Você está na página 1de 3

Caio Menezes Arruda

FICHAMENTO

NOBRE, E. A. C. Capítulo 1 - Considerações acerca da produção do espaço no contexto do capitalismo periférico. In:
NOBRE, E. A. C. Do plano direto às operações urbanas consorciadas: a ascensão do discurso neoliberal e dos grandes
projetos urbanos no planejamento paulistano. São Paulo: Annablume, 2019. pp. 29-53.

Eduardo Nobre é arquiteto e urbanista, com carreira acadêmica dedicada à área de urbanismo e
planejamento urbano. O texto em questão é baseado em pesquisa de livre-docência defendida na FAU-USP,
fruto de pesquisas sobre planejamento e grandes projetos urbanos desenvolvida em pós-doutorado no
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ. O trabalho como um todo se dedica a
analisar a mudança de paradigma na orientação das políticas de planejamento urbano em São Paulo, com a
ascensão do discurso neoliberal a partir da década de 1980, estudando formação histórica da cidade, as
influências teóricas no urbanismo brasileiro, as políticas de planejamento adotadas e suas consequências.
Para Nobre, as políticas de cunho mercadológico que passaram a preponderar só reforçaram os males do
planejamento paulistano, que priorizou historicamente investimentos em obras viárias e a na expansão de
áreas de interesse do mercado imobiliário.
Tendo em vista que o espaço é ao mesmo tempo meio e produto do desenvolvimento das forças
materiais de produção, uma análise sobre a composição socioeconômica do espaço deve necessariamente
levar em conta a natureza das relações econômicas que produziram esse espaço. Sendo assim, no primeiro
capítulo é traçado um panorama sobre a construção do espaço metropolitano paulistano considerando as
condicionantes histórico-econômicas do país como periferia do capitalismo global e da formação da
metrópole de São Paulo no cenário nacional.
A condição contraditória singular de São Paulo, concentrando a maior população e riqueza do país
e ao mesmo tempo uma imensa desigualdade espacial e econômica, é fruto de um desenvolvimento histórico
nacional marcado pela “dependência externa, tanto financeira quanto técnica e ideológica, pela resultante
expatriação de parte significativa do capital acumulado e pela subjugação das classes excluídas desse processo
pelas classes dominantes” (Nobre, 2019, p. 31). Essas características se arrastam desde a época colonial, uma
vez que a economia da colônia sempre foi voltada para os interesses da metrópole. O predomínio da vida
rural sobre a urbana durante esse período engendraram relações sociais pautadas nos interesses e valores
familiares (Holanda, 1971). Consequentemente, não se construiu uma distinção entre o manejo dos
assuntos no ambiente público e privado, levando a um modelo de administração patrimonialista e
clientelista que segue fazendo parte do Estado até hoje.
A independência de Portugal não alterou essa condição de dependência do capital externo, que
continuou imperando através das dívidas pública e privada ou investimentos externos diretos (IED),
inicialmente com o capital inglês explorando o setor de infraestrutura e depois a “industrialização fordista”
do pós-guerra (Nobre, 2019, p.31). O desenvolvimento desse último período era baseado na teoria de os
países da periferia do capitalismo poderiam alcançar o crescimento dos países centrais seguindo o mesmo
modelo de crescimento, creditada ao economista estadunidense Walt Rostow (1964). No entanto, as
condições de acumulação dos países subdesenvolvidos são distintas, e seguindo o mesmo modelo não
conseguiriam sair da condição de dependência do capital central, como apontou Celso Furtado (1974).
Sendo o capital estrangeiro o principal agente motor da economia nacional, boa parte da riqueza
produzida não fica retida no país, seja pelo pagamento da dívida externa ou pela própria repatriação do
capital pelas multinacionais. O que “resulta em uma base de acumulação restrita do capital, e que, por sua
vez, ocasiona a concentração espacial para a sua reprodução” (Nobre, 2019, p. 33, grifo nosso). Além
disso, esse processo de acumulação opera, como disse Florestan Fernandes (1968), em mecanismos
permanentes de sobre-apropriação e sobre-expropriação, explorando a classe trabalhadora. Até o final do
século XIX, a maior parte dessa população marginalizada era composta por afrodescendentes, sendo a
principal força trabalhadora do período a mão-de-obra escrava africana. Hoje a população negra segue sendo
mais marginalizada, constituindo metade da população do país mas três quartos da faixa mais pobre,
segundo dados do IBGE de 2015.
Esse cenário de exploração se manteve no período desenvolvimentista do pós-guerra, com o
crescimento comandado por multinacionais e baseado na compressão salarial e pouca proteção para os
trabalhadores. No período neodesenvolvimentista, apesar dos avanços sociais, com um crescimento médio
do PIB de 4% entre 2003 e 2013, redução do desemprego de 12,3 para 5,3% e saída de 25 milhões de pessoas
da pobreza extrema (IBGE e Banco Mundial), as políticas de redistribuição de renda e crescimento
econômico tampouco reverteram o cenário de exploração. A concentração de renda aumentou
drasticamente, se igualando a níveis de 1960 no período. Essas políticas apenas atenuaram o agravamento da
condição de vida que a população sofreu nas décadas de 80 e 90. Não houve um rompimento com a
condição nacional de dependência do capital externo e o sistema financeiro global, que foram cruciais no
crescimento dos anos 2000, e que depois da crise de 2008 e a recusa do governo a aderir a mais medidas
neoliberais, deixaram o país em um período de alta instabilidade econômica.
A metrópole de São Paulo é parte desse processo como produto espacial e meio físicopara sua
realização. A aglomeração urbana se iniciou com o crescimento econômico do período cafeeiro a partir da
metade do século XIX e se intensificou demasiadamente com a industrialização fordista a partir da década
de 1950. Contudo, as condições restritas de acumulação do capital resultaram em dois fatores agravantes da
urbanização brasileira: uma concentração dos capitais na região Sudeste, que atraiu um intenso fluxo
migratório de regiões menos favorecidas do país, principalmente Norte e Nordeste; e um baixo
desenvolvimento do setor industrial, com boa parte do capital indo para o terceiro setor, de forma que o
crescimento urbano foi pautado avanço pelo do setor de serviços para absorver a mão de obra disponível,
ocorrendo de forma descentralizada e sem organização. Esse processo foi chamado pelo sociólogo Francisco
de Oliveira (2003) de “urbanização sem industrialização”. Ermínia Maricato ainda pontua que essa foi
uma “urbanização com baixos salários”, com a população de baixa renda não tendo acesso à moradias de
qualidade e tendo frequentemente que morar em habitações precárias informais, como cortiços, favelas e
loteamentos irregulares periféricos. As metrópoles brasileiras já tiveram 50% da população vivendo nessa
condição. Segundo dados do Ministério das Cidades, no ano de 2000, 50% da população não tinha acesso a
saneamento básico, 11% dos domicílios urbanos não tinham acesso ao sistema de abastecimento de água
potável e 20% das famílias brasileiras não possuíam moradia. No município de São Paulo, uma estimação
recente da Secretaria de Habitação aponta que 25,8% dos domicílios estão em situação de precariedade,
12,4% são em favelas, e 10,7% em loteamentos irregulares.
No processo de desenvolvimento brasileiro, os investimentos em serviços e infraestrutura nas
metrópoles ficaram concentrados, segundo interesse do mercado imobiliário e a população mais pobre foi
sendo excluída dessas regiões e empurrada para regiões menos favorecidas, muitas vezes de maior risco
ambiental (Villaça, 1998, apud. Nobre, 2019), produzindo cidades extremamente desiguais. Em São Paulo,
o Quadrante Sudoeste definido por Villaça, compreendendo as sub-prefeituras da Lapa, Pinheiros e Vila
Mariana e os distritos do Butantã, Morumbi à oeste, Santo Amaro e Campo Belo ao sul e Consolação à leste,
é a região que concentra a maior parte da infraestrutura e dos empregos da metrópole. Nobre (2019)
demonstra isso com mapas apontando que três da seis linhas de trem e os cinco principais corredores de
ônibus passam por ela; a densidade de empregos/ha varia de 80 a 650, enquanto na Zona Leste do
munícipio fica abaixo de 15; o fornecimento de telefonia fixa chega a 85% dos domicílios, enquanto a
periferia apresenta menos de 65%. Além disso, a região concentra quase todas as zonas exclusivamente
residenciais da cidade, resultando em uma contradição própria da produção espacial do capitalismo
periférico: a área de melhor oferta de serviços e infraestrutura apresenta diversas áreas de baixa densidade,
enquanto que a concentração populacional ocorre onde há pior qualidade urbana. Essa diferença se
explicita comparando bairros como Parque Santa Madalena e Jardim Elba, no distrito de Sapopemba, com o
Jardim Guedala, no Morumbi. Os primeiros, localizados na periferia da cidade, na zona sudeste, têm
densidades demográficas altas, variando de 287 a 1.159 hab/ha, e alta vulnerabilidade social, com renda
média de R$1.250. Já o segundo, com renda média de R$7.600, tem uma densidade de apenas 40 habitantes
por hectare, por ser um bairro de elite exclusivamente residencial (Nobre, 2019). O contraste se estende para
o tamanho dos lotes e uso das áreas livres. O Jardim Guedala apresenta ruas e calçadas largas, grande
quantidade de área vegetada e lotes grandes, enquanto os bairros de Sapopemba apresentam lotes são quase
7 vezes menores, ruas mais estreitas e calçadas com apenas meio metro em média e menos de 20% de áreas
livres, sendo que boa parte delas é ocupada por habitações irregulares.
Nas metrópoles dos países centrais do capitalismo, embora também exista desigualdade e
localização da população de baixa renda em bairros específicos, a rede de infraestrutura urbana se estende de
forma mais homogênea por todo o território, alcançando toda a população. Nas metrópoles periféricas, a
concentração dos empregos e da infraestrutura urbana na região elitizada acaba trazendo também uma série
de problemas de mobilidade. A população da periferia tem enorme dificuldade de acesso aos empregos e
serviços da região central, e os investimentos focados no modal individual só agravam essa questão. Como
consequência, a população pobre, e em sua maioria negra, fica isolada nas regiões carentes de serviços e
infraestrutura urbana, configurando uma segregação de ordem racial profunda no país, mesmo sem que
tenham havido leis raciais diretas nesse sentido.
O crescimento da metrópole de São Paulo se deu de forma desordenada e desigual, por um Estado
que não foi capaz de desenvolver suas forças produtivas a ponto de organizar o espaço e atender a
população, sendo pautado historicamente por acordos clientelistas com o capital estrangeiro e deixando a
cidade sujeita aos interesses do mercado imobiliário. O resultado é uma metrópole extensa, populosa e
altamente desigual.

Você também pode gostar