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CAPÍTULO 15

O ICMS E O CONTRATO DE LICENCIAMENTO DE


USO DE SOFTWARE OBTIDO POR DOWNLOAD
Frederico Menezes Breyner1

RESUMO: O artigo aborda a tributação, pelo ICMS, dos contratos de licenciamento de uso de
software obtidos por meio de download. A partir das duas correntes de intepretação das regras
de competência tributária, analisou-se a possiblidade de se identificar o referido fato com a mate-
rialidade tributável prevista no art. 155, II da Constituição. Configurando o fato aqui analisado
como constituindo a exploração de direitos autorais, afigura-se impossível, quer pelo raciocínio
conceitual ou tipológico, seu enquadramento na referida regra de competência tributária. Ade-
mais, apenas para o desenvolvimento do debate, é impossível também amoldá-lo às definições da
LC 87/96, o que faz com que seja inviável a tributação.

1. INTRODUÇÃO

É de todos conhecida a grande e rápida evolução dos meios de comuni-


cação, especialmente aqueles operados por dispositivos conectados à internet.
Essa situação reflete nas relações comerciais, que passam cada vez mais a serem
iniciadas, entabuladas e concluídas por meio da internet.
Por meio da internet transações são realizadas de forma completamente
diferente dos tradicionais meios de troca e fluxos da economia.
Em paralelo, pode-se afirmar que os fatos referentes às transações co-
merciais e prestações de serviços sempre foram objeto de atenção do direito
tributário, que grava essas atividades e seus resultados financeiros na medida
em que demonstram uma riqueza sendo produzida, consumida e circulada.
Como sempre, o direito parece estar fadado à rápida desatualização: o
intérprete e aplicador do direito se depara com normas vigentes que não se
amoldam aos novos fatos, muitas vezes reformatados em razão da evolução
tecnológica.
1
Mestre e Doutor em Direito Tributário (UFMG). Professor da Faculdade de Direito Milton Campos. Advogado.
256 RAFHAEL FRATTARI / VALTER LOBATO (COORDS.)

Duas das principais evoluções trazidas pela internet e que representam um


desafio ao direito tributário podem ser sintetizadas como2:

a) a fluidez geográfica das transações comerciais realizadas: o ambiente


no qual se celebram os negócios jurídicos na internet é virtual, e os da-
dos informáticos utilizados podem ser movidos, transferidos e alterados
com alta facilidade, o que dificulta sua vinculação ao poder tributário
exercido por uma nação sobre seu território, dificultando até mesmo a
!"#"$%&'()"("*#!+#"!!,#'!,+-,)+)"()+(-",(#!,./#0!,+1
b) a desmaterialização dos bens e serviços comercializados pela rede: os
serviços dos quais resultam uma utilidade material passam a resultar ago-
ra em dados informáticos, que podem ser acessados pelo e armazenados
"2(3/+-3/"!(-/4+!()'(2/$)'1("('%(."$%(+$#"%(5'2"!5,+-,6+)'%("2(/2(%/-
porte físico também passam a ser adquiridos diretamente na internet por
2",'()"()+)'%(+(%"!"2(+!2+6"$+)'%(7+("*"2 -'()"(-,8!'%9(2:%,5+%9("#5;<1

O objeto do presente artigo se insere nessas mudanças, pois versa sobre


a tributação dos softwares. No estágio tecnológico anterior, a obtenção dos
softwares se dava por meio de um suporte físico que era objeto de tradição, a
exemplo de disquetes, CDs, DVDs, pen drives e etc.
Atualmente, contudo, é usual que a obtenção dos softwares seja feita por
meio de download, sem suporte físico, por meio do qual o usuário realiza
transferência eletrônica dos dados lógicos que compõem o software por meio
da internet, que são reproduzidos em seu dispositivo e permitem então que o
dispositivo execute as tarefas por meio do software.
O presente artigo aborda as transações com softwares por meio do qual o
usuário reproduz em seu dispositivo apenas o código executável, ou seja, con-
tratos no qual o usuário não obtém o código fonte do software, inviabilizando
assim que altere licitamente sua funcionalidade ou características.
Trata-se aqui, portanto, dos contratos de licenciamento de uso de softwa-
res previstos no art. 9º da Lei nº 9.609/98, e não dos contratos de distribuição
e comercialização de software ou de transferência de tecnologia, regidos, res-
pectivamente nos arts. 10 e 11 da Lei nº 9.609/98.
Essa definição do objeto, contudo, se dá apenas para limitar o tema trata-
do, e não significa que naquelas outras duas modalidades de contrato as con-
clusões sejam opostas às que aqui são lançadas. Referidos contratos, dadas suas
especificidades, merecem análise em separado com conclusões autônomas, que
podem, contudo, coincidir com as do presente artigo.

2
GARCÍA NOVOA, César. Fiscalidad del comercio electrónico. Artigo in Revista de Direito Tributário.
São Paulo, n. 80, p. 85-121.
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Passa-se então a analisar se e como esses fatos se amoldam à competência
tributária dos entes federativos.

2. AS REGRAS DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA


INTERPRETAÇÃO

Em matéria de impostos o Brasil se caracteriza por ter operado uma


divisão de competências tributárias entre os entes federativos. Cada esfera fe-
derativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) recebeu da Consti-
tuição a autorização para instituir impostos, por lei ordinária (art. 150, I da
Constituição), sobre fatos tributáveis discriminados nas regras de competência
tributária3 (arts. 147, 153, 155 e 156).
Apenas a União pode instituir impostos sobre fatos não discriminados,
em caso de guerra externa (imposto extraordinário) ou mediante lei comple-
mentar (competência tributária residual e extraordinária do art. 154).
As competências tributárias são inalteráveis, ou seja, não pode a lei infra-
constitucional alterar as características dos fatos tributáveis discriminados, sob
pena de subverter a Constituição.
Duas correntes se formam hoje sobre a extensão dessa inalterabilidade
das competências tributárias.
Para a primeira vertente, os fatos tributáveis previstos nas regras de com-
petência tiveram suas características fixadas no momento da promulgação da
Constituição e, se naquele momento essas características já tivessem sido identi-
ficadas na doutrina, jurisprudência e na legislação infraconstitucional, elas for-
mariam o conceito constitucional do fato tributável que é inalterável pela lei4.
Já a segunda corrente preconiza que a Constituição descreveu fatos tributá-
veis que guardam uma essência típica, mas cujas características não foram rigida-
mente fixadas, fixação que caberia à lei complementar de normas gerais ao definir
o fato gerador dos impostos discriminados na Constituição (art. 146, III, ‘a’ da
Constituição). Portanto, apenas seria possível saber o conceito rígido do fato ge-
rador do imposto após sua definição por meio da lei complementar veiculadora
das normas gerais5, que poderia adaptar os tipos tributários previstos nas regras

3
Exceção se faz ao imposto federal sobre grandes fortunas, que tem fato gerador discriminado mas para
o qual foi excepcional e expressamente exigida lei complementar (art. 153, VII).
4
Essa a posição, por exemplo, de Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Competências tributárias. São
Paulo: Malheiros, 2018). O tema relativo aos tipos e conceitos e a posição pela prevalência dos concei-
tos no direito tributário foram pioneiramente explorados por Derzi (DERZI, Misabel Abreu Machado.
Direito Tributário, direito penal e tipo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988).
5
SCHOUERI, Luís Eduardo. Discriminação de competências e competência residual. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (coordenadores). Direito tributário: estudos em homenagem
a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998.
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de competência à evolução das relações sociais e econômicas, incorporando novas


características a serem ordenadas sob as regras de competência tributária.
As duas correntes serão analisadas em seguida e em conjunto, com vistas
ao objeto aqui tratado.

3. A INCOMPETÊNCIA DOS ESTADOS E DISTRITO


FEDERAL PARA INSTITUIR ICMS SOBRE O DOWNLOAD DE
SOFTWARES MEDIANTE CONTRATO DE LICENCIAMENTO
DE USO

A Constituição estabelece a competência tributária dos Estados e do Dis-


trito Federal para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mer-
cadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (art. 155, II).
Para o presente artigo sequer se cogita da prestação de serviços de trans-
porte ou comunicação, motivo pelo qual resume-se a análise ao fato gerador
consistente na “operação relativa à circulação de mercadorias”.
De acordo com os conceitos desenvolvidos no momento da promulgação
da Constituição e até hoje acolhidos pela doutrina e jurisprudência, tem-se que:

=( ' "!+>?"%(@são atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de
determinada eficácia jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação e
mercadoria são, nesse sentido, adjetivos que restringem o conceito substantivo
de operações”.6. Essa expressão “garante, assim, que a circulação de merca-
doria é adjetivação, consequência. Somente terá relevância jurídica aquela
operação mercantil que acarrete a circulação da mercadoria, como meio e
forma de transferir-lhe a titularidade”7;
=( +(5,!5/-+>&'(A(5'$5",#/+)+( "-+()'/#!,$+8 e jurisprudência9 como “cir-
5/-+>&'(B/!C),5+D9('/(%"B+9(+(2/)+$>+()"()'2C$,'()+(2"!5+)'!,+1

6
ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICMS. RDT vol.
25/26, pag. 105
7
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Nota de atualização à BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário
brasileiro. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 375
8
Souto Maior Borges, (cf. O Fato Gerador do ICM e os Estabelecimentos Autônomos, in Revista de
Direito Administrativo, São Paulo, vol. 103, pp. 33-48; Geraldo Ataliba (cf. ICM sobre a Importação
de Bens de Capital para uso do Importador, Revista Forense, vol. 250, pp. 114-120); Paulo de Barros
Carvalho (Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980 nº 11-12p.
256. São Paulo: RT, 1980, p.257-262); José Eduardo Soares de Melo (cf. ICMS. Teoria e Prática. São
Paulo. Dialética. 1995); Roque Antonio Carraza (cf. ICMS. São Paulo. Malheiros Ed. 1994); Alberto
Xavier (cf. Direito Tributário e Empresarial - Pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 294.
9
Ver Súmula 166 do STJ e 573 do STF. Em sede de repercussão geral no STF: RE 540.829, Pleno, Rela-
tor Min. Gilmar Mendes, Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 11/09/2014).
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=( 2"!5+)'!,+10 é categoria especial de bens econômicos: bens móveis11
postos à venda, ou seja, cuja existência é destinada à sua colocação
no comércio12.

Adotando-se a primeira vertente acima exposta, tais conceitos não podem


ser alterados pela lei infraconstitucional, motivo pelo qual devem ser utiliza-
dos para verificar se alcançam as operações com softwares aqui analisadas.
E, de forma bastante objetiva, tem-se que esses elementos não existem
no contrato de licença de uso de software obtido por meio de download, pois:

a) nele não há transferência de propriedade do software, que se trata de


criação protegida por direitos autorais (art. 2º da Lei 9.609/98) e que
continua na titularidade do desenvolvedor, não circulando para o patri-
mônio jurídico do usuário, que é proibido de revende-lo ou transferi-lo,
que é autorizado apenas a usá-lo nos termos do contrato (art. 9º da Lei
9.609/98), sendo certo que o ICMS não é um imposto cujo fato tributável
seja a exploração de direitos autorais, mas sim a transmissão de titulari-
)+)"(%'.!"(/2+(2"!5+)'!,+1
b) é estranha à contratação e à execução da licença de uso de software ob-
tido por download a presença um bem móvel (bem físico, material) cujo
poder de disposição seja transferido de uma pessoa a outra por meio do
referido negócio jurídico, inexistindo, portanto, mercadoria circulando
em razão de uma operação. O que existe nesse caso são dados lógicos
(uma sequencias de caracteres que têm existência imaterial, intangível)
sendo eletronicamente copiados para um dispositivo a partir de outro
dispositivo em que estejam armazenados, sendo que esses pacotes de da-
dos copiados não trafegam diretamente de um a outro dispositivo, mas
sim por meio da rede mundial de computadores (internet).

Em sede de recursos repetitivos no STJ: REsp 1.125.133/SP, 1ª Seção, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado
em 25/08/2010, DJe 10/09/2010)
10
ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cleber. Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tribu-
tário, jan/jun de 1980nº 11-12. São Paulo: RT, 1980, p. 256.
11
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 202.
12
Conceito constante do art. 191 do Código Comercial então vigente: “É unicamente considerada mercantil
a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender por grosso ou a retalho, na mesma
espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda
metálica e o papel moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e papéis de crédito comerciais,
contanto que nas referidas transações o comprador ou vendedor seja comerciante”. Vale notar que, parte
dos bens equiparados pelo dispositivo às mercadorias foram expressamente excluídos do âmbito do ICMS
em razão da definição do fato gerador do imposto federal sobre operações financeiras, o IOF, no art. 153, V
da Constituição. Na jurisprudência, a existência do conceito de mercadoria como bem móvel destinado ao
comércio é confirmada pelos julgados que rejeitam a incidência sobre operações com bens do ativo imobi-
lizado, que não têm essa destinação (v.g. RE 194300/SP e AI-AgR 177698/SP).
260 RAFHAEL FRATTARI / VALTER LOBATO (COORDS.)

O STF adotou parte dessas razões no conhecido RE 176.626/SP, assim


ementado:

EMENTA: I. Recurso extraordinário: prequestionamento mediante embargos


de declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não preques-
tionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primitivo sobre o
qual “não foram opostos embargos declaratórios”. Mas se, opostos, o Tribunal
a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la inexistente, nada mais se
pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence, DJ 19.6.98). II. RE: questão cons-
titucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constitui-
ção: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de
competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre
se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se
pode fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador (“softwa-
re”): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma
mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de “licenciamento
ou cessão do direito de uso de programas de computador” “ matéria exclusiva
da lide “, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossi-
bilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do
campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exem-
plares dos programas de computador produzidos em série e comercializados
no varejo - como a do chamado “software de prateleira” (off the shelf) - os
quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do progra-
ma, constituem mercadorias postas no comércio.
(STF, 1ª Turma, RE 176.626/SP, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julgado em
10/11/1998, DJ 11/12/1998)

Do teor do acórdão, conclui-se que foi rejeitada a incidência do ICMS


sobre o contrato de licenciamento de uso de software, aos seguintes funda-
mentos:

a) trata-se de operação cujo objeto é o direito de uso, de caráter imaterial


e intangível, e não uma mercadoria, pois “o conceito de mercadoria efetiva-
mente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem
corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-loD1
b) o desenvolvedor do software tem um direito tutelado pelas regras da
propriedade intelectual, e não um poder de disposição de mercadoria
!"4,)'( "-'(),!",#'(5'2"!5,+-1
c) a transferência eventualmente existente teria por objeto apenas o obje-
to físico no qual gravado o software, ou seja, o corpus mechanicum, inexis-
tindo transferência no caso do licenciamento de uso de software.

O que se verifica, ao final, é que a difundida opinião de que o software de


prateleira (off the shelf), comercializado em um suporte físico (corpus mechanicum)
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA NOVA ERA NA TRIBUTAÇÃO? 261
de forma padronizada (distinto, portanto, do software por encomenda que era
objeto do acórdão) seria tributável pelo ICMS sequer compõe as razões de de-
cidir do acórdão. O acórdão apenas ventila essa possibilidade, deixando claro,
contudo, que esse não era o caso dos autos, que versava exclusivamente sobre o
contrato de licenciamento de uso de software.
De qualquer forma, nota-se que o acórdão, ao ventilar a possibilidade de in-
cidência do ICMS, foi taxativo em demandar a presença de duas características: a
padronização e o corpus mechanicum objeto de uma transferência de propriedade.
Apenas para fins de debate, a percepção é de que esses dois elementos
deixaram de ter a relevância que lhes atribui o referido julgado do STF.
Quanto ao corpus mechanicum, como demonstra o próprio objeto deste
artigo, a evolução tecnológica acabou por eliminá-lo, tornando-o irrelevante
para fins de definição do tratamento tributário da situação aqui analisada.
Quanto à padronização, nota-se que a jurisprudência do STF já relevou
tal característica enquanto marco distintivo entre o ICMS e o ISS.
Na ADI-MC 4.389 o STF analisou o conflito entre o ICMS e o ISS na
produção de embalagens sob encomenda para posterior industrialização (servi-
ços gráficos), prevista como serviço tributável no item 13.05 da LC 116/2003.
A medida cautelar foi deferida para “interpretar o art. 1º, caput e § 2º, da Lei
Complementar 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa, para
reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por enco-
menda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em proces-
so subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria”.
No que interessa à discussão aqui empreendida, é ver que o voto do Min.
Relator expressamente rechaçou a personalização da atividade como requisito
para caracterizar a prestação de serviço e sujeita-la ao ISS. Eis o trecho perti-
nente do voto:

Neste momento de juízo inicial, tenho como densamente plausível a caracteri-


zação desse tipo de atividade como circulação de mercadorias (“venda”), ainda
que fabricadas as embalagens de acordo com especificações do cliente, e não
como a contratação de serviço.
Aliás, a ênfase na encomenda da industrialização parece-me insuficiente para
contrariar a tese oposta. Diante da sempre crescente complexidade técnica das
atividades econômicas e da legislação regulatória, não é razoável esperar que to-
dos os tipos de involucro sejam produzidos de antemão e postos, indistintamen-
te, à disposição das partes interessadas para eventual aquisição. Nem é adequado
pretender que as atividades econômicas passem a ser verticalizadas, de modo a
levar os agentes de mercado a absorver todas as etapas do ciclo produtivo.
Assim, não há como equiparar a produção gráfica personalizada e encomen-
dada para uso pontual, pessoal ou empresarial, e a produção personalizada e
encomendada para fazer parte de complexo processo produtivo destinado a
por bens em comercio.
262 RAFHAEL FRATTARI / VALTER LOBATO (COORDS.)

No RE 651.703/PR o STF julgou pela constitucionalidade da previ-


são dos itens 4.22 e 4.23 da lista de serviços tributáveis pelo ISS da LC
116/2003, validando a possibilidade de incidência do imposto sobre as ati-
vidades realizadas pelas operadoras de planos de saúde e de seguro-saúde.
O acórdão não enfrentou diretamente a questão, mas sabe-se que essas ati-
vidades são padronizadas, e as mencionadas operadoras disponibilizam no
mercado planos ou seguros cujos riscos e coberturas são pré-estabelecidos.
Ao menos em regra, não se formatam planos e seguros de acordo com a ne-
cessidade individual do cliente ou sua demanda pessoal. Logo, a ausência
de personalização não foi um fator relevante para se afastar a incidência
do ISS.
Se esses critérios não portam mais a importância que lhes atribuiu a
jurisprudência pretérita e foram superados pelo novo modo de se realizar os
mesmos fatos, o importante é identificar outros critérios para a definição.
E o critério determinante já constava do julgamento do STF, e deve
ser reforçado. O que parece ser fundamental é que o licenciador do softwa-
re é titular de um direito, qual seja, o direito autoral sobre o programa de
computador desenvolvido. A Constituição prevê a tributação de direitos
em duas regras de competência, relativas ao ITCD, que pode incidir sobre
a “transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos” (art. 155, I)
e ao ITBI, que pode incidir sobre “transmissão “inter vivos”, a qualquer título,
por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais
sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição”
(art. 156, II).
Disso decorre que a Constituição não desconhece a possibilidade de
impostos sobre a transmissão de direitos, mas não se refere, em momento
algum, à impostos sobre exploração de direitos. E mesmo assim reservou
aquela possibilidade a dois impostos distintos do ICMS, o que é determi-
nante para concluir que o ICMS não é um imposto que possa incidir sobre
contratos cujo objeto sejam direitos, mas sim sobre contratos cujo objeto
sejam mercadorias, sendo esses dois conceitos distintos por estarem sepa-
rados em regras de competência distintas. Por fim, em nenhum momento
a Constituição sequer sugere a inclusão, em alguma regra de competência
tributária, dos direitos autorais como componentes do aspecto material do
fato tributável
Sendo assim, no licenciamento de uso de software obtido por meio de
download, faltam as características necessárias à incidência do ICMS, pois
este imposto não tem, dentre suas materialidades tributáveis, a exploração
de direitos, independentemente de qual seja o direito e de como ele é ex-
plorado.
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4. A AUSÊNCIA DE PREVISÃO, EM LEI COMPLEMENTAR, DA
INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE DOWNLOAD DE SOFTWARES
MEDIANTE CONTRATO DE LICENCIAMENTO DE USO

Mesmo a doutrina que admite que as descrições típicas previstas nas


regras de competência podem ser adaptadas a novas realidades, não admite
que essa adaptação seja empreendida por qualquer meio e nem que altere a
distribuição de competências tributárias.
No caso aqui tratado, não parece ser possível comparar e ordenar, sob a
mesma essência típica, situações tão distintas como uma operação de circula-
ção de mercadoria e um contrato de exploração de direitos autorais.
Portanto, a conclusão a que se deve chegar, mesmo pela leitura tipológica,
é que a exploração de direitos autorais não se deixa comparar com os fatos
tributáveis pelo ICMS, o que somente seria possível mediante descrição de
uma nova realidade econômica na regra de competência tributária estadual.
Além disso, essa doutrina é expressa em atribuir à lei complementar a
tarefa de definir o fato gerador dos impostos discriminados na Constituição,
como demanda o art. 146, III ‘a’ da Constituição, e desde que não implique
redistribuição de competências.
Portanto, se alguma evolução e adaptação dos conceitos é admitida, ela
deve ser empreendida pela lei complementar. Como no parágrafo acima foi
estabelecido que essa evolução é impossível no caso analisado mesmo por uma
leitura tipológica das regras de competência, a análise empreendida em seguida
se dá exclusivamente na tentativa de dar maior abrangência ao debate.
No caso do ICMS, a Lei Complementar nº 87/96, que traz as normas
gerais do imposto, definindo seu fato gerador, não é compatível com a tribu-
tação aqui analisada.
A LC 87/96, claramente atribui às mercadorias o caráter de bens móveis
destinados ao comércio (com exceção da importação, em que a tributação não
depende dessa destinação). Isso porque, ao definir o fato gerador do imposto,
a LC 87/96 determina que seu aspecto temporal será a saída da mercadoria do
estabelecimento, sendo este o local físico de onde sai a mercadoria (art. 11, I,
‘a’. art. 11, §3º, I e art. 12, I da LC 87/96).
Portanto, para que ocorra o fato gerador do ICMS, é necessário que uma
mercadoria saia de um local físico, o que indubitavelmente se refere a um bem
corpóreo que deixa um determinado local caracterizado como estabelecimento.
Isso não ocorre quando uma empresa armazena o software em um servi-
dor, a partir do qual os dados lógicos que compõem o software são reprodu-
zidos em pacotes transmitidos pela internet para outros dispositivos por meio
de download. Nenhum bem sai do servidor, pois os dados lógicos continuam
lá armazenados. Eles são reproduzidos e transformados em pacotes de dados
264 RAFHAEL FRATTARI / VALTER LOBATO (COORDS.)

que trafegam pela internet até serem novamente reproduzidos no dispositivo


destinatário.
Em suma, a LC 87/96 é incompatível com a tributação do contrato de
licenciamento de software obtido por meio de download, dada a natureza
intangível do direito autoral do seu desenvolvedor.
Tanto inexiste a previsão para essa tributação na LC 87/96 que os Estados
sentiram a necessidade de uma nova norma geral que regulasse esse tema, de
onde se originou o Convênio 106/2017.
Contudo, referido Convênio padece de evidente inconstitucionalidade.
Em primeiro lugar porque a tributação no destino por ele prevista não
encontra respaldo em nosso sistema tributário.
É que o ICMS somente é devido ao Estado de destino da operação e
da prestação em duas hipóteses: operações com “petróleo, inclusive lubrificantes,
combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica” (art. 155, §2º, X, ‘b’
)+(E'$%#,#/,>&'(5F5(+!#;(GH9(IGH9(JJJ()+(KE(LMFNO<1("(@nas operações e prestações que
destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado
em outro Estado” (art. 155, §2º, VII da Constituição).
Da primeira hipótese não se cogita, pois aqui não se de nenhum daque-
les bens.
Na segunda hipótese, a discussão se confunde com a própria caracteri-
zação do fato gerador do ICMS. O imposto outorgado ao Estado de destino
consistente na diferença entre a alíquota interestadual e a interna do Estado
de destino somente é devido caso se caracterize uma operação de circulação de
mercadorias e caso seja previsto, necessariamente, em lei complementar (como
reconhecido pelo STF no RE nº 580.903).
Além disso, é fato que a tributação no destino preconizada pelo Convênio
implica potencial quebra da não-cumulatividade. Basta imaginar uma situação
em que a “operação” seja interestadual. Os créditos do ICMS, que basicamente
são decorrentes das aquisições tributadas de energia elétrica13 para manutenção
dos servidores (insumos) e dos próprios equipamentos que os compõem (ativo
permanente), não poderão ser aproveitados, pois destinados a estabelecimento
situado no Estado de origem, sendo que os débitos são deslocados para o Estado
de destino. Logo, há uma criação de um imposto cumulativo devido no Estado
de destino, o que é incompatível com a não-cumulatividade constitucional.
No plano formal o Convênio padece de vícios ainda mais evidentes.
O Convênio 106/2017 dispõe sobre o fato gerador e o local da opera-
ção sujeita ao ICMS ao conceituar seus elementos nas Cláusulas Primeira e
13
E mesmo assim tais créditos não seriam isentos de discussão, pois os Estados, interpretando isoladamen-
te o art. 33, II da LC 87/96 e ignorando os arts. 19 e 20 da LC 87/96 não admitem créditos de energia
elétrica fora das hipóteses lá mencionadas, que não abrangem a situação aqui analisada.
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA NOVA ERA NA TRIBUTAÇÃO? 265
Segunda, definindo ainda o contribuinte (Cláusula Quarta) e a possibilidade
de atribuição de responsabilidade tributária na modalidade de substituição
tributária (Cláusula Quinta). Tais matérias sem dúvida são reservadas à lei
complementar, por força do art. 146, III, ‘a’ e art. 155, §2º, XII, ‘a’, ‘b’ e ‘d’ da
Constituição.
A Constituição de 1988 reconhece que a prévia lei complementar é neces-
sária à instituição do ICMS, imposto estadual de nítida vocação nacional. E
ver o disposto no art. 34, §8º do ADCT:

Art. 34 (...) § 8º Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da


Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do
imposto de que trata o art. 155, I, “b”, os Estados e o Distrito Federal, median-
te convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro
de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria.

Os Estados exerceram a competência prevista no dispositivo por meio


do Convênio ICMS 66/88, que vigorou até o ano de 1996, quando a Lei
Complementar 87/96 foi editada. A partir de então, os Convênios por meio
dos quais os Estados deliberam acerca de ICMS tiveram seu alcance restrito
à autorização para instituição de benefícios fiscais (art. 155, §2º, XII, ‘g’ da
Constituição), e mesmo assim na forma da lei complementar (atualmente es-
tabelecida nas Leis Complementares 24 e 160).
Portanto, não há mais espaço para que os Estados deliberem acerca da
matéria por meio de Convênios, como fizeram com o Convênio 106/2017,
razão da sua inconstitucionalidade.
A jurisprudência sinaliza para a necessidade de prévia lei complementar
para a instituição do ICMS, principalmente em razão da necessária unifor-
midade desse imposto, que é exigido de forma autônoma pelos Estados e
Distrito Federal.
Registre-se a recente decisão proferida pela Ministra Carmem Lucia (Pre-
sidente do STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5866/DF de-
ferindo parcialmente medida cautelar para suspender os efeitos das cláusulas
8ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª, 16ª, 24ª e 26ª do Convênio ICMS n. 52/2017
do CONFAZ que, assim como o presente Decreto 46.930, versa sobre a base
de cálculo da diferença de alíquotas (DIFAL) de ICMS devida nas operações
interestaduais sujeitas à substituição tributária e pretensiosamente instituiu a
“base dupla” nestas ocasiões.
Uma das causas de pedir da referida ADI 5866/DF foi justamente a au-
sência da necessária Lei Complementar apta a estabelecer o cálculo do DIFAL
devido pela sistemática da substituição tributária, exatamente como aqui ex-
posto. Na ADI discute-se a não obediência do Convênio ICMS nº 52/2017 à

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