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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL


SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS

CICLO DE ESTUDOS SOBRE A AMAZÔNIA

Brasília
Abril / Maio - 2004
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente: Luiz Inácio Lula da Silva

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL


Ministro: Jorge Armando Felix

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS


Secretário: José Alberto Cunha Couto

Edição: Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais


Endereço para correspondência:
Praça dos Três Poderes
Palácio do Planalto, 4° andar, sala 130
Brasília - DF
CEP 70150 - 900
Telefone: (61) 3411 1374
Fax: (61) 3411 1297
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Impressão: Santa Clara Editora - Produção de Livros Ltda

A presente publicação expressa a opinião dos autores dos textos e não reflete
necessariamente a posição do Gabinete de Segurança Institucional.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C568 Ciclo de Estudos sobre a Amazônia (Brasília: 2004). Brasília: Gabinete


de Segurança Institucional; Secretaria de Acompanhamento e Estudos
Institucionais, 2004.
281 p.

1. Amazônia. 2. Desenvolvimento Sustentável. 3. Geopolítica.


4. Fronteira. I. Presidência da República. II. Gabinete de Segurança
Institucional

CDD 338.981
Sumário
I
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento
Sustentável da Amazônia� ................................................................ 05

II
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica� ............. 33
Gloria Maria Vargas

III
Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos
para a Amazônia Brasileira� .............................................................. 61
Rodrigo de Aquino

IV
Relatório da Reunião de Estudos .................................................... 71

V
Amazônia: uma Área – Pivot para uma
Nova Política Brasileira� ..................................................................... 95
Francisco Carlos Teixeira da Silva

VI
Limitações ao Exercício da Soberania na
Região Amazônica� ........................................................................... 135
Bertha K. Becker

VII
Relatório do Encontro de Estudos� ................................................... 221
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento
Sustentável da Amazônia
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Apresentação

Com o objetivo de aprofundar os conhecimentos sobre áreas


estratégicas de interesse do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência
da República (GSI/PR), a Coordenadoria de Estudos da Secretaria de
Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei) idealizou o Ciclo de
Estudos sobre a Amazônia com uma série de três eventos: Palestra,
Reunião e Encontro de Estudos – que reunirá especialistas, pesquisadores,
técnicos e estudiosos da temática ambiental que, com seus conhecimen-
tos e experiências poderão auxiliar na construção e aprofundamento da
referida temática e, dessa forma, contribuir para formulação de políticas
e ações de Governo.
O primeiro da série de três eventos foi a Palestra realizada na
manhã do dia 15 de abril de 2004, no Auditório de Videodifusão do Pa-
lácio do Planalto, que contou com a participação de cerca de 35 pessoas,
entre técnicos do Governo, acadêmicos, especialistas e representantes
de organizações da sociedade civil organizada.
A palestra abordou o tema Desenvolvimento Sustentável da
Amazônia e teve como conferencista Edna Maria Ramos de Castro,
Doutora em Ciências Sociais e Professora do Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará.
A abertura do evento foi realizada pelo Senhor José Alberto Cunha
Couto, Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei),
que agradeceu a presença dos participantes fazendo referência especial
ao Almirante Barbosa, representante do Ministério da Defesa; ao Senhor
Flávio Montiel, Diretor de Proteção Ambiental do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e também
ao Professor Luiz Aragon, Coordenador Geral do Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará.


Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em seguida, José Alberto Cunha Couto fez uma breve contextu-


alização das atividades da Saei dentro da área de atuação da Secretaria
Executiva do Conselho de Defesa Nacional, que é um colegiado de
Estado, e da Secretaria Executiva da Câmara de Relações Exteriores e
Defesa Nacional (Creden), que é um Colegiado de Governo.
O Secretário explicou que há temas que são acompanhados pela
Saei porque têm potencial de gerar crises para o Governo ou para o
Estado, e necessitam de um aprofundamento da área de estudos, esse
corpo de conhecimentos é então discutido dentro de câmaras próprias,
ou seja, se o assunto é de Estado é encaminhado para o Conselho de
Defesa Nacional ou se o assunto diz respeito ao governo, então ele seria
encaminhado para a Creden.
Finalizando, ressaltou que a realização dos eventos que têm por
objetivo discutir temáticas importantes para as ações governamentais
não se restringe apenas às discussões pontuais, ao contrário, apresentam
desdobramentos com aplicações concretas dentro das políticas de Estado
ou de Governo.

Parte I – Apresentação da Professora Edna Castro, Pesquisadora


do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Univer-
sidade Federal do Pará

A Professora iniciou sua apresentação agradecendo ao convite


para participar do evento e agradecendo também ao Secretário da Saei,
José Alberto Cunha Couto e ao Coordenador de Estudos, José Carlos
de Araújo Leitão.
Informou que privilegiaria quatro itens em função da exigüidade
do tempo e que iniciaria sua apresentação realizando uma contextua-


Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

lização sobre a Amazônia, lugar onde desenvolve seu trabalho e sua


reflexão acadêmica. Ressaltou as diferentes perspectivas de se perceber
a Amazônia e chamou a atenção para os diversos olhares e percepções
do contexto amazônico, destacando sua visão de pesquisadora sobre o
desenvolvimento, a história, bem como as contradições da região.
Explicou que, em função da complexidade temática optou por
dividir a apresentação em quatro temas, que segundo ela, seriam os mais
polêmicos em relação à Amazônia:

1. Políticas
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de Desenvolvimento e Meio Ambiente;
2. Dinâmicas
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dos Atores Sociais e Problemas Ambientais;
3. Cidades
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e Meio Ambiente;
4. A
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Integração da Pan-Amazônia.

Em relação ao primeiro tema: Políticas de Desenvolvimento e


Meio Ambiente, Edna Castro destacou que é o tema sobre o qual o NAEA
se debruça e que não dá para pensar o desenvolvimento como algo que
subordina o meio ambiente ou pensar em meio ambiente fora do contexto
de desenvolvimento e que, portanto, esse binômio representaria a utopia
da comunidade científica, da comunidade internacional e da sociedade
brasileira há mais de vinte anos.
Traçando uma contextualização histórica dos planos de desen-
volvimento para a Amazônia, Edna Castro se reportou aos anos de1970
onde foi retomado o conceito de integração agregado aos programas de
colonização, de agricultura e de migração. A abertura dos grandes eixos,
dentro de um contexto do programa de integração e de infra-estrutura foram
fundamentais para o recorte atual da Amazônia, como a Transamazônica,
Cuiabá-Santarém e a Perimetral Norte.
Nos anos de 1980, houve a continuidade de alguns programas,
porém com definições importantes a partir do aparecimento de temas


Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

relacionados à macro estrutura de macro desenvolvimento. Os impactos


ambientais começam a ser percebidos e contestados ou apresentados
por diferentes atores e também pelo aparecimento de grandes projetos
e os interesses de novas áreas de fronteiras. Nesse contexto, surgem
novas dinâmicas socioeconômicas e de territorialidade aparece assim
os movimentos sociais que estão presentes em função de uma discussão
relacionada ao território, aos recursos e ao fortalecimento de estruturas
institucionais como Ongs e outros movimentos, consolidando assim um
processo de mudança regional.
O programa Avança Brasil e a revalorização do conceito de inte-
gração redefiniram essa matriz dos novos planos de desenvolvimento e
da percepção da Amazônia enquanto uma fronteira consolidada.
O que haveria de novo e o que constituiria grandes desafios para
pensar a Amazônia nesse novo milênio? Questionou. Para Edna Castro,
a percepção atual, sobretudo a partir da década de 1990, é de uma
Amazônia mais Pan-Amazônica, embora este debate esteja presente há
muito tempo. Destacou que em relação à criação do NAEA, em 1973, o
mesmo surgiu como um Curso de Especialização Pan-Amazônico, com
alunos de países limítrofes com a Amazônia brasileira. Desde a década de
1970 vem ocorrendo um processo acelerado de integração de mercados
com uma nova fase da globalização e isto tudo, estaria ligado a uma outra
matriz geopolítica. Conseqüentemente, pensar a Amazônia nessa dimen-
são da Pan-Amazônia, da integração de um mercado global, é algo que
vai muito além da possibilidade do País de pensar um desenvolvimento
interno, dentro do próprio País, ou seja, da Região Amazônica.
O tema seguinte foi Dinâmicas dos Atores Sociais e Problemas
Ambientais. Ressaltou que sua análise sobre a dinâmica do desmata-
mento está ligada a uma perspectiva metodológica de entender quais
seriam os atores que agem no território - ao mesmo tempo regional,
nacional e também internacional. Dentro dessa perspectiva metodológica

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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

é necessário identificar: quais são os interesses que movem esses atores?


Quais são os seus projetos e como esses projetos estão levando, ao lon-
go dos anos, a um processo de desmatamento, apesar de todo o esforço
do Ministério do Meio Ambiente e de todo um conjunto institucional,
incluindo as Organizações Não Governamentais?
Declarou que dados obtidos recentemente mostram que de 1978
a 2000, em diferentes estados da Amazônia Legal, o processo de cres-
cimento do desmatamento se manteve. Porém, nos Estados do Pará,
Rondônia e Mato Grosso esse crescimento foi muito mais acentuado.
Já no Amapá e Amazonas, o desmatamento foi menor. Apontou ainda
a importância de absorver essa informação - não como um dado estáti-
co, mas como um movimento que se expande no Território e que está
relacionado com uma história nacional de atores sociais. Haveria um
processo de expansão de certas atividades migratórias como a pecuária,
a soja e a exploração madeireira.
A questão econômica é fundamental para se entender as diversas
variáveis, a dinâmica espacial dos atores sociais e ao mesmo tempo, a
dinâmica da própria atividade e do crescimento do País que está direta-
mente interligado com a ocupação das novas fronteiras.
Ao expor as áreas de desmatamento analisou que há várias inter-
pretações de especialistas e pesquisadores sobre a questão, inclusive de
que o desmatamento diminuirá porque as áreas já estão ficando consoli-
dadas. O Sudeste do Pará não é mais uma área de fronteira, é uma área
de uma economia pecuária já organizada, estruturada, que verticaliza a
partir daí toda uma cadeia leiteira, acontecendo o mesmo nos Estados
do Maranhão, Goiás e Tocantins.
Há um entendimento de que este processo pode estagnar-se,
porém, ele tende a ampliar-se, tanto em termos absolutos como em
termos relativos, em função de novas áreas que estão sendo incorporadas
à atividade econômica de uma maneira mais célere.
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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

O estudo desenvolvido pela Sudene e pelo Ministério do Meio


Ambiente, publicado em 2002, mostrou que o montante de áreas que
ainda podem ser ocupadas equivalem à cerca de 20 milhões de hecta-
res, sendo no Mato Grosso, em torno de 10 milhões de hectares. Isto
significa que se essas áreas, pensadas como áreas potenciais para soja,
se tornarem efetivas, não é possível deduzir se haverá uma redução da
taxa de desmatamento uma vez que, há expansão de uma atividade que
se direciona para áreas degradadas.
Porém, esta interpretação é também questionável, afirmou. Em
relação ao desmatamento para plantação de soja, assegurou que a soja
pode não pressionar o desmatamento porque utiliza áreas degradadas. Em
compensação, impulsiona a compra de áreas que estão sendo desmatadas
por outras atividades, como no caso da pecuária, da extração madeireira
ou da mineração. Esta dinâmica reafirmou, precisa ser entendida em sua
complexidade para efeito de pensar políticas de desenvolvimento de uma
maneira mais correta do ponto de vista ambiental.
Em relação à participação dos Estados, referiu-se aos dados do
Ibama, do Inpe e do Ibge que permitem uma análise dos municípios. É
importante que se pense essas unidades menores em termos de políticas
para que possam ser aplicadas e avaliadas nos municípios.
Ao apresentar um mapa onde exibiu a área denominada “Arco do
Desmatamento”, Edna Castro afirmou que o fez para fazer uma referência
a um limite que não está graficamente bem representado, mas trata-se
de uma área já consolidada.
De acordo com os dados do último Censo do Ibge, a Pesquisadora
destacou que realmente diminuiu a migração inter-regional, ou seja, o Sul
e o Sudeste não estão indo para o Norte, porém há uma reconfiguração
dos fluxos migratórios dentro das mesmas atividades que migraram na
década de 1970 e 1980. A velocidade do desmatamento, de acordo com
Edna Castro, tende atualmente a ser maior do que foi nas quatro últimas
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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

décadas. Ressaltou que, a continuar nesse ritmo, provavelmente nossos


netos não conhecerão a floresta. Apesar do pouco que restar, nunca irão
saber o que foi a beleza dessa região, a riqueza e a biodiversidade da
Amazônia.
Edna Castro questionou a relação entre a dinâmica dos atores so-
ciais e as novas fronteiras com a questão ambiental. Em seguida, explicou
que há uma expansão espacial o qual denominou de “novas fronteiras”,
em função do grande número de ocupações. Ressaltou, porém, que não
se deve analisar essas ocupações de uma forma homogênea, porque se
corre o risco de não perceber as diferenças implícitas.
Em relação às atividades econômicas e novas oportunidades de
mercado, Edna Castro enfatizou a pecuária e a soja, mas frisou que é
possível fazer uma diversificação muito maior, levando-se em considera-
ção todos os projetos energéticos que estão sendo pensados e uma série
de serviços que vão aparecer em termos de transporte, de comunicação,
de energia, de mineração. São atividades, afirmou, que vão relativizar,
juntamente com a pecuária e a soja, a dinâmica de devastação na região
nas próximas décadas.
De acordo com a pesquisadora este cenário tem a ver com a ação
do Estado e que, portanto, cabe a ele, um papel dinâmico no processo
de mudança da região, uma preocupação mais acentuada e rigorosa de
avaliar as conseqüências ambientais dos planos nacionais de desenvol-
vimento.
Finalizando o item referente às Dinâmicas dos Atores Sociais e
Problemas Ambientais, Edna Castro salientou que a análise do desma-
tamento está relacionada à questão da integração nacional - último item
de sua exposição. Conclamou a uma reflexão sobre o fato de que todos
os planos de desenvolvimento que vêm sendo executados ou que estão
sendo planejados, se dirigem exatamente para as áreas que são próximas
de fronteira e que são menos desmatadas.
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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

O terceiro tema abordado pela pesquisadora se refere a Cidades e


Meio Ambiente. Enfatizou que quando se fala em desmatamento não se
deve deixar de discutir a questão da urbanização. Explicou que embora
desde o Censo de 1980 houvesse tendências mostrando que a Amazônia
carecia de urbanização a taxas expressivas, o último Censo trouxe dados
que consolidaram essa idéia.
Afirmou que a Amazônia possui uma das redes urbanas mais
deficientes em termos de serviços do Brasil e, com o processo de expansão
urbana é ressaltado o problema ambiental que não é mais da ordem do
simples debate relacionado às florestas, aos rios, mas sim de uma outra
ordem, que é intra-urbana e nas áreas do entorno das cidades.
A Pesquisadora apresentou uma fotografia do Porto de Belém,
destacando que, é como gostaria de representar as cidades da Amazô-
nia, que são cidades à beira de rios, de igarapés, de lagos. São cidades
portuárias, que têm uma cultura, uma relação com a água bem diferente
das cidades que nasceram nos eixos rodoviários, como todas as cidades
da Transamazônica, da Cuiabá-Santarém e de outras estradas que nasce-
ram de garimpos, de plantas de mineração ou de outros projetos nesses
últimos 30 ou 40 anos na região.
Lembrou que houve uma tradição de ocupação pelo rio no País
inteiro, porém, considerando o manancial de água e toda a rede hidro-
gráfica da Amazônia, a questão urbana e o crescimento das cidades exige
que se pense esta discussão a partir de uma grade de questões que dizem
respeito às especificidades da cultura e do território regional.
Segundo a Pesquisadora, o maior ritmo de crescimento urbano no
País, uma média anual de 4,82 no período de 91 a 2001 foi generalizado
nos Estados amazônicos. O crescimento das médias e pequenas cidades,
de 20 a 250 mil habitantes sofreu um processo maior de absorção de
migrantes e de crescimento populacional.

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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Houve uma redução do movimento migratório com uma forte


diminuição das migrações inter-regionais para a Amazônia, fruto de uma
tendência nacional de redução da taxa de crescimento demográfico - para
a metade em três décadas - devido ao crescimento vegetativo que revelou
taxas menores. Disse, ainda, que o ciclo de forte migração para a Amazônia
acabou.
Há uma grande mobilidade populacional entre os estados e muni-
cípios Amazônicos e uma migração intra-regional de setores econômicos
da área consolidada que é a Amazônia, a exemplo do Tocantins, e de
Mato Grosso. Destacou que na Amazônia Legal há uma migração forte
de grupos econômicos já capitalizados em direção à região, o que não
existia antes, bem como uma maior ocupação externa. Alguns municípios,
afirmou, possuem uma taxa de crescimento elevada, uma concentração
de população nas cidades de 50 mil habitantes onde, novos núcleos ur-
banos têm sido formados.
Em seguida, Edna Castro se referiu aos problemas ambientais
urbanos. Afirmou que há uma problemática ambiental de base instalada,
isto é, há uma situação social, econômica e de serviços que em si já
representa um problema não resolvido em décadas anteriores, e que hoje,
com a urbanização, esses problemas são triplicados, dependendo do
município e da área analisada. Há uma inadequação da infra-estrutura,
de equipamentos urbanos e de esgotos sanitários, nas áreas urbanas.
Afirmou que os rios e igarapés nos maiores centros urbanos da
Amazônia, como Belém e Manaus são os grandes depositórios dos esgotos
que atravessam as cidades. Os pequenos igarapés são transformados em
valas e assim verifica-se a instalação de um grave problema, porque isto
tem uma relação direta com a saúde da população.
Ressaltou que os pesquisadores do NAEA se debruçam sobre a
questão da saúde, meio ambiente e do lixo nas cidades amazônicas e que
a região tem um índice de atendimento de serviços urbanos muito abaixo
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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

da média brasileira. Enfatizou que esses são apenas alguns indicadores


que chamam a atenção para o problema ambiental e no que se refere à
formulação e implantação de políticas públicas para a região.
Edna Castro expôs algumas fotos de áreas urbanas e ribeirinhas
de Belém e chamou a atenção para a especificidade da região que, de
acordo com a pesquisadora, tem a cidade e a área rural conectadas. O
município de Belém possui uma profusão de ilhas - em torno de 39 - das
quais, o arquipélago da embocadura no Estuário Amazônico, a grande
Ilha do Marajó além de uma série de dezenas de ilhas que formam o
arquipélago.
Essas ilhas, afirmou, possuem populações que vivem em relação
direta com a água. A questão da cultura da água integra o urbano ao rural
e é uma particularidade que precisa ser levada em conta porque é um
vetor importante também em a relação à saúde e uma série de dimensões
da vida urbana e social.
O último tema abordado por Edna Castro foi: A integração da
Pan-Amazônia. A Pesquisadora informou que iria se reportar a uma
questão que diz respeito ao Governo, à Sociedade civil organizada e à
própria Academia, que seria a questão dos planos de integração da Pan-
Amazônia e do Brasil.
Informou que levantaria algumas questões importantes ao debate
que viria a ser realizado. Ressaltou que todos os itens abordados em sua
apresentação têm uma relação direta com a discussão de integração, mes-
mo porque o conceito de integração esteve presente em todo o processo
de expansão de fronteiras, não só da Amazônia, mas, de todo o País,
tendo ocorrido o mesmo em relação aos Estados Unidos e de maneira
geral com toda a América. A integração seria então um conceito de base
nos planos de desenvolvimento.
A Pesquisadora salientou que no discurso de Getúlio Vargas sobre

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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

o Rio Amazonas encontra-se uma narrativa fantástica da concepção de


integração do País. Essa idéia de um projeto de conquista, de riqueza,
de crescimento não é um projeto regional, mas sim nacional, e foi isso,
segundo ela, que mobilizou as forças, os bandeirantes, e o desenvolvi-
mento de São Paulo, e de outros Estados do Sul.
Seria, a partir dessa perspectiva, que o conceito de integração
estaria diretamente ligado a conceito de desenvolvimento. Edna Castro
acredita que esse conceito ainda permanece ligado a uma concepção
tradicional porque foi desenvolvido junto às teorias de desenvolvimento
das décadas de 30, 40, 50 e 60. Citou como exemplo a Teoria do Desen-
volvimento e a Teoria do Subdesenvolvimento que tomaram o conceito
de integração pela via da industrialização, da substituição de importações
ou da infra-estrutura, um elemento chave do desenvolvimento.
Ressaltou que, sob seu ponto de vista o conceito tal qual é uti-
lizado nos Planos Nacionais de Desenvolvimento ainda mantém essa
fidelidade às teorias que o inspiraram. Edna Castro acredita que deveria
haver um interesse em uma concepção diferente da relação do desenvol-
vimento com o meio ambiente e que esse entendimento não se refere a
uma posição pessoal, mas que é compartilhada por muitos autores que
se debruçam sobre a questão.
Afirmou que o Estado Nacional retomou um papel fundamental
que esteve presente na década de 1970 e 1980, e menos presente na dé-
cada de 1990 com o macro planejamento, pensando o Brasil inteiro e a
Amazônia, como espaço de alteração. Destacou que a integração passa
pela questão Pan-Amazônica através de todos os planos dos corredores
de integração, dos eixos de desenvolvimento e que no fundo são, em boa
parte, uma integração pela infra-estrutura física.
Enfatizou ser a integração física fundamental. A população
brasileira sonha chegar ao Peru; sair de Belém ou Manaus e chegar à
Venezuela, à Caracas. Ressaltou que não se coloca contra a integração,
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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

apenas questiona se é possível pensar de uma outra forma, se é possível


construir um outro pensamento considerando que esta região, queiramos
ou não é única no planeta, em termos de biodiversidade, de riqueza aquá-
tica, de floresta, enfim de todos os recursos naturais da Amazônia.
O desafio é saber se podemos ou não ser capazes de pensar um
outro projeto, porque o projeto atual é da década de 1970, revitalizado.
Destacou que a infra-estrutura física é a chave através da qual se conecta
todo o sistema intermodal que liga os aeroportos, os portos. Edna Castro
destacou a importância da preservação não apenas dos recursos naturais
provenientes da floresta, mas, sobretudo da preservação do estoque de
culturas da região, das culturas tradicionais que estão se esvaindo.
Observou que em função de seu trabalho viaja muito pela região e
tem notado o crescimento das cidades e o deslocamento das populações
tradicionais que estão abandonando as áreas anteriormente ocupadas. A
população indígena, segundo ela, ainda está em suas terras, porém, a população
tradicional ribeirinha está abandonando as áreas que ocupava.
Em relação às populações tradicionais, Edna Castro se referiu ao
desaparecimento das parteiras tradicionais na região, em função da não
reprodução desse saber entre os jovens. Frisou que apesar da existência
de agentes de família, de saúde, há que se valorizar o conhecimento e a
atuação da parteira tradicional e de outros saberes intrínsecos à cultura do
povo da região. Destacou que a integração física é definitiva, irreversível.
É necessário, ressaltou, pensar com antecedência como criar espaços de
oportunidade que não sejam necessariamente só em uma única dimensão,
de um desenvolvimento pensado tal qual marco estratégico.
Destacou que há uma percepção da Pan-Amazônia como um
vazio demográfico, ressaltou, porém que a região possui 20 milhões de
habitantes e de uma maneira geral não possui uma produtividade tão
baixa que justifique o pensamento construído de que é necessária uma
canalização maciça de investimentos para promover o desenvolvimento
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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

econômico. Segundo ela, é importante o desenvolvimento múltiplo, ou


seja, o desenvolvimento econômico aliado a maior tecnologia com maior
modernização e isso, assegurou, representa o sonho de todo brasileiro
no atual mundo globalizado e justificou que não daria para assumir uma
posição contrária a esse fato. Entretanto, enfatizou, não podemos usar
estas aspirações como justificativa para um desenvolvimento a qualquer
preço, somos suficientemente capazes para poder pensar ou experimentar
outros modelos.
Finalizando, Edna Castro lançou algumas perguntas: Como
equacionar a fórmula desenvolvimento e meio ambiente? Que modelos
permitem incorporar novas alternativas de desenvolvimento? O modelo
existente permitiria ou não? Qual o papel do Estado, face às situações
de maior complexidade da conjuntura nacional e internacional? E,
finalmente, como preservar o patrimônio social, cultural, econômico e
ambiental de todos e de todas? De acordo com a Pesquisadora há um
desafio ainda maior no novo milênio em função de um caráter político
e econômico que se alterou e se tornou mais complexo nos cenários
nacional e internacional.

Parte II – Debates

Após a apresentação foi dado início à sessão de debates que foi


conduzida pelo Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador
de Estudos da Saei.
A primeira pergunta foi formulada por Pedro Luiz Dalcero,
Assessor da Presidência da República. Questionou o valor agregado de
algumas experiências na região, ou seja, o que traria maior rentabilidade
para a economia do País - se iniciativas como a reserva extrativista do

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Acre e outras similares na Amazônia ou uma plantação de soja no Sul do


Pará ou no Estado de Mato Grosso. Quis saber ainda o retorno financeiro
de uma reserva extrativista na Amazônia e se o NAEA possui uma linha
de pesquisa que se debruça sobre a economia da região.
Em seguida, Pedro Dalcero reportou-se à questão da dificuldade
do poder público de gerenciar a extensa região Amazônica, tanto em
relação ao desenvolvimento de políticas públicas nas áreas de educação,
saúde, segurança e infra-estrutura urbana, quanto em relação à defesa
do território. Finalizou suas considerações questionando: Como vamos
defender esta região? É colocando tropas, é colocando mecanismos de
segurança eficazes, ou seria por intermédio do pleno funcionamento do
Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam)?
A segunda pessoa a formular uma consideração foi Marcos
Afonso Pontes de Souza, então Diretor Administrativo da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Ressaltou a necessidade
de se analisar a Amazônia de uma maneira não mais cartesiana, mas de
forma holística no sentido etimológico de totalizante. Destacou que não
se pode manter a visão cartesiana do homem animal, do homem floresta,
é necessário ter uma visão dialética e dialógica da Amazônia, criar uma
sinergia com os países da Amazônia. Enfatizou a necessidade de se
trabalhar de forma sinérgica, buscar consensos nas políticas públicas, a
exemplo do que vem fazendo a OTCA ao lado das universidades, centros
de excelência, Governo e Sociedade Civil Organizada.
Respondendo às perguntas do primeiro bloco Edna Castro
inicialmente se reportou à questão da produtividade econômica das
diversas culturas na Amazônia. Destacou que em sua palestra chamou a
atenção para a construção de um novo projeto de desenvolvimento que
não seja único, que incorpore a idéia do múltiplo.
Observou que há, atualmente, uma quantidade enorme de experi-
ências bem-sucedidas na Amazônia financiadas nos últimos 30 anos pelo
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Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7), pelo


Ministério do Meio Ambiente e por uma série de organismos internacio-
nais. Essas experiências, afirmou, conseguiram agregar valor, aumentar a
qualidade dos produtos, criar oportunidades de novos empreendimentos.
Citou como exemplo a cadeia produtiva do beneficiamento da
castanha que foi experimentada no Amapá, em Trombetas e em Ori-
ximiná, no Pará. Com relação à reserva extrativista, a mesma deve ser
vista como um importante caminho alternativo que deve ser valorizado
e fomentado pelo Estado para que possibilite a inclusão de uma série de
atores econômicos e sociais no processo, ao invés de valorizar-se apenas
a soja e a pecuária, como acontece atualmente.
Citou como exemplo o município de São Félix do Xingu, que
há quinze anos não tinha carne de gado e que muitas vezes essa carne
vinha de avião do município de Redenção, em função da estrada às vezes
apresentar-se intransitável. Hoje possui mais de 1 milhão de cabeças de
gado e é área de expansão de fronteiras.
Concordou que pode ser evitado o risco de uma reprodução de
oligarquias na fronteira e de incentivo ao narcotráfico. Referindo-se às
pesquisas sobre narcotráfico na fronteira, citou o Pesquisador Roberto
Araújo, do Museu Emílio Goeldi, que há cerca de quatro anos vem
realizando estudos sobre tráfico na fronteira com a Colômbia e com a
Venezuela. Destacou a importância da presença do Estado nas fronteiras
e a necessidade de uma atenção especial em relação às questões da água,
da floresta e das cabeceiras dos rios da Amazônia que estão todas nos
países de fronteira. No que diz respeito à questão do planejamento das
ações desenvolvidas na região amazônica, ressaltou que um planeja-
mento malfeito redunda na potencialização de inúmeras “Rocinhas”, a
exemplo de experiências produzidas em torno de grandes projetos que
economicamente são viáveis, porém, o modelo que predominou foi o da
percepção única, do desenvolvimento econômico a qualquer preço.

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Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Enfatizou que o processo de integração tem um custo social e


ambiental que deve ser embutido para que haja viabilidade econômica
do projeto. A Amazônia, afirmou, é uma região de pobres do Brasil e
vem se tornando uma região cada vez mais pobre.
Sobre a integração, sugeriu que não se deve pensar apenas no
custo econômico das estradas, da infra-estrutura. É preciso pensar o
conjunto, por intermédio de uma percepção holística, dialética, onde
entrariam todos esses coeficientes. Como ninguém fez isso nas décadas
de 1970 ou 1980, o desafio que se impõe é: ou fazemos neste milênio ou
não fazemos mais. Ressaltou que a Amazônia será a região da riqueza
e da pobreza.
A pergunta seguinte partiu de Alberto Lourenço, do Ministério
do Meio Ambiente, Coordenador do Programa Piloto de Proteção às
Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7) que se referiu à questão do plane-
jamento que vem sendo desenvolvido no âmbito da elaboração do Plano
Amazônia Sustentável (PAS). De acordo com o Coordenador do PPG-7,
trata-se de um plano diferente, um plano de negociação, que reconhecendo
o caráter de baixa institucionalidade, de ausência do Estado, de pouca
disposição à cooperação, de antagonismo exacerbado entre diferentes
atores, propõe uma estratégia de exposição de conflitos e de negociação
pactuada de consensos, para formar de maneira muito rápida uma base
institucional que permita a aderência a planos e políticas públicas com
maior eficácia.
Ressaltou que desejava ouvir da Professora Edna Castro sua opi-
nião sobre esse tipo de abordagem politizada e negociada para um novo
planejamento, uma vez que ela fez referência ao planejamento clássico
que na Amazônia gerou violência e exacerbação de conflitos.
A pergunta consecutiva do segundo bloco foi de José Alberto da
Costa Machado, Coordenador-Geral de Estudos Econômicos e Empre-
sariais da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). Após
22
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

uma breve explanação sobre a questão da identidade regional amazônica,


José Alberto Machado questionou se o surgimento dessa consciência
sobre a identidade regional em face de uma certa indiferença nacional
para com aquilo que é regional, não traria problemas de rupturas, de
conflitos mais sérios que até agora estiveram latentes por uma certa
impossibilidade dos atores institucionais da região.
Na seqüência, a Professora Edna Castro respondeu às duas
questões apresentadas. Em relação à questão da identidade regional,
ressaltou que o conceito de fronteira contestada é o conceito que traz à
tona uma história e uma identidade regional. Queixou-se em relação ao
fato dos especialistas e técnicos da região não serem ouvidos nem nos
níveis macro nem setoriais, por ocasião da elaboração dos Planos de
Desenvolvimento para a Amazônia.
Enfatizou que as pessoas que são ouvidas são que falam, estudam
e que têm uma competência, mas não são da Amazônia. Frisou que as
pessoas que lá trabalham e pesquisam deveriam participar da formulação
dos planos e políticas para a região e serem ouvidas.
Afirmou que o planejamento atualmente é realizado de maneira tal
que não existe um dimensionamento da população que ocupa um deter-
minado espaço. A história cultural da população não é levada em conta,
o que dá origem à institucionalização de certas práticas, como a identi-
ficação arbitrária de terras levadas a cabo por alguns atores sociais.
Ressaltou que a Academia se debruça sobre atores e temas da
história que trabalham a questão da identidade a exemplo dos serin-
gueiros; das mulheres quebradeiras de coco de babaçu e das mulheres
indígenas. Há uma história regional que baliza a constituição de grupos,
de conceitos e de um modo de vida.
Em relação ao Plano Amazônia Sustentável (PAS), Edna Castro
ressaltou que o mesmo propõe uma estratégia de exposição de conflitos,
de negociação politizada e uma metodologia muito interessante e que
23
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

tenta recuperar uma história recente das experiências de desenvolvimento


sustentável, mas destacou não ser esta a questão central. A força do pro-
cesso de mudança vem pela política econômica, explicou e, de acordo
com ela, na política econômica macro esses processos são concebidos.
A Pesquisadora acredita que o desenvolvimento tem que estar
integrado com a política econômica e que o Governo não pode fazer
uma política, um planejamento para a sociedade civil se não incluí-la
como ator principal. A sociedade civil, destacou, tem que se organizar,
participar ativamente da gestão dos programas nos quais acredita e do
planejamento econômico, do contrário vai apenas legitimar um processo
econômico.
O bloco seguinte de perguntas foi aberto por Pepeu Garcia, Diretor
da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) que perguntou à
Professora Edna Castro qual seria a melhor opção para o desenvolvi-
mento sustentável da região levando-se em consideração o cultivo de
várias culturas, bem como o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE)
para a região.
Em seguida, Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental
da Amazônia (IPAM), teceu algumas considerações e solicitou à Pro-
fessora Edna Castro que comentasse a respeito do papel do Estado no
gerenciamento de um bem público e de um recurso estratégico que é a
Floresta Amazônica, levando-se em consideração a importância da região
no que diz respeito à segurança climática e segurança alimentar do País
como um todo. Enfatizou que estudos recentes têm demonstrado que a
retirada da cobertura florestal pode reduzir sobremaneira a precipitação,
não só na Amazônia, mas também no Sul e Sudeste do País.
Ela destacou a relevância da questão não apenas no plano local,
mas também numa dimensão macro regional ou de país, se referindo
à floresta como um imenso estoque de carbono que se liberado para a
atmosfera, agravaria o efeito estufa.
24
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Abordou ainda a possibilidade de se implementar nos próximos


anos uma política de serviços ambientais e a remuneração desses serviços,
fazendo com que a Amazônia e o Governo brasileiro prestem um bem
não só para quem está na região, mas para o mundo como um todo.
Ressaltou que alguns programas do Governo atual, como o
Pró-Ambiente, por exemplo, já levam em consideração a remuneração
de serviços ambientais a pequenos agricultores. Chamou também a
atenção para a questão da organização social que existe na Amazônia
e da capacidade de organização das lideranças. Citou como exemplos
recentes encontros que ocorreram na rodovia Santarém-Cuiabá que
contaram com a ampla participação de movimentos sociais da região e
de autoridades como o Ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional e
a Ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.
Respondendo às perguntas, Edna Castro ressaltou que concordava
com a afirmação de que há uma dificuldade de percepção dentro da região
em relação à implantação de uma política comum. Haveria, segundo ela,
um hermetismo de cada estado, principalmente com relação à economia.
No tocante à produtividade de atividades econômicas, como por exem-
plo, a cadeia do gado, destacou que há um aumento impressionante da
posição do Pará e do Mato Grosso e, que seria importante tentar avaliar
economicamente essa produtividade em relação à produtividade de outros
setores para analisar a questão da diversidade. Destacou alguns estudos
que estão sendo feitos pelo pessoal vinculado ao Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (IPAM), em Santarém, que mostram como
os circuitos de pesca chegam a outros países pelas vias tradicionais de
circulação da região.
Afirmou que há uma extensão dessas atividades de geração de
economias que não são contabilizadas e que não se tem, sobretudo da
pesca, informações sobre a análise econômica do setor. Em relação ao
Zoneamento Ecológico Econômico, afirmou que o ideal seria pensar

25
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

em um zoneamento, que tivesse a ver com uma análise de equipes que


percebem essa dinâmica a partir de certas linhas de pesquisa, e também
em relação à própria atividade desenvolvida pelos atores locais. Assim
haveria uma enorme capacidade organizativa instalada, tanto do ponto
de vista político como do econômico.
Se pegarmos, ponderou, várias cadeias de produção, veremos que
sobre elas não há controle nem do Estado, nem do município, nem da
União. Também não existe uma avaliação completa do ponto de vista
de análise de pesquisas.
Com relação à segunda pergunta do bloco, Edna Castro destacou a
pertinência da abordagem da floresta como bem público e como recurso
estratégico. Não é simplesmente a questão da floresta em pé ou da madeira
que está empatando a presença de atividades lucrativas como a pecuária,
a soja, o arroz ou o feijão. A floresta apresenta um valor agregado de uma
série de recursos e funções de segurança climática, alimentar, social e
também de equilíbrio na geopolítica de recursos naturais de abrangência
mundial.
Ressaltou que há uma capacidade de organização social que nos
permite dizer: grupos que vivem na Amazônia podem ser gestores de
processos e de idéias que venham enriquecer a sociedade do futuro. Eles
têm uma visão diferente do técnico e do planejador que está no gabinete.
Eles possuem, continuou, uma informação que é a informação da expe-
riência social, da experiência vivida. Citou como exemplo a experiência
de uma enorme clareira na floresta e de uma floresta em pé. Para alguém
que vive lá, as duas coisas representam realidades diferentes.
Estas duas situações, porém, explicou, não dão a mesma informa-
ção para quem está distante fazendo o planejamento. Quer dizer, a grande
clareira, uma grande área desmatada, significa um grande potencial para
iniciar uma atividade econômica, e não o que se perdeu como serviços
ambientais, sociais, e outros benefícios.
26
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Esta é uma das questões chave que, segundo a pesquisadora,


precisa ser levada em consideração quando se fala de floresta e da água,
porque muitas vezes, dissociamos água da floresta. Quando falamos de
desmatamento, de empobrecimento do solo e de intensificação de uma
cultura - uma monocultura - falamos da perda de qualidade da água.
Afirmou que há uma questão geopolítica, uma questão de saúde
das relações internacionais do Brasil com os países vizinhos que tem a
ver com a preservação da floresta e dos rios. Explicou que as cabeceiras
dos rios mais importantes que fluem para as nossas ricas bacias hidro-
gráficas vêem dos países vizinhos.
Comentou que a relação entre saúde e meio ambiente se refere a
uma sociedade que tem condições de continuar se reproduzindo com qualidade,
no sentido de que a saúde não é exclusivamente a saúde humana. Quando
nos referimos à saúde, falamos da saúde humana e que tem a ver com
o meio ambiente enquanto ecossistema, em uma percepção holística no
sentido da importância de se pensar a questão ambiental.
O último bloco de perguntas foi iniciado com a intervenção do
Professor Gelio Fregapani, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Inicialmente, o Professor se referiu às reservas extrativistas que, na sua
opinião, não podem ser comparadas aos seringais em função da sazona-
lidade e do caráter transitório das mesmas em oposição ao caráter perene
dos seringais. Argumentou que, apesar de amar a floresta, acredita que
se a floresta for preservada intocável, a população futura a conhecerá,
embora não haverá emprego. Enfatizou que analisa a preservação flo-
restal dentro de dois cenários: um otimista, que seria o da preservação,
em detrimento dos empregos; e outro pessimista, que seria a ocupação
e destruição da floresta.
Em seguida, Pedro Dalcero, Assessor da Presidência da República,
interveio novamente com o objetivo de propor ao NAEA um programa
de trabalho que procure fundir as duas concepções sobre a Amazônia:
27
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

a soberana e a cidadã. Enfatizou que o problema na Amazônia não é a


presença de militares (que deveria ter seus efetivos triplicados), mas sim
a soja e a reprodução, na Amazônia, de modelos econômicos imitativos.
Ressaltou que a reunião estava sendo realizada no Palácio do Planalto
sob a coordenação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e que
seria uma excelente oportunidade para arregimentar os atores sociais, o
Estado, bem como a sociedade civil para dialogar e buscar um projeto
para a Amazônia, inclusive incorporando contribuições de pessoas da
região.
Sua proposta para o NAEA seria buscar uma fusão dos diversos
discursos, inclusive o da soberania, afirmando não acreditar na interna-
cionalização da Amazônia. Finalizando, propôs que o GSI e o NAEA
tentem, por intermédio da troca de conhecimentos e experiências com os
diversos atores sociais, a reconstrução de um novo discurso que incorpore
a soberania e a cidadania.
Respondendo ao último bloco de perguntas, Edna Castro afirmou
que se reportaria inicialmente à questão da soja e em seguida se deteria
nos questionamentos do Professor Fregapani.
Em relação à produção de soja na Amazônia Legal no período de
1990 a 1999, informou que no Estado de Mato Grosso, a área colhida
de um milhão e quinhentos mil hectares expandiu-se para os atuais dois
milhões e quinhentos e quarenta e oito mil hectares. De acordo com a
Pesquisadora, os Estados que mais aumentaram a produção na última
década foram Maranhão, Mato Grosso, Pará e Roraima.
Afirmou que há uma febre de plantação de soja e uma crença na
soja como redentora do desenvolvimento. Referiu-se a algumas experi-
ências de pesquisas no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, nas áreas
de ciências sociais e ciências econômicas, que mostram um processo de
desenvolvimento, uma revolução tecnológica e econômica em curso.

28
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

Em relação à abordagem do Professor Fregapani, Edna Castro


ressaltou que ambos possuem concepções diferentes no que diz respeito
à questão indígena. Destacou que as culturas nunca desaparecem por um
processo tranqüilo, há sempre um processo de conflito e de tensão, uma
tentativa de resistência. Enfatizou que em sua apresentação não se referiu
unicamente ao desaparecimento das culturas, mas sim ao processo de
resistência interna, principalmente ao se referir ao desaparecimento da
profissão da parteira tradicional na Amazônia.
De acordo com a Pesquisadora, o desaparecimento de culturas está
relacionado ao caráter dialético de mudança inerente à própria sociedade.
Concluiu afirmando que é necessário se pensar numa sociedade de forma
mais eqüitativa e ter consciência da existência de concepções diferentes,
mas nem por isso contrárias - a exemplo da concepção soberana e da
cidadã. Finalizou afirmando que todos têm direito a uma dignidade na
existência e, acima de tudo, de fazer opções.
Encerrando a sessão de debates o mediador, Conselheiro José
Carlos de Araújo Leitão informou que faria duas perguntas e teceria
alguns comentários.
José Carlos de Araújo Leitão fez referência a algumas afirmações
da Professora Edna Castro, a exemplo do desejo do brasileiro de chegar
à Venezuela e ao Peru. Em relação à Venezuela, José Carlos lembrou
que desde 1998, pela rodovia BR-174, que liga Santarém a Caracas, já é
possível chegar à Venezuela. No que diz respeito ao acesso ao Peru, José
Carlos não considera que deva ser uma prioridade do Estado brasileiro.
Elogiou a abordagem da Pesquisadora sobre a derrubada de mitos
a respeito do vazio demográfico e da questão da baixa produtividade da
Amazônia. Achou muito interessante a observação em relação à idéia da
geração de riqueza e de pobreza, afirmando que muitas vezes se pensa a
Amazônia como um “Éden” de riqueza e se esquece que a mesma pode
também produzir pobreza.
29
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação ao Arco do Desmatamento apresentado pela Pesquisadora,


ressaltou que se surpreendeu ao verificar a ausência de referência
ao Estado do Acre nesse processo de desmatamento, pelo fato de ter
constatado pessoalmente a existência de grandes áreas desmatadas no
Estado.
Em seguida, solicitou à Pesquisadora que comentasse a importân-
cia de Brasília para a região Norte, sobretudo para a região banhada pelos
afluentes da margem direita do Rio Amazonas. A pergunta seguinte de
José Carlos de Araújo Leitão se referiu à questão da violência. Afirmou
que entre as Unidades da Federação, o Estado do Pará seria hoje um
grande foco de violência e quis saber se essa realidade não comprometeria
o desenvolvimento sustentável da região. Questionou ainda qual seria o
futuro do Estado do Pará.
Respondendo às perguntas formuladas pelo Mediador, Edna
Castro afirmou que em relação à importância de Brasília, a localização
central da cidade foi fundamental no processo de irradiação para o terri-
tório nacional. Em relação à violência, Edna Castro sugeriu o cruzamento
das estatísticas de violência com os dados econômicos, de crescimento
de atividades e de aumento da população.
Justificou que a violência no Estado do Pará está relacionada à
questão das fronteiras e que os municípios com maiores índices de
violência são os que apresentam expansão das fronteiras que, de acordo
com a Pesquisadora, seriam “terras sem lei”. Em relação ao futuro do
Pará, Edna Castro afirmou que não saberia fazer uma previsão. Ressaltou
que, como cidadã, acredita que o futuro será resultado da dinâmica que
está ocorrendo e dos processos de tantos encontros, pois o Pará é um local
onde tem gaúcho, baiano, maranhense, ou seja, um local de encontro de
brasileiros. Destacou que quando se fala da cultura e das raízes regionais
do Pará, essas, ao mesmo tempo, são nativas da população do interior
e também recentes, como os filhos dos pioneiros e dos movimentos em

30
Relatório da Palestra sobre Desenvolvimento Sustentável da Amazônia

defesa da Transamazônica e do Xingu. O Estado do Pará representa hoje


uma síntese muito particular de pessoas que estão pensando o futuro a
partir das práticas, das experiências e dificuldades do presente.

Encerramento

Finalizando a reunião, o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão,


Coordenador de Estudos da Saei, agradeceu a participação dos presentes
e em particular da palestrante, Professora Edna Castro; do Professor Luiz
Aragon, Coordenador Geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos;
e também agradeceu ao Secretário da Saei, José Alberto Cunha Couto e
a toda a equipe da Coordenadoria de Estudos.

31
Cultivos Ilícitos na Colômbia e
Geopolítica Hemisférica

Gloria Maria Vargas

Doutora em Geografia. Pesquisadora Associada do Núcleo


de Pesquisa em Democratização e Desenvolvimento da Uni-
versidade de São Paulo – USP. Pesquisadora Associada do
Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de
Brasília – UnB.
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

A Colômbia é a maior produtora de folha de coca, matéria-prima


da cocaína, e responsável por uma representativa produção da papoula,
usada na produção da heroína. Durante os anos 90, estes cultivos tiveram
um expressivo incremento no território colombiano, acompanhado por
uma redução dos mesmos nos outros países produtores da região Andina,
o Peru e a Bolívia.
Este fenômeno tem sido interpretado de diversas formas, a partir
de distintas disciplinas das ciências sociais e sobre diversos ângulos de
abordagem. O propósito deste trabalho é contribuir nesse esforço inter-
pretativo, consciente de que, em se tratando de um assunto tão complexo
e que envolve tantas variáveis, seus resultados serão apenas parciais.
O trabalho está dividido em três partes, consideradas essenciais na
compreensão desta problemática e que devem ser tratadas conjuntamente,
considerando que formam parte de - se bem que não esgotam - uma cadeia
de causalidade que explica a presença e a persistência destes cultivos no
território colombiano.
Em primeiro lugar, será feita uma abordagem de algumas
condições estruturais que promovem a presença dos cultivos ilícitos. A
intenção é separá-las das condições mais conjunturais, mais debatidas
e veiculadas nos diferentes meios de comunicação, separando para este
propósito as condicionantes estruturais internas, isto é, que respondem a
dinâmicas e processo do próprio território colombiano, das externas, que
correspondem àquelas cuja arquitetura e controle se encontram fora do
território. É assim que trataremos neste sentido do universo da produção
e dos entornos criados pelas dinâmicas tanto internas quanto externas,
que ao se interceptarem no território colombiano, criam as condições
para a reprodução deste fenômeno.
Em segundo lugar, trataremos do universo do consumo. O
objetivo em abordar este aspecto é apenas o de fazer algumas colocações
para redimensionar a forma como a própria problemática é conceitu-
35
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ada e veiculada, no entendimento de que existem condicionantes que


determinam a intensidade com que se focalizam estas questões. Neste
sentido, será feita uma exposição apenas descritiva de alguns aspectos
da demanda.
E por último, será feita uma análise do combate ao fenômeno, o
que nos convida a mergulhar no universo da geopolítica e nos revela algu-
mas estratégias de política referentes às áreas geográficas da produção, os
Andes sul-americanos. Neste item estaremos tratando especificamente do
Plano Colômbia e da Iniciativa Regional Andina e das relações destes
dois programas com a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados
Unidos. Faremos uma abordagem crítica das políticas de combate aos
cultivos ilícitos empreendidas até agora, visando identificar algumas
razões que explicam o seu pobre desempenho e as conseqüências nega-
tivas que têm trazido para as regiões produtoras na Colômbia.

1. O Universo da Produção

A produção de folha de coca tem mostrado um aumento signifi-


cativo no território colombiano, paralelo a uma tendência a permanecer
estável na região Andina como um todo. Isto nos leva a considerar que
o aumento da produção em território colombiano deve ser analisado
levando-se em conta tanto os condicionantes internos que influenciam
sua expansão, quanto os externos, que estariam induzindo uma constante
reposição da produção nos outros territórios de cultivo regional. Nos três
países produtores apresenta-se uma rotatividade que tem garantido uma
produção total regional estável, isto é, as perdas de produção num país
são compensadas pelo aumento da produção em outro(s).
Os condicionantes internos dizem respeito a assuntos estruturais que

36
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

explicam o aparecimento deste tipo de cultivo no território colombiano,


que como tal, envolve dinâmicas econômicas, políticas e territoriais do
processo social colombiano. No seu desdobramento, a formação
territorial colombiana, isto é, o processo de estruturação social e espacial,
nos fornece elementos fundamentais para a compreensão das dinâmicas
atuais.
Nesse sentido, é necessário compreender algumas características
de tal processo. Uma tendência marcante da dinâmica territorial colom-
biana é que o poder se materializa de fato em áreas menores que o territó-
rio de jurisdição que esse poder reivindica. Na época da Colônia, o poder
colonial não controlava a totalidade do território, e em algumas regiões
esse controle era disputado (Herrera Angel, 2002). Posteriormente, com
a formação do Estado independente, esta tendência continuou, de forma
que hoje podemos afirmar que o Estado não exerce o controle sobre todo
o território que advoga sob sua jurisdição. Partimos, portanto, da premissa
de que o Estado é menor que o território sobre o qual se ergue.
Outra característica da formação territorial colombiana, deriva-
da da anterior, é o fato de existirem partes do território onde as formas
de organização econômica, social, política e espacial se distanciam da
normatividade predominante. Nestes territórios, a população mantém
margens de independência política em relação ao Estado.1
Sem dúvida as formas de ocupação territorial tiveram muita influência

1
“A partir de 1740, com o estabelecimento definitivo do vice-reinado da Nova Granada, deu-se uma extensa
reforma espacial e político-administrativa que buscou adequar as estruturas desse ordenamento às mudanças
operadas dentro da sociedade, em especial à crescente importância demográfica e econômica dos setores
mestiços. Apesar dos esforços unificadores do Império, as medidas que foram adotadas não foram uniformes.
Nem as respostas que geraram. (...) Parte central das diferenças (entre as regiões) radicava em que, enquanto
o mestiço andino tinha sido incorporado à ordem colonial, mediante sua articulação jurisdicional e espacial
aos povoados dos índios, o mesmo não tinha acontecido em outras regiões...” (Herrera Angel, 2002: 36).

37
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

na formação e posterior reprodução destas tendências. Nos Andes


predominou um tipo de povoamento e posterior ordenamento espacial
relativamente homogêneo, pautado pelos núcleos de povoamento indígenas
preexistentes, que foram aproveitados pelos poderes coloniais e incor-
porados na nova rede político-administrativa. As áreas rurais deste eixo
foram transformadas em fazendas, latifúndios em geral, e em pequenas
propriedades que subsistiram da estrutura dos antigos povoados indígenas.
Ao longo de todo o eixo este foi o padrão predominante.
A partir da estrutura andina, o território foi sendo ampliado em
direção aos quatro pontos cardeais. As outras regiões colombianas, em
especial o Sul Amazônico, o Leste Orinoqüense e o Litoral Pacífico, bem
como alguns dos vales interandinos, sofreram o processo de ocupação do
espaço como produto dos processos sociais ocorridos no eixo Andino.
Isto nos dá o parâmetro para analisar os diferentes processos de expansão
interna do território.
Pode-se afirmar que é a partir do eixo Andino que a sociedade se
consolida e replica suas tendências estruturais de natureza econômica,
cultural e política e que se conforma a institucionalidade do País e o
Estado. Os movimentos de expansão interna do território mostram estas
tendências, desde as primeiras migrações camponesas para o sul, até a
abertura dos territórios amazônico e orinoqüense, mais recentemente.
Em todos os movimentos de expansão interna se reproduz a tensão entre
os novos territórios em formação, difusos e descontínuos, e os espaços
centrais deixados para trás, tensão que expressa a dinâmica de inclusão-
exclusão existente.
Desta forma, promovia-se a expansão interna do território, só
que mediante a abertura de regiões precariamente articuladas ao centro,
resultando daí as tensões e o padrão exclusão-inclusão que caracterizaram
as dinâmicas nestes territórios em formação.
A condição de marginalidade dada a estas regiões ao longo da
38
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

vida, tanto colonial quanto republicana, permite-nos afirmar que de fato


a Nação colombiana se constrói ao redor do Eixo Andino e alguns dos
seus vales, bem como das planícies do Litoral Atlântico. Estes territórios,
considerados e tratados como periféricos, eram tidos apenas como
reservatórios territoriais, com conotações sociais e culturais negativas, e
faziam parte de um imaginário nacional perpassado pelo determinismo
ambiental cimentado pelos naturalistas europeus e “criollos”2, dos séculos
XVIII e XIX. Correspondiam às Regiões Equinociais e Baixas, consi-
deradas atrasadas em relação às Andinas, estas últimas mais parecidas
em clima e paisagem às regiões temperadas européias.
Em conseqüência desta racionalidade espacial, consolidou-se um
padrão de exclusão e periferização destas regiões, que se refletia tanto
no status que ocupavam na hierarquia político-administrativa – até 1992
eram chamadas de “territórios nacionais”, sem autonomia administra-
tiva nem fiscal - quanto no tratamento dado pelo Governo central aos
seus problemas sociais, principalmente aqueles referentes ao acesso e
distribuição da terra e de outros recursos naturais. São estas regiões,
marcadas pelo descaso e negligência do Estado e da Nação colombiana,
que posteriormente são colonizadas pelas atividades de cultivo de
sustâncias ilícitas.
Por outro lado, a dinâmica fundiária consolidou uma estrutura
concentrada, em praticamente todo o território. Esta concentração vem
se agravando tanto que, segundo o estudo de Agustín Codazzi, de 2002,
0,4% dos proprietários detêm 61,2 % da terra, enquanto que 57,3 % dispõe
de apenas 1,7 % da mesma. Assim mesmo estima-se que existem mais de
200.000 camponeses sem terra. Os intentos falidos de fazer uma reforma

2
Os “criollos” eram os filhos de espanhóis nascidos em território americano.

39
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

agrária ao longo dos séculos XIX e XX, alguns dos quais marcaram o
começo de períodos de confronto social, põem a descoberto a enorme
força destas tendências concentradoras, sustentadas historicamente por
setores latifundiários representados nos partidos tradicionais com controle
sobre a máquina estatal. As ligações políticas lhes garantem privilégios
nas decisões políticas e sua reprodução como grupos de poder.
O controle sobre a estrutura da terra define as funções da mesma,
de forma que hoje em dia as melhores terras agrícolas estão destinadas
à pecuária. O desrespeito à vocação da terra gera os problemas sociais
já conhecidos, pois é uma atividade que não cria emprego rural e induz,
portanto, à migração rural-urbana, bem como a uma migração para
regiões mais longínquas. A falta de infra-estrutura, de transportes, de
comunicações das regiões receptoras das migrações, dificulta sua inserção
nas dinâmicas de desenvolvimento regional ou nacional mais amplas.
Outro fator que incide no aumento dos cultivos é sem dúvida a
economia política do conflito interno, que cria relações entre os colonos
das regiões periféricas e as atividades econômicas das agrupações guer-
rilheiras, sustentadas pela folha de coca. O fato de que as áreas de cultivo
coincidam com as de controle territorial por parte dos grupos guerrilheiros,
em particular das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc),
coloca estas atividades sob seu comando, cujo sustento financeiro vem
destas atividades e com as quais satisfazem suas enormes demandas de
logística e infra-estrutura para se manterem ativos e ampliando cada vez
mais seu alcance territorial.
Criam-se assim os vínculos – indiretos – entre os plantadores
de folha de coca e o conflito armado. É importante considerar também
que a economia política do conflito está inserida na lógica do comércio
global, tanto de consumo de substâncias ilícitas quanto de mercado
negro de armas e de lavagem de dinheiro, elos da cadeia causal que
transcendem a parte propriamente produtiva do processo. Existem,

40
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

assim, dimensões fundamentais do negócio que transbordam as fronteiras


colombianas e que o alimentam e, nessa medida, alimentam também o
conflito interno.
Feitas as considerações sobre os fatores internos, é importante
considerar aqueles cujo controle e dinâmicas ultrapassam as fronteiras
do País e que incidem dramaticamente na criação das condições que
propiciam a presença de cultivos ilícitos. Em primeiro lugar, referimo-
nos à lógica econômica do mercado agrícola internacional globalizado.
Este modelo vem sofrendo transformações devido principalmente ao
colapso dos mecanismos de regulação da economia, que fizeram com que
as agroindústrias transnacionais passassem a dominar o mercado destes
produtos. Isto causou uma transformação muito grande na agricultura
tradicional, tanto nos países centrais quanto periféricos, e induziu os
Estados a redefinirem suas políticas, passando da regulação e proteção
de seus mercados à assimilação dos novos princípios de organização
espacial do comércio global.
Enquanto a eficiência dos mercados de produtos agrícolas aumen-
ta, no reverso da moeda vai diminuindo a renda dos produtores, princi-
palmente dos pequenos, que ficam numa situação de extrema fragilidade
que, muitas vezes, os obriga a abandonar a atividade produtiva.
As dinâmicas territoriais na Colômbia refletem estes novos rear-
ranjos induzidos pelas estratégias dos grandes produtores e das grandes
multinacionais para controlar a produção e o mercado dos produtos agrí-
colas. O mercado passa a ter um papel decisório, praticamente definindo
o processo e sua dinâmica, tirando do cenário os pequenos produtores,
cuja debilidade financeira e menor produtividade os deixa sem condições
de concorrência nesse cenário.
As mudanças nas escalas e intensidades dos intercâmbios comer-
ciais agrícolas e nas estruturas institucionais que os regulam, produto
da globalização, e nas quais normas de exportação, sanitárias, etc. São
41
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ditadas pelas instituições globais como a Organização Mundial do


Comércio (OMC), atrelam a produção tanto grande quanto pequena a
estas dinâmicas que transbordam as fronteiras do País. Desta maneira,
conforma-se uma paisagem comercial mediante a qual se articulam os
produtores agrícolas, tanto grandes quanto pequenos, com a voracidade
do mercado mundial e com a racionalidade comercial que acaba definindo
quem fica e quem sai de cena.
Neste esquema de produção agrícola mundial vão se transferindo
segmentos de produção antigamente dominados pelos países do Sul, para
os países no Norte. Por exemplo, dos grãos que representam grande parte do
comércio mundial agrícola, 80% está nas mãos dos países desenvolvidos.
Na produção de carnes e leite e derivados, acontece algo similar. Isto
deixa aos países em desenvolvimento uma quantidade cada vez menor
de produtos nos quais eles são competitivos nos mercados internacionais,
o que significa uma decrescente fatia dos mercados agrícolas mundiais.
(Rementería, 2001).
Mesmo que os padrões de comércio agrícola tenham sofrido
mudanças nas décadas recentes, os países da América do Sul, em
particular os Andinos, continuam perdendo espaços de mercado para o
Primeiro Mundo, a exceção ocorrendo unicamente nos setores orientados
especificamente para exportação. No caso colombiano, o setor agrícola
enfrenta problemas para sua diversificação e recuperação dos mercados
perdidos durante a abertura econômica não gradual, ocorrida durante os
anos 90.
O caso do café sintetiza esta situação. A grande oferta de café nos
mercados mundiais sem um aumento nos padrões de consumo, aliada ao
controle dos preços pelos mercados globais, principalmente pelos países
do Primeiro Mundo, têm levado os preços deste produto - que vem caindo
desde 1980 - aos seus níveis mais baixos nos últimos 30 anos. Na Colômbia
os lucros com o café vêm decrescendo em até 50% desde 1992.

42
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

Esta situação, incentivada em grande parte pela quebra do Pacto


Cafeeiro em 1990, deixou muitos pequenos produtores do eixo cafeeiro
colombiano sem meios de subsistência, o que produziu uma leva de
migração desta região para o Sul colombiano, em particular para os
departamentos que iniciavam sua produção de folha de coca: Guaviare,
Putumayo e Caquetá.
A história de muitos cocaleiros assentados hoje nessas regiões é
a de pequenos produtores agrícolas, que com a conjuntura da moderni-
zação da agricultura, a abertura econômica e o processo vertiginoso de
pauperização do pequeno produtor, migraram para outras regiões em
busca de alternativas de subsistência e de vida.3
O anterior está diretamente relacionado com o segundo fator que
consideramos determinante no aumento dos cultivos ilícitos, a saber, as
políticas agrícolas dos países do Primeiro Mundo e as conseqüências
nos preços dos produtos no mercado mundial que essas políticas indu-
zem. Dentre elas, a de maior impacto negativo para a Colômbia é sua
estrutura fortemente subsidiada4. A política de subsídios é responsável
pela distorção dos preços internacionais de commodities e de muitos
produtos agrícolas importantes para as economias agrícolas dos países

3
Segundo de Rementería, (op. cit., p. 45) “é significativa a persistência da cooperação internacional multilateral
em negar-se a reconhecer que os cultivos ilícitos são a resposta econômica racional à crise agrícola dos países
do Terceiro Mundo por causa das políticas agrícolas dos países desenvolvidos. Esta situação chega a ser tão
evidente que no último informe anual da JIFE (Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes), que
corresponde ao ano de 2002 e está dedicado ao tema dos cultivos ilícitos e ao desenvolvimento alternativo,
jamais se menciona o problema dos mercados agrícolas para a produção alternativa à ilícita. Tampouco há
um só parágrafo que informe sobre o problema dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos como
causa da crise da agricultura do Terceiro Mundo e de sua conversão - eficiente - à produção de substâncias
psicoativas. Deve-se mencionar que em vários informes anteriores da JIFE, este problema era reconhecido
e fazia-se algumas recomendações para abordá-lo.”
4
Este fato chega a ser tão dramático e reflete de forma tão contundente as assimetrias entre os contextos
regionais, que uma vaca européia recebe um subsídio diário de dois dólares, muito mais do que aquilo com
que vivem muitos pequenos produtores em países como a Colômbia.

43
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

em desenvolvimento. Devido a esta distorção os produtores rurais de


países como a Colômbia não têm condições de competir com os preços
subsidiados dos produtos provenientes de países desenvolvidos, que não
refletem nem sequer os custos de produção. Isto elimina rapidamente do
mercado os pequenos produtores agrícolas e transfere fatias de mercado
para os países desenvolvidos.
Discutidos estes fatores estruturais internos e externos, podemos
passar a mencionar alguns aspectos que dizem respeito ao consumo
destas substâncias, tema muito negligenciado nas análises sobre esta
problemática.

2. O Universo da Demanda

O tratamento dado a esta questão pretende apenas ser descritivo, já


que para se aprofundar na temática do consumo de substâncias ilícitas teríamos
que levar em conta aspectos que estão fora do alcance deste trabalho. Seria
necessário analisar a questão desde uma perspectiva cultural, considerando,
por exemplo, que aspectos da sociedade moderna conduzem ao anseio de
alteração da consciência. Como dito, estas questões transcendem os objetivos
e possibilidades teórico-metodológicas do presente trabalho.
No entanto, interessa-nos salientar a pouca visibilidade dada
a esta problemática e suas relações com o universo da produção. Nas
narrativas sobre o narcotráfico o mais comum é que se considere esta
parte da questão como um assunto independente, como se as leis da
economia - de oferta e demanda - não regessem sua dinâmica. Nessa
medida, realizam-se rigorosas análises sobre a produção, desde aquelas
com ênfase em assuntos como área cultivada, tecnologia de produção,
redes de distribuição, até aquelas com pretensão antropológica, cuja

44
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

abordagem considera as condições culturais dos povos que cultivam


substâncias ilícitas.
Começamos por mostrar alguns dados sobre o consumo de
substâncias ilícitas, no quadro a seguir:

Quadro 1 - Consumo de drogas nos últimos anos do decênio de 1990


Drogas Cannabis Estimulantes Cocaína Opiáceos Heroína
Ilícitas de Tipo
Anfetamínico+
População Mun- 180 144,1 28,7 14 13,5 9,2
dial (milhões de
pessoas) (*) (**)
% da População 3,0 2,4 0,5 0,2 0,2 0,16
Mundial
% da População 4,2 3,4 0,7 0,3 0,3 0,22
Mundial de 15
anos ou mais
(*) Pessoas que tem consumido essas drogas, pelo menos uma vez no ano precedente.
(**) Pela tendência ao “policonsumo” de drogas, estas colunas não somam o total mundial.
(+) Inclui aos consumidores de anfetaminas (metanfetaminas e anfetaminas), bem como de outras
“drogas sintéticas”.
Fonte: PNUFID (Programa das Nações Unidas para a Fiscalização Internacional de Drogas):
World Drug Report 2000.

A Oficina de Fiscalización de Drogas y Prevención del Delito de las


Naciones Unidas (OFDPD) considera que os principais consumidores e
produtores dessas drogas (em particular das anfetaminas, as metanfetami-
nas e as drogas do grupo do “ecstasy”), na atualidade, estariam localizados
no Continente Asiático, na América do Norte (especialmente no Canadá,
Estados Unidos e México) e na Europa Ocidental. Esta última região
- junto aos Estados Unidos ­- seria a principal produtora e consumidora
mundial de ecstasy, que nos últimos anos tem registrado um maior ritmo
de expansão entre os consumidores europeus e estadunidenses.
O aumento do consumo de ecstasy e a expansão mundial do uso
45
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de drogas sintéticas têm sido muito grandes durante a última década do


século XX, o que leva a reconsiderar as prioridades quanto às substân-
cias e seu combate, já que altera o quadro da problemática vinculada ao
universo das drogas. Desta forma, enquanto as drogas originadas nas
plantas (predominantemente produzidas no Terceiro Mundo) tiveram
um discreto aumento de 6% para a cannabis, 5% para a heroína e 3%
para a cocaína, entre 1990 e 1999, as drogas sintéticas, em particular as
anfetaminas e metanfetaminas, registraram um aumento anual de 30%
(PNUFID, 2000).

3. O
�����������
Combate: �������������������������
a Guerra contra as Drogas

As políticas de combate às drogas têm estado persistentemente


focadas no combate à produção, dando toda ênfase ao universo da oferta.
No entanto, hoje é evidente que estas políticas estão aquém dos resultados
esperados, tanto no que diz respeito a parâmetros quantitativos como
área plantada quanto às conseqüências das ações por elas promovidas
nas regiões de cultivo nos países Andinos. A forte ênfase na oferta se
explica por estas políticas estarem atreladas às prioridades geopolíticas
derivadas das sucessivas conceitualizações sobre a segurança nacional
realizadas pelos Estados Unidos.

3.1 A Geopolítica da Região

As mudanças na geopolítica mundial com o fim da Guerra Fria


desencadearam rearranjos na política dos Estados Unidos no hemisfério
americano. Embora nos anos 90 a política externa estadunidense tenha
sido marcada por um multilateralismo limitado às áreas de seu maior

46
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

interesse como o comércio e o investimento direto em setores de potencial


econômico, o unilateralismo típico das relações com o resto do hemisfério
também se manteve. A tradição intervencionista continuaria nos episódios
da invasão do Panamá, bem como nas interferências dos processos políticos
internos, como o ocorrido recentemente na Venezuela (Herz, 2002).
A ampliação da Agenda de Segurança Nacional dos Estados Unidos
durante esta década, ultrapassa os temas tradicionais como o controle da
produção, transferência de armamentos e a resolução de disputas de fron-
teira. Passa a incluir também fenômenos como a migração, a proteção de
fronteiras, o terrorismo e o tráfico de drogas. ����������������
(Herz, op. cit).
A partir da agenda de Segurança Nacional e das novas ameaças
nela definidas, gera-se uma base geográfica para as ações estratégicas no
hemisfério, na qual a região Andina adquire maior importância. Desta
forma, a América Central, foco anterior de ações durante a década de 80,
cede seu lugar para os Andes sul-americanos, e neles, o narcotráfico se
constitui como núcleo conceitual e geográfico das ações no espaço
hemisférico. Redesenhado o mapa da segurança hemisférica, a Colômbia,
o Peru e a Bolívia se consolidam como o epicentro do fenômeno do tráfico
de drogas.
O Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina (IRA) fazem
parte das ações consideradas na Estratégia de Segurança do Governo dos
Estados Unidos e definem a orientação geopolítica desse governo para
a Colômbia e os países considerados na Iniciativa Regional Andina, a
saber: o Panamá, a Venezuela, o Peru, a Bolívia e o Brasil.
É importante compreender o discurso e as práticas geopolíticas
que se desprendem da Estratégia de Segurança Nacional para construir as
relações causais desta com os Planos Hemisféricos, isto é, com o Plano
Colômbia e a Iniciativa Regional Andina.

47
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

3.1.1 A Estratégia de Segurança Nacional

A Estratégia de Segurança Nacional (2002) está desenhada em


torno do princípio de liberdade, cuja garantia é afirmada somente em
conexão com a segurança. Portanto, a segurança é o critério mediador
de toda a Estratégia que considera como fontes desestabilizadoras o
terrorismo e toda atividade ou grupo humano que atente contra a liberdade
social, política e econômica da nação estadunidense.
A segurança refere-se não só à população estadunidense e ao seu
território, mas também aos interesses do Estado americano além das suas
fronteiras. A Estratégia visa derrotar quaisquer ameaças à segurança antes
que estas cheguem até as fronteiras ou atinjam os interesses americanos
extraterritoriais e, para isso, considera-se a necessidade de intervir nos
circuitos das atividades desestabilizadoras.
A Estratégia considera em seguida da exposição da sua filosofia
geral, os delineamentos das ações políticas mais concretas com os outros
países hemisféricos, reconhecendo a necessidade de trabalhar conjunta-
mente para prevenir e conter conflitos regionais. É aqui que são expli-
citadas as ações para a região, mais especificamente para a Colômbia.

3.1.2 O Plano Colômbia e a Iniciativa Regional Andina

A Estratégia de Segurança Nacional considera peremptório


realizar ações fora do território americano para garantir um entorno
hemisférico e mundial seguro.
O documento afirma que partes da América Latina enfrentam
conflitos regionais, vindos da violência dos cartéis da droga e de seus
cúmplices. A partir desta caracterização, afirma ter desenvolvido uma
estratégia ativa para ajudar as Nações Andinas a ajustar suas economias,
reforçar suas leis, derrotar as organizações terroristas, e cortar o forne-
cimento de drogas aos outros países. Para a Colômbia, concretamente,
48
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

explicita-se a conexão entre os grupos terroristas e a atividade do


narcotráfico, que seria a fonte de financiamento destes grupos. A partir
deste reconhecimento, afirma-se o compromisso dos Estados Unidos em
apoiar o país na defesa das suas instituições democráticas e na derrota
dos grupos armados, tanto de esquerda quando de direita, de forma que
se consolide a soberania sobre todo o território nacional.
A partir desta conceitualização, as ações de segurança dos Estados
Unidos estarão concentradas em dar continuidade e sustentabilidade aos
programas já em execução como o “Plano Colômbia” e a “Iniciativa
Regional Andina”, dando cada vez maior prioridade à conexão entre a
atividade de narcotráfico e a guerrilha. De igual maneira, as atividades
de lavagem de ativos serão mais controladas nos países da região.

O Plano Colômbia

O Plano Colômbia nasce como diretriz do Governo do Presidente


Andrés Pastrana (1998-2002) e como uma das estratégias da política de
paz. As ações se dirigiam às regiões afetadas pelo conflito interno com
programas de desenvolvimento alternativo aos cultivos ilícitos, programas
de atenção à população deslocada5 e promoção da diminuição da violência
em áreas urbanas. Como um processo simultâneo projetava-se a negociação
para a paz com os grupos insurgentes, que permitisse o financiamento de
projetos setoriais ligados aos acordos logrados (Presidência de la República,
1998). Como complemento a estas iniciativas, a estratégia antinarcóticos
era mencionada.

5
Trata-se das populações que, devido aos conflitos envolvendo guerrilha, exército e paramilitares, são
obrigadas a se deslocar das suas regiões de origem.

49
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Muita coisa mudou até chegarmos ao que hoje se conhece como o


Plano Colômbia e cujo fim está programado para 2006. Seu conteúdo atual é
substancialmente diferente daquele desenhado inicialmente, já que sofreu um
redesenho em seu trânsito pelo Departamento de Estado estadunidense durante
a administração Clinton. Sua administração considerou que era necessária a
elaboração de um plano que permitisse um pacote de ajuda suplementar para o
combate ao narcotráfico, que estivesse articulado ao Plano já formulado. Altos
funcionários estadunidenses solicitavam uma estratégia integral e assessores
do Departamento de Estado colaborariam na elaboração daquela que seria a
nova versão do Plano Colômbia.6
O plano foi aprovado no Congresso norte-americano em 20 de outubro
de 1999, e nele se solicitou uma ajuda suplementar para Colômbia de 1,6 bi-
lhões de dólares ao longo de três anos. Desse montante, 56% seriam destinados
à ajuda militar (o chamado “empuje al sur”), 11% para a polícia, 13% para
interdição, 8% ao desenvolvimento de culturas alternativas e 12% para direitos
humanos e justiça (Embaixada dos Estados Unidos na Colômbia, 1999).

A Iniciativa Regional Andina

A primeira vez que o governo dos Estados Unidos anunciou sua


“Iniciativa Andina” foi em 1989, como um plano de cinco anos, dotado
com 2,2 bilhões de dólares para o combate à produção de coca. Naquele
momento considerava-se que a região Andina estava saindo da década econô-
mica “perdida” dos anos 80 e avançando para a democracia. Exceto para os
responsáveis pela política antinarcóticos, a região era de pouca importância
dentro das prioridades geopolíticas do País do Norte.
Pouco mais de dez anos depois, a região apresenta um perfil indis-

6
Divulgado na imprensa, Diário El Espectador, Bogotá , 11 de outubro de 1999 e 14 de novembro de 1999.

50
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

cutivelmente diferente. A administração do Presidente George W. Bush


consolidou uma nova estratégia além do Plano Colômbia, com a pretensão
de estendê-lo a toda região e com recursos da ordem de 676 milhões de
dólares. Estes recursos foram aprovados na Câmara dos Representantes (23
de julho de 2001) para o orçamento de 2002 e foram batizados com o nome
de “Iniciativa Regional Andina” (IRA). Segundo as palavras do Secretário
de Estado, Collin Powell, “A nova administração quer regionalizar o conflito
colombiano de forma que os países da região reconheçam que o problema
é tanto deles quanto da Colômbia”.7
Os países receptores da ajuda são Peru, Equador, Bolívia, Venezuela,
Brasil e o Panamá, em ordem de importância na transferência. Embora os
países considerados pelo governo dos EUA como produtores sejam a Colôm-
bia, o Peru e a Bolívia; o Brasil, a Venezuela e o Panamá são considerados de
trânsito do tráfico e, portanto, se ajustam dentro da geografia da iniciativa.
Esta ampliação da escala do Plano Colômbia pareceu ser a forma
que o governo estadunidense encontrou para induzir a maior participação
das outras nações, Equador, Peru, Brasil, Venezuela e Panamá, nas ações
que promoveu e que tiveram pouca acolhida nos países vizinhos desde sua
implementação. A estratégia pretende criar o entorno para efetivar uma es-
tratégia de divisão de custos, a chamada “burden sharing”. Nesse sentido, a
intenção era reforçar a perspectiva de ampliação das práticas de engajamento
e expansão para criar uma nova geografia da situação envolvendo os outros
países hemisféricos.
No entanto, a Iniciativa Regional Andina não tem conseguido
o esperado envolvimento dos países vizinhos. Isto se deve em parte ao
fato de que as prioridades de segurança destes países não coincidem com

7
Segundo divulgado no Diário El Tiempo, Bogotá, 13 de março de 2001.

51
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

aquelas para as quais a IRA foi desenhada. As ameaças vindas da Colômbia


dizem respeito à operação de grupos armados, migração do conflito para
além das fronteiras colombianas, dispersão de culturas ilícitas e problemas
ecológicos.
Para o Brasil a situação colombiana é importante já que pode interferir
na estabilidade hemisférica e na criação de um entorno econômico favorável
para fazer frente aos desafios da globalização e aos das dinâmicas regionais.
De igual forma, o Brasil tem dentre suas prioridades a integração da América
do Sul, cuja efetivação reivindica países com estabilidade política interna.
De forma geral, é do interesse de todos os países limítrofes, que
o conflito colombiano seja mantido dentro das fronteiras do País e assim
evitar que se apresente qualquer possibilidade de expansão nos atores locais
respectivos. Neste sentido, as preocupações têm escalas diferenciadas se
comparadas às estadunidenses e, portanto, estratégias de abordagem também
diferentes.
De igual forma, resulta prioritário evitar a infiltração guerrilheira e
dos outros atores violentos nos território contíguos. Impedir as incursões
destes atores e conter os possíveis impactos das suas ações nas áreas de
fronteira são alguns dos objetivos compartilhados por todos os países. Isto
se deve ao fato da presença destes atores ser considerada uma ameaça à
institucionalidade dos países e representar a possibilidade de práticas como
o seqüestro, a chantagem ou a extorsão, e o risco de que se formem redes
destas atividades nos países limítrofes.
No entanto, as fronteiras apresentam diferentes graus de
sensibilidade ao conflito colombiano determinados pelas dinâmicas já
existentes nas suas respectivas áreas de influência nacionais. Este é um
ponto importante a ser levado em conta na construção das estratégias
de segurança. O valor e a intensidade que os países atribuem a estas
ameaças são diferentes e dependem tanto da porosidade das respectivas
fronteiras quanto da situação interna de cada país segundo o grau de
52
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

vulnerabilidade que apresenta frente a estes fenômenos.


Em termos de política externa, os países vizinhos não estão interessados
em intervir diretamente no caso colombiano. A política adotada até agora
tem sido mais de caráter isolacionista do que intervencionista, ao contrário
da postura dos Estados Unidos. A leitura que se faz do conflito colombiano
é de que se trata de um conflito que não admite facilmente a participação
dos países vizinhos. A percepção é de que a situação envolve diversos atores
subnacionais, dentre eles, grupos guerrilheiros, grupos paramilitares de
direita, militares, governos locais, narcotraficantes, etc. Frente à complexidade
desta situação, assume-se que são o Estado e a sociedade colombiana os
chamados a resolver estes assuntos de longa trajetória histórica.
Vista desde os diferentes interesses e realidades dos países hemisféricos,
a IRA não apresenta as convergências em questões de segurança requeridas
para que sejam acolhidas e efetivadas mediante ações pelos seus pretensos
protagonistas.
O desafio que se apresenta aos países hemisféricos é o de desenhar
e implementar uma política de segurança inserida nas realidades nacional
e regional que sirva de alavanca para impulsionar os processos regionais
prioritários, e não apenas refletirem as necessidades de segurança dos
Estados Unidos.

3.2 O Fracasso dos programas de combate às drogas

Como já se afirmou, as políticas de combate às substâncias ilícitas


baseiam-se numa estratégia cujo foco de combate é a produção das mesmas
no entendimento de que esta prática faz parte de um elo de causalidade que
alimenta o tráfico de drogas, que por sua vez financia as atividades terroristas,
consideradas ambas ameaças à segurança dos Estados Unidos.
Nesta ordem de idéias, a presença de cultivos ilícitos alimenta

53
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

o narcotráfico, que financia as atividades dos grupos guerrilheiros


colombianos, hoje na lista de grupos terroristas mundiais. Como afirma
claramente a Estratégia de Segurança, os esforços devem se concentrar em
intervir nos processos desestabilizadores antes que cheguem até as fronteiras
dos Estados Unidos ou que atinjam seus interesses extraterritoriais. Portanto,
as ações se focam em suprimir das regiões produtoras a matéria prima que
alimenta uma atividade que deve ser impedida de atravessar as fronteiras
estadunidenses.
No entanto, esta lógica e as ações que dela derivam, estão muito
aquém dos resultados esperados para derrotar o fenômeno em questão.
Algumas das razões que consideramos fundamentais para explicar o fracasso
desta estratégia na região são as seguintes:

1. Uma estreita conceitualização da questão, que considera o


problema localizado fora das fronteiras dos Estados Unidos e, portanto, o seu
combate deve realizar-se nesses espaços. Esta visão prioriza os pressupostos
de segurança dos Estados Unidos, tal como expostos na sua Estratégia de
Segurança, deixando em segunda ordem de importância as outras práticas
da atividade do narcotráfico que não aquelas da produção. Estas práticas
envolvem as redes de distribuição globais, as redes de distribuição no pró-
prio território estadunidense, a lavagem de dinheiro e o consumo. De igual
forma, esta abordagem desconhece o contexto social, político e econômico
da Colômbia e da região Andina em geral, além das causas que deles se
depreendem.
Esta compreensão da problemática leva à separação e
fragmentação da dinâmica do narcotráfico em esferas funcionais, a
partir de uma racionalização instrumental que visa apenas satisfazer as
necessidades de segurança dos Estados Unidos, tal como concebidas nos
seus próprios termos.
A lógica linear e segmentada sobre a qual está montada esta visão

54
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

separa conceitual e espacialmente a problemática e constitui, nessa medida,


uma justificativa para a concentração espacial das ações de combate. Nesta
cadeia, os espaços dedicados a cada parte apresentam uma independência
relativa que cria a ilusão de que não pertencem ao mesmo universo causal
da problemática e que não compartilham espaços sociais interdependentes.
Desta forma, a ênfase colocada na produção fica justificada e a intensidade
das ações legitimada.

2. A desconsideração dos contextos espaço-temporais do fenômeno


do narcotráfico, isto é, das histórias e geografias dos espaços que alimentam a
atividade. Isto nos remete aos aspectos estruturais, considerados inicialmente,
aos sujeitos sociais envolvidos e atingidos pelas ações. As estratégias de
combate são realizadas com pouca ou nenhuma consideração pelas
populações-alvo das práticas de erradicação de forma que os problemas de
exclusão social, falta de alternativas econômicas e produtivas, condições
territoriais das regiões são negligenciados. Uma vez realizadas as ações de
fumigação, erradicação, interdição, estas condições estruturais continuam
inalteradas e, em ocasiões, retroalimentadas por dinâmicas contraproducentes
que se desprendem dessas ações.8

3. Em terceiro lugar, a excessiva ênfase dada às ações que


oferecem resultados imediatos, mais que não são sustentáveis no tempo.
Concentram-se os esforços em ações mensuráveis como erradicação e
fumigação, interdição, desmantelamento de laboratórios, etc. Estas ações
se emolduram em ambiciosos prazos espaço-temporais e mensurações de
difícil cumprimento, que acabam criando expectativas que, ao não serem

8
É o caso das fumigações que alteram o potencial produtivo das terras e atrasam, assim, soluções como a
substituição de cultivos.

55
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

atingidas, são altamente contraproducentes para os Planos e para as próprias


regiões. Estas são submetidas a controles mais rigorosos e maiores pressões
para atingir as metas propostas.
Este estado de coisas mostra como o narcotráfico é definido e
respondido como problema em função dos assuntos de segurança dos
Estados Unidos, e não em relação à problemática local nem as dos Estados
produtores, como se o primeiro argumento fosse suficientemente importante
para justificar outros níveis de análise. A exclusividade dos argumentos de
segurança na conceitualização destes problemas faz com que se desconheçam
realidades sociais, econômicas, políticas, regionais e nacionais e, que em seu
lugar, leve-se em conta os assuntos interestatais, sempre que estes enfatizem
as prioridades estadunidenses.
As ações desencadeadas a partir desta conceitualização, como a
fumigação de cultivos, as interdições, a militarização das populações nas
regiões produtoras, entre outras criam novos problemas nas regiões, que
se superpõem aos já preexistentes, sem necessariamente trazer as soluções
pretendidas. Isto se comprova nos múltiplos estudos que demonstram como
a guerra às drogas apenas tem induzido uma alternância e rotatividade dos
cultivos nas regiões produtoras, sem diminuir efetivamente a área total
cultivada.9

9
O recente informe do Council on Foreign Relations comprova esta visão e confirma a necessidade de se
investir em ações que corrijam os problemas estruturais das regiões produtoras nos países Andinos, em
particular, na Colômbia. A este respeito, o informe afirma: “... A Comissão considera que a maior fraqueza
da atual política estadunidense, tal como está colocada no Plano Colômbia e na Iniciativa Andina, é sua
excessiva ênfase nos assuntos de segurança e de combate às drogas, e muito pouca ênfase em estratégias
complementares regionais”. ... Esforços devem ser realizados que considerem “um desenvolvimento rural
e de fronteiras sustentável, incluída uma reforma agrária estratégica; reformas políticas para fortalecimento
da lei e consolidação das instituições democráticas mediante uma maior transparência e confiabilidade;
desenvolvimento econômico e comercial que inclua o acesso aos mercados e legítimas oportunidades
econômicas; e uma política multilateral contra as drogas que leve em conta a demanda nos países consumi-
dores”. (Christman et al., 2004: 11-12)

56
Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica Hemisférica

Uma vez que se efetivem as ações desenhadas a partir destas


perspectivas, os problemas de pobreza, exclusão social e política, falta
de alternativas produtivas, a débil presença estatal continuam existindo,
mantendo intacta a estrutura que permitiu a colonização das atividades
ilícitas. Isto alimenta o círculo vicioso de pobreza - exclusão social -
ilegalidade, criando uma nova fonte de combustão social para o conflito
interno. Desta maneira, a política antinarcóticos dos Estados Unidos
acaba alimentando as condições internas que propiciam o conflito armado
colombiano. A ênfase exclusiva nas questões de segurança estaduniden-
ses solapa as causas da problemática e o universo em que esta se dá,
distanciando das soluções plausíveis para a Colômbia.

57
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

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VARGAS, Gloria Maria. Território e poder: a formação sócio-espacial


colombiana. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. (Tese de
Doutorado) Mimeo.
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59
Produção de Drogas na Colômbia e Seus
Reflexos para a Amazônia Brasileira

Rodrigo de Aquino

Analista de Informações da Agência Brasileira de Inteligência.


Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

Antecedentes

Considerada ilegal no início do século XX e substituída por outras


drogas, como as anfetaminas, a cocaína começou a ganhar notoriedade e
seu uso se disseminou no final dos anos 70 e início dos 80, por influência
de movimentos pacifistas e contestatórios da chamada geração “hippie”,
pelo menos entre os jovens nos EUA.
A oferta desta droga estava relacionada com a produção da folha de
coca na Bolívia, no Peru e na Colômbia. Portanto, o “boom” no consumo
da droga gerou amplas oportunidades de enriquecimento para produtores
e traficantes sul-americanos. Embora não tivessem o domínio dos cultivos
da coca, os traficantes colombianos destacaram-se, na oportunidade, por
controlar a parte mais rentável do negócio: as rotas para o tráfico da droga,
particularmente aquelas destinadas para o mercado dos EUA. Nesse
contexto, ganharam notoriedade os cartéis colombianos, primeiramente
o de Medellín e, posteriormente, o de Cali.
Com apoio dos EUA, o governo colombiano conseguiu desarticular
os cartéis de Medellín e de Cali durante a década de 90. Entretanto, o
tráfico de drogas continuou a ser operado por vários “mini-cartéis” que
passaram a dominar a produção, o transporte e a comercialização de
cocaína, porém em menor escala se comparadas às operações desenvolvidas
pelos cartéis.
Aproveitando essa situação, os cartéis mexicanos passaram a,
gradualmente, controlar as rotas para o tráfico de drogas com destino ao
mercado norte-americano. Paralelamente, os movimentos guerrilheiros
colombianos, que já vinham buscando atuar no negócio do narcotráfico
para captar recursos a fim de promover o movimento revolucionário,
começaram a ocupar os espaços de poder deixados pelas grandes estruturas
criminosas e passaram a apoiar as operações dos “mini-cartéis”.

63
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Tais condições, aliadas à contínua repressão ao cultivo da coca


no Peru e na Bolívia, favoreceram o cultivo da coca na Colômbia, sob
proteção de criminosos, paramilitares ou movimentos guerrilheiros,
em territórios onde é praticamente nula a presença do Estado
colombiano.
Isso provocou alteração no perfil de inserção do País no contexto
da economia da droga. Até meados dos anos 80, a Colômbia desem-
penhava principalmente o papel de entreposto para processamento e
tráfico de cocaína, mas, no final da década passada, iniciou-se tendência
para que o cultivo também se concentrasse no País. Como resultado
disso, em 2000, a Colômbia passou a concentrar cerca de 70% da coca
cultivada nos países Andinos (cerca de 136.000 hectares semeados de
coca). Também a conquista dos canais de distribuição para o mercado
norte-americano pelos cartéis mexicanos redundou no controle das
etapas iniciais e menos rentáveis pelos micro-cartéis, pelos movimentos
guerrilheiros e pelos grupos paramilitares colombianos.
As políticas governamentais para reverter esse quadro têm-se
polarizado em duas vertentes. A primeira opta pela via militar e tem por
objetivo a erradicação dos cultivos ilícitos, recebendo amplo apoio dos
EUA, por meio do Plano Colômbia, e consome o grosso dos esforços do
Governo colombiano. A segunda, opta pela via social e trata de restaurar
a presença do Estado e a coesão social do País por meio do conceito
do “desenvolvimento alternativo”, a qual recebe apoio de Organismos
Internacionais e Organizações Não-Governamentais.
O combate às drogas pela erradicação de cultivos por meio da
cooperação com as Forças Armadas – caracterizada pelo processo de
fumigação da área plantada com glifossato – propalado pelos EUA,
serve a interesses de congressistas norte-americanos que apresentam
constante demanda por resultados efetivos no combate às drogas por
meio da redução da oferta aos países Andinos.

64
Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

Seguindo essa linha, entre 2000 e 2002, foram fumigados com


glifossato 254.586 hectares, mas a área semeada de coca que em 2000
era de 136.200 hectares subiu para 144.400 hectares, em 2002. Além
disso, observou-se, à medida que ocorrem as fumigações, há a migração
de cultivos, particularmente em direção ao sul na região de fronteira
com o Equador, departamentos de Caquetá, Putumayo e Nariño.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o potencial
de produção de cocaína permaneceu estável, em aproximadamente 800
toneladas, em 2002. A maior parte da fabricação de cocaína na América
do Sul continuava a ter lugar na Colômbia, principalmente em zonas
controladas por grupos armados.
No caso das zonas fumigadas, a Agência Americana para Desen-
volvimento Internacional (USAID) afirma que cerca de 33 mil famílias
receberam ajuda estadunidense dos programas de desenvolvimento alter-
nativo. Entretanto, a Defensoria Pública colombiana afirma que desde o
início das fumigações cerca de 35 mil famílias foram obrigadas a deixar
suas terras devido à fumigação.

Panorama atual da produção de drogas


na Colômbia, na Bolívia e no Peru

A manutenção da política de fumigação aérea na Colômbia, com


amplo apoio dos EUA tem sido apontada como fator determinante para
reversão da tendência de aumento na área plantada de coca da Colômbia,
embora persistam dúvidas sobre a consistência dos dados apresentados
e a sustentabilidade dos índices a longo prazo.
Segundo estimativas do Sistema Integrado de Monitoreo de
Cultivos Ilícitos (SIMCI) da Colômbia, em julho de 2003 havia no País

65
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

cerca de 69 mil hectares cultivados de coca, o que representaria redução


de cerca de 50% da área plantada em relação a dados de 2000. A maior
parte da redução foi atribuída à política de fumigação aérea. Ainda
segundo a entidade, em que pese a redução do cultivo na maioria das
zonas afetadas, no departamento de Nariño, na fronteira com o Equador,
o cultivo parece ter aumentado.
Em março de 2004, o Departamento de Estado dos EUA divulgou
análise na qual afirmava ter observado redução de cerca de 30% na área
plantada de coca na Colômbia entre 2001 e 2003, chegando a aproxi-
madamente 118 mil hectares. Embora o governo estadunidense tenha
divulgado, na mesma ocasião, a redução global das zonas de plantio na
Colômbia e a completa erradicação das lavouras na região do Putumayo,
há informações de que os produtores abandonaram o cultivo em grandes
plantações e adotaram técnicas de plantio em áreas pequenas rodeadas de
mata para dificultar a detecção por satélite e a fumigação. A utilização de
técnicas de plantio para evitar a fumigação e a visibilidade aérea (aviões
e satélites), além de representar uma adaptação às medidas de repressão
adotadas, constitui fato que justificaria a manutenção das aspersões por
tempo indefinido, resultando na dependência colombiana por recursos
norte-americanos.
Além disso, há dados que confirmam a existência de plantações
de coca ao longo de estradas em Puerto Asís e Orito, cidades do departa-
mento de Putumayo, o que contradiz a posição dos EUA sobre a completa
erradicação dos cultivos nesse departamento. Há indícios de que muitas
dessas plantações sejam mudas que devem estar prontas para produzir
no prazo de dois anos.
Ademais, monitoramento por satélite das plantações de coca na
Colômbia, realizado por órgão da ONU, conclui pelo relativo aumento
dos cultivos ilícitos no departamento de Vaupés, junto à parte superior
da região do território brasileiro conhecida como “Cabeça do Cachorro”.

66
Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

No passado, as plantações de coca não vingavam nessa região devido


a condições desfavoráveis do terreno e do clima no local. Entretanto,
avanços observados na técnica agrícola e nas variantes das plantas usadas
para o cultivo têm possibilitado sua adaptação.
Apesar de reconhecer a importância da política de cooperação
dos EUA para a redução da área plantada de coca na Colômbia e para a
detecção de laboratórios clandestinos, relatório da Junta Interamericana
para Fiscalización de Estupefacientes, da ONU, divulgado em 2004,
adverte que o êxito dessas atividades pode repercutir em aumento na
produção da coca em países produtores como Bolívia e Peru e também no
Equador e na Venezuela. Enquanto no Peru a superfície total de cultivos
permanece estável; na Bolívia, onde se havia observado redução na área
plantada, foi registrado ligeiro aumento em 2002.
No Peru, o êxito das medidas de interdição do tráfico de drogas
por via área que contaram com a cooperação dos setores militares e de
Inteligência dos EUA forçou, no primeiro momento, a transferência de
parte da produção para a Colômbia. Com a interrupção desse programa e
a continuidade das medidas repressivas neste País, observou-se o retorno
das plantações ilegais de coca em alguns vales peruanos, onde os pro-
dutores rurais recebem dos criminosos recursos para investir no plantio
e obtém maior rentabilidade na venda das safras, as quais se destinam,
principalmente, ao processamento da pasta base de cocaína (pbc),
inclusive em laboratórios próximos à fronteira com o Brasil.
Na Bolívia, a despeito do esforço no sentido de combater os
cultivos ilegais, a tendência de redução na área plantada não se mostrou
sustentável. Dados indicam aumento do plantio em 2002, principalmen-
te devido à mudança na política interna em relação à área do Chapare.
Além disso, autoridades bolivianas têm encontrado dificuldades em se
contrapor à crescente influência da atividade criminosa, notadamente
nas cidades fronteiriças com o Brasil, manifestada no aliciamento de

67
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

servidores públicos, membros do Poder Judiciário e forças policiais bo-


livianos. Nessa região, é crescente o fluxo de pasta base de cocaína (pbc)
que anteriormente alimentava a produção na Colômbia, mas, também
devido às medidas repressivas neste país, tem sido desviada para ulterior
processamento em laboratórios clandestinos, também nos situados na
região da Tríplice Fronteira Guiana–Suriname–Brasil.

A inserção do Brasil no contexto regional do


narcotráfico e seus reflexos para a Amazônia brasileira

A inserção do Brasil e de sua porção amazônica no contexto regio-


nal do narcotráfico se faz principalmente pela utilização de seu território
para o transporte de drogas (pasta base de cocaína e cocaína). Como as
principais áreas produtoras de coca estão localizadas na borda ocidental
da grande bacia de drenagem do Rio Amazonas, nos altos e médios vales
de seus formadores e afluentes no Peru, Bolívia e Colômbia, a bacia hi-
drográfica que abastece a região tem sido usada pelos traficantes para o
transporte de drogas.
À malha fluvial superpõe-se rede de rodovias e rotas aéreas que
permite a interligação entre a costa do Pacífico e o Oceano Atlântico. Além
disso, o acesso ao transporte aéreo e rodoviário se faz também pelas estradas
secundárias e pistas não controladas em fazendas e povoados disseminados
pelo interior do continente.
O principal reflexo da manutenção do atual cenário de produção
de drogas na Colômbia e nos países vizinhos para a região amazônica
brasileira relaciona-se, portanto, com a utilização do território como passagem
para o tráfico de drogas para posterior envio a mercados consumidores
estrangeiros e para abastecer o mercado de consumo no Brasil. Em que

68
Produção de Drogas na Colômbia e Seus Reflexos para a Amazônia Brasileira

pese a tradicional importância da cocaína, o que se destaca na atualidade


é o crescente fluxo de pbc nas rotas que cruzam o Território amazônico.
O tráfico da pbc em Território brasileiro é realizado por vias
fluviais, terrestres e aéreas em uma combinação que permite remessas
com destino às regiões Norte, Nordeste e Sudeste brasileiras – onde têm
sido detectados laboratórios clandestinos de processamento da pbc para
produção de “crack” e “merla” – e também para a região da Tríplice
Fronteira Guiana–Suriname–Brasil.
Outro efeito para a região Amazônica, derivado da condição de
território de passagem para o tráfico de drogas, é o surgimento de focos de
criminalidade organizada na região, particularmente quadrilhas e grupos
que se articulam para operacionalizar o tráfico de drogas, mas que acabam
por se envolver com o tráfico de armas, a prostituição, o tráfico de seres
humanos, a prática de extorsão, a corrupção e a “lavagem” de dinheiro.
A particularidade da ação desses criminosos na porção amazônica é a
possibilidade de se integrarem aos negócios ilícitos desenvolvidos por
organizações criminosas que atuam na Colômbia, no Peru e na Bolívia.
Outro ponto que convém destacar nesse quadro se refere à polêmica
sobre possibilidade de migração de cultivos ilícitos para a Amazônia brasi-
leira. Até o momento, autoridades policiais e de segurança não registraram
indícios da existência de plantações de coca, ou variantes geneticamente
modificadas da planta, em território brasileiro. Os fatores apontados são de
que as condições de solo e clima no local não seriam favoráveis ao cultivo
economicamente viável da folha de coca. Entretanto, avanços observados
na técnica agrícola e nas variantes das plantas usadas para o cultivo têm
possibilitado adaptação dos cultivos para áreas onde não vingavam no
passado, como é o caso na região de Vaupés, na Colômbia. Portanto, a tese
de que o Brasil estaria imune à migração das plantações de coca poderia
apresentar limitações no futuro.

69
Relatório dA rEUNIÃO DE ESTUDOS
Relatório da Reunião de Estudos

Com o objetivo de contribuir na formulação de ações governamentais


para a região Amazônica, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por
intermédio da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei),
promoveu no dia 5 de maio de 2004, no Auditório de Videodifusão do
Palácio do Planalto, Reunião de Estudos com cerca de quarenta participantes
entre técnicos do Governo, acadêmicos e representantes de organizações da
sociedade civil.
Este evento insere-se no âmbito do Ciclo de Estudos sobre a
Amazônia – uma série de atividades programadas pela Coordenadoria de
Estudos da Saei com o objetivo de discutir questões e perspectivas relacionadas
ao desenvolvimento, sustentabilidade e atuação do Estado na região. O tema
debatido foi: “A produção de drogas na Colômbia e possíveis reflexos para
a região Amazônica brasileira”.
A recepção aos convidados foi realizada pelos representantes da Saei,
Ministro José Antonio de Castelo Branco de Macedo Soares, Secretário-
Adjunto, que atuou como debatedor na Reunião, e pelo Conselheiro José
Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos, mediador responsável pela
condução dos debates.
Abordando a temática principal, dois expositores revezaram-se na
apresentação e discussão das questões levantadas: Gloria Maria Vargas -
Geógrafa colombiana e Doutora em Geografia; e Rodrigo de Aquino - Analista
de Informações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Gloria Vargas falou sobre Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica
Hemisférica, onde de maneira sucinta abordou o universo da produção (oferta);
o universo do consumo (demanda) e a questão do combate aos ilícitos.
Rodrigo de Aquino, por sua vez, apresentou uma contextualização
histórica da temática, se reportou ao panorama atual da produção de drogas
na Colômbia, Bolívia e Peru e, finalmente, analisou a inserção do Brasil no
contexto regional do narcotráfico e seus reflexos para a Amazônia brasileira.

73
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Parte I – Apresentações

A primeira apresentação foi realizada pela Professora Gloria


Maria Vargas sob o título Cultivos Ilícitos na Colômbia e Geopolítica
Hemisférica. Gloria ressaltou que sua exposição se concentraria numa
perspectiva acadêmica em virtude de seu histórico como Professora e
Pesquisadora. Destacou que daria prioridade a três questões: Produção,
Consumo e Combate a ilícitos, sendo que concentraria a exposição
mais na questão da produção e combate, abordaria apenas de maneira
superficial a questão do consumo.
Em relação à produção, a Pesquisadora fez um breve histórico
sobre a origem do cultivo de ilícitos em território colombiano, a iden-
tificação de determinantes – fatores e variáveis que criam um ambiente
propício para o cultivo – variáveis conjunturais, que seriam as mais
veiculadas pela mídia e as variáveis estruturais, que de acordo com a
Pesquisadora, seriam os foco da apresentação.
Dentro do universo da produção (oferta) foram destacados fatores
internos e externos e dentro destes, condições estruturais que determina-
ram, entre outros fatores a formação territorial colombiana, a exclusão
e periferização das regiões. A estrutura fundiária e a falta de infra-estru-
tura em relação às atividades econômicas voltadas ao desenvolvimento
regional e nacional, bem como a economia política do conflito interno,
apresentam-se também como condições estruturais relacionadas ao
universo da produção.
Sobre a estrutura fundiária, Gloria citou um estudo recente, de
2002, realizado pelo Instituto Geográfico Colombiano Agustín Codazzi
que expõe uma estrutura fundiária extremamente perversa ao mostrar
que cerca de 0,4% dos proprietários detêm 61,2% das terras agrícolas do
país, ao passo que 57,3% dos produtores ocupam pouco mais de 1,7%

74
Relatório da Reunião de Estudos

da terra agrícola disponível. A conseqüência disso é que pelo fato desses


pequenos produtores ocuparem as áreas mais longínquas do território
colombiano, apresentam uma enorme dificuldade de escoar sua produção
pela falta de infra-estrutura, o que facilitaria, sob esse argumento, o
cultivo de ilícitos.
Quanto à economia política do conflito interno a mesma diz
respeito ao vínculo de sobreposição regional, territorial e espacial entre
os colonos deslocados de seus locais de produção e os grupos guerri-
lheiros insurgentes, que pelas necessidades financeiras e de infra-
estrutura logística dos primeiros, acabam aderindo ao cultivo de ilícitos,
estabelecendo-se assim um vínculo entre guerrilheiros e produtores
de coca – cocaleiros – que nem sempre são os comercializadores, se
constituindo em populações diferenciadas. Essa relação, de acordo com
a Pesquisadora, constitui o vínculo entre o conflito interno, o político e
a produção de drogas ilegais. Esse contexto sintetiza assim o universo
dos fatores internos.
Em relação aos fatores externos, foram destacadas a produção
agrícola mundial e as políticas e preços agrícolas, representados pelos
subsídios agrícolas oferecidos pelos países de Primeiro Mundo. Gloria
Vargas apresentou um pequeno histórico de como ocorreram as mudanças
na produção agrícola colombiana, antes eminentemente cafeeira, para
uma produção voltada quase que exclusivamente ao cultivo de ilícitos.
Essa análise se deu dentro do contexto da queda dos preços do café no
mercado internacional e a conseqüente migração dos pequenos produ-
tores para outras atividades econômicas, principalmente para o cultivo
e produção da coca.
Quanto às políticas agrícolas, a Pesquisadora se referiu especifi-
camente aos subsídios que os países de Primeiro Mundo oferecem aos
seus produtores, causando enormes distorções nos preços de produtos
agrícolas com os quais os países do Terceiro Mundo concorrem no
75
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

mercado internacional. Para exemplificar, foi apresentado um quadro


comparativo – com estatísticas da Organização das Nações Unidas para
a Agricultura e Alimentação (FAO) – do percentual de exportações
mundiais de alguns produtos como: café, açúcar, algodão, milho e gado,
no período compreendido entre 1970 – 1999, que mostra uma queda
acentuada no percentual das exportações dos referidos produtos pelos
países do Terceiro Mundo.
Como ressaltou no início de sua apresentação, em relação ao
universo do Consumo a Pesquisadora teceu breves comentários.
Apresentou um quadro demonstrativo de consumidores por tipos de
drogas e fez uma análise dos números, chegando à conclusão de que o
número de consumidores das chamadas drogas artificiais – estimulantes,
anfetaminas e meta-anfetaminas – representa o dobro dos consumidores
das drogas produzidas com matérias-primas naturais, como a folha da
coca e a papoula – cocaína e heroína, respectivamente. Sob essa
perspectiva, Gloria Vargas chamou a atenção para o aumento do consu-
mo, principalmente nos países desenvolvidos, de drogas como as anfe-
taminas e meta-anfetaminas e dentre estas, particularmente o ecstasy.
Finalizando, se reportou à questão do combate ao narcotráfico e
cultivo de ilícitos. Os principais pontos destacados foram:

• Estratégia de segurança dos Estados Unidos;


• Plano Colômbia;
• Regionalização do conflito colombiano.

Em relação à estratégia de segurança dos Estados Unidos, desta-


cou que está explicitamente colocado que os fenômenos que constituem
ameaça para a Segurança Nacional do país devem ser contidos nos seus
lugares de incidência antes que os mesmos cheguem até as fronteiras dos

76
Relatório da Reunião de Estudos

Estados Unidos. Dentro desse contexto, de acordo com a Pesquisadora,


se delineou o Plano Colômbia.
Em relação ao Plano, fez uma pequena descrição sobre a origem
e os objetivos iniciais do mesmo. Destacou o nascimento do Plano
Colômbia no Governo do então Presidente Ernesto Samper, no período
de 1994 a 1998. No final do Governo, procurou-se uma estratégia, não de
combate direto e erradicação dos cultivos ilícitos, mas de pacificação dos
territórios que tinham problemas de conflito interno. No desenho original
feito pelo Governo colombiano, a questão da erradicação dos cultivos
era considerada uma ação secundária, a ação primária era a pacificação
dos territórios mais conflituosos. Porém, após o Plano ser submetido à
apreciação do Departamento de Estado do Governo americano, houve
uma inversão de prioridades, isto é, o que era secundário passou a ser
o foco do Plano Colômbia, ou seja, o combate, a erradicação e a
contenção dos cultivos ilícitos em território colombiano, enquanto que as
ações de pacificação, de desenvolvimento regional, entre outras, ficaram
em segundo plano. A Pesquisadora destacou que as principais ações do
Plano são basicamente ações de combate à presença de culturas ilícitas
por meio de fumigação e erradicação manual.
No que diz respeito à regionalização do conflito destacou a ne-
cessidade de se considerar quais são os riscos para os países fronteiriços
em função da situação colombiana. Segundo Gloria Vargas, um dos
riscos mais pertinentes considerar é a possibilidade de que o conflito
interno transborde as fronteiras colombianas, o chamado spill over. Um
outro risco diz respeito à incursão de grupos guerrilheiros colombianos
em território brasileiro, equatoriano, peruano ou venezuelano, o que de
fato, segundo Gloria, já vem ocorrendo. Um terceiro risco diz respeito
à dispersão dos próprios cultivos ilícitos, ou seja, a possibilidade dos
mesmos migrarem e se fixarem em territórios dos países fronteiriços.
Destacou ainda uma outra possibilidade, o deslocamento da população
77
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

causado pelo conflito interno, bem como as migrações em função da


busca de novos horizontes de vida, visto que a população civil é a mais
atingida pelo conflito e pelas próprias medidas do Plano Colômbia.
As fumigações em território colombiano representam socialmente
uma enorme problemática tanto em termos de saúde pública, quanto em
termos de perda da produção de pequenos agricultores, pois não sendo
seletiva a fumigação, ela não se restringe à produção dos cocaleiros. No
que diz respeito à questão ambiental, já foi comprovada a existência de
sérios riscos advindos da fumigação, principalmente quando são utili-
zados produtos extremamente nocivos ao meio ambiente.
Em relação à segurança, a Pesquisadora levantou uma questão: Quais
seriam os objetivos de segurança dos países Andinos Amazônicos e se seria
possível diferenciar esses objetivos, dos objetivos da estratégia nacional dos
Estados Unidos? Ressaltou, porém, que o desafio implícito na questão está em
procurar estratégias que sejam próprias de nossa realidade e, principalmente,
que considerem as nossas particularíssimas condições sociais.
Destacou ainda três aspectos aos quais o Brasil deveria dedicar
mais atenção:

• A questão do conflito e da situação colombiana ameaça a


estabilidade política regional. Um entorno político estável é
extremamente desejável para o Brasil em função da manu-
tenção de um ambiente político favorável;
• Manutenção, em função do contexto da globalização, de rela-
ções políticas cordiais, procurando empreender esforços para
favorecer investimentos externos;
• Criação e consolidação de condições para efetivar uma integra-
ção Sul-americana, ou seja, um bloco regional se espelhando
talvez no processo da União Européia.

78
Relatório da Reunião de Estudos

Em relação ao “combate”, identificou três razões pelas quais os


planos que pretendiam combater o narcotráfico e o cultivo de ilícitos
fracassaram ou deixaram muito a desejar:

• A separação dos segmentos da problemática numa visão linear


que não integra todas as variáveis que são importantes e que
devem ser analisadas conjuntamente;
• Desconsideração de condições sociais extremamente complexas
onde os sujeitos sociais dessas ações são justamente as pessoas
que estão sendo desconsideradas na estratégia;
• Exigência em empreender ações que apresentem resultados
imediatos, porém, sem sustentabilidade a longo prazo.

A segunda apresentação com o título “Produção de drogas


na Colômbia: reflexos para a Amazônia brasileira” foi realizada
pelo Senhor Rodrigo de Aquino, Analista de Informações da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin).
Iniciou sua apresentação agradecendo ao convite da Saei
e, resumidamente, expôs a metodologia de sua apresentação: os ante-
cedentes do problema; o panorama atual da produção de drogas - com
foco na questão da coca - em virtude da mesma apresentar-se como o
principal problema em relação à Colômbia e, finalmente, a inserção do
Brasil no contexto regional do narcotráfico.
Na contextualização histórica da questão destacou que a cocaína,
considerada ilegal no início do século XX, começou a ganhar notoriedade
e seu uso se disseminou no final dos anos 70 e início da década de 80, por
influência de movimentos pacifistas e contestatórios da chamada geração
hippie. A oferta dessa droga estava relacionada à produção da folha de
coca na Bolívia, Peru e Colômbia. Embora não tivessem o domínio do
cultivo da coca, os traficantes colombianos destacaram-se por controlar
79
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

a parte mais rentável do negócio: as rotas para o tráfico das drogas,


particularmente as destinadas para o mercado americano.
Até meados dos anos 80, a Colômbia desempenhava principal-
mente o papel de entreposto para o processamento e tráfico de cocaína,
mas, no final da década passada, deu-se início à tendência de concen-
tração do cultivo no País. Como resultado dessa estratégia, em 2000, a
Colômbia passou a concentrar cerca de 70% da coca cultivada nos países
andinos – cerca de 136 mil hectares semeados de coca.
As políticas governamentais para reverter esse quadro têm-se
polarizado em duas vertentes. A primeira opta pela via militar e tem por
objetivo a erradicação dos cultivos ilícitos, recebendo amplo apoio do
Governo americano por intermédio do Plano Colômbia e consome boa
parte dos esforços do Governo. A segunda opta pela via social e trata
de restaurar a presença do Estado e a coesão social do País por meio
do conceito de “desenvolvimento alternativo”, a qual recebe apoio de
Organismos Internacionais e Organizações Não-Governamentais.
No âmbito da política de combate às drogas que prioriza a erradicação
de cultivos por meio da cooperação com as Forças Armadas, entre 2000
e 2002, foram fumigados com glifossato 254.586 hectares, porém a
área semeada de coca que em 2000 era de 136.200 hectares subiu
para 144.400 hectares em 2002. Além disso, à medida que ocorrem
as fumigações, há migração de cultivos, particularmente em direção
ao Sul, na região de fronteira com o Equador. Segundo relatório da
Organização das Nações Unidas (ONU), o potencial de produção da
cocaína permaneceu estável, em aproximadamente 800 toneladas em
2002.
No caso das zonas fumigadas, a Agência Americana para o Desen-
volvimento Internacional (USAID), afirma que cerca de 33 mil famílias
receberam ajuda estadunidense dos programas de desenvolvimento alternativo.
Entretanto, a Defensoria Pública colombiana afirma que desde o início
80
Relatório da Reunião de Estudos

das ações, cerca de 35 mil famílias foram obrigadas a deixar suas terras
em conseqüência da fumigação.
Em seguida, abordou o panorama atual da produção de drogas na
Colômbia, Bolívia e Peru. A manutenção da política de fumigação aérea
na Colômbia, com amplo apoio dos Estados Unidos, tem sido apontada
como fator determinante para reversão da tendência de aumento da área
plantada com coca. Segundo estimativas do Sistema Integrado de Monitoreo
de Cultivos Ilícitos en Colombia (SIMCI), em julho de 2003 havia no país
cerca de 69 mil hectares cultivados de coca, o que representaria redução de
cerca de 50% da área plantada em relação a dados de 2000. A maior parte
da redução foi atribuída à política de fumigação aérea.
Em março de 2004, o Departamento de Estado americano divulgou
análise na qual afirmava ter observado redução de cerca de 30% na área
plantada de coca na Colômbia entre 2001 e 2003, atingindo 118.547
hectares. Embora o Governo estadunidense tenha divulgado, na mesma
ocasião, a redução global das zonas de plantio na Colômbia e a completa
erradicação das lavouras na região de Putumayo, há informações de que
os produtores abandonaram o cultivo em grandes plantações e adotaram
técnicas de plantio em áreas pequenas cercadas de mata para dificultar a
detecção por satélite e a conseqüente fumigação.
O monitoramento por satélite das plantações de coca na Colômbia
detectou relativo aumento de cultivos ilícitos no departamento de Vaupés,
junto à parte superior da região do território brasileiro conhecida como
“Cabeça do Cachorro”. No passado as plantações de coca não se desenvol-
viam nessa região devido às condições desfavoráveis de terreno e clima.
Entretanto, avanços observados nas técnicas agrícolas e nas variantes das
plantas usadas para o cultivo têm possibilitado sua adaptação.
No Peru, o êxito das medidas de interdição do tráfico de drogas
por via aérea que contaram com a cooperação dos setores militares e de
Inteligência dos Estados Unidos forçou, num primeiro momento, a trans-
81
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ferência de parte da produção para a Colômbia. Com a interrupção desse


programa e a continuidade das medidas repressivas no país, observou-se
o retorno das plantações ilegais de coca em alguns vales peruanos, onde
os produtores rurais recebem dos traficantes recursos para investir no
plantio e obtêm assim maior rentabilidade na comercialização das safras,
as quais se destinam, principalmente, ao processamento da pasta base de
cocaína, inclusive em laboratórios próximos à fronteira com o Brasil.
Na Bolívia, a despeito do esforço no sentido de combater os
cultivos ilegais, a tendência de redução na área plantada não se mostrou
sustentável. Dados indicam aumento do plantio em 2002, principalmente
devido à mudança na política interna em relação à área do Chapare. Além
disso, autoridades bolivianas têm encontrado dificuldades em coibir a
crescente influência da atividade criminosa, notadamente nas cidades
fronteiriças com o Brasil, manifestada no aliciamento de servidores
públicos, membros do poder judiciário e forças policiais bolivianas.
Em relação à inserção do Brasil no contexto regional do
narcotráfico e seus reflexos para a Amazônia brasileira, destacou que se
faz principalmente pela utilização de seu território para o transporte de
drogas. Como as principais áreas produtoras de coca estão localizadas
na borda ocidental da grande bacia de drenagem do Rio Amazonas, a
bacia hidrográfica que abastece a região tem sido usada pelos traficantes
para o transporte de drogas.
Expôs alguns slides mostrando as principais rotas de tráfico de
drogas tanto fluviais quanto aéreas, bem como as principais pistas de
pouso clandestinas. Os slides mostravam principalmente as rotas fluviais
de ingresso de drogas no Brasil e rotas fluviais de escoamento de drogas
desde a Colômbia, Peru e Bolívia.
Em relação às rotas aéreas, os slides mostravam que as principais
pistas clandestinas na Amazônia Legal localizam-se principalmente nos
Estados do Pará, Amapá, Roraima, Acre, Rondônia e Amazonas. É importante
82
Relatório da Reunião de Estudos

observar, em relação às pistas clandestinas, que muitas delas estão


localizadas em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, o que gera
um problema adicional para se controlar esse tipo de tráfico na região.
Foram mostradas também as principais conexões da rede de trans-
porte utilizada pelo narcotráfico, identificando os principais corredores
dentro do território brasileiro. O principal corredor das drogas produzidas
nos países Andinos - Corredor Norte - entra pelo Amazonas, e distribui
para o Pará, de onde segue para outros estados. Um outro importante
corredor - Corredor Central - seria a rota que entra a partir de Rondônia,
seguindo para o Centro-Oeste e chegando até o Sudeste.
O principal reflexo observado na produção de drogas na Colômbia
é a tendência de que a região Amazônica se consolide como corredor do
tráfico de drogas pelo fato de não se conseguir reduzir a oferta nos países
Andinos. Ressaltou ainda o grande potencial do Brasil como consumidor
de drogas, principalmente as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul.
Um outro aspecto para o qual chama a atenção são os laborató-
rios clandestinos para processamento da pasta base de cocaína. Foram
identificados vários desses laboratórios nas regiões Norte e Nordeste
brasileiras, porém a maior parte deles se localiza na região Sudeste,
principalmente em São Paulo e Minas Gerais, onde, não por acaso se
localizam as principais indústrias químicas, o que facilitaria a aquisição
de precursores químicos, utilizados no processamento da droga. A maior
parte da pasta base de cocaína que entra no país para ser processada é
destinada à produção de “crack” e “merla”.
Um outro reflexo diz respeito à “economia do tráfico”. Rodrigo
acredita que o tráfico de drogas não vem sozinho, está relacionado ao
tráfico de armas exatamente nas mesmas rotas utilizadas pelas drogas.
Observa-se claramente, uma contrapartida, uma troca que favorece o
abastecimento de movimentos insurgentes e a criminalidade organizada
que se concentra não só na Colômbia, mas também no Peru, Bolívia,
83
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Paraguai e Brasil. Aliado a isso, há também o problema da prostituição


e do tráfico de seres humanos que está relacionado ao problema da droga
e ao advento de grandes pólos da economia da droga em território
brasileiro.
Finalizando, abordou uma outra questão que diz respeito aos cultivos
ilícitos no Brasil. Destacou que até o momento não foi identificada
nenhuma possibilidade de migração do cultivo de coca para a Amazônia
brasileira, apesar de sempre se trabalhar com a hipótese da existência de
mudas geneticamente modificadas - em função do solo não ser propício
ao cultivo de um produto rentável do ponto de vista da qualidade.
Chamou a atenção, porém, para o fato de que os narcotraficantes
têm utilizado novas técnicas, até mesmo por intermédio de pesquisas em
universidades e em centros de pesquisa para aprimorarem a produção
da folha da coca, e diante disso não se pode descartar a possibilidade de
que algum dia o Governo brasileiro se depare com um problema dessa
natureza na Amazônia.

Apresentação do Debatedor

Após as exposições, foi concedida a palavra ao debatedor, Secretário-


Adjunto da Saei, Ministro José Antônio de Castelo Branco de Macedo Soares.
Macedo Soares destacou que seu papel seria o de preparar e estimular
o debate. Agradeceu a participação dos palestrantes e elogiou as apresentações
da Professora Gloria Vargas e do Analista Rodrigo de Aquino, destacando a
sincronia entre as mesmas.
Em relação aos temas abordados pelos expositores, na sua opi-
nião, o Brasil se transformou num potencial consumidor de drogas. Em
sua análise, isso ocorreu principalmente em função do Brasil servir de

84
Relatório da Reunião de Estudos

corredor do tráfico de drogas, ou seja, ser um país de trânsito e que há


dez anos isso não representava exatamente um problema para as autori-
dades, apesar de ilegal, essa atividade não se apresentava como danosa.
Porém, paulatinamente, foram sendo criadas rotas de trânsito onde os
serviços que antes eram pagos com dinheiro, passaram a ser pagos com
produtos, o que levou à criação de mercados locais.
Referiu-se ainda à questão do transbordo ou spill over, citando um
artigo do então Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional,
General Alberto Cardoso, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”,
no dia 16 de outubro de 2000, falando sobre o que preocupava o Brasil
em relação ao Plano Colômbia e que, segundo Macedo Soares, continua
tão atual quanto na época em que foi publicado.
O debatedor instiga: O que aconteceu que não foi previsto,
quatro anos atrás? E continua, subestimaram a capacidade dos criminosos
ao vê-los apenas como bandidos e não como empresários dotados de
visão e criatividade empresarial e articulados como tal. O transbordo
se caracterizou principalmente pelo poder de mobilização e articulação
do crime organizado em atividades como, por exemplo, a lavagem de
dinheiro.
Finalmente, referiu-se à questão dos laboratórios clandestinos
que processam a pasta base de cocaína na região da Tríplice Fronteira
- Guiana, Suriname e Brasil - e destacou a necessidade de que seja consi-
derado todo um conjunto de variáveis ao tratar de questões relacionadas
à política de combate a ilícitos.

85
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Parte II – Debates

Os debates foram realizados seguindo a ordem de inscrição dos


interessados, sendo as perguntas dirigidas a um ou a ambos expositores.
Após as perguntas, o mediador da Saei, Conselheiro José Carlos de Araújo
Leitão, passou a palavra aos expositores que em seguida responderam
ao questionamento e esclareceram as dúvidas apresentadas.
Iniciando a rodada de perguntas o Professor Alcides Costa Vaz,
Diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília - UnB, questionou a afirmação da Professora Gloria Vargas de que
as estruturas de poder na Colômbia muitas vezes pretendem um alcance
maior do que efetivamente exercem e perguntou, ainda, como enxergar,
a partir da dinâmica dos cultivos ilícitos, o elemento de resposta a essa
questão na perspectiva de formulação de políticas de segurança para o
Brasil.
Em resposta, a Professora Gloria Vargas explicou que a violência
colombiana é um fenômeno multidimensional e para ser analisada precisa
ser considerada sua mutação histórica, ou seja, ela responde a diferentes
causas em diferentes momentos históricos. Explicou que inicialmente, a
violência na Colômbia começou por uma questão estritamente político-
partidária, que se deu nos anos 50 do século passado, entre conservadores
e liberais. Paralelamente, existiam partidos que pretendiam se consolidar
pela influência dos comunistas, principalmente no final dos anos 50,
mas que tiveram, em algum momento uma expressão armada que são
as guerrilhas atuais.
A violência é um fenômeno que tem em algum momento uma
relação com o fenômeno do narcotráfico, eles se cruzam, porque um é
causa do outro. Gloria afirma, no entanto, ser difícil analisar o fenômeno
da violência colombiana unicamente em relação ao narcotráfico.

86
Relatório da Reunião de Estudos

Atualmente, a violência se apresenta mais regionalizada e


especializada pelas próprias políticas públicas do governo. Algumas
regiões que há vinte anos estavam carcomidas pela violência estão hoje
em dia mais pacificadas. Não só espacialmente, mas também como
fenômeno social, a violência tem uma expressividade muito irregular.
Em relação à segunda parte da pergunta, a Pesquisadora ressaltou
que a visão das relações internacionais, bem como, as intenções de futuro
do hemisfério sul, têm que ser levadas em conta. Ou seja: que tipo de
relação os países sul-americanos pretendem ter no futuro? Esse seria o
norte principal para responder que ações seriam necessárias para efetivar
um futuro comum. Essa pergunta deveria ser honestamente respondida
porque se trata da construção de uma dinâmica respeitando as fronteiras,
as diferenças, construindo um sistema de integração que seja favorável
a todos e não só aos que têm maiores possibilidades no presente. Seria
necessário que houvesse um esforço coletivo.
O Brasil, em particular, tem um papel muito importante a cumprir
como potência regional, como país de maior expressividade na região
e no contexto internacional. Porém, o Governo brasileiro tem adotado
uma política indiferente em relação à problemática colombiana. Apenas
recentemente têm-se percebido uma atitude mais pró-ativa da diplomacia
brasileira em relação a essa questão.
Em seguida, Rodrigo de Aquino ressaltou que sob seu ponto de
vista o problema é basicamente econômico. Não temos como impedir que
se cultive coca nos países enquanto 100 libras de coca custam US$ 1 dólar
e 100 libras de café custam R$ 0,80. Enquanto isso não for resolvido,
qualquer política pública que se desenvolva, estará fadada ao fracasso.
Os agricultores que produzem a coca têm acesso a uma diversidade de
linhas de crédito dos criminosos, enquanto que a economia formal não
consegue garantir nem o crédito, nem o escoamento da produção dos
agricultores.
87
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Por outro lado, o Estado tem que continuar fazendo aquilo que
pode fazer, ou seja, tentar minimizar, na medida do possível, com as leis
que possui, com as políticas públicas que desenvolve, os efeitos desses
crimes no território nacional.
Victor Sucupira, Gerente da Agência Nacional de Águas (ANA),
questionou sobre a existência de algum acompanhamento por parte da
Abin em relação ao vínculo entre tráfico de animais silvestres, exploração
de madeira e tráfico de drogas. Numa segunda pergunta, em relação à
Colômbia, quis saber como resolver a questão dos cultivos ilícitos, uma
vez que essas iniciativas sempre esbarram na incapacidade do Estado
colombiano de enfrentar e resolver essa questão.
Respondendo à pergunta, Rodrigo de Aquino lembrou que a
atividade criminosa é um negócio. Então, segundo ele, enquanto hou-
ver uma oportunidade onde os criminosos possam obter lucro através
de um ato ilícito, seja tráfico de drogas, de armas, de animais silvestres
ou exploração ilegal de madeira, eles sempre estarão tirando proveito.
Deve haver uma interligação entre as ações. Ressalta, também, que se
conseguirmos combater efetivamente o tráfico de drogas e o de armas,
que são as principais atividades do crime organizado, sem dúvida alguma,
desarticularemos grande parte desse sistema.
Respondendo à segunda pergunta do Gerente da ANA, Gloria
Vargas destacou que, sobre a questão de combater a lavagem de dinheiro
em lugar de focar a atenção e o esforço na erradicação de cultivos, a
resposta não pode ser absoluta. Uma das preocupações deve ser: o que
acontecerá com os pequenos produtores cocaleiros que têm uma vida
de deslocamentos pelo território colombiano? O que acontecerá com a
pequena produção agrícola colombiana? Teria que necessariamente existir
alternativas de desenvolvimento, de subsistência para essa numerosa
população. As respostas nunca são únicas, na verdade, precisa-se de uma
estratégia que se poderia chamar de multifuncional, porque é necessário

88
Relatório da Reunião de Estudos

considerar as diferentes ramificações de todo esse fenômeno, todas as


suas variáveis.
Em seguida, o Ministro Macedo Soares fez um comentário em relação
aos delitos conexos, ou seja, os delitos que vêm junto com o narcotráfico:
contrabando de armas, tráfico de precursores – produtos químicos para
fabricar cocaína – lavagem de dinheiro, etc. Segundo ele, o Brasil tem um
novo delito conexo que três meses atrás ninguém tinha ouvido falar, isto é,
o contrabando de caça-níqueis e máquinas de bingo. O Brasil proibiu essas
máquinas e agora elas estão migrando para os países vizinhos. O setor
econômico brasileiro de caça-níqueis estaria sendo transferido para as
cidades de fronteira e junto com ele a atividade de lavagem de dinheiro. Para
o Ministro, essa atividade é extraordinariamente dinâmica.
O próximo participante a formular uma pergunta foi o Senhor José
Alberto da Costa Machado, Coordenador-Geral da Suframa. Quis saber a
opinião da Professora Gloria sobre o papel da Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica (OTCA) em relação à cooperação entre os países
Pan-Amazônicos no combate ao narcotráfico e quanto à integração de
fronteiras por meio de mecanismos econômicos.
Respondendo à pergunta, Gloria Vargas informou que vem acompa-
nhando o desdobramento das ações empreendidas pela OTCA e sempre lhe
parece que a OTCA tem muitas ambições e pouco poder de realização, ou
seja, não se coaduna com a expectativa que cria nos Países Amazônicos. O
fato da Secretaria Permanente estar em Brasília é importante no sentido de
ter uma maior visibilidade. Ressaltou que a gestão atual está fazendo grandes
esforços, mas que, entretanto, continua com várias limitações técnicas, de
orçamento, etc.
Na seqüência, o Ministro Macedo Soares comentou que as instituições
muitas vezes nascem formalmente antes do tempo e ganham força e
razão de ser na medida da evolução da sociedade. Para Macedo Soares, se
tivéssemos que fazer o nosso mea-culpa, bastaria olharmos qualquer mapa
89
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

escolar brasileiro e notaríamos que as nossas fronteiras, a linha de limites


é cercada de amarelo, cinza ou branco. Nós nos habituamos a achar que o
Brasil é uma espécie de ilha flutuando no meio do nada, não conseguimos
ver o nosso País inserido na América do Sul. Falta-nos uma escala para
sobreviver numa economia integrada, então, assim a OTCA deixaria de ser
um sonho de diplomatas e passaria a ser uma ferramenta útil.
Gloria aproveitou também para comentar que em relação à vertente
mais pragmática abordada pelo Ministro, a considera muito importante e
acha que a visão um tanto utópica, inicialmente, é o que norteia também as
ações que vão se convertendo em ações reais e práticas e que vão levando
os países a se constituírem em blocos regionais, econômicos, etc. Seria
similar ao processo da União Européia, em cima de utopias, mas também
em cima de ações muito concretas e pragmáticas. Para a Pesquisadora, as
duas dimensões são muito importantes e nenhuma das duas deve colocar
um véu de opacidade sobre a outra.
A pergunta seguinte foi do Coronel Reinaldo Silva Simião, represen-
tante da Emaer, que quis saber a opinião da Professora Gloria em relação à
participação militar no combate às drogas e se a sua pesquisa contemplaria
esse aspecto, uma vez que, historicamente, a ação militar sempre foi vista
por um viés ideológico.
Gloria Vargas ressaltou que quanto à participação militar, depen-
dendo do tipo e do alvo dessa participação, pode ser bem-vinda ou não e,
também, em diferentes escalas. De acordo com ela, é óbvio que, para as
populações locais, que são alvo direto de algumas ações, isso pode trazer
conseqüências nem sempre positivas. Dentro de uma perspectiva de defesa
do território, porém, a participação militar não só é bem-vinda, como é
absolutamente necessária. Afirma que não faz uma abordagem direta sobre
essa temática e que esse não é o foco de sua pesquisa, porém, a considera
enquanto mediadora de outras variáveis.
Macedo Soares aproveitou para intervir, ressaltando que um dos
90
Relatório da Reunião de Estudos

fatores que identificamos quando analisamos a questão da participação


militar é a extraordinária mudança ocorrida nas Forças Armadas colombiana
nos últimos cinco anos. Defende que as Forças Armadas brasileira têm que
necessariamente se entender com a colombiana. Não podemos ter os colom-
bianos lutando contra as drogas, contra o terrorismo e tendo a capacidade de
entender certos fenômenos, e do nosso lado, fingirmos que isso não existe.
Em seguida, Janér Tesch, Coordenador-Geral da Abin, quis saber
qual a importância do Estado ter como foco estratégico de médio e longo
prazo ações preventivas voltadas ao público consumidor de drogas, uma vez
que, a diminuição progressiva deste público se refletiria em ações desenvol-
vidas nas áreas de segurança, defesa e até mesmo de Inteligência.
Em resposta, Gloria Vargas chamou a atenção para o fato de que,
em relação à prevenção e ao consumo, as nossas sociedades ainda não
compreendem muito bem porque as pessoas, em diferentes contextos sociais,
acabam procurando e tendo o anseio de alterar sua consciência. Isso seria
uma questão cultural do Ocidente que teria uma visão mediada por muito
preconceito sobre a questão do consumo. Não haveria, segundo ela, uma
discussão muito honesta sobre isso e quando há, é sempre em contextos
permeados de preconceitos que distorcem os argumentos a favor e contra
as possíveis soluções.
Em um outro comentário, o Ministro Macedo Soares lembrou que há
alguns anos houve um grande seminário na Secretaria Nacional Antidrogas
(Senad) sobre redução da demanda e, com a ajuda da Embaixada Americana,
veio uma grande sumidade dos Estados Unidos para ajudar a responder a esta
pergunta: Por que as pessoas usam drogas? O professor americano explicou
então que havia três razões pelas quais as pessoas usam drogas. A primeira:
as drogas funcionam. A segunda: estão disponíveis; e a terceira: uma certa
tolerância social com o seu uso. Macedo Soares confessou sua decepção com
a resposta, pois lhe pareceu uma explicação reducionista e simplória. Uma
ação preventiva, segundo ele, seria mais óbvia, barata e eficiente, entretanto,
91
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

o Brasil ainda não sabe exatamente como agir em relação à prevenção.


Em seguida, Coronel João Alfredo Sinício, representante da Senad,
destacou sua satisfação sobre a ênfase dada ao aspecto da prevenção. Segundo
ele, seria um ponto fundamental, como também a redução da oferta.
Uma outra questão levantada foi a utilização de uma estratégia
diferenciada para a região Amazônica no que diz respeito à imperiosa
necessidade da participação dos municípios. Para o Coronel Sinício, essa
participação é necessária e importante porque é nesse âmbito que se desen-
volvem as ações locais e onde os atores sociais atuam mais ativamente, a
exemplo da atuação do Conselho Municipal Antidrogas (Comad).
A penúltima pergunta partiu do Senhor Valdemar Guimarães,
Superintendente da ANA, que na verdade, formulou duas perguntas, dirigidas
a ambos expositores.
Na pergunta dirigida à Professora Gloria Vargas, quis saber como
a Pesquisadora, sendo colombiana, se sentia vendo o Exército Americano
que atua ativamente dentro da Colômbia, interferindo diretamente nas ações,
subestimando os militares colombianos.
Já ao Rodrigo Aquino, questionou se a presença militar dos Estados
Unidos na América do Sul, que não se restringe apenas à Colômbia, mas se
estende ao Equador, à Bolívia e que parece cercar o Brasil, não seria pior
do que o próprio narcotráfico.
Gloria Vargas respondeu que como colombiana sentia um enorme
mal-estar, porque o problema dos cultivos ilícitos e do próprio conflito
interno estaria transbordando, como demonstram os processos sociais e
políticos endógenos do País, e a cooperação nesse sentido seria mais
do que bem-vinda. Porém, ressaltou que uma coisa é cooperação e outra
coisa é intervenção. E o que estaria acontecendo hoje na Colômbia seria
uma intervenção e, infelizmente, com a conivência do próprio Governo.
Ressaltou, porém, que a sociedade e o governo são coisas diferentes e a

92
Relatório da Reunião de Estudos

Sociedade colombiana em geral se sente extremamente ferida. A Professora


afirmou que dificilmente se encontrará um colombiano que concorde com
essa situação de intervenção norte-americana e que a ache ideal e que daí
possam advir soluções.
Por sua vez, Rodrigo de Aquino reconheceu que, sob o manto do
combate às drogas os Estados Unidos têm cada vez mais, participado de
ações conjuntas de cooperação militar na América do Sul e que isso causa
preocupação. “Mesmo que estejam bem intencionados, gera sempre uma
dúvida de qual seria afinal o objetivo dessa presença. Seria somente ajudar?
Ou algo mais que não conseguimos perceber?” Rodrigo afirma que isso gera
uma preocupação adicional para os que recebem essa cooperação.
Finalmente, a última pergunta, formulada pelo Senhor Pepeu Garcia,
Diretor da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), foi dirigida à
Professora Gloria Vargas, questionando como ela via a realidade dentro
do Plano Colômbia de um outro Estado tentando substituir o Estado
colombiano.
Em sua resposta, a Pesquisadora discordou com veemência,
afirmando que não concorda com a caracterização da situação. Não qualifica
a situação colombiana como um Estado dentro de um outro Estado, pois
existem outras formas de poder e a figura política do Estado vem evoluindo
desde o Tratado de Versalhes. Então, a questão não é se há um Estado dentro
de outro. O Estado colombiano tem deficiências e nessa medida seria melhor
a caracterização de um Estado dependente de outro.
A Pesquisadora explicou que pela sua própria evolução histórica
como país periférico, a Colômbia ocupa e ocupou sempre, primeiro como
Colônia da Metrópole espanhola, depois como País independente, uma
situação periférica. Nessa situação, com a intensificação das relações globais
que presenciamos e vivemos hoje, esta condição acentua-se paradoxalmente,
sendo reforçada pela globalização.

93
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Finalizando, Gloria Vargas acredita que esta caracterização não


se sustenta em função das estruturas políticas da conformação do Estado
colombiano, que tem muito a ver com o poder colonial espanhol que é
caracterizado como um Estado. Porém, um Estado com enormes fragilidades,
que tem uma condição de dependência em termos políticos e econômicos de
um Estado hegemônico extremamente poderoso, os Estados Unidos; além
da dinâmica destes últimos vinte anos, que altera sobremaneira as relações,
representadas pela própria globalização.

Encerramento da Reunião

Ao final do debate, o General Wellington Fonseca, Sub-Chefe do


Gabinete de Segurança Institucional (GSI), parabenizou os expositores pela
apresentação e informou que o Gabinete de Segurança Institucional, por
meio da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de
Governo (Creden), estava trabalhando com quatro temas: Terrorismo, Política
Nuclear, Faixa de Fronteira e Política Indigenista. Dois desses temas dizem
respeito à Amazônia – Faixa de Fronteira e Política Indigenista. Informou
ainda que o GSI, no momento, tinha duas operações em curso, uma na área
de Roraima e outra em Rondônia, e que essas ações demonstram como a
Amazônia está presente no cotidiano do GSI.
Em seguida, o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão ressaltou
que a Reunião de Estudos se referia à segunda etapa do Ciclo de Estudos
sobre a Amazônia e que o citado ciclo se encerraria no dia 20 de maio com
a realização da terceira e última etapa, o Encontro de Estudos.
Finalizando, agradeceu aos expositores e a todos os demais
participantes e observou que o Ciclo de Estudos se constitui num espaço
de discussão e análise de idéias.

94
Amazônia: Uma Área – Pivot para uma
Nova Política Brasileira

Francisco Carlos Teixeira da Silva

Professor Titular de História Contemporânea da Universidade


Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Coordenador do Laboratório
de Estudos do Tempo Presente/ TEMPO/ Universidade do Brasil/
UFRJ.
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

“... a conquista para o domínio posterior da região


amazônica foi uma empresa de Portugal, cujos na-
vegadores... depois de 1616, com a expulsão dos
franceses de São Luis de Maranhão, ocuparam a foz
do grande rio” Arthur César de Ferreira Reis.

“E quem poderá patrocinar tão grandiosa empresa,


da qual dependem a conversão de inúmeras almas,
o enriquecimento da Coroa Real, a defesa e a
guarda dos tesouros do Peru...” Cristóbal de Acuña,
1641.

Passados mais de quatro séculos de tamanha preocupação de


Portugal pela incorporação da Região Amazônica ao seu império e
de tantas lutas pelo estabelecimento de suas fronteiras, voltamo-nos
para um texto contemporâneo, na verdade de 2001, de um estrategista
internacional ocupado com as mesmas questões:

“O governo brasileiro decidiu, no início dos


anos noventa, subvencionar o desmatamento das
florestas amazônicas, ameaçando sua integridade.
A Amazônia certamente pertence ao Brasil. Mas,
se as potências ocidentais fizeram uma exceção ao
sacrossanto princípio da soberania dos estados para
fazer a guerra na Iugoslávia e ajudar os kossovares
(quando o Kossovo pertencia a Iugoslávia ), por que
razão não se faria o mesmo contra o Brasil para se
apropriar da Amazônia? O pretexto não seria mais
a proteção de uma população, mas agora de toda a

97
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

espécie humana. A Amazônia sendo o pulmão da


terra, se o Brasil não a protege corretamente, isto
torna-se um dever de outros estados: proteger a
Amazônia”1

Durante cinco séculos, a história da Amazônia deu-se sob o signo


da defesa, ocupação e preocupação obsedante com as fronteiras, como se
percebe na simples e, mesmo arbitrária, escolha de textos sobre a região
anteriormente apresentados.
“Ocupar” a Amazônia, estabelecer suas fronteiras e se apossar das
terras através do estabelecimento de núcleos de povoamento foram os eixos
centrais de políticas constantes da Coroa Portuguesa e, depois de 1640, de
seu Conselho Ultramarino, chegando a tornar-se um processo sistemático e
de sucesso sob o Marquês de Pombal. As preocupações eram tão grandes,
em particular visando evitar as “descidas” dos espanhóis através dos Andes
e dos holandeses e franceses vindos das Guianas ou através da foz do Rio
Amazonas, que Portugal optou pela transformação de toda a região num
Estado autônomo, diretamente vinculado a Lisboa: o Estado do Maranhão
e do Grão-Pará, primeiro com sede em São Luís e, mais tarde, em Belém.
Somente a ação rápida e cruel do primeiro Imperador com seus
mercenários ingleses impediu que toda a Amazônia – o Estado do
Grão-Pará – se mantivesse fora do novo Império do Brasil. Mesmo assim,
poucos anos depois, uma imensa rebelião social – a Cabanagem – sacudiu
durante anos a província, sendo controlada depois de uma verdadeira
guerra social, com massacres e fugas para o grande sertão, que acen-
tuaram o esvaziamento demográfico da região.

1
BONIFACE, Pascal. Les guerres de demain. Paris, Seuil, 2001, p. 107-108.

98
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

A bem da verdade, somente depois de 1870/80, com o surto da exploração


e da exportação da borracha, acompanhado de um forte movimento de migração,
principalmente de nordestinos, a Província integrou-se claramente no conjunto
do País, vivendo um glorioso tempo de fausto e prosperidade – expresso, por
exemplo, nos prédios públicos, praças e jardins - atraindo pela primeira vez,
de forma significativa, fluxos migratórios que alterariam profundamente sua
configuração social, política e mesmo fisiográfica.
O episódio do Acre, a partir de 1903, direcionou a atenção nacional
para um vasto mundo até então intocado: a Amazônia Ocidental.
Após uma clara integração da Amazônia e de seu pleno reconheci-
mento mundial como terra brasileira, a região permaneceu como um território
exótico para a maioria dos brasileiros, carregada de imagens generosas e
temíveis, e com um descompasso notável com o conjunto do País:

“A Amazônia... se ela representa 60% da superfície do


Brasil, seu PIB não passa de 5% do PIB nacional, reúne
apenas 10% da população urbana e 12% da população
total do país, e um pouco mais – 14% dos migrantes
recentes, das estradas, do numero de municípios. O
único indicador, pouco invejável, para qual a Amazônia
supera sua quota de território é o número de mortos em
conflitos fundiários...”2

No seu contexto geral, a Amazônia apresentou ainda outras


grandes disparidades em face das demais regiões: assistiu a um
amplo crescimento demográfico entre 1970 e 2000, da ordem de 172%,

2
Ver THÉRY, Hervé. Amazônia: cenas e cenários. Brasília: UnB, 2004.

99
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

mantendo-se, contudo, como a região menos povoada, com 12% da


população nacional (contra 8% em 1970). A densidade demográfica
é a mais baixa do País, com 4.18 hab/km2, e o Estado do Amazonas
com apenas 1.83 hab/km2 (contra uma densidade nacional de cerca de
20 hab/km2). Dados mais qualitativos apresentam o mesmo recorte de
desigualdade: segundo o CNPq, a região conta com apenas 2.7% dos
pesquisadores-doutores do País (contra 34.7% de São Paulo), sendo
que mais de 50% desses pesquisadores tem sua origem fora da região
- talvez a mais importante defasagem atual.
Tais disparidades impactam claramente a formulação, tomada de
decisão e elaboração de políticas públicas para a região, acentuando a
importação de projetos e de “soluções”, marcadas profundamente pelo
tratamento exógeno da região e manutenção do caráter de “conquista”. A
necessidade de investimentos fundamentais de C&T na Amazônia talvez
sejam, hoje, tão ou mais importante do que abrir estradas, visando
principalmente criar uma massa crítica capaz de propor soluções adequadas
a uma realidade por tempo demais tratada como terra de conquista3. Para
grande parte de suas elites esta disparidade resulta num forte sentimento de
desprestígio, expresso na importação de técnicos para os grandes projetos
desenvolvidos na região.
Para uma análise detalhada das políticas públicas formuladas para a
região sugere-se, antes de fazer um balanço meramente estatístico dos pro-
jetos realizados, buscar as bases conceituais que permitiram a formulação
de tais projetos. No seu conjunto as formulações teóricas que alicerçam as
tomadas de decisão sobre a Amazônia pertencem a um velho conjunto de
idéias – algumas formuladas no século XIX – sobre a região, repetindo-se

3
COSTA, Francisco Assis. Ciência, tecnologia e sociedade na Amazônia. Belém: Cejup, 1998.

100
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

com grande freqüência, mitigadas com visões consideradas modernas e


que muitas vezes, se combinam e se articulam para alicerçar teoricamente
as formulações voltadas para o desenvolvimento regional.

Pensando a Amazônia

A grande maioria das formulações teóricas que enquadram os proje-


tos de desenvolvimento da Amazônia baseiam-se em visões da região cujas
matrizes residem em uma compreensão externa. Eli Lima, Pesquisadora do
CPDA/UFRJ, percebeu com clareza as origens, no século XIX – em virtude
direta do surto da borracha, do fausto e crise – das visões da Amazônia,
centradas num imaginário que se pode denominar de “imagens do sertão”,
típico da grande expansão imperialista do século XIX e início do século
XX. Na África, na Austrália ou nas Índias, aventureiros, exploradores e
missionários embrenhavam-se nas selvas, nos pântanos, escalavam montanhas
ou atravessavam desertos completando a obra de unificação do mundo.
Nomes como Rudyard Kipling e Joseph Conrad tornaram-se mundialmente
conhecidos como narradores do exótico, do bizarro e do original: homens,
animais e a flora surgiam como verdadeiras relíquias de um passado remo-
to, perdido. Para alguns, como o ficcionista Conan Doyle, surgiram ilhas e
mundos perdidos, habitados por homens e animais de um passado, também,
irremediavelmente perdido.
O Brasil da República Velha se lançou na conquista dos seus sertões,
em vez da busca e das conquistas imperiais no exterior. Voltou-se para o
próprio Hinterland: o sertão brasileiro ficava bem aqui, na borda da chamada
civilização, bem à margem da história, como escreveu Euclides da Cunha.
As questões centrais sobre a Amazônia – suas riquezas, seu caráter inóspito
e consumidor de homens através das maleitas; um mundo formado por

101
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

águas; a floresta imensa, muda e vazia; as preocupações com as fronteiras e


os limites, tudo isso está nas notas de Euclides da Cunha, quando da Missão
Brasileiro-Peruana de Estabelecimento das Fronteiras, organizado durante a
sua estada no Acre recém anexado ao País. Aí surgiu literariamente, e como
suposto teórico, as visões de um “Paraíso Perdido”, localizado à margem
da história.4
O advento do Estado Novo (1937-1945), com seu afã colonizador
e integrador, acentuaria o culto de Euclides da Cunha, de sua visão da
Amazônia, ora “Paraíso Perdido”, ora “Inferno Verde”, embasando
as políticas formuladas para a região. A partir daí, quebrado o monopólio
brasileiro da exploração da borracha e fracassado o projeto de Fordlândia
e Belterra, iniciado em 1922, pode-se verdadeiramente falar no surgimento
de uma “Questão Amazônica” para a República do Brasil. Neste sentido
aponta-se algumas das regularidades – os pontos comuns que se repetem nos
diversos discursos sobre a Amazônia – e que marcam a “Questão da Amazônia”
na história republicana brasileira - como matrizes teóricas do planejamento
desenvolvimentista. Segue apresentação de algumas matrizes teóricas,
propostas e alguns pré-cenários daí decorrentes para a região.

1. A Matriz securitização da Amazônia: talvez seja a matriz mais


antiga, e mais repetitiva, das preocupações sobre a região. Originária do período
Colonial, tem suas raízes na preocupação real ou imaginária com a integração
nacional do território em face dos riscos de internacionalização. No passado,
o risco foi bastante real, com a fundação de estabelecimentos franceses e
holandeses na Foz do Amazonas, e com os descimentos dos espanhóis da
Audiência de Quito e Lima. Coube ao Marquês de Pombal, no século XVIII,

4
LIMA, Ely et al. De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p. 77 e ss.

102
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

garantir a integridade do território, seu povoamento e uma profunda alteração


demográfica na região, com a introdução de um forte componente europeu
– açoriano, principalmente – na ocupação de cidades-fortes, que deveriam
guarnecer a região, como Óbidos, Santarém e vários núcleos na Ilha de
Marajó.
No século XIX e XX os riscos de internacionalização foram
relativamente baixos, sem grandes aventuras ou intromissões estrangeiras,
excetuando-se os planos – recentemente divulgados pelos arquivos americanos
– de uma invasão americana contra Belém durante a II Guerra Mundial (e
apenas em caso do Brasil apoiar o Terceiro Reich). As demandas da França e da
Inglaterra, na área das Guianas, foram resolvidas por arbitramento e a Questão
do Acre acabou, em verdade, por engrandecer a região. A figura de Rio Branco,
com uma fixação cartográfica notável, foi decisiva no estabelecimento das
fronteiras atuais. Na segunda metade do século XX as preocupações com
a região voltaram a um patamar elevado – mesmo descontando uma certa
paranóia nacionalista – as diversas pretensões internacionais sobre os recursos
naturais da região causam preocupação5.Apartir dos anos 70, e muito especialmente

5
Em situações diferentes, ao longo dos anos 80 e 90 do século passado, várias autoridades internacionais, com
responsabilidade de mando em países desenvolvidos, cometeram impropriedades contra a soberania brasileira
na Amazônia. Assim, o Conselho Mundial das Igrejas, em 1981, afirmou em documento público que a soberania
brasileira na região é “meramente circunstancial”; M. Thatcher, em 1983, em discurso no G-7 sugeriu a troca
da dívida por territórios amazônicos; Al Gore, em 1989, vice-presidente de Clinton e candidato a presidente dos
EUA, afirmou “...ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”; François
Mitterand referiu-se a Amazônia, em 1989, como um território de soberania relativa; M. Gorbachev, animador
de uma Ong sobre a Governança Mundial, sugeriu, em 1992, por sua vez, que o Brasil delegasse a soberania da
Amazônia a instituições científicas internacionais; no mesmo ano, John Major, ex-premier britânico chegou a afirmar
que seria possível pensar em operações militares para garantir a preservação da região, enquanto Henry Kissinger
avançou em direção a montagem de um sistema de pressões e constrangimentos, através de instrumentos estatais
exteriores, de Ongs, de empresas e bancos, visando a fragilidade econômica do país, para conseguir objetivos
relativos a Amazônia. Devemos ter claro, aqui, que as seguidas referências sobre uma “geopolítica da ditadura
militar”, como aparecem em várias obras de ambientalistas visando desqualificar as forças armadas como ator
regional, são produto do desconhecimento histórico. A matriz de segurança e defesa precede o regime militar, e em
muitos séculos, além de manter-se com extrema atualidade, como vimos. Da mesma forma, países com grandes
espaços pouco povoados, como a Federação Russa e a China Popular, elegeram, pós 11 de setembro de 2001, as
ameaças transfronteiriças, o narcotráfico e o contrabando, como parte central das chamadas “novas ameaças”.

103
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

após a abertura da Transamazônica e do surto dos grandes projetos, entre


1960 e 1970, a região passou a ser alvo de inúmeras avaliações por parte
de instituições internacionais, muito especialmente Ongs. Muitas vezes as
alegações eram baseadas em teses, ou evidências, bastante frágeis, como
o mito da Amazônia enquanto “pulmão do mundo”. Outras preocupações
voltam-se para a defesa da biodiversidade, da floresta do trópico-úmido e
das populações indígenas, normalmente acusando instituições nacionais
permanentes – como as Forças Armadas – de ação insensível a tais temas,
como é uma constante nas reportagens do New York Times ou do Herald
Tribune. O texto recentíssimo de Pascal Boniface – citado em epígrafe
no início deste artigo – um importante assessor da ONU, demonstra
um acirramento das visões sobre a Amazônia e o seu desenvolvimento,
provocando um incômodo cruzamento entre a vertente “securitizante” e
a vertente conservacionista que explicam e propõem formas de ocupação
regional. Destacam-se algumas percepções “securitistas” sobre a região
da seguinte forma:

a) Do ponto de vista exclusivamente militar a grande novidade


regional é a ampliação do conflito político-militar na Colômbia, com
um crescente risco de internacionalização da crise naquele País. Porém,
não se constitui um risco imediato ou irremediável. Na verdade não
há nenhum grande eixo de acesso rodoviário direto com a Colômbia,
sendo o contato bem mais fluvial – Tabatinga/Letícia – ao contrário,
dos projetos em curso voltados para Bolívia, Peru e Venezuela, onde
os nós rodo-fluviais começam a se adensar com grande êxito. Entre
o Brasil e a guerrilha colombiana medeia uma larga zona baixamente
povoada, que pode ser entendida de duas formas: ora como espaço de
“esponjamento” da guerrilha, ora como espaço de ação das forças
nacionais, sem risco de contato direto e/ou constante com zonas urbanas
significativas. O principal eixo de contato – através do rio – pode ser

104
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

bem patrulhado e controlado, havendo vontade e meios para isso. De


certa forma, isso já vem sendo feito na área de Tabatinga, que passa
por um largo surto de crescimento. Talvez, mais preocupante seja a
possibilidade de um recrudescimento da ação militar na Colômbia,
inclusive com um combate intenso contra cocaleros, originando vagas
de refugiados hispanófonos sobre a área fronteiriça. Este se apresenta
como um cenário remoto.

b) A maior parte da vertente andina, compreendida enquanto faixa


de fronteira, não apresenta nenhum risco militar notável, ou que possa
efetivamente gerar preocupações iminentes de segurança. Os governos
da Bolívia, Peru e Venezuela são regimes amigos, com relações cada vez
mais estreitas com o Mercosul e podendo com o Brasil desenvolver
projetos conjuntos de integração na área de infra-estrutura (rodovias,
pontes, canais, etc.), alguns já em portfolio do BNDES, além de abertura de
vias de mão dupla entre o Pacífico e o Atlântico, atendendo aos interesses
de todos os países envolvidos.
Nenhum destes países encontra-se, no momento, em enfrentamento
com qualquer tipo de guerrilha local, capaz ou de subverter os regimes
estabelecidos, ou de utilizar o território nacional como santuário,
refúgio ou trilha de acesso. Assim, as ameaças – aqui apenas esboçadas
para Amazônia – devem ter outro caráter ao invés da invasão ou guerrilha
clássica, como consta nos manuais. Talvez o dossier das chamadas
“novas ameaças mundiais” – tais como o narcotráfico, contrabando de
armas, a biopirataria, o terrorismo internacional, sejam elementos bem
mais pertinentes para o questionamento em torno das chamadas Faixas
de Fronteira.
Historicamente as invasões ou risco de invasão da Amazônia se
deram sempre no sentido montante do Rio Amazonas, da foz para os
sertões, e nunca inversamente. Nada no cenário da região Andina, num

105
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

espaço de 25 a 30 anos, anuncia uma mudança estratégica neste quadro.


Qualquer agressão, como aquela do cenário vislumbrado por Pascal
Boniface, se dará no sentido montante, leste/oeste. Assim, a Foz do
Amazonas, a região mais densamente habitada e habilitada, permanece
como a porta de entrada de todo o território.
Duas possíveis situações de crise são aqui apontadas:

1. O cenário Boniface (assim nomeado por razões óbvias): dar-


se-ia por volta de 2035, quando as pesquisas em torno da sintetização
de moléculas e/ou fármacos oriundos da flora e fauna movimentariam
um mercado mundial de bilhões de dólares e, ao mesmo tempo, a crise
de abastecimento de água potável se avolumaria, atingindo milhões de
pessoas, dependentes de dutos para sua manutenção. Nestas condições
uma coligação internacional, usando como pretexto a defesa do meio-
ambiente, utilizaria uma task force, combinando força naval, estações
orbitais e submarinos para agir a partir da Foz do Amazonas, e obri-
gando o Governo brasileiro a aceitar um estatuto ad hoc de soberania
partilhada;

2. O cenário do Arco Indígena: a partir de 2015 a maioria dos regimes


estabelecidos nos Países Andinos – Bolívia, Peru, Equador – estariam em
mãos de movimentos indígenas, constituídos de cocaleros – e não
narcotraficantes – e campesinos, revertendo a dominação de mais de
500 anos das minorias criollas hispânicas. Tais regimes seriam marcados
por forte instabilidade, nacionalizações e perda de controle territorial,
criando uma zona em “arco de instabilidade” vinda do Sul da Colômbia
até o Norte do Paraguai. O impacto das vitórias indígenas na Bolívia e
Peru provocaria grande inquietação no Paraguai, onde as autoridades
perderiam o controle do território, criando uma terra de ninguém entre
o Centro-Oeste brasileiro e o Chaco. Grupos indígenas brasileiros, já

106
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

com forte recuperação demográfica, começariam a aderir ao indianismo


militante e revolucionário.
Três sub-tendências, num claro exercício hipotético, poderiam
ser identificadas a partir de tais situações:

a) O Brasil teria na sua fronteira um “arco de instabilidade”, onde


os seus interesses (principalmente na área de energia, fundamental para a
manutenção do eixo industrial São Paulo/Paraná/Santa Catarina) estariam
ameaçados. Não se trata de hostilidade – podendo-se manter um perfil
cooperante com tais regimes indígenas – mas, de instabilidade, pondo
em risco um projeto de crescimento integrado sul-americano. Necessário
lidar com uma forte hostilidade antiamericana na região, com possível
nacionalização de bens e investimentos estadunidenses e retirada forçada
de bases americanas na região;

b) Os Estados Unidos estariam em condições de forçar uma inter-


venção preemptiva na região andina, possivelmente na Bolívia, visando
evitar a “indiginização” do país. Neste sentido pressionaria o Brasil a agir
em conjunto na região, utilizando-se de uma disposição intervencionista
de caráter também preemptivo do Chile, que tornar-se-ia a principal base
de ação dos Estados Unidos no continente sul-americano;

c) Os Estados Unidos fortaleceriam suas bases ao longo do Arco


Indígena da instabilidade, acabando por cercar a Amazônia brasileira
de um forte sistema militar, contando com o apoio, ao sul, do Chile e ao
norte da Colômbia, ocupada militarmente.

Tais “pré-cenários” apenas esboçados, claramente hipotéticos,


talvez até mesmo exagerados, estão infelizmente inscritos na realidade
sul-americana e potencializados nos últimos acontecimentos na Bolívia,
no Equador e, cada vez mais possível, no Peru e viáveis em caso de manutenção

107
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

da atual política de ação preemptiva enquanto base da Política de


Segurança Nacional dos Estados Unidos. A existência, mal dissimulada,
de uma vasta rede de operações, vigilância e informação dos Estados Unidos,
desde a grande base militar na Guiana – ex-Guiana Inglesa – até os
estabelecimentos no Paraguai, reforçam as preocupações existentes.
A atuação da Inteligência americana no país – mesmo através
de agências brasileiras – bem como a insistência em internacionalizar
a Questão da Tríplice Fronteira, demonstraria o interesse de manter
operacional a presença estrangeira em duas regiões estratégicas
nacionais, tanto ao Norte, quanto ao Sul da Amazônia, em uma ação
de envelopamento logístico.
Não se pode, como algumas vertentes ambientalistas desejariam,
eliminar as Forças Armadas, e o fator Segurança Nacional, do equaciona-
mento de uma política nacional para a Amazônia. Trata-se, em verdade,
de seguir firmemente os princípios estabelecidos na Constituição demo-
crática de 1988, onde se fixam claramente as funções institucionais das
Forças Armadas. A eliminação das Forças Armadas da região, a limitação
de seus movimentos ou sua sujeição a outras instituições (nacionais ou
estrangeiras, estatais ou privadas, principalmente aquelas operando na
faixa de fronteira) é claramente um desiderato anticonstitucional e uma
grave ameaça à qualquer estratégia de dissuasão e/ou presença brasileira
na região Norte.
As Forças Armadas são um dos atores fundamentais na região,
com uma tradição que passa pelos fortes da Amazônia construídos no
século XVIII, pelo papel da Marinha em todo o século XIX – inclusive a
garantia de adesão ao processo de Independência - pela ação do Correio
Aéreo Nacional (CAN), pela atuação de Cândido Rondon, pelo Projeto
que leva seu nome e também por escolhas estratégicas, algumas bastante
discutíveis, como a construção de rodovias e os grandes projetos dos
anos 70. A mais recente intervenção se deu através do Sistema de

108
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

Proteção da Amazônia (Sipam) e o Sistema de Informação e Vigilância


da Amazônia (Sivam), peças fundamentais no enfrentamento das
chamadas “novas ameaças”.

2. A Matriz Determinista: boa parte da literatura sobre a


Amazônia está profundamente impregnada por um dos muitos tipos
de determinismo geográfico, ecológico ou ambientalista, largamente
baseado em dois clássicos oriundos da República Velha, marcados pela
ambiência cientificista, herdada do século XIX, e do culturalismo de
H. Taine, com suas polaridades e díades marcadas por civilização e
barbárie, transformadas em chaves de entendimento da região. Trata-
se, em primeiro lugar, de Euclides da Cunha, que através da Comissão
de Reconhecimento do Alto Purus, patrocinada pelo Ministério do
Exterior, percorreu a região, entre 1904 e 1905, enviando sistematica-
mente artigos para jornais do Rio de Janeiro. O conjunto de anotações
e artigos de Cunha foi publicado em 1909, com o significativo título
“À Margem da História”, apresentando ao público culto do Rio de
Janeiro um mundo totalmente novo, onde o personagem central era a
própria natureza. Um pouco antes, em 1906, Alberto Rangel publicava
“Inferno Verde”, um diálogo claro com o próprio Euclides da Cunha
(a partir da matéria previamente publicada em jornais), onde as duas
visões travavam um duelo sobre a verdadeira natureza da Amazônia.
De qualquer forma, a díade barbárie versus civilização é o elemen-
to norteador de todo o debate, centrando na natureza – pródiga ou
inóspita – o protagonismo da história. Enquanto em “Os Sertões” o
homem – mesmo com suas taras e atavismos - era sempre o centro
explicativo da história, nos dois textos citados, a natureza, cada vez
mais antropomorfizada em suas conseqüências era o ator central em
todas as cenas.
Para Euclides da Cunha, influenciado pela leitura das viagens de

109
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Humboldt e pela literatura ficcional de John Milton e Conan Doyle, a


hostilidade natural da região, marcada pelo “mar doce”, pela abundância de
águas, pela umidade e o calor, seriam uma prova para o homem brasileiro,
porém não se constituiriam em um impedimento para a ocupação local. O
objetivo básico era construir as condições para a incorporação da Amazônia
à nação, deixar, assim, de estar à margem da História. Tal apego à constru-
ção nacional valeu a Euclides da Cunha a total consagração sob o Estado
Novo varguista, acabando por transformá-lo no ícone da integração na-
cional. Já Alberto Rangel apontou um caminho oposto, sem o refinamento
literário euclidiano, e com uma visão que beira o naturalismo cientificista.
Surge uma Amazônia insalubre, dos miasmas, uma fonte permanente de
histórias prontas para assombrar a imaginação urbana da Belle Époque. O
Inferno Verde manteve-se como um eixo central da explicação do atraso,
das desigualdades regionais e sociais de toda a região.
Indo além dos aspectos literários, tais obras – por mais diversas
que pareçam – fundamentaram amplamente o planejamento e a elabo-
ração de políticas públicas, desde o Estado Novo, para a região. Tais
textos eram quase tudo o que se possuía sobre a região, em particular
antes da criação da Comissão Nacional de Geografia, depois Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), e acabaram por contaminar
todo o planejamento estatal elaborado na época. Ainda durante o Estado
Novo, as principais intervenções se deram no âmbito da saúde pública,
principalmente através da criação de uma escola de enfermagem em Be-
lém do Pará, que deveria, através da multiplicação de seus profissionais
(bem mais voltados para o sanitarismo do que para a prática curativa
propriamente dita), abrir caminho para os ambiciosos projetos de co-
lonização ensejados pelo Estado Novo. Contudo, mesmo este esforço
não foi capaz de evitar que as levas de migrantes pobres oriundos do
Nordeste e dirigidos para a extração do látex – os famosos “soldados
da borracha” – morressem em grande quantidade, vítimas de doenças e

110
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

péssimas condições sanitárias locais. Note-se, de passagem, que grande


número das vítimas foram acometidas ainda nos barracões de distribui-
ção de trabalho, nos arredores de Belém, antes mesmo da penetração na
floresta. Na ocasião houve uma forte intervenção dos Estados Unidos,
principalmente através de programas de ajuda, cooperação e formação
de técnicos especializados, enviando um bom número de enfermeiras,
nutricionistas e assistentes sociais. Assim, a grande ação estatal na região,
até avançado os anos 50, centrou-se na instalação de condições sanitárias
e na luta contra a insalubridade regional, utilizando-se largamente das
estruturas pré-existentes, em especial da chamada “Amazônia dos rios”.
Um trabalho recente, realizado na Escola Ana Nery, enfocando a prática
da enfermagem local entre 1940 e 1980 mostra, entretanto, uma apro-
priação formalista e elitista dos ensinamentos passados pelas monitoras
americanas, com ênfase no cuidado com os uniformes, na feitura das
camas, na hierarquia interna e no relacionamento, de um lado, com os
médicos e, de outro, com auxiliares e serventes, descartando a penetração
nos sertões e originando uma nova elite profissional, pronta para delegar
atribuições a novas categorias subalternas no interior da clínica.
No seu conjunto, todo o sistema parece ter sido montado para
empregar filhas da elite local, com enxovais caros, e sem nenhuma
preocupação para com uma real internação nos sertões, visando atender
às populações ribeirinhas isoladas.
A partir do final dos anos 50, sob o impacto da Administração
JK, e com a inauguração de Brasília, inverte-se radicalmente a abordagem
da Questão Amazônica: a “Amazônia dos rios”, com seus eixos e nós
voltados para o sentido leste-oeste, passa a ser cruzada por um eixo
vertical, rodoviário, no sentido sul-norte, criando novos eixos de
adensamento, inaugurando claramente uma nova fase na história da
colonização regional. A oposição à construção da Belém/Brasília gerou
típicos sentimentos coletivos oriundos da matriz determinista: de um

111
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

lado, uma grande euforia; de outro lado, o deboche expresso na idéia de


“estrada das onças”.
Um fato, ou talvez de melhor forma, um procedimento merece
ser destacado na gestão JK: a extensão à Amazônia de procedimentos
antiburocráticos típicos de sua atuação administrativa. Juscelino Kubitschek,
que desconfiava da burocracia estatal, optou sempre pela criação de
Grupos de Apoio ou Grupos de Trabalho para gerir os projetos que
considerava estratégicos, visando dar velocidade e eficácia a tais
procedimentos. Inaugurava-se, de qualquer forma, uma nova fase na
ocupação da Amazônia.

3. A Matriz Ambientalista: não cabe aqui fazer uma arqueologia


do pensamento ambientalista, tremendamente facetado, com vários e
diferentes nuances, muitas vezes em choque entre si. Deve-se destacar,
entretanto, a diferença entre o ambientalismo e a matriz determinista,
embora ambos possam, em algum momento, possuir sérias vinculações.
Cabe apenas assinalar que desde o século XIX, sob o aspecto de preser-
vacionismo, existe uma corrente de pensamento voltada para as questões
ambientais e que aos poucos originaria um pensamento conservacionista,
o ecologismo, o socioambientalismo e até mesmo um técnico-ambien-
talismo. O trabalho de Paul Little dá conta plenamente das diversas
nuances e aspectos da grande vertente ambientalista, não sendo necessário
repetir um trabalho já bastante conhecido e abrangente6. O fundamental
aqui é demarcar a grande expansão de uma percepção ambientalista da
Amazônia, muito especialmente depois dos anos 60 e 70, sob o impacto

6
LITTLE, Paul. “Ambientalismo e Amazônia: encontros e desencontros”. In: SAYAGO, Doris et al.
Amazônia: cenas e cenários. Brasília, UnB, 2004, p. 321 e ss.

112
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

da implantação dos grandes projetos na Amazônia.


É a partir de uma forte pretensão cientificista que o pensamento
ambientalista introduz diversos diagnósticos sobre a ocupação e o desen-
volvimento da Amazônia, que poderiam ser resumidos numa constatação
recente: o impacto negativo da maior parte da intervenção humana
na região. Grande parte dos ambientalistas promoveram uma ampla
revisão da história da Amazônia, centrando a ênfase de suas análises
na impropriedade da colonização européia da região, e dos esforços de
povoamento ao tempo do Império – em especial durante o surto da
borracha – chegando até a época dos grandes projetos, quase que num
rol contínuo de grandes desastres. A idéia central, baseada em estudos
de solo, aptidão, climatologia, etc., reside na afirmação do caráter frágil
do ecossistema amazônico, montado sobre um equilíbrio dinâmico, auto-
sustentado, e de constante feedback. A ação humana de origem européia,
e depois nacional, teve o papel de desarticular este frágil equilíbrio local,
abrindo o caminho para a desertificação e supressão da biodiversidade da
grande floresta. Muito especialmente, a tentativa de ocupar e colonizar a
Amazônia teve um custo bastante elevado, já que as condições ecológicas
locais não sustentam grandes populações. Tal “apropriação” e “revisão”
da história da Amazônia teve uma forte sustentação no caráter rarefeito
da população local, desde tempos imemoriais, no seu caráter radial,
acompanhando a rede hidrográfica local. Assim, os projetos de ocupação
– principalmente os grandes projetos agropecuários – não só estavam
fadados ao fracasso, como ainda foram responsáveis pela destruição da
riqueza natural local.
Entre os muitos cientistas que defenderam esta “matriz
ambientalista” para a compreensão da Amazônia destaca-se, por seus
longos anos de estudo e dedicação ao tema e a região, Betty Meggers. Em
sua tese central sobre a região, Meggers afirma que o desenvolvimento das
sociedades indígenas da região foi limitado pela pobreza do ecossistema,

113
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

que por sua vez impediu o crescimento e o adensamento populacional,


bem como a intensificação das ações econômicas. Em clara oposição às
noções de “paraíso” e “cornucópia”, a própria natureza amazônica é o
fator que limita o crescimento populacional, gera crises de abastecimento
e impede o desenvolvimento da região. Vários cientistas brasileiros, entre
os quais Francisco Salzano, da UFRGS, e Walter Neves, do Museu Emílio
Goeldi, ao lado de pesquisadores estrangeiros, como Anna Roosevelt,
do Museu de História Natural de Nova York, apresentam resultados
diferentes em relação à fragilidade e inospitalidade do ecossistema local.
Anna Roosevelt, por exemplo, contrapõe a essas hipóteses os resultados,
ainda parciais, de pesquisas arqueológicas que comprovam ter havido nas
várzeas amazônicas, no período pré-colombiano e no pré-contato entre as
populações nativas e os europeus, um povoamento extremamente denso
em estágio avançado de cultura material e de organização social. Comprova,
ainda, a incrível capacidade de adaptação, apropriação e manejo por
parte dos grupos sociais – e, que vindos de fora, utilizaram os recursos
florestais, pesqueiros e a agricultura de várzea para a sustentação de uma
vasta população, organizada em sistemas políticos e sociais complexos.
M. Heckenberger chega a afirmar, contrariamente aos preservacionistas,
que a Bacia Amazônia sustentou, no período pré-colombiano e no pré-
contato, uma população extremamente densa, talvez a maior concentração
demográfica das Américas, excetuando-se o México Central. Donald
Lanthrop, por sua vez, identifica na área entre Altamira e Santarém um
dos berços mundiais da agricultura, com a domesticação de dois padrões
agrícolas de grande sucesso: a associação raiz/tubérculos, com ênfase na
mandioca, e a associação milho/feijões, que da região Amazônica teriam
colonizado os Andes, através dos rios; avançado para o Sul e, através do
Caribe, chegado até a Meso-América.
Da mesma forma, pesquisas arqueológicas modernas, realizadas
na área de atuação das civilizações Maia e Azteca começam a derrubar

114
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

a tese do colapso ecológico da civilização Maia. A explicação clássica,


de que as florestas úmidas do México, Guatemala e Belize não seriam
capazes de sustentar uma população densa, e em expansão constante,
começam a ser desmentidas pelas novas descobertas arqueológicas. Os
testemunhos arqueológicos mostram que as Cidades-Estados maias em
constante guerra não conseguiram reunir as condições de unificação
política, sendo superadas e conquistadas pelos povos Aztecas, com uma
tecnologia militar superior e uma organização política mais eficiente.
O Império Azteca teria, contudo, adotado as mesmas práticas agrícolas
dos Maias, capazes e suficientes para manter o império funcionando até
a conquista espanhola no século XVI.
Mesmo as afirmações comumente repetidas sobre o equilíbrio instável
do ecossistema amazônico, produto de milhares de anos de feedback, de
auto-reciclagem da floresta, parecem largamente caducas em áreas centrais
da Amazônia, muito especialmente em eco-regiões homogêneas de grande
valor econômico. Assim, as grandes florestas de castanheiras e os imensos
coqueirais de babaçu surgem, após várias pesquisas, como produto da ação
humana, uma intervenção planejada e substituta da floresta primária, e que
foi capaz de assegurar grande sucesso econômico e ecológico. Tratam-se,
em verdade, de florestas plantadas dentro da floresta e de caráter bastante
recente em relação à historia natural da região. Grande parte da área teria
sido claramente transformada pela ação humana, fazendo com que a dis-
tinção clássica entre “paisagem natural” e “paisagem cultural” tenha que
ser abandonada para amplas regiões específicas da Amazônia. Não se trata,
evidentemente, de negar o caráter auto-sustentado da paisagem tal qual
existe hoje. Trata-se, em verdade, de demonstrar que a ação humana pode,
e foi, algumas vezes benéfica em relação ao manejo floresta, dependendo
singularmente das escolhas feitas, em especial do tipo de complexo cul-
tural-tecnológico aplicado ao manejo da floresta. Neste sentido a “lenda
negra” da Amazônia não seria fatalmente verdadeira. Fanshawe defende,

115
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

por exemplo, que a Guiana, área considerada de cobertura original, dificil-


mente teria qualquer mata primária, dada a longa e disseminada atividade
horticultural indígena. Prance e Schubart puderam comprovar, através de
vestígios de carvão e cacos de cerâmica, que as campinas abertas do Rio
Negro, seguidamente consideradas como produto de solos específicos – e
exemplo de um cenário negativo futuro – eram, na verdade, o resultado de
sucessivas queimadas que teriam sincopado definitivamente o processo de
sucessão ecológica há mais de mil anos. Warren Dean, num outro cenário
– a Mata Atlântica paulista e os campos abertos do Planalto Paulista – pôde
constatar que a paisagem florestal encontrada pelos Jesuítas ao chegar a
Piratininga já era o produto da ação secular da agricultura indígena, nada
tendo de floresta primária. Um outro exemplo, ainda na Amazônia, da
ação humana são as matas de bambu, que representam cerca de 85.000
km2, plantadas ainda num período pré-colombiano. A mata chamada apête
(cerrado em língua kaiapó), no Sul do Pará, Tocantins e Norte do Mato
Grosso, surge como produto direto do plantio indígena. Da mesma forma
as imensas matas de castanhais, a Bertholletia excelsa, com cerca de 8.000
km2 em torno de Marabá, no Pará. Mas, a maior extensão de paisagem
homogênea criada intencionalmente são as matas de babaçu – cerca de
196.370 km2 – na Amazônia Legal. Para William Balé cerca de 389.370
km2 de matas da Amazônia são constituídas por florestas alteradas ou
plantadas, com destaque para o cacau, bambu, castanhais, a mata de cipó,
entre outras, ocupando cerca de 11.8% das terras firmes da Amazônia
– uma área equivalente à Alemanha e Suíça juntas.
A importância de tais trabalhos reside em comprovar que a própria
floresta – no seu trecho homogêneo, plantado, e na sua relação dinâmica
com o trecho típico do trópico-úmido – recuperou e/ou reinventou um
modelo de sustentabilidade e troca de biodiversidade, mantendo-se como
uma paisagem rica e diversa. Evidentemente, tais resultados advêm
de uma prática silvestre e de um tipo de manejo plurissecular – talvez

116
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

anterior ao século V a.C. – das populações locais, e muito diverso da


utilização de pacotes tecnológicos estranhos ao saber local, típicos, por
exemplo, das frentes de expansão7.
Aqui se destaca muito claramente a valorização, em todo este
processo, de um saber tradicional, local, rico em imagens e técnicas
capazes de lidar com sustentabilidade do meio-ambiente, em vez de
aferrar-se a uma visão ambientalista fixista da natureza. A valorização
dos saberes locais é, nesse sentido, a chave ou ponto de partida para
uma visão auto-sustentada da ocupação e do desenvolvimento da região.
Evidentemente, há que se levar em conta as formas culturais e sociais
da ocupação: entre o sistema de adensamento urbano das várzeas,
como descrito por Anna Roosevelt, e as grandes metrópoles modernas
impondo estratégias de sustentabilidade diferentes. O grande desafio
reside, exatamente, aí: Como realizar uma apropriação extensiva
de práticas e saberes tradicionais numa sociedade moderna de
massas?
De qualquer forma, os exemplos históricos de alteração e criação
de novos subsistemas ecológicos na Amazônia servem para advertir e
informar ações futuras. Tais bosques alterados ou plantados são bons
exemplos de perturbações em sistemas estáveis que geram mudanças de
padrão em direções não-lineares e não-previstas. Talvez se deva abandonar
um determinismo evolucionista contido em boa parte do pensamento
ambientalista, de tipo linear, típico das previsões e cenários pessimistas
em favor de um modelo de evolução não-linear, como por exemplo
contido na Teoria do Caos. Assim, é possível pensar em novos sistemas

7
Ver TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro et al. Domínios
�������������������������
da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 203 e ss.

117
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

originados historicamente da ação humana na Amazônia, sob condições


históricas específicas, e que se tornaram, por sua vez, sistemas estáveis
e formam ecossistemas passíveis de novas intervenções perturbadoras
e que não guardam relações com as condições sensíveis iniciais. Neste
momento, ao trazer um novo suporte teórico e novas evidências empíricas,
questiona-se a própria matriz do pensamento ambientalista, ainda
marcado pelo evolucionismo e o romantismo típicos do século XIX.
Assim, a distinção entre paisagem natural e paisagem cultural, tão ao
gosto do romantismo – que informa os primeiros passos do pensamento
conservacionista – deveria ceder lugar a uma abordagem em termos de
continuum e de movimentos sistêmicos não-lineares.
Uma das dificuldades daí decorrentes é o próprio caráter de
várias instituições e Ongs dedicadas ao ambientalismo. Na maioria
das vezes, trata-se de pesquisadores importantes, sérios e sinceramente
dedicados aos seus trabalhos e ao bem-estar local. Contudo, falta o
questionamento de seus próprios fundamentos epistemológicos, uma
discussão sobre o campo científico, suas origens e suas vinculações
políticas, voluntárias ou não. Nestes casos, raros felizmente, a carrei-
ra, a pesquisa e, principalmente, a prática social daí decorrente
transformam-se em missão e destino, assumindo formas tremendamente
salvacionistas.
Em outras ocasiões interesses estranhos mesclam-se com
práticas sinceras e importantes, originando sérios desvios de
interesses. Ongs, como World Wide Fund For Nature, possui entre
seus principais financiadores empresas e instituições que possuem
interesses econômicos na região e, paradoxalmente, são grandes
poluidores do meio-ambiente, tais como a Shell, Anglo-American Corp.,
Barclays Bank, Westminster Bank ou Rotschild & Sons. Mesmo em
seus quadros, constam como membros de honra ou honorários grandes
nomes da aristocracia européia, em especial britânica: todos defensores

118
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

ferrenhos da crudelíssima caça à raposa. Outras instituições, britânicas,


escandinavas ou americanas, firmam seu silêncio frente a práticas como
a caça às baleias, inclusive no santuário proposto no Atlântico Sul, ou
a terrível matança de bebês-foca, ou ainda frente às práticas pesqueiras
devastadoras dos japoneses. Outras instituições, como a SelvaViva,
presente no Acre, dedicam-se a elaborar catálogos de fito-fármacos e
de espécies animais, em associação com grandes multinacionais como
a Bayer, CibaGeyger e Johnson & Johnson.
Estes são exemplos pontuais, que de forma alguma atingem a
maioria das instituições em campo na Amazônia, mas que demonstram
claramente uma profunda confusão de interesses e objetivos.
Em si mesma, a tese central ambientalista é de imensa relevância
para o desenvolvimento do bem-estar social na região. Entendida, tal
como formula o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
como desenvolvimento sustentável, centrado em (a) manutenção dos
processos ecológicos fundamentais; (b) preservação da diversidade
genética; (c) utilização sustentada dos empreendimentos regionais,
as preocupações ambientalistas são uma base inarredável para o de-
senvolvimento da região, e de qualquer desenvolvimento que busque
o bem-estar social, tanto na Amazônia, quanto na Patagônia, no Alasca
ou na Floresta Negra. Devem-se ser exigidas de todos os empreendi-
mentos realizados em áreas naturais sensíveis, inclusive para o uso dos
oceanos, do Ártico e da Antártida e, na ocupação do espaço exterior.

4. A Matriz Desenvolvimentista: foi a partir dos anos 60, no bojo


dos esforços de integração nacional desenvolvidos pela Administração
JK que a Amazônia transformou-se em foco de uma política nacional.
Embora Vargas já tivesse se voltado para a região, suas principais
preocupações voltavam-se para o Brasil Central, com a multiplicação
de projetos de colonização e a re-divisão territorial, criando os chama-
119
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

dos “territórios federais”, e multiplicando municípios, como forma de


adensar o povoamento da região8. A abertura da Belém-Brasília e, mais
tarde, os grandes projetos, em especial as rodovias, do final dos anos 60
e 70, mudaram definitivamente a fisionomia da Amazônia. Uma das
características centrais da ação desenvolvimentista na região foi a su-
peração da dependência única face aos eixos e pontos nodais ancorados
em cidades à beira-rio. O eixo central de ocupação, um vetor histórico
da penetração na região, era, desde o início da colonização portuguesa, o
percurso do grande rio e seus afluentes à montante, com o vetor leste-oeste,
mantendo-se assim durante os quatro séculos seguintes.
A partir dos anos 60 este vetor cede em importância face a uma
intervenção humana de duplo impacto geopolítico: a construção de um
eixo rodoviário – primeiro impacto o fato de ser uma rodovia – com o sentido
sul-norte, o segundo impacto – representado pela Belém/Brasília.
A criação do INPA, em 1952 – uma resposta a uma iniciativa da
ONU, visando criar um Instituto Internacional da Amazônia, instalado
na região e sob soberania internacional - bem como a constante atuação
do Museu Emílio Goeldi marcam os dois principais – e até avançado
dos anos 80 – únicos centros nacionais de pensamento sobre a Amazônia
localizados na região. É um marco fundamental do seu desenvolvimento.
Mais tarde, no bojo da ação dos grandes projetos – anos 60 e 70 – surge a
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966,
e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), em 1967.
Muitos dos grandes empreendimentos regionais tiveram suas origens
neste momento, tais como o Projeto Jarí; os projetos de colonização na
Transamazônica e na Cuiabá-Porto Velho; as hidrelétricas de Tucuruí e

8
Ver LINHARES, M. Y. ;TEIXEIRA DA SILVA, F. C. Terra prometida. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

120
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

Balbina; o Programa Grande Carajás; a Ferrovia Carajás-São Luís; as


indústrias de alumínio de Barcarena e outros.
Nos anos 70 surge uma nova intervenção: a BR-364 – Cuiabá/
Santarém – e a Transamazônica, indo da Paraíba até os contrafortes
andinos. Nos anos 90, em especial através da retomada da Perimetral
Norte sob a forma do Projeto Calha Norte, acentua-se a percepção geopo-
lítica leste-oeste, embora várias outras intervenções tenham sido feitas
sem qualquer avaliação de conjunto ou busca de complementaridade.
Na verdade não havia um projeto conjunto ou objetivos claramente
formulados que definissem os vetores geopolíticos da intervenção do
Poder nacional na Amazônia. As duas tendências: leste-oeste e a sul-norte
continuaram a suceder-se sem quaisquer avaliações de conjunto ou um
plano-diretor de investimentos e de intervenção social, sem falar num
zoneamento realmente eficaz e orientador da ação pública9.
Ocorre que a expansão econômica, o avanço da fronteira e a bus-
ca de conexões praticáveis em direção aos países limítrofes, acabaram
por alterar fortemente a percepção geopolítica leste-oeste, em favor de
uma maior vivificação dos eixos sul-norte. O eixo Araguaia/Tocantins,
a BR-163, a BR-319, a BR-174, bem como a ampliação da estrada de
ferro de Imperatriz, além do eixo Manaus-Venezuela e Amapá-Guiana
demonstram um contínuo avanço do sul sobre o norte, com a incorpo-
ração de amplas áreas econômicas através de eixos montados em torno
da frente de expansão vinda do sul. Assim, a “Amazônia das estradas”
contrapõem-se à “Amazônia dos rios” – nem sempre permitindo as
fantásticas possibilidades de complementaridade e de exploração
de hidrovias - criando vetores novos, consolidando alguns nós de

9
Ver XIMENES, Tereza. Cenários da industrialização na Amazônia. Belém: Unamaz, 1995.

121
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

adensamento – abandonando outros, muito especialmente os eixos


ferroviários originados na República Velha e no Estado Novo – e apontando
para um adensamento da verticalidade na margem sul e, simultaneamente,
na margem norte da macro-região.
De qualquer forma – como um resultado inesperado da falta
de planejamento – a ocupação da região resultou na construção de um
quadrilátero viário, composto de vias fluviais e rodoviárias marcado por
três grandes eixos leste-oeste, como paralelas geopolíticas da região: o
grande rio ao centro, um vetor na margem esquerda e outro na margem
direita, ainda, é claro, de forma incipiente.
Todo desenvolvimento futuro deve ter firmemente em perspectiva
a existência de tais estruturas e também evitar superposicionamentos, além
de um cuidadoso planejamento dos eixos verticais, de acesso ao Caribe/
Pacífico, visando dar um caráter racional ao xadrez que se anuncia.
Neste sentido, constata-se que a abertura de novos eixos viários,
com vetores novos, aponta claramente para a possibilidade da Amazônia
transformar-se, em três décadas, na área-pivot, para retomar uma
expressão cara da geopolítica, da integração sul-americana: o eixo
Cuiabá - Porto Velho - Manaus poderá ser facilmente conectado, numa
ponta, com São Paulo e a partir daí com todo o Mercosul, e ao norte,
com Caracas, abrindo o Caribe e a Panamericana em direção ao Canal
do Panamá; da mesma forma, o eixo Belém - Brasília conectando-se,
ao sul, com Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e ao norte, com o Amapá
e daí para as Guianas.
Assim, avançando as obras de infra-estrutura na fronteira com
a Venezuela, e talvez na Guiana, o Brasil abre uma via alternativa a
Carretera Panamericana, integra uma poderosa economia regional – a
Venezuela – ao sistema amazônico e, ao mesmo tempo, acessa o Pacífico.
Da mesma forma, os eixos sul-norte abrem a região aos fluxos demográficos
oriundos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – onde existe
122
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

uma forte tradição de exportação das formas familiares da pequena


produção, processo já em curso e cuja ponta já atinge Roraima – além
dos grandes investimentos agro-pecuários de São Paulo e Paraná.
O eixo leste-oeste, seja através dos rios, seja através das estradas
dos anos 70, centrava-se principalmente na preocupação de transferir
excedentes de população do Nordeste para a Amazônia, procurando
simultaneamente diminuir a tensão social numa área “velha” e ocupar
uma área nova. O traçado sul-norte, por sua vez, garantiu a formação de
uma paisagem diferenciada, menos cabocla e, portanto menos “invi-
sível” ao desenvolvimento; este vetor reproduziu uma paisagem mais
empreendedora, mesmo que ainda sob a forma de pequena produção
familiar, na qual Rondônia é um bom exemplo do processo rápido de
povoamento e que talvez, seja o futuro de Roraima, prenunciando
tensões sociais ainda mais graves naquele Estado. De qualquer forma,
nesta margem sul da macro-região, já bastante tocada pelos vetores
sul-norte reproduziu-se a forte tensão entre pequena produção familiar,
posse intrusiva e grandes projetos agro-pecuários, dando à região o
triste perfil de área de maior tensão de conflitos de origem fundiária
do País, em especial Rondônia e Sul do Pará. Na verdade, o aden-
samento demográfico, ao longo das margens sul/sudoeste e leste da
região – Rondônia/Tocantins/Sul do Pará – criaram uma longa faixa
de conflitos fundiários - o arco dos conflitos – sem qualquer reso-
lução à vista. Mantendo-se os eixos de ocupação sul-norte um cenário
semelhante tende a se reproduzir no Acre – os sinais da crise fundiária
já são bastante visíveis - no Amazonas Ocidental e Roraima. Assim, uma
intervenção imediata, com planos regionais de Reforma Agrária e Colonização,
é primordial para que o desenvolvimento da Amazônia ocidental não
reproduza o caráter de terra sem lei de algumas regiões do Pará e Rondônia
(El Dourado de Carajás, Corumbiara, Reserva Roosevelt, etc...), com o
claro agravante de envolver dois outros componentes bastante explosivos:

123
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

a situação de fronteira e a existência de extensas Terras Indígenas.


Deve-se entender, ainda, que qualquer processo de ocupação
e desenvolvimento da Amazônia, tendo como um dos seus aspectos a
frente pioneira agrícola terá nas populações organizadas sob a forma
da pequena produção familiar – em clara expansão demográfica de tipo
“chayanoviano” nas áreas velhas do País – uma das pontas mais dinâ-
micas de expansão do povoamento. A frente pioneira, de perfil familiar e
chayanoviano, realiza tal processo histórico através de baixo investimento
de capitais, de tecnologia e uso extensivo de trabalho e terra, o modelo
clássico da colonização espontânea no Brasil. Assim, para a maior parte
da população rural em fase de estabelecimento na região a floresta será
entendida, sempre, como capital disponível para ser transformada
em renda – principalmente em função da madeira nela contida10. Assim,
a derrubada aleatória da floresta, muitas vezes para produzir só tabuado
ou carvão, surge como a formação de um capital inicial fundamental
para o sucesso da empresa agrária familiar – desprovida de poupança
própria e/ou incapaz de acessar as linhas formais de crédito – e em fase
de implantação, quando mais se fragiliza enquanto empresa dotada de
cálculo econômico autônomo. O planejamento da ocupação pioneira,
alterando o seu próprio perfil histórico, e um forte aporte de micro e
médio-crédito voltado para tais populações, é uma intervenção urgente
e necessária, e que pode redundar na adoção de um manejo sustentado
da floresta.
O risco de abandono de tais populações, além da agudização do
conflito social, reside na destruição do ecossistema, na perda irremediável
de suas riquezas naturais e numa péssima visão externa do país, capaz de

10
SAYAGO, Doris et al. ���������������
Op. cit., p. 21

124
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

gerar revolta internacional contra a soberania nacional na região11.


Vários países, inclusive o pré-candidato democrata nas eleições
presidenciais americanas, já levantam a questão do chamado dumping
ecológico, abrindo caminho para retaliações aduaneiras, práticas prote-
cionistas e recusa de acordos-quadros que podem facilmente prejudicar
as exportações agrícolas brasileiras.
A vigilância, a prevenção e o planejamento ecológico da região
são, contudo, muito precários, com a produção constante de notícias
contrárias à boa visão do País e da sua gestão regional. Conflitos fun-
diários, conflitos indígenas, desmatamento e acidentes ecológicos são
temas constantes sobre a Amazônia.
Nos anos 70, grandes projetos, muitos absolutamente estranhos
à ecologia local, acabaram por causar um forte impacto negativo, tanto
em âmbito nacional quanto internacional, como o Projeto Jarí ou os
empreendimentos da Icomi, no Amapá, trazendo a Amazônia para o
debate político internacional. A partir da Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente, em 1972, onde reinou um clima de críticas ao
Brasil, foi criada, no ano seguinte, a Secretaria Especial de Meio Am-
biente (SEMA), matriz de uma série de organismos visando à vigilância
e ao planejamento das intervenções no meio ambiente brasileiro, em
especial na Amazônia, passando pela criação do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente (Ibama), em 1989, culminando na criação do Sistema
Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama).
Contudo, as possibilidades de uma ação concreta são ainda

Ver MEDEIROS, Leonilde et al. A formação dos assentamentos rurais no Brasil. Porto Alegre:
11

Editora da Universidade, 1999.

125
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

bastante reduzidas. Um estudo recente nos mostra, por exemplo, que o


conjunto das - Organizações Estaduais de Meio Ambiente (Oema´s) -
possui pouco mais de 2.000 funcionários para toda a região (enquanto
São Paulo, sozinho, ocupa 6.000 funcionários, contra 18.000 em todo
o País). Grande parte da defesa do meio ambiente, em face de tamanha
ausência do Poder Executivo estadual e federal na região, tem sido diri-
gida pelo Ministério Público, onde, é claro, os meios estão disponíveis.
Concorda-se plenamente, com várias entidades e pesquisadores, como
Marcel Bursztyn, que alertam para o fato de ser impossível fazer gestão
ambiental apenas com ações de comando e controle.
Evidentemente estas são fragilidades que apontam claramente
para crises num futuro imediato12.

Amazônia: qual desenvolvimento?

Embora haja um amplo consenso nacional, inclusive entre brasi-


leiros amazônidas e não amazônidas, sobre o caráter nacional brasileiro
da região, e na comunhão dos interesses nacionais maiores, tais como
democracia, bem-estar social, crescimento econômico e justiça social,
não se tem clareza sobre quais os objetivos de um projeto ou programa
nacional para a Amazônia. Não se refere a idéias pontuais de garantir
fronteiras, traçar estradas ou adensar o povoamento. Estes serão os
meios, as ferramentas, para um projeto bem maior e que ainda não
parece formulado. O que queremos para a Amazônia, nós brasileiros em

BURSZTYN, Maria Augusta. Aspectos legais e institucionais da gestão ambiental da Amazônia. In:
�����������������������������������������������������������������������������������������������
12

SAYAGO, Doris. Op. cit., p. 276.

126
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

geral, e os amazônidas, em especial? Qual o patamar demográfico a ser


alcançado como o necessário e adequado? Qual o projeto econômico a
ser sustentado? Em que direção, qual o eixo de transporte, que as obras
de infra-estrutura devem avançar? Em 19/05/2004, o MEC anunciou
a criação de cinco novas universidades federais na região... Quais os
estudos de viabilidade que foram feitos para se chegar ao número cinco?
Qual o diagnóstico do ensino básico na região? Por que não melhorar e
substantivar as já existentes e, fundamentalmente, que cursos universitários
devem ser instalados na região enquanto parataxe de uma política pública
de caráter nacional?
A histórica e proverbial displicência brasileira para com o
planejamento de longo prazo parece, no caso da Amazônia, ter chegado
ao paroxismo. Hoje, o conjunto de órgãos federais voltados para a região
demonstra objetivos contraditórios, e mesmo francamente opostos (como
por exemplo, Ministério da Justiça, a própria Funai, Polícia Federal, Ibama
no tocante, por exemplo, a situação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol ou da atuação na Reserva Roosevelt). Mesmo sendo dramático, para
não dizer cômico, tantos desacertos táticos e conjunturais, a situação
pode evoluir para um estágio dramático em se tratando do planejamento
estrutural de caráter pluridecenal. Na verdade, não há uma Amazônia e
seus cenários para o ano de 2035 – louve-se aqui os autores de um estudo
recente realizado pela UnB – que possam claramente informar e corrigir
as políticas públicas federais estaduais para a região.
Sem a formulação de um projeto de longa duração e sua “cenariza-
ção” ampla e flexível, os investimentos feitos – inclusive os atuais – correm
o risco de serem perdidos. Mais grave ainda é a situação em virtude do
cenário mundial, pós-Guerra Fria e, claro, na atual situação de contenção
orçamentária. Neste sentido, deve-se buscar um amplo consenso sobre
um cenário possível para a Amazônia em 2035, reunindo para tanto os
mais diversos atores sociais e políticos, locais, regionais e nacionais.

127
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Contudo, se tem um importante ponto de partida: a vigência


consensual da democracia representativa no País. Nas últimas eleições
o atual Presidente, e seu partido, receberam uma significativa votação
desta região, inclusive com a defesa de itens programáticos pertinentes
à mesma. Os pontos fundamentais do Programa do PT para região não
são, contudo, originais, fazem parte de uma pauta que liga, nas próprias
palavras do Presidente da República, diversos momentos da história re-
publicana do País: o desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e Juscelino
Kubitschek; os grandes projetos de integração do Regime Militar e a
promessa de desenvolvimento com justiça social do próprio PT. Assim,
com a obrigação de corrigir erros e ingenuidades anteriores, a Repúbli-
ca possui um projeto informal para a região, do que se depreende do
programa político das últimas décadas, a saber:

a) a integração nacional da região, através do desenvolvimento


e do bem-estar social;
b) a integração do Brasil aos países limítrofes, tendo a Amazônia
como área-pivot;
c) a manutenção da soberania nacional sobre todo o território,
ponto aceito com euforia pela população amazônida;
d) o respeito pelo patrimônio ambiental, em suas diversas
manifestações;
e) o orgulho nacional pela existência da Amazônia, de seu
patrimônio étnico, cultural e histórico.

Estes pontos não apresentam quaisquer constestações – seja no


nível local, regional ou nacional – diferindo assim o Brasil de vários
outros países, inclusive vizinhos, onde existem movimentos de rebeldia
política ou nacional, disputas de fronteira e exigências separatistas. É
evidente que o consenso nacional sobre tais pontos não implica a aceita-

128
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

ção, automática, de um conteúdo único dos mesmos e, tão pouco, de um


modus operandi homogêneo. Representa, no nível local ou regional, o
respeito pelo patrimônio ambiental, apropriado de forma diferenciada por
grupos sociais diversos, como índios, agricultores, garimpeiros, população
urbana, etc. Trata-se, neste momento, de buscar o aprofundamento de tal
consenso e as formas de sua implantação. A cada um dos itens citados
abaixo, quando possível identificá-los, caberá um longo processo de
debate e de consolidação.

1. A integração nacional da região, através do desenvolvimento


e do bem-estar social, implica na adoção de um modelo de desenvolvi-
mento regional, que mesmo não sendo uma camisa de força totalitária,
norteará os investimentos e ações públicas na região. Qual seria este
modelo, ou muito melhor quais seriam estes modelos e sua re-regionalização?
Apresentam-se algumas atividades já em vigor:

• Modelo industrial-urbano, centrado na eletrônica e na química


de cosméticos e fito-fármacos;
• A grande empresa agro-pecuária;
• A grande empresa florestal;
• As atividades pesqueiras, extremamente diversas e fundamentais
como fonte de proteína animal para a região;
• A pequena produção familiar;
• Os núcleos de alta tecnologia;
• As empresas de mineração;
• As empresas energéticas, com seus diferenciais de tipo
hidrelétrico, de energia fóssil e de biomassa.

Todas estas são atividades em curso precisam ser vistas a partir


das possibilidades de auto-sustentabilidade e de ganhos decorrentes da
implantação regional, atendendo a um zoneamento técnico rigoroso,

129
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

ao mesmo tempo que, se somem às possibilidades gerais de geração de


bem-estar social. De qualquer maneira, a reestruturação da base produtiva
regional, superando a apropriação mental e cultural da floresta, enquanto
um capital disponível, sem ônus, bem como a atividade primária danosa
e pouco agregadora de valor, deverão estar circunscritas, de forma a
apontar nas próximas décadas sua completa superação. Atualmente,
talvez estas sejam as últimas oportunidades para tal ação, tendo em vista
a manutenção por mais de uma década do baixo crescimento nacional.
A retomada do crescimento acelerada, sem a assunção política de tais
imperativos, representará um retorno em face da exploração predatória
em toda a região.

2. A integração do Brasil aos países limítrofes, tendo a Amazônia


como área-pivot: a consolidação dessa possibilidade, bastante real e
já em curso, depende claramente do traçado viário a ser sustentado na
região. Tendo o Brasil um passivo escandaloso em termos de rodovias,
sabendo-se do custo de manutenção das mesmas e do impacto normal-
mente negativo, sobre o meioambiente, a abertura de estradas deve ser
cuidadosamente estudada em função dos:

• Objetivos nacionais permanentes visando a integração sul-


americana;
• Objetivos e interesses regionais em direcionar seus processos
de integração;
• Impactos ambientais daí decorrentes.

Assim, para muitos segmentos sociais e grupos de interesse locais,


a integração sul-americana apresenta-se de forma diferenciada e con-
templa objetivos diversos. A conexão de Manaus e sua Zona Industrial,
com os mercados venezuelanos (abastecidos com petrodólares) ou com

130
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

São Paulo e a partir daí com o Mercosul, representará, simultaneamente,


uma integração nacional, sul-americana e um desenvolvimento com bem-
estar. Já a expansão da malha rodoviária em direção ao Nordeste pode
não apresentar as mesmas vantagens e, até mesmo, agudizar conflitos
sociais historicamente formados em outras regiões.

3. A manutenção da soberania nacional sobre todo o território,


ponto aceito com euforia pela população amazônida: histórica e cultu-
ralmente a população amazônida é, e se sente, brasileira, não havendo
problemas na relação do nacional com o regional, neste contexto. As
tentativas acadêmicas de olhar a Amazônia através dos textos de Antonio
Gramsci sobre o Mezzogiorno italiano – grande modismo universitário -
carecem de qualquer fundamentação histórica. Naquela época, a Itália era
um país perpassado pelo sentimento autonomista e, quiçá, pelo separatismo
(exemplificando, hoje: a Liga Lombarda, pedindo a criação da República
Paduana no norte italiano). Desde o Segundo Reinado, antes da Itália existir
como Estado-Nação, a Amazônia se sentia brasileira. Assim, as análises
regionalistas radicalizantes carecem de base histórica, permitindo apenas
vislumbrar pobreza histórica de seus autores e um mau uso de Gramsci.
Da mesma forma, abandonando um militantismo do tipo “A Amazônia é
Nossa” e uma ingenuidade, ou irresponsabilidade, do tipo “... isso é paúra
de militar”, a integração Sul-americana tendo a Amazônia como área-pivot
é uma imperiosidade nacional. Neste sentido, os interesses locais, regionais
e dos diversos grupos étnicos e sociais presentes na região devem estar em
parataxe, em sincronia, com os interesses nacionais permanentes consoli-
dados na Constituição Cidadã de 1988.
A formulação da política nacional de defesa para a Amazônia,
evoluindo da doutrina de lassidão ou usura para uma doutrina da presença
apresenta, hoje, uma série de graves inconvenientes. À luz das ações da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na ex-Iugoslávia e,

131
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

depois, dos Estados Unidos no Iraque, questiona-se sobre a crença de um


combate limitado e circunscrito geograficamente. Hoje, não há razões para
um agressor vindo da fachada atlântica aceitar os termos do combate (por
exemplo, a “libertação” de Kosovo foi feita através de maciços bombardeios
contra Belgrado, capital da Sérvia, com a ação terrestre só acontecendo
quando os sérvios aceitaram os termos da Otan). Contudo, este é um tema
complexo e que escapa ao objetivo do texto.
Percebe-se que uma importante forma de dissuasão é o estreitamento
e adensamento das redes de ensino básico, a circulação de jovens num Projeto
Rondon reinventado e a expansão dos diversos campi universitários, em vez
de criação de novas superestruturas universitárias, inchadas de funcionários
e cursos de história, filosofia, arquivologia, pedagogia, etc...
Um conjunto chamado de “novas ameaças” (contrabando – armas,
drogas, biopirataria – e o narcotráfico), aparece como uma típica ameaça
denominada de transfronteiriça, nos novos manuais de guerra assimétrica
após 11 de setembro de 2001. Particularmente os corredores de comércio
e passagem de drogas ameaçam a integridade e o bem-estar da população
regional, além de afrontar o Estado-Nação e fragilizá-lo nas relações
internacionais. Assim, os principais corredores de drogas devem ser fechados
(as áreas da Cabeça do Cachorro/Rio Negro/Xiê/Içana; Vale do Javari/Alto
Solimões; Suriname/Amapá/Pará – via de acesso da cocaína – bem como
Bolívia/Brasiléia/Epitaciolândia, no Acre, São áreas que merecem uma ação
muito mais intensa das autoridades federais, únicas aparelhadas para lidar
com um agente poderoso e desestruturador).
Uma das discussões mais politizadas e que atinge diretamente, embora
não exclusivamente, a região é a questão indígena, o estatuto das reservas
e a extensão de suas terras. No seu conjunto, as terras indígenas atingem,
hoje, 11.01% do território nacional para um contingente de cerca de 326 mil
pessoas, ocupando um espaço superior às dimensões da Alemanha, Espanha
e Portugal juntos e localizam-se, largamente, nas Faixas de Fronteira,

132
Amazônia: uma Área- Pivot para uma Nova Política Brasileira

despertando grande ansiedade nos meios responsáveis pela Segurança


Nacional e pelo combate às chamadas “novas ameaças”.
A discussão vai além da Questão da Amazônia e faz parte de um
debate sobre integração, contato e desenvolvimento autônomo, bastante
alterado em termos históricos pelas disposições da Constituição de 1988.
Salienta-se para a discussão o artigo publicado no PADECEME, por Valério
Stumpf Trindade13, extremamente bem documentado e com articulações
sociais, políticas e econômicas bastante adequadas.

4. O respeito pelo patrimônio ambiental, em suas diversas


manifestações: trata-se aqui de adensar a rede científica e tecnológica na
região, tendo como pontos de apoio às instituições já existentes, como o
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Emílio Goeldi,
o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), entre outros. A extrema
carência em que vivem importantes instituições locais, talvez o Museu Emílio
Goeldi seja o melhor exemplo, desanima as novas gerações e desmobiliza
os pesquisadores existentes, que tendem a migrar para o eixo centro-sul,
com perdas tremendas para a região. Uma política coerente e de intervenção
imediata na região deve agrupar a capacidade e a expertise já existentes em
nível nacional e projetá-las, com metas previamente discutidas, para uma
ação regional decisiva. A criação de pelo menos cinco “aldeias da ciência”,
em regiões estratégicas da Amazônia, atendendo às variações ambientais,
sociais e étnicas, conectadas a uma Universidade da Amazônia, enquanto um
superinstituto virtual, é imperioso. Tais “aldeias da ciência”, uma evolução
pró-ativa dos diversos campi dos anos 70, devem agrupar agências como

13
TRINDADE, Valério Stumpf. A questão indígena: uma breve análise. In: PADECEME, Rio de Janeiro,
n.7, p. 17-28, 2004.

133
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Embrapa, Funai, Ibama, CNPq, Fundações de Apoio à Pesquisa (Fap´s)


estaduais e institutos vários de pesquisa (como Fiocruz, Butantã, Vital Brasil,
etc.), para o exercício local de experimentações e testes, além de receber
pesquisadores brasileiros e estrangeiros para realização de trabalhos de
campo, como teses e projetos. Entende-se que um esforço concentrado pode
ser assumido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), convertido
à idéia estratégica de dotar a Amazônia de uma expertise de primeira linha,
evitando os entraves burocráticos tradicionais e os ritos que “entopem” a
universidade de atividades-meio, pesando de forma insuportável sobre as
finalidades científicas.

5. O orgulho nacional pela existência da Amazônia, de seu


patrimônio étnico, cultural e histórico: trata-se aqui de um objetivo fácil, do
qual todo brasileiro já se orgulha e que nos aparece em todo seu esplendor nos
desfiles de carnaval do Rio de Janeiro, que celebram a Amazônia brasileira,
e nos desfiles do Boi de Parintins, que celebram a brasilidade da Amazônia.
Sem a menor dúvida, programas e conteúdos didáticos podem claramente
ser mais bem dimensionados, permitindo uma saudável combinação entre o
local, o regional e o nacional, dando aos jovens e adolescentes uma dimensão
mais ampla e plural do sentido de ser brasileiro. O Serviço Militar desem-
penha um papel central, cuja demanda é crescente e de grande relevância
social. A ampliação da rede pública de educação, com um atendimento de
melhor qualidade para as crianças, e a disponibilidade do Serviço Militar
para todo jovem brasileiro que assim o deseje são peças fundamentais da
integração nacional. Uma escola pública de boa qualidade, com banheiros,
refeitórios e biblioteca – onde instrução e as regras da boa conduta social,
inclusive onde os cuidados médico-sanitários estejam previstos – é essencial
para forjar pessoas ativas, livres e capazes de escolhas autônomas. Tudo o
que um projeto nacional para a Amazônia necessita.

134
Limitações ao Exercício da Soberania
na Região Amazônica

Bertha K. Becker

Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.


Professora, Pesquisadora e Coordenadora do Laboratório de Gestão
do Território junto ao Departamento de Geografia da UFRJ.
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Introdução

É intensa a controvérsia atual sobre o conceito e a prática da soberania


em face às rápidas e fortes transformações no mundo contemporâneo.
A revolução científico-tecnológica, especialmente na microeletrônica
e na comunicação, está na raiz das transformações na natureza dos
Estados-Nação e da soberania. Não se trata de uma nova técnica, mas
sim de uma nova forma de produção e, portanto, de organização social e
política baseada na informação e no conhecimento que ocorre no contexto
da reestruturação do sistema econômico (Castells, 1999). Sua essência é a
velocidade acelerada, a inovação contínua, capaz de alterar não só o setor
tecno-produtivo civil e militar, como também as relações sociais e de poder.
Seus veículos são as redes transnacionais de circulação e comunicação que
sustentam fluxos financeiros, mercantis e informacionais trans-Estados e
transfronteiras. Redes e fluxos que a um só tempo permitem a unificação
do mercado mundial e a diferenciação espacial pela seletividade dos
territórios (Becker, 1995).
O fim da Guerra Fria – com a queda do muro de Berlim, em 1989, e
a derrocada da URSS, em 1991 – contribuíram sobremaneira para a abertura
das relações internacionais.
A partir daí, os Estados soberanos passam a ter grande participação
em organizações internacionais e a aceitar práticas comuns no comércio,
na proteção ambiental e nas questões de cidadania. Instituiu-se, de forma
velada, uma concepção de intervenção em nome do bem comum. Embora
haja relativo consenso quanto a perdas de soberania pelo Estado-Nação, há
discordância quanto à intensidade da perda.
Assume-se neste texto, que não se trata do fim dos Estados-Nação
nem da soberania estatal. Mas há que entendê-los como processos e que
como tal, se ajustam às transformações que ocorrem no mundo mudando

137
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de natureza e de funções. A soberania de um Estado será mais garantida


quando mais cedo e melhor se ajustar às novas condições.
A interdependência global não se resume à unificação de mercados. Ela
envolve também a interconexão das arenas políticas nacionais e internacionais
rompendo, ou pelo menos diluindo, as dicotomias: direito-coerção; direito do
Estado – Direito Internacional; e faces interna/externa da soberania.
O Direito Internacional é utilizado para acobertar a crescente coerção
velada, que tenta modificá-lo, mas são os próprios Estados soberanos que
tentam alterá-lo. Aceitando normas reconhecidas mutuamente, os Estados
constituem uma nova forma de soberania integrada por uma série de
organismos nacionais e internacionais vinculados por uma única lógica de
mando (uma forma de soberania em que o poder é desigual visto que as
normas dependem dos interesses dos Estados mais poderosos, configurando
um contexto de tensão e disputa).
Quanto à dupla face da soberania, os movimentos sociais internos,
tendem a se internacionalizar, constituindo uma séria vulnerabilidade para os
Estados, particularmente na América Latina onde são mais intensos.
No contexto da globalização, portanto, se fortalece a geopolítica sob
uma nova perspectiva. Não se trata mais tanto da conquista de territórios,
mas sim, da acentuação de múltiplas formas de pressão que visam influenciar
a tomada de decisão sobre o uso dos territórios dos Estados soberanos. A
imposição de agendas, ou seja, o poder da agenda, torna-se um instrumento-
chave em muitas das formas de pressão associada à ajuda financeira. Cabe
ainda registrar em tão complexo contexto que, na questão ambiental, onde as
limitações ao exercício da soberania na Amazônia são mais sentidas, há que
discernir a geopolítica ecológica da consciência ecológica e social.
Uma característica do mundo contemporâneo é a imbricação das
práticas e atores que estabelecem ou tentam estabelecer limitações ao
exercício da soberania. Em atenção ao roteiro solicitado para este trabalho,

138
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

tais limitações são analisadas segundo o nível de coerção em quatro seções:


1°) limitações aceitas por ratificação de acordos internacionais; 2°) limitações
aceitas pelas restrições de preservação do meio ambiente e da biodiversidade; 3°)
por pressões sofridas de lideranças políticas mundiais, organismos políticos e
comunidades científicas; 4°) por pressões internas/externas de Organizações
Não Governamentais.

1. Limitações Aceitas por Ratificação de


Acordos Internacionais

As limitações sobre a soberania brasileira na Amazônia aceitas por


ratificação de acordos constituem um caso exemplar das conexões entre
direito/força e Direito do Estado/Direito Internacional.
Por sua própria natureza, a interdependência ecológica é global,
tornando-se excelente pretexto para justificar a intervenção internacional. E
a Amazônia tornou-se alvo dessa pretensão. Direitos Humanos e patrimônio
cultural, por sua vez, são evocados na questão indígena.
A intervenção internacional tem diferentes sentidos: a) como coerção,
que varia desde seus níveis mais brandos no exercício da influência política
até a violência física, com uma finalidade humanitária ou de ataque, ou seja,
há uma escala de coerção ou eficácia das ações externas em influenciar os
assuntos internos de um Estado, em oposição ao poder de direito; b) inter-
venção como direito, considerando que os ideais e os Direitos Humanos são
construções conceituais datadas.
De acordo com Bobbio (1992) a intervenção é um direito porque as
condições sociais em mudança assim o exigem e, ao mesmo tempo, é uma
força autorizada socialmente para garantir esse direito. O meio ambiente
passa, assim, a ter um direito próprio, historicamente reconhecido, e isso lhe

139
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

possibilita contar com um poder de coerção igualmente legítimo. Direito e


coerção tornam-se na intervenção internacional, as duas faces de uma mesma
moeda, uma sustentando a outra. O mesmo raciocínio parece subjacente ao
trato dos grupos indígenas.
Coerção e direito no meio ambiente se manifestam na relação entre
Direito Nacional e Direito Internacional através dos acordos e convenções
internacionais, a mais eficaz das ações externas quando aceita por um Estado
soberano, como é o caso do Brasil em relação à Amazônia.
Cabe, de início, desvelar os fatores subjacentes à questão ambiental
na região.

Amazônia, “Heartland” Ecológico do Planeta

Mitos e imagens simplificadas sobre a Amazônia têm surgido da


História reaparecendo hoje sob novas feições. Mas sob o fascínio exercido pela
natureza sobre o imaginário social, sempre residiram motivações econômicas
e geopolíticas cuja atuação depende de condições tecnológicas e financeiras.
O controle de posições estratégicas está na raiz da apropriação e ma-
nutenção da Amazônia sob a soberania brasileira. Hoje, relações e conceitos
são redefinidos pela ação conjugada de dois elementos (Becker, 1995):

1. �
A revolução científico-tecnológica, que cria uma nova forma de
produzir, cujas matérias-primas são a informação e o conhecimento, transfor-
mados em fontes de produtividade econômica e de poder político;
2. �
A crise ambiental, talvez a principal restrição à expansão do
Capitalismo sob formas convencionais de produzir (Daly, 1991), que impõe
novos padrões relacionais com a natureza e os recursos econômicos.

Redes e fluxos transfronteiras escapam ao controle do Estado, assim


como a multiplicação de formas de autorganização, a reorientação das ajudas
140
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

multi e bilaterais que se descentralizam, destinando-se à escala local e


globaliza-se a questão ambiental.
Tal associação jaz sob a configuração de uma nova divisão territorial
do trabalho e uma nova geopolítica, respondendo pela expansão das fronteiras
de acumulação e pelos sistemas espaciais de controle. São, sobretudo, redes
técnicas de comunicação, particularmente as de telecomunicação, e não mais
apenas a circulação marítima e terrestre, que viabilizam essa transformação.
Não se trata mais da apropriação direta de territórios desconhecidos pela
expansão do povoamento. O domínio da informação e do conhecimento
tornou-se o cerne do poder.
A virtualidade de fluxos e redes que sustentam a riqueza circulante não
significa, contudo, a dissolução do espaço geográfico, do valor estratégico do
mar, da terra e dos recursos naturais, ou seja, da riqueza in situ. A natureza
é reavaliada e, tal qual a moeda, valorizada como informação sobre a vida e
recursos potenciais.
A nova forma de produzir, por um lado, tenta tornar-se independen-
te da base de recursos utilizando menor volume de matérias-primas e de
energia, maior volume de informação e conhecimento, e produzindo novos
materiais. A valorização dos elementos naturais se realiza num outro patamar,
condicionada por novas tecnologias. É o caso, sobretudo, da natureza como
fonte de informação para a biotecnologia, apoiada na decodificação, leitura
e instrumentalização da biodiversidade. Também é o caso da possibilidade
teórica ainda não solucionada da utilização de isótopos de hidrogênio como
insumo energético. Em outras palavras, a natureza é valorizada como capital
de realização atual ou futura e como fonte de poder para a ciência contempo-
rânea (Becker, 1995).
Se os fluxos financeiros são globais, os estoques de natureza estão
localizados em territórios de Estados ou em espaços ainda não regulamentados
juridicamente. A apropriação da decisão sobre o uso de territórios e ambientes
como reservas de valor, isto é, sem uso produtivo imediato, torna-se uma forma
141
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de controlar o capital natural para o futuro. Constitui-se, assim, um novo com-


ponente na disputa entre as potências – detentoras da tecnologia – pelo controle
dos estoques de natureza localizados, sobretudo, nos países periféricos e em
espaços não apropriados, configurando um novo “Tordesilhas”, ecológico.
A disputa das potências pelas novas fronteiras incide vigorosamente
sobre o Brasil. Três grandes Eldorados podem ser reconhecidos contem-
poraneamente: os Fundos Oceânicos, não regulamentados juridicamente; a
Antártida, partilhada entre as potências; e a Amazônia, único a pertencer, em
sua maior parte, a um só Estado Nacional.
Quando a tecnologia de satélites permitiu ao homem olhar a Terra a
partir do cosmos, tomou-se consciência da unidade do globo como um bem
comum, cujo uso deve repousar numa responsabilidade comum. Percebeu-
se, também, que a natureza se tornara um bem escasso. Colocou-se então o
desafio ecológico como dupla questão, de sobrevivência da humanidade e da
valorização do capital natural. Sendo assim, a Amazônia se tornou símbolo
desse desafio e campo de investigação vital para a ciência.
É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazônia, verda-
deiro heartland ecológico (Fig. 1). Correspondendo a 1/20 da superfície da
Terra e a 2/5 da América do Sul, a Amazônia sul-americana contém 1/5 da
disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas mundiais de florestas
latifoliadas e somente 3,5 milésimos da população mundial. 63,4 % da Ama-
zônia Sul-americana estão sob soberania brasileira, correspondendo a mais da
metade do território nacional. O Brasil, hoje, é o país de maior megadiver-
sidade no planeta, significando novos recursos genéticos e princípios ativos
biológicos de grande interesse para o mercado e relevância social. Contudo,
é importante reconhecer que a Amazônia não é um espaço vazio. Ela passou
por profundas transformações estruturais nas últimas décadas do século XX e
grandes diferenciações internas. Em 2000, contava com cerca de 20 milhões
de habitantes – 70% deles concentrados em núcleos urbanos.

142
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Figura 1 - Mapa da Vegetação da América do Sul

143
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Não é uma situação nova ver a Amazônia como uma área de


atração, percebida que foi historicamente, como gigantesco empório
de matérias-primas. Atualmente, no limiar de uma grande transformação,
novos espaços de experiências e expectativas se abrem para o capital natural
com base nos avanços da biologia molecular e da biotecnologia.
Em nível do espaço geográfico, territorial, a valorização estraté-
gica da Amazônia como heartland ecológico, fundamenta-se (Becker,
1999): 1) na extensão territorial, tal como proposto por Mackinder, bem
como em sua autodefesa, representada, no caso, pelo “fator amazônico”
constituído pelas imensas distâncias e pela cobertura da massa florestal
que, até agora, bloquearam a ocupação. E no novo significado por ela
adquirido, o de um duplo patrimônio: o de terras propriamente dito e o
de um imenso capital natural, cuja expressão máxima é a biodiversidade;
2) na nova posição geográfica estratégica como entroncamento dos novos
blocos de poder norte-americano, europeu e asiático; 3) na sua identidade
cultural que, fundada na diversidade social, constitui inestimável fonte
de saber local e de conhecimento ímpar sobre a natureza tropical e a
biodiversidade; 4) no potencial e na oportunidade que representa, para a
ciência mundial, a promoção do avanço da biotecnologia e a utilização
alternativa de recursos naturais; 5) last but not least, na ampliação das
comunicações e da própria circulação (de informação, dinheiro, negócios)
permitida pelas redes de telecomunicações que conectam pontos do
território horizontalmente, com outros pontos e, verticalmente com o
espaço nacional e transnacional.
Por outro lado, na representação simbólico-cultural a valorização
do heartland amazônico está condicionada pela centralidade que tem hoje
no mundo a biodiversidade e a sustentabilidade. Desde a década de 70,
a questão dos limites ao crescimento econômico se metamorfoseou na
preocupação com a sustentabilidade da Terra como locus da vida. Para
um desafio ecológico de dupla face - a valorização do capital natural e a

144
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

sobrevivência humana - a Amazônia tornou-se o símbolo maior. Diversos


movimentos ambientalistas corporificados em Organizações Não
Governamentais (Ongs) estendem amplamente suas redes no heartland
graças às telecomunicações, penetrando decisivamente no imaginário
planetário.
Na raiz da questão ambiental jazem, portanto, duas lógicas: a) a
lógica da acumulação, que valoriza a natureza como capital natural de
realização futura, ou seja, reserva de valor sem uso produtivo ime-
diato; b) a lógica civilizatória ou cultural, que valoriza a natureza
como fundamento da vida. Duas lógicas, muito diversas, mas que
convergem para um mesmo projeto de preservação da natureza.
A questão ecológica passa, assim, a fazer parte da agenda
geopolítica global. Vários são os Estados e organizações prontos a
“defender” o heartland, refletindo o quadro da globalização contem-
porânea. Mas isso não invalida parafrasear Mackinder: “quem dominar
o heartland ecológico, dominará o capital natural do futuro”.
O discurso pela defesa do heartland se baseia no bem comum:
a proteção da biodiversidade, a contenção do desflorestamento para a
sobrevivência do planeta e a ajuda às populações tradicionais, embora
com a expressiva omissão da necessidade de mecanismos destinados
à proteção de seu capital cultural.
Inicialmente, as ações eram localizadas. Os EUA pressionaram
o Japão a não dar recursos para o término da rodovia BR-364 que,
ligando Rio Branco a Pucalpa, no Peru, aceleraria a conexão com o
Pacífico; e o Japão, na ocasião, era o terceiro maior investidor no
Brasil. Por sua vez, os países europeus, particularmente França,
Alemanha e Inglaterra, reagiram tentando restringir a hegemonia
norte-americana.
Na medida em que a disputa entre as potências é aguçada, surgem

145
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

novas formas de tentar superar os conflitos entre si, de pressionar os


países periféricos e de assumir o controle da decisão sobre territórios,
ou seja, tentativas de chegar a um consenso. A mais explícita delas
são as convenções internacionais.

As Imposições da Agenda Internacional Ambiental

Agendas internacionais constituem um dos mais importantes


instrumentos de coerção no mundo contemporâneo. Elas definem o que
vai ou não ser discutido, excluindo várias questões de importância que
permanecem à margem da discussão. No caso do meio ambiente, trata-se
de estabelecer as regras de monitoramento global do ambiente do planeta
a partir de decisões dos governos em fóruns das Nações. A definição da
agenda das reuniões é, na verdade, estabelecida pelos países centrais e já
vem pronta, resultando numa imposição, forma velada de coerção.
Os três principais elementos da agenda internacional sobre o meio
ambiente se configuraram:

a) Aquecimento da atmosfera e efeito estufa. A agenda se modificou


de uma proposta de cooperação em pesquisas, medidas de controle, troca
de informações e transferência de tecnologia (Convenção de Viena, 1985),
para o compromisso de reduzir 50% da produção de CFC (cloro-flúor-
carbono) em um ano, (Protocolo de Montreal, 1987); e, posteriormente,
para a exigência de eliminação total da produção e de produtos que usam
o CFC (Conferência de Londres, 1989). Compreende-se porque o Brasil
não participou desses acordos e o porquê China, México e Índia declara-
ram não poder frear seu desenvolvimento para aplacar problemas gerados
pelos países centrais. Vários organismos de pesquisa sobre o clima global
foram criados, destacando-se o Painel Intergovernamental sobre Alterações
Climáticas (IPCC), com três grupos de trabalho, um dos quais dirigido

146
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

pelo assistente da Secretaria de Estado dos EUA. Um dos resultados desse


painel foi a criação de um verdadeiro mercado de emissão de carbono.

b) Meio ambiente e desenvolvimento. Esta foi a preocupação do


Relatório Brundtland (1983-87) denominado “Nosso Futuro Comum”,
elaborado a pedido do Secretário Geral das Nações Unidas por uma
comissão independente, cujas formulações seguem dois conceitos básicos:
desenvolvimento sustentável e um sistema econômico internacional mais
equilibrado.

c) Biodiversidade. A questão que se coloca é a da propriedade de


biodiversidade e de como atribuir valor às espécies animais e vegetais
retiradas da Amazônia.
A Conferência para o Ambiente Global e Resposta Humana para
o Desenvolvimento Sustentável (Tóquio, setembro de 1989), retomou
os três temas.
Essas manifestações tomaram corpo na Cúpula Mundial da Terra,
realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Oficialmente denominada Confe-
rência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(CNUMAD), contudo, mais conhecida por ECO-92, a CNUMAD foi
a conferência mais importante, no que diz respeito a tentativa de pro-
mover o desenvolvimento e conter a destruição do meio ambiente. Ela
foi promissora no sentido de efetivamente ter contado com a ação da
sociedade, governo e comunidade internacional e, sobretudo, por ter
conseguido impedir a ingerência internacional na Amazônia – o grande
tema subjacente à Conferência – graças a um extraordinário trabalho de
diplomacia brasileira (Becker, 1993).
Na ECO-92 foi aprovada, por consenso, a Agenda 21 – volu-
moso documento de 40 capítulos programáticos e mais de 300 páginas
– foram adotadas uma Declaração de Princípios Florestais, bem como a

147
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Convenção sobre Biodiversidade Biológica e a Convenção-Quadro sobre


Mudanças Climáticas. Como primeiro grande encontro global após a
Guerra Fria que reuniu a consciência e a geopolítica ecológicas, resultou
em alguns pontos positivos, tais como: o asseguramento da soberania dos
Estados sobre os recursos naturais, a associação da biodiversidade com
a biotecnologia na Convenção que criou uma base jurídica mínima para
a sua utilização e a desnaturalização da questão ambiental, humanizada
pelo reconhecimento da imperiosidade de nela serem consideradas os
problemas sociais.
Com a Agenda 21, referendou-se o conceito de desenvolvimento
sustentável, que passou a ser o marco de referência para a estratégia de
desenvolvimento em longo prazo.
Contudo, tais iniciativas promissoras não escaparam da desigualdade
do poder e do caráter de coerção que foram crescentemente assumindo no
contexto de mudança global liderada pelos EUA.
De acordo com Brundtland (1987), o desenvolvimento sustentável
(Brundtland, 1987) foi amplamente difundido, incorporado pela ONU
e demais organismos internacionais – do Banco Mundial à Unicef – e
com mais lentidão pelos governos. Porém, não é um conceito claro. Foi
endereçado, sobretudo, aos países periféricos como tentativa de conter
a expansão do padrão de consumo dos centros desenvolvidos em seus
territórios, interpretação que é corroborada pelas propostas de contenção
de seu crescimento demográfico e de alternativas de desenvolvimento
baseadas em práticas de pequena escala, capazes de fixar a população no
campo e, certamente, de impedir, a emigração para os países do Norte.
Na verdade, é uma proposta para regular o uso do território no Sul e,
como tal, um instrumento político. Ademais, não há um presente comum
e, muito mais difícil será alcançar um “futuro comum” no curto e médio
prazo (Becker, 1993).
Alguns Estados realizaram um esforço para elaborar uma Agenda
148
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

21, inclusive o Brasil, sem resultados significativos, tanto no plano interno


como externo. Enquanto essa agenda permanece etérea e de difícil
assimilação, as convenções se arrastam por infindáveis reuniões tornando
necessário em cada uma de suas respectivas reuniões ganhar verdadeiras
guerras contra pontos capciosos contidos nos complexos documentos
trazidos à consideração. Tal situação expressa dois processos em curso:

a) A falsidade do discurso do bem coletivo pela sustentabilidade,


na medida em que as convenções se transformam em fóruns globais de
regulação do mercado da natureza;

b) O interesse das potências em dominar esse mercado num


contexto de intenso esforço dos EUA pela unipolaridade.
Com efeito, na passagem para o terceiro milênio, acentua-se a lógica
da acumulação em detrimento da lógica civilizatória, com um crescente
processo de mercantilização de elementos da natureza. Em outras pala-
vras, o capital natural tende a deixar de ser reserva de valor, começando
a ser utilizado. Elementos da natureza são transformados em mercadorias
fictícias – fictícias porque não foram produzidas para venda no mercado
(Polanyi,1944). Através dessa ficção, geram-se mercados reais cuja regu-
lação é tentada através de acordos globais. (Becker, 2001).
O “mercado do ar” está intimamente relacionado à busca de nova
matriz energética. Ele se baseia na captura do carbono pela vegetação
e seu instrumento principal é o Protocolo de Quioto. A comercialização
de créditos de carbono em nível global é a forma proposta para as in-
dústrias dos países centrais compensarem suas emissões maciças - os
maiores emissores de dióxido de carbono (CO2) devido à combustão do
carvão e de derivados do petróleo que provocam efeito estufa - através
de investimentos na preservação e/ou replantio de florestas em países
periféricos para absorção do CO2.

149
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Segundo a Conferência de Quioto, os países centrais industrializados,


responsáveis históricos pela poluição, deveriam alcançar a meta de re-
dução de 5.2% do total de emissões segundo níveis de 1990. A questão
é o enorme custo desse processo, demandando mudanças radicais nas
indústrias para que se adaptem rapidamente aos limites de emissão
estabelecidos e adotem tecnologias energéticas limpas. A comercialização
internacional de créditos de seqüestro ou redução de gases causadores
do efeito estufa foi a solução encontrada para reduzir o custo global do
processo. Países ou empresas que conseguirem reduzir as emissões abaixo
de suas metas poderão vender este crédito para outro país ou empresa
que não conseguir.
Para os países periféricos, e para o Brasil em particular, o uso de
fontes de energia limpa, como a hidrelétrica, a solar ou a eólica, a de
biocombustíveis e a da biomassa vegetal, constituem grande potencial,
a que se soma a possibilidade de usar a absorção de CO2 na vegetação
para compensar a emissão de outros países. Assim, em vez de cortar
diretamente as próprias emissões, um país como os EUA que, sozinho,
emite 25% de carbono do mundo, pagaria sua cota de 7% através de
“créditos-carbono”. Além disso, investimentos florestais em países
periféricos são muito mais baratos. Por exemplo: custa cerca de 150
dólares para uma empresa como a BP-AMCO emitir menos uma tonelada
de carbono de uma sofisticada plataforma de petróleo no Mar do Norte;
quando ela poderia conseguir uma redução igual de carbono por 15
centavos em um projeto de reflorestamento na Bolívia.
Os conflitos embutidos na construção do “mercado do ar” são
intensos, ocorrendo entre as potências – quanto à redução do grau de
emissão e aos limites de compra de créditos – e entre os países centrais
e os periféricos – quanto à contabilização das emissões e a inserção ou
não das florestas primárias. Este debate verifica-se mesmo internamente
no Brasil.

150
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

O “mercado do ar”, centrado na troca de crédito de carbono, é o que


mais se concretizou. As opções mais aceitas para o seqüestro do carbono
são os projetos de plantio de florestas, vários já instalados no Brasil e
vinculados, sobretudo, a interesses de grandes corporações petrolíferas com
mediação do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
(BIRD) e do Estado francês, implementados por Ongs nacionais e/ou inter-
nacionais. Exemplos da implantação do mercado de ar na Amazônia são:
1) o replantio de florestas em 10.000 ha em Cotriguaçu, no Norte de Mato
Grosso, pela empresa francesa Peugeot, que atua com o Office National
des Forêts International e�������
a Ong Pró-Natura; 2) a empresa de energia in-
glesa AES Barry, sediada em Barry, no País de Gales, que testa um projeto
piloto em 60.000 ha na ilha do Bananal em Tocantins, em associação com
uma Ong, universidades brasileiras e estrangeiras e a Secretaria do Meio
Ambiente de Tocantins; 3) o financiamento, por parte do Prototype Carbon
Found (PCF), de um projeto de biomassa para gerar energia à empresa
Mil Madeireira, do Grupo Gethal, em Itacoatiara, visando o seqüestro de
carbono; 4) um estudo sobre a Linha de Base para seqüestro do carbono na
Amazônia está sendo implantado pela Ong Instituto Ecológica (Bananal,
TO), com financiamento dos Países Baixos.
Muitas outras iniciativas, embora não divulgadas e nem sempre na
escala de empresas, estão em curso na região. É o caso do aproveitamento
do potencial para projetos de seqüestro de carbono no âmbito do Programa
Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PP-G7), iniciativa
do Banco Mundial que, com seus próprios fundos, desenvolve um projeto
com esta finalidade para comunidades que estão trabalhando com Sistemas
Agro-Florestais (SAFs).
Vários outros projetos de seqüestro de carbono estão localizados
fora da Amazônia, como por exemplo: Central and South West Corporation
de Dallas, uma das maiores operadoras de energia nos EUA que, com a mediação
da Ong Nature Conservancy, comprou 7.000 ha da Reserva Serra do

151
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Itaquí, no Paraná, repassando o projeto para a Sociedade de Pesquisa em


Vida Selvagem e Educação Ambiental; o Fundo Protótipo de Carbono do
Banco Mundial que, associado à empresa Plantar, de Curvelo (MG), visa
produzir ferro gusa com carvão vegetal proveniente de florestas renováveis
certificadas em 23.000 ha; e o BIRD comprando parte dos créditos de carbo-
no e vendendo-os a empresas investidoras no Banco como a Mitsubishi,
Marubeni, Ontario Electric Power, BP-AMCO e Shell, entre outras.
Não há dúvida de que bons negócios poderiam ser implementados
com a mercantilização do ar. Contudo, há outra ordem de questões, a ser
considerada:

a) O
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risco social de transformar o ar em mercadoria fictícia, cujo
destino seria dirigido exclusivamente pelos mecanismos de mercado;

b) �O risco de privatização e internacionalização do território


nacional pela compra e/ou controle de grandes tratos de terra e, sobre-
tudo, pelo controle do uso do território no caso de inclusão das florestas
originais no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Já o “mercado da vida”, expresso na questão da biodiversidade, é


ainda mais complexo, pelo menos por duas razões. Primeiro, porque, à
diferença do ar, a diversidade da vida é também um fenômeno humano,
pois tem localização geográfica e formas de apropriação particulares,
o que a insere, necessariamente, no contexto das relações sociais. Essa
condição implica reconhecer que há diferentes projetos para a
biodiversidade, correspondentes à variedade de significados e de meios
disponíveis das sociedades, em diferentes escalas geográficas.
A segunda razão decorre da própria Convenção sobre Diversidade
Biológica. Por um lado, ela antes priorizou os riscos e as necessidades
de preservação da biodiversidade mundial do que a distribuição de seus

152
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

benefícios para os habitantes dos ecossistemas; por outro, na Cúpula da


Terra, os recursos biológicos foram declarados patrimônios nacionais,
afirmando-se o direito soberano dos Estados de explorar seus próprios
recursos. A afirmação desse direito, porém, não foi acompanhada do
devido esclarecimento sobre os direitos de propriedade.
Os investimentos de capital internacional, ainda incipientes, são
dominantes no mercado da vida na Amazônia. Grandes corporações e/ou
empresas lideram o mercado e os eco-negócios vinculados à biodiver-
sidade; entre estes, porém, multiplicam-se os pequenos projetos, muito
deles nascidos nos Projetos Demonstrativos (PDA), implantados pelo
PP-G7 com a cooperação internacional. As redes de parcerias são extre-
mamente complexas em todos os casos, fato que, associado à dispersão
dos projetos, resulta em grande dificuldade de obtenção de informação
sobre esse processo.
O PP-G7 e o Banco Mundial têm importante papel na origem dessas
iniciativas. Em 2000, o Banco elaborou um plano estratégico para
Envolvimento do Setor Privado, e iniciativas comunitárias que foram objeto
de um relatório em 2001. Tal plano baseou-se em várias experiências feitas
para promover negócios sustentáveis no âmbito do PP-G7.
Quanto ao mercado da vida, o mais expressivo projeto para uso da
biodiversidade foi o Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso
Sustentado da Biodiversidade (PROBEM), que resultou na construção do
Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus, ainda sem a
equipe de pesquisadores necessária para o seu funcionamento. No entanto,
enquanto nas altas esferas decisórias a indefinição perdura e nesse espaço
indefinido a biopirataria avança, emergem e se multiplicam iniciativas
visando usufruir negócios com o uso sustentável da natureza.
Por sua vez, o projeto Eco-Finanças foi lançado em setembro de
2000 pela Ong Amigos da Terra, numa inédita parceria com a Fundação
Getúlio Vargas de São Paulo, transformando o Brasil no 3º país do mundo
153
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

– após os EUA e a Holanda – a desenvolver um projeto que incorpora os


temas ambientais no mundo financeiro.
Para a sociedade amazônica e brasileira, a valorização dos recursos
genéticos exige regras de controle sobre seu acesso, que ainda estão em
discussão no Brasil. Exige também, a distribuição dos seus benefícios para
a população que com ela convive. Por enquanto, o acesso à biodiversidade
é livre, favorecendo a “biopirataria”, o que indica a necessidade urgente
da regulação desse mercado e do empenho em utilizá-la com tecnologias
avançadas. Para tanto, a união dos países amazônicos é essencial.
Por fim, quanto ao “mercado da água”, é ainda incipiente. Uma
multiplicidade de agências das Nações Unidas, financiamentos do Banco
Mundial e Comissões que visam coordenar ações não têm conseguido
resultados. Sua valorização reside na ameaça de escassez decorrente do
forte crescimento do consumo, a tal ponto que é considerada como o “ouro
azul”, capaz de, à semelhança do petróleo no século XX, instigar guerras
no século XXI.
Ao crescimento demográfico se imputa a causa da catástrofe prevista.
Na verdade, existem efetivamente regiões áridas. Porém, mas o maior
problema não é o crescimento demográfico, mas sim a gestão do recurso,
de modo a estender os serviços de abastecimento e esgotamento sanitário
às grandes massas que deles não usufruem. Ademais, as previsões apoca-
lípticas e seus argumentos não se aplicam de forma alguma à Amazônia,
que detém grande percentual da água doce do planeta e baixo consumo.
É claro que uma melhor gestão contra o desperdício é fundamental para
todos. Mas há que se ter em mente as condições diversificadas do planeta,
para evitar imposições globais que não atendam aos interesses nacionais
e regionais.
O Brasil tem conseguido enfrentar muito bem as imposições das
agendas internacionais:

154
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

- No
�� Protocolo de Quioto, propôs o Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) em substituição à proposta do Presidente Clinton de
“voluntary agreement”; ou seja, a adesão voluntária dos países periféricos
ao Protocolo, proposta inconcebível para o seu necessário crescimento;

- Na
�� Convenção sobre Diversidade Biológica, conseguiu reverter
a tentativa de transformar a Amazônia em Patrimônio da Humanidade,
proposta feita pela Unesco, mediante a aceitação da biodiversidade como
insumo industrial para a biotecnologia; no início da Convenção conseguiu
rejeitar a proposta de ampliar em 10% a área protegida da Amazônia;
contribuiu para amenizar a concepção preservacionista da Convenção, a ela
se agregando o desenvolvimento sustentável e a repartição dos benefícios
do uso da biodiversidade pelas populações locais.

A agressividade recente dos EUA afetou esse quadro, esvaziando


a carteira da ONU, do Global Environmental Fund (GEF) e o próprio
uso sustentável dos recursos, fortalecendo a feição preservacionista do
meio ambiente. É assim que a proposta de ampliação da Área Protegida
da Amazônia, sustentada pela WWF e pelo Banco Mundial, retornou
e foi aceita na Convenção sobre Diversidade Biológica, já estando em
implantação no Brasil como Projeto ARPA. Significa a ampliação dos re-
cortes territoriais imobilizados na região, pois só a muito custo o Governo
brasileiro conseguiu introduzir no Projeto uma pequena extensão de Áreas
Protegidas de Uso Direto – 90.000 km2 – enquanto áreas preservadas
novas correspondem a 285.000 km2 e 125.000 km2 serão acrescidas às
já existentes.
Revela-se o duplo jogo realizado pelos EUA para controle do uso do
território do planeta. Por um lado, recusa-se a assinar o Protocolo de Quioto
para sustentar sua base energética, intimamente associada aos investimentos
nos sumidouros de carbono por suas empresas e financiamentos do Banco

155
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Mundial. Por outro lado, pressiona pela preservação de estoques de


natureza, garantindo reservas de valor em biodiversidade e em água.
É importante registrar que a década de 1990 se caracterizou por
megaconferências mundiais da ONU que trataram de alguns dos
principais problemas econômicos, sociais e ambientais contemporâneos,
procurando um consenso internacional para enfrentá-los, problemas que,
embora tratados de modo dissociado, têm íntima relação com o meio
ambiente. Destaca-se, entre elas, a realizada em Monterrey, México,
em março de 2002 – a Conferência Internacional sobre Financiamento
para o Desenvolvimento – que marcou uma extrema aproximação entre
a ONU, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Realizada às vésperas da Cúpula da Terra de 2002, em Johanesburgo,
e anunciando o aumento da ajuda norte-americana a ser incluída gra-
dativamente nos orçamentos vindouros dos EUA, cuja eficácia para os
países mais pobres é discutível, a Conferência de Monterrey desviou o
foco da preocupação ambiental.
Pressões das potências, sobretudo dos EUA, sob documentos
complexos e conferências repetitivas que não ofereceram solução dos
problemas, a multiplicidade de acordos bilaterais sobre os mais diversos
temas, configuraram-se como verdadeiras estratégias nas megaconferên-
cias da ONU, e resultaram no fracasso da Cúpula da Terra de Johanes-
burgo. Ao que tudo indica, o movimento pela sustentabilidade parece
ter regredido, e mesmo sua retórica, em face do subjacente processo de
mercantilização da natureza.
Cresce assim, a consciência quanto ao absurdo de promover o
desenvolvimento com retórica ou até com algum financiamento e, ao
mesmo tempo, levantar barreiras contra a importação de bens que os
países periféricos e emergentes conseguem produzir com mais eficiência.
Em lugar de obter numa cúpula o compromisso de todos os governos
de “fomentar o comércio internacional como motor de desenvolvimento

156
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

(parágrafo 4 da Declaração Final de Monterrey)”, não seria mais rele-


vante na luta contra a pobreza reforçar a própria Organização Mundial
do Comércio contra o assalto dos protecionistas que alimentam boa parte
do movimento antiglobalização? (Hoffmann, 2002)
Enfim, as convenções são tentativas de implementar formas de
governabilidade global sobre o ambiente planetário mediante o estabe-
lecimento de regimes globais, sistemas de “normas e regras específicas
por um instrumento multilateral legal entre Estados para regular ações
nacionais numa dada questão”. (Porter e Brown, 1991).
Um balanço da problemática revela que a Amazônia tem servido de
laboratório para o desenvolvimento de outros Estados, pois os custos
da conservação são nacionais enquanto os benefícios são para todos.
De nada adianta tentar controlar a biopirataria, se não podemos saber
com certeza se o que foi tirado é mesmo do país. Os avanços na
pesquisa e na biotecnologia são cruciais para assegurar os benefícios da
riqueza do patrimônio natural para o país. As estratégias para tanto
são: agregar valor e comercializar os produtos regionais, fortalecer o
Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) em Manaus – que deveria
ser mais flexível, como uma organização social de direito público e
operação privada – e estimular iniciativas como a do Instituto Genius,
implantado pela parceria Gradiente/Nokia, que não só inova na tecno-
logia como ministra aulas na Universidade.

A Convenção Sobre Comunidades Indígenas

Se a soberania do Estado persiste, entende-se a coexistêntia


das Forças Armadas com a presença das comunidades indígenas nas
fronteiras internacionais no contexto da interdependência global.
Quando a mesma etnia encontra-se nos dois lados da fronteira,

157
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

essa situação poderia, em longo prazo, justificar uma interferência


internacional para declarar uma “zona neutra”, relativizando a
soberania dos Estados fronteiriços. As vivificações das fronteiras,
no sentido de demarcação física ficam pouco caracterizadas nesses
casos, sendo necessário ter bem caracterizado os elementos nacionais
de ambos os lados. A essa preocupação se soma a da presença das
Ongs e sua influência política.
Por outro lado, há uma crescente conscientização mundial e
nacional quanto à necessidade de reconhecer os direitos de povos
indígenas e tribais e seu rico patrimônio cultural. Certamente, há
também interesses geopolíticos em utilizar essa consciência como
forma de limitar a soberania dos Estados.
Um esforço positivo vem sendo feito para aproximação e
diálogo entre as Forças Armadas e os índios. Em 2001, na Conferência
Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa, realizada em Durban, na
África do Sul, a Convenção no 169 de 1989, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em países inde-
pendentes, foi aprovada e o Brasil ratificou a convenção através do
Decreto Legislativo no 143/02. Na ocasião, o Instituto Socioambiental
(ISA) apresentou um código de conduta entre índios e militares
que se transformou em uma medida governamental formalizada no
documento oficial da delegação brasileira (ISA, 2004).
A polêmica se reacendeu com a assinatura do Decreto n° 4.412
pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002,
dispondo sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia
Federal em terras indígenas, incluindo liberdade de trânsito e
acesso, instalação e manutenção de unidades militares e policiais,
equipamentos de fiscalização, implantação de programas, projetos
de controle e proteção da fronteira. Instituições governamentais

158
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

declararam a inconstitucionalidade do Decreto e as organizações


indígenas reagiram através de múltiplos documentos.
As principais críticas ao Decreto residem no fato de ele ter
contrariado os termos da convenção da OIT, não realizando consulta
prévia aos povos indígenas envolvidos e não estabelecendo regras
de convívio entre militares e índios. Cabe aqui chamar a atenção
para a diferenciação existente no grupo indígena. As reações foram,
sobretudo, dos grupos mais organizados, situados na Fronteira Norte
e dentro deles há também diferenciações. Enquanto a Federação
das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) enfatiza a
necessidade de definir regras de convivência entre militares e índios,
apresentando várias sugestões úteis, o Conselho Indígena de Roraima
(CIR) é bem mais agressivo, reclama contra a criação dos Municípios
de Pacaraima e Uiramutã em Terra Indígena (TI) reconhecida, a
invasão de rizicultores em 1994 após a identificação da área, a sobre-
posição de Unidades de Conservação (UCs) em TI com forte crítica
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) no sentido de proibir as atividades tradicionais
dos índios como no Parque Nacional Monte Roraima e de favorecer
outros atores, realizando assim, uma denúncia à Organização dos
Estados Americanos (OEA) por fatos ocorridos há anos.
O avanço, no sentido de retornar o diálogo, prosseguiu e a
Portaria nº 20 de 02/04/03, do Ministério da Defesa, foi uma grande
abertura do Exército na definição de novas diretrizes de relacionamento
com os índios, pois atacou uma série de sugestões apresentadas pela
FOIRN e se tornou uma grande esperança para avançar na solução
dos conflitos.
Algumas considerações podem ser feitas quanto à questão. É,
sem dúvida, necessária a presença das Forças Armadas e da Polícia
Federal nas fronteiras e na TI a fim de garantir a soberania e a
159
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Segurança Nacional e os índios têm o privilégio de verem suas terras


demarcadas. Mas as reivindicações indígenas, em sua maioria, são
bastante aceitáveis, não cogitam constituir um Estado autônomo,
nem tem possibilidade para tanto, pois dependem da proteção do
Estado brasileiro para sobreviver, e sua representatividade é muito
relativa e não aceita por todos. O avanço no diálogo é, portanto, o
caminho certo.
Algumas considerações podem ser feitas considerando o novo
contexto mundial:

a) A
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vivificação das fronteiras hoje não pode ser vista como
mera implantação de barreiras físicas. Sabe-se que, as fronteiras
são faixas de interação entre Estados e nacionalidades distintas,
à borda do espaço nacional consolidado, e assim orientadas para
fora, enquanto os limites são um fator de separação de unidades
políticas soberanas. Hoje, contudo, os limites se fluidificam através
de múltiplas redes transfronteiras, redes lícitas, ilícitas e informais,
que podem alcançar grandes extensões além do território nacional,
embora nele se originando. As comunidades indígenas de mesma
etnia nas fronteiras de países vizinhos constituem importantes redes
de parentesco e de trocas informais que vivificam as fronteiras;

b) A
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presença de uma só etnia em ambos os lados de
fronteira pode significar importante componente na integração da
Amazônia Sul-americana, mormente tendo em vista a ampliação do
Mercosul como contraponto à Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA);

c) ���������������������������������������������������������������
Cabe ao Estado fortalecer sua presença na fronteira, sobretudo
ampliando a proteção aos índios, em termos de serviços que necessitam,

160
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

e considerando a diversidade dos grupos e respectivas demandas;

d) ���������������������������������������������������
O Estado conta agora com poderoso instrumento cujo
uso deve ser intensificado – o Sistema de Vigilância da Amazônia
(Sivam) – que permite uma fiscalização ampla à distância; ele vem
treinando os funcionários dos postos da Fundação Nacional do Índio
(Funai), e pode também ser utilizado no diálogo diretamente com
os índios;

A situação de regulação e controle das Terras Indígenas é


bastante indefinida, sobretudo na Amazônia, para o que contribui
a superposição da malha administrativa, das áreas protegidas e da
Faixa de Fronteira, todas elas oficiais. A definição da regulamentação
da Faixa de Fronteira pode ser importante instrumento de superação
de superposições e conflitos.

2. Restrições Aceitas de Preservação do


Meio Ambiente e da Biodiversidade

Restrições aceitas são ações externas capazes de influenciar


assuntos internos de um Estado soberano, correspondendo aos mais
baixos níveis de coerção, na medida em que deixam maior espaço
para a tomada de decisões por parte do Estado soberano. Discursos,
veiculação de opiniões e ajuda econômica podem ser consideradas
formas de coerção que, dependendo de sua capacidade de influir,
passam a ser aceitas pelo Estado soberano (Nye Jr., 1997).
Os conflitos assinalados geraram um processo de politização
da questão ambiental (Becker, 1997; Le Prestre, 2000), revelando
que, na prática, o meio ambiente não é só objeto, é também um

161
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

instrumento das ações políticas. De acordo com o Dicionário de


Política, a politização da questão ambiental se dá por dois fatores:
a irreversibilidade dos fenômenos, isto é, um ponto de não retorno,
situação da qual é impossível sair simplesmente retrocedendo nos
passos que a constituíram; e a diferenciação entre quem decide e
quem é afetado pelas decisões que deixam de ser regidas por
questões de ordem tecno-econômica e são transportadas para a esfera
da disputa de forças, ou seja, da política (cf Conti, 1986, apud Tilio
Neto, 2003).
A intervenção como direito faz surgir a noção de ingerência,
fundamentada na opinião pública internacional. Em outras palavras,
a ingerência é uma necessidade de cooperação internacional baseada
no direito da humanidade à sobrevivência e não ameaça a soberania
no sentido de destruí-la, mas de reordená-la em face das novas exi-
gências. A ingerência intervém na redução dos os efeitos perversos
de um emprego abusivo de soberania estatal, a mais importante sendo
a ecológica, pois que se refere à manutenção da vida no planeta e é
urgente (Bachelet, 1995).
Este processo é patente na Amazônia, onde a intensa
veiculação de opiniões pela mídia internacional e ajuda econômica
influenciaram uma profunda mudança na política regional a partir
de meados da década de 1980. A variável ambiental – entendida
como recursos naturais, patrimônio natural e cultural, conhecimento
e práticas sociais – foi definitivamente incluída no discurso e na
elaboração da política regional. Este processo resultou em novos
modos de posse e uso do território, recortes específicos na região.
Dada a intensidade dessas formas de coerção, estas não
podem ser tratadas isoladamente dos atores e instrumentos de
ajuda econômica que as sustentam, pois são eles que lhes atribuem
poder.

162
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Discursos e Opiniões: Tentativas de Ingerência

Difundidos pela mídia internacionalmente, discursos e opiniões


causam forte impacto embasando uma ameaça de ingerência, ao
colocar o Brasil como vilão ambiental e questionar sua capacidade
de manter uma Amazônia sustentável. A tentativa de criar uma soberania
compartilhada na Amazônia, ou mesmo uma soberania global, é o
cerne dessa pressão, tal como será visto em algumas propostas a
seguir (Mendes, 2001):

• “Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar


suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus
territórios e suas fábricas”. (Margareth Tatcher, Primeira-
Ministra britânica, 1983).
• “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia
não é deles, mas de todos nós”. (Al Gore, Senador e hoje
Vice-Presidente dos Estados Unidos, 1989).
• “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a
Amazônia”. (François Mitterrand, Presidente da França,
1989).
• “O Brasil deve delegar parte dos seus direitos sobre a
Amazônia aos organismos internacionais competentes”.
(Mikhail Gorbatchev, Presidente da então União Soviética,
1992).
• “A Amazônia é um patrimônio da humanidade. A posse
dessa imensa área pelos países (amazônicos) é meramente
circunstancial”. (Conselho Mundial de Igrejas Cristãs,
Genebra, 1992).

O Brasil conseguiu impedir a realização dessas propostas,

163
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

que se esvaneceram, mas deixaram como resultado influência na


opinião pública e recortes territoriais na região como reservas da
Biosfera, implicando uma restrição ao seu uso.
Mais recentemente, se firmou o discurso – e mais do que isso,
também ações nos países vizinhos – do combate às drogas, “War
on Drugs”. A resposta brasileira à ingerência ambiental e militar,
se fez, sobretudo, através de instrumentos poderosos, os projetos
Sistema de Proteção da Amazônia/Sistema de Vigilância da Ama-
zônia (Sipam/Sivam) que, em nome da proteção ao meio ambiente,
constituiu-se de fato, como sinalização da capacidade do Estado em
controlar e manter seu território.
Finalmente, a preocupação com os Direitos Humanos trouxe
à tona com vigor a questão dos grupos indígenas, que se incorporou
à questão ambiental na opinião e no discurso em âmbito mundial.
Pressões nacionais, e principalmente internacionais, oficiais
ou não de discursos e opiniões se intensificaram em meados da
década de 1980 com as imagens das queimadas na Amazônia que
causaram impacto maior do que outros desastres ambientais contem-
porâneos. O ano de 1989, por sua vez, foi um marco na acentuação
das pressões, em decorrência da repercussão mundial do assassinato
do seringueiro e líder sindicalista Chico Mendes, em dezembro de
1988, que acrescentou uma dimensão social ao debate em torno do
desmatamento na região. Este fato deu visibilidade à luta política
de outros segmentos sociais, não só os seringueiros como também
os povos indígenas, que sobrevivem do uso dos recursos naturais
renováveis e necessitavam defender seus territórios tradicionais
ameaçados pelo avanço de pecuaristas e madeireiros.
Desde então, conservação ambiental e sobrevivência da
cultura indígena tornaram-se indissociáveis. A reivindicação de
seus territórios por seringueiros e índios foi recontextualizada à luz
164
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

da preocupação mundial em torno da conservação ambiental, que


apoiou novos focos de legitimação do poder no interior do território
nacional.
Caberia ainda aqui menção a outras pressões provenientes de
supostas articulações para internacionalizar a Amazônia. São exemplos:
a circulação do mapa que retira a Amazônia e o Pantanal do território
e da soberania nacionais, e as elocubrações da Trilateral.

Restrições Aceitas Através da Ajuda Econômica

Os bancos multilaterais exercem papel fundamental nas


restrições aceitas de preservação do meio ambiente e da biodiversidade.
Contudo, a liderança nesse processo é do Banco Mundial.
De início, o Banco Mundial e o Banco Internacional de
Desenvolvimento, que financiaram os grandes projetos na região,
deram uma guinada nos rumos da política de financiamento. O
Banco Mundial foi a primeira instituição internacional a estabelecer
políticas explícitas com respeito às limitações de riscos ambientais
nos projetos que financia. A partir de 1987, planejou a criação de
um Departamento do Meio Ambiente, a obtenção de recursos para
efetuar estudos do meio ambiente e decidiu dobrar os fundos que
destina a projetos florestais “bem concebidos” do ponto de vista
ambiental.
A disposição de incrementar os financiamentos para pesquisas
na Amazônia veio, contudo, acompanhada de restrições à liberação
dos financiamentos no caso de agressão ambiental, como o da BR-364
(recusando um empréstimo de US$ 150 milhões).
Caminharam nessa direção os projetos de conversão de dívida
externa por natureza, significando a compra de títulos da dívida por

165
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

cerca de 30 % de seu valor e o pagamento investido na proteção


ambiental, como feito na Bolívia e na Costa Rica. Significa cancelar
parte da dívida externa colocando uma parte do território nacional
fora do circuito produtivo. A pressão se institucionalizou através da
ajuda econômica.
Também em resposta a pressões externas e internas, o Brasil
tomou uma série de medidas institucionais que se sucederam rapi-
damente, culminando com a criação do Ibama (1989), do Ministério
do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, e com a aceitação de dois
programas de ajuda econômica que constituíram um marco na política
de preservação do meio ambiente e da biodiversidade.
Em ambos, foi patente a liderança do Banco Mundial (BIRD).
O Programa Nacional de Meio Ambiente (PNMA, 1990/91), recebeu
US$ 17 milhões como empréstimo do Banco Mundial para execução
de ações que conduzissem à melhor gestão ambiental. A influência
do PNMA tornou-se extremamente significativa na medida em que
permitiu a contratação de grande número de técnicos, particularmente
no Ministério do Meio Ambiente (MMA), que fortaleceram concepções
e ações voltadas para a preservação ambiental.
Mas é o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais
Brasileiras (PP-G7) é o mais importante instrumento na restrição
aceita de preservação ambiental. Expressa uma forma de pressão
pela união das potências, que não os acordos internacionais, mas
sim através de programas multilaterais de ajuda econômica. Trata-se de
alianças temporárias para atuar em espaços e questões específicas,
situadas nas interfaces de interesses das potências, as “shifting
coalitions” no plano estratégico-militar. A face civil dessa aliança é
a cooperação internacional, cujo melhor exemplo na área ambiental
é o PP-G7.
O PP-G7 foi negociado em Genebra em 1991 e formalmente
166
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

lançado em 1992. Passou a ser operacionalizado em 1994. Inicialmente


foi financiado pela União Européia (UE), Canadá, França, Alemanha,
Itália, Japão, Estados Unidos e Reino Unido e administrado pelo
Banco Mundial, com investimentos previstos de US$ 250 milhões,
pelos países doadores e pela contrapartida brasileira. É o maior
programa ambiental implementado em um só país. Constitui um
instrumento de desregulação patente nos objetivos de preservação
dos recursos genéticos e contenção do desmatamento, bem como na
ênfase que atribui à participação das Ongs como contraponto para
controle da aplicação do programa. Todos os projetos do PP-G7 se
materializam no território segundo um modelo endógeno, ie, voltado
para a população local, com aproveitamento de recursos locais.
O maior contribuinte do PP-G7 é a Alemanha, com quase
50% do total, seguida da União Européia (UE), do próprio Brasil
– como contrapartida – e da Inglaterra. Na virada do milênio, novas
promessas de doação foram efetuadas. Em 1998, o total despendido
foi de US$ 55.8 milhões, não levando em consideração os aportes do
Rain Forest Trust Fund (RFTF). Contando com os novos recursos
comprometidos e com os do RFTF, o total em 2003 ascendia a US$ 409.54
milhões, de acordo com o Relatório Financeiro do Banco Mundial
de 2003. Ainda segundo o Banco, os devedores contribuíram ou se
comprometeram firmemente com essas doações, correspondendo
a um aumento de 38% em relação à proposta original e o Brasil
também ampliou sua participação. Mas o crescimento dos recursos
se deve em grande parte a ganhos de juros e ao câmbio, graças à
valorização do euro em relação ao dólar. A Tabela 1 demonstra o
crescimento no volume de recursos e a participação dos Estados
no total.

167
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Tabela 1: Crescimento no volume de recursos e a participação dos Estados


Para Projetos
Para o Rain Para Projetos Comprometidos Total
Forest Trust Contratados ou Indicados
Fonte US$ Milhões
Alemanha 19.35 126.83 65.09 211.27
União Européia 14.05 46.87 8.05 68.97
Reino Unido 2.32 25.07 0.00 27.39
EUA 6.25 3.95 5.10 15.30
Holanda 4.88 3.25 - 8.14
Japão 6.80 0.45 - 7.25
Itália 3.85 0.00 - 3.85
França - 1.44 - 1.44
Canadá 0.74 - - 0.74
Brasil - Governo - 30.38 9.61 39.99
Brasil - Comunidades - 11.50 13.70 25.20

Total 58.25 249.74 101.55 409.54


Dos quais - externos 58.25 207.86 78.24 344.35
Dos quais - brasileiros - 41.88 23.31 65.19
Fonte: PP-G7 Financial Report 2003 – World Bank

De fato, o desembolso para os projetos vem gradativamente


decrescendo desde 1997 e, sobretudo, em 2000. Em 2003, representou
menos da metade do total de recursos. Grande parte dos recursos perma-
necem sem investimento e/ou gastos com a própria estrutura burocrática
do Banco Mundial referente ao PP-G7. O Banco calcula que gastos
diversos, que não em projetos, somaram US$ 28.7 milhões em 2003.
Um outro aspecto a considerar quanto ao PP-G7, é a estratégia
em favorecer os projetos associados aos recursos naturais (política
e pesquisa) e projetos de apoio a segmentos sociais historicamente

168
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

excluídos no processo de ocupação regional, mediante doação seletiva


para os projetos.
A Tabela 2 demonstra a queda nos desembolsos para projetos
provenientes de fontes externas e a prioridade por elas atribuída: política
de recursos naturais, projetos demonstrativos (PDA), centros de ciência
e pesquisa dirigida, e terras e projetos indígenas.

Tabela 2 – Desembolso para Projetos – Fontes Externas


Projeto 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Total
Projetos Demostrativos 2.20 3.70 5.40 3.4 4.10 2.70 3.60 1.30 1.30 27.70
Corretores Ecológicos 0.20 0.20 0.40
Reservas Extrativistas 0.60 3.3 2.60 2.00 0.20 0.40 0.20 0.20 10.00
Prevenção do Fogo 1 0.60 0.40 1.00
Prevenção do Fogo 2 0.20 0.40 0.30 0.9
Gestão da Várzea 0.10 0.20 0.60 0.20 1.0
Gestão dos Recursos 1.00 0.60 1.80 1.60 1.30 6.30
Florestais

Terras Indígenas 0.90 5.00 0.20 1.90 0.50 0.80 0.80 0.80 11.10
Projeto Demonstrativo 0.10 0.40 0.50
em Terras Indígenas
Monitoramento e 0.40 0.20 0.60
Análise
Política de Recursos 1.00 3.10 2.70 6.80 5.40 7.70 3.80 4.10 1.80 36.60
Naturais
Coordenação pelo 0.60 0.20 0.80
Governo Brasileiro
Centros de CI e 1.60 4.60 7.10 2.70 2.60 1.50 0.00 0.90 0.30 21.20
Pesquisa Dirigida
Apoio ao GTA 1 0.20 0.20
Apoio ao GTA 2 0.10 0.40 0.50
Apoio à Rede Mata 0.10 0.10 0.10 0.30
Atlântica
Apoio a Negócios 0.50 0.50
Sustentáveis

Total 5.40 15.80 22.80 15.70 15.60 14.40 11.40 10.90 7.10 119.60
Fonte: PP-G7 Financial report 2003 – World Bank

169
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Novas tendências se configuram no PP-G7 que, segundo propostas


para sua segunda fase, seria denominado Programa Brasileiro de Proteção e
Uso Sustentável das Florestas Tropicais, desvelando a insistência do Banco
em passar a responsabilidade (ownership) do Programa para o Brasil e a sua
crescente intenção de se desligar, retornando às suas funções como banco,
bem coerente com o processo de mercantilização da natureza.
Em suma, trata-se de uma coalizão temporária entre potências que
gerou uma parceria com o Governo brasileiro, gerida pelo Banco Mundial,
com forte poder de decisão sobre o uso do território.

Restrições Aceitas ao Uso do Território

Discursos, opiniões e ajuda econômica se expressaram em restrições,


de fato, à decisão sobre o uso do território sob duas formas: a) novos recortes
territoriais correspondentes a multiplicações de vários tipos de áreas prote-
gidas; b) reativação e defesa das fronteiras internacionais pela presença de
grandes extensões de áreas protegidas. Nesses processos, fortaleceram-se a
presença de novos atores, tanto as populações tradicionais quanto as Ongs.
a) Os novos recortes territoriais significam, por um lado, proteção da
natureza, da biodiversidade e das populações tradicionais; por outro, retiram
extensas parcelas do território do circuito produtivo nacional e restringem a
plena decisão do Estado brasileiro sobre o uso do território.
Em nível territorial, as restrições associadas às ações ambientalistas
orientam-se para um modelo endógeno, que visa a preservação ou o uso dos
recursos naturais pelas populações locais. A origem dessa tendência reside
em movimentos sociais, mas foi o PP-G7 que se transformou no grande in-
dutor dos projetos endógenos através de uma estratégia descentralizada que
envolve as principais reivindicações sociais. E, finalmente, a tendência foi
institucionalizada na política do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

170
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Dentre as formas endógenas destacam-se as Áreas Protegidas,


constituídas por Terras Indígenas e Unidades de Conservação, bem como os
projetos comunitários alternativos.
Áreas indígenas só adquirem expressão efetiva e explicitamente
territorial após sua delimitação e demarcação. Elas se caracterizam, em termos
geográficos, como recortes que representam uma categoria jurídica de organi-
zação do espaço definida pelo Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 10/12/1973).
O Estatuto do Índio está defasado em relação às normas constitucionais, uma
nova versão encontra-se em processo de tramitação no Congresso Nacional.
Muitas vezes os recortes são delimitados por coordenadas geográficas, linhas
virtuais, dificultando a identificação de seus limites pelas comunidades autóc-
tones, favorecendo as invasões de grupos econômicos e os conflitos.
As comunidades indígenas estão organizadas em 44 associações sob
coordenação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB). O Governo brasileiro começou a aceitar essa premissa
a partir da possibilidade de financiamento externo para ações de proteção ao
meio ambiente na Amazônia, implicando a demarcação e a homologação
de muitas e extensas áreas indígenas. Delineou-se, assim, progressivamente
uma nova política indigenista.
Hoje, as populações indígenas constituem, atores fundamentais no
cenário político regional, tendo aumentado progressivamente sua população,
sua autonomia e seu poder de barganha frente ao Estado e aos grupos econô-
micos, graças à sua organização, à Funai e ao apoio financeiro e técnico de
Ongs e de instituições estrangeiras, sobretudo o KFW e a GTZ alemãs.
Em 1992, 57.5% da extensão total das terras indígenas estavam
demarcadas, 23.4% delimitadas e 19% ainda em fase de identificação (CEDI,
segundo ISA, 1996). O reconhecimento das áreas indígenas teve então grande
impulso. O Governo tomou medidas significativas para assegurar o direito
de posse da terra às populações indígenas. Entre 1995 e dezembro de 1998
a Administração Cardoso reconheceu 58 Reservas Indígenas em cerca de 26
171
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

milhões de ha e demarcou 115 Reservas, representando uma área de mais


de 311.000 km2. Em dezembro de 1998, o Ministério da Justiça assinou a
demarcação oficial de 22 Reservas Indígenas e reconheceu oficialmente os
limites de outras 13, principalmente através de financiamentos do PP-G7. Cer-
ca de 73 das Reservas Indígenas do País estão agora totalmente demarcadas,
representando 78% da área total de reservas nacionais (Tabela 3).

Tabela 3 - Terras Indígenas em julho de 1999.


Situação Estágio Número Área (km2) % da área em
relação ao total
Demarcadas Registradas 300 721.943,09 74,24
Ratificadas 31 34.929,08 3,59
Demarcadas 21 2.921,19 0,30
Subtotal 352 759.753,36 78,13

Em Demarcação Delimitadas 41 174.948,54 17,99


Identificadas 23 37.708,11 3,88
Subtotal 64 212.656,65 21,87

A serem A serem 145 0 0,00


demarcadas identificadas

Subtotal 145 0 0,00


Total 561 972.450,01 100
Fonte: Funai/DAF – Diretoria de Assuntos Fundiários, julho de 1999.

A política governamental tenta, assim, solucionar um impasse que


divide a sociedade brasileira e gerar um potencial de parceria com essas
populações, até então não aproveitado, por falta de um diálogo e de uma negociação
adequada. Novos desafios foram também gerados.Houve então dificuldades na
demarcação das terras: a invasão por grandes proprietários, madeireiras – sobretudo
à procura das reservas de mogno de alto valor – prospectores de minerais,
posseiros, assim como o setor público, para construção de estradas,

172
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

hidrelétricas e criação de novos Municípios; conflitos de terra com os governos


estaduais, como ainda é o caso da Raposa Serra do Sol em Roraima e,
sobretudo, a questão secular do grau de autonomia das comunidades indígenas
considerado aceitável para não afrontar a soberania nacional.
As Unidades de Conservação são áreas geográficas delimitadas com
a finalidade estrita de conservação ou preservação para fins científicos,
culturais e recreativos, definidos por dispositivos legais para guardar e proteger
amostras significativas dos diferentes ecossistemas do país (Ibama, 1991).
Relações estreitas com a União, através da Funai e do Ibama, são
traços comuns às áreas protegidas. Dentre as UCs destacam-se a criação
das Reservas Extrativistas (Resex) – fruto da luta dos seringueiros por sua
sobrevivência na floresta, contra a expansão dos fazendeiros de gado – e os
projetos de colonização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra). Apoiado inicialmente pela Igreja Católica, e posteriormente
pelos sindicatos rurais, o projeto foi incorporado pelo PP-G7 em quatro Resex
amazônicas e hoje conta com uma variada rede de parceiros internacionais.
Em 1994, o Governo criou nove Resex, sendo oito na Amazônia e uma em
Santa Catarina. Atualmente existem 18 Resex na Amazônia.
Assim como a demarcação de terras indígenas, o modelo das Resex é
igualmente um marco histórico: a concessão de terras pelo Governo federal às
populações caboclas, num país historicamente marcado pelo latifúndio. Um
modelo original de gestão, baseado na estreita relação sociedade-Estado, foi
também concebido para a Resex. Combina o poder da União como proprietária
da terra e responsável pela Resex, com o poder da comunidade através das
associações de moradores, que são responsáveis pelos contratos de uso, e o
dos grupos de famílias, encarregados da gestão econômica e dos recursos.
Certamente este modelo é um dos experimentos que mais preserva a biodiversidade,
embora o extrativismo seja uma fraca base econômica para a sustentação da
população. Hoje, intensifica-se o movimento para agregar valor à extração da
seringa, castanha, frutos, e mesmo da madeira através do manejo florestal.
173
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Há também iniciativas conservacionistas que não partiram da base.


Um exemplo de experimento que se realiza diretamente a partir de interesses
científicos e preservacionistas é o Projeto Mamirauá, localizado na Várzea do
Médio Vale do Solimões. Trata-se de uma área com extraordinária riqueza
em águas, cujo entorno ocorre a maior reserva mundial de floresta inundada,
habitat de muitas espécies raras. O objetivo central do projeto é a pesquisa
científica das espécies endêmicas da fauna, raras e ameaçadas de extinção.
Além de criar uma extensa Unidade de Conservação (UC) com Estação
Ecológica (ESEC), uma Ong – a Sociedade Civil Mamirauá – flexibiliza
a administração. Cientistas, Ongs e agências internacionais dão suporte
técnico e financeiro, participando ativamente do planejamento e da pesquisa.
A humanização do experimento, incorporando os 4.650 habitantes locais
– numa área de 11.240 km2 – necessária para o conhecimento do território e
da vida local, contrapôs-se ao conceito de ESEC, gerando uma nova categoria
de UC, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Mamirauá, que hoje
também é uma unidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq).
Uma audaciosa proposta de UC (1996) concebida “de cima” foi a dos
Corredores de Conservação ou Ecológicos, que corresponde a uma revolução
no planejamento em conservação. Ao invés de ilhas de conservação,
estabelecem-se estruturas em rede, agregando às ilhas suas zonas-tampão bem
como outras áreas sob graus variados de utilização humana, e considerando
as inter-relações entre o mosaico de áreas protegidas. Trata-se de grandes
extensões de ecossistemas florestais biologicamente prioritários em números
de cinco para a Amazônia, cada um deles com áreas muito superior a de vários
países europeus. Por enquanto, a proposta ainda não foi aprovada e, ao que
tudo indica, se reduzirá ao Corredor Central (a noroeste de Manaus).
Em 2002, consolidou-se o compromisso assumido pelo Governo
brasileiro em 1998 de proteger pelo menos 10% das florestas amazônicas, em
resposta à iniciativa mundial “Florestas para a Vida” da Rede World Wildlife

174
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Fund (WWF). Durante a Rio + 10, na África do Sul, foi lançado o Programa
Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), a maior iniciativa conjunta de
conservação de florestas tropicais da História, cujos principais parceiros são
o Governo brasileiro, a WWF – Brasil, o GEF e o Banco Mundial.
O Programa protegerá 500 mil km2 da Amazônia até 2012, a um
custo estimado de US$ 395 milhões, significando transformar 12% das
florestas amazônicas em parques ou reservas extrativistas. As metas do
Programa ARPA até 2012 são (WWF, Edição Especial, set/2002, Secretaria
da Amazônia/MMA, 04/2002):

a) ����������������
Criar 285 mil km2 de novas áreas de proteção integral (parques
nacionais, reservas biológicas e estações ecológicas);

b) Implementar
�������������������������
os 125 mil km2 de áreas de proteção integral já exis-
tentes;

c) Criar
���������������
90 mil km2 de áreas de uso sustentável comunitário (recursos
extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável);

d) ��������������������������������������������������������������������
Estabelecer, pela primeira vez no Brasil, um Fundo Fiduciário, cujo
rendimento será usado para financiar os custos de manutenção e proteção
das áreas.

Em suma, a meta do ARPA é triplicar as áreas de proteção integral


e uso comunitário em uma década, sendo muito mais de proteção integral
(285 mil km2 novas + 125 mil km2 já existentes), do que de uso sustentável
(apenas 90 mil km2). Aliás, a proposta inicial visava exclusivamente a criação
e consolidação de UCs de Proteção Integral e só por decisão do Governo
brasileiro foram incluídas as UCs de uso sustentável. O Parque Nacional
Montanhas do Tumucumaque, maior do mundo em área florestal tropical,
foi criado em 22 de agosto de 2002, já como resultado do ARPA. Quando

175
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

atingidas as metas do ARPA, estará protegida uma parcela da Amazônia de


dimensão equivalente ao território da Espanha, ou seja, 3.6 % das florestas
tropicais remanescentes no mundo.
A política de proteção à natureza amazônica caminha, portanto, a
passos largos. Se forem somadas às novas, as já existentes áreas de proteção
integral e as de uso sustentável, bem como as terras indígenas, o total
protegido deve alcançar mais de 30% da região. (Figura 2)

*unidades de conservação de uso direto e indireto


(estaduais e federais) e terras indígenas

Legenda
Cidades Principais
Capitais Estaduais
Áreas Protegidas
Limite Amazônia Legal Unidades de Conservação
Limite Estadual
Limite Internacional Uso Indireto
Rodovias Pavimentadas Uso Direto
Rios Principais
Terras Indígenas
150 0 150 300 obs: em alguns casos existe sobreposição
Fonte: Ministério do Meio Ambiente entre os diferentes tipos de áreas protegidas
quilômetros Organização e Elaboração: Claudio Stenner - 2002

Figura 2 - Amazônia Legal - Áreas Protegidas

b) A reativação e necessidade de defesa das fronteiras decorrem


de múltiplos fatores, mas também de extensas Áreas Protegidas nelas
localizadas, muitas vezes com superposição de Terras Indígenas e Unidades
de Conservação. (Figura 3)

176
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Figura 3 - Zona de Fronteira

177
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

As relações transfronteiriças constituem hoje um tema


prioritário para o Brasil e, particularmente, para a Amazônia. Faixa de
interpenetração de estruturas econômicas e sócio-políticas distintas,
as fronteiras são áreas de instabilidade onde podem surgir reações e
conflitos a partir tanto das populações locais como de pressões externas.
A imprevisibilidade é, assim, feição marcante das fronteiras, para o que
contribui a multiplicidade de atores, de redes técnicas e de políticas que
nelas incidem. Representam, assim, desafios concretos na consolidação
da soberania dos Estados (Becker, 2004).
Tais desafios são particularmente inquietantes na fronteira
Amazônica – o mais extenso segmento fronteira do Brasil – em face
de sua extensão, distância do centro de poder nacional e dificuldade
de acesso, dificultando seu necessário controle, sobretudo, hoje sob o
impacto de novos atores econômicos, sociais e políticos com interesses
diversos, em grande parte ilegais, que nela encontram terreno fértil
para sua atuação.
Não se tem aqui a intenção de analisar a questão da fronteira in-
ternacional, na medida em que não foi solicitada para este trabalho, mas
tão somente apontar a importância da presença das Áreas Protegidas
aí localizadas. Este fato gera conflitos entre duas ordens de competência
administrativa que se justapõem e recortam o território: a ordem federativa
– Estados e Municípios – e aquela ditada pela legislação protetora do meio
ambiente, as Áreas Protegidas. Um expressivo número de Municípios
têm seu território não só regulado pela malha político-administrativa
submetida ao poder da União e/ou dos Estados, mas também pela legislação
ambiental que quebra, de algum modo, a ordenação hierarquizada
da ordem federativa dominante. Esse conflito, contudo, não incide
uniformemente na região, conforme mostra a Tabela 4 (Figueiredo,
1998).

178
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Tabela 4 - Municípios com Áreas Federais e/ou Estaduais de Legislação


Especial – Amazônia Legal – 1996
Números de Municípios com Participação de
Municípios terras indígenas e/ municípios com áreas de
Unidades da 1995 ou de conservação legislação especial/total
Federação (a) 1996 (b/a)
(b) (%)
Amazonas 62 50 80,6
Pará 128 47 36,7
Rondônia 40 25 62,5
Acre 22 16 72,7
Roraima 8 8 100,0
Amapá 15 10 66,6
Maranhão 109 20 18,3
Tocantins 123 20 16,3
Mato Grosso 117 43 36,7
Amazônia Legal 624 244 39,1
FONTE: Anuário Estatístico do Brasil, 1995 e Arquivo Gráfico de Áreas Especiais (atualizado
entre abril/maio de 1996), DETRE/DGC/IBGE. (arquivo atualizado em dezembro de 1995)

A tabela evidencia as desigualdades no tocante à justaposição


das duas malhas, revelando a importância que assumiu nos Estados de
Roraima, Amazonas e Acre, e em meados da década de 1990, também
no Amapá e Rondônia. A similaridade nos períodos da demarcação
de Terras Indígenas e de Unidades de Conservação na Amazônia,
revelou o impulso único, fundamentado no discurso ambientalista,
que norteou o processo de reconhecimento legal dessas unidades.
Em 2002, a distribuição espacial das Terras Indígenas e
Unidades de Conservação no território amazônico desenhou um
grande arco de proteção legal ao longo da fronteira política nacional
indo desde Rondônia, passando pelo Acre, Amazonas, Roraima, Pará
e Amapá, o que faz dessa nova malha territorial uma questão não só
de âmbito interno à federação brasileira como, necessariamente, uma

179
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

questão externa, de enorme valor estratégico nas relações mantidas


pelo Brasil com a América Latina e o mundo.
Com efeito, algumas das Terras Indígenas delimitadas na
Amazônia brasileira, tais como as dos Yanomami, em Roraima e
Amazonas e as dos Tikuna, no Amazonas, envolvem territórios
transfronteiriços na Venezuela, Colômbia e Peru, o que empresta à
questão indígena um sentido não apenas nacional e sul-americano,
mas também reforça, o caráter mundial dado ao patrimônio ambiental/
cultural contido nessa região.
Nesse sentido, a Amazônia torna-se sujeita não só a pressões
resultantes da tensão característica das relações estabelecidas no
interior da federação brasileira, como de poderosas pressões políticas
(e econômicas) internacionais em favor da conservação do meio
ambiente amazônico.
No arco transfronteiriço localizam-se grande parte dos
Municípios que possuem mais de 50% de seu território inserido
em áreas sob legislação especial, sejam elas Terras Indígenas e/ou
Unidades de Conservação. Municípios com extensos territórios,
como São Gabriel da Cachoeira e Atalaia do Norte, no Estado do
Amazonas, destacam-se, nesse conjunto, ao possuir mais de 75% de
sua superfície no interior dessas áreas legalmente delimitadas. Por
sua vez, o acelerado processo de divisão municipal tem concorrido,
também, para ampliar o número de Municípios incluídos nessa faixa
de elevado comprometimento territorial, como é o caso de Alto Alegre
e Uiramutã, no Estado de Roraima. Tampouco é possível esquecer os
conflitos decorrentes da necessidade da implantação de infraestrutura
que ameaçam as Áreas Protegidas.
A consolidação da soberania brasileira nas fronteiras inter-
nacionais da Amazônia é, portanto, desafiada também por restrições
à decisão sobre o uso do território. Nas fronteiras internacionais,
180
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

tais restrições são decorrência de fatores externos – narcotráfico,


convulsões políticas nos países vizinhos, onde é crescente a presença
militar dos EUA e também da União Européia – bem como de fato-
res internos – justaposição de ordens administrativas e extensão de
Áreas Protegidas que acentuam a problemática da exclusão de áreas
do circuito produtivo e da eventual autonomia dos grupos indígenas
e os conflitos a eles inerentes.
As Forças Armadas têm um papel fundamental no controle
das fronteiras. Os Projetos Sipam/Sivam, recém desmembrados e o
Programa Calha Norte, que apesar de suas dificuldades, têm tem sido
em grande parte responsável pela presença constante do Estado bra-
sileiro na Amazônia Setentrional, tendo sido recentemente resgatado
com nova abordagem (PCN, 2001) são suas maiores expressões. As
iniciativas para integração da Amazônia sul-americana são promis-
soras, assim como a Operação Cobra, pois que a Polícia Federal e
a Receita Federal têm função crescente no controle das fronteiras
(Becker, 2004).
Para que as ações nas fronteiras sejam eficazes na manutenção
da integridade do território nacional e na garantia da soberania
no Estado brasileiro, é necessário promover o desenvolvimento
ampliando, o conhecimento sobre a sua dinâmica, reconhecendo sua
diferenciação, suas potencialidades e um esforço conjunto e coordenado
das instituições governamentais sem descartar diferentes formas de
parceria com a sociedade civil. Ao lado de políticas institucionalizadas,
outras formas mais simples e especificamente dirigidas ao estreitamento
de iniciativas locais podem ser decisivas. É o caso da consolidação
das cidades gêmeas na fronteira (Coelho, 1992) e também o de um
novo olhar sobre a questão indígena.

181
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

3. Pressões de Lideranças Políticas Mundiais, Organismos


e Comunidades Científicas Internacionais

Nesta seção tomou-se a liberdade de alterar a ordem dos atores


proposta. Isto porque esses atores estão intimamente associados em
intrincada rede sob comando de lideranças políticas.
Essa questão também revela as conexões Direito Internacional - Direito
Nacional, direito-coerção. Por um lado, as potências se coligam para
pressionar, como no caso dos acordos internacionais e do PP-G7. Por
outro, têm estratégias individuais, atuando através de múltiplos braços,
entre os quais organismos internacionais nelas sediados ou submetidos à
sua influência.
Por essa razão, serão aqui tratados, em conjunto, as lideranças
políticas e os organismos internacionais, e em separado as comunidades
científicas, que têm certa autonomia baseada na legitimidade da pesquisa.

Lideranças Políticas e Organismos Internacionais

Contudo, a aliança temporária das potências nos acordos interna-


cionais e no PP-G7, não eliminou suas estratégias individuais de trans-
gressão para controle da Amazônia, que vale a pena desvelar. ������������
(Becker, B.
e Bartholo, R. 1999).
O traço marcante de diferenciação nas estratégias das potências é o
diálogo direto ou não com as instituições nacionais. Enquanto a Alemanha,
a Inglaterra e a Holanda atuam através de instituições governamentais e
Organizações Não Governamentais, e têm, também, um diálogo com o
Governo brasileiro, enquanto que, até recentemente, os EUA não dialo-
gavam com o Governo brasileiro.
Em comum, as potências têm o fato de agir associando o poder

182
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

financeiro através de seus organismos internacionais e de agendas


associadas à pesquisa científica.
A maior liderança política é dos EUA, cuja ação configura uma
estratégia de dupla face, que combina formas coercitivas veladas e explícitas.

(a) A coerção explícita: “War on Drugs” e o Sivam como resposta do


Governo brasileiro.
A forma coercitiva mais explícita, de caráter paramilitar, é a tentativa
de intervir diretamente no território, através da “War on Drugs” por ação da
agência governamental Drug Enforcement Administration (DEA). Para tanto,
sustentou a montagem de uma série de localidades de operação avançada nos
países amazônicos vizinhos. Em resposta à essa ação, impedindo sua extensão
à Amazônia brasileira e em nome da defesa do meio ambiente, os militares bra-
sileiros criaram um grande projeto de controle regional baseado em tecnologia
moderna, o Sipam/Sivam, que posteriormente se desmembrou, originando
Sistemas de Proteção e de Vigilância da Amazônia.

Previsto para ser implantado em cinco anos, com um custo total de


US$ 1,4 bilhões e necessitando de tecnologia avançada, esse Projeto fez acordo
com a Raytheon, graças às facilidades de financiamento que acompanhavam a
proposta americana. Pela primeira vez, após 15 anos, o Eximbank americano
voltou a fazer um empréstimo ao Brasil, e com grandes facilidades, respondendo
por 85% do financiamento. Foi através do financiamento do Projeto Sivam que
os EUA conseguiram participar, de alguma forma, no War on Drugs (guerra às
drogas) no Brasil. E a Amazônia entra, no século XXI sob o comando de um
sofisticado sistema de informação. Após anos de controvérsia, finalmente, o
sistema foi inaugurado em julho de 2002. A grande novidade foi colocar parte
do sistema – Sipam – sob subordinação da Casa Civil da Presidência da
República, enquanto o Sivam permaneceu subordinado ao Ministério da Defesa.
Reconheceu-se, assim, a dupla face do sistema: a face militar, de vigilância do

183
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

tráfego aéreo e fiscalização de superfície, fundamental para a segurança das


fronteiras; e a face civil, que coleta, armazena e difunde dados e informações
fundamentais para o conhecimento do território. Ademais, os radares e sensores
do sistema têm grande alcance e monitorarão parte da Amazônia que não
pertence ao Brasil, e representantes da Colômbia, Peru e Bolívia já manifestaram
o interesse de seus países em receber sistematicamente informações colhidas
pelo Sivam/Sipam. O sistema constitui, assim, um instrumento de grande
potencial para intercâmbio com os países amazônicos, sobretudo em face da
perspectiva de resgate do Tratado de Cooperação Amazônica e da a instalação
de seu Secretariado permanentemente em Brasília.

(b) A coerção velada. No que tange diretamente à proteção da biodi-


versidade predominam formas de coerção velada, associadas à uma segunda
característica da estratégia norte-americana: a modesta atuação do Governo
americano que, na verdade, age através de uma intrincada rede de agentes,
aparentemente independentes, mas por ele comandado. São agências, univer-
sidades, firmas e Ongs, além do Banco Mundial, que se constituem em braços
civis do Governo americano, conectados diretamente às comunidades locais
numa política que tem nítido contorno anti-Estado brasileiro.
A modéstia da The U. S. Agency for International Development
(USAID) caracteriza a atuação do Governo americano na questão ambiental.
Mas todo esforço por avaliar o significado relativo das ações americanas deve
incluir os investimentos efetuados pelos múltiplos agentes citados.
A política de investimentos ambientais da USAID até recentemente se
fez com projetos executados através de seus agentes e em convênio, sobretu-
do, com Ongs, evitando repassar recursos para o Governo brasileiro através
de canais componentes do Ministério das Relações Exteriores. A USAID
apresenta duas justificativas para tal procedimento: o rompimento do acordo
militar Brasil-EUA, que levou o Governo Carter à decisão de encerrar as ati-
vidades da USAID no Brasil; e o fato do Brasil ter alterado sua posição para

184
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

“advanced developing country” levando o Governo americano a deslocar o seu


auxílio para países mais pobres da América Latina e África.
Em 1990, o Congresso norte-americano autorizou a USAID a imple-
mentar um programa para a questão da mudança climática global (GCC) em
países-chave, inclusive o Brasil e, em 1996, foi criado o Projeto de Gestão
Ambiental Integrada, uma continuação do GCC focalizado na conservação
da biodiversidade e energia renovável. Ambos enfatizam a redução do
desmatamento e da emissão de CO2. E só em 1997 os EUA fizeram uma
doação para o PP-G7.
A Tabela 5 resume o papel dos braços civis do Governo americano na
Amazônia e seus parceiros brasileiros.

Tabela 5 - USAID’s Program Activities in the Amazon


Implementing Agency Funding Number of Partners
1996 - 97 Projects
World Wildlife Found 6.788,570 9 IMAZON; Local Rural Works
Union; FVA. Local communities
Woods Hole Research Center 2.922,581 4 USDA/Forest Service; IPAM Local
community
The Nature Conservancy 867,000 * 1 IBAMA and SOS Amazonian

University of Florida (Gainesville) 3.004,226 2 Local communities


Smithsonian Institution 575,172 1 INPA
Tropical Forest Foundation 100,000 1 USDA/Forest Service
Contributions to Multilateral Environmental Programs
The World Bank 1 Obligated contribution to the
Rainforest Trust Fund G 7
The World Bank 1 G-7; INPA and Museu Goeldi
Source: The Agency for International Development USAID/BRAZIL ENVIROMENTAL
PROGRAM - USAID, 1997
* Funding includes one project outside the Amazon.
** Contribution given by President Clinton in October 1997, to the science-technology
component of G-7.

Um dos braços civis dos EUA é a World Wildlife Fund (WWF),

185
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

em aliança com a União Européia. Quase 95% do financiamento de


projetos da WWF no Brasil, até meados dos anos noventa, se originaram
dos EUA e, uma pequena parte, do Canadá, mas hoje as fontes da
Europa tendem a superar estes países. Em 1998, o total de recursos
para a proteção do meio ambiente destinados à América Latina e ao
Caribe pela WWF foi de 20 milhões de dólares, sendo 5 milhões só
para o Brasil (aproximadamente 50% correspondendo a fontes dos
EUA e Canadá, e 50% a fontes européias). O novo quadro está
associado a uma redefinição estratégica da WWF que, para superar a
dispersão de ações, reduziu seus programas e projetos principais para
quatro, visando otimizar técnicos e efeitos. Tal reorientação é fruto
de um trabalho de três anos de uma equipe de mais de 200 cientistas,
que dividiu o planeta em 800 regiões, definidas pela densidade
de interações ecológicas, priorizando as chamadas “Global 200”
mais importantes. A América Latina e o Caribe contêm 53 dessas
ecorregiões.
A passagem do Brasil à categoria de organização nacional da
WWF, em 1996, representou a transferência de boa parte dos projetos
para o país, além de uma reorientação de postura fundamental: não
permanecer apenas na denúncia, mas mostrar alternativas.
A face ambiental do Banco Mundial (BIRD) é outro componente
da coerção velada dos EUA. A implantação de uma extensa malha
constituída de múltiplas redes e projetos de desenvolvimento na
década de 1970, no Brasil, foi possível graças aos empréstimos do
Banco Mundial. Mas na década de 1980, o Banco deixou de apoiar
projetos governamentais de desenvolvimento e começou a financiar
projetos ambientais, sendo hoje o maior financiador para conservação
e gestão ambiental no Brasil e nos países periféricos.
Os fundos de financiamento têm papel central na definição e
implantação da agenda ambiental do BIRD que, no Brasil, está voltado

186
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

para três áreas: desenvolvimento sustentável, conservação da


biodiversidade e mudanças climáticas.
Na área de biodiversidade, o BIRD é uma das agências financiadoras
do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environment Facility
- GEF), financia projetos visando a conservação da diversidade, redu-
ção de emissões e substâncias que afetam o clima e gestão de águas
internacionais. Dois projetos estão em execução com apoio do GEF: o
PROBIO e o FUNBIO. O Projeto de Conservação e Utilização Susten-
tável da Biodiversidade Brasileira (PROBIO) realizou avaliações em
nível de bioma, indicando 900 áreas prioritárias para conservação da
biodiversidade no país, 510 delas consideradas de extrema importância,
que influenciam no delineamento e consolidação de políticas públicas.
Na Amazônia, destacam-se os Projetos ARPA e Corredores Ecológicos;
a influência na concepção da Estratégia Nacional/Política Nacional de
Biodiversidade “através do engajamento político, apoio institucional e
capacitação técnica e gerencial das equipes vinculadas ao MMA com
essa atribuição” (Moreira, 2002), bem como na Política Nacional de
Florestas; a influência e a ação para a elaboração do Projeto de Lei que
normatiza o acesso a Recursos Genéticos, em discussão no Legislativo.
Já o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO) foi criado como
uma organização independente para captação, potencialização e distri-
buição de recursos para projetos nessa temática.
A União Européia é o segundo maior contribuinte do PP-G7.
Contribui com cerca de 23% do total e acompanha, de forma velada, as
pressões dos EUA, apesar de procurar transmitir uma imagem de postura
diferente e mesmo de conflito. Este fato é corroborado, por exemplo, no
Plano Colômbia, do qual participa. Individualmente, a Alemanha é o
Estado mais atuante na região, guardando autonomia em relação aos EUA.
Como maior contribuinte do PP-G7, fornece 41% do total, sua cooperação
foi decisiva na demarcação das Terras Indígenas, nos projetos sobre a

187
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

várzea amazônica, e seus organismos básicos de ação são o Gesellsschaft


für Technische Zussammenarbeit (GTZ) e o Kreditanstalt Für Wiederausban
(KFW) sempre associados, demonstrando a estreita conexão entre a coo-
peração técnica e o banco de financiamento, respectivamente.
Com atuação de menor visibilidade, segue-se a Inglaterra, que
acompanha a política norte-americana. O organismo através do qual atua
é o Department For International Development (DFID), antiga Overseas
Development Agency. Realizando doações para áreas protegidas voltadas
para pesquisa, mudou seu foco nos últimos três anos para a erradicação da
pobreza e, finalmente, em 2003, retirou sua atuação do Brasil. A França atua
via comunidade científica através do Centre de Coopération Internationale
en Recherche Agronomique pour le Développment (CIRAD) e do Institut de
Recherches pour le Développment (IRD), antiga Office pour la Recherche
Scientiphique et Technique d’Outremer (ORSTOM). A atuação do Japão é
explícita através da Japanese Agency for International Cooperation (JAICA),
sobretudo em projetos de compra de terras e colonização (inclusive com
japoneses) no cerrado, e velada na apropriação da biodiversidade.
Não há como não registrar o quão significativa é a mudança de
nome, na década de 1990, das antigas agências de controle das colônias
ultramarinas da Inglaterra e da França, hoje organismos de proteção
ambiental e de desenvolvimento sustentável.
Via de regra, os organismos citados envolvem pesquisa, gerando
verdadeiros “paraísos experimentais” para cientistas. Tem-se como
exemplo o DFID, que participa com a WWF da Reserva de Desenvolvimento
Sustentável de Mamirauá, já referida.
Caberia ainda, nesta seção, lembrar a importância das grandes
empresas farmacêuticas multinacionais, também elas sediadas nos países
líderes citados, interessados diretamente no banco genético. Apesar
de tensões entre si, elas formam de fato, uma coalizão de interesses.
O Programa Brasileiro de Ecologia Molecular da Biodiversidade
188
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Amazônica (PROBEM), em suas negociações, comprovou o interesse


das empresas norte-americanas, alemãs, suíças e inglesas. E a Croda,
famosa multinacional inglesa, já está instalada em Manaus produzindo
extratos vegetais.

Pressões de Comunidades Científicas:


A Cooperação Internacional

Por várias vezes neste texto, afirmou-se que informação e conhe-


cimento científico e tecnológico situam-se no cerne do poder contempo-
râneo. A exemplo dessa afirmativa é o recente incidente provocado pelos
EUA quanto à inspeção rotineira da Agência Internacional de Energia
Atômica nas Indústrias Nucleares do Brasil, localizadas em Resende, no
Estado do Rio de Janeiro. Tendo o Brasil muito corretamente negado
a vistoria das ultracentrífugas responsáveis pela tecnologia brasileira
de enriquecimento do urânio, foi comparado, pelos EUA, ao “eixo do
mal”.
Aliás, o incidente congrega vários elementos que compõem
afrontas à soberania contemporaneamente: além da disputa por segredos
tecnológicos, influência na opinião pública mundial contra o Brasil e
pressão visando o desgaste político da posição brasileira nas negociações
da ALCA.
Na Amazônia, os interesses mundiais em Ciência e Tecnologia
(C&T) atuam sob duas formas de pressões:

a) A forma oficial explícita, constituída de parcerias entre comu-


nidades científicas institucionalizadas pelos governos dos respectivos
parceiros, seja em grandes projetos multilaterais, seja em projetos
bilaterais;

189
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

b) A forma não oficial, sob a rubrica de auxílio a projetos para


proteção da natureza, mas envolvendo pesquisadores, desde projetos
financiados por agências de desenvolvimento e bancos estrangeiros,
doações para projetos comunitários, à biopirataria.

A pressão institucionalizada de comunidades científicas corres-


ponde à cooperação internacional. É difícil obter informação e analisar
pressões advindas dos projetos bilaterais entre pesquisadores de insti-
tuições nacionais e estrangeiras, devido ao seu grande número e à sua
fragmentação temática e geográfica. Ao que tudo indica, correspondem
predominantemente a interesses legítimos dos pesquisadores.
Já os grandes projetos multilaterais têm objetivo explícito de
ampliar a informação e o conhecimento sobre o meio ambiente
amazônico para benefício do planeta e, ao mesmo tempo, são instrumentos
que fortalecem a influência e a liderança dos parceiros internacionais,
exercendo pressões através de dois elementos associados: o financiamento
da pesquisa, extremamente sedutor num país que carece de recursos para
esse fim, e a imposição da agenda científica assegurada pelos termos de
referência dos projetos.
Dois grandes projetos multilaterais se destacam: o PP-G7, e o
Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA). Em
ambos, apesar da multilateralidade, a liderança é dos EUA.

• O PP-G7, como referido em seção anterior, inicialmente inclui


em seus múltiplos componentes o Subprograma de Ciência
e Tecnologia com dois projetos: Centros de Ciência (CC)
e Projetos de Pesquisa Dirigida (PPD) que, posteriormente,
foram integrados (Becker 2002). O objetivo inicial do Subprograma
era promover a geração e disseminação de conhecimentos
científicos e tecnológicos relevantes para a conservação e o
desenvolvimento na região Amazônica.

190
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Coordenado pela Secretaria Técnica do Ministério da Ciência


e Tecnologia, e tendo na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)
seu agente financeiro, o subprograma de C&T foi um dos que mais
rapidamente executou as atividades previstas e utilizou os recursos a
ele alocados. Em 1997, doações suplementares foram comprometidas
pelos doadores e em 1998 o Governo brasileiro alocou recursos extras,
excedendo de muito a contrapartida prevista.
O objetivo dos investimentos nos CC foi o fortalecimento
institucional através de melhoria de infra-estrutura e do planejamento
estratégico em dois centros regionais eleitos – o Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (INPA) e o Museu Paraense Emilio Goeldi
(MPEG). Em 1990, o projeto foi dado como concluído. Quanto aos PPD,
duas chamadas foram realizadas, uma em 1995 e outra em 1998.
Os investimentos nos CC foram muito exitosos, permitindo-lhes
intensificar o número de seus doutores, sua produção, suas parcerias e
alcançar um padrão científico de nível internacional. Os PPD, contudo,
não tiveram o mesmo êxito. Dentre as restrições a eles apresentadas destacam-
se a falta de integração com os objetivos do PP-G7 e a necessidade de
uma maior consideração. Enfim, o componente PPD teve como principal
problema o fato de não ter sido efetivamente “dirigido”, de acordo com a
agenda do PP-G7, constituindo reclamação contínua dos doadores.
Em face dos problemas apontados e da mudança no contexto
global e nos interesses dos doadores e do BIRD, estabeleceu-se uma
nova estratégia em 2001, com vistas à sua Fase II. Reconhecendo grandes
mudanças nas políticas brasileiras relacionadas às florestas, a nova
estratégia possui dois pontos básicos: reduz a ênfase preservacionista,
reconhecendo a importância do desenvolvimento das populações que
vivem na floresta, propondo que o sucesso do Programa não seja medido
apenas pela redução da taxa de desmatamento, mas sim por ampliação de
sua escala de atuação e de sua influência nas políticas públicas; enfatiza
191
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

a descentralização, envolvendo não só as Ongs, mas os Estados e Municípios,


bem como o setor privado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente,
insistiu no discurso de transferir para o Governo brasileiro o “ownership”
do Programa. Configurou-se então um quadro de iniciativas autônomas
que dificultaram um aprendizado cumulativo das pesquisas e uma ação
coordenada pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT). Enquanto
se prepara o terreno para o Programa, o Banco e os doadores lideram
diretamente com diferentes segmentos sociais.
Não há como negar que o PP-G7 contribuiu com a C&T regional,
sobretudo, com o fortalecimento dos CC. Mas os critérios de financiamento
não são condizentes com a implantação de uma estratégia articulada
de C&T na Amazônia. Por um lado, cessou o financiamento dos CC e,
por outro, várias fontes financiam um mesmo projeto por várias vezes.
Segundo interesses específicos dos doadores, nem sempre condizentes
com as prioridades regionais. Por sua vez, a definição das prioridades
regionais de pesquisa é prejudicada pela multiplicidade de demandas
provenientes de segmentos governamentais, institucionais e dos grandes
programas regionais.

• O segundo grande projeto multilateral de cooperação


internacional é o LBA. Recentemente implantado, o LBA
expressa a consolidação de um processo de globalização
da pesquisa. O mais flagrante elemento desse processo é o
Programa Global Environmental Change sob comando do
International Council of Scientific Unions (ICSU) que se
situa acima de todas as Uniões Internacionais de pesquisa de
diferentes campos do conhecimento.

A ênfase do grande Programa Global Environmental Change é dada a


pesquisas sobre o meio ambiente e biodiversidade, em múltiplos programas.

192
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Só recentemente a dimensão humana foi nele incorporada. As pesquisas em


âmbito global através de parcerias constituem, sem dúvida, uma inovação
necessária ao avanço no conhecimento sobre o planeta. Contudo, duas
questões se colocam do ponto de vista da autonomia do financiamento e
da imposição da agenda: a fragmentação das pesquisas é maior em virtude
da sua própria escala de abrangência em termos geográficos e de temas; os
pesquisadores em parceria, são “pinçados” e engajados em projetos globais,
nem sempre coincidentes com os respectivos interesses nacionais, muitas
vezes sem ter plena consciência do contexto em que estão inseridos. O
controle da informação é ponto nevrálgico da cooperação internacional, pois
os parceiros têm informação apenas parcial, sobre as suas participações, e
não sobre o projeto total resultante de múltiplas parcerias.
Enfim, a cooperação internacional é hoje imprescindível para o
desenvolvimento de C&T na Amazônia, como no mundo, em geral. No
caso em pauta, assumiu autonomia excessiva, em parte porque não foi bem
negociada na definição da agenda e no seu financiamento.
Há, portanto, que se efetuar o enquadramento da cooperação
internacional.
Embora imprescindível ao desenvolvimento da C&T na Amazônia,
assumiu na região tentando compatibilizar a estratégia de participação da
comunidade científica internacional com o desenvolvimento de projetos
também de interesse do Brasil e de suas instituições. Para tanto, algumas
estratégias podem ser sugeridas:

• O controle da informação. Se os projetos, inseridos em programas


internacionais e/ou globais têm informação apenas parcial da
sua participação, as múltiplas informações e conhecimentos
parciais são agregados alhures, o acesso à informação e ao
conhecimento do conjunto do projeto deve ser exigido em geral
e em cada projeto, estabelecendo-se as regras das parcerias;

193
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

• A conscientização dos pesquisadores sobre a globalização de


pesquisas é imprescindível;
• Nada poderá ser feito sem o fortalecimento do MCT, incluindo
a negociação, a tomada de decisão, a definição da agenda e o
apoio a projetos que persigam as prioridades estabelecidas.

4. Pressões Internas/Externas de Organizações não


governamentais

A interconexão das arenas políticas nacional e internacional,


e das faces internas/externas da soberania tem sua manifestação
mais clara nas Organizações Não-Governamentais (Ongs), que, na
Amazônia estão presentes em todas as outras formas de restrições
e pressões assinaladas. Via de regra, atuam em conjunto com outros
atores, particularmente as organizações religiosas, que podem ou não
estar presentes.
Constituem a forma não oficial de acesso à informação como
apontado na seção anterior, atuando em projetos elaborados a partir
“de baixo”. E, mais importante, atuam diretamente junto à população,
constituindo forte influência política, e não divulgam a informação
sobre seus parceiros e sobre os recursos que recebem. À semelhança
da comunidade científica estrangeira, alcançaram autonomia excessiva
na região.
É difícil, portanto, conhecer o número exato de Ongs que atuam
na Amazônia, suas origens e suas funções. A partir de estudos pioneiros
de Fernandes, R. C. e Carneiro, L. P. (1991) e Landim, L. (1993), é
possível, assinalar para o universo de entidades, algumas características
básicas reveladoras de seu papel no início da década de 1990.

194
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

1 - O caráter recente e dinâmico, manifesto no enorme cresci-


mento a partir da década de 1960 e, particularmente nos anos 80 (pelos
menos 50% do total são posteriores a 1980), quando o crescimento
revela não apenas a criação de novas como a resemantização de antigas
como “ecológicas ou ambientalistas”.

2 - A independência em relação ao Estado. Tem o papel de


mediadoras, pequenas organizações microarticuladoras que circulam
em espaços fortemente condicionados pela força de organizações
maiores, sem fins lucrativos, mas que não se confundem com institui-
ções filantrópicas. Ser pequeno é um valor em termos de eficiência,
agilidade e autenticidade afirmada a vantagem comparativa das micro
organizações frente às grandes estruturas. A maioria identifica como
suas principais funções as de assessoria, seguida de pesquisa e formação/
educação. Neste universo variado, o grupo que mais se aproxima de
um conjunto estruturado é o de serviços de assessoria e apoio ao
Movimento Popular (AMP).

3 - A organização em redes transnacionais. Sua existência


está condicionada à cooperação internacional na medida em que
são independentes do Estado, estão na contramão do mercado e
não são instituições filantrópicas. São parcerias voltadas para dilemas
globais, tratando-se de uma rede de redes, de abrangência planetária.
As articulações dominantes, estabelecidas segundo a importância dos
financiamentos recebidos para 102 Ongs, são: Alemanha (57), Holanda
(53), EUA (42), Inglaterra (31), Canadá (28), França (27), Suíça (20);
entre 15 a 10, figuram Irlanda, Itália e Bélgica, e abaixo de 10 a Suécia,
Áustria, Espanha, Dinamarca, Portugal, Finlândia e Luxemburgo.

4 - O predomínio de agências protestantes é inconteste. Têm grande


importância orçamentária para quase a metade das Ongs - 45% da amostra

195
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

de 102 Ongs – enquanto as agências católicas têm importância apenas


para 25% da amostra.

Ao que tudo indica, trata-se de um novo ator versátil, capaz de


agilizar - imprimir velocidade - à transformação, contornando a rigidez
da máquina do Estado, com quem pode ou não realizar parceria.
Sua existência hoje continua condicionada à cooperação interna-
cional assim como persiste sua dupla face – apoio – à proteção ao meio
ambiente e às populações excluídas e, por outro lado, independência
do Estado e acesso à informação sobre a natureza amazônica e o saber
local. Pelo menos duas observações devem ser feitas quanto a essa
sensível questão, a seguir discutidas.

A Articulação das Faces Interna/Externa da Soberania

A proliferação de Ongs na Amazônia foi possível, em grande


parte, porque encontra um terreno fértil para sua atuação, decorrente
dos conflitos de terra e de território nas décadas de 1970 e 1980 que
geraram fortes movimentos sociais das populações locais, e decorrente
também da ausência do Estado em face das dificuldades de controle
de tão extensa região.
Resultam elas da combinação de processos e atores atuantes
em várias escalas geográficas, a saber:

a) �����������������������������������������������������������
A resistência de populações tradicionais à expropriação de
seus territórios e identidades. A expressão maior dessa resistência é
Chico Mendes, líder do “empate” dos seringueiros, mas não menos
importantes foram as reivindicações de índios, ribeirinhos e de ex-
colonos que se endogeneizaram na região;

196
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

b) O
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esgotamento do nacional-desenvolvimentismo e a crise do
Estado brasileiro. O ano de 1985 é um marco desse processo, quando
o último grande projeto associado à doutrina do Desenvolvimento e
Segurança foi implantado Figura 4 o Projeto Calha Norte – ao mesmo
tempo em que se cria o Conselho Nacional dos Seringueiros, símbolo
da resistência social;
c) ���������������������������������������������������������
A pressão ambientalista nacional e internacional, contra
o uso predatório da natureza e por um novo padrão de desenvolvi-
mento, sustentável, novo e poderoso agente de mudanças através da
cooperação internacional financeira e técnica, presente em todos os
projetos ambientalistas;
d) A
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resposta do Governo brasileiro a essas pressões através
da aceitação de projetos e programas em parceria com atores inter-
nacionais, da criação do Ministério do Meio Ambiente (1993) e de
uma política ambiental.

Vale ressaltar a importância da organização da sociedade civil


nesse processo. Os conflitos das décadas de 70 e 80 se transfiguraram,
organizando-se em projetos de desenvolvimento conservacionistas,
elaborados a partir “de baixo”. Para sua sobrevivência, os grupos
sociais utilizam redes transnacionais, que viabilizam parcerias exter-
nas com Ongs, igrejas, partidos políticos e governos. Em conjunto,
destacam-se duas novas entidades na organização da sociedade civil:
o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) que agrega mais de 300 asso-
ciações, e a Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira ( COIAB) com 44 associações.
Ao contrário da política das décadas anteriores, a política ambiental
visa o desenvolvimento sustentável, fundamentando-se numa ação
descentralizada e participativa para proteção da natureza, uso

197
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

sustentável dos recursos naturais e melhoria da qualidade de vida das


populações locais. Certamente, há também interesses de controle da
informação sobre o saber local e o próprio território pelos parceiros
nacionais e internacionais.
Em nível territorial, as ações ambientalistas orientam-se para um
modelo endógeno. Se a origem dessa tendência reside nos movimentos
sociais, foi o PP-G7 que se transformou no grande indutor dos projetos
endógenos, através de uma estratégia descentralizada que envolve as
principais reivindicações sociais.
Iniciativas inovadoras de populações tradicionais tiveram como
objetivo garantir a sobrevivência mediante a manutenção do acesso à
terra e à floresta, e a Igreja Católica contribuiu decisivamente para esse
propósito, seguida do apoio dos sindicatos. A proteção da biodiversidade
tornou-se um segundo objetivo, explícito, à medida que recebeu apoio
variado de Ongs, organizações religiosas e agências governamentais,
internacionais. Nesse processo, transformaram-se em “sentinelas da
floresta”, mas também geraram novas estratégias de posse e gestão da
terra, novas formas de uso e proteção da biodiversidade, e mesmo novos
conceitos. A prática social precedendo, mesmo, a investigação científica.
Hoje, tais iniciativas tendem também a se consolidar.
Informações obtidas em pesquisa direta, no campo, permitem
exemplificar a ação das Ongs junto às populações locais, valendo
registrar que, via de regra, sua presença se dá em conjunto com outros
atores internacionais.
No caso dos seringueiros, o movimento social se consolidou em
1985, com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros. A Resex
Chico Mendes (AC) contou a partir da década de 1980 com novos
aliados e, em 1994, tinha os seguintes convênios: Fundação Mc Arthur,
Health Unlimited, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
International Development Research Centre (IDRC), Oxfam, Miserior,
198
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Fundação Konrad Adenauer, WWF, Embaixadas da Suíça e da Áustria,


além de colaborações de organizações nacionais como o Bndes, a USP
e a Unicamp, e a Fundação Gaia (Murrieta e Rueda, 1995).
É nos projetos comunitários alternativos da produção familiar,
hoje denominado de modelo socioambiental, que se pode verificar a
atuação complexa das Ongs com outros atores, ou seja, das redes de
parcerias (Becker, 2002).

• Predomínio das relações locais-globais no contato da floresta


com áreas povoadas.

Duas situações se incluem nesse modelo: o vale do Rio Acre e


Silves, no Estado do Amazonas.
O Estado do Acre é um dos que apresenta maior concentração
de projetos na Amazônia. Sua localização estratégica como baluarte de
defesa da floresta, no contato com a frente mais avançada da expansão
colonizadora influiu na resistência dos seringueiros e ex-colonos à sua
expropriação, e atraiu os interesses ambientalistas legítimos (e geopolíticos...),
ainda mais considerando que se trata de uma fronteira política com outros
países amazônicos.
Dois elementos se destacam no vale do Rio Acre:

1 - uma cadeia hierarquizada e complexa das redes de relações,


identificando-se os produtores organizados em associações, os parceiros
externos (estaduais, nacionais e internacionais) e as organizações inter-
mediárias entre estes e os produtores;

2 – a força da organização local, expressa na multiplicidade


de associações e, sobretudo, na presença daquelas organizações
intermediárias, legado da luta dos seringueiros, do trabalho de base
da Igreja Católica, e hoje, do forte apoio do governo estadual.

199
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

As organizações intermediárias são importantes mediadoras


das redes de parcerias, para elas convergindo grande parte do apoio
financeiro e técnico que é repassado para as associações de produtores.
São de natureza não governamental, como o Centro de Trabalhadores
da Amazônia (CTA), e o Grupo de Pesquisa e Extensão do Acre
(PESACRE), ou ainda associativa, no caso da Central de Associações
de Pequenos Produtores de Epitaciolândia e Brasiléia (CAPEB). A força
sindical e representativa tem peso importante. Sua maior expressão é
o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), com forte influência no
Conselho Nacional das Populações Tradicionais (CNPT), integrante do
Ibama, e na Resex Xapuri (locus de Chico Mendes), importante núcleo
extrativista. Os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de várias cidades
apóiam outras associações. Vale registrar que algumas associações
alcançaram dinamismo suficiente para atrair diretamente alguns parceiros,
sem mediação, inclusive empresários industriais.
O PESACRE tem cinco parceiros internacionais: USAID,
Universidade da Flórida através do Programa de Proteção do Meio
Ambiente e das Comunidades Indígenas (PMACI), Unicef, PP-G7
(nacional/internacional) e o Comité Catholique Contre la Faim et
pour le Développement (CCFD). As relações em nível nacional se
efetuam com o Incra, Ibama e Embrapa, dado o caráter ambiental
dos projetos, e em nível regional com o Basa (Banco da Amazônia,
S. A.). Ressalta-se as importantes relações com instituições estaduais
locais, envolvendo o governo do Acre, a Universidade do Acre, a
Ong SOS Amazônia, e o próprio CTA, além da Igreja Católica e a
Agroindústria Brial.
O CTA, sediado em Rio Branco, através do Projeto de Assentamento
Agro-Extrativista (PAE) em Porto Dias realiza a mediação com uma
associação de seringueiros no Baixo Acre. Cinco de seus parceiros
são internacionais: Forest Stewardship Council (FSC), através do

200
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Imaflora; PP-G7; BID; WWF e a organização religiosa holandesa


Novibe. O Incra e o MMA são parceiros nacionais, o Grupo de Trabalho
Amazônico (GTA) é em nível regional, e em nível estadual a Fundação
de Tecnologia do Estado do Acre (Funtac) e a Igreja Católica. Mediadora
no Alto Acre, a CAPEB conta com o apoio internacional da WWF e
da Miserior, ambas da Alemanha; do CNPT, em nível nacional; da
Nutrimetal (PA), em nível regional; e da Secretaria de Agricultura,
em nível local, articulada a três associações de pequenos produtores e
seringueiros. Porém, a mais importante organização mediadora no Alto
Acre talvez seja a Associação Extrativista da Resex Chico Mendes,
de Xapuri, que congrega quase cinqüenta associações de produtores
em três associações maiores: Amorex, Amoreb e Amoreab.
É digna de nota a presença pouco expressiva das relações na
escala nacional, que se resumem ao CNPT, Incra, Ibama, Embrapa
(em alguns projetos apenas) e a Secretaria de Coordenação da Amazônia/
Ministério do Meio Ambiente (SCA/MMA), bem como na escala
regional, representada pelo GTA, CNS e o Basa. Em contrapartida, os
apoios estaduais/locais são bastante expressivos, envolvendo não só
os núcleos mediadores como também o governo e a Universidade do
Acre, sindicatos, igreja, Funtac, Ongs (incluindo a SOS Amazônia),
prefeituras e mesmo o empresariado industrial.
É possível visualizar, portanto, o predomínio de redes de
relações locais/globais no Vale do Rio Acre contornando as escalas
regionais e, sobretudo, a nacional. Deve-se reforçar, contudo, que
entre as forças locais o governo estadual é parceiro fundamental.
A cidade de Silves, no Amazonas, evoluiu sobre um sítio peculiar:
uma ilha fluvial. A defesa dos recursos pesqueiros ameaçados pelos
grandes barcos de pesca comercial – os geleiros – gerou o conflito e a
resistência dos ribeirinhos. A partir de movimentos sociais fundou-se
a Ong Associação de Silves para Preservação Ambiental e Cultural
201
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

(ASPAC), que conseguiu pressionar o governo municipal para criar


reservas ecológicas nos rios e, finalmente, foi reconhecida como
iniciativa promissora para o turismo ecológico. As redes de parceria tiveram
importante papel no pequeno empreendimento turístico gerido pela
população local e por elas denominado de “ecoturismo caboclo”. O
apoio básico na resistência inicial, durante a década de 1980, foi dado
pela Igreja Católica e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Silves, a que se somou o apoio da Prefeitura local. Logo a iniciativa
atraiu outros parceiros: em nível internacional o PP-G7, o WWF, os
Governos da Áustria e da Suécia (doações) e o Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam), que embora com sede em Santarém
e Belém tem importantes aportes técnicos e financeiros internacionais;
em nível nacional o Ibama; no regional o GTA e o Instituto de
Permacultura da Amazônia.

• Parcerias Bem Distribuídas em Áreas de Povoamento


Consolidado (RO).

Um dos mais bem sucedidos e conhecidos projetos alternativos


é o Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (RECA),
localizado em Rondônia, afetado intensamente pela colonização. A
iniciativa contou com redes de relações bastante variadas. Dentre
os parceiros em nível internacional, além do PP-G7 e do PMACI, a
Igreja Católica tem papel crucial na implementação do projeto: CCFD
(França) e o CEBEMO (Holanda), tendo como mediador o CERES
(RJ) para o financiamento holandês. A Fundação Ford apoiou também
pesquisas realizadas pela Universidade do Acre em colaboração com
parceiros nacionais – Incra, o CNPT, o Ibama – e regionais como o
CNS e o Basa. Possui também financiamento do Fundo Constitucional
de Financiamento do Norte (FNO) e apoio do Ministério da Agricultura
(Denacoop – Departamento de Cooperativismo e Associativismo

202
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Rural) em nível nacional, bem como do PESACRE, das Ongs Poema


(regional) e SOS Amazônia (local). No final do ano 2000, agregava
260 associados, e mais 50 se candidatavam à Associação.
As redes de relações no RECA parecem bem distribuídas quanto
às diversas escalas geográficas: seis parceiros internacionais, seis
nacionais, três regionais, ressaltando as relações com organizações
do Estado do Acre.

• A força das parcerias estaduais-locais em áreas florestais.

Tratam-se de redes mais simples, as duas situações analisa-


das: o Vale do Purus no Acre, a outra localizada em plena floresta no
Município de Laranjal do Jari, no Amapá.
No Vale do Purus (Município de Sena Madureira - AC) não há
até o momento parceria nem com os mediadores estaduais – CTA e
PESACRE – nem com o espaço global. Pelo contrário, ressaltam as
parcerias com a Prefeitura local, com o Governo estadual – através
de suas secretarias de Agricultura e Extrativismo (Seater) e de Produ-
ção; e com as instituições nacionais - Incra, Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Emater) – e instituições nacionais de fi-
nanciamento ao pequeno produtor – Programa Nacional de Fortale-
cimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e FNO. Sena Madureira é
sede da primeira usina de processamento da borracha para fabricação
de pneus Pirelli (SP). As redes de relações são, portanto, bem menos
complexas dominando as relações locais/nacionais.
As Resexs de Laranjal do Jari (AP), à margem do avanço da
colonização e das estradas, permanecem com base no extrativismo.
As duas Resex – Cooperativa Mista Extrativista de Agricultores de
Laranjal do Jari (Comaja) e Cooperativa Mista Agroextrativista do
Rio Iratapuru (Comaru) – têm estrutura semelhante – comandam duas

203
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

associações, são articuladas entre si – e, ao contrário do Acre, onde


poderosas centrais realizam a mediação com os produtores, nelas a
ação do governo estadual se faz diretamente com as Resex, e são
poucas as redes de parceiros.
Tais levantamentos permitem identificar três modelos quanto
ao predomínio das relações locais-globais, estaduais-locais e bem
distribuídas, ficando patente que as relações com a União são rela-
tivamente mais reduzidas, em face das parcerias internacionais e de
âmbito local (Figura 4).
A análise desses projetos revela que a iniciativa política foi o
germe dos projetos, e que as redes de parcerias têm papel fundamental
na mobilização da população e na sua existência através do apoio
técnico e financeiro. Colocam-se dois problemas quanto ao modelo
socioambiental: a) as redes de parceria não favorecem a sua consoli-
dação como empreendimento econômico sustentável, deixando o ônus
da implantação da infra-estrutura e da agregação de valor à produção
para o Estado brasileiro; b) o pretendido desenvolvimento endógeno
é desafiado pelo assistencialismo provido pelos parceiros, colocando
em dúvida o grau de autonomia alcançado pelas populações.
Enfim, o modelo socioambiental é um sucesso político, mas
não econômico, e não pode ser reconhecido como solução geral para
o desenvolvimento da Amazônia. Tampouco há que tratá-lo como
um corpo estranho, mas sim como uma inovação cujo isolamento
deve ser rompido mediante sua articulação com as políticas públicas
federais, regionais e estaduais.

204
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

Modelos de Redes de Parcerias

Relações Globais-Locais
Silves/Vale do Acre

Nacional Estadual

Local
Internacional Associações/
(Associações Mediadoras) Trabalhador
Cooperativas

Regional

Relações Estaduais-Locais
Vale do Purus/ Amapá

Nacional Internacional

As-
sociações/
Cooperativas
Estadual Trabalhador

Regional

Relações Bem Distribuídas


RECA - Reflorestamento Econômico Consorciado e Adesado

Nacional Internacional

Local Associações/
(Associações Mediadoras) Trabalhador
Cooperativas

Regional Organização: Bertha Becker


Elaboração: Claudio Stenner

Figura 4 - Modelos de Redes e Parcerias

205
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Vale registrar o significativo movimento social que vem ocorrendo


no Acre na fronteira tripartite Brasil-Peru-Bolívia, com a participação
de Ongs e de pesquisadores nacionais e estrangeiros.
A fronteira agrícola do sudoeste da Amazônia, ao se expandir em
direção à fronteira da Bolívia e penetrar na faixa boliviana, criou uma
nova realidade transfronteiriça, gerando uma dinâmica de fluxos entre as
comunidades localizadas em cada um dos lados. Assis Brasil geminou-
se a Iñapi (ou Inãpari) no Peru e Brasiléia a Cubija, na Bolívia, onde
brasileiros, moradores dos Municípios de Brasiléia e Epitaciolândia,
vão trabalhar.
É grande também a atividade de extrativismo, feita por brasileiros em
áreas bolivianas, gerando um fluxo permanente de pessoas e de negócios
entre os dois países. Pelo fato de Cubija constituir uma zona de livre
comércio, a população brasileira se desloca para o outro lado a fim de
adquirir produtos importados e, com isso, o comércio do lado brasileiro
acaba sendo prejudicado com a concorrência.
Na verdade, por sua localização, o Acre está mais isolado da Ama-
zônia brasileira do que do Peru e da Bolívia. Num raio de 750 km, há
uma população rarefeita em direção a Manaus a partir do Acre, enquanto
a população vizinha de Madre de Diós (Peru) e Pando (Bolívia) é muito
maior. As regiões de Madre de Diós, Acre e Pando, formam, assim, o
coração da Amazônia Sul-Ocidental, cujas iniciais formam a sigla MAP
(Brown F. e Brilhante, S, 2002), território que é afetado profundamente
pela pobreza, enfermidades e analfabetismo. Nesse espaço, avanços
nos planos de integração regional geram crescentes demandas sobre os
recursos naturais e provocam degradação dos ecossistemas.
Para amenizar esta situação, busca-se a integração de iniciativas
inovadoras, visando o desenvolvimento e a proteção ambiental. Uma
primeira reunião se realizou em Rio Branco, em 2000 (MAP I), e a
segunda em Puerto Maldonado, em 2001 (MAP II). No ano de 2002, o
206
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

MAP III se realizou em Cobija, quando se buscaram novos caminhos


baseados nos princípios do desenvolvimento sustentável contidos nos
grandes fóruns sobre a questão, bem como no Tratado de Cooperação
Amazônica e na Declaração dos Direitos Humanos (MAP, 2002).
O MAP III congregou 160 participantes dos três países, com 53
representantes de instituições estaduais, universitárias, Ongs e organizações
internacionais. A Carta de Cobija, dirigida aos governos e às sociedades,
apresenta 20 recomendações. A par do intercâmbio de informações, do
envolvimento de técnicos, da capacitação pessoal e de projetos con-
juntos, por meio de acordos de longo prazo que promovam a integra-
ção trinacional, essa carta propõe a criação de instituições regulares,
como o plano trinacional de manejo integral da Bacia do Rio Acre,
o Instituto Trinacional de Direito Amazônico, a Universidade de
Floresta e um centro trinacional para celebrar as manifestações étnicas
da região na confluência de Assis Brasil, Bolpebra e Inãpari.
É, portanto, na fronteira acreana que parecem mais avançadas as
iniciativas locais para a integração continental.

Ongs e Ongs

Sob a bandeira da proteção ambiental, ou mecanismos suposta-


mente compensatórios pelo não uso do capital (seqüestro do carbono), ou
ainda visando o desenvolvimento sustentável, as Ongs não constituem um
todo homogêneo; pelo contrário, diferem quanto ao seu objetivo, modo
de atuação e transparência. Tal distinção é fundamental para embasar uma
estratégia para lidar com elas. Via de regra, a sua diferenciação se baseia
no fato de serem Ongs de pesquisa ou não, mas esta classificação não é
satisfatória do ponto de vista da soberania. Não dispondo de documentação
para efetuar uma classificação adequada, é possível propor como critério,

207
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

o grau de interferência externa na definição e implementação de suas


agendas. Segundo esse critério, distinguem-se alguns exemplos:

1) Ongs cuja agenda é diretamente dirigida por potências líderes,


verdadeiras sucursais no Brasil. Várias Ongs atuam sob a liderança dos
EUA. A mais significativa desse grupo é a World Wildlife Fund (WWF),
uma Ong global com dupla liderança, um exemplo de comunhão entre os
EUA e a União Européia (UE). É a maior organização conservacionista
do globo, atuando em 120 países. Criada há mais de 35 anos, a WWF tem
hoje 5.000.000 de afiliados, com 1.500.000 norte-americanos ocupando o
primeiro lugar, mais de 300.000 ingleses e cerca de 30% da população da
Holanda. Integram a rede da WWF 27 organizações nacionais autônomas,
e um colegiado internacional (podendo participar membros das diferentes
organizações nacionais), com várias divisões, dirige a organização.
Arrecada 180 milhões de dólares por ano, se somada a contribuição de
sócios, fundações, corporações e governos.
Está sediada na Suíça, possuindo uma sub-sede em Washington,
destinada às ações na América Latina e Caribe. Quase 95% do financia-
mento de projetos da WWF no Brasil até os últimos 4 anos, se originaram
dos EUA e, uma pequena parte, do Canadá. Hoje, as fontes da Europa
tendem a superá-las. Em 1998, o total de recursos para a proteção do
meio ambiente destinados à América Latina e ao Caribe pela WWF foi
de 20 milhões de dólares, sendo 5 milhões só para o Brasil (aproximada-
mente 50 % correspondendo a fontes dos EUA e Canadá, e 50 % a fontes
européias). O novo quadro está associado a uma redefinição estratégica
da WWF que para superar a dispersão de ações, reduziu seus programas
e projetos principais para 4, visando otimizar técnicos e efeitos. Tal
reorientação é fruto de um trabalho de três anos de uma equipe de mais
de 200 cientistas, que dividiu o planeta em 800 regiões, definidas pela
densidade de interações ecológicas, priorizando as chamadas “Global

208
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

200” mais importantes. A América Latina e o Caribe contêm 53 dessas


ecorregiões.
A passagem do Brasil à categoria de organização nacional da
WWF, em 1996, representou a transferência de boa parte dos projetos
para o País, e também maior projeção e representatividade, além de
uma reorientação de postura fundamental: não permanecer apenas
na denúncia, mas mostrar alternativas, ou seja, influir nas políticas
públicas.

2) Ongs que têm fortes laços com o exterior mas cuja agenda
não é dirigida de fora, contemplando interesses regionais. São bastante
diferenciadas como, por exemplo: a) a Ong Amigos da Terra, em seu
programa para a Amazônia é voltada para o desenvolvimento regional; é a
que mais acompanha os eventos no conjunto da região, realizando críticas,
mas contribuindo com estímulo a várias iniciativas – combate ao fogo,
uso econômico dos recursos naturais (os Econegócios) – hoje, reduziu a
conexão com sua homônima de âmbito global, sendo a ela apenas afiliada;
b) o IMAZON é uma Ong de pesquisa, tendo recebido financiamento
da USAID e parcerias, sobretudo, com universidades norte-americanas.
Realizou contribuição original no estudo sobre a exploração madeireira
na Amazônia. Ambas têm forte influência no MMA.

3) Ongs antigas, gestadas no Brasil no bojo da reação da Igreja


e dos estudantes contra o regime militar, orientadas para apoio a grupos
sociais excluídos. É o caso da Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional (FASE), com ampla atuação no território visando
a produção familiar, e do Instituto Socioambiental (ISA), cujo foco de
atenção são as comunidades indígenas, particularmente no Alto Rio
Negro, onde participou da demarcação das terras indígenas.

4) Outras Ongs voltadas para os grupos indígenas são o Conselho

209
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Indigenista Missionário (CIMI) e o Oxfam, mas com atuação bem menos


extensa; em conjunto com outras organizações religiosas como a Miserior,
Novibe, corroboram a importância dessas organizações na Amazônia,
individualmente, ou em conjunto com outros parceiros.

5) Ongs de várias dimensões, que atuam de forma dispersa em


múltiplos projetos, de âmbito local ou regional, seja para estimular pro-
jetos alternativos, como aquelas citadas nas redes de parcerias e muitas
outras não devidamente conhecidas, seja para investimentos em seqüestro
do carbono, como é o caso do Instituto Ecológico na Ilha do Bananal,
financiado pela Inglaterra, e parceria da Igreja Luterana.
Se em suas origens no Brasil no início da década de 1970, as Ongs
surgiram de uma reunião promovida por organizações religiosas – CME,
protestante suíça; CCFD, católica francesa; e Desenvolvimento e Paz
(equivalente canadense do CCFD) – logo receberam apoio dos EUA,
pelo Peace Corps e Catholic Relief Service, de cunho econômico, que
estimularam a sua profissionalização e, na década de 1980, multiplicaram-
se as agências internacionais. Segundo alguns, seria útil distinguir as
agências européias e canadenses – CCFD, CME, Desenvolvimento e
Paz, Oxfam e ICCO – mais independentes dos seus governos e ligadas
ao ativismo sindical de seus países, e as agências norte-americanas,
fundamentalmente ligadas à política externa do governo americano
(Landim, 1993; Bouclet, 2003).
Enfim, parece que as Ongs têm se transformado em anos recentes.
“Locus” de expressão de identidades locais fortes, representação política
das populações desfavorecidas, e expressão local de interesses
internacionais, elas hoje estão em busca de novas formas de atuação para
se conciliar com as realidades do mercado. Boa parte de seus recursos é
proveniente da prestação de serviços, na medida em que são reconhecidas
pelo Estado e pelas empresas, se tornaram interlocutores incontornáveis

210
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

na definição de políticas públicas (Bouclet, 2003).


Verdadeiro “mercado da solidariedade” se estabelece com a glo-
balização, gerando forte competitividade entre as Ongs. Resta saber se
essa mudança vem ocorrendo no Brasil.
Ao que tudo indica, na Amazônia, as grandes Ongs estão se
orientando cada vez mais para a pesquisa capaz de influir nas políticas
públicas. É o que se verifica hoje com a intenção do Governo em
transformar a rodovia Cuiabá/Santarém em um exemplo de estrada
indutora de desenvolvimento. Em nome de pesquisas para a sustenta-
bilidade, IPAM e ISA receberam US$ 1.500.000,00 do consórcio da
USAID estabelecido para esse fim, e o IPAM recebeu mais um milhão
de euros da UE. Contudo, a UE ofereceu seis milhões de euros para o
MMA, com a mesma finalidade.
Enquanto isso, os pesquisadores brasileiros ainda que desejem,
não podem contribuir por absoluta carência de recursos. A vulnerabilidade
do Brasil é patente neste caso: o setor privado vai participar dos custos
da pavimentação da rodovia, mas os custos das pesquisas – e, portanto,
o delineamento da estratégia – virá de doações estrangeiras.

Considerações Finais

Embora uma tendência suspeita difunda a idéia de que os Estados-


Nação chegaram ao seu fim, assim como suas soberanias, é patente que,
pelo contrário, os Estados soberanos permanecem, embora sob nova
forma de soberania que eles mesmos constroem, e que os afeta profun-
damente devido à desigualdade do poder entre eles.
Há, sem dúvida, toda a sorte de intervenções internacionais – desde
os discursos aos acordos em fóruns globais – influindo na tomada de

211
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

decisões sobre o uso do território amazônico, sobre as quais percebe-se


a histórica cobiça internacional sobre a região. Há anos atrás, foi até
apresentada à Assembléia Geral das Nações Unidas, projeto de
resolução que, na prática, submetia a região a uma espécie de protetorado
da própria ONU. Hoje, a ONU está esvaziada e são os Estados líderes
que pressionam os demais, no caso do Brasil; destacando-se os Estados
Unidos com seus múltiplos braços, sobretudo organismos econômicos e
Ongs, seguidos de forma mais velada, da UE, Inglaterra e Alemanha, além
da Holanda, Noruega que sustentam Ongs e organizações religiosas.
A informação sobre a natureza amazônica – particularmente a
biodiversidade e o saber local – e a mobilização política de grupos
sociais são objetivos centrais da ação externa. Há uma nítida e crescente
tendência, através da cooperação internacional – financeira, técnica e de
pesquisa – e suas agendas, influir nas políticas públicas.
Entretanto, parte das intervenções enquadra-se no processo de
politização da natureza, isto é, não tem como objeto diretamente a
Amazônia, mas sim a utilizam para pressionar a tomada de decisão e o
controle do desenvolvimento (ou do não desenvolvimento) nacional, e
de suas posições de autonomia como é o caso do Mercosul como contra-
ponto à ALCA, defesa dos avanços em C&T, entre outras. Isto porque,
apesar do forte recuo econômico nas últimas décadas e da fragilidade do
Estado, o Brasil ainda é uma potência regional com peso no comércio
mundial, presença atuante em organismos internacionais, grande massa
de consumidores e liderança na América do Sul.
O grande problema quanto à soberania reside, assim, no poder
econômico dos Estados Líderes e na possibilidade de se estabelecerem
acordos desfavoráveis ao país. É a dívida externa que realiza a sangria dos
recursos nacionais e contribui para fragilizar o Estado. E, se os Estados
participam de uma construção da nova forma de soberania, cabe uma
atitude mais firme para enfrentar a questão. A recente proposta brasileira

212
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

de não incluir os investimentos em infra-estrutura no rol da dívida é uma


importantíssima inovação.
Tal atitude terá repercussões diretas sobre o exercício da soberania
na Amazônia, onde o maior problema é a fragilidade das instituições,
tanto em termos de recursos financeiros, de pessoal, quanto de poder de
comando. Deseja-se aqui chamar a atenção para dois fatos. Primeiro,
o Brasil tem enfrentado com desenvoltura e sucesso as imposições da
agenda internacional e as formas veladas de coerção quanto à Amazônia.
A veracidade dessa afirmativa é clara quando se comparam as formas de
intervenção na América Central e na Faixa do Pacífico Sul-americana.
Enquanto nessas áreas a intervenção se faz com crescente presença
militar através de localidades de operação avançada, cujo exemplo
maior é o plano Colômbia, no Brasil as intervenções se fazem através da
cooperação internacional, em grande parte porque o Estado respondeu
adequadamente à intervenção militar no território amazônico, tanto em
nível dos fóruns globais como em nível de projetos, como o Sivam, e
agora a integração da Amazônia sul-americana, resgatando o Tratado de
Cooperação Amazônica e fortalecendo o Mercosul.
O segundo fato a ressaltar é que o “calcanhar-de-aquiles” no
exercício da soberania sobre a Amazônia reside na interconexão das
faces interna/externa da soberania. O Brasil e a Amazônia, em particular,
constitui uma presa fácil para os interesses externos devido à conscien-
tização política, às crescentes reivindicações sociais e às organizações
da sociedade civil. A ajuda econômica e técnica através dos projetos
multilaterais e bilaterais e de Ongs e organizações religiosas, com suas
agendas, têm, assim, amplo espaço de manobra fortalecendo iniciativas
políticas internas mediante parcerias locais-globais e gerando recortes
territoriais na Amazônia, que de alguma forma, escapam à decisão
nacional sobre seu uso. A expressão mais clara desse processo é a polêmica
sobre as terras indígenas em áreas de fronteiras.

213
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Esta situação não é exclusiva do Brasil, mas atinge também


países como os Latino-americanos que foram colônia, se forjaram como
sociedades autoritárias e, cuja construção do Estado é recente, afetando
suas funções de controle do território e da população. Tais características
afetam o exercício da soberania, bem como a segurança do Estado, na
medida em que a insegurança emana de dentro de suas fronteiras, mas
certamente transborda para o exterior.
A face interna da soberania foi sempre negligenciada no Brasil
e hoje se torna particularmente importante, inclusive na Amazônia,
que não é um vazio demográfico e sim uma região com 20 milhões de
habitantes, onde a sociedade civil se organizou como nunca antes veri-
ficado. E mais, os movimentos sociais estão se internacionalizando e a
América Latina é o berço desses movimentos. Ao contrário da Europa e
dos EUA que caminham para governos de direita, na América Latina se
elegeram governos de centro-esquerda, e os movimentos sociais tendem
a se unir e se difundir, como ocorreu no Fórum Social de Porto Alegre,
alternativo ao de Davos.
Se esses movimentos têm uma face democrática, a falta de diálogo
reduz a governabilidade e afeta a soberania. As teorias sobre segurança
do Estado indicam que há dois modos de buscar assegurá-la: diminuição
da ameaça na sua origem – daí a cooperação e a participação nos orga-
nismos globais – e diminuição da vulnerabilidade interna frente a uma
determinada ameaça. Esta indicação se aplica à soberania, tanto para o
Brasil como para a Amazônia.
Como acima assinalado, o Brasil enfrenta muito bem as ameaças
externas, e deve reduzir sua vulnerabilidade interna. Sob um outro
ângulo, o que os movimentos sociais na Amazônia (e no Brasil) na
verdade reivindicam é uma maior presença do Estado. É na sua ausência
que os atores externos se instalam, suprindo o que o Estado não pode
oferecer.

214
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

A presença do Estado de Direito na Amazônia é, portanto, con-


dição básica para reduzir sua vulnerabilidade e assegurar o exercício
da soberania. Para tanto, é necessário e urgente um olhar pra dentro e
algumas sugestões são apresentadas a partir da análise efetuada neste
texto: a) substituir a política de ocupação da Amazônia por uma política
de consolidação do desenvolvimento, pois a região já possui uma dinâ-
mica própria e tem grandes e variadas demandas econômicas e sociais;
b) reconhecer as diversidades econômica, social e cultural, já que o povo,
componente básico da soberania, não é um todo homogêneo, embora
constitua uma unidade; c) suprir carências básicas da população, que
variam segundo os grupos sociais, bem como na zona rural e na cida-
de e nas sub-regiões. Chama a atenção o fato da Amazônia, como de
resto o Brasil, ser uma região urbanizada, com 70% de sua população
vivendo em núcleos urbanos, muitos deles sem a menor infra-estrutura.
Os movimentos sociais são justamente mais intensos nessas cidades.
Tal situação sugere uma estratégia de consolidação das cidades que,
afinal, são também os centros de comando das relações intra-regionais;
d) quanto aos custos da presença do Estado, uma nova atitude quanto à
dívida pode tornar disponíveis recursos para esse fim. Contudo, uma outra
negociação é necessária, tendo em vista um fato que passa, via de regra,
despercebido: as limitações aceitas e as pressões para proteção do meio
ambiente, tanto nas Áreas Protegidas quanto nos projetos comunitários
se fazem em benefício de todos, do bem comum. Entretanto, os custos
dessa proteção são nacionais, de fato anulando a ajuda econômica, e a
conta desses custos deve ser apresentada; e) Ongs necessitariam de maior
controle. É possível algum mecanismo de controle sobre os produtos de
sua atuação? Por exemplo, registro de presença e ações nos Municípios
onde atuam e apresentação de relatórios aos órgãos competentes dos
governos estaduais e mesmo federais, dependendo do âmbito de sua ação.
Ademais, se o Governo brasileiro realiza um grande esforço para gerar um

215
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

novo modelo de implantação de estradas na BR-163, não seria lícito que


as Ongs que receberam milhões de dólares para o mesmo fim, participem
desse esforço? O ativismo de certas Ongs é o mais pernicioso. Hoje, não
só influem na sociedade como competem com pesquisadores nacionais e
influem na política ambiental. Estão, através da pesquisa e do ativismo
social, ocupando o lugar do poder público. Um investimento massivo em
C&T é prioritário para gerar um pensamento autônomo no país;
f) a presença das Forças Armadas nas fronteiras é, sem sombra de dúvida,
necessária. Há que enfatizar a diferença entre Terras Indígenas e Unidades
de Conservação. No caso das UCs, se constituem uma forma de restrição
ao uso do território, podem ser vistas também pelo ângulo positivo do
exercício da soberania na medida em que asseguram o domínio do Estado
sobre as florestas e a terra. Quanto às terras indígenas, compreende-se a
preferência por territórios descontínuos, multiétnicos, com presença não
indígena e não inclusão dos rios estratégicos, como aconteceu na demar-
cação das Terras Indígenas do Médio e Alto Rio Negro. A fim de atender
reivindicações plausíveis dos grupos indígenas, e entender os índios como
atores na vivificação das fronteiras, retomar o encargo de serviços de saúde
e educação – que foram transferidos para outros – e criar normas claras
para o uso dos recursos existentes em suas terras, com sua participação, são
medidas que poderiam fortalecer a presença do Estado e evitar explorações
ilegais em suas terras. Deve ser lembrado que se a demarcação de suas
terras era uma reivindicação essencial dos grupos indígenas, hoje a nova
demanda é por desenvolvimento. Nas fronteiras superpõem-se três malhas
territoriais oficiais: a malha administrativa (Estados e Municípios), a malha
ambiental das áreas protegidas, e a faixa de fronteira. Ao que tudo indica,
a regulamentação da faixa de fronteira seria um instrumento essencial de
ordenamento do território estabelecendo normas de utilização da terra e
dos recursos naturais; g) o reconhecimento de que terras e florestas são
bens públicos e trunfos do poder do Estado indica que o aproveitamento

216
Limitações ao Exercício da Soberania na Região Amazônica

da fantástica biodiversidade amazônica é urgente para o bem da popula-


ção amazônica e brasileira. O Brasil já fez três importantes revoluções
tecnológicas: exploração do petróleo em águas profundas, transformação
da cana-de-açúcar em combustível, e aproveitamento do cerrado para a
cultura da soja. É hora de realizar uma revolução tecnológica para o bioma
Amazônia, utilizando a biodiversidade em todos os níveis – dos fármacos
à agregação de valor nas florestas – gerando cadeias produtivas capazes
de fornecer uma base econômica estável e competitiva para a população,
inclusive indígena.
Contudo, a cooperação internacional sob variadas formas é um
instrumento de coerção velada. Mas o diálogo, a diplomacia e, parti-
cularmente, o fortalecimento dos canais com a sociedade civil, podem
transformar a coerção velada em instrumento de mudança. A sinergia
a partir de estratégias concertadas das instituições públicas é, portanto,
essencial. Nesse sentido cabe lembrar o papel do Exército democrático
que, historicamente, foi das raras instituições a manter sintonia com a face
interna da soberania, tendo aproximação com as comunidades indígenas
e importante ação social, e hoje a Nação espera não só que se mantenha,
mas que em conjunto com as demais Forças, possa se fortalecer.

217
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Referências Bibliográficas

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219
Relatório do Encontro de Estudos�
Relatório do Encontro de Estudos

A reunião de técnicos do Governo, Organizações Não Governamentais


que atuam na região, especialistas ambientais e acadêmicos, denominada
Encontro de Estudos, encerrou oficialmente o Ciclo de Estudos sobre
a Amazônia – uma série de três reuniões que teve como objetivo colocar
em pauta, no âmbito das decisões estratégicas do governo, a temática da
Amazônia, bem como questões daí advindas.
Cronologicamente, ocorreu a realização de Palestra no dia 15 de
abril; a Reunião de Estudos, no dia 05 de maio e, finalizando o Ciclo, o
Encontro de Estudos, realizado no dia 20 de maio de 2004, no auditório
de videodifusão do Palácio do Planalto.
O Encontro de Estudos, que reuniu cerca de 50 pessoas, além
de representar a síntese dessa série de reuniões, teve como objetivo a
discussão de alguns temas polêmicos, a exemplo da presença do Estado
na região Amazônica; a presença das Forças Armadas; a questão da
soberania nacional, além é claro, da infra-estrutura de transportes, o
“calcanhar-de-aquiles” da região.
A reunião foi aberta pelo Senhor José Alberto Cunha Couto,
Secretário de Acompanhamento e Estudos Institucionais do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República (SAEI/GSI), que
destacou que o evento encerrava o Ciclo de Estudos iniciado em 15 de
abril e chamou a atenção dos participantes para o fato de que, quando da
realização dos debates, eles se sentissem à vontade para emitir suas opiniões
pessoais, não necessariamente posicionamentos institucionais, pois o
objetivo do encontro era ampliar o intercâmbio de idéias sobre a questão
amazônica.
Em seguida, o Tenente Coronel Joarez Alves Pereira Júnior,
Assessor da Saei, forneceu algumas orientações acerca da metodologia
utilizada na reunião, informando que as apresentações dos palestrantes
seriam divididas em dois grupos e que ao final das mesmas, haveria um
debate. Destacou que o Encontro de Estudos representava a última
223
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

etapa do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e que a denominação de


Estudos se referia à proposta de o mesmo se constituir em um espaço
de análise e troca de conhecimentos e que a audiência era formada por
um público diversificado.

Apresentações e Debates

O primeiro conferencista a discorrer sobre a temática proposta


foi o Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da
UFRJ, Francisco Carlos Teixeira da Silva, cujo título da apresentação
foi Amazônia: Uma questão e várias Abordagens, onde inicialmente
se deteve numa breve contextualização histórica sobre a questão
amazônica.
Teixeira afirmou que mesmo após uma clara integração da Amazônia
e de seu pleno reconhecimento mundial como terra brasileira, a região
permanece como um território exótico para a maioria dos brasileiros,
carregada de imagens generosas e temíveis, e com um descompasso
notável com o conjunto do País. Citou alguns dados em relação à
Amazônia: por exemplo, a Amazônia representa 60% da superfície do
Brasil, seu PIB não passa de 5% do PIB nacional, reúne apenas 10%
da população urbana e 12% da população total do País. Ressaltou que o
único indicador, pouco invejável, para qual a Amazônia supera sua quota
de território é o número de mortos em conflitos fundiários.
No seu contexto geral, afirmou, a Amazônia apresenta ainda
outras grandes disparidades em face das demais regiões: assistiu a um
amplo crescimento demográfico entre 1970 e 2000, da ordem de 172%,
mantendo-se, contudo como a região menos povoada, com 12% da população
nacional (contra 8% em 1970). Conseqüentemente, as densidades

224
Relatório do Encontro de Estudos

demográficas são as mais baixas do País, com 4.18 hab/km2, chegando


no Estado do Amazonas a apenas 1.83 hab/km2 (contra uma densidade
nacional de cerca de 20 hab/km2). Da mesma forma, afirmou, dados
mais qualitativos apresentam o mesmo recorte da desigualdade: segundo
o CNPq a região conta com apenas 2.7% dos pesquisadores-doutores
do país (contra 34.7% de São Paulo, por exemplo), sendo que mesmos
estes possuem em mais de 50%, origem fora da região, talvez a mais
importante defasagem atual da região.
De acordo com Francisco Teixeira, tais disparidades impactam
claramente a formulação, tomada de decisão e a elaboração de políticas
públicas para a região, acentuando a importação de projetos e de “soluções”,
marcadas profundamente pelo tratamento exógeno da Amazônia e a ma-
nutenção do caráter de “conquista” das formulações de políticas públicas
para a região Amazônica. A necessidade de investimentos fundamentais
em Ciência e Tecnologia talvez seja, hoje, segundo o Pesquisador, tão ou
mais importante do que abrir estradas.
O Pesquisador afirmou que, no seu conjunto, as formulações
teóricas que alicerçam a tomada de decisão sobre a Amazônia pertencem
a um velho conjunto de idéias sobre a região, repetindo-se com grande
freqüência, mitigadas com visões consideradas modernas e que no mais
das vezes, se combinam e se articulam para alicerçar teoricamente as
formulações voltadas para o desenvolvimento regional.
Observou que a grande maioria das formulações teóricas que enquadram
os projetos de desenvolvimento da Amazônia baseia-se em visões da região
cujas matrizes residem em uma compreensão externa. Citou o trabalho de
Eli Lima, pesquisadora do CPDA/UFRJ, que pôde perceber com clareza
as origens, no século XIX – em virtude direta do surto da borracha, de seu
ápice e crise – das visões da Amazônia, centradas num imaginário que,
segundo ele, pode-se denominar “imagens do sertão”, típico da grande
expansão imperialista do século XIX e início do século XX.
225
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Destacou que o Brasil da República Velha se lançou na conquista


de seus sertões, em vez da busca e das conquistas imperiais no exterior. As
questões centrais sobre a Amazônia – suas riquezas, seu caráter inóspito
e consumidor de homens através das maleitas; um mundo formado por
águas; a floresta imensa, muda e vazia; as preocupações com as fronteiras
e os limites, tudo isso esteve, segundo ele, nas notas de Euclides da Cunha,
quando da Missão Brasileiro-Peruana de estabelecimento das fronteiras,
organizado durante a estada no Acre, recém-anexado ao País.
Afirmou que o advento do Estado Novo (1937-1945), com seu
afã colonizador e integrador acentuaram o culto de Euclides da Cunha,
de sua visão da Amazônia, ora “Paraíso Perdido”, ora “Inferno Verde”,
embasando as políticas formuladas para a região. A partir daí, quebrado
o monopólio brasileiro da exploração da borracha e fracassado o projeto
de Fordlândia e Belterra, iniciado em 1922, pode-se verdadeiramente
falar no surgimento de uma “questão amazônica” para o Brasil. Neste
sentido, afirmou, é possível apontar algumas das regularidades – os pontos
comuns que se repetem nos diversos discursos sobre a Amazônia – e que
marcam a “Questão da Amazônia” na história republicana brasileira como
matrizes teóricas do planejamento desenvolvimentista.
Francisco Carlos Teixeira expôs algumas matrizes teóricas para
a região, suas propostas e alguns pré-cenários daí decorrentes:

1. �����������������������������������
A Matriz securitização da Amazônia: esta talvez seja a matriz
mais antiga, e mais repetitiva, das preocupações sobre a região. Originária
do período Colonial tem suas raízes na preocupação real ou imaginária
com a integração nacional do território em virtude dos riscos de inter-
nacionalização. Nos séculos XIX e XX, os riscos de internacionalização
foram relativamente baixos, sem grandes aventuras ou intromissões
estrangeiras, excetuando-se os planos – recentemente divulgados pelos
arquivos americanos – de uma invasão americana contra Belém durante
226
Relatório do Encontro de Estudos

a II Guerra Mundial. As demandas da França e da Inglaterra, na área das


Guianas, foram resolvidas por arbitramento e a Questão do Acre acabou,
em verdade, por engrandecer a região. Na segunda metade do século
XX, as preocupações com a região voltaram a um patamar elevado
– mesmo descontando uma certa paranóia nacionalista – as diversas
pretensões internacionais sobre os recursos naturais da região causam
preocupação. A partir dos anos 70, e muito especialmente após a abertura
da Transamazônica e do surto dos grandes projetos, entre 1960 e 1970, a
região passou a ser alvo de inúmeras avaliações por parte de instituições
internacionais, muito especialmente Ongs. Muitas vezes as alegações
eram baseadas em teses, ou evidências, bastante frágeis, como o mito
da Amazônia enquanto “pulmão do mundo”. Teixeira afirmou ainda que
outras preocupações voltaram-se para a defesa da biodiversidade, da
floresta do trópico-úmido e das populações indígenas, normalmente
acusando instituições nacionais permanentes – como as Forças Armadas
– de ação insensível a tais temas, como em reportagem recente do New
York Times. Citou ainda um recente texto de Pascal Boniface, importante
assessor da ONU, que demonstra um acirramento das visões sobre a
Amazônia e o seu desenvolvimento, provocando um incômodo cruza-
mento entre a vertente “securitizante” e a vertente conservacionista que
explicam e propõem formas de ocupação regional.
Destacou algumas das percepções “securitistas” sobre a região:

• Do ponto de vista exclusivamente militar a grande novidade


regional é a ampliação do conflito político-militar na Colômbia,
com um crescente risco de internacionalização da crise
naquele País. Porém, não se constitui num risco imediato ou
irremediável. Na verdade, explicou, não há nenhum grande
eixo de acesso rodoviário direto com a Colômbia, sendo o
contato bem mais fluvial – Tabatinga/Letícia – ao contrário,

227
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

por exemplo, dos projetos em curso voltados para Bolívia,


Peru e Venezuela, onde os nós rodo-fluviais começam a se
adensar com grande êxito. O principal eixo de contato – através
do rio – pode ser bem patrulhado e controlado, havendo
vontade e meios para isso. Talvez mais preocupante seja a
possibilidade de um recrudescimento da ação militar na
Colômbia, inclusive com um combate intenso contra cocaleros,
originando vagas de refugiados hispanófonos sobre a área
fronteiriça. Este, contudo, é um cenário remoto.
• A maior parte da vertente Andina, compreendida enquanto
faixa de fronteira, não apresenta nenhum risco militar notável,
ou que possa efetivamente gerar preocupações iminentes de
segurança. Os Governos da Bolívia, Peru e Venezuela são
regimes amigos, com relações cada vez mais estreitas com
o Mercosul e com quem o Brasil pode desenvolver projetos
conjuntos de integração na área de infra-estrutura (rodovias,
pontes, canais, etc...), alguns já em portfolio do BNDES,
além de aberturas de vias de mão dupla entre o Pacífico
e o Atlântico, atendendo aos interesses de todos os países
envolvidos.
• Nenhum destes países encontra-se, no momento, em enfren-
tamento com qualquer tipo de guerrilha local, capaz de
subverter os regimes estabelecidos, ou de utilizar o território
nacional como santuário, refúgio ou trilha de acesso. Talvez
o dossier das chamadas novas ameaças mundiais – tais
como o narcotráfico, contrabando de armas, biopirataria,
ou o terrorismo internacional, sejam elementos bem mais
pertinentes para o questionamento em torno das chamadas
Faixas de Fronteira.

228
Relatório do Encontro de Estudos

O Pesquisador afirmou que, historicamente, as invasões ou risco


de invasão da Amazônia se deram sempre no sentido montante do Rio
Amazonas, da foz para os sertões, e nunca inversamente. Nada no
cenário da região, num espaço de 25 a 30 anos, anuncia uma mudança
estratégica neste quadro. Qualquer agressão, como a sugerida por Pascal
Boniface, se daria no sentido montante, leste/oeste. Assim, a Foz do
Amazonas, a região mais densamente habitada e habilitada da região
permanece como a porta de entrada de todo o território.
Neste sentido, apontou, dois cenários possíveis:
a) �������������������
O cenário Boniface: dar-se-ia por volta de 2035, quando as
pesquisas em torno da sintetização de moléculas e/ou fármacos oriundos
da flora e fauna movimentariam um mercado mundial de bilhões de
dólares e, ao mesmo tempo, a crise de abastecimento de água potável
aumentaria, atingindo milhões de pessoas, dependentes de dutos para
sua manutenção. Nestas condições, uma coligação internacional usando
como pretexto a defesa do meio ambiente, utilizaria uma task force,
combinando força naval, estações orbitais e submarinos para agir a
partir da Foz do Amazonas;

b) ���������������������������
O cenário do Arco Indígena: a partir de 2015 a maioria dos
regimes estabelecidos nos países Andinos – Bolívia, Peru, Equador – estariam
em mãos de movimentos indígenas, constituídos de cocaleros – não
narcotraficantes – e campesinos, revertendo a dominação de mais de 500
anos das minorias criollas hispânicas. Tais regimes seriam marcados
por forte instabilidade, nacionalizações e perda de controle territorial,
criando uma zona em “arco de instabilidade” vinda do sul da Colômbia
até o norte do Paraguai. O impacto das vitórias indígenas provocaria
grande inquietação no Paraguai, onde as autoridades perderiam o
controle do território, criando uma terra de ninguém entre o Centro-
Oeste brasileiro e o Chaco. Grupos indígenas brasileiros, já com forte

229
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

recuperação demográfica, começariam a aderir ao indianismo militante


e revolucionário.

Francisco Teixeira ressaltou que a partir daí, num claro exercício


hipotético, três sub-tendências, podem ser identificadas:

• O Brasil teria na sua fronteira um “arco de instabilidade”, onde


os interesses (principalmente na área de energia, fundamental
para a manutenção do eixo industrial São Paulo/Santa Catarina)
estariam ameaçados. Não se trata de hostilidade – pode-se
manter um perfil cooperante com tais regimes indígenas – mas,
de instabilidade, pondo em risco um projeto de crescimento
integrado sul-americano. Seria necessário lidar com uma forte
hostilidade antiamericana na região, com possível nacionalização
de bens e investimentos estadunidenses e retirada forçada de
bases americanas na região;
• Os Estados Unidos estariam em condições de forçar uma
intervenção preemptiva na região Andina, possivelmente na
Bolívia, visando evitar a indigenização do País. Neste sentido,
pressionaria o Brasil a agir em conjunto na região, utilizando-
se de uma disposição intervencionista de caráter também
preemptivo do Chile, que tornar-se-ia a principal base de ação
dos Estados Unidos no Continente Sul-Americano.
• Os Estados Unidos fortaleceriam suas bases ao longo do “Arco
Indígena da Instabilidade”, acabando por cercar a Amazônia
brasileira de um forte sistema militar, contando com o
apoio, ao Sul, do Chile e ao Norte, da Colômbia, ocupada
militarmente.

De acordo com o Pesquisador, tais cenários, apenas esboçados,


claramente hipotéticos, talvez até mesmo exagerados, mas infelizmente

230
Relatório do Encontro de Estudos

inscritos na realidade sul-americana e potencializados nos últimos acon-


tecimentos na Bolívia, no Equador e, cada vez mais possível, no Peru
são viáveis em caso de manutenção da atual política de ação preemptiva
enquanto base da Política de Segurança Nacional dos Estados Unidos. A
existência mal dissimulada, de uma vasta rede de operações, vigilância
e informação dos Estados Unidos, desde a grande base militar na
Guiana – ex Guiana inglesa – até os estabelecimentos no Paraguai,
reforçam as preocupações existentes.
Afirmou ainda que a atuação da Inteligência americana no
País – mesmo através de agências brasileiras – bem como a insistência em
internacionalizar a questão da Tríplice Fronteira, demonstram o interesse
de manter de forma operacional a presença estrangeira em duas regiões
estratégicas nacionais, tanto ao Norte, quanto ao Sul da Amazônia.
Ressaltou que não se pode, como algumas vertentes ambientalistas
desejariam, eliminar as Forças Armadas, e o fator Segurança Nacional,
do equacionamento de uma política nacional para a Amazônia. Trata-se,
em verdade, afirmou, de seguir claramente os princípios estabelecidos na
Constituição democrática de 1988, onde se fixam claramente as funções
institucionais das Forças Armadas. Neste sentido, a eliminação das
Forças Armadas da região, a limitação de seus movimentos ou sua sujeição
a outras instituições (nacionais ou estrangeiras, estatais ou privadas) é
claramente um desiderato anticonstitucional.
De acordo com Francisco Teixeira, as Forças Armadas são um dos
atores fundamentais na região, com uma tradição que passa pelos fortes da
Amazônia, pela ação do Correio Aéreo Nacional, pela atuação de Cândido
Rondon, pelo Projeto que leva seu nome e também por escolhas estratégicas
bastante discutíveis, como a construção de rodovias e os grandes projetos dos
anos 70. A mais recente intervenção deu-se através do Sistema de Proteção
da Amazônia (Sipam) e o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), peças
fundamentais no enfrentamento das chamadas “novas ameaças”.
231
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

2. A Matriz Determinista: Segundo Francisco Teixeira, boa parte


da literatura sobre a Amazônia está profundamente impregnada por um
dos muitos tipos de determinismo geográfico, ecológico ou ambien-
talista, largamente baseado em dois clássicos oriundos da “República
Velha”, marcados pela ambiência cientificista herdada do século XIX,
e do culturalismo de H. Taine, com suas polaridades e díades marcadas
por civilização e barbárie, transformadas em chaves de entendimento da
região. Trata-se, em primeiro lugar, de Euclides da Cunha, que através da
Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, patrocinada pelo Ministério
do Exterior, percorreu a região, entre 1904 e 1905, enviando sistemati-
camente artigos para jornais do Rio de Janeiro. O conjunto de anotações
e artigos de Cunha foi publicado em 1909, com o significativo título “À
Margem da História”, apresentando ao público culto do Rio de Janeiro
um mundo totalmente novo, onde o personagem central era a própria
natureza. Um pouco antes, em 1906, Alberto Rangel publicava “Inferno
Verde”, um diálogo claro com o próprio Euclides da Cunha (a partir da
matéria previamente publicada em jornais), onde as duas visões travavam
um duelo sobre a verdadeira natureza da Amazônia. De qualquer forma,
a díade barbárie versus civilização é o elemento norteador de todo o
debate, centrando na natureza – pródiga ou inóspita – o protagonismo da
história. Enquanto em “Os Sertões” o homem – mesmo com suas taras
e atavismos - é sempre o centro explicativo da história, nos dois textos
citados, a natureza, cada vez mais antropomorfizada em suas conseqüências
é o ator central em todas as cenas.
A partir do final dos anos 50, sob o impacto da Administração
JK, e com a inauguração de Brasília, inverte-se radicalmente a abor-
dagem da questão amazônica: a “Amazônia dos rios”, com seus eixos
e nós voltados para o sentido Leste/Oeste, passa a ser cruzada por um
eixo vertical, rodoviário, no sentido Sul/Norte, criando outros eixos de
adensamento, inaugurando claramente uma nova fase na história da

232
Relatório do Encontro de Estudos

colonização regional. A oposição à construção da Belém/Brasília gerou


típicos sentimentos coletivos oriundos da matriz determinista: de um
lado, uma grande euforia; de outro lado, o deboche expresso na idéia de
“estrada das onças”.
Um fato, ou talvez de melhor forma, um procedimento merece ser
destacado na gestão JK: a extensão à Amazônia de procedimentos anti-
burocráticos típicos de sua atuação administrativa. JK, que desconfiava
da burocracia estatal, optou sempre pela criação de Grupos de Apoio ou
Grupos de Trabalho para gerir os projetos que considerava estratégicos,
visando dar velocidade e eficácia a tais procedimentos. Inaugurava-se, de
qualquer forma, segundo Francisco Teixeira uma nova fase na ocupação
da Amazônia.

3. A Matriz Ambientalista: O Pesquisador chamou a atenção


para a diferença entre o ambientalismo e a matriz determinista, muito
embora ambos possam, em algum momento, possuir sérias vinculações.
Destacou que desde o século XIX, sob o aspecto de preservacionismo,
existiu uma corrente de pensamento voltada para as questões ambientais
e que aos poucos originaria um pensamento conservacionista, o ecologismo,
o socioambientalismo e mesmo um técnico-ambientalismo. Afirmou
que o trabalho de Paul Little dá conta plenamente das diversas nuances
e aspectos da grande vertente ambientalista. É fundamental demarcar a
grande expansão de uma percepção ambientalista da Amazônia, muito
especialmente depois dos anos 60 e 70, sob o impacto da implantação
dos grandes projetos na Amazônia.
Segundo ele, é a partir de uma forte pretensão cientificista que o
pensamento ambientalista introduz diversos diagnósticos sobre a ocupação
e o desenvolvimento da Amazônia, que podem ser resumidos numa
constatação recente: o impacto negativo da maior parte da intervenção
humana na região.
233
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Ressaltou que grande parte dos ambientalistas promove uma ampla


revisão da história da Amazônia, centrando a ênfase de suas análises
na impropriedade da colonização européia da região, como ainda, dos
esforços de povoamento ao tempo do Império, em especial, durante o
surto da borracha. A idéia central enfatizou, baseada em estudos de solo,
aptidão, climatologia, reside na afirmação do caráter frágil do ecossistema
amazônico, montado sobre um equilíbrio dinâmico, auto-sustentado,
e de constante feedback. A ação humana de origem européia, e depois
nacional, teria o papel de desarticular este frágil equilíbrio, abrindo o
caminho para a desertificação e supressão da biodiversidade local.
Especialmente, a tentativa de ocupar e colonizar a Amazônia teria um
custo bastante elevado, já que as condições ecológicas locais não
sustentariam grandes populações.
Afirmou que entre os muitos cientistas que defenderam esta
“matriz ambientalista” para a compreensão da Amazônia destaca-se por
seus longos anos de estudo e dedicação ao tema e à região, a cientista
Betty Meggers. Em sua tese central sobre a região, Meggers afirmou
que o desenvolvimento das sociedades indígenas da região foi limitado
pela pobreza do ecossistema, que por sua vez impediu o crescimento e o
adensamento populacional, bem como a intensificação das ações econô-
micas. Em clara oposição às noções de “paraíso” e “cornucópia”, a própria
natureza amazônica seria o fator que limita o crescimento populacional,
gera crises de abastecimento e impede o desenvolvimento da região.
Da mesma forma, acrescentou, pesquisas arqueológicas modernas,
realizadas na área de atuação das civilizações Maia e Asteca começam a
derrubar a tese do colapso ecológico da civilização Maia. A explicação
clássica, de que as florestas úmidas do México, Guatemala e Belize não
seriam capazes de sustentar uma população densa em expansão constante
começam a ser desmentidas pelas novas descobertas arqueológicas. Em
verdade, os testemunhos arqueológicos mostram que as Cidades-

234
Relatório do Encontro de Estudos

Estados Maias em constante guerra não conseguiram reunir as condições


de unificação política, sendo superadas e conquistadas pelos povos
Astecas, com uma tecnologia militar superior e uma organização política
mais eficiente.
Destacou que mesmo as afirmações comumente repetidas sobre o
equilíbrio instável do ecossistema amazônico, produto de milhares de anos
de feedback, de auto-reciclagem da floresta, parecem largamente caducas
em áreas centrais da Amazônia, muito especialmente em ecorregiões
homogêneas de grande valor econômico. Assim, as grandes florestas
de castanheiras e os imensos coqueirais de babaçu surgem, após várias
pesquisas, como produto da ação humana, uma intervenção planejada
e substituta da floresta primária, e que foi capaz de assegurar grande
sucesso econômico e ecológico.
Ressaltou que se tratam, em verdade, de florestas plantadas dentro
da floresta e de caráter bastante recente em relação à história natural da
região. Grande parte da área teria sido claramente transformada pela ação
humana, fazendo com que a distinção clássica entre paisagem natural e
paisagem cultural tenha que ser abandonada para amplas regiões específicas
da Amazônia. Como exemplo, citou as matas de bambu, que representam
cerca de 85.000 km2, plantadas ainda num período Pré-Colombiano. A
mata chamada apête (cerrado em língua kaiapó), no sul do Pará, Tocantins
e Norte do Mato Grosso, surge como produto direto do plantio indígena.
Da mesma forma, as imensas matas de castanhais, a Bertholletia excelsa,
com cerca de 8.000 km2 em torno de Marabá, no Pará. Mas, a maior
extensão de paisagem homogênea criada intencionalmente são as matas
de babaçu – cerca de 196.370 km2 – na Amazônia Legal.
Francisco Teixeira destacou a necessidade de valorização do saber
tradicional, local, rico em imagens e técnicas capazes de lidar com
sustentabilidade com o meio ambiente, em vez de aferrar-se a uma visão
ambientalista fixista da natureza. A valorização dos saberes locais é, nesse
235
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

sentido, a chave ou ponto de partida para uma visão auto-sustentada da


ocupação e do desenvolvimento da região. Há que se levar em conta as
formas culturais e sociais da ocupação: entre o sistema de adensamento
urbano das várzeas e as grandes metrópoles modernas, impondo estra-
tégias de sustentabilidade diferentes. O grande desafio, afirmou, reside
exatamente aí: como realizar uma apropriação extensiva de práticas e
saberes tradicionais numa sociedade moderna de massas.
De qualquer forma, os exemplos históricos de alteração e criação
de outros subsistemas ecológicos na Amazônia servem para advertir e
informar ações futuras. Tais bosques alterados ou plantados são bons
exemplos de perturbações em sistemas estáveis que geram mudanças de
padrão em direções não-previstas. Talvez se deva, afirmou, abandonar
um determinismo evolucionista contido em boa parte do pensamento
ambientalista, de tipo linear, típico das previsões e cenários pessimistas
em favor de um modelo de evolução não-linear, como, por exemplo,
contido na Teoria do Caos. Pode-se, assim, pensar em novos sistemas
originados historicamente da ação humana na Amazônia, sob as condições
históricas específicas, e que se tornaram, por sua vez, sistemas estáveis
e formam ecossistemas passíveis de novas intervenções perturbadoras e
que não guardam relações com as condições sensíveis iniciais.

4. A Matriz Desenvolvimentista: foi a partir dos anos 60, no bojo


dos esforços de integração nacional desenvolvidos pela Administração
JK que a Amazônia transformou-se em foco de uma política nacional.
Embora Vargas já tivesse se voltado para a região, suas principais
preocupações centraram-se no Brasil Central, com a multiplicação de
projetos de colonização e a redivisão territorial, criando os chamados
“territórios federais”, e multiplicando municípios, como forma de adensar
o povoamento da região. A abertura da Belém-Brasília e, mais tarde, os
grandes projetos, em especial as rodovias, do final dos anos 60 e 70,

236
Relatório do Encontro de Estudos

mudaram definitivamente a fisionomia da Amazônia. Uma das caracte-


rísticas centrais da ação desenvolvimentista na região foi a superação
da dependência única em virtude dos eixos e pontos nodais ancorados
em cidades à beira-rio. O eixo central de ocupação, um vetor histórico
da penetração na região, era, desde o início da colonização portuguesa,
o percurso do grande rio e seus afluentes à montante, com o vetor leste/
oeste, mantendo-se assim durante os quatro séculos seguintes.
A partir dos anos 60, este vetor cede em importância em função
de uma intervenção humana de duplo impacto geopolítico: a construção
de um eixo rodoviário – primeiro impacto o fato de ser uma rodovia
– com o sentido sul/norte – este, o segundo impacto – representado pela
Belém/Brasília.
A criação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
em 1952 – uma resposta a uma iniciativa da ONU, visando criar um
Instituto Internacional da Amazônia, instalado na região e sob soberania
internacional – bem como a constante atuação do Museu Emílio Goeldi
marcaram os dois principais – e até meados dos anos 80 – únicos centros
nacionais de pensamento sobre a Amazônia, localizados na região. Isto,
sem dúvida nenhuma, afirmou, foi um marco fundamental do desenvolvimento
da região. Mais tarde, no bojo da ação dos grandes projetos – anos 60/70
– surgem a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam),
em 1966, e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), em
1967. Muitos dos grandes empreendimentos regionais tiveram suas
origens neste momento, tais como o Projeto Jarí; os projetos de colonização
na Transamazônica e na Cuiabá-Porto Velho; as hidrelétricas de Tucuruí
e Balbina; o Programa Grande Carajás; a Ferrovia Carajás-São Luís; as
indústrias de alumínio de Barcarena, etc...
Nos anos 70, surgiu uma nova intervenção, também de caráter
geopolítico: a BR-364 – Cuiabá/Santarém – e a Transamazônica, indo
da Paraíba até os contrafortes Andinos. Nos anos 90, em especial através
237
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

da retomada da Perimetral Norte sob a forma do Projeto Calha Norte,


acentuou-se a percepção geopolítica leste/oeste, embora várias outras
intervenções tenham sido feitas sem qualquer avaliação de conjunto ou
busca de complementaridade.
Na verdade, não havia um projeto de conjunto ou objetivos cla-
ramente formulados que pudessem definir os vetores geopolíticos claros
da intervenção do Poder nacional na Amazônia. As duas tendências:
leste/oeste e a sul/norte continuaram a suceder-se sem quaisquer
avaliações de conjunto ou um plano-diretor de investimentos e de
intervenção social, sem falar num zoneamento realmente eficaz e orientador
da ação pública.
De qualquer forma – como um resultado inesperado da falta
de planejamento – a ocupação da região resultou na construção de um
quadrilátero viário, composto de vias fluviais e rodoviárias marcado por
três grandes eixos leste/oeste, como paralelas geopolíticas da região: o
grande rio ao centro, um vetor na margem esquerda e outro na margem
direita, ainda, é claro, de forma incipiente.
Ressaltou que todo desenvolvimento futuro deve ter firmemente
em perspectiva a existência de tais estruturas e evitar superposiciona-
mentos, além de um cuidadoso planejamento dos eixos verticais, de
acesso ao Caribe/Pacífico, visando dar um caráter racional ao xadrez
que se anuncia.
É neste sentido, frisou, que podemos constatar que a abertura
de novos eixos viários, com vetores novos, aponta claramente para a
possibilidade da Amazônia transformar-se, em três décadas, na área-
pivot, para retomar uma expressão cara da geopolítica, da integração
sul-americana: o eixo Cuiabá/PortoVelho/Manaus poderá ser facilmente
conectado, em uma ponta, com São Paulo e daí a todo o Mercosul, e ao
norte, com Caracas, abrindo o Caribe e a Panamericana em direção ao
Canal do Panamá; da mesma forma, o eixo Belém-Brasília conecta-se,
238
Relatório do Encontro de Estudos

ao sul, com Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e ao norte, com o Amapá


e daí para as Guianas.
Assim, avançando as obras de infra-estrutura na fronteira com
a Venezuela, e talvez com a Guiana, o Brasil abre uma via alternativa a
Carretera Panamericana, integra uma poderosa economia regional – a
Venezuela – ao sistema amazônico e, ao mesmo tempo, acessa o Pacífico.
Da mesma forma, os eixos sul/norte abrem a região aos fluxos demo-
gráficos oriundos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – onde
existe uma forte tradição de exportação das formas familiares da pequena
produção, processo já em curso e cuja ponta já atinge Roraima – além
dos grandes investimentos agropecuários de São Paulo e Paraná.
O eixo leste/oeste seja através dos rios, seja através das estradas
dos anos 70, centrava-se principalmente na preocupação de transferir
excedentes de população do Nordeste para a Amazônia, procurando
simultaneamente diminuir a tensão social numa área “velha” e ocupar
uma área nova. O traçado sul/norte, por sua vez, garantiu a formação de
uma paisagem diferenciada, menos cabocla e, portanto menos “invisível”
ao desenvolvimento; este vetor reproduziu uma paisagem mais empreen-
dedora, mesmo que ainda sob a forma de pequena produção familiar, na
qual Rondônia é um bom exemplo do processo rápido de povoamento e
que talvez, seja o futuro de Roraima, prenunciando tensões sociais ainda
mais graves naquele Estado.
De qualquer forma, na margem sul da macro-região, já bastante
tocada pelos vetores sul/norte, reproduziu-se a forte tensão entre pequena
produção familiar, posse intrusiva e grandes projetos agro-pecuários,
dando à região o triste perfil de área de maior tensão de conflitos de
origem fundiária do País, em especial Rondônia e sul do Pará. Na verdade,
o adensamento demográfico, ao longo das margens sul/sudoeste e leste
da região – Rondônia/Tocantins/Sul do Pará – criou uma longa faixa de
conflitos fundiários, sem qualquer resolução à vista.
239
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Mantendo-se os eixos de ocupação sul-norte um cenário semelhante


tenderia a se reproduzir no Acre – os sinais da crise fundiária já são
bastante visíveis – no Amazonas ocidental e Roraima. Assim, uma inter-
venção imediata, com planos regionais de Reforma Agrária e Coloniza-
ção, são primordiais para que o desenvolvimento da Amazônia ocidental
não reproduza o caráter de “terra sem lei” de algumas regiões do Pará
e Rondônia (El Dourado de Carajás, Corumbiara, Reserva Roosevelt,
etc..), com o claro agravante de envolver dois outros componentes
bastante explosivos: a situação de fronteira e a existência de extensas
Terras Indígenas.
Deve-se entender, ainda, que qualquer processo de ocupação
e desenvolvimento da Amazônia, tendo como um dos seus aspectos a
frente pioneira agrícola, terá nas populações organizadas sob a forma
da pequena produção familiar – em clara expansão demográfica de tipo
chayanoviano nas áreas “velhas” do País – uma das pontas mais dinâmi-
cas de expansão do povoamento. A frente pioneira, de perfil familiar e
chayanoviano, realiza tal processo histórico através de baixo investimento
de capitais, de tecnologia e uso extensivo de trabalho e terra, o modelo
clássico da colonização espontânea no Brasil.
Assim, para a maior parte da população rural em fase de estabe-
lecimento na região a floresta será entendida, sempre, como capital
disponível para ser transformada em renda – uma advertência clara de
vários pesquisadores da região, como Doris Sayago – principalmente em
função da madeira nela contida. Assim, a derrubada aleatória da floresta,
muitas vezes para produzir só tabuado ou carvão, surge como a formação de
um capital inicial fundamental para o sucesso da empresa agrária familiar
– desprovida de poupança própria e/ou incapaz de acessar as linhas formais
de crédito – e em fase de implantação, quando mais se fragiliza.
Francisco Teixeira ressaltou que o planejamento da ocupação
pioneira, alterando o seu próprio perfil histórico, e um forte aporte de micro

240
Relatório do Encontro de Estudos

e médio-crédito voltado para tais populações é uma intervenção urgente


e necessária, e que poderá redundar na adoção de um manejo sustentado
da floresta.
O risco de abandono de tais populações, além da agudização do
conflito social, alertou, residiria na destruição do ecossistema, na perda
irremediável de suas riquezas naturais e em uma péssima visão externa
do país, capaz de gerar revolta internacional contra a soberania nacional
na região.
Nos anos 70, continuou, grandes projetos, muitos absolutamente
estranhos à ecologia local, acabaram por causar um forte impacto negativo,
tanto em âmbito nacional quanto internacional, como o Projeto Jarí ou os
empreendimentos da Icomi, no Amapá, trazendo a Amazônia para o debate
político internacional.
A partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente,
em 1972, onde reinou um clima de críticas ao Brasil, foi criada, no ano
seguinte, a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema), matriz de uma
série de organismos visando à vigilância e o planejamento das intervenções
no meio ambiente brasileiro, em especial na Amazônia, passando pela
criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) em 1989, culminando na criação do Sistema Nacional
do Meio Ambiente (Sisnama)
Contudo, segundo o Pesquisador, as possibilidades de uma ação
concreta são ainda bastante reduzidas. Um estudo recente mostra, por
exemplo, que o conjunto de Organizações Estaduais de Meio Ambiente
(Oema´s) possui pouco mais de 2 mil funcionários para toda a região
(levando-se em conta, por exemplo, São Paulo, que sozinho ocupa 6 mil
funcionários, contra 18 mil em todo o País). Grande parte da defesa do
meio ambiente, em virtude de tamanha ausência do Poder Executivo
estadual e federal na região, tem sido dirigida pelo Ministério Público,
onde os meios estão disponíveis.
241
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em seguida à apresentação do Professor Francisco Carlos Teixeira,


o Conselheiro José Carlos de Araújo Leitão, Coordenador de Estudos
da Saei, deu início à apresentação dos debatedores. A primeira
debatedora a fazer sua intervenção foi Lia Osorio Machado, Professora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Após agradecer à equipe da Saei o convite para participar do
evento, a Pesquisadora ressaltou que em função da limitação do tempo,
se deteria em apenas um aspecto da apresentação do Professor Francisco
Teixeira, a matriz de securitização.
Lia Machado destacou que no Governo anterior houve uma
escolha política, hoje comum na maioria dos países, que é passar todo
o prestígio da chamada alta política dos Estados Nacionais que era
representada aqui e em outros lugares pelo Ministério das Relações
Exteriores, Exército, Marinha e Aeronáutica para o que chamou Serviço
de Inteligência, representado principalmente pela Receita Federal e
Polícia Federal. Então, afirmou, houve uma baixa de prestígio das
antigas instituições da alta política e, esse Governo, aparentemente, está
tentando retomar isso, voltando o peso para a alta política. Afirmou que
o Governo vai encontrar um grande problema porque não se trata apenas
de uma questão de decisão, dependendo de vários outros fatores básicos
sobre os quais o Governo não exerce controle absoluto.
Afirmou que o discurso de defesa de soberania é um discurso
válido porque o nacionalismo é uma ideologia ainda forte, mas afirmou
ser um discurso que tem se apoiado em armas e o Brasil, segundo ela, não
tem os elementos reais e materiais para defender a soberania do ponto de
vista de armas. Teria então que se fortalecer no campo das idéias.
Em relação à soberania, destacou a necessidade de fazer algumas
considerações. Ressaltou que uma das prerrogativas, mesmo em
Estados como o Brasil, seria a criação de territórios especiais. Ou seja,
esses territórios seriam entendidos como uma forma de soberania, na
242
Relatório do Encontro de Estudos

verdade, muito mais do que defesa da linha de fronteira. O Território


Federal deveria voltar a ser um instrumento que fosse mobilizado para
colocar maior presença no território das instituições governamentais e a
possibilidade de facilitar conexões entre essas instituições, que em geral,
operam paralelamente na Amazônia. A segunda consideração dentro da
matriz da securitização seria a reformulação da Segurança Nacional.
Todos os princípios do Conselho de Defesa Nacional seriam baseados na
defesa das fronteiras. Nesse sentido, a criação dos territórios fortaleceria
a presença do Estado.
Uma outra consideração foi a questão da mudança de uma
concepção de visão simplista para uma visão voltada para a complexidade.
Ou seja, considerar qualquer região como um sistema aberto, que tem
trocas constantes que o Estado não controla, não pode controlar e nunca
controlou. O que na verdade existe, afirmou, é apenas um monitoramen-
to, onde são estabelecidos limites a ações a que o Estado não consegue
pôr um fim, como é o caso do tráfico de drogas, de armas, contrabando,
enfim, de toda uma série de ilícitos.
Um outro ponto ressaltado por Lia Machado foi a concepção da
Segurança Nacional. A Pesquisadora afirmou que, necessariamente, terá
que haver uma mudança no que hoje é denominado Espaço de Fluxo
versus Espaço de Lugar. Enfatizou que, antigamente, toda a Segurança
Nacional era fundamentada no Espaço de Lugar. Ou seja, traçavam-se os
limites e estabelecia-se um território para defendê-lo. Em contrapartida,
Espaços de Fluxo são redes, que ultrapassam as linhas de fronteiras.
A Pesquisadora chamou também a atenção para a questão do
Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Afirmou que este seria
o momento de adotar políticas que fortalecessem o referido sistema.
Deixou claro, porém, que o Sivam não defende a soberania, que se trata
apenas de um sistema de monitoramento. Um outro alvo da abordagem
da pesquisadora foi o Projeto Calha Norte que, segundo afirmou, nunca
243
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

saiu do papel. Destacou que para alavancar o projeto, seria necessário,


acima de tudo, definir áreas estratégicas dentro do mesmo e que isso
deveria ser feito por etapas, para em seguida estabelecer-se prioridades
de atuação, como por exemplo, uma atuação efetiva na área denominada
“Cabeça do Cachorro”.
Ainda se referindo à questão da mudança de visão, ressaltou que
as ameaças não podem ser interpretadas sempre, como ameaças externas,
ao contrário, devem ser analisadas dentro de um contexto considerando
inclusive a ameaça do ponto de vista interno. Isto é, os movimentos,
mudanças, frustrações, expectativas, dificuldades de alcançar objetivos,
multidiversidade de visões, a identidade nacional, enfim, são elementos
passíveis de serem observados como ameaças internas. Em determina-
dos momentos, afirmou, o indivíduo é nacionalista e em outros momen-
tos importa mais a questão da sua sobrevivência e realização de suas
expectativas. Entrar em contato com o outro lado seja americano, ou o
que for, não representa problema para a população se o que está em jogo
é a sobrevivência e a realização das suas aspirações. As pessoas querem
participar, se incluir, não desejam ser somente meros espectadores.
Enfatizou que isso é uma questão que muda também os princípios
da Segurança Nacional, porque o Estado terá que olhar não apenas o
Espaço do Lugar, Espaço do Fluxo, mas, fundamentalmente, entender
os fluxos. E, dentro desses fluxos existem não só pessoas, contrabando
ou drogas, mas, sobretudo, idéias. Então como é que o Estado vai reagir
contra isso? Questionou.
O Estado, de acordo com Lia Machado, terá que mudar toda uma
estrutura de concepção. É preciso devolver a securitização ao nome
Segurança Nacional. Nesse momento, como se apresenta, não pode ser
chamada de Segurança Nacional, observou.
Finalizando sua apresentação, Lia Machado destacou que o Brasil,
hoje, está ocupando, praticamente, todos os países vizinhos. Afirmou
244
Relatório do Encontro de Estudos

que os brasileiros são agressivos, no sentido de ocupação de território


na América do Sul e que não se trata apenas de defesa de fronteiras, mas
em alguns casos, de invasão de território alheio. Disse ainda que, quando
o Presidente do BNDES, Carlos Lessa, afirmou que o Brasil deveria
financiar estradas do outro lado, ele estava absolutamente correto, pois
do outro lado tem brasileiro e isso o Estado tem que entender e aceitar.
A intervenção seguinte foi do Vice-Almirante Murillo de Moraes
Rêgo Correa Barbosa, Diretor do Departamento de Política e Estratégia
da Secretaria de Política, Estratégia e Política Internacional do Minis-
tério da Defesa, que informou que em função da exigüidade do tempo
se concentraria na questão da Política de Defesa Nacional, no que se
refere à Amazônia.
Referiu-se aos dados apresentados pelo Professor Francisco
Teixeira sobre a Amazônia e declarou-se extremamente preocupado com
os mesmos. Relatou que, recentemente, em um seminário patrocinado
pelo Ministério da Defesa, em Itaipava (RJ), um renomado cientista
político, fez um questionamento sobre a Amazônia: Por que vocês se
preocupam tanto com a Amazônia, se lá só estão concentrados 5% do
PIB e 12% da população brasileira?
Afirmou que em termos de política internacional, a Amazônia
não é totalmente entendida e indagou porque a Amazônia é vulnerável.
Referiu-se ainda a uma pesquisa divulgada em alguns jornais locais da
Amazônia em 2000 ou em 2001, que afirmava que cerca de 11% da
população pesquisada afirmava que não se incomodava em mudar a sua
nacionalidade, ou seja, não se importava em continuar sendo brasileira ou
não, desde que recebesse uma maior assistência do Estado. Isso, segundo
o Vice-Almirante Barbosa, é um dado extremamente preocupante para o
Governo brasileiro. Destacou que a pesquisa citada revela o desestímulo e a
frustração daqueles que vivem na região em função da falta de assistência
e amparo do Estado.
245
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação à Política de Defesa Nacional destacou que a Amazô-


nia é uma das grandes prioridades para o Ministério da Defesa. Ressaltou
que a Defesa Nacional não é um instrumento, puramente militar, mas que
possui duas vertentes, a militar e a civil. Para o Vice-Almirante Barbosa,
a presença do Exército e de seus pelotões é extremamente importante
porque cria formas de concentração. A Marinha também, afirmou, tem
participação extremamente importante, principalmente por intermédio
dos seus navios de assistência hospitalar.
Em relação à presença civil destacou que é mais difícil mantê-la
na região, exceto por intermédio do desenvolvimento e da vivificação.
Explicou que o Estado brasileiro só irá a vários pontos da região Amazô-
nica se houver uma demanda de trabalho por estado e mesmo onde existe
demanda, torna-se muito difícil a atuação. Exemplificando, questionou:
Como é que a Funai vai estar presente em todas as comunidades indí-
genas na Amazônia? Ressaltou que há alguns anos a Funasa desistiu de
prestar assistência direta aos índios e começou o trabalho de terceirização
porque não conseguia prestar o auxílio necessário, em função do difícil
acesso. Chamou a atenção para a questão do acesso à região, ressaltando
que é mais fácil para o Exército do que para outras instituições, estar
presente na região.
Referiu-se ainda à Superintendência da Zona Franca de Manaus
(Suframa) como sendo um importante instrumento para o desenvolvimento
da região, além do Projeto Calha Norte. Em relação ao Projeto Calha Norte,
afirmou que, ao contrário do que a Professora Lia Machado sugeriu, o
mesmo vem ganhando novo fôlego nos últimos anos. Lembrou que o
projeto estava escalado para ser extinto em 1999, mas por uma grande
ação do Ministro da Defesa na época, em função de o projeto ter sido
remanejado para o Ministério, acabou sendo recuperado e, hoje, já conta
com recursos expressivos dentro da linha orçamentária do ministério,
segundo ele, algo em torno de 67 milhões, beneficiado por emendas

246
Relatório do Encontro de Estudos

parlamentares no Congresso Nacional pelo fato de possuir uma


credibilidade política muito grande.
Afirmou que, do ponto de vista militar, o Exército e as Forças
Armadas têm planos ambiciosos para a Amazônia. O Exército, explicou,
tem um plano de levar para a Amazônia mais algumas brigadas, nesses
próximos quatro ou cinco anos. A área da Cabeça do Cachorro será uma
área contemplada, com a ativação, em agosto de 2004, de uma brigada em
São Gabriel da Cachoeira. Informou que a Força Aérea está terminando
de implementar um núcleo de Base Aérea em São Gabriel da Cachoeira,
justamente, para dar uma assistência maior, na área da Cabeça do Cachorro.
Além do mais, continuou, o Exército vai criar, no Estado do Acre, uma
nova brigada com novos pelotões de fronteira, isso, segundo ele, reforça
a efetiva atuação militar para o segmento da Política de Defesa Nacional
desenvolvida pelo Exército, apesar das restrições financeiras e orçamen-
tárias enfrentadas pelo Ministério da Defesa.
Em relação às Unidades de Conservação localizadas nas áreas
de fronteira e à ampliação das Terras Indígenas, afirmou encarar essas
políticas com uma certa reserva, em função da vulnerabilidade a que
ficaria exposto o território brasileiro pelo fato de criar-se um cinturão
desabitado ao redor do Brasil.
Referiu-se ainda às discussões iniciadas pelo Gabinete de Segurança
Institucional no sentido de colaborar com a construção de uma nova política
indigenista, o que, segundo ele, propiciaria a avaliação de um novo
modelo, a exemplo da vivificação e desenvolvimento das comunidades
indígenas nas unidades de conservação.
O debatedor seguinte foi José Olavo Coimbra de Castro,
Coordenador-Geral de Recursos Humanos da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin). Iniciou sua intervenção informando que restringi-
ria sua abordagem à sua experiência de vida e que tentaria fazê-lo de
maneira didática.
247
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Ressaltou que o Professor Francisco Carlos fez uma análise


baseada em cenários e essa análise prospectiva está, fundamentalmente,
ligada ao fato de os mesmos serem passíveis de modificações. Ou seja,
esse desejo de mudança atuará na medida em que ao avaliarmos esses
cenários verificarmos nossos objetivos e, de acordo com nossas priori-
dades, procedermos à sua alteração. Naturalmente, enfatizou, há que se
considerar os meios ou a capacidade dos meios disponíveis para realizar
essas ações para chegarmos a mudar o cenário positivo ou negativo da
forma que nos interessa.
Enfatizou que para a composição da aplicação do poder é
necessário analisar três aspectos: Recursos Humanos, Território e
Instituições. Com relação aos Recursos Humanos afirmou a necessidade
de considerar que a região não conta com recursos humanos suficientes
e que sejam preparados para atuar em projetos de longo prazo, criando
envolvimento com as realidades locais. Normalmente essas lideranças
são de fora da área. A formação desses talentos, também, sofre muito
com a falta de estrutura para a sua preparação.
Em relação ao ensino profissionalizante existem poucas Escolas
Técnicas Federais e particulares, além do Sistema “S”, formado
entre outros por: Senai, Senac e Sesc e fundações como a do Centro de
Análise e Pesquisa e Divulgação Tecnológica, a Fucap. Afirmou que a
região possui alguns centros formadores ligados aos pólos industriais
da Amazônia, à Zona Franca de Manaus e a região, naturalmente, conta
com instituições públicas e privadas de Ensino Superior. Destacou
que a primeira constatação é que há que se investir na preparação e no
desenvolvimento desses talentos e elaborar políticas que possibilitem
a sua permanência na região.
Segundo José Olavo de Castro, quando fazemos a análise
relacionada à terra, ao território, percebemos nos diagnósticos consul-
tados que alguns apresentam informações que denunciam a falta de

248
Relatório do Encontro de Estudos

atualização dos dados. Quando se trata do Sivam/Sipam um dos aspectos


que percebemos é que, recentemente, o grande evento dentro de tais
sistemas foi a incorporação da base de dados do Ibge.
Em relação às instituições, afirmou que elas existem para coordenar
a convivência e disciplinar o conjunto das atividades daqueles que lá
estão. Afirmou que num governo que trata do diagnóstico e estratégia do
Plano Amazônia Sustentável, a questão do quadro institucional é descrita
da seguinte maneira: subsistem, anacronicamente, quase quarenta anos
de experimento e desenvolvimento regional numa terra pouco auspiciosa
aos esforços de coordenação. Isso, afirmou, nos leva a discutir a
aplicação do poder seja no âmbito do Governo federal, seja com respeito
às relações liberativas estabelecidas na Constituição de 88 e, mesmo
quanto à própria regulamentação da Constituição. Usou dois casos para
exemplificar: a Questão Indígena, onde o governo aplicou em torno de
50 milhões – apesar de bastante consideráveis – só aproveitou 56% de
todo o investimento e custeio destinado ao Comando do Exército.
Afirmou ainda que, além desses recursos, os índios, hoje, detêm,
de acordo com a Norma Constitucional, 12% do território nacional,
porém, num contraponto, na maioria dos casos, a situação em que vivem
é de extrema pobreza. Disse que essa situação é decorrente de uma série
de fatores e que alguns poderiam ser oportunamente debatidos.
Inicialmente, citou o Artigo 231 da Constituição, que segundo
ele, veio mudar, radicalmente, o papel da Funai. Até 1988, afirmou,
a missão da Funai era integrar os índios à sociedade. Hoje, com o
reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças,
tradições e, inclusive, dos direitos originais sobre as terras que,
tradicionalmente, ocupam, o que temos, efetivamente, explicou, é um
aumento da importância dessas populações de maneira justa, porém,
com algumas contradições.
Citou como exemplo a não regulamentação dos parágrafos
249
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

terceiro, que trata dos recursos hídricos e mineração, e do sexto, que


trata de relevante interesse público da União nas terras indígenas. Isso,
de acordo com José Olavo de Castro, criou limitações, seja para a uti-
lização econômica pelos próprios índios, seja para o desenvolvimento
do País. Esse esvaziamento do papel da Funai, afirmou, tem uma outra
face visível, ou seja, a transferência das atribuições relativas à saúde e
à educação, para Ministérios e Organizações Não Governamentais.
Em relação às Organizações Não-Governamentais, afirmou que,
em alguns momentos, essas organizações, mesmo recebendo recursos
do Governo, se contrapõem a ele. Outro aspecto destacado diz respei-
to às estimativas da Funai quanto ao número de índios em território
brasileiro. Segundo José Olavo de Castro, a Funai chegou a afirmar
a existência de cerca de 345 mil índios, porém, no censo de 2000, o
Ibge afirmou que 730 mil pessoas declararam-se índias. Naturalmente,
segundo Olavo de Castro, essa declaração tem a ver com a decorrência
dos Direitos Constitucionais que foram assegurados e a valorização da
identidade cultural indígena.
Outro exemplo citado diz respeito ao problema das funções
assemelhadas de coordenação e, no caso específico da Amazônia, de
iniciativas de desenvolvimento regional. Explicou que essa realidade
pode ser exemplificada com a superposição de funções de três grandes
órgãos existentes na região, no caso, a Agência de Desenvolvimento da
Amazônia, a Superintendência de Desenvolvimento da Zona Franca de
Manaus e a Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do
Meio Ambiente, com superposição em vários momentos.
Encerrando a primeira rodada com os debatedores, o Procurador
Vicente Gomes da Silva fez sua intervenção. Iniciou agradecendo o
convite e anunciou que traria questões pragmáticas. Destacou ainda que
faria uma contextualização das questões ambientais com o exercício da
soberania na Amazônia.

250
Relatório do Encontro de Estudos

Ressaltou que para compreender melhor as questões que estão


postas, seria necessário conhecer um pouco mais do contexto jurídico,
do cenário e da estrutura que foi concebida a partir de 1988, e para
isso, se reportou à questão do Direito Ambiental.
Segundo Vicente Gomes, o Direito Ambiental é um Direito
Difuso, de uso comum do povo. É um direito que permeia, que orga-
niza e transita por todos os outros ramos de direito. É um direito da
coletividade, do povo, é um direito que antecede e que capitaliza todos
os outros ramos do direito.
Afirmou que o Direito Ambiental possui conceitos mais difusos
e mais abertos e é preciso que a doutrina e a jurisprudência construam
isso para poder assegurar, efetivamente, os interesses da coletivida-
de. Ressaltou que esse conceito que vem do Artigo 225 que traz essa
perspectiva, bem como, dos Artigos 23 e 24 da Constituição, onde o
legislador constituinte criou algumas regras, entre as quais a da repar-
tição político-administrativa das competências, das matérias comuns,
que servem tanto para a União quanto para os Estados e Municípios e
criou, também, no Artigo 24, a possibilidade recursional de os Estados
e, inclusive os Municípios, de forma mais residual, legislarem sobre
matéria ambiental.
De acordo com Vicente Gomes, isso representa, do ponto de
vista da execução, da criação e aplicação de instrumentos comuns de
controle desta política, uma certa dificuldade cotidiana, especialmente,
dos saldos ambientais. Afirmou que o poder da execução para o
governo federal, governos estaduais e municipais, muitas vezes, traz,
a duplicação de ações, de custos, e, de conflitos técnicos e políticos
da perspectiva dos órgãos governamentais, porque a competência está
atrelada à execução de uma política ambiental.
Em relação à competência legislativa, afirmou que há uma
certa proliferação de Leis Estaduais e que nem sempre as mesmas
251
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

têm preocupação com a harmonia, ou seja, há legislações que, com


freqüência, entram na competência federal e vice-versa.
Apontou o que segundo ele seriam problemas cotidianos no Brasil:
em primeiro lugar, afirmou que Legislação Ambiental fixa os mesmos
conceitos das admissões para todo o Brasil, não levando em considera-
ção as especificidades locais. Há, segundo ele, a necessidade de tratar
desigualmente, os desiguais.
Citou como exemplo a Área de Preservação Permanente (APP)
prevista no Artigo 1º e 2º da Medida Provisória nº 2.166, de 24 de agosto
de 2001, que não seria compatível com os rios e o pantanal, inclusive,
denominados lagos e várzeas. Afirmou que essa indiferença em relação
às especificidades regionais significa condenar uma norma ao fracasso.
Com respeito ao manejo florestal, afirmou que só pode ser reali-
zado em área de até 2.500 hectares e que pela Constituição só poderá ser
autorizada a exploração de recursos naturais em propriedades públicas
em áreas de até 2.500 hectares, salvo, se o Congresso Nacional autorizar
uma área maior.
No que se refere à exploração mineral em terras indígenas,
Vicente Gomes afirmou não ser possível a prática dessa atividade por
falta de regulamentação do Artigo 231 da Constituição Federal que
diz que é necessária Lei Complementar, o que tem originado inúmeros
conflitos. Citou como exemplo o caso da reserva Roosevelt, onde foram
assassinados 29 garimpeiros.
Em seguida a um pequeno intervalo, foi dado início a um segundo
debate, desta vez com a participação da plenária.

O primeiro participante a manifestar sua opinião foi Paulo Moutinho,


Coordenador de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia.
Ele se referiu principalmente à questão da ausência do Estado na região.

252
Relatório do Encontro de Estudos

Questionou também a questão das fronteiras de ocupação da Amazônia,


que segundo ele, necessitam de estratégias diferentes. Abordou ainda a
questão da segurança climática e alimentar do País.
Solicitou ao Professor Francisco Teixeira que fizesse um comen-
tário em relação ao fato de estarmos entrando em um outro momento de
abordagem sobre as questões amazônicas, bem como as perspectivas e
os parâmetros que as alimentam.
Respondendo às questões levantadas, Francisco Teixeira chamou a
atenção para o fato de o Brasil se encontrar numa situação muito especial
em relação à Amazônia, uma situação, segundo ele, única. Destacou que
desde os anos 30, o Brasil tem crescido a taxas históricas de 7%. Ressaltou
que as decisões a serem tomadas agora são fundamentais para corrigir,
elaborar, e reajustar procedimentos de crescimento intenso e que as deman-
das, inclusive, do conjunto nacional e do conjunto Sul-americano podem
ser muito grandes sobre a Amazônia, fazendo com que a possibilidade
dos cenários de degradação se imponham em detrimento de cenários de
desenvolvimento auto-sustentável. Ressaltou ainda a necessidade de
arregimentar atores locais da região para participarem de todo o processo
de discussão que se fizer necessário.
Destacou ser imperativo tornar claro que a Amazônia faz parte
de um complexo nacional e que os objetivos propostos terão necessaria-
mente que estar alinhados com as necessidades regionais. Afirmou ser
imprescindível buscar um equilíbrio entre as metas e objetivos nacionais
e os da própria região.
Em seguida, Vicente Gomes interveio afirmando ser necessário
contextualizar a aplicação das leis. Referiu-se ainda aos planos de manejo
sustentável e à exploração racional de madeira da região.
Logo após, houve a participação de Paulo Machado Guimarães,
Assessor Jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); de Joenia

253
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Batista de Carvalho, Advogada representante do Conselho Indígena de


Roraima (CIR) e de Vanessa Fleischfrsser, da Secretaria de Coordenação
da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente.
Paulo Machado afirmou sua preocupação em relação às interven-
ções da Professora Lia Machado e do Vice-Almirante Murillo Barbosa,
bem como, do Professor Castro. O tema, segundo ele, suscita uma
preocupação no que diz respeito à formulação da suposta existência de
limitações à presença do Estado, fundamentalmente, como posto em
razão da demarcação das Terras Indígenas. Afirmou que a intervenção
do Vice-Almirante Murillo Barbosa, bem como a do Professor Castro
remetem a esta preocupação, e solicitou ainda um comentário dos
debatedores, no sentido da inexistência de limitação sobre o aspecto
constitucional legal e a presença do Estado, no que diz respeito às
Terras Indígenas.
Destacou que o fato de existirem Terras Indígenas na Faixa de
Fronteira não limita, como jamais limitou, a presença das Forças Armadas.
O que existe, afirmou, é uma polêmica de ordem constitucional em
razão de um ato normativo baixado pelo Governo passado e que vem
sendo mantido pelo atual Governo, no que diz respeito à construção e
a expansão de Batalhões Especiais ou mesmo de postos das Polícias
Federais em Terras Indígenas localizadas em Faixa de Fronteira.
Joenia, Advogada e Presidente do Conselho Indígena de Roraima,
afirmou, em relação às abordagens anteriormente citadas, ter ficado
extremamente preocupada como indígena e também como advogada. De
acordo com Joenia, existe uma ausência de diálogo no que diz respeito aos
serviços essenciais prestados pelo Estado nas Áreas de Fronteira. Afirmou
que Roraima faz fronteira com a Venezuela e que é necessário respeitar a
visão de integração regional e a visão da diversidade.
Questionou se os povos indígenas seriam pobres ou se foram
empobrecidos. Ressaltou que os povos indígenas foram os primeiros
254
Relatório do Encontro de Estudos

brasileiros do País e que desejam estabelecer parcerias. Mostrou-se


preocupada em relação à ampliação da presença de instituições como a
Polícia Federal nas terras indígenas. Afirmou ainda que o Gabinete de
Segurança Institucional (GSI) publicou portaria que exclui os povos
indígenas das discussões envolvendo os interesses dos mesmos.
Em relação a esta temática, solicitou que os integrantes da mesa
tecessem comentários relacionados a algumas preocupações, a exemplo
de como as Forças Armadas contribuíram para fomentar um diálogo entre
as instituições e as lideranças, organizações e unidades indígenas, ação
que, de acordo com ela, tem a finalidade de evitar demandas judiciais ao
promover a inclusão das populações indígenas nos debates e discussões.
Completando a terceira participação do primeiro bloco, Vanessa
Fleischfrsser, Chefe de Gabinete da Secretaria de Coordenação da
Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, iniciou sua intervenção
afirmando que iria se reportar ao Plano Amazônia Sustentável (PAS).
Abordou ainda a questão da duplicação de atribuições no que se
refere à Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA); ao Ministério
da Integração Nacional e à Superintendência da Zona Franca de Manaus
(Suframa) e destacou que está havendo uma reformulação e que as insti-
tuições referidas possuem papéis diferentes.
Afirmou que a população da Amazônia é, em sua grande maioria,
urbana, portanto, a população-alvo dos programas para a região, segundo
ela, representa a minoria. De acordo com Vanessa, o Estado do Amazonas
apresentou o maior índice de crescimento entre todos os Estados brasileiros
no ano de 2000 e destacou a necessidade da população excluída da região
ser alvo das políticas públicas governamentais.
Em seguida, o Vice-Almirante Barbosa solicitou o desejo de fazer
algumas considerações a respeito da abordagem feita pelo representante
do CIMI, Paulo Machado Guimarães.

255
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação ao Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002, que dispõe


sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em Terras
Indígenas, mencionado por Paulo Machado, explicou que o mesmo
foi publicado e que houve uma série de manifestações contestando a
constitucionalidade dele, principalmente por parte de Organizações
Não-Governamentais, e em particular, pelo CIMI.
Salientou que a Política de Defesa Nacional não é das Forças
Armadas, mas sim do Estado e que, ao contrário do que apregoam
algumas Ongs, as Forças Armadas não desejam acabar com as Terras
Indígenas, desejam, isto sim, demarcá-las e homologá-las. Afirmou
que existe uma grande parcela da população indígena que deseja uma
convivência harmoniosa com culturas não-indígenas.
Contestou a argumentação de Paulo Machado quanto ao fato de
as populações indígenas não estarem de acordo quanto à demarcação e
homologação de terras e no que diz respeito aos índios serem contra as
Forças Armadas, afirmou que isto não condiz com a realidade.
Em relação à ocupação de terras pelas Forças Armadas, defendeu
a ocupação de grandes áreas desabitadas, principalmente as áreas de
fronteira, com o objetivo de promover um eficiente sistema de controle
e monitoramento dessas áreas, evitando torná-las vulneráveis.
Em relação à sugestão de Paulo Machado quanto às Forças
Armadas adotarem um sistema de monitoramento remoto, utilizando-
se do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o Vice-Almirante
Barbosa classificou como absolutamente impossível, justificando que
os custos advindos daí seriam muito altos, além do fato de, segundo
ele, ser absolutamente impossível vigiar dois milhões de quilômetros
quadrados de maneira virtual, ou seja, sem a presença física das Forças
Armadas na região.
No que diz respeito aos comentários da Advogada Joenia, o

256
Relatório do Encontro de Estudos

Vice-Almirante destacou que o diálogo com as populações indígenas


é uma preocupação constante das Forças Armadas e que o pensamento
da cúpula do Ministério da Defesa é preservar e respeitar a cultura das
populações indígenas.

Em seguida, o Professor Castro fez uso da palavra afirmando que


seria conciso e que se deteria exclusivamente a responder os questiona-
mentos dirigidos a ele.
Ressaltou que o primeiro aspecto para o qual gostaria de chamar
a atenção seria em relação à execução pelo Estado, da vontade coletiva.
Afirmou ser necessária uma ampla discussão sobre o assunto, destacando
que nessas discussões há que se considerar a questão de perspectivas, ou
seja, de cenários futuros.
Em relação ao crescimento demográfico e a densidade popula-
cional indígena, referiu-se aos números apresentados pela Funai e pelo
censo de 2000, do Ibge, que seriam respectivamente 350 e 730 mil,
fazendo uma ressalva de que, em relação aos números do Ibge, o mesmo
leva em consideração as populações indígenas que habitam os grandes
centros urbanos.
Respondendo aos questionamentos da Advogada Joenia, o
Professor Castro ressaltou que seus comentários não seriam fruto de uma
posição institucional, mas sim de um processo de vivência na região.
Ressaltou que existem hoje cerca de 180 línguas, 215 etnias e 604 Terras
Indígenas em 12% do território nacional e que dentro de cada uma dessas
etnias há opiniões divergentes em relação a vários aspectos culturais,
como a utilização de luz elétrica, o desejo de assistir televisão e que a
cultura jovem atuaria nessas comunidades com resultados importantes
neste processo.
Em relação ao Plano Amazônia Sustentável (PAS), afirmou que o

257
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

relatório que analisou é de outubro de 2003 e que apesar da reformulação


que sofrerá, sua opinião pessoal é de que há superposição de atribuições
no referido Plano.
Reiterou que cabe ao Estado coordenar a vontade coletiva de incor-
porar toda a cultura indígena como parte da cultura da população brasileira
como um todo e que todo trabalho, seja do Estado, seja das organizações
da sociedade civil, deve basear-se numa visão prospectiva, ou seja, uma
visão de futuro.
Após a sessão de debates foi realizado um intervalo para o almoço,
sendo retomadas as apresentações e debates num segundo momento da
Reunião, no período da tarde.
A segunda parte da Reunião iniciou-se com a apresentação da
Professora Bertha Becker, Professora Emérita da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
Inicialmente, Bertha Becker agradeceu o convite recebido pelo
Gabinete de Segurança Institucional e a oportunidade de diálogo.
O primeiro tema abordado foi a questão da Soberania, classificado
por Bertha como um tema extremamente controvertido, tanto conceitual-
mente quanto na prática, devido à interdependência crescente do Mundo
Contemporâneo, baseada por um lado na revolução científica e tecnológica
e particularmente, na microeletrônica e na comunicação, e que gerou a
possibilidade de fluxo e redes transfronteiras, trans-estradas e que não se
refere, apenas à técnica e sim a uma nova forma de produção.
Em uma breve contextualização sobre a perda relativa da soberania,
Bertha considerou o fim da Guerra Fria que, segundo ela, abriu extraor-
dinariamente as relações internacionais. Nesse contexto, afirmou, houve
uma crescente participação dos Estados nos organismos internacionais e
os Estados começaram a aceitar práticas comuns no comércio, na proteção
ambiental, em relação à cidadania e com isso houve perdas de soberania.

258
Relatório do Encontro de Estudos

Para Bertha Becker, os Estados e a própria soberania têm que


ser entendidos como processos que mudam de natureza, de funções, se
ajustando às transformações do mundo, na medida em que os séculos
passam. Afirmou que a interdependência global não se resume à unificação
de mercados, envolve a interconexão das arenas políticas nacionais e
internacionais.
Atualmente, o que estamos observando, afirmou, é uma certa dimen-
são das dicotomias, dos pressupostos básicos da soberania, ou seja, direito,
força, Direito do Estado, Direito Internacional, essa interconexão, gera uma
situação extremamente complexa no sentido de entender como assegurar
a soberania e a Amazônia é um caso exemplar dessas interconexões e de
certa diluição desses elementos, desses pressupostos básicos.
Nesse contexto, afirmou, se fortalece a geopolítica, não mais através
da conquista de territórios, mas ao contrário, acentuando a exacerbação
de toda sorte de pressões para influir na tomada de decisão sobre o uso do
território e o desenvolvimento dos Estados.
Ressaltou que vivemos um contexto extremamente complexo no
qual é necessário discernir entre utopia ecológica, geopolítica ecológica e
consciência ecológica social. A geopolítica contemporânea estabelece as
limitações ao exercício da soberania. Explicou que com o objetivo de ser
didática, dividiria sua apresentação em quatro sessões, expostas a seguir:

1. Limitações Aceitas por Ratificação de Acordos Internacionais.

2. Restrições Aceitas de Preservação do Meio Ambiente e da Biodiversidade.

3. Pressões de Organismos Internacionais, Comunidades Científicas e


Lideranças Políticas Mundiais.

4. Pressões Internas/Externas de Organizações Não-Governamentais

259
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação ao primeiro tópico, Limitações Aceitas por Ratificação


de Acordos Internacionais observou que vemos, claramente aí a interação
entre Direito e Força e Direito do Estado e Direito Internacional. A
interação e conflito juntos e essas limitações, aceitas por ratificações de
acordos, seriam as mais sérias restrições, ou pelo menos, deveriam ser.
Frisou que na revolução científico-tecnológica a informação é o
cerne do poder e é extremamente preocupante que o Brasil não tenha
dado atenção suficiente a esse tema.
De acordo com Bertha Becker, a virtualidade de fluxos em redes
que sustentam a riqueza circulante não elimina o valor estratégico da
riqueza localizada no território e valorizada também, por causa da água,
classificada por Bertha Becker como o ouro azul do século XXI.
Explicou que, quando afirma que a Amazônia é o Heartland
ecológico do planeta quer dizer que o Brasil é o país de maior mega-
diversidade, significando novos recursos genéticos e princípios ativos
biológicos de grande interesse para o mercado e relevância social. É
importante, contudo, reconhecer que a Amazônia não é um espaço vazio
e passou por profundas transformações estruturais nas últimas décadas
do século XX.
Com um mapa da Amazônia Legal, destacando o povoamento
e as macrorregiões, Bertha chamou a atenção para a área denominada
“Arco do Desmatamento”, sugerindo a mudança de nome da área em
função de apresentar-se atualmente como uma região de povoamento
consolidado.
Ressaltou que se deve pensar a Amazônia como uma região que
tem suas demandas, que tem uma dinâmica própria e que se faz necessário
mudar a idéia de política de ocupação da Amazônia, porque ela está
ocupada desde os primórdios com populações indígenas, missionários,
e até mesmo, por intermédio do projeto de integração nacional.

260
Relatório do Encontro de Estudos

Chamou a atenção também para o que classificou como o “Poder


de Agenda”. Segundo Bertha, esse Poder de Agenda no mundo atual se
apresenta como um dos instrumentos mais eficazes na pressão geopolítica,
afirmando que o que está na agenda é discutido, o que não está na agenda
nem chega a figurar na pauta de discussão.
Evidentemente, afirmou, terão mais força e poder os países que
naturalmente possuam maior poder de agendamento, ou seja, de incluir
na agenda global os temas que mais se adequem aos seus interesses.
Então, explicou, é fundamental ter negociações adequadas porque,
geralmente, as agendas já vêm orientadas de acordo com os interesses
externos e é nos elementos da Agenda Ambiental, que temas como o
aquecimento da atmosfera, o efeito estufa, o meio ambiente e a biodiversidade
foram corporificados na ECO 92, no Rio de Janeiro.
Destacou que a Agenda 21 promoveu o esforço de muitos países,
que o principal resultado da Rio 92 foi a popularização do conceito do
Desenvolvimento Sustentável e que houve um papel muito importante da
diplomacia brasileira, no sentido, de tirar o foco excessivo da Amazônia
e também, no sentido de humanizar a questão ambiental.
Frisou que a introdução do Desenvolvimento Sustentável foi
muito promissora no sentido da humanização da Agenda e que, basica-
mente, o Desenvolvimento Sustentável é um processo de mudança e não
se enquadra num modelo predeterminado, em função da necessidade de
reconhecer as condições específicas de cada grupo para poder traçar a
trajetória de um povo.
Referiu-se ainda ao que denominou “Mercado da Água”, que
segundo ela é ainda incipiente. Afirmou que existe uma multiplicidade
de agências das Nações Unidas, financiamentos do Banco Mundial e
Comissões que visam coordenar ações, porém, não têm conseguido
resultados efetivos. Sua valorização, afirmou, reside na ameaça de

261
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

escassez decorrente do forte crescimento do consumo, a tal ponto que


é considerada como o “ouro azul”, capaz de, à semelhança do petróleo
no século XX, instigar guerras no século XXI.
Afirmou acreditar que o Brasil tem se saído muito bem nas
convenções da biodiversidade, do clima e que hoje estamos observando
uma volta dos Estados Unidos, no sentido de uma postura bem mais
agressiva no que se refere à biodiversidade e ao protecionismo. Ressaltou
que é muito visível o jogo duplo que os Estados Unidos fazem nos
organismos e agências internacionais.
Em relação ao Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002, que dispõe
sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em Terras
Indígenas, ressaltou o fato de o mesmo ter contrariado a legislação no
sentido de não ter consultado, previamente, os grupos indígenas e não
ter estabelecido regras de conduta.
Em relação ao tópico seguinte, Restrições Aceitas de Preservação
do Meio Ambiente e da Biodiversidade, ressaltou que o processo de
politização da natureza não é apenas o objeto direto das pressões, é
também um instrumento de pressões para atingir o próprio Brasil e o
desenvolvimento brasileiro.
No que se refere à fronteira, Bertha destacou sua preocupação com
o tema no sentido de território porque, justamente, na área de fronteira
existe uma imensa extensão de áreas protegidas e de Terras Indígenas,
às vezes, segundo ela, superpostas.
Destacou que se deteria um pouco na abordagem sobre a
vivificação das fronteiras. Afirmou que os grupos indígenas têm, às vezes,
a mesma etnia de um lado e de outro da fronteira e que são elementos
centrais de vivificação das mesmas.
Observou que no Alto Solimões e no Oiapoque a movimentação de
um lado para o outro é contínua e que são trocas informais que vivificam a

262
Relatório do Encontro de Estudos

fronteira, embora cada um deles sinta que faz parte do Brasil, da Colômbia,
da Guiana Francesa.
Afirmou que os índios vão até a Guiana Francesa em busca de
benefícios sociais concedidos pelo Governo francês e que depois
retornam ao Brasil. Destacou ser este um movimento de vivificação ao
contrário.
Em relação à questão do Sistema de Vigilância da Amazônia
(Sivam), afirmou que temos que começar a pensar mais em termos de
tecnologia e não de desflorestamento. Afirmou que a Funai já desenvolve
atualmente programas de treinamento em informática, voltados às
populações indígenas.
Destacou que em que pesem os programas multilaterais, as
potências continuam a ter as suas estratégias particulares, individuais,
ou seja, o projeto multilateral não elimina a ação individual.
Em relação à cooperação internacional, Bertha acredita que ela
tem sido mais aplicada, com uma autonomia excessiva, e que atua através
de recursos financeiros que, segundo ela, são extremamente sedutores,
ao contrário dos pesquisadores brasileiros que não dispõem de recursos
financeiros e, menos ainda, de poder de agenda.
Sugeriu que o Ministério da Ciência e Tecnologia desenvolva um
mecanismo de controle, em função de estarmos vivendo um processo
de globalização na pesquisa, mantida pela integração de todas as uniões
científicas do Mundo.
Afirmou que os pesquisadores têm os mesmos modus operandi
em diferentes partes do mundo e têm as suas parcerias com os países, no
entanto, questionou quem é que fica com o resultado global das pesquisas
realizadas. Defendeu a realização de pesquisas na região e a cooperação
internacional, porém, com a ressalva de haver uma negociação clara, com
o Governo brasileiro em relação ao controle das informações.

263
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação às Pressões Internas e Externas das Ongs, afirmou


que as mesmas representam a manifestação mais clara da interconexão
das políticas nacionais e internacionais, das faces interna e externa da
soberania. São, afirmou, extremamente complexas, são redes de redes e é
muito difícil saber o número exato dos financiamentos, inclusive, porque
as Ongs não costumam divulgar esse tipo de informação.
Há, afirmou, uma sociedade muito sofrida na Amazônia. A pobreza
e a desapropriação de terras durante a expansão em torno da integração
possibilitou que grupos se reunissem em redes de organizações da socie-
dade civil para se defender, obtendo então o apoio de Ongs internacionais
e nacionais. Destacou que o primeiro grande apoio a todos esses grupos
foi da Igreja Católica e depois dos sindicatos.
Chamou ainda a atenção para a importância da organização da
sociedade civil. Informou que realizou uma pesquisa de campo que
mostra muito bem o perfil da organização social das Ongs, ressaltando,
porém, que as mesmas não são homogêneas. Elas são muito diferenciadas
entre si.
Do ponto de vista da soberania, sugeriu, como critério para a
atuação de Ongs internacionais, um envolvimento efetivo com o
desenvolvimento regional, com programas regionais e não são só globais.
Destacou que há uma tendência mundial de prestação de serviços pelas
Ongs e uma extrema competitividade entre elas.
Voltando à questão da cooperação internacional, ressaltou que
a mesma tem tido crescente influência na implementação de políticas
públicas, do ponto de vista financeiro, técnico e científico.
Em relação às Pressões Externas as quais denominou “Politização
da Natureza”, explicou que o Brasil, apesar de todo o recuo que teve na sua
posição econômica, ainda é considerado uma potência regional, com presença
ativa nos organismos internacionais e liderança na América do Sul.

264
Relatório do Encontro de Estudos

No que se refere à Agenda Internacional, chamou a atenção para


o fato de que o Brasil enfrenta com grande desenvoltura e com grande
sucesso as imposições da Agenda Internacional Ambiental.
No que diz respeito às formas de coerção, observou que a maior
demonstração, é que a incidência da globalização do Brasil se faz
através da cooperação internacional, enquanto que na América Central
e na faixa do Pacífico a incidência da globalização se fez através da
presença militar crescente.
Destacou que o Sivam foi uma ferramenta muito importante
nesse processo, e acredita que o mesmo poderá ser responsável por
maior integração Sul-Americana. Afirmou que o principal desafio para
o exercício da soberania sobre a Amazônia reside na interconexão das
suas faces interna e externa.
Explicou que houve uma grande conscientização política, que a população
apresenta reivindicações sociais, se organizou como sociedade civil e, isso
não só no Brasil, mas em todos os países Latino-Americanos.
Chamou a atenção para o que classificou como internacionalismo
de movimentos sociais, a exemplo do Fórum Social Mundial (FSM) e
ainda para a questão da substituição da política de ocupação pela
conscientização e desenvolvimento. Destacou a importância de se
reconhecer não apenas a Biodiversidade, mas também, a sociodiversidade,
ou seja, suprir carências básicas.
Ressaltou que se o Governo investir um pouco mais na conta dos
Fundos de Proteção Ambiental, poderá suprir um pouco das carências
das populações em relação à Saúde e à Educação. Chamou a atenção
para a questão da urbanização, ressaltando que a Amazônia é floresta
urbanizada, ou seja, 70% da população vive em núcleos urbanos e que
esses núcleos representam o comando da vida política e econômica da
região.

265
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Em relação à atuação de algumas Ongs, acredita que deve haver um


investimento maciço em ciência e tecnologia, em função da necessidade
de um pensamento autônomo. Destacou que a liberdade intelectual
está diretamente relacionada ao investimento nacional em pesquisa,
caso contrário, alertou, caminharemos sempre a reboque de modelos
externos.
Em relação às Terras Indígenas, acredita que algumas reivin-
dicações são absolutamente plausíveis, a exemplo do diálogo que o
exército vem mantendo com as populações indígenas. Destacou que os
grupos indígenas estão numa nova fase, porque a grande reivindicação
deles não é mais a demarcação das terras; hoje a nova demanda seria
por desenvolvimento.
Lembrou que existem na área de fronteira, três malhas administrativas
superpostas. Uma malha administrativa oficial de Municípios e Estados, uma
malha ambiental de áreas protegidas e finalmente, a Faixa de Fronteira. Acredita
que o Estado deve trabalhar na regulamentação da Faixa de Fronteira,
promovendo uma regulamentação efetiva do uso dos recursos nessa área, o
que poderia auxiliar na superação de superposições e conflitos.
Finalizando, salientou estar convencida que só iremos resolver,
realmente, o problema da Amazônia quando passarmos para uma postura de
consolidação do desenvolvimento. Além da construção de uma massa crítica,
é necessário que os pesquisadores empreendam uma revolução tecnológica
para o uso da biodiversidade em todo os seus níveis, que vai dos fármacos
aos cosméticos e extratos que já estão sendo produzidos, agregando valor
aos produtos da floresta.
Afirmou que, ao gerar cadeias produtivas da floresta para os centros de
biotecnologia, estaríamos aproveitando um patrimônio enorme e riquíssimo
para o bem da população da Amazônia e do Brasil. Destacou não ser possível
que o Governo fomente apenas outras áreas de produção como a soja e a
pecuária em detrimento de um enorme potencial de produtos da floresta.
266
Relatório do Encontro de Estudos

Afirmou que a produção de soja e a pecuária contam hoje com um


sistema de logística muito avançado, muito rápido e que está entrando
floresta adentro. Se não mudarmos nossa visão, afirmou, vamos perder
um patrimônio riquíssimo e a oportunidade de utilizar a biodiversidade
para gerar cadeias produtivas, que vão oferecer melhores condições de
vida, renda e emprego para grupos da floresta. Acredita que a cooperação
internacional é uma forma velada de coerção, mas que a diplomacia,
o diálogo e, principalmente, os canais comunicantes com a sociedade
civil podem transformar essa ação em verdadeira cooperação, em clima
de mudança, que é o que verdadeiramente almejamos - uma mudança
coletiva.

Após a apresentação da Professora Bertha Becker foi aberta uma


sessão de debates com os integrantes da mesa. O primeiro a se pronunciar foi
o Procurador Vicente Gomes da Silva que afirmou que há um sentimento
claro de que a sociedade está buscando modelos diferentes para a região
Amazônica e questionou se estaríamos construindo mecanismos e instrumentos
compatíveis, em uma velocidade necessária e ainda se estaríamos criando
esse sistema de idéias e respostas de acordo com a riqueza que o Brasil
possui e em consonância com as demandas da sociedade.
Afirmou concordar plenamente com a Professora Bertha quando
ela afirma que precisamos dar velocidade aos instrumentos de ciência
e tecnologia, que seriam um dos mecanismos para que a conservação
e preservação de recursos naturais venham suprir as demandas e as
necessidades da população amazônica.

Em seguida, foi a vez do Professor Castro tecer suas considerações.


Inicialmente, com relação à soberania afirmou que todos os órgãos que
estavam presentes naquele Encontro possuíam alguma interferência no

267
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

processo decisório sobre a Amazônia. Assim sendo, mostra-se fundamental


que comecem um trabalho de integração de suas ações. Essa dificuldade
de integração, afirmou, é uma dificuldade cristalina na Amazônia.
Em relação às idéias levantadas afirmou que podemos concluir que
o Brasil possui alguma capacidade de pressão e constrangimento e que
temos muita coisa a oferecer dentro da agenda, levando-se em conside-
ração o fato de termos 12% do nosso Território como área à disposição
das comunidades indígenas, além de muitas outras áreas preservadas.
Apresentou um quadro, segundo ele, esquemático, expondo as
áreas preservadas da Amazônia onde mostrou a localização dos corre-
dores ecológicos lembrando que, juridicamente, eles não estão instala-
dos, porém, já fazem parte de um projeto completo, desenvolvido, em
condições de ser aprovado.

Em seguida, o representante do Ministério da Defesa, o Vice-Almi-


rante Barbosa fez uso da palavra. Explicou que um dos itens que abordaria
seria a questão das limitações do exercício da soberania na região Amazônica
impostas pela legislação nacional.
Afirmou termos em nossa Constituição artigos que tratam do
meio ambiente, artigos que tratam de Terras Indígenas e artigos que
tratam da Defesa Nacional e eles, mais ou menos, concorrem de uma
maneira democrática dentro da nossa Política Nacional. Acontece, afirmou,
que a Defesa Nacional é a que menos desperta prioridade, hoje, somos
um País, extremamente, pacífico, há mais de 130 anos que não temos
envolvimento em nenhuma ação bélica diretamente motivada por nós,
então, sob esse aspecto, estaríamos sofrendo pressões no sentido de
desprezar a Defesa Nacional.
Referiu-se à afirmação do Professor Francisco Teixeira que teria
mencionado o fato da necessidade de as Forças Armadas se tornarem

268
Relatório do Encontro de Estudos

defensoras do Meio Ambiente e da Segurança Pública em detrimento da


Segurança do Estado. Afirmou que nesse contexto, a Defesa Nacional
e a Soberania Nacional ficam afetadas.
Lembrou que há dois anos quando estava sendo discutida a
extensão da Faixa de Fronteira, o Ministério da Defesa chegou a propor
ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que fosse criada uma faixa
não de 150 km, mas de 50 km, porém, foi verificada a impossibilidade
da proposta pelo fato de que muitas unidades de conservação já tinham
sido criadas e muitas Terras Indígenas já tinham sido homologadas ou
demarcadas.
Destacou que na VII Conferência das Partes sobre a Biodiversidade
Biológica foi apresentado um conceito de áreas de proteção transfronteiriça.
Afirmou que classifica esse conceito como extremamente perigoso e nesse
contexto, ressaltou, o relatório do deputado Eriberto Faria seria bem-vindo
porque acabaria com esse problema. Observou que nas áreas de fronteira
há índios Ianomâmi de um lado e de outro; índios Macuxi de um lado e de
outro. Reafirmou sua preocupação em relação às conseqüências das ações
de criação de áreas de proteção transfronteiriças.
Concordou com a Professora Bertha Becker em relação ao controle
das Ongs. Afirmou que o controle é uma atividade extremamente difícil
porque elas estão pulverizadas na Amazônia inteira, mas acredita que
essa presença incontrolada das Ongs afeta a soberania nacional.
Outro aspecto ressaltado diz respeito ao controle das pesquisas.
Afirmou que, freqüentemente, o Ministério da Defesa recebe do Ministério
da Ciência e Tecnologia alguns processos que solicitam a permissão
de pesquisadores estrangeiros para realizarem pesquisas na Amazônia,
na Faixa de Fronteira. Informou que a Marinha tem um processo
de pesquisa no mar e que há sempre um observador da Marinha em
qualquer navio que tenha acesso ao material coletado. Acredita que,
se em cada pesquisa feita por pesquisadores estrangeiros tivéssemos a
269
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

presença de um pesquisador brasileiro, evitaríamos muitas ações lesivas


ao patrimônio biocientífico brasileiro.
Informou que em junho de 2003, foi criado um Grupo de Trabalho
Permanente e Interministerial voltado às questões do desmatamento.
Talvez, explicou, seja o primeiro esforço coletivo de Governo envolvendo
14 Ministérios, para ações contra o desmatamento, principalmente, na
faixa denominada Arco do Fogo. Esse projeto destacou, envolve cerca
de 140 ações já listadas, entrando atualmente na fase de execução.
Afirmou acreditar que até o próximo ano, em termos de índice
de desmatamento, já teremos resultados mais positivos e que com isso o
Estado terá dado uma resposta em relação ao alvo principal das críticas
em relação à Amazônia, ou seja, a questão do desmatamento.

Continuando a sessão de debates com os palestrantes, a Professora


Lia Machado fez sua intervenção. Iniciou fazendo um questionamento:
Por que não se divide a Amazônia? Por que não acabar com a Amazônia?
Afirmou que os Estados que fazem parte da Amazônia a apóiam
em função do interesse em receber recursos da Superintendência
de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), bem como outras
instituições como Ongs, grupos indígenas e o próprio Estado brasileiro,
que tem seus interesses, argumentos e justificativas para a manutenção
da Amazônia.
Segundo Lia Machado, o principal argumento utilizado para a
manutenção da Amazônia é a Segurança Nacional, enfatizou, porém,
que observa formas repetidas e desgastadas de lidar com a questão.
Em relação ao Ciclo de Estudos acredita que o mesmo tem como
objetivo reunir pessoas que possuam defesas de suas próprias posições,
todas elas, provavelmente, legítimas. Afirmou que antigamente o Estado
costumava reivindicar legitimidade e soberania. Infelizmente, hoje, isso

270
Relatório do Encontro de Estudos

não é mais dado ao Estado, que vai ter que se reformular para manter a
sua legitimidade. É necessário ao Estado empreender um processo de
negociação com outros grupos. Acredita que isso é bom, é uma questão
de avanço social da humanidade.
Observou que o Brasil criou uma rede social, a exemplo dos bene-
fícios recebidos hoje pelas populações indígenas, e que em função disso,
muitos índios dos outros países estariam vindo para o lado brasileiro para
obter benefícios, inclusive, alguns têm filhos no lado brasileiro e depois
voltam para o outro lado da fronteira.
Finalizando, abordou a questão da linha de fronteira, defendendo
as zonas de integração fronteiriça. De acordo com Lia Machado para se
resolver os problemas de legitimidade de Estado e Soberania é necessária
a criação de comitês de fronteira. Informou que o Ministério da Integração
Nacional propôs enormes sub-regiões na Faixa de Fronteira, cada uma
com um comitê de fronteira e um fórum sub-regional. Questionou ainda
a não integração das ações do Ministério da Defesa e do Ministério da
Integração Nacional.

Na seqüência, o Conselheiro José Carlos registrou a presença


do Secretário Executivo do Gabinete de Segurança Institucional (GSI),
General Wellington Fonseca, e observou que iria se referir aos
comentários da Professora Lia Machado.
Comentou que em alguns países, particularmente na Bolívia,
onde esteve durante três anos, a presença brasileira é vista por alguns
segmentos da sociedade civil, como uma invasão brasileira.
Em relação a Rio 92, informou que foi membro da Delegação
Brasileira naquele evento e que em meados dos anos de 1990 e 1991
o Brasil sofria, no exterior, o fogo cruzado de uma imensa campanha
contra o Brasil e que tinha a Amazônia como foco principal. Afirmou

271
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

que éramos acusados, largamente, de desmatamento, de maus tratos


ao meio ambiente, de crimes ecológicos, enfim, de uma série de ações
criminosas contra o meio ambiente.
Afirmou que a Conferência das Nações Unidas para Meio
Ambiente e Desenvolvimento que era o nome oficial, porém, batizada
pela Imprensa de Eco-92, representou um momento muito especial de
esforço diplomático vitorioso que resultou numa Conferência que até
hoje é referência e marca importantíssima no cenário da diplomacia
multilateral.
Solicitou à Professora Bertha Becker que aprofundasse a idéia
da não assinatura do Protocolo de Quioto pelos Estados Unidos.
Após um pequeno intervalo, o Conselheiro José Carlos forneceu
algumas orientações em relação à condução dos debates informando
que a Professora Bertha Becker responderia, inicialmente, aos
questionamentos que ficaram pendentes do bloco anterior e em seguida,
o debate seria aberto à participação da plenária.

Inicialmente, Bertha Becker reportou-se à pergunta do Procurador


Vicente Gomes, onde o mesmo questiona sobre os instrumentos que
estão sendo criados para um novo modelo.
Em relação à segurança e soberania afirmou que os Estados
participam dos organismos internacionais porque eles tentam, ao parti-
cipar, reduzir a ameaça na sua origem. Destacou que temos que reduzir
a nossa vulnerabilidade a certas ameaças.
Respondendo à pergunta de Vicente Gomes, afirmou que se referiu a
uma revolução tecnológica, não a movimentos sustentáveis vagos. Informou
que o Brasil já fez três revoluções tecnológicas extremamente importantes.
Uma, foi o aproveitamento do petróleo em águas profundas, que foi
segundo ela uma revolução tecnológica brasileira de suma importância.
A outra, afirmou, foi na Mata Atlântica transformando cana-de-açúcar em

272
Relatório do Encontro de Estudos

combustível com tecnologia 100% brasileira. E finalmente, a terceira foi


no Cerrado, que só tinha lavouras de matas ciliares e foi através de uma
verdadeira revolução tecnológica que a Embrapa, participando ativamente,
conseguiu aproveitar o cerrado para a cultura de soja.
Afirmou que é o momento de fazer uma revolução tecnológica
na Amazônia. Revolução de aproveitamento da biodiversidade em todos
os níveis, desde os fármacos aos cosméticos.
No que se refere aos instrumentos utilizados na revolução
tecnológica, fez menção a uma parceria com os laboratórios da Fiocruz,
que segundo Bertha, possuem instalações em Manaus, mas que estão
vazias, ressaltando que existe o prédio, mas que necessita de técnicos
para funcionar.
A respeito da abordagem do Professor Castro, concordou que todos
nós interferimos no processo decisório. Em relação às Forças Armadas,
afirmou que nunca pensou em não tê-las. Em relação às Ongs, esclareceu
que elas são muito diferenciadas e que seria necessário a existência de
mecanismos que possibilitassem ao Estado ter um controle sobre os
procedimentos adotados por essas instituições, principalmente as inter-
nacionais, ressaltou, porém, que não se referia ao controle físico, mas
sim a um controle operacional.
No que diz respeito à divisão da Amazônia, explicou que anterior-
mente, já havia proposto acabar com a Amazônia Legal porque, segundo
ela, essa representação nunca foi uma unidade, mas sim uma construção
geopolítica de uma época. Reafirmou sua opinião, porém, deixou claro
que isso é uma decisão política do Governo.
Em relação à proposta de acabar com a Amazônia, Bertha Becker
se posicionou contrária à mesma, ressaltou, porém, que é simpática
à idéia da divisão da Amazônia e da extinção da divisão geopolítica
denominada Amazônia Legal.

273
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Após a intervenção da Professora Bertha Becker, o Conselheiro


José Carlos deu início à participação da plenária no debate.

O primeiro participante a se manifestar foi José Alberto da Costa


Machado, Coordenador-Geral da Superintendência da Zona Franca de
Manaus (Suframa), que explicou que é Professor das disciplinas Formação
Econômica da Amazônia e Economia Contemporânea e que trabalha
com desenvolvimento sustentável na Amazônia há bastante tempo. Em
relação à região, afirmou que conhece a intimidade dos rios, da floresta,
dos mitos e lendas e que não apenas conhece, mas, sobretudo, vive
essa realidade cotidianamente e por isso fica extremamente preocupado
quando escuta intermináveis explanações sobre o que classificou como
Amazônia virtual.
Segundo José Alberto Machado, essa Amazônia virtual é formada
por mapas e conceitos acadêmicos que não substituem o conhecimento
e a percepção dos que lá vivem, mas, que infelizmente, as políticas
públicas e as ações são definidas, tomando como base, na maioria das
vezes, exatamente essa Amazônia virtual, apresentada por acadêmicos
e pesquisadores de fora da Amazônia.
Afirmou que a maioria dos projetos para a Amazônia é concebida por
ilustres estudiosos e pesquisadores das principais universidades brasileiras e
estrangeiras e, no entanto, o conhecimento de especialistas e pesquisadores da
região é em sua grande maioria, ignorado, apesar, de na Amazônia existirem
excelentes profissionais e pesquisadores qualificados.
Ressaltou ser fundamental que o Governo e outras instituições, ao
proporem políticas voltadas à região, ouçam as opiniões da população
amazônida. Fundamentou sua argumentação exemplificando a atuação
da Fundação Getúlio Vargas que teria publicado, recentemente, uma obra
produzida por técnicos e pesquisadores da região sobre o desenvolvimento
local.

274
Relatório do Encontro de Estudos

Destacou haver bastante pensamento para a Amazônia e sobre a


Amazônia, porém, muito pouco desse pensamento é oriundo da Amazônia.
Cada setor nacional, afirmou, vê a Amazônia a partir dos seus próprios
interesses e imagina a elaboração de um projeto salvacionista, o que,
segundo Alberto Machado, acaba interferindo naquilo que está, pouco
a pouco, sendo construído na região.
Reportou-se à abordagem da Professora Bertha Becker, onde ela
reafirma o caráter e a identidade da Amazônia. Fez referência a um artigo
de sua autoria intitulado, A Identidade Amazônica em Perigo, onde
aborda a questão freqüentemente discutida que diz respeito à divisão ou
a extinção da Amazônia.
Ressaltou a importância da Suframa como agente de desenvolvi-
mento da Amazônia, citando alguns dados que, segundo ele, mostram a
estrutura e a importância do órgão para a região. Afirmou que a Suframa
possui um faturamento de cerca de R$ 30 bilhões de reais por ano; emprega
70 mil pessoas; financia pelo menos cinco programas de doutorado; oito
de mestrado e cerca de vinte especializações como fruto da estruturação
da área de pesquisa na região Amazônica.
É responsável, continuou, por 60% da arrecadação que a União
faz na região Norte. No período em que o Estado esteve completamente
ausente da Amazônia, a Suframa foi, segundo ele, a única fonte de
rendimento federal para a região.
Destacou que se sente incomodado com o alto grau de desco-
nhecimento das autoridades, e mesmo de alguns especialistas, sobre a
região e que esse desconhecimento se reflete nos resultados, de maneira
geral pouco satisfatórios, das políticas implementadas na Amazônia.
Chamou a atenção para o que classificou de ausência do Estado
na região, afirmando que a população se ressente de não se ver contem-
plada com políticas comprometidas com suas reais necessidades.

275
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Finalizando sua intervenção, José Alberto Machado sugeriu que


o Estado deveria fortalecer o município como forma de restabelecer
sua força, seja por intermédio de parcerias em programas e projetos,
seja por intermédio de uma política de capacitação e qualificação de
recursos humanos.

O próximo a manifestar sua opinião foi Pepeu Garcia, Diretor


da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA). A exemplo do
participante anterior, Pepeu Garcia destacou a falta de atenção do
Estado com a região, citou Marabá como o município com maior índice
de assentamentos do País e enumerou as várias áreas carentes de uma
maior presença do Estado, como saúde, educação, saneamento e
segurança pública.
Ressaltou que concorda com a posição defendida por alguns
especialistas em relação à existência de várias amazônias e defendeu
ainda a desmistificação da região.
Em relação à abordagem feita pela Professora Bertha Becker
sobre a necessidade de uma revolução tecnológica para a Amazônia,
Pepeu Garcia mostrou-se inteiramente de acordo, ressaltando que de
nada adianta a Amazônia ser considerada o celeiro ou o pulmão do
mundo se na prática, em termos de desenvolvimento tecnológico,
continua vivendo como vivia há vinte anos.
Finalizando, parabenizou o Gabinete de Segurança Institucional
(GSI), por intermédio da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institu-
cionais (Saei), em particular o Secretário José Alberto Cunha Couto e o Con-
selheiro José Carlos de Araújo Leitão, bem como a equipe da Coordenadoria
de Estudos, pela realização do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e ressaltou
que colocaria um desafio à coordenação de promover o aprofundamento dos
estudos, levando a discussão para dentro da Amazônia.

276
Relatório do Encontro de Estudos

Em seguida, Paulo Moutinho, Coordenador de Pesquisa do


Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, se confessou ansioso
pela realização do próximo Ciclo de Estudos e lembrou que quando
há abertura de espaço para o diálogo e ocorre a derrubada de alguns
preconceitos isso acaba facilitando a interação entre o governo e a
sociedade e conseqüentemente, as políticas voltadas para um deter-
minado segmento - no caso a Amazônia - têm mais probabilidades de
serem bem-sucedidas.
De acordo com Paulo Moutinho, um evento dessa natureza
possibilita, ao compararmos os discursos do Poder Público e da
Sociedade Civil Organizada, chegarmos à conclusão de que há mais
pontos de consenso do que de discordância em relação às políticas e
ações necessárias.
Em relação às organizações da sociedade civil, Paulo Moutinho
acredita que o segmento alcançou um tal nível de organização e desen-
volvimento que hoje já possui um espaço legitimado junto à sociedade
e ao próprio Governo, ressaltando que, principalmente em relação à
Amazônia, há uma demanda muito grande em relação às Ongs
dedicadas a essa questão.

O último participante da plenária a fazer sua intervenção foi


Paulo Machado Guimarães, Assessor Jurídico do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), que em nome de sua instituição agradeceu ao
convite do Gabinete de Segurança Institucional para participar do Ciclo
de Estudos sobre a Amazônia e ressaltou o pioneirismo da iniciativa
que colocou em pauta um tema, segundo ele, não muito discutido fora
da esfera de Governo, ou seja, a possibilidade da existência de limi-
tações ao exercício da soberania na região Amazônica impostas pela
Legislação Nacional.
Afirmou que do ponto de vista profissional defende a solução

277
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

constitucional no que diz respeito às Terras Indígenas. Ressaltou ainda


que jamais defendeu que as Forças Armadas não tivessem atividades
na Faixa de Fronteira e reafirmou a importância de se estabelecer uma
agenda de debates no que se refere à soberania do Estado.
Finalizando, parabenizou a Coordenadoria de Estudos da
Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais do GSI pela
iniciativa de promover um debate relevante, tanto no que diz respeito
à soberania nacional, quanto ao que se refere às populações indígenas
da Amazônia.

Finalizadas as intervenções da plenária, passou-se para um breve


comentário dos integrantes da mesa. A primeira a manifestar-se foi a
Professora Bertha Becker.

Em relação aos comentários de que os principais especialistas


em Amazônia são de fora da Amazônia e que, portanto, não a conhece-
riam, Bertha Becker afirmou que o habitante da região, normalmente,
conhece apenas a área de seu entorno, isto é, a área em que vive e que
por ser uma região muita extensa, não seria exagero afirmar que existem
várias Amazônias, o que por si só já traria dificuldades para um conhe-
cimento completo da região.
Afirmou que em função dos longos anos de trabalho como
Pesquisadora da região, possui uma visão mais completa, mais inte-
grada da Amazônia e que isso a habilita a formular alguns conceitos
sobre a região.
Em relação à densidade demográfica, chamou a atenção para
o grande vazio nas áreas em que é realizado o cultivo de soja, em
oposição às áreas urbanas que apresentam uma grande concentração
populacional.

Em seguida, o Procurador Vicente Gomes referiu-se à inexistência


278
Relatório do Encontro de Estudos

no Brasil de um projeto voltado para a ocupação e exploração do


solo. Concordou com as afirmações da Professora Bertha Becker de
que a Amazônia necessita urgentemente de um processo de inovação
tecnológica.
Finalmente, destacou que apenas alguns Estados, entre eles
Rondônia, dispõem atualmente de um sistema de Zoneamento Ecológico
Econômico (ZEE).

Por sua vez, o Vice-Almirante Barbosa refutou a argumentação


apresentada pelo representante do CIMI, Paulo Machado Guimarães,
em relação às limitações constitucionais impostas à Defesa Nacional.
Referiu-se aos Decretos 4.411 e 4.412 e reafirmou não identificar qualquer
imposição à Defesa Nacional, expressa na Constituição Federal.

Encerramento

Antes de passar a palavra ao Secretário da Saei, o Conselheiro


José Carlos lembrou aos participantes que estava se encerrando ali o
Ciclo de Estudos da Amazônia, iniciado em 15 de abril com a presença
da Professora Edna Castro, Pesquisadora da UFPA, tendo continuidade
no dia 05 de maio, com a presença da Professora Gloria Vargas, Pesquisadora
do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília
(CDS/UnB), e do Rodrigo de Aquino, Analista de Informações da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin).
Em seguida, agradeceu a presença e a participação dos conferencistas
e debatedores e elogiou o desempenho e a qualidade das apresentações e
intervenções, tanto dos palestrantes, quanto dos convidados que participaram
dos debates.
Finalmente, agradeceu à equipe da Coordenadoria de Estudos:
279
Ciclo de Estudos sobre a Amazônia

Márcio Buzanelli, Tenente Coronel Joarez Alves Pereira Júnior, Paula


Lima e Regina Vieweger, ressaltando que sem a colaboração e o empenho
da equipe não teria sido possível a realização do Ciclo de Estudos.
Para encerrar a reunião, foi passada a palavra ao Secretário da
Saei, José Alberto Cunha Couto, que destacou se sentir honrado em
participar do evento e explicou que, a exemplo das reuniões que discutiram a
questão indígena e que posteriormente se transformou em uma publicação,
a Coordenadoria de Estudos da Saei pretende sistematizar as discussões
do Ciclo de Estudos sobre a Amazônia e em seguida transformá-las em
uma publicação que servirá de apoio à elaboração e implementação
das políticas públicas voltadas à região Amazônica.

Considerações Finais

Ao encerrar-se o Ciclo de Estudos sobre a Amazônia – série


de três eventos que reuniu diversos atores sociais envolvidos com a
temática da Amazônia – a Coordenadoria de Estudos da Saei mostrou
que é possível envolver vários segmentos sociais em torno da discussão
de políticas públicas e ações governamentais.
Cerca de cem pessoas, entre pesquisadores, acadêmicos,
especialistas, técnicos do Governo, representantes indígenas e represen-
tantes de organizações da sociedade civil, participaram das três reuniões
que compuseram o Ciclo de Estudos, apresentando sugestões, expondo
pontos de vistas, fazendo críticas às políticas implementadas, tecendo
comentários, ou simplesmente assistindo aos debates que se seguiam às
apresentações.
É desnecessário salientar as divergências que emergiram dos
debates, fruto de experiências pessoais, diversidades regionais, posições

280
Relatório do Encontro de Estudos

ideológicas, entretanto, torna-se fundamental ressaltar o consenso


existente entre todos os que participaram do Ciclo de Estudos, sobre a
importância de o Governo, por intermédio do Gabinete de Segurança
Institucional, ter promovido essa iniciativa.
Vale reproduzir aqui um comentário feito por um participante – Paulo
Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) – ao se
referir à realização do Ciclo de Estudos: “Quando há abertura de espaço para
o diálogo e ocorre a derrubada de alguns preconceitos isso acaba facilitando
a interação entre o Governo e a Sociedade e, conseqüentemente, as políticas
voltadas para um determinado segmento - no caso, a Amazônia - têm mais
probabilidades de serem bem-sucedidas”.

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