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plexa e que exige bem mais do que um simpies método ana-

lntrodução lítico, Nesse sentido. a abordagem científica da biogeogra-


Biogeografia é um conceito aparentemente simples. O ter- fia difere daquela das ciências ditas experimentais, em que
mo exprime de maneira direta a ideia de um tratamento ensaios controlaclos possibilitam compreender as causas de
conjunto de informaçôes bioiógicas e geográficas. A bio- um evento, fornecendo evidências empíricas para prever
geografia tem como objetivos descrever a distrlbuição clos eventos de uatureza semelhante. Por ser uma ciência his-
organismos no planeta e clar explicaçÕes históricas para tais tórica, a Biogeografia, ao contrário, volta-se para o passad«t
configurações espaciais"l-5 Trata-se de um carnpo cle in- na tentativa de estabelecer conexôes entre cadeias de even-
r,estigação interdisciplinar que se dedica à difícil tarefa de tos responsáveis por situações que nõo podent ser repetidos
compreender por que os táxons sáo encontrados em deter- experimentalmente. Essa reconstrução do passado é uma
minadas áreas e não em outras. Em sua maior escala, a bio- tarefa árdua, náo apenas em decorrência da complexidade
geografia fornece a perspectiva histórica necessária tanto dos temas ou por lacunas teóricas, mas da característica in-
para a compreensão da evolução das biotas como também trínseca dos problemas tratados.
da evoluçáo geológica c1o planeta.6 O filósofo Elliott Sobers denominou "processos des-
O desenvolvimento da biogeografia como ciência, espe- truidores da informação" aqueles que eliminam evidências
cialmente ao longo dos últimos três séculos, teve forte re- processuais que estabeleceram um padráo recente e sLlas ca-
Laçáo com o desenvolvimento e o refinamento de sistemas racterísticas. Sabe-se que as próprias histórias biológicas e
classificatórios estáveis - que possibilitaram a documen- geológicas destroem boa parte clos indícios que possibilita-
taçáo crescente da diversidade biológica - em paralelo aer riam um exame direto dos padrões biogeográficos ea com-
aumento do conhecimento c1a distribuição geográfica clas preensão de processos que os originaram. Nessas circuns-
espécies e cla geologia do planeta. A reunião cle informa- tâncias, é necessário o maior número de evidências possível
ções sobre a distribuição de um nírmero cada vez maior cle para a formulação de hipóteses integrativas3: distribuição
táxons possibilitou a formulação cle qr-restões cruciais, como geográfica dos táxons, relações filogenéticas, estimativas
a descoberta de padrões biogeográficos e a regionalização das idades de clivergência entre linhagens, hipóteses para
clo espaço.7 as histórias geológicas das áreas de ocorrência dos táxons,
O estudo cle resultado.s de eventos históricos é clesa- informações climáticas e paleoclimáticas, registros fosseis e
fiador. Há uma multiplicidade de possíveis fatores, pretéri- qualquer outra fonte de informação que possa auxiliar na
tos e atuais, responsáveis pela presença de um grupo bioló- reconstrução histórica.
gico em determinada área. É exatamente o acúmuIo desses Nos seus aproximadamente 4,5 bilhoes de anos, o plane-
eventos que torna a reconstrução da história da distribuição ta tem sofrido uma série de alterações, mais ou menos drás-
espacial das linhagens de organismos uma atividade com- ticas, que influenciaram, e ainda influenciam, a evolução
Parte 1| Teoria e Análise

das espécies. Movimentos das placas tectônicas, orogêneses, muns, pode vir a ser reconhecido no presente como um pa-
aparecimentos e desaparecimentos de rios e outros corPos drão biogeográfico (Figura 1.1 C). A existência de eventos
d'água, erosões, mudanças climáticas profundas, ocorrendo comuns que alteram de modo similar as distribuições de
em escalas de milhÕes, dezenas de milhões ou centenas de mais de um táxon possibilita reconstruir um panorama da
milhões de anos, são alguns dos eventos responsáveis pelas história biogeográfica desses táxons com distribuição mais
contínuas modificações das feições da Terra. Esses even- ou menos coincidente, a despeito das particularidades na
tos afetam as distribuições de organismos: uma população evolução de cada um desses grupos.
anteriormente contínua divide-se em subpopulaçôes; uma Quando apenas eventos vicariantes moldaram a distribui-
espécie tem sua distribuição aumentada pela expansão para ção dos táxons, o relacionamento filogenético entre eles estava
áreas anteriormente isoladas; grupos inteiros podem se ex- totalmente atrelado ao relacionamento entre as áreas por eles
tinguir local ou globalmente. ocupadas - as relações filogenéticas sáo, portanto, biogeo-
A evolução de um táxon por vezes segue caminhos graficamente informativas (e vice-versa). Na Figura 1.1 A, as
tortuosos. No entanto, aiguns desses caminhos sào com- áreas x e 7 são mais próximas entre si em relaçáo à área z, pois
partilhados por outros tâxons, próxima ou distantemente x e y Íeriam se isolado posteriormente à separação de z. Da
relacionados. Isso ocorre quando uma alteração física em mesma maneira, os táxons presentes em x e y (espécies 1 e 2)

uma dada área (Figura 1.1 A) atinge mais do que uma única seriam mais proximamente relacionados entre si em relação
espécie que habita aquela regiáo. O aparecimento de uma ao táxon presente em z (espécie 3; Figura 1.1 B). Pode-se afir-
barreira, que divide uma área anteriormente contínua, pode mar ainda que o evento de vicariância responsável pela sepa-
separar a população ancestral de uma espécie em duas sub- raçáo das áreas x e y (e pela origem das espécies 1 e 2) é mais
populações, as quais, uma vez isoladas, podem responder recente que o evento relacionado com a separação de z (que
de modo independente às pressões do meio e se diferen- originou a espécie 3). Uma hipótese de relação entre áreas tem
ciar, levando à formaçáo de duas novas espécies. Esse é o maior suporte científico quando filogenias de outros gruPos
processo denominado vicariância (Figura 1.1 B). Muitas de organismos distribuídos nessas mesmas áreas coincidem
vezes, a barreira é efetiva para espécies distintas, dividin- com o padrão esperado, como mostrado na Figura 1.1 C.
do suas populações de maneira semelhante. Esse padrão Como visto anteriormente, evidências de padroes bio-
compartilhado de disjunçoes, quando linhagens irmás de geográficos podem ser extraídas de filogenias e das distribui-
vários táxons são separadas por eventos de vicariância co- çoes dos organismos.s O entendimento e a documentação

t1

xyz xy

sp.2 sp.3

Bc
Figura 1.1 A. História de uma área ancestral'xy/ que ao longo da historia geológica foi fragmentada, inicialmente em duas
áreas menores, xy e z, e posteriormente em três áreas (apos a separação de x e y). B. O grupo monofilético formado pelas
espécies 1,2 e 3 distribui-se exclusivamente nas áreas x, y e z. A história de diversificação dessa linhagem transcorreu durante
a história geológica de separação das áreas, conforme o esquema. C. Dois outros táxons, um composto pelas espécies 4,5 e6
e outro composto pelas espécies 7,8 e 9, também ocupam as mesmas áreas e tiveram historias muito similares à da linhagem
que inclui 1,,2 e 3. A congruência entre as três hipoteses propostas para as três linhagens reforça as hipóteses biogeográficas
individuais por formarem um padrão. Três momentos históricos distintos, entre os quais eventos de vicariância ocorreram, são
denotados por tl, t2 e t3.

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CapÍtulo 1 | Uma Logica para a Biogeograíia Historica

das distribuiçÕes taxonômicas são evidências primárias de a Biogeografia de Vicariância (ou Biogeografia Vicariante),
qualquer estudo biogeográfico, uma vez que são indicati- além do exame de padrões biogeográfi.cos possivelmente
vas de possível associaçáo histórica entre os organismos e resultantes da vicariância. A documentação do registro geo-
as áreas que eles ocupam. Quando táxons diferentes en- gráfico e a existência de hipóteses de relações filogenéticas
contram-se na mesma área, pode-se supor que essas dis- proveem o embasamento empírico fundamental para gran-
tribuições resultam dos mesmos eventos históricos.5 Dis- de parte das inferências analíticas em Biogeografia Histórica
tribuiçoes coincidentes sugerem que a área sob escrutínio por vicariância.10 O propósito de uma discussão sobre a lógica
constitui uma unidade biogeográfica ou área de endemis- de uma disciplina científica é avançar na discussão sobre seus
mo.a O reconhecimento de configurações espaciais repeti- fundamentos conceituais, assim como identificar paradigmas
das em táxons distintos está no cerne das definiçÕes de área científicos cruciais para sua sustentaçáo.
de endemismo propostas nos úitimos 30 anos (Capítulo 3).
Assim como as espécies sáo as unidades básicas da sistemá- Pad rões biogeog ráficos
tica, espera-se que em biogeografia também haja unidades
que possibilitem o referenciamento ao espaço por onde os Pi :' I i1-,írl.j' il:: l:,:l€i. I t;Cdi)
organismos se distribuem e onde a evolução biogeográfica As distribuições geográficas resultam da combinaçáo his-
ocorre. Apesar da importância histórica dada às áreas de tórica de um número limitado de processos: permanência
endemismo, os eventos que levam à disjunção biogeográ- ou extinção de populações (e de espécies) em determina-
fica (juntamente com a história filogenética dos táxons e a da área, expansão ou retraçáo dos limites da distribuição
história geológica das áreas) têm sido defendidos, por ai- e, frnalmente, fragmentação da distribuição de uma espécie
guns autores, como os elementos reaimente fundamentais ancestral pelo surgimento de uma barreira capaz de isolar
para a biogeografia históricae (ver também a discussào so- populações, eventualmente levando à diferenciação alopá-
bre essa controvérsia no Capítulo 4). O reconhecimento de trica (1. e., vicariância). Comparando-se como esses proces-
áreas de endemismo nâo depende apenas da representação sos podem moldar a distribuição de populações, percebe-se
de registros de ocorrências taxonômicas em um mapa, não que cada um deles influencia de modo bastante idiossin-
havendo, portanto, uma equivalência satisfatória com áreas crático a evolução espacial da biota. Muitos desses eventos
de distribuição. Uma área de endemismo pode ser consi- carregam um forte componente aieatório. As extinções de
derada uma unidade histórica verdadeira se há congruên- populações em uma área geralmente são resultantes de
cia filogenética e distributiva na região ocupada por dois ou fatores estocásticos e, portanto, nem sempre atingem a to-
mais grupos monofiléticos (Capítuio 3). talidade das espécies que ocorrem em uma mesma regiáo.
Neste capítulo, será explorada uma base conceitual para Dispersões envoivem a transposição de barreiras geográfi-
a compreensão da história das distribuições dos seres vivos. cas preexistentes (Figura 1.2 A), sendo eventos dependentes
Mais especificamente, será abordada a Biogeografia Histórica do acaso e de características espécie-específicas que deter-
(para uma discussão sobre as duas principais abordagens da minam o que consiste uma barreira para os organismos de
pesquisa biogeográfica, ver Quadro 1. 1 ). Será enfatizada a es- cada táxon. A expansão de distribuição geográfica (Figu-
cola que recebeu maior atenção nas últimas quatro décadas, ra 1.3) relaciona-se à vagilidade dos organismos e à relação
entre preferências ambientais e disponibilidade de habitats
ecologicamente apropriados.
Quadro 1.1 Escolas da Biogeografia.
O surgimento de barreiras geográficas e a consequente
Tradicionalmente, a Biogeografia é dividida em Biogeografia fragmentação da área de distribuição ancestral de espécies,
Ecológica e Biogeografia Histórica.1-s,8,e As diferenças entre as duas
escolas dizem respeito aos tipos de questôes levantadas, às me-
resultando na formação de espécies descendentes alopá-
todologias especÍficas e à escala temporal dos eventos. tricas (Figura 1.2 B), podem ser considerados a classe de
A Biogeografia Ecológica lida com processos de duração mais eventos mais independente de atributos dos próprios or-
restrita, cujos efeitos podem afetar a distribuição de organismos ganismos. fustamente por isso, espera-se que vários táxons
de uma determinada espécie ao longo de uma ou poucas gerações.
habitando a área anterior a sua fragmentação respondam de
O estudo de quaisquer fatores ecológicos aÍetando a distribuição
de populaçÕes ou espécies é considerado parte do escopo da maneira similar à vicariância (Figura 1.1 C).
Biogeografia Ecológica. Historicamente, os cenários biogeográficos propostos
A Biogeografia Histórica investiga as mudanças biogeográficas para explicar distribuiçÕes disjuntas de táxons proxima-
ocorridas ao longo do tempo evolutivo e examina as causas mente relacionados favoreceram duas classes de eventos: a
históricas da distribuição dos organismos, em especial os even-
tos biogeográficos (i. e., expansão de área de distribuição, expansão de distribuição pela transposição de uma barreira
dispersão, vicaríância, extinção). Essa disciplina abarca a Biogeo- geográfica preexistente (cenário dispersalista) ou a fragmen-
grafia de Vicariância, quando se fundamenta no reconhecimen- tação de uma distribuiçáo anteriormente mais ampla (ce-
to de padrões vicariantes para a ínvestigação da evolução nário vicariante). De modo isolado, dados de distribuição
espacia l.e
de um táxon não sáo suficientes para demonstrar de ma-
Apesar de ser conveniente, por vezes, traçar uma separação
entre os fatores históricos e ecológicos que afetam a distribui- neira inequívoca as raízes históricas da sua atual distribui-
ção dos organismos sobre o planeta, a interação desses fatores ção disjunta. A melhor maneira de se abordar um problema
para a história da distribuição de qualquer táxon não deve ser desse tipo é a busca por padrões similares em grupos de
ig norada.3
organismos distintos.2,s
Parte 1| Teoria eAnálise

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FIgura 1.2 Representação de dois cenários biogeográficos alternativos para explicar a disjunção espacial atual de duas es-
pé-cies-irmãs (2 e 3). Os cenários são apresentaàos ám três momentos distintos, denotados por t7, t2 e f3. A. Segundo esse
que se
cenário, a espécie 1 (ancestral comum imediato de 2 e 3) tinha como limite ao leste a cordilheira dos Andes. lndivíduos
dispersaram a oêste, no momento f2, possibilitaram o estabelecimento de uma nova população. No momento f3, as espécies
2 e 3 encontravam-sê isoladas e diferenciadas. B. Nesse cenário, a espécie L distribuía-se amplamente na América do Sul,
anteriormente ao soerguimento dos Andes. Tal evento geológico resultou no isolamento de duas populações no momênto
t2 e possibilitou a difeienciação de duas espécies descéndentes 2 e 3, uma situação de vicariância seguida por espeeiação
alopátrica. Comparando-re as hipóteses mostradas em A e B, nota-se que os eventos responsáveis pela distribuição recente
das espócies 2 e 3 são muito diferentes, apesar de resultarem em uma conformação espacial presente indistinguível entre
elas.
A difeiença principal entre os dois cenários é a idade das espécies filhas em relação à idade da barreira geográfica.

Assim como é pouco sensato pensar que a rePetição do planeta.2 No entanto, assumir de início que a frag-
dos padroes de distribuição de caracteres em um clado- mentação de uma população ancestral por si só é a me-
grama resulta do acaso, não parece razoável que padrões thor explicaçâo para uma distribuição disjunta náo ga-
semelhantes de distribuição entre áreas refiram-se a his- rante uma reconstruçâo biogeográfica confiável' A perda
tórias independentes de dispersão. É mais parcimonio- de informação sobre a sequência pretérita de eventos,
so assumir que todas as espécies recentes de mamíferos que levou à distribuição atual, é o maior empecilho para
têm pelos por terem herdado essa câracterística de um que explicaçÕes biogeográficas sejam propostas. O exem-
ancestral comum que possuisse pelos a assumir que os plo da Figura 1.2 ilustra tal dificuldade. Quando se com-
pelos tenham surgido independentemente várias vezes.a param as distribuiçôes atuais de dois pares de espécies-
Analogamente, é mais parcimonioso assumir que es§es irmãs nos cenários distintos propo§tos, percebe-se que,
padrões atuais de distribuição sejam, pelo menos em em ambos os casos, uma barreira geográfica separa uma
parte, resultantes de histórias compartilhadas causadas espécie de sua espécie-irmã. A questão fundamental é
por respostas similares às modificaçôes da superfície determinar o momento do surgimento da barreira em
Capítulo 1 | Uma Lógica para a Biogeografia Histórica
,]

í
ii
i

i
I

Figura 1.3 Representação da distribuição de uma espécie (área cinza) em três momentos de sua história (t1, t2 e t3).
Aãxpansão dos limites da distribuição dessa espécie não envolveu a transposição de barreiras geográficas e, por isso, não é
considerada um evento de dispersão.

relação ao evento de especiação que causou divergência Craw et al.tt referiram-se à pesguisa biogeográfica
da espécie 1 em relaçâo às espécies 2 e 3, que difere mar- como o estudo da "vida em camadas geológicas'i A cada
cadamente nos dois casos (Figura 1.2). estágio da história geológica do planeta, uma enormidade
Em suma, padrões biogeográficos são coincidências não de fatores interagiu para levar à conformação espacial dos
arbitrárias (congruências) de distribuiçôes geográficas de organismos no estágio seguinte e, daí por diante, até o mo-
espécies ou grupos monofiléticos e de relacionamentos his- mento presente. Essa profusáo de fatores que influenciam
tóricos entre as áreas em que esses táxons ocorrem.2'3 as distribuições aumenta o "ruído" na análise biogeográ-
fica, pois em uma grande quantidade de casos os padrões
individuais não são completamente congruentes entre si,
Ruído I Quando a história conspira contra
desviando do padrão biogeográfico geral, que é o objeti-
os historiadores vo dos estudos sobre o componente espacial da evolução,
Biogeógrafos são historiadores que almejam compreender PageLz notou que mesmo a obtenção de congruência na
a evolução da diversidade biológica no espaço geográfico, sequência dos eventos de divergência em dado cenário
Infelizmente, as evidências que se mantêm como resquícios pode acarretar erros de interpretação quanto à existência
dessa história são muitas vezes obscurecidas por outros de uma história comum. Em situação ideal, deveria ser
sinais históricos conflitantes àqueles sugeridos pela vica- possível avaliar também a congruência temporal entre os
riância. Os estudos investigados do ponto de vista biogeo- eventos, pois os padrÕes observados nem sempre levam
gráfico normalmente incluem congruência apenas parcial em conta que táxons com distribuiçÕes compartilhadas
entre histórias dos tiíxons e das áreas em que eles sáo en- podem ter origens biogeográficas distintas ("pseudocon-
contrados. Parte da confusão é resultante da concomitância gruências", o Capítulo 4 discute esse tópico em maior pro-
entre as histórias de vicariância e as histórias de dispersões íundidade), não passando, necessariamente, por toda a
e extinções de tríxons de uma linhagem (Figura 1.4). Os sequência de eventos que resultou na configuração atual,
métodos analíticos da biogeografia propõem-se justamen- como é o caso dos tiíxons alocrônicos,13
te a lidar com as "imperfeições" do registro histórico dei-
xado pela evoluçáo biológica e espacial dos táxons'6 Essas
ferramentas buscam extrair o máximo de informação bio-
Desenvolvi mentos metodológicos
geográfica até mesmo de situações ambíguas, nas quais os A proliferação de métodos de estudo das relações biogeo-
padrões de relação entre as iíreas estão longe de ser inequí- gráficas foi táo grande que, nos últimos anos, classificações
vocos. O reconhecimento das relações filogenéticas entre os foram propostas para organízar essas ferramentas e abor-
táxons e da sua associação com o componente espacial cria dagens, de modo a facilitar a escolha de uma ou mais de-
condiçoes desejáveis para a comPreensão tanto da história Ias para determinada pesguisa.l'3'6 Crisci eú al.l viram, na
biogeográfica de um grupo em particular como também rápida diversificação de opções analíticas, um sinal de uma
para a identifrcaçáo de padrÕes biogeográfrcos gerais. revolução científica da área da Biogeografia'
Parte 1| Teoria e Análise

Area x y
Area l\rea z xyz
sp. 1 sp.2 sp.3

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xyz xxy (xyz

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Figura 1.4 A. Relações filogenéticas entre as especies L,2 e 3, mostrando as áreas em que estas se distribuem e sua história
biogeográfica de vicariância. B. Cladograma de áreas inferido a partir de A. Nesse caso, as relaçÕes entre as áreas correspon-
dem à real historia geológica, pois a história de cladogênese do táxon composto pelas espécies L,2 e 3 foi perfeitamente
congruente aos eventos de vicariância. C a E. Três cladogramas de áreas inferidos a partir de relações de outros táxons, em
que as historias das áreas parecem diferir entre si e em relação ao caso anterior. C. A espécie distribuída na área x especiot-i-se
simpatricamente. D. Alguns indivíduos da espécie ocupando a área x dispersaram para uma área w, dando origem a uma nova
espécie. E. A especie distribuída em y se extinguiu.

Em uma perspectiva histórica, são identiÍrcadas três gran- A biogeografia narratir-a inclui, sob sua alcunha, as ten-
des fases da pesquisa biogeográfica:14 biogeografia descritiva tativas de explicaçào para a origem dos padrÕes de distri-
(ou empírica), narrativa e analítica. O primeiro estágio de buição.13 Nela, Ievantam-se hipóteses - levando em consi-
estudos biogeográficos foi o descritivo, em que se realizaram deraçáo os registros de ocorrência dos táxons, as relações
documentação das localidades de ocorrência das espécies frlogenéticas presumidas entre as espécies desses grupos e
e as primeiras tentativas de reconhecimento de regiões de eventos geológicos relevanles - que constituem cenários
coocorrência de táxons. Esse tipo de abordagem possibili- plausíveis para descrever a história biogeográfica. Essas
tou, em algum grau, indução e predição, na medida em que narrativas procuraram descrever histórias individuais, na
o registro da presença de uma espécie em determinada área maior parte das vezes apoladas em eventos de dispersão vá-
permitia prever o encontro de organismos dessa espécie na lidos apenas para o grupo taxonomico particular estudado.
mesma área em momento posterior.la A biogeografia descri- A validade de pesquisas narratiras e iluestionável, na medi-
tiva não se propõe, contudo, a gerar hipóteses sobre como as da em que são empiricamente ira.as. em razão de sua falta
populações alcançaram as distribuiçÕes observadas. de generalidade e testabilidade.
Capítulo 1 | Uma Logica para a Biogeografia Historica

A partir da metade do século 20, a biogeografia adquiriu um enorme valor empírico. Muitos dos desenvolvimentos
um aspecto mais analítico, possibilitando que seus resulta- analíticos recentes da Biogeografia Histórica têm se voltado
dos fossem mais facilmente verificáveis do ponto de vista justamente para a proposição de hipóteses para táxons in-
científico. Ano a ano, tem havido aumento no leque de op- dividuais (Capítuios 6 a 9). Relações entre áreas indicadas
çoes para estudos biogeográflcos analíticos, mas os pilares pelo estudo de apenas um táxon podem ser comparadas a
conceituais dessa área de pesquisa foram erguidos entre as outros padrÕes, na busca pela congruência entre os even-
décadas de 1950 e 1970. Três são os pilares mais fundamen- tos vicariantes sugeridos por eles. Do mesmo modo, a se-
tais dos desenvolvimentos analíticos e conceituais da bio- quência de eventos indicada por um estudo pode ser vista
geografia de vicariância:r o
à luz de reconstruções da história geológica da região es-
tudada, também à procura de coincidências na sequência
. A aceitação do modelo da tectônica de placas, que re- cronológica de eventos em ambos os casos. Alem disso,
monta à deriva continental proposta décadas antes por pesquisas envolvendo inferências sobre datas de origem dos
Alfred Wegener e que teve implicações profundas para táxons, a partir da idade mínima sugerida por fósseis ou
a noção de vicariância como evento biogeográfico rela- inferência de idades de divergência de linhagens utilizando
tivamente comum dados moleculares (Capítulos 2, 8 e 9), são de grande in-
. O desenvolvimento da pan-biogeografia por León Croizat teresse biogeográfico e cruciais para dar suporte a padroes
como estratégia para estudo de padrões de distribuição gerais de relaçÕes entre as áreas.
iluminados pela congruência espacial proveniente de vá-
rios táxons História e busca por uma ciência
. O desenvolvimento da sistemática filogenética de Willi
Hennig e o consequente estímulo à biologia comparada
preditiva
de modo geral, reiterando a importância da hierarquia Por ser uma ciência histórica, a biogeografia vicariante não
natural para estudos de biodiversidade. se presta a especulações sobre as possíveis distribuições Íutu-
ras dos táxons. A sequência de eventos que levou a qualquer
Em termos práticos, os princípios e objetivos da biogeo- padrão de distribuição espacial corrente é particular - apesar
grafia de vicariância se delinearam com clareza cada vez de muitas vezes compartilhada por grupos biológicos distin-
maior a partir dos anos 1970, possibilitando a formalização tos - e o seu caminho futuro é único e imprevisível. O tipo
de hipóteses para a história espacial dos grupos biológicos. de predição válido para a ciência biogeográfica parte da pre-
A consequência mais notável do interesse por essa perspec- missa de que há explicaçôes comuns. ao menos para parte
tiva histórica foi o refinamento metodológico, com o estabe- dos padrÕes encontrados. Essa condição pode indicar a exis-
lecimento de "escolas" de pensamento biogeográfico como tência de outros táxons, diferentes daquele em anáIise, com
a Biogeografla Cladística (Capítulo 4), a Pan-biogeografia distribuiçoes congruentes àquelas estudadas, os quais, ao se-
(Capítulo 5) e métodos que se baseiam em modelagem de rem incluídos em um estudo amplo, acabam por aumentar o
eventos (Capítulos 6 e 7). poder explanatório da hipótese biogeográfica.a
A biogeografia é uma ciência antiga, com uma longa he-
rança intelectual, que remonta às primeiras tentativas de se
i.:'li:il: ,.l- ar,1l:'jr:3 1,r.1ir.jf I * t51-litjt:. :jÊ compreender o mundo natural.2,4,17 Porém, somente a par-
,ii ilt:r-,:: :i: :,,i:: .llif tir do século 18 foi iniciada uma tradição de pesquisa siste-
Alguns estudos biogeográficos são notáveis pelo seu amplo matízada na área, com naturalistas buscando interpretar as
escopo e quantidade de táxons comparados - o trabalho de histórias dos tá,xons de seu interesse, Iigadas a um crescen-
Sanmartín e Ronquistls, apresentando uma cuidadosa re- te esforço de organizaçáo sistemática da natureza. No iní-
construção da hierarquia da fragmentaçáo do supercon- cio do século 19, destacam-se as obras de Buffon, Hooker
tinente Gondwana, é um valioso exemplo de análise que e Augustin de Candolle.3'4'17 O ponto fundamental desse
aponta para padrões vicariantes gerais congruentes com período, que se tornou a linha mestra de toda a biogeogra-
padrões individuais. 13,1 s'16 fia seguinte, foi a busca pelo reconhecimento de padroes e
Estudos biogeográfrcos são considerados aceitáveis ape- de generalizações acerca das possíveis causas responsáveis
nas se forem análises com grande quantidade de dados? por tais padroes. A comparação com o estudo biogeográfico
Certamente, não. Contudo, buscou-se esclarecer neste ca- atual é um exercício interessante. Ainda hoje os padrÕes são
pítulo por que a concordância entre, por exemplo, três re- a base para muitas inferências sobre os processos históricos
sultados provê maior peso científico a uma hipótese do que que os causaram (ver os Capítulos 2 a 6), mas há cadavez
a concordância entre dois resultados. Padrões derivados de mais exemplos de abordagens históricas que buscam expli-
estudos com dezenas de táxons são ainda mais convincen- cações que nem sempre se embasam em padrÕes vicarian-
tes, o que não deve ser tomado como sugestão de que es- tes (ver os Capítulos 6 a 9). As diferenças entre abordagens
tudos com números menores de táxons não servem como de padráo encontram-se especialmente em quais tipos de
evidência empírica para as conclusões alcançadas. Os estu- conclusões derivam desses padroes observados, envoltas
dos biogeográficos de táxons individuais - mesmo aqueles em um formalismo metodológico obviamente inexistente
fundamentados em apenas um táxon - frequentemente têm na aurora da prática biogeográfica.
Parte 1| Teoria eAnálise

No séçulo 19, Augustin Pyramus de Candollei8 foi um outras naturezas gue parccer conveniente ao autor da hi-
dos principais responsáveis pela consolidação da biogeogra- pótese. Quando um cenário dispersalista é proposto para a
fia como a ciência que procura explicar quais fatores leva- história biogeográfica de um táxon, frequentemente ele náo
riam os táxons a se distribuírem em determinados locais e pode ser aplicado para outros estudos de caso, pois é único
não em outros, por meio dos seus conceitos de "habitações" para um determinado exemPlo.
ou "estaçÕes".Eles expressavam a noção de coocorrência Em meados do século 20, León Ctoizat compilou de
de uma série de condições ecológicas que favoreceriam a modo exaustivo e notável padrões resultantes da sobreposi-
presença de um dado grupo de organismos em determina- ção de estudos de casos, Pesquisas extensivas sobre grupos
das partes do globo. Para de Candolle, as estações seriam as de animais e plantas foram registradas e resumidas em sua
causas físicas que influenciariam a distribuição e que ainda obra Space, Time, Form,zt Suas investigações indicaram que
estavam em operação; as habitações poderiam ser tomadas a existência de padrões repetidos na natureza era evidência
como a expressâo das causas geológicas não mais atuantes de eventos de vicariância comuns e fonte importante para
- essas diferenças estão no cerne da divisáo tradicional en- reconstruir a história da área estudada, a despeito de des-
tre biogeografia ecológica ('das estaçôes") e histórica ("das vios indMduais do cenário geral apresentados Por um ou
habitaçôes"). A partir da análise de semelhanças e diferen- outro táxon. Croizat identificou padrões terrestres e trans-
ças entre áreas coincidentes, foi possível o reconhecimento
oceânicos de conexões entre localidades e regiÕes geográfi-
de regiões botânicas, unidades históricas com uma história cas que se repetiam em vários grupos estudados. O resultado
longa e independente. dessas observações foi a obtenção de enormes padrÕes ge- I
Na segunda metade do século 19, a biogeograâa deixou rais (= generalizados) conectados uns aos outros. A partir do
de ser uma atividade meramente especulativa e narrativa desenvolvimento das ideias centrais de Croizat, estuclos dos
e se tornou uma ciência, em que hipóteses alternativas co- padrões de distribuição dos táxons (sob a forma de traço.§ ou,
meçaram a ser comparadas e avaliadas com embasamento como realizado recentemente, com áreas) passaram a permi-
empírico. A maior parte dessa mudança coincidiu com o tir generalizações sobre a similaridade dos padrÕes espaciais. It
I
aumento expressivo da formalização da biologia durante os Seguindo a premissa de que a Terra e as suas biotas
séculos 19 e20, em parte resultantes da expansão do conhe- evoluem em conjunto2l, a inclusão da informaçâo sobre as I
il
cimento taxonômico iniciado no período após a Idade Mé- relações de parentesco entre os táxons levaria a um maior
dia. No entanto, as explicações disponíveis para descrever entendimento sobre as relaçÕes entre as áreas. Nesse senti-
i
as distribuiçoes de plantas e animais eram, de modo geral, do, relações filogenéticas são biogeograficamente informa-
simplistas e apresentavam problemas práticos em razâo de tivas, o que constitui o fundamento da biogeografia cladís- l
seu baixo poder explicativo. A partir da aceitação da visão tica (Capítulo 4). Essa escola de pensamento biogeográfico
evolutiva, após a publicação do Origem das espécieste, a combina o objetivo da sistemática fllogenética Hennigiana
disjunção entre floras e faunas Passou a ser explicada unica- de reconstrução dos padrões hierárguicos da natureza aos II
mente a partir da ocorrência no passado de eventos de dis- padrões de distribuição, de modo que se pode perguntar:
I
persão, Em linhas gerais, a distribuição orgânica resultaria as relaçoes entre as áreas de endemismo fazem alguma re- ,ls
I
de migrações seguidas de modiflcações subsequentes e da ferência às relaçoes de parentesco entre as espécies que ha- I
multiplicação das novas formas nas áreas ocupadas, ou seja, bitam essas âreas?22 Para três áreas definidas pela pre§ença ri
!
assumia-se a dispersão sobre uma geografia estável, com de táxons endêmicos, pode-se perguntar se duas delas sâo J

subsequente isolamento e posterior diferenciação das espé- mais próximas entre si em relação à terceira delas. Essa in- il

cies. As áreas de endemismo seriam compostas por diversos dagaçáo é parte da tradição histórica da biogeografra, am- ]f
fi
elementos com distintas histórias de dispersão' isto é, por pliada por Croizat, que enfatiza as explicaçÕes de padrÔes
espécies provenientes de lugares e temPos diferentes' Para observáveis por meio de um cenário que considere todas as
Gareth NelsonrT, a biogeografia dispersalista é a ciência do observações.2 Com relação à explicação dos padrões com-
raro e do miraculoso, pois se concentra em improváveis partilhados, a biogeografia cladística não requer que eles
eventos de dispersão para explicar Por que táxons diferen- tenham sido causados por vicariância, Hipóteses vicarian-
tes ocupam diferentes áreas. tes supõem apenas que a congruência de padrões de dis- (+
Uma hipótese biogeográfica fundamentada em eventos tribuição originaram-se de eventos vicariantes comuns aos
de dispersão tradicionalmente era vista como incapaz de táxons estudados. t
gerar explicações gerais para a história de uma biota, aPenâs t
a história de um grupo específico. A biogeografia disper-
Parcimônia e simplicidade das
salista é, de modo geral, uma disciplina com menor poder
preditivo que as hipóteses vicariantes. Tais reconstruções explicações vica ria ntes
não fornecem uma teoria geral da história da Terra, e sim A lógica subjacente às explicações compartilhadas para dis-
narrativas individuais válidas para cada táxon' Hipóteses tribuições coincidentes é similar àquela aplicada à análise
dispersalistas são, parcial ou completamente, divorciadas filogenética23 - busca-se a árvore mais parcimoniosa como
da história geológica do planeta (mas veja contraexemplos melhor modo de se conciliar as hipóteses de homologia
apresentados por Gillespie et a1,20). Essas narrativas podem expressas pelos caracteres, reduzindo-se assim o grau de
incluir o número de eventos de dispersao ou de quaisquer conflito entre eles (i. e.,reduzindo-se o número de passos),24
Capítulo 1 | Uma Logica para a Biogeografia Historica

A parcimônia em biogeograÍia vicariante é expressa como a científica. Na pesquisa biogeográfica, isso signiflca a busca
procura por uma causa comum para uma coincidência de por padrões de relacôes entre áreas inferidas pela análise
distribuição espacial e relacionamento entre áreas, os quais simultânea de estudos de grupos taxonômicos individuais.
podem se basear em processos de vicariância. A repetição Os padrões constituem, desse modo, hipóteses biogeográ-
de relações espaciais e a consequente formaçáo de padrôes ficas para o relacionarnento histórico entre as áreas consi-
gerais pedem explicação única, uma vez qlre eies provavel- deradas e, por consegulnte, das histórias blogeográficas dos
mente resultam de processos comuns. A vicariância é o pro- táxons associados a elas. Quanto maior o número de evi-
cesso capaz de slmultaneamente moldar histórias biogeo- dências qLle sustentam o padrão, maior o poder empírico e
gráficas de linhagens distintas de organismos distribuídos científico daquela hipótese.
por un-ra mesrna área. O conhecimento geológico disponível sobre urna regiào
A simplicidade da blogeografia de vicariância funda- é de grande valor para interpretações biogeográficas. Eventos
menta-se sobre apenas quatro premissas:2 geológicos concordantes com um dado padrão podem ser
compreendidos como evidências complementares à hipóte-
. As áreas se modificam com o tempo a partir de uma con- se biogeográfica proposta. O inverso também ocorre, pois
formaçâo ancestrai o reconhecimento de padroes biogeográficos pode ter im-
. As espécies podem ocorrer em algumas áreas, mas nào portância para a reconstrução da história geológica da área,
em outras muitas vezes desconhecida antes de ser conduzido o estudo
. Espécies (linhagens) se modificam com o tempo, o que com os organismos. As investigações de padrões biogeográ-
se reflete em padrões históricos de relacionamentos en- ficos são, dessa maneira, atividades científicas úteis inclusive
tre linhagens descendentes para embasar nossas interpretaçÕes acerca da história geo-
. Mudar.rças nas áreas podem acarretar altelações aploxi 1ógica do planeta.6 Tanto a geologia quanto a biologia pro-
rnadamente sincrônicas das biotas a elas associadas, que põem hipóteses sobre a história física e biótica da Terra, com
se refletem nos padrões genealógicos entre as linhagens embasamento empírico. As duas ciências funcionam melhor
biológicas. conjuntamente, podendo gerar hipóteses mais robustas do
que quando tomadas separadamente.6
Não há, contudo, como esperar qüe sentpre haja cená- Estudos biogeográlicos buscam explicar, por meio de
rios de vicariância para todo e qualquer grupo de orga- hipóteses históricas, as distribuições dos organismos. Na
nismos estudado. O que se espera é que congruências no menor escala possír,el de abrangência desse tipo de inves-
relacionamento entre áreas sugerido pelo estudo de táxons tigação, a pesquisa se restringe a um grupo (monofilético)
individuais sejam mais facilmente explicadas pelo compar- de organismos. A sobreposição de várias histórias/hipóte-
tilhamento de histórias de vicariância que por outras expii ses por vezes revela padrões compartilhados que têm maior
cações. Dispersôes, por outro laclo, são in-iportantes como importância empírica em razào de sr"ra generalidade. Assim,
interpretações para os desvios em relaçào a um padrão a pesqr.risa biogeográfica deixa de ser específlca para um de
geral, mas não podem ser utilizadas para fundamentar um terminado táxon ou mesmo para a biologia em si e passa à
panorama de pesquisas em biogeograÍia histórica. Discor- escala de padrões que descrevem uma história envolvendo
dâncias de padrões mais gerais são explicadas a posteriori, tanto grupos de organismos quanto a geologia. Defende-se
por exemplo, pela ocorrência cle dispersões, expansão da aqui que a melhor explicação inicial para um padrão de
ilea de distribuiçàc, orr extirtçoes. distribuições disjuntas seja a fragmentação de uma popula-
Nos últimos anos, tem havido um aumento dos pes- ção ancestral e que, quanto maior o número de casos con-
quisadores que se dedicam à busca de padrões de disper- gruentes, mais sustentaçâo empírica existe para a primeira
são.20,25 27 Segundo esses pesquisadores, há evidências de proposição.
que a dispersão não só é mais fi'equente que anteriormen-
te se assumia na conformação de cenários históricos em ConsideraÇões finais
biogeografia, como também por formarem padrões com
importância empírica às vezes até maior que a vicariân-
A despelto da diversificação metodológica, a unidade da
biogeografia histórica como ciência tem se mantido pelo
cia.1s,2o.27 Alguns métodos tratam a dispersão de modo ex
paradigma de que histórias compartilhadas de vicariância
plícito (Capítulos 6 a 9), fomentando a aquisiçâo de conhe-
constituem a expiicação mais parcimoniosa para a existên-
cimento rnais aprofundado sobre os modos como eventos
(ou padroes) de clispersão auxiliam na l:usca por cenários cia de padrôes de distribuição espacial. Segundo Ruse2e,
uma boa teoria científica der.e ser consiliente. Na biogeo-
realistas para a história de distribuiçáo dos táxons e monta-
grafia, hipóteses consilientes sáo aquelas que explicam Íênô-
gem das biotas nas regiões biogeográficas.
menos não contemplados durante a sua construçào, como
a distribuição de outros grupos taxonômicos, a existência
Paradigma e sua logica (ou ausêr.rcia) de fósseis em certas camadas geológicas, e
Hipóteses científicas desejáveis são aquelas que of-erecen-r o as relações Íilogenéticas entre outros táxons distribuídos
maior poder de indução e de explicaçáo sobre o mundo na- nas mesmas áreas.30 Essa possibilidade de predição, ainda
tural28, o que se relaciona, obviamente, à noção de predição que não idêntica às previsoes feitas por hipóteses de ciên-

11
Parte Ll Teoria eAnálise

cias mais determinísticas, como a física ou a química, só Carvalho e Isabel Sanmartín, assim como por sugestões a
é possível a partir da premissa de que há padrões biogeo- versÕes prévias deste trabalho feitas por |úlia C. Almeida,
gráficos gerais que se ajustam a mais do que apenas um |éssica P. Gillung e Rodrigo B. Gonçalves. Agradecemos
táxon. A biogeografia pode não ser descritível por leis, a |úlia C. Almeida também pela assistência na preparação
exemplo daquelas que são reconhecidas, por exemplo, na de ilustrações. Auxílio financeiro recebido da FAPESP por
física. Pode-se, contudo, pensar que há leis biológicas que E. A. B. Aimeida (proc.2011/09477-9).
se aplicam a determinados processos, chamadas assim de
'leis processuais'31, que diferem de leis universais por se-
Referências bi bl iog ráficas
rem menos abrangentes, mas com utilidade, pois explicam V.; KANTINAS, L.; POSADAS, P. Historical
1. CRISCI, l.
determinados eventos, observações ou fenômenos quando bio geography. An introduction. Cambridge: Harvard University
estes se enquadram em determinadas condições. A utili- Press, 2003.
dade da Biogeografia Histórica e o vigor da disciplina em 2. HUMPHRIES, C. J.; PARENTI, L. R. Cladistic biogeography:
atrair adeptos é um indício de sua utilidade como ciência interpreting patterns ofplant and animal distributions. 2. ed.
Oxford: Oxford Univers§ Press, 1999.
que contribuiparaa explicaçáo da diversidade biológica no
3. MORRONE, J. J. Evolutionary biogeography: an inÍegrative
espaço e no tempo. approach with case studies. New York: Columbia University
Desde a década de 1980, defendeu-se que a biogeo- Press, 2009.
grafia ganharia ao adotar práticas mais quantitativas, nas 4. NELSON, G. J.; PLATNICK,N.7. Systematícs and biogeography:
quais testes estatísticos seriam árbitros da significância de cladistics and ücariance. New York Columbia Universily
Press,1981.
hipóteses concorrentes.32'33 Alguns métodos vêm incorpo-
5. PLATNiCK, N. L; NELSON, G. A method for historical
rando, pelo menos em parte, tais sugestÕes - aspectos ana- biogeography. Sy st. Zo ol., v. 27, p. 1 - 16, 197 B.
líticos inovadores têm sido desenvolvidos continuamente 6. EBACH, M. C.; HUMPHRIES, C. J. Cladistic biogeography
nas últimas décadas (Capítulos 4 a 9). Os amplos desen- and the art of discovery. I. Biogeo gr., v. 29, p. 427 - 444' 2002.
volvimentos metodológicos recentesl'3 exemplificam a 7. HOLT, B. G.; LESSARD, J. P.; BORREGAARD, M. K.; FNTZ,
S. A.; ARAUIO, M. B.; DiMITROV, D. et al. An update of
criatividade dos teóricos ao explorar novos modos de lidar
Wallace's zoogeographic regions of the world. Science,v.339,
com as dificuldades recorrentes de estudos em biogeogra- p.7 4-78,2013.
fia histórica. 8. SOBER, E. Reconstructing the past. Parsimony, evolution, and
Segundo Platnick e Nelsons, a principal questão para inference. Cambridge: MIT Press, 1988.
9. HOVENKAMR P. Vicariance events, not areas, should be used
biogeógrafos não é'b padrão é resultado de vicariância ou
in biogeographical analysis. Cladistics, v. 13, p. 67-79,1997.
dispersão?", e sim "este padrão corresponde a um padrão
10. WILEY, E. O. Vicariance biogeography. Annu. Rev- Ecol. Syst.'
geral de interconexões entre áreas (e, portanto, reflete a v. 19, p. 513-542,1988.
história dessas áreas) ou não?". Para a BiogeograÊa Histó- 11. CRAW R. C.; GREHAM, I. R.; HEADS, M.J.Panbiogeogra'
rica, são desejáveis métodos de análise que nos permitam phy.Trackingthe history of life. Oxford: Oxford University
avaliar se uma hipótese válida para explicar as conexões Press,1999.
biogeográficas de um grupo taxonômico particular tain- 12. PAGE, R. D. M. Temporal congÍuence and cladistic analysis
ofbiogeography and cospeciation. Sysf. Zool., v.39, p.205'
bém é válida como padrão gerai. Como a biota não é ape-
226, 1990.
nas vida, mas vida ordenada e diversificada no tempo e I 3. AMORIM, D. S.; SANTOS, C. M. D.; OLIVEIRÀ, S. S. Allochronic
no espaço3a, a busca por hipóteses biogeográficas gerais taxa as an alternative model to explain circumantarctic
permanece como maneira eficiente de compreender a his- disjunctions. Syst. Entomol., v. 34, p. 2-9, 2009.
tória dos organismos em um ambiente cambiante, como 14. BALL, I. R. Nature and formulation of biogeographical
hypotheses. Sy st. Zo ol., v. 24, p. 407 -430, 197 6.
propuseram os biogeógrafos que contribuíram para o de-
15. SANMARTÍN, t.; RONQUIST, F. Southern hemisphere
senvolvimento da Biogeografia Histórica ao longo das úl- biogeography inferred by event-based models: plarrt versus
timas cinco décadas. animal patterns. Syst. Biol., v. 53, p. 216-243'2004.
16. UPCHURCH, P. Gondwana break-up: legacies of a lost
worldz. Tre n ds E col. Ev ol., v. 23, p. 229 - 23 6, 2008.
Ag radecimentos 17. NELSON, G. From Candolie to Croizat: comments on the
Dedicamos este capítulo aos Professores Dalton Amorim historyofbiogeography. l. Hist. Biol., v. 11, p. 269-30,1978'
(USP) e Claudio Carvalho (UFPR), por suas contribuições 18. DE CANDOLLE, A. P. Essai élémentaire de géographie
botanique. Reproduzido em LOMOLINO, M. V; SAX, D. F.;
à compreensáo da biogeografia da América do Sul, forma-
BROWN, J. H. Foundations of biogeography. Classi'c papers
ção e inspiraçáo dada a tantos estudantes de graduação e with commentaries. Chicago: The Universily of Chicago
pós-graduação, e pelas inúmeras discussões que tivemos Press, 2004. Parte 4, P.28-48.
sobre a evolução espacial dos organismos. Este trabalho foi 19. DARWIN, C. On the origin of species by means of natural
desenvolvido a partir do texto publicado na primeira edi- selection, or the preservation of favoured races in the struggle

çâo do livro Biogeografia da América do Sul, modificado for life.Lotdon: )ohn MurraY, 1859.
20. GILLESPIE, R. G. et al. Long-distance dispersal: a
com ampliação do tema, inserçôes de algumas seçÕes, as- framework for hypothesis testing. Trends Ecol. Evol., v.27,
sim como correções, consideradas pertinentes à segunda p.47-56,2012.
edição. Somos muito gratos à leitura crítica e aos comen- 2i. CROIZAT, L. Space, time, Jorm: the biological synthesis.
tários oferecidos por Renato S. Capellari, Claudio J. B' de Caracas: Publicado pelo autor, 1964.
Capítulo L l Uma Lógica para a Biogeografia Histórica

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