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FGV DIREITO SP

Law School Legal Studies Research Paper Series

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TRIBUTAÇÃO DE STREAMING: a próxima guerra fiscal e concorrencial
Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira1

Resumo: O presente artigo objetiva analisar a tributação do streaming de vídeos no Brasil e possíveis
consequências fiscais e concorrenciais decorrentes da premissa de que o tributo correto a incidir sobre
a atividade seja o ISS, item 1.09 da lista de serviços acrescido pela LC 157/2016. Como a regra geral
é de que o ISS é devido no local do estabelecimento prestador, isso implicaria que todo o ISS de
Streaming no Brasil iria para apenas um único Município. Fato que poderá desencadear um
acirramento das desigualdades regionais e uma guerra fiscal. O artigo sugere então soluções para a
tributação ser feita de forma mais justa inspirada em parâmetros internacionais de tributação de
consumo de bens e serviços digitais. Aborda-se ainda o esvaziamento do ICMS comunicação e a
possível violação à livre concorrência no mercado de TV por assinatura e o serviço de streaming,
dada a alta diferença tributária entre os setores.

Palavras chave: Tributação; streaming de vídeo; guerra fiscal

STREAMING TAXATION: the next tax and competition war

Abstract: This article aims to analyze the taxation of video streaming in Brazil and possible tax and
competitive consequences arising from the premise that the correct tax to be levied on the activity is
ISS, item 1.09 of the list of services added by LC 157/2016. As the general rule is that the ISS is due
at the location of the provider establishment, this would imply that the entire ISS for Streaming in
Brazil would go to only a single Municipality. This fact could trigger a worsening of regional
inequalities and a fiscal war. The article then suggests solutions for taxation to be done in a more just
manner inspired by international parameters for taxing the consumption of digital goods and services.
It also addresses the emptying of ICMS communication and the possible violation of free competition
in the pay TV market and the streaming service, given the high tax difference between the sectors.

Keywords: Taxation; Video Streaming; fiscal war

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 e as medidas de isolamento social adotadas ao redor do mundo aceleraram


de forma exponencial o crescimento da economia digital. A impossibilidade de momentos de lazer
em cinemas, teatros, viagens e afins incrementou de forma significativa a utilização do streaming de
vídeos como uma das principais formas de lazer dentro dos lares e uma importante forma de
transmissão de conteúdo e comunicação. O streaming é por definição:

1
Procuradora do Distrito Federal, Mestranda do Mestrado Profissional em Direito Tributário da FGV Direito SP,
Especialista em Planejamento Tributário pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET

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“a tecnologia que permite transmissão de dados e informações usando a rede de
computadores, de modo contínuo [...] sem necessidade de que o usuário realize download dos
arquivos a serem executados”.
[...] Desse modo, esta tecnologia permite a transferência de áudio e vídeo em tempo real sem
que o usuário conserve uma cópia do arquivo digital em seu computador, e é exatamente nesse
ponto que reside a mudança de paradigma, pois, diferentemente do que acontecia há poucos
anos, o que importa é o acesso, e não mais a propriedade ou a posse de mídia física [...] ou
virtual. 2

O foco do presente artigo consistirá em analisar os desafios de tributar a atividade do streaming de


vídeos, mais especificamente de plataformas como Netflix, Amazon Prime, Disney Plus, Telecine
Play, Youtube, Globoplay e afins. Será analisado ainda como as decisões tomadas pelas políticas
tributárias afetam a estruturação dos negócios, a concorrência e o planejamento tributário das
empresas.

Tomando por base a definição acima do que seria o streaming de vídeo, muito já se debateu sobre
qual seria o tributo correto a incidir sobre essa atividade, se o ISS, o ICMS comunicação ou nenhum
dos dois, para aqueles que consideram inexistir comunicação e tampouco serviço, já que caracterizam
serviço como obrigação de fazer.

Nada obstante, justamente pela existência de farto debate qualificado3 sobre o assunto, este trabalho
não adentrará nessa discussão. Partiremos, por motivos meramente acadêmicos, sem compromisso
com a assunção de que essa seria a posição mais correta, da premissa de que a tributação que deve
incidir sobre o streaming de vídeos seja a do ISS, nos termos do item 1.09 da lista anexa da LC
116/2003, acrescido pela LC 157/2016. Essa corrente parece ser a dominante na doutrina pátria
brasileira4.

Assumindo, portanto, que o ISS é o tributo que deve incidir sobre o streaming de vídeo, analisaremos
as regras do ISS, para verificar como a operacionalização dessa tributação poderá acarretar uma

2
MELO, José Eduardo Soares de, A Lei complementar n. 157/2016 à luz da Constituição Federal: aspectos relacionados
à retroatividade e aos campos de incidência do ICMS e do ISS na atividade de difusão de vídeos, áudio e textos pela
internet, fl. 269-301, In: MONTEIRO, Alexandre, Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiência
internacional e novas perspectivas – São Paulo: Saraiva Educação, 2018
3
Sobre o tema, vale citar os artigos de: (i) José Eduardo Soares de Melo, A Lei complementar n. 157/2016 à luz da
Constituição Federal: aspectos relacionados à retroatividade e aos campos de incidência do ICMS e do ISS na atividade
de difusão de vídeos, áudio e textos pela internet, fl. 269-301, (ii) Alberto Macedo, Tributação de atividades de streaming
de áudio e vídeo: guerra fiscal entre ISS e ICMS, fl. 504-521, (iii) Ricardo Augusto Alves dos Santos, Tributação das
aplicações Over-the top no Brasil: visão geral e análise das atividades de transmissão de conteúdo audiovisual, envio de
mensagens e realização de chamadas de voz por meio da internet In: MONTEIRO, Alexandre, Tributação da Economia
Digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas – São Paulo: Saraiva Educação, 2018
E também FULGINITI, Bruno Capelli Regras de Competência e a Tributação do Streaming. In: Revista Direito Tributário
Atual, n. 44, 2020, p. 115-138. Disponível em:
https://ibdt.org.br/RDTA/wp-content/uploads/2020/04/Bruno-capelli.pdf
4
Adotantes dessa corrente: José Eduardo Soares de Melo, Alberto Macedo, Ricardo Augusto Alves dos Santos, Tathiane
Piscitelli e Bruno Capelli.

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guerra fiscal e acirramento das desigualdades regionais, por concentração do pagamento do tributo
em poucos e grandes municípios. Estudaremos também os impactos que essa decisão pode ter na livre
concorrência e na estruturação das empresas.

1. ISS E A REGRA DA TRIBUTAÇÃO DO SERVIÇO NO LOCAL DO


ESTABELECIMENTO PRESTADOR COMO POSSÍVEL PRECURSORA DE UMA
GUERRA FISCAL E DO ACIRRAMENTO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS

Conforme o art. 3º da Lei Complementar nº 116/2003, que rege o ISS, a regra geral é a de que o
Imposto sobre serviços de qualquer natureza é devido no local do estabelecimento do prestador do
serviço. As exceções a essa regra são expressamente previstas na referida Lei Complementar. O
serviço de streaming previsto no item 1.09 não consta das exceções a essa regra.

Assim, prevalecendo o entendimento de que o ISS é o tributo correto a incidir sobre o streaming de
vídeos, teremos a situação que todo o ISS recolhido pelas plataformas como Netflix, Amazon prime,
Disney Plus, Youtube e afins será devido única e exclusivamente ao Município onde estiverem
sediadas essas empresas no Brasil.

Independente de terem consumidores em todos os Municípios do Brasil, que colaboram para os altos
faturamentos dessas empresas, todo o ISS recolhido por elas será devido a um só Município, aquele
em que estiver situada a sede dessa empresa.

Como é notório, essas empresas estrangeiras de grande porte costumam se situar nos grandes centros
como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nada impediria, porém, que, a depender de uma
política tributária típica de guerra fiscal, essas empresas fizessem planejamentos tributários e viessem
a se instalar em Municípios menores que oferecessem alíquotas reduzidas.

Essa situação parece inevitavelmente conduzir a um déjá-vu da guerra fiscal do comércio eletrônico
de mercadorias. Isso porque tanto no âmbito da circulação de mercadorias como na prestação de
serviços as regras de repartição de competência tributária previstas na Constituição de 1988 se
basearam na realidade até então existente.

A realidade do Constituinte de 1988 era a de comércio de bens tangíveis. As vendas interestaduais


para consumidores finais eram absolutamente a exceção, daí porque na previsão original da
Constituição o ICMS devido nas vendas interestaduais a consumidores finais era de titularidade
integral do Estado de origem.

Com o crescimento vertiginoso do comércio eletrônico, que permitiu a compra dos produtos por
consumidores finais diretamente dos centros de distribuição, verificou-se uma concentração absurda

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da arrecadação de ICMS nos grandes centros produtores e varejistas, como São Paulo, Rio de Janeiro
e Minas Gerais, por exemplo. Outros Estados menores viam sua arrecadação minguar com a mudança
de paradigma causada pela internet na forma de se comprar mercadorias e as disparidades regionais
se acirravam.

A regra de repartição do ICMS, porém, estava na Constituição Federal, em seu art. 155, §2º, inciso
VII, alíneas a e b. Portanto, para alterar essa distribuição seria necessária uma Emenda Constitucional
e não havia consentimento político para conseguir tal alteração.

Desse modo, como uma forma de causar um fato político e social para tentar reverter essa distorção
arrecadatória no ICMS causada pelo comércio eletrônico, 18 Estados prejudicados se reuniram no
CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária) e editaram o Protocolo nº 21/20115.

Nesse Protocolo estipulou-se que nas vendas de mercadorias interestaduais a consumidor final seria
devido ao Estado de origem a alíquota interestadual e ao Estado de destino, onde ocorreria o consumo,
a diferença entre a alíquota do Estado de destino e a alíquota interestadual. Regra semelhante ao que
já ocorria com as vendas interestaduais entre contribuintes do ICMS.

Ocorre que os Estados privilegiados pelo comércio eletrônico e que não assinaram o Protocolo não
reconheciam a validade desse instrumento normativo e continuavam a exigir dos comerciantes a
alíquota interna de ICMS do Estado de origem nas vendas a consumidor final localizado em outro
Estado. Assim, os comerciantes foram tributados duplamente e muitas vezes as mercadorias ficavam
retidas nas fronteiras fiscais quando não recolhido o ICMS para o Estado de destino.

Essa situação gerou uma enxurrada de mandados de segurança e Ações Diretas de


Inconstitucionalidade (ADIs 4628 e 4713)6 contra o referido Protocolo nº 21/2011. O STF acabou
por julgar, por unanimidade, inconstitucional o Protocolo nº 21/2011 do CONFAZ, como não poderia
deixar de ser, afinal Protocolo CONFAZ jamais seria instrumento hábil a mudar a regra de incidência
tributária prevista na Constituição.

Entretanto, fica muito claro da leitura dos votos dos Ministros que, apesar de votarem pela
inconstitucionalidade, captaram o absurdo tributário que a Constituição Brasileira gerava diante de
uma mudança paradigmática na forma de consumir mercadorias causada pela internet que o
constituinte originário jamais poderia prever.

5
Disponível em https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/protocolos/2011/pt021_11
6
Nota sobre o julgamento das ADIs em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=275382

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A comoção causada por essa discussão resultou na edição da Emenda Constitucional nº 87/2015, que
alterou a distribuição do ICMS nas vendas interestaduais de comércio eletrônico e passou a prever
uma divisão do ICMS entre o Estado de origem e o Estado de destino nessas vendas a consumidor
final7.

O Constituinte de 88 quando pensou em serviços e o legislador complementar quando estipulou como


regra geral que o ISS seria devido no local do estabelecimento prestador também tinham em mente
aquela espécie de serviço pessoal, uma obrigação de fazer, na visão clássica do serviço. Jamais
poderiam imaginar que por meio de tecnologia uma empresa sediada em outro país ou em um único
Município brasileiro poderia prestar serviços em massa para todos os cidadãos brasileiros e que esse
seria o novo modelo de prestação de serviço.

É, portanto, previsível e altamente provável que a próxima guerra fiscal se dará entre os Municípios
pela distribuição do ISS resultante da tributação de streaming. Afinal, a concentração de toda receita
de ISS em apenas um Município contraria os princípios de justiça fiscal e afeta um objetivo
fundamental da república Federativa Brasileira, que é a redução das desigualdades sociais e regionais,
art. 3º, III, da Constituição Federal.

Urgente, portanto, pensar em uma regra de exceção no caso do ISS da tributação de streaming, para
prever que o ISS nesses casos seja devido ao Município onde ocorre o consumo, ou seja, onde reside
o tomador do serviço.

Inclusive no âmbito da União Europeia essa definição acerca do local para onde seria devido o
VAT/GST (value-added tax, goods and services tax), optando-se pelo local do consumo, foi uma
reação à verificação de um planejamento tributário das empresas em instituir suas sedes
(estabelecimentos) em países de tributação favorecida, como Luxemburgo, que tem uma das menores
taxas tributárias do bloco econômico europeu8.

Essa excepcionalidade à regra do ISS ser devido apenas ao Município do estabelecimento prestador
já foi prevista para outras atividades como serviços de saúde e serviços financeiros, como leasing
(itens 4.22, 4.23, 5.09, 15.01, 15.09 do anexo da LC 116/2003), vide art. 3º, incisos XXIII, XXIV,
XXV da Lei Complementar 116/2003, introduzidos pela Lei Complementar 157/2016.

Perceba-se que para facilitar a operacionalização desse recolhimento de ISS de acordo com o local
do tomador de serviço e facilitar o cumprimento de obrigações acessórias por parte dos prestadores

7
Vide art. 155, §2º inciso VII da Constituição Federal com a redação dada pela EC 87/2015.
8
MERKS, Madeleine, The wizard of OSS: effective collection of VAT in cross-border e-commerce. Disponível em
https://www.nlfiscaal.nl/fiscanet/pf.nsf/files/oratie_merkx.pdf/$file/oratie_merkx.pdf?openelement

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desses serviços, foi elaborado um modo diferenciado de recolhimento e declaração desse ISS, previsto
na Lei Complementar nº 175/2020, publicada em setembro de 20209.

O ISS será recolhido nessas hipóteses por meio de sistema nacional eletrônico e unificado (arts. 1º e
2º da LC 175/2020). Há na lei, em seu art. 15, §2º, inclusive a previsão da possibilidade de que “O
Município do domicílio do tomador do serviço poderá atribuir às instituições financeiras
arrecadadoras a obrigação de reter e de transferir ao Município do estabelecimento prestador do
serviço os valores correspondentes à respectiva participação no produto da arrecadação do ISSQN.

Relevante notar que a recomendação de organismos internacionais como a OCDE e a União Europeia
para a tributação do consumo na era digital e globalizada envolve: (i) a adoção do critério do destino10,
de modo que a tributação ocorra onde há o consumo e (ii) a adoção de mecanismos de
responsabilização pela declaração e arrecadação tributária aos fornecedores de serviço/comércio
eletrônico, por meio de um portal digital unificado, conforme lecionam DERZI e ESTANISLAU11.
Confira-se:

“Criada pela Diretiva CE n. 8 de 2008, e produzindo efeitos desde o início de 2015, a iniciativa
consiste em um regime unificado de registro do pagamento de IVA para as empresas
prestadoras de serviços de telecomunicações, radiodifusão ou que atuem no comércio
eletrônico de serviços e intangíveis em operações B2C.
[...] Em síntese, o regime permite que as prestadoras de serviço TBE (em inglês,
telecommunications, broadcasting and electronically supplied services) recolham, por meio
do registro em somente um país membro da União Europeia, o imposto devido aos demais
Estados em conformidade com as operações B2C com consumidores localizados em tais
jurisdições. E não somente isso: esses contribuintes poderão, por meio da plataforma virtual
do MOSS, apresentar a declaração do IVA devida a todos os países-membros nos quais
estejam localizados os consumidores de seus serviços.
[...]
Os bons números da iniciativa europeia comprovam que a redução dos custos de compliance
tributário constitui incentivo poderoso para solucionar os desafios da tributação do comércio
eletrônico B2C.”

9
Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre o padrão nacional de obrigação acessória do Imposto Sobre Serviços de
Qualquer Natureza (ISSQN), de competência dos Municípios e do Distrito Federal, incidente sobre os serviços previstos
nos subitens 4.22, 4.23, 5.09, 15.01 e 15.09 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003;
altera dispositivos da referida Lei Complementar; prevê regra de transição para a partilha do produto da arrecadação do
ISSQN entre o Município do local do estabelecimento prestador e o Município do domicílio do tomador relativamente
aos serviços de que trata, cujo período de apuração esteja compreendido entre a data de publicação desta Lei
Complementar e o último dia do exercício financeiro de 2022; e dá outras providências.
Art. 2º O ISSQN devido em razão dos serviços referidos no art. 1º será apurado pelo contribuinte e declarado por meio
de sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional.
10
https://www.oecd.org/ctp/consumption/international-vat-gst-guidelines.pdf
11
DERZI, Misabel Abreu Machado, ESTANISLAU, César Vale, Os desafios da tributação indireta do comércio
eletrônico: estratégias para a simplificação da arrecadação tributária em operações B2C, fl. 806-824, In: MONTEIRO,
Alexandre, Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas – São
Paulo: Saraiva Educação, 2018

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Na União Europeia esse portal simplificado de recolhimento é representado pelo OSS (One-stop-
shop), onde prestadores de serviços e vendedores de mercadorias não residentes na União Europeia
que vendam a consumidores da União europeia podem se registrar em um único país do bloco
econômico europeu e recolher de forma unificada o IVA (imposto de valor agregado) a um único
país, que posteriormente deve distribuir aos demais países de acordo com o local onde foram feitas
as vendas daquele fornecedor.

Desse modo, concluem os autores que o Brasil deveria adotar algo similar: “a criação de um portal
eletrônico, de âmbito nacional, para identificação obrigatória e declaração dos prestadores de
serviço e fornecedores de intangíveis”.

Aparentemente, a solução preconizada pelos autores em artigo datado de 2018 já existe e consiste no
portal criado pela Lei Complementar 175/2020.

Faz-se necessário agora incluir a tributação do streaming (item 1.09) nesse regime especial de
arrecadação e na exceção que prevê que o ISS será devido ao Município de destino, ou seja, do local
em que reside o tomador de serviço.

As plataformas de streaming têm condições de por meio de cadastro e localização por GPS (global
positioning system) identificar o domicílio do adquirente do serviço e assim imputar a receita do ISS
decorrente da contratação daquele serviço ao Município correspondente. Necessário que a lei defina
de forma clara qual será considerado o local do consumo: aquele em que reside o consumidor ou
aquele em que foi feita a compra (ainda que o consumidor resida em outro estado).

Veja que no caso do ICMS importação (Tema RG 520 ARE 665.537), o STF já entendeu que para
fins da definição do contribuinte o que importa é o local de domicílio do comprador (celebrante do
contrato) e não necessariamente o local para onde a mercadoria foi destinada/consumida12. Na União
Europeia também se optou pela residência do consumidor como fator decisivo para atribuição da
sujeição ativa tributária do país de destino.

Esse sistema eletrônico unificado e nacional de declaração e recolhimento do ISS evita também que
prestadores de serviço de abrangência nacional ou mundial tenham que ficar gastando tempo e
dinheiro com o cumprimento de obrigações acessórias de inúmeros municípios brasileiros. Resolve
ainda um problema de falta de estrutura mínima de cobrança e fiscalização desse tipo de serviço de
streaming por parte da grande maioria dos municípios brasileiros.

Tema 520 RG STF“O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-
12

membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da
mercadoria, com a transferência de domínio.”

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2. A CONCORRÊNCIA ENTRE TVS POR ASSINATURA E STREAMING E A ISONOMIA
TRIBUTÁRIA. O MEIO DE TRANSMISSÃO É UM CRITÉRIO DE DISCRIMINAÇÃO
VÁLIDO? COMO AS DECISÕES NEGOCIAIS SÃO AFETADAS POR ESSA DEFINIÇÃO
TRIBUTÁRIA?

A justificativa para tributar o mesmo conteúdo (seriado/filme) de forma diferente se veiculado via
streaming (Netflix, Globoplay) ou via TV por assinatura (Claro NET, SKY) é o fato de que as
primeiras apenas disponibilizam conteúdo e as segundas fornecem a infraestrutura (redes de
telecomunicação) para a disponibilização do conteúdo.

Essa questão é objeto de discussão no Tribunal de Taxas e Impostos (TIT) de São Paulo13. A empresa
SKY disponibiliza seu conteúdo e programação de duas formas, uma na TV por assinatura e outra
por meio da internet. Basicamente a discussão se limita a discutir se no serviço de streaming da SKY,
que pode transmitir o mesmo conteúdo de sua programação da TV a cabo, mas por meio da internet,
incidiria ISS ou ICMS Comunicação. Conforme notícia veiculada em informativo os jurídicos, a tese
dos advogados da SKY é a seguinte:

“Os advogados também afirmaram que a Lei Complementar nº 116/03, alterada em 2016,
definiu a incidência de ISS sobre as atividades que disponibilizam conteúdo audiovisual. A
exceção diz respeito à prestação de Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que fica sujeito
ao ICMS.
Incorporada à Sky Brasil Serviços, a Sky Serviços de Banda Larga é autorizada a fornecer o
SeAc. A Sky Online, por outro lado, transmite conteúdo por meio da modalidade Over the Top
(OTT). Para os advogados, ainda de acordo com o Valor, é necessário diferenciar os dois
serviços.
O ICMS não incide sobre a modalidade OTT porque neste caso a empresa não fornece
estrutura de telecomunicação. Caso o valor fosse cobrado da Sky, a empresa deveria pagar
dupla tributação, uma vez que já havia sido arrecadado o ISS.”14

A decisão do Tribunal Administrativo foi no sentido de afastar a incidência do ICMS comunicação,


acatando a diferenciação baseada no meio tecnológico pelo qual é disponibilizado o serviço. Afirmou-
se no julgamento que tributar o streaming da SKY de forma diversa aos streamings de outras empresas
não operadoras de TV a cabo seria violar a isonomia tributária15.

Perceba-se que o meio de disponibilização se over the top (OTT), via internet ou via TV a Cabo,
serviço de acesso condicionado (Seac) foi o fator determinante para decidir qual o tributo aplicável.

13
AIM 4096546-6, disponível em https://www.dsa.com.br/_2019/wp-content/uploads/2020/02/4096546.pdf
14
https://www.conjur.com.br/2020-jan-28/tribunal-impostos-sp-suspende-cobranca-icms-streaming
15
https://www.dsa.com.br/_2019/wp-content/uploads/2020/02/4096546.pdf

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Assim, surge a indagação: será que esse fator de discriminação está de acordo com o princípio
da isonomia tributária?

Celso Antônio Bandeira de Mello em seu livro o princípio da igualdade, diz que para um fator de
discriminação, eleito pela lei, ser considerado válido perante o ordenamento jurídico ele deve passar
por alguns critérios de validade. Não se pode fazer desequiparações fortuitas e injustificadas. Citando
Pimenta Bueno o autor menciona:

“A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for
fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e
poderá ser uma tirania”16

Para o renomado administrativista devemos observar três etapas para validar o fator discriminatório:

“tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de
outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para à vista
do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função
da desigualdade proclamada. Finalmente analisar se a correlação ou fundamento racional
abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema
normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.

O fator eleito como fator de discriminação deve guardar correlação lógica com a proteção de algum
valor social ou princípio do ordenamento jurídico e não violar nenhum interesse preconizado pela
Constituição.

A Constituição Federal, por considerar a comunicação social um bem importante a ser protegido
reservou em seus artigos 220 a 224 disposições sobre o tema. O artigo 221 traça quais os princípios
que os provedores de comunicação (a época apenas rádio e TV) deveriam respeitar. O art. 222 coloca
sérias limitações à propriedade dessas empresas, inclusive restringindo a propriedade exclusiva de
estrangeiros dessas empresas. E o art. 223 estabelece que a atividade de comunicação (rádio e TV)
está sujeita a permissão ou concessão do setor público. São preocupações do Constituinte
relacionadas à salvaguarda de que a comunicação tem conexão com importantes bens jurídicos como:
a liberdade de expressão, a cultura, a soberania e a identidade nacional.

Nas ADIs 4679, 4747, 4756, 4923 o STF julgou inúmeras alegações de violação à Constituição
aventadas por empresas de TV por assinatura quanto à imposição de regras similares às impostas pela
Constituição às TVs abertas e rádios, por meio da Lei 12.485/2011, que constituiu o novo marco
regulatório da TV por assinatura no Brasil.

16
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade, 3ª Edição, 8ª Tiragem, Malheiros
Editores, Fl. 18

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Como bem salientou o Ministro Fux, relator da ADIs, a Lei 12.485/2011:

Pretendeu, com isso, unificar a disciplina normativa aplicável ao setor, até então
fragmentada em diplomas diferentes, a depender da tecnologia usada para a transmissão
do sinal ao consumidor. O quadro normativo anterior estava assim organizado. A TV a Cabo,
distribuída por meios físicos (e.g., cabos coaxiais, fibras ópticas), era regida pela Lei nº
8.977/95 e regulamentada pelo Decreto nº 2.206/97 e pela Portaria n.º 256/97 do Ministério
das Comunicações. A transmissão via satélite (DTH – Direct to Home) ou via micro-ondas
(MMDS – Multipoint Multichannel Distribution System – Distribuição de Sinais Multiponto
Multicanais) era tratada pelo Decreto nº 2.196/97 e, respectivamente, pelas Portarias nº 321/97
e nº 254/97, também do Ministério das Comunicações. Por fim, a modalidade TVA (ou Serviço
Especial de Televisão por Assinatura), baseada em sinais UHF codificados, era disciplinada
pelo Decreto nº 95.744/88.[...] Em linhas gerais, a Lei nº 12.485/11 ( i) promove a
uniformização regulatória do setor de TV por assinatura frente ao processo de convergência
tecnológica, (ii) reduz as barreiras à entrada no mercado; (iii) restringe a verticalização da
cadeia produtiva, (iv) proíbe a propriedade cruzada entre setores de telecomunicação e
radiodifusão, e (v) institui cotas para produtoras e programadoras brasileiras. [...] Como
anotado linhas atrás, a Lei nº 12.485/11 pretendeu redefinir o marco regulatório do setor de
TV por assinatura no país, estabelecendo amplas e profundas mudanças no setor. Tal
iniciativa normativa ampara- se, em primeiro lugar, na competência da União para
dispor sobre telecomunicações (CRFB, art. 22, IV). Funda-se ainda na autoridade do
Congresso Nacional para dar concretude a diversos dispositivos do Capítulo V (“Comunicação
Social”) do Título VIII (“Da Ordem Social”) da Lei Maior, no que têm destaque, em especial,
os princípios constitucionais incidentes sobre a produção e a programação das emissoras de
rádio e televisão (CRFB, art. 221), independentemente da tecnologia utilizada para a
prestação do serviço (CRFB, art. 222, §5º).

Constata-se, portanto, que o objetivo da Lei 12.485/2011 foi consolidar um só regramento às TVs
por assinatura, independentemente do meio tecnológico por meio da qual essa comunicação era
fornecida, por entender o legislador ser importante conferir o mesmo tratamento jurídico a todas as
empresas que forneciam comunicação por TV por assinatura.

Nessas ações, as empresas de TV por assinatura questionavam regras a elas impostas que diziam
respeito a: (1) limitação de participação de capital estrangeiro, (2) imposições de cotas para
programadoras e produtoras brasileiras, (3) limitações de mercado, todas relacionadas às disposições
constitucionais previstas no arts. 220 a 224.

O argumento central comum a todas as ações é que essas disposições sobre comunicação, previstas
na Constituição só foram feitas pelo constituinte às empresas de TV aberta e rádio e que estender por
lei às empresas de TV por assinatura seria inconstitucional.

As ADIs foram julgadas na grande maioria dos pedidos improcedentes, deixando o STF bem claro
que a forma pela qual a comunicação é ofertada, especialmente considerando a impossibilidade
de a Constituição prever os avanços tecnológicos nessa área, não é fator de discriminação válido
para tratar de forma desigual empresas prestadoras desse serviço de comunicação.

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Entendeu o STF que seriam válidas as restrições de mercado, participação de capital estrangeiro e
regras de programação e produção que estabeleciam cotas obrigatórias à participação de produtoras
brasileiras também às empresas de TV por assinatura, dada a relevância conferida pelo Constituinte
à comunicação social, por envolver pluralidade de ideias, soberania e identidade nacional e liberdade
de expressão. Nesse sentido relevantíssimo citar a passagem do voto do Min. Fux (relator), em que
essa ideia fica cristalina:

“Ao revés, entendo que a restrição operada pelo art. 10, caput e §1º, da Lei nº 12.485/11
representa típica interpretação legislativa evolutiva do comando constitucional encartado no
art. 222, §2º, da Lei Maior, de todo condizente com os vetores axiológicos que informam, no
plano constitucional, a atividade de comunicação de massa, dentre os quais a preservação
da soberania e identidade nacionais, o pluralismo informativo e a igualdade entre os
prestadores de serviço a despeito da tecnologia utilizada na atividade. Inicialmente,
convém observar que a Constituição de 1988 firmou compromisso com a proteção da
soberania nacional e valorização da cultura brasileira, alçando a primeira como princípio
fundamental da República (art. 1º, I) e a segunda como diretriz da produção e da programação
das emissoras de rádio e televisão (art. 221, II). Tal compromisso geral foi densificado
(embora não exaurido), ao longo da Carta Constitucional, por regras específicas, dentre as
quais as previstas no art. 222 da Lei Maior, que definiram os traços fundamentais da
radiodifusão. A relevância constitucional da mídia de massa se explica pela capacidade
(significativa) de influência desses veículos de comunicação sobre o imaginário dos
cidadãos, o livre fluxo de ideias e os valores fundamentais cultivados pela sociedade.
Sucede que, no momento da promulgação da Carta de 1988, o cenário nacional da
comunicação de massa era bem distinto do atual. A TV por assinatura não tinha
qualquer presença nos lares brasileiros. Somente em dezembro de 1989, por intermédio
da Portaria nº 250 do Ministério das Comunicações, é que a TV paga foi oficialmente
introduzida no país sob o rótulo de “Distribuição de Sinais de TV por Meios Físicos” (DISTV).
Diante daquela realidade, não se poderia esperar que o constituinte, em outubro de 1988,
fizesse referência literal no art. 220 da Lei Maior a outras mídias que não o rádio e a televisão.
Eram esses os únicos veículos de comunicação de massa existentes e, portanto, os únicos a
merecerem preocupação estratégica do constituinte. Os tempos, porém, mudaram. Com os
avanços tecnológicos operados no setor, cada vez mais a TV paga se insere como veículo
de comunicação com elevado poder de penetração na sociedade brasileira. Foi o que
registrou o expositor Marcos Dantas, Professor Titular da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, durante a audiência pública realizada no Supremo
Tribunal Federal: Hoje, portanto, as mesmas preocupações estratégicas que moveram o
constituinte a fixar algumas das regras do Capítulo V do Título VIII da Constituição
estão presentes também em outros veículos com significativo poder de comunicação, mas
que se valem de outras plataformas tecnológicas para a transmissão do sinal. A questão
que se coloca perante a Corte é definir, sob o ângulo jurídico, se a extensão a outros meios de
comunicação de massa de regra constitucional expressamente direcionada a veículos de
radiodifusão pode ser feita por lei formal ou, diferentemente, dependeria de emenda à
Constituição A meu juízo, não há qualquer impedimento a que essa extensão de disciplina
normativa seja operacionalizada por lei, dispensando a alteração direta do próprio texto
constitucional. Há ao menos duas razões para tanto. [...] Aqui surge a segunda razão contrária
à pretensão deduzida na inicial. No caso dos autos, a restrição específica veiculada pelo art.
10, caput e §1º, da Lei nº 12.485/11 me parece promover o princípio da igualdade, ao invés de
violá-lo, como sustenta o DEM. De fato, seria justamente a não aplicação de regras dessa
natureza que poderia caracterizar ultraje à isonomia, porquanto imporia tratamento
diferenciado a comunicadores com poder de influência semelhante, mas que, entre si,
diferenciam-se apenas pela plataforma empregada para a transmissão do sinal. Em um
cenário como o atual, marcado pela forte convergência tecnológica e pela sobreposição

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dos mercados de conteúdo audiovisual, seria um retrocesso sustentar discriminações
fundadas nos meios técnicos de prestação do serviço. Estas sim, a meu sentir, seriam
ofensivas ao conteúdo do princípio da igualdade, além de, no limite, criarem ambiente
jurídico propício para verdadeiras fraudes ao art. 222, §2º, da Constituição, ao incentivar
que comunicadores de radiodifusão passassem a se valer de outras tecnologias para,
assim, escapar da restrição veiculada pela Carta de 1988. Relevante, pois, notar que a
motivação do legislador ao criar a regra aqui impugnada foi justamente a de corrigir uma
assimetria de fato surgida após a promulgação da Constituição com o avanço de novas
tecnologias de comunicação de massa, as quais passaram a disputar espaço com a TV aberta.
(Grifo nosso)

O Exmo. Ministro relator ainda destacou o magistério do Min. Luis Roberto Barroso, como professor
de Direito Constitucional, que assim dispunha:

Essas razões jurídicas que conduziram a atuação do legislador foram muito bem explicadas,
em doutrina, pelo hoje Ministro e sempre professor Luís Roberto Barroso, cujo magistério
transcrevo in verbis : “(...) se outras plataformas oferecem os mesmos serviços [de
comunicação de massa], suscitam automaticamente as mesmas preocupações associadas à
radiodifusão, referentes à soberania nacional, à opinião pública, à cultura nacional e à
responsabilização. Cabe aqui enfatizar, ainda uma vez, a constatação evidente de que o
constituinte só fez referência a rádio e televisão, como empresas de radiodifusão, porque este
era o ‘estado da arte’, em termos de meios de comunicação de massa, ao mento tempo
em que se desenvolveram os trabalhos de elaboração da Constituição. O ilustre
constitucionalista aponta ainda outro sério problema que decorre de uma leitura
excessivamente textualista do art. 222 da Constituição, em especial de seu parágrafo segundo:
“Há ainda um outro ponto, tão ou mais grave, que pode até mesmo comprometer a seriedade
com que devem ser interpretadas as normas e respeitadas as instituições. É que basta que as
empresas de radiodifusão já existentes passem a oferecer programação de rádio e
televisão por outros meios técnicos – o que agora já se tornou possível – para, por esse
artifício, se evadirem da normatização constitucional a que estariam sujeitas. Claro: se
as normas constitucionais não se estendessem às demais plataformas tecnológicas,
bastaria que as concessionárias atuais de radiodifusão passassem a servir-se delas. Ou
seja, a interpretação acriticamente apegada à literalidade do texto acabaria por permitir
a fraude a seu conteúdo. Nada legitimaria isso”. (BARROSO, Luís Roberto. “Constituição,
Comunicação Social e as Novas Plataformas Tecnológicas” in Temas de Direito
Constitucional, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109).

As passagens transcritas das referidas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) são por si só
esclarecedoras e não deixam dúvidas da posição do Supremo quanto à inconstitucionalidade de
erigir o meio tecnológico pelo qual é disponibilizada a comunicação como fator de
discriminação do seu regulamento legal. Ao contrário, parece violar frontalmente um dos objetivos
da ordem econômica: a livre concorrência art. 170, IV, da Constituição Federal.

Nos guidelines da OCDE, por exemplo, um dos princípios cruciais na tributação do consumo
(VAT/GST) é a neutralidade, que preconiza que não se deve tributar de forma desigual negócios que
prestam a mesma utilidade, mas por meios diferentes. Justamente para não influenciar a forma de

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estruturação dos negócios que vise apenas à adaptação tributária e não uma eficiência comercial. É o
que se percebe das diretivas 2.2 e 2.3 da OCDE sobre o IVA17.

Guideline 2.2 Businesses in similar situations carrying out similar transactions should be
subject to similar levels of taxation
Guideline 2.3 VAT rules should be framed in such a way that they are not the primary influence
on business decisions.

Assim, considerando a absoluta relevância da tributação tanto para a manutenção dos Estados, bem
como para a sobrevivência do modelo de negócio das empresas, é imperioso que o Brasil estabeleça
o quanto antes um regramento único tributário para as empresas prestadoras de comunicação, seja via
serviço de acesso condicionado SEAC ou Over the top (OTT), sob pena de violação à isonomia
tributária e à livre concorrência.

Além disso, como bem salientado pelo Min. Roberto Barroso, haverá naturalmente uma migração das
empresas de TV por assinatura para ofertarem seus conteúdos via internet, tal qual já se deu com as
operadoras de telecomunicação ao verem seu serviço de ligação móvel perder espaço para as ligações
via aplicativos que usam a internet. Tal movimento seria absolutamente legítimo do ponto de vista
dos empreendedores, que devem procurar organizar suas atividades da forma mais lucrativa possível
dentro da lei.

A diferença tributária entre o ICMS comunicação e o ISS é relevante, a ponto de impactar a própria
sobrevivência no mercado. Se não houver uma revisão da materialidade do ICMS comunicação
haverá em breve um esvaziamento completo dessa receita.

Por outro lado, da perspectiva do empresário não é desejável haver essa insegurança jurídica que pode
conduzir a uma dupla imposição tributária.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A modificação dos paradigmas da nossa sociedade na forma de oferecer bens e serviços parece nos
levar à inevitável conclusão do anacronismo de nossa legislação tributária. É necessário, portanto,
adaptar a distribuição da competência tributária e administração fiscal aos novos tempos.

Regras que distinguem tributação de serviços de comunicação em razão do meio tecnológico pelo
qual são disponibilizados os serviços estão condenadas ao insucesso e ao incremento do litígio, dada
a velocidade com que novas tecnologias são criadas. O avanço da internet das coisas (Internet of

17
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Things - IOT) acirrará muito essa nítida obsolescência da divisão de competência tributária brasileira
baseada em divisões estanques dos tipos de serviços prestados.

O ICMS-comunicação tende a ser cada vez mais esvaziado por meio de planejamento das empresas
de TV por assinatura ou das empresas de telecomunicação, já que a internet permite que esses mesmos
serviços sejam prestados de forma menos onerosa e menos regulamentada.

O atual sistema tributário foi todo construído com base em uma lógica de negócios que foi
completamente alterada pela revolução digital. Tentar adaptar uma legislação obsoleta e conflituosa
a situações não enquadráveis nos antigos padrões talvez seja mais oneroso e ineficiente que
simplesmente redesenhar o sistema tributário como um todo, adaptando-o à nova realidade
econômica.

Parece, portanto, absolutamente anacrônica a legislação brasileira que tenta definir as competências
tributárias pela descrição detalhada da atividade comercial ou dos serviços (em lista exaustiva) em
um mundo volátil e complexo como o que a revolução digital criou. É como gastar horas definindo
se o Cirque Du Soleil é circo, teatro ou musical para fins de enquadrá-lo em um nicho de tributação.
Ele é tudo e nada individualmente ao mesmo tempo.

Tentar conter a realidade desse mundo complexo em caixas estanques e listas exaustivas ou dividi-lo
em obrigações de dar e fazer que remetem sua origem ao Direito Romano é como tentar aprisionar o
mar em uma comporta fechada. Não funciona e causa estragos imensos. E pior: tornaremos o
principal legislador tributário o perito de tecnologia, que descreverá aos juízes como se dá a
viabilização dos negócios de tecnologia, a fim de que estes com seus incipientes conhecimentos de
tecnologia enquadrem os serviços em suas caixinhas já conhecidas.

A sensação por vezes é de que a legislação tributária passa por uma situação parecida à retratada na
trilogia dos filmes Back to the future, em que o personagem principal consegue viajar no tempo e ao
chegar no futuro se depara com equipamentos tecnológicos não existentes em seu tempo e tenta
enquadrá-los em algo que ele conhece, para assim compreendê-los. Apesar de esses instrumentos em
nada se assemelharem ao funcionamento dos equipamentos do passado, visto que baseados em
tecnologia antes inexistente.

Vivemos a todo tempo tentando enquadrar tecnologias e serviços atuais em modelos de negócios da
época do Constituinte de 88, que jamais poderia prever as inovações em termos de negócios de
tecnologia que vivemos hoje.

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O mundo tende para o fornecimento de utilidades, de soluções completas baseadas nas necessidades
dos indivíduos, mobilizada por uso de inteligência artificial materializada em aplicativos e softwares,
de modo que parece muito mais sensato tributar de forma genérica o consumo e sua expressão
econômica, sem distinção de serviços, mercadorias ou cessão de direitos, como se faz em grande parte
do mundo.

Os custos das discussões tributárias infindáveis e da insegurança jurídica são muito maiores do que
se o Brasil repensasse o significado de autonomia federativa no sentido de necessariamente passar
por legislação sobre tributos em nível estadual e municipal.

Entretanto, diante da inexistência da reforma tributária, é preciso trabalhar com a realidade. O


streaming de vídeos é uma atividade que cresce no mundo todo. Imperioso, portanto, definir sua
tributação. Assumindo como premissa que o tributo correto a incidir sobre essa atividade é o ISS,
conforme item 1.09 da lista anexa de serviços da Lei Complementar 116/2003, é urgente e necessário
fazer adaptações legislativas que impeçam a ocorrência de uma guerra fiscal municipal e uma onda
de litigiosidade judicial entre Municípios e empresas, tal qual ocorrido entre os Estados com o
comércio eletrônico de bens.

É preciso aprender com as experiências brasileiras e estrangeiras para prevenir novas guerras fiscais
e um acirramento das desigualdades regionais.

Parece, portanto, imperioso incluir a tributação do streaming (item 1.09) nas exceções da Lei
Complementar 116/2003 que preveem que o ISS será devido ao município em que localizado o
tomador de serviço, ou seja, no local do domicílio fiscal do consumidor do serviço.

Ademais, a fim de reduzir custos de compliance tributário por parte das empresas e gastos de
fiscalização e cobrança por parte dos municípios mostra-se adequada e perfeitamente adaptável aos
serviços de streaming a sistemática criada pela Lei Complementar 175/2020 de um sistema eletrônico
unificado nacional para cumprimento de obrigações acessórias e recolhimento do ISS.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DERZI, Misabel Abreu Machado, ESTANISLAU, César Vale, Os desafios da tributação indireta do
comércio eletrônico: estratégias para a simplificação da arrecadação tributária em operações B2C, fl.
806-824, In: MONTEIRO, Alexandre, Tributação da Economia Digital: desafios no Brasil,
experiência internacional e novas perspectivas – São Paulo: Saraiva Educação, 2018

MELO, José Eduardo Soares de, A Lei complementar n. 157/2016 à luz da Constituição Federal:
aspectos relacionados à retroatividade e aos campos de incidência do ICMS e do ISS na atividade de
difusão de vídeos, áudio e textos pela internet, fl. 269-301, In: MONTEIRO, Alexandre, Tributação

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da Economia Digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas – São Paulo:
Saraiva Educação, 2018

MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade, 3ª Edição, 8ª
Tiragem, Malheiros Editores, Fl. 18

MERKS, Madeleine, The wizard of OSS: effective collection of VAT in cross-border e-commerce.
Disponível em
https://www.nlfiscaal.nl/fiscanet/pf.nsf/files/oratie_merkx.pdf/$file/oratie_merkx.pdf?openelement

OCDE VAT/GST guidelines, disponível em https://www.oecd.org/ctp/consumption/international-


vat-gst-guidelines.pdf

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