialização do Direito realizada por Léon Duguit,


Arnaldo Süssekind33 transcreve lição que merece íntegra:
A concepção moderna da liberdade não mais corresponde ‘ao direito de
fazer tudo que não cause dano a outrem e, portanto, a fortiori, ao direito de
não fazer nada. Todo homem tem uma função social a cumprir e, por
conseqüência, tem o dever social de desempenhá-la. O proprietário, ou
melhor, o possuidor de uma riqueza, tem, pelo fato de possuir esta riqueza,
uma função social a cumprir; enquanto cumpre esta missão, seus atos de
proprietário são protegidos (...) A intervenção dos governantes é legítima
para obrigá-lo a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em
assegurar o emprego das riquezas que possui conforme o seu destino.

A referência à função social põe termo à divisão entre direito público e privado, pois
“[...] dentro de uma ordem jurídica de caráter social, o direito público e o direito privado não
se acham um ao lado do outro, separados por uma fronteira rígida. Pelo contrário, tendem a

29
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 282.
30
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 119 e 121.
31
Nesse sentido, o art. 9º, § 3º, da Lei 8629/93, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à
reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Carta.
32
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p.230.
33
SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1999. v.1, p. 137.

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confundir-se e a invadir-se reciprocamente.”34 Daí a dificuldade para se definir, com
precisão, o que vem a ser a função social, pois ela altera, em verdade, a própria concepção
de Estado.

Aliada a essa ótica, surge uma nova concepção estatal, asocial-democracia.35


Iniciada em fins do século XIX, por obra do teórico alemão Eduard Bernstein36, buscava na
propriedade privada a satisfação coletiva, a distribuição equânime das riquezas, a justiça
social em termos econômicos e sócio-culturais, a inclusão daqueles em desigualdades
físicas, sociais ou mentais e a solidariedade, a partir de um senso de compaixão para com
os menos favorecidos, vítimas de injustiça e discriminação.

O art. 1º, caput, da Carta Política de 1988, dispõe que a República Federativa do
Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito. No entanto, seus objetivos
fundamentais, expressos pelo art. 3º, vão ao encontro de todo o sistema de idéias
desenvolvido pela social-democracia, o que permite afirmar a adoção, pelo constituinte
originário, de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito.37

Assim, a aplicabilidade da função social bem pode ser resumida através dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, isto é, a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, em que haja a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades
sociais, com a promoção do bem de todos, sem nenhuma espécie de preconceitos ou
quaisquer outras formas de discriminação, garantido o desenvolvimento nacional.

É importante ressaltar, contudo, que, atualmente, a social-democracia européia tem


sido alvo de inúmeras críticas.38 Muitos afirmam que o revisionismo se tornou mera
alternativa de governabilidade aos capitalistas.

34
MORAES, José Diniz de. A unção social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 105.
35
Concepção política decorrente do marxismo, que buscava a transição para uma sociedade socialista de forma
pacífica, por meio de uma evolução democrática, sem necessidade da via revolucionária.
36
Bernstein se convenceu estarem equivocadas as teses marxistas diante da evolução das sociedades em que a
economia capitalista estava implementada, pois ao invés de aumentar a pobreza, o capitalismo promovia o bem
estar da população por meio da geração de riqueza e, em razão disso, era importante seu desenvolvimento, e
não sua abolição como defendiam Marx e Engels.
37
Prefere José Afonso da Silva não adotar a expressão Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que
“[...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa
quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha
e da Monarquia Espanhola para chamá-lo de Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o
qualificativo social ligado a Estado, engasta-se aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State,
(...) delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116 a 120.
38
Roberto Mangabeira Unger afirma: “[...] O que definiu a formação da social-democracia no curso do século
vinte foi o abandono da tentativa de reorganizar o Estado e o mercado em favor da adoção de políticas de
redistribuição econômica e proteção social. Políticas que humanizariam as instituições que os social-democratas
deixaram de contestar (...) Em todas as social-democracias européias, a base social de acesso aos setores
avançados da produção e do ensino se estreitou a tal ponto que só pequena minoria consegue ascender a eles.
As maiorias, ainda quando protegidas contra a insegurança econômica, estão condenadas a empregos rotineiros,
sem futuro (...) A social-democracia européia é um ídolo de barro. Em vez de adorá-lo, tratemos de evitar seus
erros [...]”. Disponível em: < www.law.harvard.edu/faculty/unger/ >. Acesso em: 23 maio 2008.

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Em que pese à deficiência prática em sua consecução, a busca pelos seus ideais
deve permanecer, uma vez que oferecem conteúdo ao princípio da dignidade da pessoa
humana.39

3.3. A função social dos bens de uso e consumo

Os bens podem ser divididos em bens de uso, de consumo e de produção.

Nos países que adotam o sistema capitalista, a função social, quando prevista em
legislação, encontra-se, com freqüência, relacionada aos bens de produção, em especial, à
propriedade.

Historicamente, nenhuma índole socializante houve nesse fato. Trata-se, em


verdade, de uma decorrência do próprio sistema capitalista, que objetiva a potencialização
do lucro e a máxima exploração do bem.

Contudo, em que pese a função social da propriedade ter tido esse escopo,
modernamente, a preservação do meio ambiente também se encontra nela inserida, vale
dizer, se antes a função social era mera decorrência de um sistema econômico, pelo
complexo normativo hodierno, passou a ter uma coloração mais ecológica, seja por força da
nova sistemática civilística, em que foi instituída a função sócio-ambiental da propriedade,
seja pelo comprometimento da Carta com a preservação dos ecossistemas, alçando-a a
condição de princípio geral da atividade econômica.

Feitas essas considerações, duas questões merecem ser enfrentadas, a saber: se


existe função social em relação aos bens móveis e, caso afirmativo, qual seria a função a ser
desempenhada por esses bens.

Segundo o magistério de José Diniz de Moraes40, “[...] o princípio da função social


será mais denso em relação à propriedade dos bens de produção do que em relação aos
bens de consumo.” 41

No entanto, não pode ser considerada como verdadeira a afirmativa de que apenas
a propriedade e os contratos possuem função social. Tratá-la como atributo exclusivo dos

39
Entretanto, o que deveria ocorrer num mundo de economia globalizada, em que o grande capital se tornou
apátrida, descompromissado com o Estado nacional, é o desenvolvimento da democracia participativa nas
esferas locais, com maior autonomia dos núcleos de poder próximos aos cidadãos.
40
MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 67.
41
Contudo, o próprio autor, refutando o entendimento de Orlando Gomes, afirma mais adiante: “Só apedeuta,
podemos afirmar, atribuiria a uma obra de arte, a um edifício antigo, a um apartamento residencial, a qualidade
de bens produtivos. Todavia, não se duvida de que em determinadas situações desempenham elas veras e
próprias funções sociais. O proprietário de uma obra de arte, pelo princípio da função social, tem a obrigação de
preservá-la, pode ser obrigado a dar preferência ao Estado em caso de alienação, ela pode ser desapropriada
por interesse social etc.”. MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição federal
de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 146.

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bens de produção encerraria uma concepção demasiadamente restritiva, que não se
coaduna com a realidade fática e jurídica desse instituto.

Ao fazer referência à função social ligada exclusivamente à propriedade, limita-se a


força hermenêutica do instituto à busca de socialidade ao bem de produção. No entanto, o
constituinte originário, ao tratar dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, em verdade, estendeu o espectro da função social a todos os bens e direitos,
inclusive às próprias pessoas, ao instituir a busca de uma sociedade livre, justa e solidária.

Retorne-se as máximas de Léon Duguit, “[...] todo homem tem uma função social a
cumprir [...]”, e de GüntherJakobs, “[...] os seres humanos encontram-se num mundo social
na condição de portadores de um papel [...]”. De tal modo, o art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.906/94,
Estatuto da Advocacia, ao afirmar que o advogado, no seu ministério privado, “[...] presta
serviço público e exerce função social”.

Corroborando essa linha de entendimento, cite-se a Lei n. 9.787/99, que dispôs sobre
a vigilância sanitária e estabeleceu o medicamento genérico. Em observância ao dever
fundamental da saúde, contido expressamente noart.196, da Constituição, o governo federal
mitigou a proteção patentária e outros direitos de exclusividade de diversos laboratórios, ao
fundamento de que os medicamentos, em razão de sua relevante função social, não
poderiam ter suas fórmulas restritas aos interesses daqueles. De tal sorte, tornaram-se
públicas as patentes e os medicamentos genéricos passaram a ser comercializados por um
valor mais baixo do que os originais de marca, o que franqueou o seu acesso às populações
mais carentes.

Diante disso, tem-se por superado o primeiro questionamento a respeito da


existência de função social em relação aos bens móveis, uma vez que até mesmo a
propriedade imaterial a possui. Num Estado Social e Democrático de Direito, o próprio ser
humano tem um papel, uma função socialmente relevante a desempenhar. Imaginar que
somente a propriedade e demais bens de produção apresentam função social é impedir o
amplo desenvolvimento que merece o instituto.

Resta enfrentar a questão concernente a saber qual seria a função social a ser
desempenhada pelos bens móveis, em especial, os bens de uso e consumo.

O ser humano do século XXI vive numa sociedade que transformou a máxima de
René Descartes, cogito, ergosum, para consumo, ergo sum. Torna-se utópica a concepção
de vida em sociedade dissociada da idéia de consumo. O útil e o supérfluo tomam conta do
imaginário do homem. O avanço das tecnológicas, a propagação dos meios de comunicação
de massa, as técnicas de merchandising, enfim, todo o desenvolvimento da era atual modela
sua personalidade. O aumento do consumo encontra previsão, e.g., na Constituição

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Européia, em seu art. III-40º, “d”, que visa “[...] assegurar o desenvolvimento racional da
produção e a expansão do consumo na União”.

Com o crescente aumento do consumo, aumentam também os riscos de degradação


ambiental. Por falta de políticas públicas voltadas à prevenção da escassez dos recursos
não-renováveis, bem como pela ausência de coordenação no gerenciamento de resíduos, a
produção e o consumo desmedidos numa sociedade de massa trazem sérias conseqüências
à preservação do meio ambiente.

Diante desse quadro, apresenta-se um paradoxo, pois os bens móveis, em especial


os de uso e consumo, que alavancam a economia e garantem o desenvolvimento nacional,
objetivo fundamental da República (art. 3º, II, CRFB/88), estão, ao mesmo tempo, afetando,
de maneira drástica, o meio ambiente, violando, simultaneamente, o princípio geral da
atividade econômica (art. 170, VI, CRFB/88), e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (art. 225, CRFB/88).

Em meio a essa contradição, aparece a reciclagem. Atualmente, trata-se de um dos


mais importantes instrumentos referentes à preservação ambiental, tanto pelo fato de fazer
com que os bens de uso e consumo descartados retornem ao ciclo econômico-produtivo,
como pela conservação das fontes não-renováveis.

Contudo, a reciclagem não se limita apenas ao aspecto de preservação ambiental.


Há, também, relevantes benefícios de ordem social e econômica.

3.4. Benefícios econômicos e sociais da reciclagem

Criada em abril de 2002, a bolsa de resíduos da Federação das Indústrias do Estado


de São Paulo (FIESP), disponibiliza um serviço gratuito de divulgação de resíduos
empresariais, as chamadas sobras de produção, em que são comprados e vendidos
diversos tipos de materiais que, anteriormente, tinham o lixo como destino. De acordo com
dados da própria Federação, o programa movimenta cerca de dez milhões de reais ao ano.

A reciclagem também tem se mostrado como um eficiente propulsor de novos


empreendimentos. A criação de uma pequena empresa ligada ao setor de materiais
recicláveis é apontada pelos especialistas como um investimento lucrativo que exige um
baixo aporte inicial de capital.

Outro benefício é a utilização de matéria-prima reciclada para redução de custos e


aumento da competitividade empresarial, denominada de ecoeficiência empresarial42, o que
acarreta o barateamento dos produtos ao consumidor.

42
Nesse sentido, a norma de gerenciamento ISO 14000.

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Em relação aos benefícios sociais, é possível citar o programa de reciclagem adotado
em algumas prisões dos Estados Unidos, em que os próprios internos são treinados e,
mediante o pagamento de salários, recrutados como mão-de-obra.

Um exemplo marcante no Brasil é o dos catadores. Ajudando na preservação do


meio ambiente e pondo fim ao desemprego de muitos, várias corporações têm adotado
programas de assistência às entidades ligadas a coleta de materiais reciclados. É o que tem
sido chamado de Responsabilidade Social Corporativa.

A grande campeã de reciclagem são as latinhas de alumínio. De acordo com


números da Associação Brasileira do Alumínio (ABAL) o Brasil, desde 2001, tem se sagrado
campeão na reciclagem de latas de alumínio entre os países em que essa atividade não é
obrigatória. Estima-se que esse mercado movimente cerca de 450 milhões de reais por ano,
e que gere empregos para mais de 160 mil pessoas.

4. Da reciclagem43

O crescente aumento populacional, que quadruplicou nos últimos cem anos, a


destruição da camada de ozônio, o aquecimento global e o conseqüente descongelamento
das calotas polares, a escassez dos recursos naturais, a insuficiência dos combustíveis
fósseis, o estresse hídrico, por conta do desperdício de água potável, a contaminação dos
lençóis freáticos pelo derrame de fertilizantes tóxicos no solo, a crise na segurança
alimentar, o desmatamento sem limites, a desertificação, a poluição dos oceanos, que
coloca em risco mais da metade dos corais de todo o mundo, a contaminação do ar, enfim,
toda a problemática ambiental, são assuntos que entraram para a ordem do dia nos
governos mundiais.

Somando-se a esses fatos, todos os dias, milhares de toneladas de lixo, somente no


Brasil, têm por destino os aterros ou vazadouros públicos. Conseqüentemente, a falta de
espaço para armazenar esse volume tem provocado discussões entre as entidades
federativas que não desejam criar, dentro de seus limites, novos depósitos.

Assim, o lixo se transformou numa questão de Estado para começar a se transformar


pela reciclagem.

A expressão reciclagem passou a ser utilizada a partir da década de 1970, com o


objetivo de expressar a idéia de re-ciclar, ou seja, de retorno ao ciclo produtivo.

43
Foram suprimidos deste artigo o histórico sobre leis e cartas internacionais relativas à matéria ambiental, assim
como os conceitos de lixo, permacultura, cores na reciclagem, os materiais recicláveis, suas especificações e
legislação pertinente (papel e papelão, vidro, plásticos, metais, pneus, pilhas e baterias, e-waste, entulho da
construção civil, resíduos de serviço de saúde e embalagens agrotóxicas), e, por fim, as considerações sobre a
incineração e os aterros sanitários.

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Embora diversas disposições normativas44 façam referência à reciclagem, não há, na
legislação nacional, nenhuma que a defina.

Em direito comparado, embora o conceito seja em sentido restrito, pode ser citada a
Diretiva 94/62/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 1994,
relativa às embalagens e resíduos de embalagens.45

De forma mais abrangente, é possível conceituar a reciclagem como o método de


reaproveitamento dos resíduos que visa reintroduzi-los no ciclo de produção de novos
materiais, idênticos ou não, de sorte a proporcionar à sociedade benefícios de ordem
ambiental, econômico e social.

O sistema de gerenciamento de resíduos, no entanto, não cuida apenas da


reciclagem. Essa é uma das técnicas de gerenciamento. As próprias leis e resoluções
utilizam outras expressões que merecem ser diferenciadas.

A primeira delas é a redução. Trata-se de uma estratégia preventiva para a


diminuição do volume de lixo gerado. Sua incidência é dirigida, principalmente, às
embalagens. A redução está ligada ao consumo consciente e ao ecodesign.46

Outra técnica é a reutilização. Cuida-se do método de gerenciamento de resíduos


baseado no emprego direto do bem no mesmo uso para o qual foi originalmente concebido.
Típico exemplo é a reutilização das garrafas de vidro.

Também se utiliza a técnica de recuperação, que consiste na transformação térmica,


química, física ou biológica, produzindo-se outro material ou energia. Essa tem sido uma
importante técnica de gerenciamento para a obtenção de combustíveis alternativos como,
por exemplo, o biodiesel47 e o biogás.

Outro importante exemplo de recuperação é a compostagem.48

44
É o caso, e.g., da Lei n. 9976/00; do Decreto n. 98.816/00, que regulamenta a Lei n. 7802/90; e da Lei
10.357/01.
45
É o “[...] reprocessamento, num processo de produção, dos resíduos para o fim inicial ou para outros fins,
incluindo a reciclagem orgânica, mas não a valorização energética”.
46
Ecodesign significa a moderna tendência na criação de produtos, levando em consideração a funcionalidade, o
manuseio e a eficiência, com o objetivo de maximizar o reaproveitamento e buscar não apenas a produção limpa,
ou a ecoeficiência, mas a otimização ambiental na manufatura dos produtos. Como forma de sua não
observância, cite-se um exemplo bem comum, o copo d’água vendido nos estabelecimentos comerciais. O
recipiente é de plástico, porém sua cobertura é de alumínio. Melhores, portanto, são as garrafas plásticas de
água, pois tanto o recipiente, como a tampa, são de plástico. O mesmo ocorre com determinados gêneros
alimentícios como patês, conservas, requeijão, extratos e molhos de tomate. Muitas vezes, o recipiente é de
vidro, a tampa é de alumínio e o sistema de pressurização possui uma pequena tampa de plástico no centro da
tampa de alumínio. Há, portanto, três materiais diferentes em apenas um único produto, o que dificulta o correto
descarte.
47
A Lei n. 11.097, de 13 de janeiro de 2005, dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz energética
brasileira.
48
Consiste no processo de decomposição de matéria orgânica, animal ou vegetal, que gera como resultado final,
o composto orgânico, utilizado como fertilizante para o melhoramento das propriedades físicas, químicas e
bioquímicas do solo. Estima-se que mais de 60% do lixo coletado no País seja formado por restos de vegetais e

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Por fim, a eliminação final, que deve ser restrita aos casos em que os resíduos não
sejam mais reaproveitáveis por nenhuma das outras técnicas anteriores. A eliminação final
se faz, normalmente, em aterros ou vazadouros.

5. Da responsabilidade pela implementação da reciclagem

O art. 3º, I, da Constituição da República, consagrador do princípio da solidariedade,


deve ser tomado como premissa básica para o estudo da responsabilidade pela
implementação da reciclagem. De igual importância o princípio da responsabilidade
compartilhada, ao impor o comprometimento de todos ao atores econômicos com a
reciclagem, verdadeira função social dos bens móveis.

O texto constitucional, quando tratou do direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, determinou que sua defesa e preservação fossem impostos ao poder público e a
toda coletividade. Logo, se a todos é imposto o dever, dever fundamental misto, a
responsabilidade deve ser repartida entre os co-obrigados, nos limites que cada um possui
para seu cumprimento.

5.1. Da responsabilidade pública

5.1.1. Responsabilidade legislativa

O artigo 225, da Constituição da República, impõe ao poder público a defesa e


preservação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

De acordo com o art. 23, VI, da Carta, é da competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, proteger o meio ambiente e combater a
poluição em qualquer de suas formas.

Já pelo art. 24, VI, compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição.

Logo, como a proteção ambiental se insere no rol de atribuições de todas as


entidades, é de se aplicar o que determina o artigo 24, parágrafos primeiro à quarto, ao
prever que compete a União o estabelecimento de normas gerais; aos Estados cabe
suplementar a legislação federal, se existente, caso contrário, exercerão competência
legislativa plena; e aos Municípios, na forma do art. 30, II, suplementar a legislação federal e
estadual, no que couber.

animais. Contudo, apenas 2% desse total tem sido reaproveitado como fertilizante agrícola ou encaminhado às
usinas de compostagem.

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Pode-se dizer, portanto, que a responsabilidade pela implementação da reciclagem
compete, legislativamente, a todos os entes políticos.49

Como ainda se encontra em tramitação o Projeto de Lei n. 203/91, que institui a


Política Nacional de Resíduos Sólidos, os Estados possuem competência legislativa plena
para desenvolverem políticas relacionadas ao gerenciamento de resíduos.50

5.1.2. Responsabilidade regulatória

De acordo com o art. 170, VI, da Carta, a defesa do meio ambiente se caracteriza
como um dos princípios gerais da ordem econômica e, de acordo com a nova redação
instituída pela emenda constitucional n. 42/2003, é possível estabelecer um tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação.

O art. 174, caput, do Diploma, prevê que o Estado exercerá, enquanto agente
normativo e regulador da atividade econômica, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Assim, compete ao Estado regulamentar o setor econômico, valendo-se daquilo que


foi denominado como princípio da isonomia ambiental, ou seja, promover a diferenciação de
tratamento entre os atores econômicos de acordo com as técnicas utilizadas para a
preservação ambiental.51 Esse entendimento vai ao encontro do art. 225, § 1º, inciso V, ao
dispor que, para que seja efetivado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
incumbe ao poder público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio
ambiente.

Outro mecanismo de regulação do setor econômico, com vistas à preservação


ambiental, são os incentivos fiscais, que será tratado no próximo capítulo.

49
No que concerne à esfera federal, cite-se os Projetos de Lei do Senado (PLS) 269/1999, 137/2001 e 160/2002.
Com relação à legislação estadual do Rio de Janeiro, merecem destaque a Lei n. 4195/03; Lei n. 3206/99; Lei n.
2110/93; Lei n. 3606/01; Lei n. 4169/03; Lei n. 1831/91; Lei n. 1838/91; e, por fim, a Lei n. 4178/03.
50
No Estado do Rio de Janeiro, cuida-se da Lei n. 4191/2003.
51
Observando-se, contudo, o que dispõe o princípio 12º, da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento: “As medidas de política comercial para fins ambientais não devem constituir um meio de
discriminação arbitrária ou injustificável, ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional”.

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5.1.3. Responsabilidade conforme os 3Rs (redução, reutilização e
recuperação)

No que concerne à redução52 e a reutilização, a estratégia governamental merece


uma política específica, à discricionariedade técnica do administrador, visto como não
poderá colidir com o postulado da livre iniciativa, fundamento da ordem econômica.

Quanto à técnica de recuperação, caberia, preliminarmente, ao poder público, a


reabilitação dos lixões, seja por intermédio da iniciativa pública53, seja em regime de parceria
com a iniciativa privada.

Outra medida consiste no incentivo para o desenvolvimento de usinas de


compostagem, desviando dos aterros ou vazadouros públicos os resíduos orgânicos54, e a
proibição de novos incineradores, com sua progressiva inutilização.

5.1.4. Responsabilidade pela coleta seletiva

Enquanto não são desenvolvidas políticas públicas voltadas à redução de resíduos, a


importância da coleta seletiva aumenta consideravelmente.55

Para o sucesso dessa atividade, é necessária a promoção de programas voltados à


educação ambiental. A população deve ser conscientizada sobre a importância do
gerenciamento de resíduos, estabelecendo-se um vínculo entre o meio ambiente e o
cidadão.56 Cabe, portanto, ao poder público se valer dos meios de comunicação para difundir
a importância da coleta seletiva, como ocorre com programas relacionados à saúde pública,
como a prevenção da dengue, as campanhas voltadas ao não tabagismo etc.

Outro ponto diz respeito à colocação de recipientes adequados nas vias públicas que
permitam o descarte adequado, sendo necessário, de igual modo, que os meios de
transporte utilizados para a limpeza urbana estejam capacitados para realizar essa coleta,
poisseria inócua a separação dos materiais se o fim a lhes ser dado for a incineração ou os
lixões.

Assim, ao Estado compete o dever de oportunizar a coleta seletiva, pois o outro elo
desta cadeia está nas mãos dos particulares.

52
Vide a Lei n. 2011/92, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a obrigatoriedade da implementação de
programa de redução de resíduos.
53
Assim é a Lei n. 1862, de 4 de fevereiro de 2005, do Município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de
Janeiro, que instituiu, em seu artigo 1º, a taxa de recomposição ambiental.
54
Cite-se o art. 1º, § 1º, VI, da Lei n. 10.831/2003.
55
A Lei n. 1831/91, do Estado do Rio de Janeiro, tornou obrigatória a coleta seletiva do lixo nas Escolas Públicas
do Estado.
56
Assim é a Lei n. 3706/02, do Município de Americana, São Paulo, que instituiu a Semana Municipal de
Reciclagem do Lixo.

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5.2. Da responsabilidade privada

5.2.1. Responsabilidade de fabricantes e produtores

De início, é importante ressaltar que nenhuma empresa produz lixo à toa. Ele é
gerado ao mesmo tempo em que se produz riqueza e desenvolvimento para a nação. Isso
não quer dizer que fabricantes e produtores não venham a ser responsabilizados pelos
produtos que coloquem no mercado, mas sim, que o principal nesse processo é a
participação conjunta entre setor público e setor privado.

O papel das empresas no século XXI está se transformando. No contexto das


mudanças do mundo globalizado fica claro que, além de exercerem uma função econômica,
devem também desempenhar uma função social.

Num mundo competitivo, repleto de avanços tecnológicos, em que o patamar de


qualidade é praticamente o mesmo entre grandes concorrentes, o diferencial situa-se na
responsabilidade ética e social da empresa.

Esse processo de mudança de mentalidade empresarial tem sido denominado de


responsabilidade social corporativa, e pode ser definida como o comprometimento do
negócio com o desenvolvimento econômico sustentável, passando pelos valores éticos, pelo
respeito ao ser humano, pela melhoria da qualidade de vida de empregados, suas famílias e
do meio sócio-ambiental na qual se encontra inserido. É a holística empresarial, que engloba
a responsabilidade ecológica.57

Um dos instrumentos utilizados na prestação de contas sobre o comprometimento


empresarial com o bem-estar coletivo tem sido a divulgação do chamado balanço social.58

No que se refere aos aspectos jurídicos para a imposição de responsabilidade


ambiental às empresas, o mais importante princípio de direito ambiental aplicável a
produtores e fabricantes é o princípio do poluidor pagador59, que se encontra positivado no
texto constitucional pelo art. 225, § 3º.

De igual modo, o art. 931, do Código Civil, dispõe que “os empresários individuais e
as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos
postos em circulação”. Diferentemente do que ocorre no Código de Defesa do Consumidor,

57
Há um conceito empresarial denominado triple-bottom-line, que diz respeito à mensuração do desempenho de
uma empresa tendo em conta parâmetros de responsabilidade econômica, social e ambiental.
58
É comum, atualmente, em jornais e revistas, a publicação das ações sociais empreendidas por grandes
empresas, redefinindo o próprio conceito de publicidade, uma vez que não mais se apresenta o produto ou
serviço, mas, por meio do novo marketing corporativo, é divulgado aquilo que está sendo desenvolvido em favor
da sociedade.
59
A União Européia, por meio da Comunicação da Comissão sobre enquadramento comunitário dos auxílios
estatais a favor do ambiente (2001/C 37/03), define, em seu item 6, o princípio do poluidor pagador como o
princípio segundo o qual os custos da luta contra a poluição devem ser imputados aos poluidores por ela
responsáveis.

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a norma civil, ao utilizar o termo “dano”, não o relaciona a defeito ou vício de qualidade ou
quantidade, cuidando, apenas, de responsabilizar determinados sujeitos pela lesão
decorrentes de seus produtos.

Para que o artigo em exame não seja considerado mera repetição da norma
consumeirista, deve-se buscar uma interpretação na qual se possa extrair mais do que
aquilo que já encontra previsão legal. Afirmar que a norma civil incidiria nos casos em que
não se tratasse de relações de consumo parece não ser suficiente, e até mesmo
equivocado, pois a utilização dos termos “produto” e “circulação” denotam que o legislador
teve por finalidade tratar de relações de consumo.

Assim, é possível fazer uma interpretação no sentido de que a norma civil trata de
relações de consumo, mas não está limitada àquelas disposições contidas na
leiconsumeirista, abrangendo pela expressão dano, o dano ambiental, coadunando-se,
portanto, com o dispositivo constitucional supra citado.

Existe, contudo, muita dificuldade em se operacionalizar o princípio, como também


em se definir quem vem a ser poluidor60. Contudo, a União Européia, por intermédio da
Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004,
regulamentou, de forma pormenorizada sua aplicação.61

Atualmente, aponta-se para o princípio da internalizarão de custos externos62, ou


seja, a despesa de tratamento do produto pós-consumo deve ser incluída no preço do
produto disponibilizado ao consumidor, pelo uso de taxas de disposição.63

Merece ser destacado, outrossim, o ecodesign, que engloba, entre suas


característica, a biodegradabilidade. Assim, impõe-se a fabricantes e produtores, o dever de
considerarem, na manufatura de um produto, a possibilidade deste ser biodegradável.64

60
A Lei n. 6938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, IV, conceitua poluidor
como pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade
causadora de degradação ambiental. Na União Européia, a Comunicação da Comissão sobre enquadramento
comunitário dos auxílios estatais a favor do ambiente (2001/C 37/03), define, em seu item 6, o conceito de
poluidor como todo aquele que contribui, direta ou indiretamente, para a degradação do ambiente ou cria as
condições conducentes à sua degradação.
61
No total, a Diretiva 2004/35/CE, de abril de 2004, possui um rol de 31 considerandas, 21 artigos a respeito do
princípio do poluidor pagador, e seis anexos à legislação.
62
Na União Européia, a Comunicação da Comissão sobre enquadramento comunitário dos auxílios estatais a
favor do ambiente (2001/C 37/03), conceitua, em seu item 6, a internalização dos custos: “[...] por internalização
dos custos deve entender-se a necessidade de as empresas absorverem nos seus custos de produção o
conjunto dos custos associados à proteção do ambiente”.
63
As taxas de disposição têm por objetivo internalizar os custos para o gerenciamento de resíduos dos produtos
industrializados e suas embalagens. Entretanto, é importante ressaltar que o princípio da internalização dos
custos acaba fazendo com que todo o financiamento de políticas econômicas sustentáveis seja suportado pelo
consumidor final, o que torna sem efeito o princípio do poluidor pagador.
64
Biodegradável significa a possibilidade de decomposição por meio de bactérias, geralmente em meio aquático.

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O Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA – possui diversas disposições
normativas que responsabilizam fabricantes e produtores.65

5.2.2. Responsabilidade dos consumidores

O aumento da emissão de dióxido de carbono e demais poluentes na atmosfera,


provocando alterações climáticas, como o efeito estufa e o descongelamento das calotas
polares, a esgotabilidade dos recursos não-renováveis, como os combustíveis fósseis e a
água, e a enorme quantidade de lixo produzida nas grandes cidades, são questões
diretamente relacionadas aos padrões de consumo da sociedade moderna.

Quanto mais se consome, mais se extrai do meio ambiente e mais lixo é gerado.
Nesse circulo vicioso, tanto os seres humanos, como o meio ambiente saem perdendo.

Por conta disso, algumas organizações não-governamentais norte-americanas66


promovem a campanha BuyNothing Day, que defende a redução do consumo quase ao
ponto do não-consumo.

Na verdade, ao que parece, in mediostatvirtus.

Programas como o BND produziriam, por certo, diversos benefícios de ordem


ambiental. No entanto, também poderiam provocar estagnação econômica, aumento de
preços, inflação e demissões em massa, o que formaria contingentes de desempregados a
depender da assistência governamental.

Em verdade, práticas de não-consumo desperdiçam uma poderosa arma do


consumidor que é o poder de compra. Com base nesse poder, foi desenvolvida a teoria do
consumo responsável, que consiste no estabelecimento das relações de consumo fundadas
na ética e no compromisso social.

Ainda que o consumo esteja se transformando em consumismo67, essa


conscientização tem se manifestado em relação às questões sociais empreendidas pelas
corporações. Isso ocorre com maior intensidade nos países desenvolvidos, em que a
distribuição de renda é mais equânime, o que acarreta maior acesso aos bens de uso e
consumo. Nos países em desenvolvimento, como as diferenças sociais são extremas, o
desejo de se ter um bem e a real possibilidade de tê-lo encontram-se tão distantes que
qualquer oportunidade de aproximação torna-se superior a conscientização do consumo.

65
Cite-se, como exemplo, as Resoluções n. 9, 257, 258, 283, 307 e 334 do Conselho.
66
Como, por exemplo, a Adbusters, Buy Nothing Christmas, Global Exchange, Fair Trade, Anti-Consumerism
Action e a Christmas Resistance. O programa Buy Nothing Day encontra-se presente em diversos países como
Alemanha, Itália, Dinamarca, Suécia, Portugal, Japão, Nova Zelândia e outros.
67
Entenda-se por consumismo, expressão cunhada somente a partir do século XX, a distorção do ato de gastar,
ou o gastar como elemento substitutivo e compensatório de outros valores interiores mais elevados e importantes
ao desenvolvimento humano.

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A responsabilidade social corporativa e a teoria do consumo consciente encerram
uma nova perspectiva nas relações de consumo para o novo milênio. Preço e qualidade
estarão aliados à ética empresarial.

Para que se torne viável a conscientização do consumo, é necessário que haja


informação ao consumidor sobre o nível de comprometimento econômico, social e ambiental
das empresas, para que este possa privilegiar em suas escolhas, aquelas que maiores
retornos têm dispensado à sociedade.68

Com relação ao aspecto normativo, não se encontram leis que responsabilizem o


consumidor pela reciclagem.

No entanto, o Decreto n. 4074/02, que regulamenta a Lei n. 7802/89, determina, que


os usuários de defensivos agrícolas deverão efetuar a devolução das embalagens vazias, e
respectivas tampas, aos estabelecimentos comerciais em que foram adquiridos, observadas
as instruções constantes dos rótulos e das bulas, no prazo de até um ano, contado da data
de sua compra.

De igual teor é a Resolução n. 257, de junho de 1999, do CONAMA, ao prever que


pilhas e baterias que contenham certos elementos químicos, após seu esgotamento
energético, serão entregues pelos usuários aos estabelecimentos que as comercializam ou à
rede de assistência técnica autorizada pelas respectivas indústrias, para repasse aos
fabricantes ouimportadores.

Embora singelas, essas disposições encerram aquilo que, modernamente, se definiu


como logística reversa.69

Com a logística reversa, o consumidor passa a ter um papel essencial na


preservação ambiental, porquanto é ele quem deve fornecer o produto ao fabricante ou
produtor, para que esses possam cuidar da destinação final ambientalmente adequada.

Dessa sorte, cria-se aquilo que poderia ser denominado de teoria do fornecedor por
equiparação.

De acordo com o art. 2º, caput, da lei consumeirista, consumidor é toda pessoa física
ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Em seu
parágrafo único, bem como nos arts. 17 e 29, a lei trata dos consumidores por equiparação.

68
Um passo nesse sentido seria a compulsoriedade de empresas que obtivessem um determinado faturamento
anual fizessem aquilo que algumas já desenvolvem por meio do novo marketing corporativo, ou seja, a
divulgação de suas ações sociais perante a mídia.
69
A logística tradicional consiste no gerenciamento do fluxo de materiais do ponto de origem até o ponto de
consumo. Entretanto, existe também o fluxo contrário, isto é, do ponto de consumo até o ponto de origem. A isso
se denominou logística reversa, que pode ser definida como a área da logística empresarial que planeja, opera e
controla o fluxo de retorno dos bens de pós-venda e de pós-consumo ao ciclo de negócios ou ao ciclo produtivo,
agregando valores legais, econômicos e ecológicos.

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No art. 3º, a lei define quem é fornecedor, pessoa física ou jurídica, pública ou
privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvam
atividades de produção, montagem, criação, construção, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Por meio da logística reversa, inclui-se, nesse rol de atividades dos fornecedores, a
devoluçãode produtos a ser empreendida pelos consumidores.

A teoria se justifica por meio do próprio texto constitucional quando trata do direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao afirmar ser dever de todos, inclusive da
coletividade, defendê-lo e preservá-lo.

Sua validade repousa na moderna ideologia de consumo responsável, ou naquilo que


poderia ser definido como pós-consumo responsável, tendo em conta que, disponibilizado o
descarte ambientalmente correto de um produto, a empresa demonstra seu
comprometimento com a preservação ambiental e, ao privilegiar essa empresa, o
consumidor assumiria a responsabilidade de devolver o produto após o seu desgaste.

Por fim, a teoria do fornecedor por equiparação se fundamenta na ampla


interpretação que deve ser empregada ao princípio do poluidor pagador. Nesse caso,
poluidor não são apenas fabricantes e produtores. O próprio consumidor também deve ser
considerado poluidor quando não efetuar o correto descarte de produtos nocivos ao meio
ambiente.

De acordo com as resoluções citadas, são considerados produtos nocivos, apenas,


as embalagens de defensivos agrícolas, pilhas e baterias. Contudo, a idéia de nocividade de
um produto deve ser analisada de forma direta e indireta.

Diretamente, um produto é nocivo quando apresenta, em sua composição,


determinadas propriedades químicas que podem causar, de forma imediata, danos à saúde
humana e ao meio ambiente.

De forma indireta, todos os produtos são potencialmente danosos, caso a destinação


final a lhes ser dada não atender aos critérios de preservação ambiental. Assim, a
embalagem de um produto alimentício, por exemplo, não produz, de forma direta, qualquer
dano à saúde humana ou ao meio ambiente. Entretanto, toneladas dessa mesma
embalagem despejadas, todos os dias, em locais inapropriados irão, por certo, causar sérios
danos ao meio ambiente e à saúde humana.

Vale dizer, por fim, que tratar o consumidor como o fornecedor por equiparação não
significa que todas as disposições contidas na lei consumeirista dirigidas aos fornecedores
incidiriam sobre ele, como, por exemplo, propaganda enganosa, mas sim, que lhe seria

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dispensado um tratamento diferenciado, concernente ao aspecto da devolução dos produtos,
a ser disciplinado mediante lei.

6. Brevíssimas considerações sobre os incentivos tributários para a reciclagem

O principal instrumento estatal para incentivar, economicamente, o emprego da


reciclagem têm sido os subsídios públicos. Caracterizam-se pelo oferecimento de linhas de
crédito para os empreendimentos voltados ao gerenciamento de resíduos, como também por
aquilo que se poderia definir como tributação negativa e tributação positiva. Esta, representa
a exasperação tributária daqueles produtos ambientalmente degradantes ou não-recicláveis,
desencorajando sua industrialização; aquela, por meio dos incentivos fiscais, sejam isenções
ou benefícios.

A isenção vem prevista pelo art. 175, I, do CTN, como forma de exclusão70 do crédito
tributário.

Os benefícios fiscais se apresentam de diferentes formas. A mais comum é a


redução da base de cálculo ou da alíquota do tributo71, entendendo-se como situações
distintas isenção e alíquota zero.72

Ao fazer referência a denominada eco-economia, o ambientalista Lester R. Brown73,


afirma que “[...] o desafio é utilizar impostos e subsídios para ajudar o mercado a refletir não
apenas os custos e benefícios diretos das atividades econômicas, mas também os indiretos”.
E, mais adiante, aduz: “[...] se usássemos a política fiscal para encorajar atividades
ambientalmente construtivas e desencorajar as destrutivas, poderíamos conduzir a
economia a uma direção sustentável”.

Em nível internacional, a União Européia, pela Comunicação da Comissão, de 26 de


março de 1997, relativa às taxas e impostos ambientais no mercado interno, define impostos
ambientais como todo aquele cujo fato gerador tenha um efeito negativo evidente sobre o
meio ambiente.

Contudo, a utilização dos denominados impostos verdes não é uma ferramenta que
encontra uniformidade entre os economistas, porquanto os custos para a preservação
70
Todavia, o entendimento doutrinário mais moderno rechaça tal concepção, uma vez que “[...] a isenção não
exclui crédito algum, pois é fator impeditivo do nascimento da obrigação tributária, ao subtrair fato, ato ou pessoa
da hipótese de incidência da norma impositiva”. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 737. No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres. TORRES, Ricardo
Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 273.
71
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e direito econômico. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 718.
72
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. RESP n. 55.895/RJ. Relator: Ministro Ari Pargendler. Diário
da Justiça, Brasília, 17 de mar. 1999, p. 7462.
73
BROWN, Lester R. Eco-economia: construindo uma economia para a terra. Salvador: Universidade Livre da
Mata Atlântica (UMA), 2003. p. 251.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-33, Fev./Maio 2009 28


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ambiental, que deveriam recair somente sobre produtores e fabricantes, como forma de
aplicação do princípio do poluidor pagador, por provocarem a redução da rentabilidade dos
negócios, são repassados aos consumidores, com a elevação de preços dos produtos.

Uma medida com maior aceitação nos países da Europa é o remanejamento fiscal.
Consiste, basicamente, na composição dos impostos, isto é, “[...] reduzir impostos sobre a
74
renda, compensando-os com impostos sobre atividades ambientalmente destrutivas [...]” ,
como emissões de carbono, geração de lixo tóxico, uso de matérias-primas virgens,
emissões de mercúrio, uso de agrotóxicos etc.

Em âmbito nacional, há o Projeto de Lei n. 203, de 199175, que, após substitutivo


apresentado em 2002 pelo Deputado Federal Emerson Kapaz (PPS/SP), passou a conter
proposta mais abrangente a respeito do gerenciamento de resíduos76. Existem, no total, 74
projetos apensados ao PL 203/91.

Quanto aos Estados, um importante instrumento fiscal para incentivar


odesenvolvimento da reciclagem como forma de gerenciamento final dos resíduos é o
denominadoICMS-Ecológico.

Todos os Municípios brasileiros têm direito a receber parte dos recursos tributários
arrecadados pela União e pelos Estados, conforme dispõe a Constituição da República, na
seção que cuida da repartição das receitas tributárias (arts. 157 a 162).

Além dos impostos federais, são repassados aos Municípios 25% do produto da
arrecadação do ICMS, conforme o art. 158, IV, da Carta. Esse percentual, por sua vez, é
disciplinado da seguinte forma: três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado
nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços,
realizadas em seus territórios, e até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual
ou, no caso dos Territórios, lei federal (art. 158, § único, I e II).

Com relação a esse último aspecto, isto é, os 25% disciplinados mediante lei
estadual, é que enseja o ICMS-Ecológico.

Assim, não se trata de novo imposto, mas sim, de uma forma que se vale de um
critério ambiental, com fundamento no princípio do desenvolvimento sustentável, de
redistribuir parte dos recursos arrecadados pelos Estados com o ICMS, constitucionalmente

74
BROWN, Lester R. Eco-economia: construindo uma economia para a terra. Salvador: Universidade Livre da
Mata Atlântica (UMA), 2003. p. 252.
75
O PL n. 203, de 1991, trata do acondicionamento, coleta, tratamento, transporte e destinação final dos resíduos
de serviços de saúde. Sua origem é o PLS 354/1989.
76
Trata-se de um projeto que visa instituir a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), seus princípios,
objetivos e instrumentos, bem como estabelecer diretrizes e normas de ordem pública e interesse social para o
gerenciamento dos diferentes tipos de resíduos sólidos, contendo mais de 180 artigos.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-33, Fev./Maio 2009 29


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destinados aos Municípios77, entre aqueles que buscam alternativas ambientalmente
sustentáveis, como as concernentes à organização de seus sistemas de coleta e destinação
final dos resíduos.

Em nível municipal, vale fazer nota que a Lei Complementar n. 116, de 2003, que
dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), incluiu em sua lista
anexa, a varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e
destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, como fato gerador do referido
tributo.

A modificação promovida na legislação vai de encontro com o que ocorre nas esferas
estadual e federal, uma vez que se busca favorecer empresas voltadas à reciclagem com
incentivos fiscais, e não considerar tal atividade como fato gerador de tributação.

7. Considerações finais

O mais importante papel da função social é o de transformar a própria concepção do


Estado democrático de direito, uma vez que lhe incute certos valores sociais que, pelo Texto
Magno, se caracterizam como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
vale dizer, construir uma sociedade livre, justa e solidária, em que haja a erradicação da
pobreza e a redução das desigualdades sociais, com a promoção do bem de todos, sem
nenhuma espécie de preconceitos ou quaisquer outras formas de discriminação, garantido o
desenvolvimento nacional.

Imaginar que a incidência da função social recai tão-somente sobre contratos e


propriedade é reduzir a aplicabilidade do instituto. Numa ordem social e democrática de
direito, o próprio homem é portador de um papel a ser desempenhado em benefício do bem
comum. Assim, sujeitos e objetos de direito têm de cumprir função social.

Desde a Revolução Industrial, que teve início no final do século XVIII, na Inglaterra,
os bens de uso e consumo estão se acumulado em grandes proporções por todas as
metrópoles do mundo e, atualmente, a sociedade do século XXI experimenta padrões de
consumo insustentáveis para a manutenção da sadia qualidade de vida por meio de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Surge, então, a reciclagem como forma ambientalmente sustentável para o


gerenciamento dos resíduos, além de promover benefícios que vão muito além dos aspectos
ambientais.

77
Com relação aos incentivos fiscais concedidos no Estado do Rio de Janeiro, merecem destaque a Lei n.
4169/2003 e a Lei n. 4178/2003.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-33, Fev./Maio 2009 30


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Atento a essa problemática, o Brasil, a partirda Constituição de 1988, consagrou o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de maneira nunca antes vista em
nenhum outro texto constitucional, pátrio ou estrangeiro. Considerando possuir 20% da água
potável do mundo e a maior biodiversidade do planeta, nada mais razoável que o
constituinte originário tivesse a preocupação de assegurar esse direito como um bem
essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações, uma vez que a
dignidade ambiental da pessoa humana é condição de eficácia para a consecução de todos
os demais direitos.

Assim sendo, o novo milênio se inicia impondo a consciência de que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado se constitui num arrendamento a ser transferido ao homem do
futuro. Cabe, portanto, ao homem do presente cuidar desse legado ambiental para que a
própria existência humana não seja ameaçada de extinção.

8. Referências

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em: http://www.abrelpe.org.br/. Acesso em: 23 maio. 2008.

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Acesso em: 23 maio 2008.

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junho de 1999. Estabelece que pilhas e baterias que contenham em suas composições
chumbo, cádmio, mercúrio e seus compostos, tenham os procedimentos de reutilização,
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Ativismo judicial e Estado democrático de direito

Leandro Ferreira Bernardo1

Sumário: 1. Introdução – 2. Limitação à atuação jurisdicional: submissão da atividade


judicante ao poder parlamentar legitimamente eleito - 2.1. Da regra clássica da tripartição do
poder e da representação da vontade soberana do povo - 2.2. Conflito de atribuições entre
judiciário e legislativo - 3. Exceções à necessidade de limitação da atividade judicial - 4.
Limitação ao ‘ativismo’ judicial na aplicação das políticas públicas - 4.1. Eficiência da
atuação legislativa x garantia dos direitos fundamentais - 4.2. Ainda a questão da segurança
jurídica - 5. Reserva do possível e garantia dos direitos fundamentais em juízo – 6. A
importância da súmula vinculante como elemento estabilizador das expectativas de direito -
7 . Considerações finais – 8. Referências

1. Introdução

O presente trabalho procura apresentar o tema referente às implicações decorrentes


da atuação da função judiciária no direito moderno, como garantidor dos direitos
fundamentais, frente ao princípio constitucional da separação de poderes.

A pertinência do tema proposto se justifica tendo em vista a sua atualidade,


sobretudo prática, nos estudos do direito constitucional moderno.

Buscaremos traçar uma exposição de várias teorias, de diferentes tendências,


referentes ao assunto, de modo a melhor compreender a forma de atuação do judiciário no
direito atual, suas limitações, bem como os instrumentos de controle daquela atividade.

Por fim, tentaremos buscar traçar um perfil ideal da atuação do judiciário pátrio frente
aos limites impostos pela estrutura democrática do Estado.

1
Procurador Federal com exercício na Procuradoria Federal em Maringá/Pr, Graduado em Direito pela
Universidade Estadual de Maringá/Pr, Especialista em Direito Constitucional pela PUC/PR.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-27, Fev./Maio 2009 1


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2. Limitação à atuação jurisdicional: submissão da atividade judicante ao poder
parlamentar legitimamente eleito

Atualmente, ante um legislativo que cada vez menos consegue traduzir de maneira
satisfatória os anseios da sociedade, e a aparente necessidade de respostas imediatas aos
problemas existentes, passa-se a perceber um maior grau de importância assumido pela
função jurisdicional.

No mesmo contexto, observa-se um fenômeno tratado por alguns autores como de


“judicialização dos direitos”, que nada mais é do que a busca por respostas imediatas para
fazer cessar uma situação de inaplicabilidade dos valores fundamentais do Estado.

Por outro lado, algumas questões precisam ser mais bem analisadas antes de se
imaginar que o judiciário é a solução para os problemas da sociedade moderna.

A proposta do presente capítulo é colocar em discussão uma situação que


aparentemente não tem recebido grande preocupação da doutrina, embora se constate a
importância prática do tema.

Igualmente, necessário se faz analisar os fundamentos sobre os quais se ergueu a


sociedade política para se ter condições de, ao menos, apontar as inconsistências e as
vantagens de se priorizar a função jurisdicional como poder último.

2.1. Da regra clássica da tripartição do poder e da representação da vontade


soberana do povo

A teoria do Estado liberal do fim do século XVIII, que tem em Montesquieu um dos
seus mais importantes expoentes, se baseava na necessidade de que houvesse uma
ruptura com o antigo modelo absolutista de Estado – em que o soberano era o senhor de
todo o povo2.

Como opção àquele sistema, pois, o sistema liberal apresentava uma resposta que
se fundava em dois principais pilares, quais sejam: a limitação ao poder do Estado sobre o
indivíduo e a apresentação de instrumentos que traduzissem os anseios populares e, em
conseqüência, fizessem ser ouvidos pelo poder público, principalmente através de
parlamentares eleitos entre seus pares.

Nesse sentido, a função legislativa se apresentava com posição de destaque em


relação à judicial e a executiva, eis que estas últimas teriam como função principal a
aplicação dos ditames preestabelecidos por aquela primeira.

2
A respeito dos aspectos do Estado absolutista, vide TOLEDO, Cezar Arnaut; BERNARDO, Leandro Ferreira.
Virtù e Fortuna no pensamento de Maquiavel. Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, fev., 2002.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-27, Fev./Maio 2009 2


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Ao lado do surgimento deste modelo de forma de Estado, passa-se a ter o direito
como justificável somente como garantidor da soberania popular – representada
principalmente pela existência de legisladores escolhidos livremente pelo povo. Este é o
estado de direito, em que governantes e governados se submetem à “lei”.

Quanto mais aquele sistema acima apresentado funcionasse de forma harmônica,


mais o direito se apresentaria como sinônimo de justiça3.

Dentro daquela idéia central do modelo liberal, surge o pensamento de Habermas no


sentido de que:

O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as


transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de
ação. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo legislativo que,
por sua vez, se apóia no princípio da soberania do povo. Com o auxílio dos
direito que garantem aos cidadãos o exercício de sua autonomia política,
deve ser possível explicar o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir
4
da legalidade .

Este trecho do autor explica a relação cíclica de “causa – conseqüência” entre a


delegação de poderes deferida pela comunidade em favor de uma instituição estatal e o
poder vinculativo que as normas por esta proferidas geram para aqueles, respeitados os
limites em que se exerce aquele poder delegado. Ainda segundo Habermas, daí decorreria a
legitimidade do direito5.

Aí estão os principais fundamentos do Estado Democrático de Direito – que,


posteriormente teve agregado outro valor, qual seja, o valor do bem-estar social6 (meados do
século XX).

Por outro lado, tendo em vista a mudança das relações dos indivíduos com o Estado
e entre si, e a necessidade de respostas mais céleres para os problemas que lhes atingem,
uma vertente da teoria do estado moderno vêm buscando novos fundamentos e uma nova
divisão das funções estatais.

Não é em outro sentido que Häberle justifica a necessidade de uma revisão dos
fundamentos daquele Estado como acima exposto:
O tipo do Estado Constitucional ocidental livre e democrático não é, como
tal, imutável. Séculos foram necessários para se moldar o ‘conjunto’ dos

3
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. i, p. 184
4
Ibid., p. 116
5
HABERMAS, op. cit., p. 326.
6
Vide cap. III.

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elementos estatal e democrático, de direitos fundamentais individuais e, por
7.
fim, sociais e culturais, e o futuro continuará a desenvolvê-los

2.2. Conflito de atribuições entre judiciário e legislativo

No contexto acima apontado, discutiremos fundamentalmente aquelas teorias que


defendem o aumento do campo de atuação do judiciário.

Observe-se que o direito contemporâneo busca dar uma força normativa à


Constituição muito maior que no passado8, de modo que os comandos ali expressos possam
de fato guiar a função dos entes estatais.

Partidas deste pressuposto, observa-se certa tendência da doutrina em defender,


ainda que indiretamente, uma vinculação mais estreita do juiz à vontade da constituição, de
forma genérica, ainda que daí possa decorrer um afastamento dos comandos do legislador.

Segundo Ronald Dworkin, “(...) embora a questão de se os juizes seguem regras


possa parecer lingüística, na verdade ela revela preocupações que em última instância são
práticas9”.

Sem adentrar no mérito daquelas tendências teóricas, não se pode deixar de apontar
para os riscos que trazem para a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Primeiramente, observe-se que qualquer teoria que extraia do parlamento a


prerrogativa de criar normas em favor do judiciário atenta contra diversos valores fundantes
do estado democrático de direito10, dentre os quais destacamos os seguintes:

a) a perda do efeito da norma parlamentar

Nesse ponto, primeiramente se mostra necessário observar, assim como faz Jürgen
Habermas11, que o aumento da importância dada atualmente ao judiciário como regulador de
matérias que requereriam um tratamento legislativo ocorre em razão da pura inoperância de
um legislativo que não consegue agir a contento para aquelas atribuições a que é chamado.

Deve ser comedida a ação do juiz, de modo que não aja, ainda que a propósito de
cumprir a constituição, mas a despeito da legislação vigente (mesmo que não observada
qualquer inconstitucionalidade), em substituição ao legislador.

7
HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 1.
8
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991.
9
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 9.
10
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. ii, p. 173: “O pivô da atual crítica ao direito, num Estado
sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei
parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o princípio da separação dos poderes corre perigo”
(HABERMAS, ii, p. 173)”.
11
HABERMAS, id., v. ii, p. 183.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-27, Fev./Maio 2009 4


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Segundo John Rawls12, a constituição teria a função de eleger liberdades básicas, de
modo que quaisquer regramentos que não se enquadrassem naquele conceito deveriam ser
“definidos na etapa legislativa”13.

Desse modo, se torna incorreto que o juiz aplicasse o direito a despeito ou


contrariamente à lei sob a alegação de que se baseou em fundamentos constitucionais, se a
Constituição não prevê aquela regra.

A perda da norma produzida pelo parlamento traz conseqüências extremamente


nocivas à vida em sociedade, dentre as quais se destaca a ausência de segurança jurídica
(vide especialmente capítulo III).

b) extinção da harmonia entre poderes

O legislativo extrai sua legitimidade principalmente na forma em que os


parlamentares são escolhidos entre seus pares, por meio de eleição. Assim, existe – ou pelo
menos deveria existir - um controle popular sobre suas ações, p. ex., somente são eleitos
por aqueles que se identificam com os ideais propostos e somente serão reeleitos se não
agirem em conflito com os seus programas.

Ademais, tendo em vista que a sociedade é composta por diversos grupos e defende
valores distintos, presume-se que os parlamentares eleitos refletirão aquela diversidade, de
modo que as leis que vierem a aprovar traduzirão da forma mais perfeita, dentro dos regimes
existentes, a vontade do povo.

Estes – a existência do controle popular e a representatividade real da sociedade –


são os principais aspectos que garantem ao legislativo este papel de primazia.

Quando o juiz, seja o tribunal constitucional, seja um juízo ordinário, se apropria do


poder de estabelecer as regras vigentes – ainda que estas regras valham em cada situação
processual trazida em juízo – a despeito das normas em vigência, contribui-se para a ruptura
da harmonia entre as funções estatais (vide art. 2º da CF).

John Rawls entende que “o debate político procura concluir um acordo razoável14”.
Neste aspecto se observa quão incoerente se mostra a ‘justiça’ eleger certos valores quando
não discutidos e acordados minimamente. Caso se caminhasse nesse sentido, teríamos, aí,
uma situação de total ausência de legitimidade – eis que não eleitos pelo povo – e de
controle – tendo em vista que não se submetem a aprovação popular.

12
RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot, seleção, apresentação e glossário
Catherine Audard. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 192.
13
No capítulo seguinte serão melhor tratadas as situações em que se admite uma maior desvinculação do juiz
frente ao legislador.
14
RAWLS, op. cit., p. 343.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-27, Fev./Maio 2009 5


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Desse modo, seria demasiadamente perigoso confiar ao judiciário a eleição dos
princípios reitores do ordenamento jurídico15.

Robert Alexy apresenta a seguinte justificativa para o impasse acima referido, no


conflito entre democracia e jurisdição – especificamente a constitucional: considera-la (a
jurisdição constitucional) como “representação do povo16”.

Entretanto, entende-se que não seja possível vencer aquele obstáculo referente à
relação “representatividade – eleição – controle popular”; pelo menos não de uma forma
mais útil do que acontece quando se dá primazia ao legislativo.

Ao tratar da questão da legitimidade do tribunal constitucional na aplicação do direito


e suas limitações frente aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, expõe
Habermas que:

Se a Supreme Court tem como encargo vigiar a manutenção da constituição,


ela deve, em primeira linha, prestar atenção aos procedimentos e normas
organizacionais dos quais depende a eficácia legitimativa do processo
democrático. O tribunal tem que tomar precauções para que permaneçam
intactos os ‘canais’ para o processo inclusivo de formação da opinião e da
vontade, através do qual uma comunidade jurídica democrática se auto-
17
organiza .

Passamos, agora, a apresentar o pensamento crítico de Carl Schmitt a respeito de se


possibilitar um campo maior de atuação ao judiciário, inserido num regime democrático de
direito18.

Carl Schmitt19 em vários momentos adota o positivismo jurídico, como quando


condiciona a justiça aplicada pelo judiciário à observância da lei20.

15
Para Habermas, “Perante o legislador político, o tribunal não pode arrogar-se o papel de crítico da ideologia;
ele está exposto à mesma suspeita de ideologia e não pode pretender nenhum lugar neutro fora do processo
político” (HABERMAS, op. cit., v. ii, p. 343).
16
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Liv. do
Advogado, 2007. p.163.
17
HABERMAS, op. cit., v. i., p. 327.
18
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho, coordenação e supervisão
de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
Ainda que se tenha que grande parte do pensamento do autor – p. ex., a a respeito de que no Estado
contemporâneo a função executiva devesse ocupar a posição de primazia frente as demais funções e que a ele
caberia a função de guardião da Constituição – seja rechaçada pela ciência política moderna, tal como por
Habermas, não se pode deixar de ter em conta a importância de suas críticas lançadas no tocante ao assunto
objeto deste capítulo.
19
Ibid., p. 56: “No Estado de Direito, existe justiça somente como sentença judicial com base em uma lei”
20
Na sua obra, Schmitt aponta que: “A posição especial do juiz no Estado de Direito – sua objetividade, seu
posicionamento acima das partes, sua independência e sua inamovibilidade – baseia-se no fato de que ele
decide justamente com base em uma lei e de que sua decisão, em seu conteúdo, é derivada de uma outra
decisão de modo mensurável e calculável já contida na lei” (Ibid., p. 56-57).

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Influenciado, sobremaneira, pelo constitucionalismo norte-americano, o autor expõe
que “a independência dos juizes não tem, no Estado atual, de forma alguma o objetivo de
criar um titular da correta volição política, mas de delimitar e garantir uma esfera da justiça
vinculada à lei dentro de um ser estatal ordenado21”.

Embora se reconheça que, como dito acima, o autor tenha como parâmetro o
constitucionalismo norte-americano, em que há maior limitação ao alcance do controle
exercido pela jurisdição constitucional, não deixa de ser útil à análise crítica do nosso
ordenamento jurídico pátrio – como, também, a grande maioria dos países da tradição
românica.

Em outro ponto o autor critica as, então, novas teorias que nas primeiras décadas do
século XX já idealizavam a possibilidade de, em suas palavras

transferir a solução de todos os problemas simplesmente para um processo


judicial e desconsiderar por completo a diferença fundamental entre uma
decisão processual e a decisão de dúvidas e divergências de opinião sobre
22.
o conteúdo de uma determinação constitucional

Do mesmo modo, trata da judicialização das questões que deveriam estar afetas aos
órgãos políticos23. Igualmente, seu argumento rebate em vários aspectos aquela
necessidade, enxergada por alguns, de que o tribunal constitucional (onde se admita sua
função de guardião da Constituição) possua legitimidade integrante, ou seja, que os seus
membros possam refletir a diversidade de regiões, culturas e posições sociais.

Nesse aspecto, entende-se que o Tribunal Constitucional tem função primordialmente


jurídica. Solução contrária a isto retiraria do parlamento aquela importância de traduzir os
anseios sociais.

Nesse sentido, Carl Schmitt deixa claro o alerta lançado ao perigo que pode
representar a transferência de atribuições do legislativo ao judiciário.

Na ciência política norte-americana, Dworkin, dentre outos, aponta, também, quão


vantajosa é a primazia garantida ao legislativo, democraticamente eleito, como responsável
pela elaboração dos nortes da sociedade e quão prejudicial poderia ser deixar aquela
atribuição nas mãos de um poder judiciário24.

21
Ibid., p. 229.
22
Ibid., p. 5-6.
23
Vide capítulo III.
24
DWORKIN, op. cit., p. 133: “... o sistema político da democracia representativa” “funciona melhor que um
sistema que permite que juizes não eleitos, que não estão submetidos a lobistas, grupos de pressão ou a
cobranças do eleitorado por correspondência, estabeleçam compromissos entre os interesses concorrentes em
suas salas de audiência”

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Robert Alexy, da mesma forma, coloca como questão-chave, em sua teoria, as regras
que limitam o poder interpretativo da jurisdição (constitucional), de modo que não subverta o
sistema democrático25.

Observe-se que o sistema jurídico é composto de vários juízes, obedecidas as


normas de divisão de competências. Assim, necessário se torna apontar os principais efeitos
gerados pela relação “desvinculação da lei – multiplicidade de aplicadores do direito”26.

É patente que adviria de tal relação a total insegurança jurídica27 como efeito
primário, que acarretaria outros efeitos, inclusive de ordem econômica.

Não se pode descurar do fato de que sociedade atual é fundada, sobremaneira, no


fator econômico e que a insegurança jurídica traz efeitos perniciosos à sua manutenção. Não
se pode chegar ao radicalismo, como faz Ronald Coase28, de sobrepor o valor econômico
aos demais valores sociais, mas não se pode deixar de tecer tais preocupações para
aquelas conseqüências acima referidas29.

Segundo Dworkin, neste ponto:

Podemos argumentar (...) que a lei será economicamente mais eficiente se


os juizes forem autorizados a levar em conta o impacto econômico de suas
decisões; isso, porém, não responderá à questão de saber se é justo que
eles procedam assim, ou se podemos considerar critérios econômicos como
parte do direito existente, ou se decisões com base no impacto econômico
têm, por essa razão, um maior ou menor peso moral30.

Entende-se que a questão econômica é garantida de forma reflexa quando se


observa o valor da estabilidade do direito; mas não pode ser vista como valor primeiro.

25
ALEXY, op. cit., p. 162: “O problema da ponderação é o problema principal da dimensão metodológica da
jurisdição constitucional. O problema principal de sua dimensão institucional deixa formular-se na questão, como
a competência jurídica de um tribunal constitucional, de deixar sem validez atos do parlamento, pode ser
justificada. Com essa questão nós chegamos ao eterno problema da relação de jurisdição constitucional e
democracia”.
26
Nos capítulos seguintes será mais detalhadamente abordado o tema referente os efeitos danosos gerados pela
apropriação pelo judiciário do poder de eleger os valores reitores da sociedade política.
27
Refutamos a linha de raciocínio que parte da premissa de que não há direitos, mas, tão-somente, expectativas
de direito, e conclui, dessa forma, que é impossível se pretender a segurança jurídica. Seria como dissessem que
não existe, p. ex., o direito à vida, mas somente uma expectativa a tal e que por este motivo, não devemos
busca-lo. Aquela segurança jurídica é um valor que devemos buscar, ainda que não exista plenamente na
prática.
28
COASE, Ronald. The problem of the social cost. Journal of Law and Economics. Oct., 1960, p. 10: “pareceria
desejável que os tribunais entendessem as conseqüências econômicas das suas decisões e, à medida que isto é
possível sem criar demasiada incerteza sobre a própria posição legal, levassem em conta essas conseqüências
tomando as suas decisões (tradução nossa).
29
No direito pátrio, Fabio Ulhoa Coelho apresenta preocupação parecida:
“Exige-se do comercialista não só dominar conceitos básicos de economia, administração de empresas, finanças
e contabilidade, como principalmente compreender as necessidades próprias do empresário e a natureza de
elemento de custo que o direito muitas vezes assume para este (COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito
comercial. 13. ed. rev. e atual. de acordo com o novo código civil (Lei 10406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva,
2002, p. 24).
30
DWORKIN, op. cit., p. 11.

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3. Exceções à necessidade de limitação da atividade judicial

O Estado moderno, referido no capítulo anterior, surge como resposta ao


absolutismo, de forma a garantir maiores liberdades do cidadão frente ao Estado e com
maior participação deste nas decisões políticas (principalmente de forma indireta, por meio
de seus representantes).

Este período coincide com o fortalecimento da constituição – e do direito


constitucional –, eis que aquele documento político tinha como atribuição fundamental a
listagem de direitos e garantias individuais especialmente dirigidos como limite à atuação do
Estado, inclusive à atuação legislativa.

Posteriormente, principalmente a partir de meados do século XX, as constituições


dos Estados passaram a garantir, a par daqueles direitos à atuação negativa do Estado,
vários direitos considerados como fundamentais, geralmente relacionados a valores sociais
(trabalho, alimentação, moradia)31.

A importância da garantia daqueles direitos e garantias individuais, desde seu


surgimento, contou com a maior preocupação da ciência jurídica e, invariavelmente, o direito
sempre contou com instrumentos efetivos de se possibilitar a sua observância.

Por outro lado, ganhou força nas últimas décadas as teorias que buscam imprimir
uma maior eficácia aos direitos fundamentais positivos, especialmente aqueles sociais32.
Nesse sentido, são vários os argumentos que buscam justificar a imprescindibilidade de uma
plena aplicação dos direitos fundamentais previstos na constituição.

Extremamente relevante e positivo que o direito caminhe neste sentido, qual seja, o
de, cada vez mais, como instrumento para a realização de justiça que é, colocar as garantias
básicas de vida do homem no centro das discussões.

Tal fundamento justifica que, em determinadas situações o judiciário aja como


garantidor direto dos valores expressos na Constituição, ainda que conflitantes com a
vontade dos agentes políticos.

Poder-se-ia, neste ponto, nos apropriar da justificativa de Peter Häberle, segundo a


qual

o tipo do Estado Constitucional ocidental livre e democrático não é, como tal,


imutável. Séculos foram necessários para se moldar o “conjunto” dos

31
Na esteira de Sarlet e Alexy, não fazemos a relação direitos individuais – direitos à atuação negativa do estado
e direitos sociais – direitos à atuação positiva do Estado, eis que existem direitos individuais que exigem uma
necessária atuação do poder político e, da mesma forma, direitos sociais há que se contentam com a simples
abstenção estatal.
32
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Ver. atual, e ampl. Porto Alegre: Liv.
do Advogado, 2006.

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elementos estatal e democrático, de direitos fundamentais individuais e, por
33
fim, sociais e culturais, e o futuro continuará a desenvolvê-los .

A se acatar este fundamento, seria mais facilmente aceitável uma mudança das
regras entre as funções estatais, para que fossem “liberadas” ao judiciário maiores
liberdades na aplicação do direito constitucional, ainda que houvesse conflito entre a
vontade legislativa.

Fique claro que quando dizemos que há conflito entre a vontade explicitada pelo
parlamento e aquela exteriorizada pelo juiz não estamos nos atendo necessariamente à
situação de inconstitucionalidade, mas, também, da eleição de divergentes valores como
vetores no exercício de suas atribuições.

Jürgen Habermas apresenta interessante visão sobre o assunto, quando expõe que

existe uma mudança na conceitualização dos direitos fundamentais, que se


reflete na jurisprudência constitucional – uma mudança nos princípios de
uma ordem jurídica que garantem a liberdade e a legalidade da intervenção,
que sustentam os direitos de defesa e transportam inexplicavelmente o
conteúdo de direitos subjetivos de liberdade para o conteúdo jurídico
34
objetivo de normas de princípio, enérgicas e formadoras de estruturas .

Segundo aquele autor, a preocupação cada vez maior pelos direitos fundamentais
traz, necessariamente, mudança de conceitos, aplicação e interpretação do direito35.

A fim de possibilitar maior eficácia na aplicação dos direitos (especialmente os ditos


fundamentais), Dworkin apresenta interessante ponto de vista, no sentido de que seria
preferível (situação ideal) aos juizes aplicarem as regras disciplinadas pelo poder legiferante.
Por outro lado, segundo o autor, esta submissão não pode ser aplicada na prática quando os
juizes se vêem diante de uma situação onde, claramente, o legislador não logrou tratar
determinada situação jurídica. Em tal hipótese Dworkin prevê, inclusive, uma criação do
direito pelo órgão judicante36.

33
HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 1
34
HABERMAS, op. cit., p. 308.
35
A essa mudança correspondem, sob pontos de vista metodológicos, ‘conceitos-chave do direito
constitucional’(Denninger), tais como, por exemplo, o princípio da proporcionalidade, a reserva do possível, a
limitação de direitos fundamentais de terceiros, a protecao dos direitos fundamentais através de organização e
procedimentos etc”. Ibid., p. 308.
36
DWORKIN, op. cit., p. 128-129.
Observe que o autor situa sua doutrina dentro do contexto jurídico dos Estados Unidos, qual seja, o da common
law, em que tem fundamental importância a construção jurisprudencial como fonte do direito. É dentro desse
contexto que o autor apresenta a figura do juiz hercúleo: “Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz
filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios
jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico
construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria,
paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hercules (Ibid., p. 165)”.

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Outras teorias, menos radicais, vêem na interpretação constitucional a solução para a
melhor aplicação do direito. Para tais, não seria necessário – mas, antes, desaconselhável –
a criação de regras jurídicas pelo juiz; no entanto, este deveria interpretar a constituição de
modo a extrair a maior força normativa possível da norma constitucional37.

Segundo Konrad Hesse, não existiria autonomia da Constituição frente à realidade38.


Afere-se deste entendimento do autor que os valores eleitos pela constituição se sobrepõem
e vinculam os demais valores do Estado Democrático de Direito, tais como a separação
entre as funções estatais. Desse modo, se o legislador falha em não lhes garantir, seria
permitido o ativismo judicial.

Neste ponto, a teoria de Hesse se aproxima à de Habermas, segundo o qual:

se – impulsionados pelas atuais circunstâncias do compromisso com o


Estado social – pretendemos manter, não apenas o Estado de Direito, mas o
Estado democrático de direito e, com isso, a idéia da auto-organização da
comunidade jurídica, então a constituição não pode mais ser entendida
apenas como uma ‘ordem’ que regula primariamente a relação entre o
Estado e os cidadãos39.

Estas são as principais bases que excepcionariam a limitação do judiciário ante o


legislador. A partir deste momento, passa-se a tecer algumas considerações críticas a seu
respeito.

Em primeiro lugar, chama a atenção a teoria de Dworkin pelo fato de que, embora
admita a criação de regras jurídicas pelo juiz – situação em parte explicável pelo
ordenamento jurídico que toma por base, qual seja, o da common law –, exige, nas
situações acima referidas, que os juizes ajam “como se fossem delegados do poder
legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se
vissem diante do problema40.

Sob este aspecto, aparece a primeira grande objeção, consistente na necessidade de


se garantir a estabilidade jurídica. Entende-se que não seria necessário, nem mesmo
recomendável, a existência de juizes que criassem regras jurídicas – ainda que tais juízes se
aproximassem da figura hercúlea proposta por Dworkin – mas, sim, de juizes que apliquem
de forma racional o direito vigente.

37
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 22. “Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e
preservação da força normativa da Constituição”.
38
HESSE, op. cit., p. 14.
39
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 325.
40
DWORKIN, op. cit., p. 128-129.

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Ainda sobre a questão referente à estabilidade jurídica, não se pode deixar de fazer
referência sobre o que diz Rawls sobre a matéria:

Os fins da filosofia política dependem da sociedade à qual ela se dirige. No


caso de uma democracia constitucional, um dos seus fins mais importantes
consiste em oferecer uma concepção política da justiça que não se contente
com fornecer um fundamento à justaposição das instituições políticas e
sociais sobre o qual a opinião pública deva ficar de acordo, mas que
contribua também para garantir a sua estabilidade de uma geração à
outra41.

Dessa forma, será possível um conceito de justiça mais perfeito, quanto mais traduzir
a vontade geral e trazer estabilidade temporal.

Não destoa deste fundamento Habermas, para quem o direito traz uma tensão
natural entre facticidade e validade, no sentido de que (de forma resumida) a norma jurídica
somente pode ser considerada valida socialmente se respondesse à vontade geral. Para
este autor, aquela tensão somente encontra o ponto ideal quando consegue equilibrar o
“princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas42”

Por fim, entende-se que não há garantias existentes no ordenamento estatal que
garanta que a correção das decisões judiciais sem que sejam baseadas nos valores
traduzidos pelo legislador. Haveria, em tal situação, um grande risco de se formar um
desequilíbrio incontornável dentro da estrutura estatal.

4. Limitação ao ‘ativismo’ judicial na aplicação das políticas públicas

O presente capítulo, no mesmo sentido dos antecedentes, busca apresentar o tema


referente às implicações decorrentes da atuação do poder judiciário, no direito moderno,
como garantidor dos direitos fundamentais, frente ao princípio constitucional da separação
de poderes. Entretanto, pretende-se agora discutir as implicações quando tal ativismo se dá
em substituição aos programas de políticas públicas.

Assim, questão central diz respeito à possibilidade ou não da função jurisdicional –


mais que controlar a discricionariedade de escolha entre os valores políticos – eleger, de per
se, quais aquelas políticas devem prevalecer.

Superadas as teorias jusfilosóficas que pregavam a observância à legalidade estrita -


sobretudo a teoria positivista kelseniana e seus desdobramentos -, vive-se um novo

41
RAWLS, op. cit., p. 245.
42
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 245.

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momento em que os conceitos de democracia, direitos fundamentais e estado democrático
de direito se comunicam diuturnamente e, consequentemente, reformulam outros institutos
sociais, sempre visando os valores principais da sociedade, resumidos nos princípios da
liberdade e igualdade reais.

Exemplifica-se a questão central deste ponto com uma suposta situação em que o
juiz se utiliza das prerrogativas que o ordenamento lhe atribui e ordena a vinculação de
receitas do Estado para determinados fins. Suponha-se a situação em que, para garantir
determinado direito fundamental, o juiz extraia do orçamento global do governo uma “fatia”, a
qual não poderá ser utilizada por outro órgão.

Caso se utilize a situação existente no direito pátrio, constata-se que a Constituição


Federal determina, em seu art. 48, que compete ao Congresso Nacional, dispor sobre o
orçamento da União43.

Desse modo, surgiria, aí, um conflito de atribuições entre duas funções estatais.

4.1. Eficiência da atuação legislativa x garantia dos direitos fundamentais

Dois pontos que merecem uma observação crítica que entendemos preponderantes
neste ponto estão relacionados à harmonia entre as funções estatais e a necessidade de
analise da situação fática de cada nação e a eficácia da função legislativa.

Em relação ao primeiro ponto, sobre a matéria, um primeiro aspecto diz respeito à


questão no sentido de que o Estado Democrático de Direito necessita, para lograr
sobrevivência, que não haja, numa situação de normalidade, sobreposição de funções.

Já em relação à segunda questão, referente à inoperância do legislativo, necessário


se faz analisar a aparente inadequação do modelo de Estado dividido em distintos âmbitos
de poder – judiciário, legislativo e executivo – como um todo harmônico à realidade prática
de cada comunidade.

Pode-se exemplificar com o caso da sociedade brasileira, que possuí algumas


peculiaridades quando comparadas às estrangeiras.

Abrindo mão de uma análise mais complexa, é possível caracterizar o Estado


brasileiro como inserido dentro de uma comunidade gigantesca, com dezenas de milhões de
pessoas vivendo sobre um território de dimensões continentais, formado da miscigenação de

43
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o
especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente
sobre:
I - sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas;
II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e emissões
de curso forçado; (...)

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diversos povos, num período de tempo relativamente curto, quando comparado, p. ex., a
algumas civilizações milenares da Europa – este último fator concorreria para o agravamento
da existência de uma identidade pátria.

Não obstante a riqueza cultural que surge da soma dos fatores acima relatados, não
se pode deixar de observar alguns possíveis problemas, daí decorrentes, para a existência
de um Estado melhor organizado. De fato, aquela diversidade de origem e de cultura,
somada à imensa população dividida em uma grande extensão territorial podem ser
interpretados como fatores que, no mínimo, atrasariam a formação de um Estado mais
coeso. Some-se a isto a existência de um grande percentual de pessoas às margens de uma
educação de qualidade para poder melhor exercer sua cidadania.

Como reflexo daqueles fatores acima referidos, constata-se a existência de um


legislativo que não consegue representar a vontade popular – mesmo porque se torna
extremamente difícil encontrar aquela vontade popular em tais condições.

Talvez esta linha de raciocínio seja, de forma consciente ou não, um dos principais
fundamentos para justificar, no nosso país, a existência de um ativismo judicial, eis que
aquela situação daria maior legitimidade à atividade jurisdicional.

Outrossim, observe-se o pensamento de Dworkin:

O ponto é que minha teoria da decisão judicial atribui mais poder aos juizes
do que o positivismo e que deveríamos recomendar minha teoria somente
se (ou quando) estivéssemos convencidos de que queremos que os juízes
mais que os legisladores ou os outros funcionários, tenham este poder44.

O autor condiciona a defesa do ativismo judicial a uma necessidade dependente do


contexto fático de que o legislativo não consiga produzir o bem geral.

Por outro lado, é necessário analisar a sustentabilidade da lógica do ativismo judicial


– à medida que se passa a reduzir a importância do legislativo – em um contexto global e a
longo prazo. Torna-se necessário analisar as transformações daí decorrentes para a teoria
do estado democrático de direito e, consequentemente, para o bem-estar da população.

Neste ponto, a questão que se coloca é no sentido de se saber se uma polarização


da atividade legislativa pelo judiciário se sustentaria em longo prazo.

Para responder esta questão é imprescindível se ater, sobretudo, à situação


concreta, para, daí, pensarmos em uma resposta mais geral. Como conseqüência, conclui-
se, por exemplo, que as teorias européias que tratam do ativismo judicial, exemplificada

44
DWORKIN, op. cit., p. 553.

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pelos autores acima citados, devem ser, muitas vezes, recebidas com reservas antes de se
aplicar à situação brasileira.

Habermas apresenta de forma simples os fundamentos daquele estado democrático


de direito buscado na modernidade – inicialmente pela teoria liberal. Segundo o autor:

Somente na modernidade o poder político pode desenvolver-se como poder


legal, em formas de direito positivo. A contribuição do poder político para a
função própria do direito, que é a de estabilizar expectativas de
comportamento, passa a consistir, a partir deste momento, no
desenvolvimento de uma segurança jurídica que permite aos destinatários
do direito calcular as conseqüências do comportamento próprio e alheio.
Sob esse ponto de vista, as normas jurídicas têm que assumir a figura de
determinações compreensíveis, precisas e não-contraditórias, geralmente
formuladas por escrito; elas têm que ser públicas, conhecidas por todos os
destinatários; elas não podem pretender validade retroativa; e elas têm que
ligar os respectivos fatos a conseqüências jurídicas e regula-los em geral de
tal modo que possam ser aplicados da mesma maneira a todas as pessoas
e a todos os casos semelhantes45.

Ante esta compreensão do autor, a primeira questão que se impõe seria no sentido
de se descobrir se o judiciário alcançaria em algum momento a legitimidade de, não só dizer,
mas, também, criar o direito.

Interessante a divisão que faz Dworkin entre filosofias a serem defendidas para
justificar a atividade judicial (especialmente a constitucional) frente situações controversas
ou difíceis. Segundo o autor, aquelas filosofias se dividiriam em basicamente duas: a do
“ativismo judicial” e a da “moderação judicial”. O ativismo judicial sustentaria a necessidade
do judiciário se apegar aos princípios gerais estampados na constituição e, a partir daí,
direcionar a atividade judicante, ainda que a despeito de regras menos genéricas, previstas
pelo constituinte ou pelo legislador ordinário. Tal teoria daria ampla liberdade ao judiciário,
que teria como limite cláusulas vagas, de difícil conformação prática46.

Por outro lado, a teoria da moderação judicial caminha mais no sentido da tradição
positivista de maior vinculação à vontade do legislador. A lei passa a ser não só o limite, mas
também o fundamento à atividade jurisdicional47.

45
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 183.
46
DWORKIN, op. cit., p. 215.
47
Segundo Carl Schmitt, “a vinculação à lei, unicamente à qual o juiz está subordinado pelo art. 102, não significa
apenas o limite, mas verdadeira justificação para a liberdade da decisão (...)”. Continua o referido autor dizendo
que “... o problema do movimento do livre direito e da magistratura ‘criadora’ é, em primeiro lugar, um problema
constitucional (SCHMITT, op. cit., p. 29)”.

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Dworkin apresenta vantagens e problemas decorrentes da adoção de qualquer das
duas filosofias. Como aspecto positivo do ativismo – que implica em uma menor adequação
da tese conformista ou de deferência – poder-se-ia apontar uma maior agilidade na
aplicação do direito, tendo em vista que, em determinadas situações, o juiz teria melhor
sensibilidade para julgar as demandas de acordo com o espírito constitucional, ainda que
isso implicasse em choque com a vontade da lei infraconstitucional.

Por outro lado, como fundamento de maior liberdade à atividade jurisdicional, o


ativismo poderia implicar em excessos de poder. Nas palavras de Dworkin, “o ativismo
judicial envolve riscos de tirania (...)48”. Sob tal aspecto, ganha força a teoria da deferência.

Ante os argumentos do autor, ainda que se pudesse defender os argumentos do


ativismo judicial, os fundamentos que o rechaçam parecem muito mais fortes, pois poderiam
levar à insustentabilidade do Estado e, consequentemente, do fundamento de existência do
próprio judiciário.

Todavia, atualmente são defendidas teorias que não apontam para posições
extremadas como a de Dworkin – ativismo ou moderação judicial –, mas, pelo contrário,
tentam justificar uma maior liberdade judicial, sem que haja rompimento com a ordem
estatal. Dentre tais teorias, merece especial referência aquela defendida por Robert Alexy49.

Sua teoria dos princípios “possibilita um caminho intermediário entre vinculação e


flexibilidade50”. Alexy parte do pressuposto de que a constituição possui vários valores que
balizam a atividade jurisdicional. Segundo o autor, o juiz, ao aplicar o direito, deve ponderar
aqueles valores, de modo a atingir uma solução mais justa ao caso concreto.

Atualmente, diversos trabalhos publicados no direito pátrio fundamentam a


necessidade de um maior ativismo judicial na referida teoria de Robert Alexy.

Habermas, por outro lado, apresenta importante crítica sobre os parâmetros trazidos
pela teoria de Alexy de interpretação e aplicação do direito. Segundo aquele, a proposta de
Alexy “consiste em interpretar os princípios transformados em valores como mandamentos
de otimização, de maior ou menor intensidade. Essa interpretação vem ao encontro do
discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre juristas, o qual, no entanto, é frouxo51”.

Embora Habermas trate a teoria da ponderação como uma defesa sem limites ao
ativismo judicial, não se pode deixar de fazer referência às palavras do próprio Alexy, em
interessante e rara análise do direito brasileiro, quando afirma que:

48
DWORKIN, op. cit., p. 225.
49
O presente trabalho não tem o intento de esgotar a obra de Alexy (nem de qualquer outro autor), possuidora de
grande riqueza de fundamentos. por outro lado, a simples referência à sua teoria da ponderação já traz novos
pontos de debate a respeito do assunto tratado no presente capítulo.
50
ALEXY, op. cit., p. 68-69.
51
HABERMAS, op. cit., v. i, p.315.

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Em uma constituição como a brasileira, que conhece direitos fundamentais
numerosos, sociais generosamente formulados, nasce sobre esse
fundamento uma forte pressão de declarar todas as normas não plenamente
cumpríveis, simplesmente como não-vinculativas, portanto, como meras
proposições programáticas. A teoria dos princípios pode, pelo contrário,
levar a sério a constituição sem exigir o impossível. Ela declara as normas
não plenamente cumpríveis como princípios que, contra outros princípios,
devem ser ponderados e, assim, estão sob uma ‘reserva do possível no
sentido daquilo que o indivíduo pode requerer de modo razoável da
52.
sociedade

No trecho acima referido, o autor prevê limites à atividade jurisdicional, embora o


limite apontado não diga respeito à ausência de poder de determinação das políticas
públicas por parte do judiciário – o autor faz referência apenas ao limite do possível.

Entretanto, não se pode presumir que a questão referente à limitação do ativismo


judicial passou desapercebida por Alexy. Pelo contrário, em outro momento, diz o autor que
“Então, contudo, aparece um novo problema: a relação de tensão entre direitos
fundamentais e democracia53”.

Extrai-se da passagem acima que o autor leva em conta a relação entre a


necessidade de se proteger os mais importantes direitos garantidos pelo sistema jurídico e a
questão da legitimidade na criação do direito.

Aqui voltamos ao exemplo citado no início do capítulo, referente à invasão de


competência legislativa orçamentária pelo juiz para garantir determinado direito à saúde.

Habermas, mais uma vez, aponta um aspecto determinante para referida questão:

Orientada por normas fundamentais, a jurisprudência precisa voltar seu


olhar, normalmente dirigido para a historia institucional da ordem jurídica,
para problemas do presente do futuro. Icenborg Maus teme, de um lado, que
a justiça intervenha em competências legislativas para as quais ela não
possui uma legitimação democrática e que ela promova e confirme, de outro
lado, uma estrutura jurídica flexível, a qual vem ao encontro da autonomia
dos aparelhos do Estado – de tal modo que a legitimação democrática do
direito também pode ser solapada por este lado54.

Habermas aponta outros aspectos que lhe faz rechaçar o ativismo judicial
peremptoriamente, dentre os quais se destaca os seguintes: a) interesse público na

52
ALEXY, op. cit., p. 68-69.
53
Ibid., p. 96.
54
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 306.

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coerência interna do direito55; b) relativo distanciamento do direito em relação à política56; e
c) direcionamento ao autoritarismo quando o judiciário é conduzido pela preliminarmente
pelos valores constitucionais57.

4.2. Ainda a questão da segurança jurídica

Não se pode deixar de dar um especial enfoque à questão da segurança jurídica e


sua íntima relação com a manutenção da organização social dentro de um determinado
Estado.

Mais uma vez somos levados a citar interessante trecho da obra de Habermas:

Em geral, os perigos da sociedade de riscos ultrapassam as capacidades


analíticas e de prognose dos especialistas e a capacidade de elaboração,
vontade de ação e velocidade de reação da administração encarregada de
prevenir os riscos; por isso, os problemas da segurança jurídica e da
submissão à lei, existentes no Estado social, se agudizam dramaticamente58.

O autor constata algo que parece ter recebido pouco valor dos contemporâneos
estudiosos do direito: o aumento da preocupação do ser humano com os riscos sociais e a
relação que o direito pode ter para a redução dos riscos das relações sociais.

De fato, na sociedade global o aspecto econômico tem demasiada importância na


existência das organizações políticas locais, embora não seja o valor preponderante59.
Assim, p. ex., de forma geral, aquelas sociedades em que a economia está bem estruturada
possui maiores condições de manter circulação de valores dentro de sua área de
abrangência; como conseqüência, aquela circulação de dinheiro pode “aquecer” sua
atividade econômica; aumenta-se a taxa de emprego e, por resultado, um maior acesso aos
bens de consumo. Cria-se uma situação de maior bem-estar social. Não é possível, assim,
que deixemos de analisar o impacto que o direito pode gerar a esta atividade econômica.

As relações econômicas que se dão entre pessoas, empresas e até mesmo entre
diferentes países necessitam de regulamentação que, via de regra, seja observada por todas
as partes envolvidas. Tome-se o exemplo de hipotética empresa estrangeira atuante na área
de construção civil de estradas. Suponhamos que referida empresa queira investir sua força
produtiva no Brasil, para a construção de uma malha rodoviária.

55
HABERMAS refuta o desprezo moderno pela segurança jurídica quando afirma que: “O interesse público na
uniformização do direito destaca uma característica pregnante na lógica da jurisprudência: o tribunal tem que
decidir cada caso particular, mantendo a coerência da ordem jurídica em seu todo (Ibid., p. 295)”.
56
“No Estado social, o direito não pode diluir-se em política, pois, neste caso, a tensão entre facticidade e
validade, que lhe é inerente, bem como a normatividade do direito, se extinguiriam (Ibid., v. ii, p. 171)”.
57
“Ao deixar-se conduzir pela idéia de realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito
constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instancia autoritária (ibid., v. i, p. 321)”.
58
Ibid., v. i, p. 176.
59
SCHMITT, op. cit., p. 118: “Em qualquer Estado moderno, a relação do Estado com a economia compõe o
verdadeiro objeto das questões de política interna imediatamente atuais”.

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Imagine que tal empresa, após cumprir todos os requisitos que lhe haviam sido
exigidos, inicia a construção de uma das estradas e é surpreendida por diversos
requerimentos de embargos à obra acatados pelo judiciário. Como conseqüência,
certamente haverá um custo maior à empresa, não previstos e nem previsíveis inicialmente.

Aquela ausência de segurança jurídica enfrentada pela empresa acima referida no


caso hipotético poderia ter como conseqüência, p. ex., o desestímulo à atividade empresarial
no país ou o ingresso de empreendimentos externos. Este efeito é conhecido como custo-
direito60

Deste entender não destoa Ronald Coase, segundo o qual “a delimitação inicial de
direitos legais realmente tem um efeito na eficiência com a qual o sistema econômico
funciona. Um acordo de direitos pode ocasionar um maior valor de produção do que algum
outro61”.

Ainda que não entendamos a tese defendida por Coase – de preponderância do


econômico sobre os demais valores sociais – a que mais se coaduna com o desejável, não
se pode deixar de levar em consideração a sua teoria especialmente como crítica ao sistema
atual de incerteza jurídica.

Ronald Dworkin, por outro lado, parece dar menor atenção à questão da segurança
jurídica e parece buscar justificar a aplicação do direito segundo valores utilitaristas de um
maior bem-estar médio62.

Interessante é o comentário de Ronald Dworkin, abaixo transcrito. Para o autor:

Se o governo erra do lado do indivíduo, simplesmente paga um pouco mais


em eficiência social do que deveria pagar; em outras palavras, paga um
pouco mais da mesma moeda que já tinha decidido gastar. Se, no entanto, o
governo erra contra o indivíduo, infringe-lhe um insulto que, para ser evitado,
envolveria um custo ainda maior em termos de eficiência social, de acordo
63
com as ponderações do próprio governo .

Assim, para Dworkin, em eventual conflito entre os valores da garantia dos direitos
fundamentais e da segurança jurídica aquele deve prevalecer, em regra. Contudo, do
exemplo citado pelo autor, poder-se-ia questionar se em eventual conflito entre qualquer

60
COELHO, op. cit., p. 24.
61
COASE, op. cit., p. 8. Tradução nossa para o original em inglês: “In these conditions the initial delimitation of
legal rights does have an effect on the efficiency with which the economic system operates. One arrangement of
rights may bring about a greater value of production than any other. .
62
Segundo DWORKIN, op. cit., p. 494-495: “Coase afirmou que, se desconsiderarmos os custos das transações,
não fará diferença alguma para a eficiência geral da alocação de recursos o fato da responsabilidade contratual
ou de delitos civis incidir sobre uma ou outra das partes de uma transação ou de um fato, embora certamente
faça muita diferença para as partes”.
63
DWORKIN, op. cit., p. 307.

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outro valor que não fundamental e a observância da segurança jurídica, este poderia ser
subjugado.

Exemplifica-se com o caso acima referido da empresa construtora de rodovias para o


Estado. Mesmo após ter cumprido as obrigações legais, será que poderia ver sua obra
embargada para resguardar interesses que o juiz entenda que seja de observação
obrigatória. Seria o caso, p. ex., em que o juiz entenda que o governante não poderia
ordenar despesa tão vultuosa, eis que poderia ser aplicada em outras searas, tal como na
reforma agrária.

Entende-se que Dworkin, ainda que admita o ativismo judicial, limita-o a


determinadas situações extremas, como a defesa dos direitos fundamentais. Assim, mesmo
para este autor, o ativismo judicial não possui aplicação irrestrita. Pelo contrário, a regra
deveria ser a da observância das regras pré-estabelecidas.

Embora seja utilizado o pensamento de Dworkin para reiterar o entendimento exposto


no presente trabalho no sentido de que a segurança jurídica é pressuposto para existência
do estado democrático de direito tal como é conhecido, verifica-se que em diversos trechos
aquele autor deixa transparecer uma maior liberdade à atividade judicial na aplicação do
direito.

Observe-se que, quando o judiciário passa a assumir um valor político (extra-


jurídico), como, p.ex., quando passa a conceder benefícios de seguridade social a pessoas
fora dos critérios estabelecidos pela lei, tal situação concorre para a criação, na consciência
coletiva, de que nem sempre as leis (especialmente as restritivas de direitos) são e devem
ser obedecidas. Diretamente há uma afronta ao estado democrático – pois tem importância
reduzida a decisão tomada pelos representantes eleitos pelo povo – de direito – pois não há
submissão do julgador e as pessoas passam a crer nessa faculdade.

Além do mais, não se pode crer que o judiciário consiga traduzir melhor as
necessidades e anseios da sociedade do que as funções essencialmente políticas.

Neste ponto, John Rawls faz incontornável observação retirada da análise histórica
de que até hoje não foi possível a qualquer sociedade política reunir de forma inconteste
pelos cidadãos seus valores direcionadores.

Segundo Rawls:

Nestes últimos dois séculos, aproximadamente, o desenvolvimento do


pensamento democrático mostrou que, na verdade, não existe concordância
sobre o modo de organizar as instituições sociais básicas de maneira que
elas respeitem a liberdade e a igualdade dos cidadãos, considerados como
pessoas morais. Não existe, expresso de maneira que reúna a aprovação

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geral, um acordo satisfatório a respeito das idéias de liberdade e de
igualdade implícitas na cultura pública das democracias64.

Dessa forma, parece incabível a defesa do ativismo judicial como solução para os
impasses da sociedade contemporânea, eis que não há como se aferir se, de fato, a sua
razão de decidir, quando destoada da lei criada pelo parlamento, seja a mais correta.

Por outro lado, não se pode deixar de analisar a situação fática e traçar comparações
entre a efetividade do legislativo nacional e aquela apresentada por outros países, com
condições distintas das nossas, em que exista uma atuação a contento do parlamento, e não
de forma insuficiente.

Ainda assim, embora a função jurisdicional seja tentada a agir a despeito dos valores
democraticamente criados pelo parlamento e elegendo valores políticos a par dos
governantes, os malefícios para a manutenção da organização social como conhecida na
atualidade seriam incalculáveis.

5. Reserva do possível e garantia dos direitos fundamentais em juízo

No capítulo anterior tratamos de uma situação hipotética em que o juiz determinasse


que fosse resguardada determinada parte do orçamento para a garantia dos direitos dos
cidadãos, como, p.ex., à saúde.

Tratamos dos limites que devem balizar a atividade do juiz e os riscos de invasão
daquela função nas atividades eminentemente políticas, em especial a executiva.

Agora passa-se a analisar um específico aspecto referente à limitação de ordem


prática às teorias que apregoam um mais ilimitado ativismo judicial.

Naquele exemplo citado acima, um primeiro questionamento que se põe é de saber


se para o fim de garantir o direito à saúde de um grupo de indivíduos, o juiz pode
comprometer o orçamento de uma pessoa política.

Antes mesmo de responder a esta questão, necessário se faz proceder à divisão dos
direitos fundamentais propostos pela doutrina, qual seja, aquela que se dá entre direitos
negativos e os direitos prestacionais.

De forma sintética, de acordo com aquela teoria, os direitos fundamentais negativos


são aqueles que se satisfazem com a simples não-interferência de terceiros, inclusive o
Estado. Em regra, estão elencados no rol dos direitos individuais. Exemplo seria o direito à
liberdade de locomoção. A violação aos direitos negativos se dá com uma atitude positiva de

64
RAWLS, op. cit., p. 49.

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limitação. A atividade do Estado, nestes casos, deve se limitar a que ninguém tenha seu
direito violado por ninguém.

Já os direitos fundamentais prestacionais são os que exigem uma atitude positiva do


Estado. Em regra estão previstos no rol dos direitos sociais. Cite-se como exemplo o direito
à saúde.

Ronald Dworkin admite a possibilidade de existência absoluta dos direitos


fundamentais negativos. Fundamenta no sentido de que não há grandes dispêndios públicos
para a garantia efetiva desses direitos, eis que não exigem uma atitude positiva do Estado.

Segundo o autor:

Os direitos também podem ser absolutos: uma teoria política que considera
absoluto o direito à liberdade de expressão não aceitará nenhuma razão
para que não se assegure a todos os indivíduos a liberdade por ela exigida;
65
isto é, nenhuma razão a não ser a impossibilidade.

De fato, ainda que possa parecer excesso de generalização afirmar que os direitos
fundamentais negativos são absolutos – não podemos afirmar que não existe gastos
públicos para sua manutenção, eis que as forças de segurança e as funções essências à
justiça tem seu fundamento na garantia da aplicação do direito, o que gera dispêndios aos
cofres públicos66 – estes direitos não apresentam grandes problemas referente aos limites
orçamentários.67

Os grandes questionamentos no tocante à possível limitação orçamentária, sem


dúvida, se colocam em relação aos direitos prestacionais.

Afirma Robert Alexy que “existe não só o perigo de um demasiado pouco em direitos
fundamentais, mas também o de um em demasia e, como institucionalização da razão, eles
estão, como a razão, bem genericamente, sempre ameaçados pelos demônios da
irracionalidade.” 68

Segundo o autor, o problema da “reserva do possível” é uma questão real que deve
ser encarada. Segundo explica, os direitos fundamentais devem ter aplicação numa
graduação tão alta quanto lhe permitir as possibilidades de fato do Estado.69

65
DWORKIN, op. cit., p. 144.
66
SARLET, op. cit., p. 299: “É justamente nesse sentido que deve ser tomada a referida ‘neutralidade’
econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos
fundamentais na condição de direitos negativos) e a efetividade naquilo que depende da possibilidade de
implementação jurisdicional não tem sido colocada na dependência da sua possível relevância econômica”.
67
Segundo SARLET, id., p. 200: “... seguimos convictos (...) que para o efeito de se admitir a imediata aplicação
pelos órgãos do Poder Judiciário, o corretamente apontado ‘fator custo’ de todos os direitos fundamentais, nunca
constituiu um elemento impeditivo da efetivação pela via jurisdicional (no sentido pelo menos da negativa da
prestação jurisdicional) quando em causa direitos subjetivos de conteúdo ‘negativo’”.
68
ALEXY, op. cit., p. 14.
69
ALEXY, op. cit., p. 110.

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De outro lado, Ingo Wolfgang Sarlet, ao reconhecer a existência da reserva do
possível como limite à garantia dos direitos fundamentais70, expõe que:

A reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda sua


complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais,
mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia
dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos,
quando se cuidar da invocação – observados sempre os critérios da
proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os
direitos – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o
71
núcleo essencial de outro direito fundamental.

A reserva do possível vem, assim, representar mais um ponto limitador à liberdade


jurisdicional. Não cabe ao juiz eleger as políticas públicas a serem aplicadas pelo Estado no
decorrer dos anos. Por outro lado, quando age deste modo temerário, concorre para o
desequilíbrio daquelas políticas, de modo a gerar mais prejuízos do que benefícios à
sociedade.

6. A importância da súmula vinculante como elemento estabilizador das expectativas


de direito

A Emenda Constitucional no. 45, de 30 de dezembro de 2004, conhecida como


apelidada de Reforma do Judiciário, trouxe dois novos institutos com a intenção nítida de
estabelecer maior controle sobre as atividade jurisdicional. Trata-se da criação do Conselho
Nacional de Justiça – órgão externo à estrutura do judiciário, que passou a ter, dentre outras,
a função de fiscalização sobre possíveis extrapolação de atribuições – e da instituição da
súmula vinculante, que será objeto do presente capítulo.

Passou a dispor o art. 103-A:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por


provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

70
SARLET, op. cit., p. 302-303. Reconheça-se que o autor prevê a necessidade de uma maior discussão a
respeito do limite representado pela reserva do possível à garantia dos direitos fundamentais.
71
Ibid., p. 302.

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§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de
normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos
judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão
idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação,


revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que
podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula


aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo
Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou
cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida
com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

A súmula vinculante aparece no sistema jurídico pátrio como resposta à existência de


diversos entendimentos judiciais sobre questões idênticas e, consequentemente, como
necessidade de se garantir maior garantia nas relações jurídicas.

Pode ser considerada, igualmente, uma resposta ao ativismo judicial dos diversos
juízos espalhados pelo país, tendo em vista que passa a concentrar no Supremo Tribunal
Federal o poder de lhes vincular obrigatoriamente o entendimento da questão constitucional.

O estabelecimento de um entendimento vinculante a todos os juízos tem alguns


efeitos nocivos à vida social, como a limitação de maiores debates e o retardamento de
possíveis mudanças de entendimento pelo próprio STF. De fato, a súmula vinculante
concorre para um “congelamento” do entendimento jurisprudencial, fato que não é de todo
desejável.

Observe-se o pensamento de Habermas ao tratar do fundamento legitimador da


regra da maioria no estado democrático de direito. Segundo o autor:

As reservas contra decisões da maioria, que têm conseqüências


irreversíveis, apóiam-se na interpretação segundo a qual a minoria
inferiorizada só dá o seu consentimento e a autorização para a maioria, se
ficar assegurada a possibilidade de que ela possa vir a conquistar a maioria
no futuro, na base de melhores argumentos, podendo assim modificar a
decisão ora tomada (...). Esta é, todavia, uma condição necessária para que
a regra da maioria não subtraia a força legitimadora de um processo de
argumentação que deve fundamentar a suposição de correção de decisões
falíveis.72

72
HABERMAS, op. cit., v. i, p. 224.

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Embora o autor trate daquela legitimação no âmbito do legislativo, podemos traçar
algum paralelo à situação do judiciário.

Pode ocorrer que determinado entendimento jurisprudencial, por mais arbitrário e


incorreto que possa parecer, encontre acatamento pelos cidadãos pelo fato de que aquela
decisão sempre poderá ser alterada pelo tribunal hierarquicamente superior que poderá se
fundar em melhor interpretação (ou até mesmo pelo juízo inferior, quando altera seu
entendimento a favor daquele aparentemente mais sensato).

A súmula vinculante inviabiliza este amplo e irrestrito debate sobre qual o melhor
entendimento deva prevalecer.

Por outro lado, oportuno o entendimento de Radbruch, citado por Robert Alexy, de
que no atual contexto aquele instrumento surge como um “mal necessário” para garantir a
segurança jurídica e, consequentemente, a harmonia entre as funções estatais.

De acordo com aquele primeiro autor “o conflito entre justiça, portanto, a correção
quanto ao conteúdo, e a certeza jurídica, sem dúvida, fundamentalmente, deve ser
solucionado a favor da certeza jurídica, mas isso não vale ilimitadamente.” 73

Enquanto houver um elevado risco de um desenfreado ativismo judicial, a súmula


vinculante se fará necessário como instrumento de estabilização. Por outro lado, somente as
contingências do futuro dirão se algum dia aquele instrumento se tornará desnecessário.

7. Considerações finais

No presente trabalho buscamos expor algumas teorias que merecem ou mereceram


a atenção da comunidade jusfilosófica nos últimos tempos.

Antes de apresentar conclusões fechadas sobre os temas expostos, preferimos


suscitar a discussão, tudo com vistas a contribuir ao fortalecimento da democracia.

Além disso, independente das correntes filosóficas adotadas por cada cidadão,
buscou-se tratar de questões que parecem estar mais próximas de um suposto senso
comum, ainda que muitas vezes não observado – como buscamos mostrar, p.ex., no caso
pátrio.

Neste ponto, irretocável o pensamento de John Rawls, para quem:

O papel das instituições que fazem parte da estrutura básica é garantir


condições justas para o contexto social, pano de fundo para o desenrolar
das ações dos indivíduos e das associações. Se essa estrutura não for

73
ALEXY, op. cit., p. 31-32.

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convenientemente regulada e ajustada, o processo social deixará de ser
justo, por mais justas e eqüitativas que possam parecer as transações
particulares consideradas separadamente.74

Assim, é necessário que “a estrutura básica” da organização estatal seja bem


definida e delimitada em suas funções, para garantia de sua própria manutenção.

Por outro lado, é evidente a necessidade cada vez mais sentida nos estados de se
dar maior efetividade possível aos valores mais caros estabelecidos nas suas constituições75
e muitas vezes o choque entre os poderes constituídos pode ser inevitável.76

Por fim, entende-se que uma sociedade formada por cidadãos realmente
interessados nas questões públicas tende a ter as funções políticas mais representativas, de
modo que tais funções consigam traduzir seus interesses individuais e coletivos.77 Caso
contrário, passaremos a confiar em um “poder judiciário” que não deveria ter esta atribuição.

Por conseqüência, não podemos partir do pressuposto utilizado por Lassale78 no


sentido que a ordem jurídica apenas reflete e protege o poder existente de fato numa
sociedade. Consequentemente, não podemos partir do pressuposto de que o legislativo
atuará sempre abaixo do mínimo exigido e que as deformidades jurídicas devem ser
corrigidas pelo judiciário, sob pena de perversão de todo o sistema democrático e, quiçá, do
fundamento da existência de um Estado.

74
RAWLS, op. cit, p. 13-14.
75
HESSE, op. cit., p. 32: “A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou
um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como
de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a nós”.
76
HABERMAS, op. cit, v. i, p. 308.
77
RAWLS, op. cit, p. 372: “Uma maioria que persista ou uma aliança duradoura de interesses bastante sólidos
podem fazer da constituição o que quiserem”.
78
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. p. 17: “Esta é,
em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação”.
No Brasil, uma rara radiografia da ordem jurídica de meados do século XIX é apresentada por FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15 ed. rev. São Paulo:
Global, 2004. p. 513. Em um exemplo pitoresco, escreveu o autor: “O direito de galopar ou esquipar ou andar a
trote pelas ruas da cidade repita-se que era exclusivo dos militares e milicianos. O de atravessa-los montados
senhorialmente a cavalo era privilégio do homem vestido e calçado à européia”. O exemplo é tirado da antiga
Recife do século XIX, num momento em que passava por um processo de “reuropeização” e aversão aos
costumes da terra. Por óbvio, aquelas proibições existentes naquela sociedade tinha destinatário certo, o negro,
com suas culturas, costumes e ausência de condições econômicas de se adequar aos padrões de vestimenta
exigidos.

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8. Referências

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto


Alegre: Liv. do Advogado, 2007.

COASE, Ronald. The problem of the social cost. Journal of Law and Economics. oct.,
1960.

COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito comercial. 13. ed. rev. e atual. de acordo com o
novo código civil (Lei 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento


do urbano. 15 ed. rev. São Paulo: Global, 2004.

HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de


Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.


Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris,


2007.

RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot seleção, apresentação


e glossário Catherine Audard. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Ver. atual, e ampl.
Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2006.

SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho


coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

TOLEDO, Cezar Arnaut; BERNARDO, Leandro Ferreira. Virtù e Fortuna no pensamento de


Maquiavel. Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, fev., 2002.

Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 93, p.01-27, Fev./Maio 2009 27


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