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O ICMS SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

Marcelo Viana Salomão – advogado, mestre e


doutorando PUC/SP, professor IBET, FGV/SP,
MBA/FEA-Rib.Preto.

O ICMS é, sem dúvida, um dos impostos mais interessantes de nosso


sistema constitucional tributário. Seu destaque se dá tanto no mundo jurídico, quanto no
econômico e no político.
Nos dois últimos, porque, ultimamente é o imposto que mais gera
arrecadação no país e, sob o âmbito dos estudiosos do direito, devido ao fato de conter sob
sua sigla inúmeras incidências, situação que até hoje provoca constantes divergências na
doutrina e jurisprudência.
Nosso enfoque neste estudo será a incidência do ICMS sobre prestações de
serviços. Antes de adentrarmos diretamente no cerne do trabalho, porém, consideramos
oportuna a análise, ainda que de forma sucinta, da estrutura básica deste tributo.
O ICMS é um dos impostos previstos na competência dos Estados e do
Distrito Federal, consoante se colhe do art.155, II, da Constituição Federal, que assim
dispõe:

“art.155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:


I -........
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as
prestações se iniciem no exterior.”

Este dispositivo evidencia que efetivamente existem, no mínimo, três


incidências do ICMS: uma sobre operações relativas à circulação de mercadorias, outra
sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e, por fim, uma
sobre a prestação de serviços de comunicação.

Tal afirmação decorre da aplicação do critério revelador das espécies


tributárias, qual seja, a identificação e a “associação lógica e harmônica da hipótese de
incidência e da base de cálculo”.1

Paulo de Barros Carvalho ensina que o referido “binômio, adequadamente


identificado, com revelar a natureza própria do tributo que investigamos, tem a excelsa
virtude de nos proteger da linguagem imprecisa do legislador".2
Da aplicação dessa lição ao inciso II, do art.155, de nossa Carta Magna,
podemos identificar as três incidências acima arroladas.
Devemos alertar, por relevante, que o exame dos demais dispositivos
constitucionais relativos ao ICMS permite a fácil constatação da existência de mais
algumas incidências sob o manto desta sigla, como, por exemplo, ocorre com o inciso IX,
letra “a”, do § 2º., do mesmo artigo 155, que nitidamente traz em seu bojo um imposto de
importação estadual.
Não por outra razão Roque Carrazza afirma que “a sigla ICMS alberga pelo
menos cinco impostos diferentes”3.
A técnica adotada pela Constituição Federal de denominar várias incidências
com o mesmo nome não é digna de elogios, porém não pode ser considerada um obstáculo
ao estudo do ICMS e de suas incidências. Ademais, não se trata de novidade, e nem tão
pouco de exclusividade do ICMS, uma vez que o IPI, como sabemos, também possui duas
incidências distintas.
Se por um lado temos vários impostos com o mesmo nome - ou pelo menos
“apelido” -, por outro, verificamos que há princípios que se aplicam indistintamente a todos
eles, emergindo daí a constatação de um ponto comum entre todas as incidências do ICMS,
qual seja, a observância desses princípios específicos. Tais princípios também serão objeto
de análise do presente estudo, na medida em que, se são por eles atingidas todas as

1
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1995, p.24.
2
Idem, ibidem. p. 24.

2
incidências, obrigatoriamente estão incluídas as relativas aos serviços.
Didaticamente, entendemos ser melhor iniciarmos pela investigação das
hipóteses de incidência que dizem respeito aos serviços, para que depois verifiquemos os
princípios e suas aplicações.
A incidência mais conhecida do ICMS é a que se refere às operações
relativas à circulação de mercadorias, uma vez que tem se revelado estruturalmente
intacta, desde o advento da Emenda Constitucional n. 18, de 1º/12/1965, que introduziu o
ICM em nosso direito positivo. Em nosso pensar, a Constituição Federal de 1988 manteve
na íntegra a estrutura do ICM, inclusive quanto aos seus princípios específicos, mas
acrescentou algumas novas incidências, e é aí que os serviços entram; alguns deles foram
incluídos na competência tributária dos Estados e do Distrito Federal, mas também o foram
sob o nome ICMS.
Sendo assim, resta-nos analisar as novas incidências cujos núcleos são
serviços, e o faremos identificando isoladamente suas hipóteses de incidência.
Para desvendar aquela primeira – e mais conhecida – incidência, nossa
melhor doutrina4 estudou com minúcias o significado dos termos componentes de seu
núcleo estrutural, quais sejam: operações, circulação e mercadorias.
A investigação da extensão do alcance dos referidos termos utilizados pelo
Texto Constitucional permitiu que entendêssemos que o imposto sob enfoque incide sobre
negócios jurídicos (operações) relativos à transferência de titularidade (circulação) de um
certo tipo de bem (mercadorias).
Tendo sido esse o ponto de partida para o aprofundamento sobre a incidência
em comento, vale dizer, a que versa sobre a circulação de mercadorias, permitimo-nos
concluir pela validade da utilização do mesmo raciocínio também com relação à prestação
de serviços.
Voltemos, então, ao texto constitucional, para lembrar com precisão o
dispositivo em estudo, cuja transcrição da parte que nos interessa fica assim: compete aos
Estados e ao Distrito Federal instituir impostos que incidem sobre prestações de serviços

3
ICMS. 8a. edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.30.
4
BALEEIRO, Aliomar. ICM sobre a importação de bens de capital para uso do importador. Rio de Janeiro:
Revista Forense, n. 250, 1975, p.138-150. ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cleber. ICM – autonomia dos

3
de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as prestações
se iniciem no exterior.
Como são duas incidências, uma sobre prestação de serviços de transporte e
outra sobre prestação de serviços de comunicação, serão abordadas em separado.

I. O conceito de ‘prestação de serviços’:

Antes de estudarmos os termos transporte e comunicação, obrigatoriamente


pesquisaremos o sentido técnico da expressão prestação de serviços. Trata-se de passo de
fundamental relevância, o que se justifica pelo fato de que o imposto não incide
simplesmente sobre o transporte ou a comunicação em si considerados, mas sim sobre as
prestações de serviços envolvendo transporte ou comunicação.
A importância desse dado é inequívoca e com sua aplicação tentaremos
evitar as disparidades de interpretação que tiveram lugar durante anos em debates referentes
ao ICM, e, mais recentemente, no tocante ao ICMS incidente sobre operações relativas à
circulação de mercadorias. Muitos defendiam tratar-se de imposto sobre a ‘circulação’,
assim considerada a mera saída física da mercadoria e não a transferência de titularidade,
tal como, em verdade, pretende traduzir seu sentido técnico. Essa linha de interpretação,
muito utilizada pelos Estados, permitia-lhes a conclusão, por exemplo, de que o furto de
uma mercadoria no interior de uma loja seria fator desencadeante da incidência do (ICM)
ICMS, já que a mercadoria teria circulado, isto é, saído fisicamente do estabelecimento.
Ora, tal concepção não merece guarida, pois ignora que aquele imposto incide sobre
negócios jurídicos (operações), o que já impediria a incidência neste exemplo, vez que,
além de não ter ocorrido negócio jurídico algum, houve, contrariamente, um ato ilícito,
portanto, absolutamente impassível de gerar a incidência de qualquer tributo.
Por isso, insistimos em analisar antes de mais nada, o significado jurídico de
prestar serviços, para depois investigarmos quais deles podem ser alcançados pelo ICMS.
Prestar serviço quer dizer, no contexto em que está inserido, realizar uma
atividade, necessariamente para outrem e com conteúdo econômico. Atente-se aqui, por

estabelecimentos: operação mercantil – impossibilidade de negócio consigo mesmo – não há circulação


dentro de uma pessoa jurídica. São Paulo: Revista de Direito Tributário, n. 43, 1988, p.222/234.

4
relevante, à imprescindibilidade do caráter oneroso da relação, para fins de geração da
incidência tributária. Geraldo Ataliba e Aires Barreto definiram serviços como sendo: “a
prestação de serviço pessoal – criando uma utilidade – em benefício de terceiro”.5
Aires Barreto6, em outro estudo, ao analisar o termo serviço, classificou-o
como uma espécie do gênero trabalho, e com isso tornou mais nítido seu conceito.
Segundo ele, trabalho é um esforço humano que pode ser feito para si próprio ou para
terceiros, sendo que os serviços, obrigatoriamente, são prestados em favor de outrem.
Visando a melhor compreender o que seja prestação de serviço, entendemos
válida a busca de conceitos do direito privado, no caso os relativos às obrigações de dar e
de fazer. A primeira espécie caracteriza-se pela entrega de algo a alguém; a outra, por sua
vez, concentra-se na realização de uma atividade, a cujo cumprimento uma parte (sujeito
passivo da relação obrigacional/ prestador) compromete-se perante a outra (sujeito ativo/
tomador). É por essa razão que nossa melhor doutrina7 se recusa a admitir a tentativa dos
fiscos de tributar - através de impostos cuja hipótese de incidência descreva um serviço -
obrigações de dar como, por exemplo, a locação. Prestar serviço consubstancia, de forma
inequívoca, uma obrigação de fazer.
Por aí já se pode concluir que, quando realizamos um esforço ou uma
atividade para nós mesmos, tal circunstância jamais poderá ser alcançada por um imposto
que incida sobre serviços. Este raciocínio se aplica tanto para pessoas físicas, como para as
jurídicas, as quais, no caso de realizarem um auto-serviço, certamente não estarão sujeitas
ao imposto, por total ausência de subsunção. Da mesma forma, os trabalhos prestados para
terceiros de forma gratuita não poderão ser tributados por este tipo de imposto. Oportuno
observar que esta conclusão é precisa mesmo para os que não aceitam a classificação
proposta pelo Professor Aires Barreto, pois para aqueles que vislumbram apenas a
existência de serviços - seja um auto-serviço ou prestado a terceiros -, os realizados com
fins de caridade, amizade, filantropia, enfim, atos que consubstanciem mera liberalidade,
por não possuírem caráter econômico, não apresentam valor a ser tomado como base de
cálculo. Exemplificando: não estão sujeitos a nenhum imposto que incida sobre serviços

5
ATALIBA, Gerado e BARRETO, Aires Fernandino., ISS – locação e leasing. São Paulo: Revista de Direito
Tributário, n.51, 1990, p.52.
6
BARRETO, Aires F., ISS na constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2003. p. 29.

5
aqueles que se barbearem, escovarem seus dentes, prepararem seu café da manhã, bem
como, a empresa que, com veículo seu, transportar produtos de sua matriz para sua filial;
senão também aqueles que derem carona a um amigo, levarem alguém machucado ao
hospital, etc.
Essa linha de raciocínio é decorrência direta da imposição de nossa Carta
Magna quanto ao Princípio da Capacidade Contributiva, o qual estabelece que só poderão
ser tributadas situações dotadas de conteúdo econômico.
Para se chegar finalmente aos serviços que podem ser tributados, falta
excluir os serviços públicos e os prestados em caráter de subordinação. Os primeiros,
porque se submetem ao regime de direito público e, portanto, são remunerados através de
taxas. Nesse ponto, não podemos esquecer que o parágrafo terceiro do art.150 excetua da
imunidade recíproca as atividades em que haja o pagamento de preços ou tarifas pelos
usuários. Destarte, realizado um serviço público por uma concessionária mediante o
pagamento de tarifa ou preço, ele deverá ser alcançado pelo imposto sobre serviços.
Já os serviços realizados sob o manto de um vínculo empregatício não
podem ser tributados por um imposto que incida sobre serviços, pois configuram trabalho
sob comando absoluto de alguém - pessoa física ou jurídica – a qual, por sua vez, caso
venha a prestar um serviço para terceiros, sem vínculo trabalhista, será tributada. Nosso
direito positivo define como empregado aquele que trabalha de forma não eventual para seu
empregador, sob o comando deste e mediante salário8. Não se pode confundir, portanto, a
figura do empregado com a do prestador de serviços, na medida em que aquele trabalha
com vínculo empregatício e é justamente este vínculo que lhe garante a remuneração (que
tem cunho alimentar); este último, diferentemente, exerce suas atividades sem qualquer
vínculo trabalhista ou empregatício com seus tomadores.
Assim, importa repetir que a interpretação que fazemos do texto
constitucional exclui também os serviços prestados com vínculo empregatício. Parece-nos
claro, pois, que o emprego do mesmo rigor técnico utilizado para evidenciar a
impossibilidade de tributação dos auto-serviços remete-nos à obrigatoriedade de exclusão
do campo de incidência tributária também dos serviços prestados por um empregado ao seu

7
ATALIBA, Gerado e BARRETO, Aires Fernandino., ISS – locação e leasing. São Paulo: Revista de Direito
Tributário, n.51, 1990, p.55.
8
Art.3º., CLT.

6
empregador. Este sim, se prestar serviços a terceiros, sem vínculo trabalhista e mediante
paga, será tributado. Exemplificando: o motorista de uma empresa de transporte dela recebe
salário, razão pela qual se submete aos seus comandos; pelo mesmo motivo é pela empresa
remunerado, mediante salário. Esta, por sua vez, ao prestar um serviço de transporte a
terceiros, não só pode, como efetivamente será alcançada pelo imposto incidente sobre a
prestação de serviços de transporte, qual seja, o ICMS.
Essa é exatamente a linha defendida há anos por Marçal Justen Filho, para
quem “juridicamente, a alusão a serviço não abrange emprego”.9
Posto isso, pensamos já ser possível avançar a ponto de identificarmos que
os serviços passíveis de tributação são somente aqueles prestados a terceiros, dotados de
conteúdo econômico, em regime de Direito Privado, excluídos os prestados com vínculo
trabalhista.
Para encerrar este tópico, resta frisar que a Constituição se refere
expressamente a prestar serviços, ou seja, de forma explícita evidencia qual o verbo que
compõe o núcleo do aspecto material da hipótese de incidência. A utilização do verbo
prestar, em nosso sentir, restringe a possibilidades de interpretação desta regra jurídica,
pois vincula a possibilidade de tributação a quem realiza a atividade. Isto é, direciona, de
forma incontornável, a imposição deste imposto a quem presta serviço.
Destacamos este ponto, pois esta situação se difere daquela encontrada nas
hipóteses de incidência em que a constituinte empregou o termo operação, que, como
vimos, significa negócio jurídico. Ora, ao eleger o termo operação a Constituição está
autorizando que qualquer um dos lados do negócio tributado possa figurar como sujeito
passivo da obrigação tributária. É dizer, como os dois lados realizam uma operação - um
negócio jurídico - ambos podem ser alcançados por tal tributo. Em uma compra e venda de
mercadoria, por exemplo, os Estados e o Distrito Federal podem estabelecer como sujeito
passivo da obrigação tributária tanto o comprador, como o vendedor da mercadoria, vez
que o negócio jurídico está sendo realizado pelas duas partes.
Concluímos então, que ao não utilizar o termpo operações, mas sim, a
expressão prestar serviços que o constituinte pretendeu expressamente definir que só pode

9
JUSTEN FILHO, Marçal, O imposto sobre serviços na Constituição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1985, p.81.

7
figurar na sujeição passiva desta incidência do ICMS o prestador de serviços e não quem
usufrui (tomador) do resultado de sua atividade.
Reforça nossa opinião o fato de que nada impediria que a Constituição
tivesse estabelecido a incidência do imposto sobre operações relativas à prestação de
serviços, ou seja, que utilizasse a mesma fórmula empregada na definição da incidência
sobre operações mercantis. Se assim tivesse feito, aí sim, poderíamos dizer que esta
incidência tributária poderia tem em seu pólo passivo tanto o prestador como o tomador do
serviço.
Também nos parece importante acrescentar que a Constituição Federal ao
desenhar a competência tributária dos Municípios, só fala em “serviços de qualquer
natureza”10, sem adicionar o verbo prestar. Este dado nos parece fundamental em termos de
interpretação sistemática, pois evidencia o efetivo tratamento diferente dado pelo
constituinte quando outorgou competências tributárias relativas aos serviços, e também
quando cuidou das diversas incidências do ICMS.
Não ignoramos que, para que estejamos diante de uma efetiva prestação de serviço
tributável, certamente haverá de existir um contrato, ainda que verbal, previamente
celebrado. O que queremos frisar é que o fato imponível não é a celebração deste negócio
jurídico, mas sim a concretização da prestação do serviço prevista no contrato.
Conseqüentemente, estamos afirmando que apenas o prestador do serviço - e não
seu tomador ou quem dele usufruir - poderá figurar no pólo passivo dessa relação jurídica
tributária. Tributar qualquer pessoa além do prestador extrapola a autorização
constitucional.

II. O ICMS INCIDENTE SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


DE TRANSPORTE

A Constituição Federal, de forma expressa, no inciso II do artigo 155, diz


que os serviços de transporte que poderão ser tributados pelo ICMS são os interestaduais e
os intermunicipais, ainda que se tenham iniciado no exterior.

8
Está claro que não é todo e qualquer serviço de transporte que poderá ser
tributado pelos Estados e pelo Distrito Federal, pois o texto constitucional expressamente
estabeleceu limites geográficos a tal incidência. Por outro lado, a Constituição não
restringiu espécie alguma de transporte; assim, podem ser tributados os deslocamentos de
pessoas e cargas, independentemente do veículo utilizado para tanto. Neste sentido, Roque
Carrazza assevera que, por não haver restrição ao tipo de veículo, também são passíveis de
tributação os transportes realizados por oleodutos, “pipelines”, esteiras rolantes,
“containers” e veículos movidos a tração animal, entre outros.11
Assim, o “S” acrescido à sigla ICMS, oriunda do ICM, vem a indicar a
inclusão de alguns serviços no campo de competência tributária dos Estados e Municípios,
sendo que entre eles figuram justamente os serviços de transporte intermunicipal e
interestadual. Nesse sentido, muito embora a Constituição tenha outorgado aos Municípios
a competência para instituir imposto que incida sobre os serviços de forma geral, houve por
bem ressalvar os relativos ao transporte intermunicipal e interestadual, bem como os de
comunicação, deslocando-os para a competência de outros entes da Federação, situação que
exige elevada cautela tanto por parte dos Estados e do Distrito Federal, como dos
Municípios, para que não venham a cometer invasão de competência alheia.
Em termos de interpretação sistemática, é fundamental registrarmos, quando
da análise desta particular incidência do ICMS, que estamos diante de uma nítida exceção
ao princípio constitucional que proíbe “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou
bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de
pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”.12 Portanto, além dos
pedágios, a Carta Magna estabelece outra exceção a esse princípio, qual seja, a cobrança de
ICMS quando se realizar serviço de transporte que ultrapasse os limites geográficos
municipais e interestaduais.
Consignamos, por outro lado, que a exigência do ICMS sobre a prestação de
serviços de transporte se submete aos demais princípios constitucionais tributários, em
especial ao veiculado pelo art.152 da Carta Magna, que prescreve o impedimento à
tributação de bens e serviços de forma diferenciada em razão da procedência ou destino.

10
Art.156, III, da CF.
11
CARRAZZA, Roque Antonio. O ICMS na Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.133.
12
CF, art.150, V.

9
Feitas tais considerações, podemos iniciar o trabalho de definição da
hipótese de incidência deste imposto.

II.1. Aspecto material da h.i.

Seu aspecto material é prestar serviços de transporte que ultrapassem os


limites territoriais do Município e do Estado. A definição de todo este complemento ao
verbo ‘prestar’ (serviços) é obrigatória, pois assim é o desenho traçado pelo Texto
Constitucional, restando cristalino que a incidência somente alcança os serviços de
transporte que ultrapassem a barreira territorial de um Município (não mencionamos
também o limite geográfico dos Estados porque para se passar de um Estado para outro
obrigatoriamente se estará atravessando a fronteira entre dois Municípios).

II.2. Aspecto pessoal da h.i.

A sujeição ativa deste imposto apresenta-se exclusiva dos Estados e do


Distrito Federal; já a passiva, conforme cuidamos de antecipar, apenas poderá recair sobre
os prestadores do aludido serviço de transporte. Reiteramos, outrossim, que o emprego do
verbo ‘prestar’, em nosso sentir, tem o condão de impedir que a legislação
infraconstitucional venha definir outra pessoa para a condição de contribuinte.

II.3. Aspecto espacial da h.i.

No tangente ao aspecto espacial, também há que se atentar ao fato de que,


muito embora o fato imponível obrigatoriamente ultrapasse limites territoriais de
Municípios e Estados, o ente competente para exigi-lo será sempre um Estado, ou o Distrito
Federal. Isto é, se o serviço consubstanciar um transporte de computadores, por exemplo,
de uma cidade para outra pertencente ao mesmo Estado, a competência para cobrar o ICMS
devido será do Estado onde estiverem localizados os Municípios. Já nos casos em que
ocorrer o transpasse de território estadual, competente para a exigência do imposto será o
Estado onde se tiver iniciado a prestação do serviço. Assim, iniciado um serviço em um

10
determinado Estado, tendo o veículo transportador atravessado três fronteiras estaduais para
chegar ao Município onde se localiza o destinatário do serviço, temos que a competência
para exigir o ICMS será daquele primeiro Estado, no qual teve início a descrita prestação.
Diante de tais colocações, permitimo-nos concluir que o serviço de
transporte intermunicipal, aquele empreendido dentro dos limites territoriais de um único
Município, jamais será passível de tributação pelo ICMS, tal qual hoje se encontra
delineado em nossa na Lei Maior. Poderá sim, ser exigido pelos Municípios por meio do
ISS – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza –, desde que respeitadas, por óbvio, as
exigências legislativas para tanto.
Roque Carrazza nos ensina que se o serviço prestado se der entre dois
Estados, mas envolver a troca de veículo dentro do território de uma mesma cidade, entre o
ponto inicial e o final do transporte, referida circunstância não acarretará a tal Município a
prerrogativa de exigir o ISS, vez que a mencionada troca de veículo é parte integrante do
negócio jurídico único que gerou a prestação de serviço de transporte interestadual de que
ora tratamos. Continua, o mesmo professor, lecionando que isso se dá tanto no transporte
de cargas, como no de pessoas, onde podem ocorrer as denominadas “baldeações” sem que
este fato gere a incidência do ISS. Outra colocação interessante referente ao tema, também
colhida nas lições de Roque Antonio Carrazza, é a hipótese de o transporte prestado ter
como pontos inicial e final o mesmo Município, mas que, por uma questão de traçado de
ruas, parte do percurso implicar a saída momentânea do território municipal. Nesse caso,
apenas e tão somente o ISS poderia ser cobrado, na medida em que o serviço prestado se
concretizou dentro do território municipal.13

II.4. Transporte Internacional.

Imperioso investigarmos, ainda neste tópico, a questão atinente ao transporte


internacional. Nos termos do disposto na Magna Carta, serão tributadas as prestações de
serviço de transporte interestadual e intermunicipal, ainda que iniciadas no exterior. É
dizer, juridicamente é inquestionável a possibilidade de se tributar serviços de transporte
cuja prestação tenha se originado em outros países; por outro lado, não encontramos no

13
Idem, ibidem, p.135/136.

11
mesmo texto autorização para tributação de serviço que iniciado no Brasil e concluído no
estrangeiro.
Concluímos, então, que só o serviço iniciado no exterior e finalizado aqui,
poderá ser tributado pelo ICMS, pois para a situação oposta, de início aqui e conclusão da
prestação no exterior não há previsão constitucional, razão pela qual nenhuma norma
infraconstitucional poderá instituí-la.
A previsão constitucional que enseja a tributação refere-se a serviço de
transporte que ultrapasse as fronteiras municipais e estaduais, ainda que se tenha iniciado
no exterior. Ora, sendo assim, considerando que o serviço de transporte se inicie no
exterior, mas que, ao entrar no Brasil não ultrapasse fronteiras municipais, afastada estará a
possibilidade de tal incidência, uma vez que, em relação ao mero transporte internacional,
não há autorização constitucional para a exigência de ICMS. Somente se poderá cogitar da
viabilidade de cobrança no caso de o serviço de transporte, iniciado em outro país,
efetivamente atravessar o território da cidade fronteiriça pela qual o veículo transportador
tiver adentrado o território nacional. Noutro dizer, se esta prestação se iniciar no exterior
mas se encerrar na cidade brasileira que constitua a primeira após o limite geográfico entre
os países, nada poderá ser exigido a título de ICMS, por total ausência de subsunção à regra
constitucional.

II.5. Transbordo.

Cabe aqui, por oportuno, registrarmos um breve comentário sobre a questão


do transbordo, que se dá sempre que ocorre a troca de veículo para que se prossiga com o
ingresso dos bens transportados em outros países, motivada, por exemplo, por questões de
segurança. Assim, se tomarmos por base um serviço contratado e cabalmente prestado,
nada obstante tenha como ponto de partida um município brasileiro e, como destino, um
situado em outro país, o fato de ser obrigado a realizar a troca de veículo no momento que a
carga ou as pessoas transportadas deixarem o território nacional, por si só não tem o condão
de ensejar a exigibilidade do ICMS por parte do Estado em que se tenha iniciado o aludido
serviço de transporte. Continuamos vislumbrando uma prestação de serviço única, cujo
destino final é o exterior, razão pela qual encontra-se fora do campo de incidência do ICMS

12
sobre serviço de transporte.

II.6. Serviço de transporte iniciado e finalizado no exterior.

Situação intrigante é a contida no artigo 155, parágrafo 2o., inciso IX, alínea
“a”, em que o constituinte cuidou do ICMS sobre importação, bem como sobre o serviço
prestado no exterior. Dispõe o referido dispositivo que este imposto será da competência
do Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário do serviço.
Trata-se, aqui, de serviço iniciado e finalizado no exterior e, mesmo assim, pretenderam os
constituintes conceder autorização para a cobrança do ICMS sobre tal serviço de transporte.
Segundo nosso entendimento, a Constituição Brasileira neste passo andou mal, e legislou
além de sua competência. Em termos práticos, ainda que se admitisse a possibilidade de tal
exigência, não vemos como seria possível que a mesma se efetivasse, uma vez que, se o
serviço de transporte se iniciou e foi concluído em território internacional, é porque se deu
entre pessoas lá situadas. Desse modo, tem-se que, mesmo que o prestador seja a filial de
uma empresa brasileira, não há falar-se na possibilidade de a matriz brasileira ser atingida
por tal exigência tributária.
Gostaríamos de, a esta altura, chamar a atenção para a confusão legislativa
estabelecida neste dispositivo, pois ainda que se supere a questão da soberania dos Estados,
remanesce a seguinte situação: o fato imponível dessa incidência ocorrida em território
estrangeiro seria a prestação de serviço no exterior; conseqüentemente, o sujeito passivo
seria o prestador de tal serviço. A parte final deste dispositivo, no entanto, diz que o
imposto será devido ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do
destinatário do serviço. É dizer, embora o contribuinte obrigatoriamente tenha que ser o
prestador do serviço, o mesmo artigo outorga competência tributária ao Estado em que
estiver “localizado o domicílio ou estabelecimento do destinatário”. A confusão é total.
Imagine-se a situação na qual uma filial de uma empresa nacional, localizada em Madrid,
por exemplo, preste serviço de transporte a uma empresa espanhola, localizada em
Barcelona. O serviço é transportar algo de Madrid à Barcelona, isto é, inteiramente
realizado em território estrangeiro. Nesse caso, entendendo-se aplicável o referido
dispositivo constitucional, também nos depararíamos com inviabilidade de se efetuar a

13
cobrança do indigitado tributo, pois que não há no Brasil domicílio e nem estabelecimento
do destinatário do serviço. Assim, o que estaria tentando tal dispositivo tributar? Parece-
nos, pela redação do Texto Constitucional que seria o serviço de transporte ou comunicação
praticado no exterior, mesmo que por empresa estrangeira, que tivesse por destinatário,
obrigatoriamente, uma empresa ou pessoa estrangeira, cujo domicílio ou estabelecimento
matriz estivesse situado no Brasil. Porém, mesmo preenchidos tais requisitos, nos parece
impossível se cogitar da incidência de ICMS. Acreditamos que mesmo para esta última
hipótese a celebração de um tratado internacional se faz absolutamente imprescindível, sob
pena de total e evidente desrespeito a questão da territorialidade.

II.7. Aspecto temporal da h.i.

No que diz respeito ao aspecto temporal, o momento estabelecido pela


legislação atual14 é o do início da prestação do serviço. Esta é a regra para os serviços
prestados em território nacional; para os iniciados no exterior, contrariamente, considera-se
ocorrido o fato imponível com a concretização da prestação do serviço, ou seja, no
momento da finalização do serviço no Brasil.

II.8. Aspecto quantitativo da h.i.

Por fim, no tocante ao aspecto quantitativo, também não vislumbramos


maiores percalços, sendo a única base de cálculo possível o valor da prestação do serviço. É
dizer, qualquer acréscimo ao valor da prestação implica inadmissível inconstitucionalidade,
vale dizer, exemplificativamente, tentar incluir a valor do pedágio em um serviço de
transporte fere frontalmente o arquétipo constitucional deste imposto. Só pode ser base de
cálculo do ICMS incidente sobre a prestação de serviço de transporte o preço da passagem
ou do frete, nada mais. Quanto às alíquotas, assim como ocorre com todas as demais
incidências dos impostos reunidos sob a insígnia do ICMS, recebem tratamento
diferenciado, conforme seja o serviço prestado dentro do território do Estado ou,
contrariamente, venha atravessar barreiras estaduais, em respeito à ordem constitucional

14
Lei Complementar n. 87/96, art.12, inciso V.

14
acerca da matéria. Observe-se, quanto a este particular, a preocupação de se estabelecer
uma delimitação diversificada dos patamares das alíquotas nas hipóteses em que os serviços
envolverem transporte internacional.

15

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