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As Cirandas de Heitor Villa-Lobos:

Uma análise a partir da Teoria dos tópicos

Juliana Wady Lopes

Dissertação de Mestrado

Outubro de 2021
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Ciências Musicais, especialização em Musicologia Histórica,
realizada sob a orientação científica do Doutor Paulo Ferreira de Castro.
Agradecimentos

Agradeço em primeiro lugar ao meu orientador, Paulo Ferreira de Castro, por me


incentivar incansavelmente a cirandar por Villa-Lobos e pela Teoria dos tópicos.
Agradeço aos professores que cruzaram o meu caminho na Universidade Estadual de
Campinas, na Universidade de Évora e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas pela
paciência, por cada palavra de aprendizado e por me encorajarem nesta jornada acadêmica
transatlântica.
Agradeço aos meus amigos, àqueles que eu me despedi do outro lado do oceano, mas que
continuaram comigo nesta jornada de alguma forma e àqueles que a vida me deu em
Portugal e deles fez minha família.
Agradeço a toda a minha família pelo suporte, pela força e pelo carinho que sempre me
abraçou.
Agradeço também à família do José Miguel, que me acolheu e me deu ânimo para
concluir esta etapa.
Agradeço de forma muito especial ao José Miguel que leu e releu este trabalho, que
caminhou comigo os caminhos sinuosos da investigação, que me fez sentir em casa
mesmo longe, que foi luz quando tudo parecia escuro.
Por fim, agradeço ao meu irmão, Leonardo, à minha irmã, Jessica, e à minha mãe,
Patricia. Obrigada por tantas vezes deixarem de lado a dor da falta para me falarem sobre
coragem. Obrigada por serem fonte de motivação e ânimo quando eu tive dúvidas.
Obrigada, acima de tudo, por acreditarem no meu trabalho, no meu esforço, em mim.
Agradeço ao Leonardo que me inspirou com a sua sabedoria e resiliência e me iluminou
com a sua fé no impossível.
Agradeço à Jessica cuja música eu trouxe comigo para dar asas a esse trabalho e cuja
força se inscreveu em cada palavra dessa dissertação.
Agradeço infinitamente à Patricia, minha mãe, que é exemplo de luta, persistência e
sacrifício. Obrigada mãe, por me desamarrar do pé do mar e me deixar voar, por sorrir
para mim e por mim, por me ensinar que a vida é uma só.
Resumo

As Cirandas de Heitor Villa-Lobos, ainda que pequenas em sua extensão,


configuram-se como uma grande referência no repertório pianístico do compositor
brasileiro. Sua particularidade está na complexa e intrincada relação entre uma série de
citações de melodias folclóricas infantis e o entorno criativo proposto por Villa-Lobos
que, envolvendo tais melodias, reescreve-as. Assim, as relações entre melodia folclórica
e sua envolvência constituem um processo contínuo de ressignificação. Esta dissertação
pretende articular duas abordagens – análise estrutural e contextual – de maneira a propor
uma leitura sincrônica das próprias Cirandas e dos cenários culturais, sociais e políticos
que as constituem.
Nesse sentido, a relação dialógica entre música, partitura e contexto é pensada
através da utilização da Teoria dos tópicos. Os tópicos constituem-se, nesta dissertação,
como figurações musicais características que comportam esta relação fluida entre análise
estrutural e contexto(s). Por meio desta perspectiva, este trabalho tem como objetivo
estabelecer uma ponte entre as Cirandas e três temáticas essenciais que constituem três
dos quatro capítulos deste documento – temática nacionalista, temática infantil e temática
luso-brasileira.
A obra de Villa-Lobos é, ainda hoje, considerada um produto da sua
“instintividade” e “genialidade” e, com isto, a sua análise reverte para segundo plano em
prol da mitificação biográfica em torno da figura do compositor. Só mais recentemente,
a abordagem analítica aplicada à sua obra tem vindo a ganhar forma e com ela fomentam-
se discussões sobre processos de composição e recepção da produção do compositor
brasileiro. Acompanhando este desenvolvimento, está o processo contínuo de
reestruturação da Teoria dos tópicos para abarcar a realidade musical brasileira, iniciado
nas últimas décadas. Assim, nesta dissertação, propõe-se uma análise das Cirandas que
contribua de forma inovadora para uma leitura da produção de Villa-Lobos e, através
desta, fomenta-se os estudos sobre os tópicos na realidade brasileira do início do século
XX.

Palavras-chave: Cirandas; Heitor Villa-Lobos; Musicologia luso-brasileira; Teoria dos


tópicos.
Abstract

Cirandas is the name of a set of pieces composed by Heitor Villa-Lobos that


became a reference in his pianistic repertoire. It has the particularity of promoting a
complex relation between a gathering of children’s folkloric melodies and the musical
creation composed by Villa-Lobos that, by surrounding them, rewrites them. This work
intends to articulate two ways of looking at the subject of study – a structural analysis and
a contextual one. Thus, we propose a synchronic reading of the Cirandas and the cultural,
social, and political contexts that constitute them.
In this way, the dialogic relation between music, sheet music and context is
thought through the Topic Theory. Topic is considered, in the context of this
investigation, has a musical figuration that implies the fluid relation between structural
analysis and context(s). By the means of this perspective, the objective of this work is to
establish a bridge between the Cirandas and three essential themes that form three of the
four chapters of this document – nationalism, childhood and luso-brazilian relationships.
The work of Villa-Lobos is, still today, considered has a product of his “instincts”,
of his “geniality”. With that, the analysis is pushed to a second plan in favour of the
biographic myth that revolves around the life of the composer. Only recently there was a
considerable development of the analytical investigation about Villa-Lobos’ work, and
with that, a lot of discussions were initiated about the compositional and reception
processes inherent to his pieces. Accompanying this breakthrough, in the last few
decades, there’s been a line of musicological work dedicated do the restructuration of the
Topic Theory to be applicable to the Brazilian reality. It’s through the application of the
Topic Theory to the Cirandas that we propose one analysis that contributes to the
understanding of Villa-Lobos’ work and foment the studies about the topics in Brazil in
the beginning of the twentieth century.

Keywords: Cirandas; Heitor Villa-Lobos; Luso-brazilian musicology; Topic Theory.


Índice

Introdução ....................................................................................................................... 1

1. Transtextualidade como um panorama geral das Cirandas ................................. 12

1.1 A dimensão paratextual das 16 “cirandas” de Villa-Lobos .................................. 12

1.2 Inter, hiper e metatextualidade: formas de conceber a relação entre a melodia


folclórica e o entorno villalobiano .............................................................................. 16

2. Temática nacionalista: um pressuposto na obra de Villa-Lobos ......................... 24

2.1 A (re)definição de uma identidade nacional: contexto e implicações .................. 24

2.1.1 A música na idealização de uma identidade brasileira ................................... 26

2.2 Villa-Lobos e a sua obra: da necessidade do “novo Brasil” à sua legitimação .... 28

2.2.1 As Cirandas ................................................................................................... 33

2.3 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática nacionalista em Villa-Lobos ........... 34

2.4 O papel do sincopado na construção de uma “música brasileira” ........................ 36

2.5 A síncope brasileira como tópico nacionalista nas Cirandas ............................... 41

2.5.1 O caso da Ciranda n°1 - Terezinha de Jesus ................................................. 42

2.5.2 O caso da Ciranda nº 3 – Senhora Dona Sancha .......................................... 45

2.5.3 O caso da Ciranda n° 8 – Vamos atrás da Serra Calunga ............................ 51

2.5.4 Outros casos ................................................................................................... 58

2.6 A citação folclórica como tópico nacionalista nas Cirandas ................................ 60

2.7 O ostinato como tópico nacionalista nas Cirandas .............................................. 62

2.7.1 O Caso das Cirandas nº 6 – Passa, passa Gavião e nº 12 – Olha o passarinho


Dominé .................................................................................................................... 67

3. Temática infantil: a importância da figura da criança na trajetória de Villa-


Lobos .............................................................................................................................. 69

3.1 A poética infantil na música: de um panorama geral a Villa-Lobos .................... 69

3.2 A criança brasileira do início do século XX na visão de Villa-Lobos .................. 77

3.3 A presença do folclore infantil brasileiro em Villa-Lobos e nas Cirandas .......... 79


3.4 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática infantil em Villa-Lobos................... 87

3.5 A síncope brasileira como tópico infantil nas Cirandas ....................................... 90

3.5.1 O caso das Cirandas nº 1 – Terezinha de Jesus ............................................. 91

3.4.2 O caso da Ciranda nº 4 – O Cravo brigou com a Rosa (Sapo Jururu) .......... 92

3.6 A “citação folclórica” como tópico infantil nas Cirandas .................................... 95

4. Temática luso-brasileira: das cirandas às Cirandas .............................................. 97

4.1 A presença de Portugal no “folclore” brasileiro: uma reflexão a partir da perspectiva


de Mário de Andrade .................................................................................................. 97

4.2 Villa-Lobos em Portugal: viagens do compositor ................................................ 99

4.3 Ciranda: um gênero luso-brasileiro..................................................................... 101

4.4 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática luso-brasileira em Villa-Lobos ..... 104

4.5 O “luso” nas Cirandas ........................................................................................ 106

4.6 A “modinha” e o “fado” como tópicos luso-brasileiros nas Cirandas ............... 109

4.6.1 O caso da Ciranda n°2 – A Condessa .......................................................... 111

4.7 Outras relações luso-brasileiras .......................................................................... 116

4.7.1 O caso da Ciranda n°6 – Passa, passa Gavião ............................................ 116

4.7.2 O caso das Cirandas n°5 – Pobre Cega, n°7 – Xô, xô passarinho e n°11 – Nesta
rua, nesta rua ........................................................................................................ 119

Conclusão .................................................................................................................... 123

Bibliografia .................................................................................................................. 128


Introdução

“São pouquíssimos na história mundial da música outros compositores estudados


com tanta frequência e em latitudes tão díspares quanto o compositor carioca” (Mariz
1988, 243). As palavras do conceituado musicólogo brasileiro Vasco Mariz num artigo
de comemoração ao centenário do compositor Heitor Villa-Lobos (1887- 1959)
constatam o que já é conhecido e reconhecido – a figura de Villa-Lobos como central na
música brasileira. Porém, apesar de aclamado nacional e internacionalmente como um
dos maiores representantes da expressão de uma identidade nacional e da extensa
bibliografia acarretada, em grande parte, por este título, as discussões em torno da
trajetória e da obra de Villa-Lobos permanecem constantes. Como afirma Paulo de Tarso
Salles, investigador assíduo da obra do compositor, estudar a produção de Villa-Lobos
“prossegue ainda como um sonoro desafio à musicologia brasileira” (Salles 2012, 81). As
controvérsias permeiam não só as discussões musicológicas a respeito da sua produção,
mas também estão presentes na sua trajetória pessoal e profissional que já foi questionada
a partir dos vários testemunhos contraditórios do próprio Villa-Lobos. Todo este enredo
torna ambígua a bibliografia sobre o compositor e a sua obra que, apesar de muito
desenvolvida em alguns aspectos, apresenta lacunas em outros.
Dentre muitos marcos, no repertório pianístico villalobiano destaca-se um
conjunto de dezesseis pequenas peças caracterizadas pela citação de melodias folclóricas
do cancioneiro infantil – as Cirandas. Em uma das mais conceituadas biografias do
compositor brasileiro, Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazil’s Musical Soul, Gerard
Béhague (1994, 102) afirma: “…this cycle [Cirandas] is considered by many in Brazil to
be one of the composer's best piano achievements, probably because of its idiomatic
character, its coloristic richness and its national spontaneity. The appeal of the Cirandas
rests not only on the alluring treatment of the children's rounds but also on the composer's
original rhythmic, harmonic, and technical procedures”. A interação, proposta pelo
compositor, entre a melodia folclórica e o entorno villalobiano torna o conjunto para
piano um caso particularmente significativo. As próprias citações folclóricas, já em si
imbuídas de significado, encontram-se com outros “textos” musicais, frutos de um
contexto modernista e nacionalista, endossando uma panóplia de analogias transtextuais
– termo utilizado a partir da concepção de Gérard Genette (1982). É a partir da
sobreposição de camadas texturais que Villa-Lobos coloca em diálogo uma série de

1
figurações musicais, as quais, como fruto da sua criação, recriam as melodias folclóricas
não só no âmbito estrutural, mas também simbólico.
Assim, é através da análise de tópicos nas 16 Cirandas (1926) de Villa-Lobos que
esta dissertação pretende contribuir para as discussões a respeito da obra do compositor
e fomentar o estudo da Teoria dos tópicos que, recentemente, tem se expandido na
musicologia luso-brasileira. Concebendo a Teoria dos tópicos como uma forma de
compreender a música e como uma ferramenta de análise, propõe-se uma leitura das
relações que se estabelecem entre o contexto que envolve as Cirandas, os tópicos já
propostos por outros autores acerca da produção de Villa-Lobos e a análise estrutural das
pequenas peças. Por meio da conjugação e da intersecção destes campos, que resultam na
definição de uma série de tópicos, torna-se possível compreender como as Cirandas,
enquanto produto da interação entre melodia folclórica e entorno villalobiano, se
relacionam com três temáticas fundamentais – a nacionalista, a infantil e a luso-brasileira.
Apesar da bibliografia já existente sobre as Cirandas e sobre a Teoria dos tópicos
no Brasil, esta abordagem analítica ainda não se encontra desenvolvida em nenhum
trabalho científico. No Brasil, a aliança entre a música brasileira e o universo dos tópicos
tem sido recentemente explorada e os trabalhos em torno deste tema encontram-se
recorrentemente com a obra de Villa-Lobos. A relação já explorada entre modernismo,
nacionalismo e Villa-Lobos é intrincada e complexa o que a torna especialmente
relevante. Por isso, nesta pesquisa, os tópicos associados à temática nacionalista
(desenvolvida no primeiro capítulo) são aplicados às Cirandas sendo repensados a partir
de outros elementos que circundam a própria obra. Outra temática patente no conjunto
para piano é o universo infantil. Esta torna-se evidente a partir da citação do cancioneiro
infantil, também presente em diversas outras obras do compositor, e também através da
trajetória profissional de Villa-Lobos. Desta interação, “infância-Villa-Lobos", surgem
tópicos relevantes na medida em que a própria figura da criança se reveste de significados
no contexto que envolve as Cirandas e na própria obra. O enfoque nacionalista na
bibliografia sobre música brasileira e Teoria dos tópicos, apresenta-se principalmente
relacionado ao universo indígena e afro-brasileiro. Nas Cirandas, esta associação é
incontestável e explorada nesta pesquisa. Porém, sendo o gênero musical que dá nome ao
conjunto para piano comum à cultura portuguesa, no último capítulo desta dissertação,
estabelece-se a relação entre as Cirandas e Portugal, refletindo sobre o papel deste último
na conceptualização de uma identidade musical brasileira.

2
As Cirandas de Villa-Lobos

As Cirandas de Heitor Villa-Lobos são um conjunto de dezesseis pequenas peças


para piano, compostas no ano de 1926, onde cada uma contém pelo menos um tema do
folclore infantil mencionado no título. São estas: 1. Terezinha de Jesus, 2. A condessa, 3.
Senhora Dona Sancha, 4. O cravo brigou com a rosa, 5. Pobre cega, 6. Passa, passa,
gavião, 7. Xô, xô, passarinho, 8. Vamos atrás da serra calunga, 9. Fui no tororó, 10. O
pintor de Cannahy, 11. Nesta rua, nesta rua, 12. Olha o passarinho Dominé, 13. À
procura de uma agulha, 14. A canoa virou, 15. Que lindos olhos e 16. Có,có,có. A coleção
para piano foi estreada na sua totalidade no Teatro Lírico do Rio de Janeiro no dia 13 de
agosto de 1929 e dedicada ao pianista Alfredo Oswald (1884-1972).
Através de uma breve investigação na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Brasileira, considerando os anos 1926 a 1929, notam-se algumas particularidades na
recepção das Cirandas no cenário musical brasileiro1. No dia 31 de maio de 1926, logo
após a composição das Cirandas, o jornal A Noite (1926) apresenta uma extensa matéria
na qual se discorre sobre a importância das pequenas peças na legitimação de uma
identidade musical brasileira e na consagração do próprio Villa-Lobos como edificador
desta mesma identidade. No ano seguinte, apesar da estreia das dezesseis peças em
conjunto ser datada de 1929, três das Cirandas (n°1, n°4 e n°6) foram executadas pela
primeira vez em público no recital de formatura de Dóra Bevilacqua no Instituto Nacional
de Música – execução esta que foi transmitida por várias estações radiofónicas2. Além
disso, algumas das críticas de Oscar Guanabarino confirmam que o ciclo para piano era
parte do repertório pianístico exigido pelo Instituto Nacional de Música (Guanabarino,
1929, 2). De forma geral, as Cirandas parecem ter sido bem recebidas pela crítica e seu
valor estético, ligado aos ideais nacionalistas, e educacional, enquanto parte do repertório
pianístico, confluem com a suposta origem e objetivo das pequenas peças.
A ideia para composição das Cirandas teria surgido no seio da “tempestuosa
proximidade” (Toni 1987, 7) entre Villa-Lobos e Mário de Andrade. Em seu livro

1
Foram encontrados um total de onze registros das Cirandas de Villa-Lobos nos 167 jornais que circularam
no Rio de Janeiro entre os anos de 1926 e 1929. São estes: 1. Correio da Manhã; 2. Movimento: Revista de
Critica e Informação; 3. Gazeta de Notícias; 4. Diario Carioca; 5. Jornal do Brasil; 6. O Jornal 7. O Paiz;
8. Jornal do Commercio; 9. A Noite; 10. Revista Musical; 11. O Imparcial. As edições dos respectivos
jornais cujo conteúdo menciona as Cirandas encontram-se devidamente identificadas na bibliografia desta
dissertação.
2
O anúncio para o recital de Dóra Bevilacqua, assim como as transmissões radiofônicas do mesmo, podem
ser encontrados nos seguintes jornais: Gazeta de Noticias (1927) e três vezes no Jornal do Brasil (1927).

3
intitulado Mário de Andrade e Villa-Lobos, Flávia Toni (1987) expõe a possibilidade do
conjunto para piano ter sido um pedido de Mário de Andrade ao compositor brasileiro.
Como se comprova através de uma carta do escritor à ensaísta Oneyda Alvarenga (1940):

(...) É que, como toda pessoa que tem alma de professor, sou um notável artista de teatro. (...) Ora,
Dona Oneyda, eu quero que a minha palavra ‘sirva’, que a minha crítica produza o máximo de
rendimento didático. D'aí eu fazer muitos esforços, até os da representação teatral, pra me impor
aos artistas. E como sei, de longa prática, que essas crianças só respeitam quem demonstra
conhecimento técnico, muitas vezes, sem necessidade pessoal nenhuma enfeito uma passagem
com um berloque bem bonitinho, que eu sei vai produzir um efeito decisivo no aluno... que não
sabe que está sendo meu aluno, mas que, me respeitando, insensivelmente vai aprendendo comigo.
E às vezes, franqueza, tenho dado golpes admiráveis de segurança. As Cirandas e em consequência
as Cirandinhas, sem dúvida das coisas mais geniais do Villa, ele as deve a mim. Fui eu que
observando certa resistência do Villa em aceitar o aproveitamento folclórico, observando a
dificuldade de construção formal dele e outras coisas assim, escrevi uma carta de pura mentira pro
Villa, me dizendo encantado com as obras de Allende, um chileno que eu fingia descobrir no
momento, observava as peças em forma A-B, uma aproveitando um tema popular, outra de criação
livre, quando muito se servindo de constâncias folclóricas, coisas assim, e está claro fingindo uma
admiração danada pelo homem, que ia escrever sobre ele, coisas que, eu sabia, deixavam o Villa
sangrando em sua imensa vaidade. Mas a esperteza maior foi, em seguida, fingindo amizade
subalterna, pedir a ele que me escrevesse umas peças de meia-força pros meus alunos de piano.
Como sempre: nenhuma resposta, o Villa só escreve carta precisando da gente. Mas poucos meses
depois vim no Rio, não me lembro mais onde, era uma festa, havia muita gente, creio que intervalo
de concerto, me encontro com o Villa numa roda. E ele imediatamente: ‘Olhe, vá lá em casa!
Tenho umas coisas pra você. Bem! Não é nada daquilo que você me pediu!’ E sorriu com um
arzinho superior meio depreciativo. Eu fui e eram as Cirandas. E era exatamente o que pedira, o
que tivera a intenção de provocar no Villa, embora estivesse longe de imaginar as Cirandas.
(Andrade 1940 citado em Toni 1987, 44-5)

Além da importância da figura de Mário de Andrade na construção da estética


musical modernista brasileira, sua relação com Villa-Lobos, desenvolvida especialmente
no trabalho de Flávia Toni (1987), e seu suposto incentivo na criação das Cirandas
concedem ao escritor um lugar de relevo nesta dissertação. Assumindo estas premissas,
serão aqui evidenciadas e desenvolvidas algumas das ideias de Mário de Andrade cujo
conteúdo se torna significativo na análise das Cirandas e do contexto que as envolve.
A obra de Villa-Lobos tem tido um protagonismo evidente na academia e as
Cirandas são objeto de vários trabalhos científicos. O trabalho mais recente e mais
completo é a tese de Gustavo Schafaschek (2017) intitulada “Villa-Lobos's

4
Compositional Techniques and Treatment of Folk Melodies in Cirandas for Piano”.
Nesta, o autor propõe uma análise estrutural e estilística das dezesseis peças, destacando
estratégias e técnicas de composição que compõem e interligam as Cirandas. Neste
trabalho de investigação, tal abordagem foi um recurso de apoio essencial para a
realização da análise estrutural das dezesseis peças e para o estudo e compreensão de
algumas técnicas e recursos composicionais utilizados por Villa-Lobos.
Na tese de Daniel Tarquinio (2012), intitulada “A Teoria da Entonação de B.
Asafiev e a execução musical: concepções analíticas para a interpretação das Cirandas
de Villa-Lobos”, o autor estabelece um diálogo entre a Teoria da Entonação e a análise
estrutural das pequenas peças. Apesar de Tarquinio (2012) apresentar um trabalho voltado
para o estudo da interpretação das Cirandas, o autor contextualiza cada uma delas e
desenvolve alguns dos seus elementos marcantes, atribuindo-lhes significado para além
da partitura. Nesse sentido, algumas das considerações de Tarquinio foram importantes
na investigação contextual sobre as Cirandas e na caracterização das mesmas.
Além destes, outros trabalhos apresentam diferentes perspetivas no estudo acerca
das Cirandas. Alguns analisam de maneira específica apenas uma das peças do conjunto.
É o caso da dissertação de Márcia Vetromilla (2010) intitulada “‘Ciranda nº 7’ de Heitor
Villa-Lobos: um estudo da relação entre o texto musical e o enredo implícito na cantiga
folclórica utilizada”, na qual a autora desenvolve a interação entre texto, lenda, contexto
e a partitura da Ciranda n°7. Ronaldo Penteado (2012), por sua vez, em seu artigo
“Simetria na forma e no material harmônico da Ciranda n. 4 de Villa-Lobos”, propõe
uma análise aprofundada da Ciranda O cravo brigou com Rosa (Sapo Jururu) a partir da
Teoria dos conjuntos. Ambos os trabalhos ofereceram contributos significativos a nível
do desenvolvimento da análise estrutural e da contextualização destas Cirandas em
específico.
Ainda que as Cirandas não sejam necessariamente as protagonistas nestas
investigações, as pesquisas de Júlia Tygel (2014) e Edna Carla Farias (2015) também
constituem parte do referencial usado ao longo desta investigação. Tygel (2014) em sua
tese intitulada “Béla Bartók e Heitor Villa-Lobos: abordagens composicionais a partir de
repertórios tradicionais” aborda algumas das Cirandas – nomeadamente as de número 4,
6, 7 e 9 – de forma a estabelecer uma série de paralelos com a perspetiva de Bartók.
Farias, (2015) com a tese “Creative treatment of folk melodies in selected Cirandinhas
and Cirandas of Heitor Villa-Lobos”, estabelece relações com outras pequenas peças do
compositor brasileiro, as Cirandinhas (1925).

5
Ainda que as Cirandas não constituam o objeto central das suas investigações, é
imprescindível mencionar os nomes de Paulo Salles (2009; 2018) e Manoel Lago (2003),
ambos com significativos e extensos trabalhos sobre a obra de Villa-Lobos, nos quais
abordam as Cirandas. A pesquisa de Salles (2009; 2018) tornou-se fundamental para esta
dissertação tanto a nível analítico, contribuindo para a compreensão das técnicas de
composição de Villa-Lobos, quanto metodológico, como se verá na seção seguinte. Lago
(2003), por sua vez, é autor de um estudo acerca relação de Villa-Lobos com o universo
infantil, temática desenvolvida nesta dissertação. Além disso, Lago, juntamente com
Sérgio Barboza e Maria Clara Barbosa, é responsável pela última edição do Guia Prático
de Villa-Lobos (2009), obra que caracteriza o ápice da relação do compositor com o
cancioneiro infantil. Esta última edição, divida em três cadernos, é a utilizada neste
trabalho como referência para as melodias folclóricas citadas nas Cirandas.
Por fim, ainda é importante referir os arquivos da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Brasileira e a Biblioteca Nacional de Portugal. A primeira que com
a disponibilização de jornais em formato digital proporcionou todo o acesso à dimensão
de crítica e de recepção das Cirandas, as quais são citadas nesta dissertação. A segunda
com a concessão da coleção dos Seis anos de divulgação musical (Reis e Meneses 1935;
1936) onde consta a possível estreia das Cirandas em Portugal.
Toda a bibliografia aqui referida tornou-se imprescindível para a compreensão das
Cirandas em várias dimensões, desde a análise estrutural até às mais variadas relações
simbólicas propostas pelos autores. Assim, de forma a cumprir o propósito desta
dissertação, propõe-se um diálogo entre estas fontes e a Teoria dos tópicos.

Metodologia

A abordagem metodológica adotada nesta dissertação incide, essencialmente, na


aplicação da Teoria dos tópicos. Nesse sentido, o referencial teórico utilizado neste
trabalho pode ser divido em duas grandes seções: a primeira relativa a um conjunto de
autores consagrados na definição da Teoria dos tópicos, esta aplicada, na maioria dos
casos, à música setecentista e oitocentista; e a segunda relativa à aplicação da Teoria dos
tópicos na música brasileira.
A Teoria dos tópicos tem sua gênese a partir do conceito de tópico musical
desenvolvido, pioneiramente, por Leonard Ratner em sua obra Classic Music:

6
Expression, Form, and Style (1980). Com o objetivo de propor uma análise da música e
dos preceitos musicais do século XVIII, o autor apresenta a sua definição de tópico:

From its contacts with worship, poetry, drama, entertainment, dance, ceremony, the military, the
hunt, and the life of the lower classes, music in the early 18th century developed a thesaurus of
characteristic figures, which formed a rich legacy for classic composers. Some of these figures
were associated with various feelings and affections; others had a picturesque flavor. They are
designated here as topics — subjects for musical discourse. Topics appear as fully worked-out
pieces, i.e., types, or as figures and progressions within a piece, i.e., styles. The distinction between
types and styles is flexible; minuets and marches represent complete types of composition, but
they also furnish styles for other pieces. (Ratner 1980, 9)

Nos anos seguintes, outros autores trataram de questionar, ampliar e/ou modificar
a Teoria em questão de acordo com o seu objeto de pesquisa. Dentre eles estão Wye
Allanbrook (1983), Kofi Agawu (1991), Robert Hatten (1994), Raymond Monelle (2000;
2006) e, mais recentemente, Danuta Mirka (2014), com a publicação do livro The Oxford
Handbook of Topic Theory. Dentre estes, os trabalhos de Hatten (1994; 2009), Monelle
(2000; 2006) e Mirka (2014) são significativos para esta dissertação e constituem a base
para a discussão e definição do conceito de tópico aqui utilizado.
Hatten (1994; 2009) propõe que o tópico seja um elemento principalmente
expressivo. Sua definição do termo pressupõe que um mesmo tópico possa apresentar
uma diversidade de significados que são atribuídos através de um viés hierárquico e
opositivo – proposto na sua Teoria das marcações. Através de uma classificação de
gêneros expressivos, estilos, tipos e símbolos ou tópicos, Hatten apresenta um esquema
coerente que, para além do tópico, engloba termos mais abrangentes com ele
relacionados. Dado o grau de complexidade com o qual o autor compreende o conceito
de tópico, este transitório entre as várias classificações, Hatten considera que um tópico
tem uma definição mais ampla: “Topics’ are familiar musical styles, figures, textures,
rhythms, or gestures that are incorporated into a musical work in order to invoke rather
immediate expressive associations" (Hatten 2009, 163).
No pensamento de Monelle (2000; 2006), destaca-se a importância “da relação
com a cultura” no desenvolvimento e na definição de um tópico. Para o autor,

all musical signification is social and cultural, and no signification is ‘purely musical’ or ‘purely
linguistic’ because topics are paradigms, signifying in relation to culture, not in relation to
syntagmatics. […] The primary concern of the topic theorist is to give an account of each topic in

7
global terms, showing how it reflects culture and society, not to focus on music alone. (Monelle
2006, 9-10)

A dimensão contextual assume um papel de tal forma relevante na sua


conceptualização que Monelle caracteriza o tópico como um símbolo regido por
convenções. Nesse sentido, o autor considera que um tópico deve ser indicial e não
icônico, propondo duas questões essenciais para a sua definição:

The central questions of the topic theorist are: Has this musical sign passed from literal imitation
(iconism) or stylistic reference (indexicality) into signification by association (the indexicality of
the object)? And, second, is there a level of conventionality in the sign? If the answers are positive,
then a new topic has been revealed, whatever the period of the music studied. (Monelle 2000, 80)

O trabalho de Mirka (2014), por sua vez, tem como objetivo definir o conceito de
tópico de forma mais concreta e consensual. Depois de questionar as variadas
conceptualizações do termo, a autora procura propor um conceito de tópico que seja
eficaz na aplicação analítica. Para Mirka, algumas das figurações caracterizadas por
outros autores como tópicos são, na verdade, parte de um tópico. Segundo a autora

melodic or accompanimental figures are musical characteristics of topics insofar as they allow one
to recognize a style or genre; affects form part of topical signification. Rhetorical figures and
harmonic schemata are unrelated to topics but can combine with them into more or less stable
amalgamates that are conventional in their own rights. (Mirka 2014, 2)

Assim, Mirka (2014) retorna à definição de Ratner (1980) na qual os tópicos são “musical
styles and genres taken out of their proper context and used in another one” (Mirka 2014,
2). Além disso, ao contrário da perspectiva de Monelle, para Mirka, os tópicos
caracterizam-se como ícones e não índices. Nesse sentido, a autora utiliza como
argumento a diferença entre “reprodução” e “imitação”, na qual a primeira é caracterizada
por uma certa literalidade e a segunda é uma espécie de consenso onde parte das
características do estilo ou gênero são apresentadas. “A sample that reproduces some
qualities of the object while omitting others is not a sample but an imitation – like Chinese
imitations of fashion products by Giorgio Armani” (Mirka 2014, 32).
A aplicação prática da Teoria dos tópicos numa realidade tão distante da música
europeia setecentista, como é o caso do Brasil do século XX, exige uma série de releituras,

8
adaptações e concessões. Numa tentativa de aproximação desta realidade, está a segunda
seção do referencial teórico explorado, relativa ao universo dos tópicos brasileiros. Nesse
sentido, destacam-se as pesquisas de Paulo Salles (2017; 2018), Acácio Piedade (2013;
2015), Juliana Ripke (2017), Rodolfo Coelho de Souza (2010), Gabriel Moreira (2010),
Marcelo Cazarré (2001), Diósnio Neto (2015) e Daniel Zanella dos Santos (2015). Apesar
da maioria dos autores aqui citados realizarem um trabalho prático de aplicação do
conceito de tópicos em determinadas obras, a conceptualização da Teoria torna-se parte
importante nestas pesquisas. Além disso, alguns dos tópicos definidos por estes autores
são essenciais para esta dissertação.
De forma a aproximar o estado da arte sobre tópicos no Brasil da análise prática
apresentada nesta dissertação, os capítulos 2, 3 e 4 contêm uma seção referente à
abordagem da Teoria no Brasil com um recorte que diz respeito à temática de cada
capítulo – nacionalista, infantil e luso-brasileira (seções 2.3, 3.4, 4.3). Porém, como
referência essencial para a metodologia utilizada nesta pesquisa, torna-se importante
destacar o trabalho de Paulo Salles em seu livro Os Quartetos de Villa-Lobos: forma e
função. No quarto capítulo de seu livro, “Figuração e Identidade nos Quartetos
Villalobianos”, o autor propõe uma série de tópicos, relacionados aos Quartetos, a partir
da ressignificação da “teoria das marcações (markedness)” definida por Hatten. Salles
(2018) procede a uma releitura da conceptualização proposta por Hatten para a música de
Beethoven, adaptando-a ao cenário musical brasileiro e definindo uma “tipologia de
gêneros expressivos brasileiros” que, por fim, resulta num quadro de “classificação de
gêneros, estilos, tipos e tópicas encontrados nos quartetos de Villa-Lobos” (Salles 2018,
233). A sistematização do conceito de tópico proposta por Salles, assim como o processo
de adaptação da Teoria ao cenário da música brasileira foram imprescindíveis para a esta
investigação.
O cariz essencialmente prático deste trabalho exigiu a redefinição de algumas
particularidades da conceptualização da Teoria dos tópicos de forma a torná-la
compatível com o objeto de estudo em questão. A importância dada ao entorno contextual
da obra musical, especialmente trabalhada por Monelle (2000; 2006), constitui parte da
aplicação da Teoria nesta investigação. A efervescência dos movimentos nacionalista e
modernista no Brasil do início do século XX, bem como a proximidade do compositor
com o universo infantil, permitiram a definição de alguns dos tópicos propostos. Por outro
lado, a objetividade da definição de Mirka (2014) e a sua tese acerca da imitação como
não literal, constituíram parte central da abordagem posta em prática neste trabalho. A

9
citação de melodias folclóricas neste caso em concreto nunca é literal, como se constata,
logo à partida, pela transcrição das melodias para outro instrumento. Ainda assim,
considera-se um caso de “imitação” nos termos de Mirka (2014) – como se defende no
primeiro capítulo quando se reflete acerca dos fenômenos de intertextualidade e
hipertextualidade inerentes a esse processo de citação.
A classificação de Hatten (1994) readaptada por Salles (2018), que permite uma
categorização mais rigorosa do tópico em casos práticos, deu origem à organização em
temáticas aplicada neste trabalho. Em vez de gêneros e estilos, fala-se em temas, uma vez
que transcendem uma esfera exclusivamente musical para abrangerem também todo o
entorno contextual inerente à composição e interpretação das Cirandas.
Portanto, na necessidade de uma definição do conceito de tópico, neste trabalho
concebe-se este termo não como a replicação de um gênero ou estilo, na sua literalidade,
mas como a expressão de um aspecto ou um elemento característico deste(s). Tal
elemento, ou seja, o tópico, é partilhado e reconhecido por uma determinada cultura e
circunscrito a uma série de fatores contextuais, os quais atribuem-lhe significação.

Organização

A partir da investigação feita acerca das Cirandas de Villa-Lobos, definiu-se uma


organização para a dissertação a qual pretende destacar a abordagem metodológica
aplicada ao objeto de estudo. O documento está dividido em quatro capítulos, sendo que
o primeiro não está diretamente associado a nenhum tópico ou temática, uma vez que se
constitui como o resultado de uma investigação preliminar essencial para o entendimento
das dezasseis peças. Com este capítulo promove-se uma primeira leitura das Cirandas à
luz da concepção de transtextualidade desenvolvida por Gérard Genette (1982). Na
primeira parte reflete-se, essencialmente, sobre a dimensão paratextual da obra musical.
Através dessa reflexão promove-se associações entre as peças e o gênero musical que dá
o nome ao conjunto. Na segunda parte, explora-se a interação da melodia folclórica com
seu entorno, discorrendo sobre esta relação através dos conceitos de inter, hiper e
metatextualidade.
Os restantes três capítulos referem-se a cada uma das três temáticas desenvolvidas
na investigação que deu origem a este documento. O título do conjunto para piano pode
sugerir as temáticas desenvolvidas e seus desdobramentos: a ciranda como símbolo do

10
folclore nacional (“Temática nacionalista: um pressuposto na obra de Villa-Lobos”); a
ciranda enquanto dança de roda infantil (“Temática infantil: a importância da figura da
criança na trajetória de Villa-Lobos”) e a ciranda como dança presente na esfera luso-
brasileira (“Temática luso-brasileira: das cirandas às Cirandas”). De forma a quase
mimetizar o processo de investigação, inicia-se cada capítulo com uma apresentação
contextual, seguida pela apresentação de tópicos já desenvolvidos por outros autores que
se aproximam das temáticas apresentadas. É através desse entorno e da análise estrutural
de cada uma das peças que surge a reflexão sobre possíveis tópicos presentes nas
Cirandas, reflexão essa que culmina na apresentação de exemplos práticos em algumas
das peças.
Com esta estrutura, pretende-se colocar em evidência o diálogo entre os contextos
histórico-musicais que envolvem as Cirandas, o trabalho sobre a Teoria dos tópicos
produzido no cenário musicológico brasileiro e a análise estrutural das pequenas peças,
resultando, finalmente, no desenvolvimento de tópicos.

11
1. Transtextualidade como um panorama geral
das Cirandas

A utilização de recursos pertencentes ao universo infantil se manifesta de forma


enfática nas Cirandas de Villa-Lobos, dentre outras peças do compositor. O título de cada
pequena peça e o tema folclórico nelas citado denotam, de imediato, uma associação a
este cenário – assunto que será desenvolvido no terceiro capítulo desta dissertação.
Porém, nas Cirandas, o tratamento concedido ao “infantil”, ou ainda, o entorno que, de
alguma forma, envolve este “infantil” é o que torna este conjunto de peças para piano um
caso significativo. Esta primeira parte da dissertação constitui-se como um capítulo
introdutório no qual se propõe uma primeira reflexão acerca deste tratamento villalobiano
à citação folclórica. Aplicando à música uma taxonomia concebida, em primeiro plano,
para a literatura, abordar-se-á a relação entre as Cirandas e o seu entorno, à luz da
concepção de transtextualidade definida por Gérard Genette em sua obra intitulada
Palimpsestes: La littérature au second degré (1982). Nesse sentido, destaca-se,
primeiramente, o panorama paratextual, com uma análise sobre o título do conjunto e de
cada uma das pequenas peças, e uma reflexão sobre as dimensões inter, hiper e
metatextuais e a relação entre melodia folclórica e criação de Villa-Lobos.

1.1 A dimensão paratextual das 16 “cirandas” de Villa-Lobos

A paratextualidade, um dos cinco casos de transtextualidade3 estipulados pelo


autor, refere-se à

relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra
literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto:
título, subtítulo, intertítulos, [...] e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos,
que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do
qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor
tão facilmente como desejaria e pretende. (Genette 2006, 9-10)

3
São estes: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade e hipertextualidade
(Genette 2006).

12
No caso das Cirandas, a dimensão paratextual está essencialmente presente nos
títulos e subtítulos das pequenas peças. Torna-se, então, relevante em dois níveis: o
primeiro referente aos títulos de cada peça que são, por sua vez, condizentes com os dos
temas folclóricos citados, e, o segundo, com a designação do título “Ciranda” para o
conjunto e o que tal denominação pode significar.
Na primeira dimensão, referente aos títulos que compõe as Cirandas, o recurso à
paratextualidade é claro na medida em que cada uma das dezesseis peças recebe como
título o nome da canção folclórica aludida. A atuação e, assim, a importância do paratexto
neste cenário reside no fato de que, apesar da utilização de uma técnica de inserção4, como
definida por Salles (2018, 251), e, por conseguinte, das transformações e/ou
ressignificações que conferem diferentes caráteres aos temas infantis, o folclore infantil
permanece como protagonista, assinalado e evidenciado através do título. Assim, a
dicotomia entre a afirmação do tema folclórico e a ressignificação do mesmo é também
fundamentada e legitimada através desta dimensão paratextual: ao intitular as peças com
o nome referente às canções infantis, Villa-Lobos atribui ao tema folclórico alguma
centralidade, mesmo que, na prática, tal tema esteja “imerso” em um entorno que o
“descaracterize”, ou melhor, que o ressignifique.
O segundo nível, relaciona-se com a escolha do compositor de denominar o
conjunto de peças para piano como Cirandas, apesar de nem todos os temas populares
apresentados serem o que entendemos como ciranda na acepção de dança de roda infantil
– como se verifica na tabela 5 apresentada no terceiro capítulo deste trabalho. Tal
designação pode se afirmar numa dupla perspectiva: primeiramente contactando de forma
muito explícita com o universo infantil, sendo que esta manifestação, no Brasil, é
comumente associada à dança de roda infantil (apesar das várias problemáticas que
advém desta concepção simplista); em segundo, ressaltando a ideia de brasilidade uma
vez que a mesma é popularmente afirmada como um gênero brasileiro. Como esclarece
Salles (2018, 248): “Embora provavelmente a maior parte dessas cantigas brasileiras
tenha sido trazida de outras culturas, mesmo assim, os brasileiros as compartilham e
reconhecem como signos autênticos de identidade nacional”.

4
Ao abordar as técnicas composicionais de Villa-Lobos, Paulo Salles (2018, 248) define a técnica de
inserção como uma “técnica em que a canção folclórica é mais ou menos adaptada de modo a se adequar a
um ambiente completamente inusitado, muitas vezes organizado de maneira não tonal”. Tal recurso é
amplamente utilizado nas Cirandas.

13
A origem etimológica de “ciranda” pode estar na palavra espanhola, “zaranda”,
que designa um utensílio de peneirar farinha, e/ou no vocábulo árabe “çarand”, que
“significa encadear, enlaçar, tecer uma coisa” (Callender 2013, 121). De acordo com o
Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câmara Cascudo (1972, 267), a ciranda
define-se como uma “dança infantil de roda vulgaríssima no Brasil e vinda de Portugal,
onde é bailado de adultos. Samba rural no Estado do Rio de Janeiro (Parati) e também
dança paulista de adultos, terminando o baile rural do fandango”. Entretanto, torna-se
válido reiterar que diante da dimensão geográfica do Brasil a ciranda ganha contornos
regionais variados. Nesse sentido, já na segunda edição do mesmo dicionário, o território
de expressão da ciranda é expandido com uma menção ao estado de Pernambuco: “em
Pernambuco, a ciranda de roda é dança de adultos” (Cascudo 2001, 141).
Edna Farias em sua tese intitulada Creative Treatment of Folk Melodies in
Selected Cirandinhas and Cirandas of Heitor Villa-Lobos (2015), assume que a versão
mais popularizada de tal manifestação cultural é, provavelmente, a do estado de
Pernambuco5. Nesta, o líder denominado “Mestre-cirandeiro” conduz a ciranda,
composta de estrofes e refrão, do centro da roda (Farias 2015). Déborah Callender (2013),
por sua vez, ao retomar as conotações atribuídas à ciranda no século XX, inicia o seu
artigo afirmando que “muito pouco se estudou no Brasil sobre a ciranda” (Callender 2013,
115). A mesma autora, a partir da investigação de Jaime Diniz (1960) e Evandro Rabello
(1979) (pioneiros no estudo sistematizado da ciranda em Pernambuco), discute a respeito
da circunscrição da ciranda à dança de roda infantil, referindo-se a folcloristas como
Renato Almeida e Mário de Andrade (Callender 2013, 121). Este último, por sua vez, em
Música, doce música (1934), expressa a sua concepção de ciranda, a qual poderia ser
relevante para o próprio Villa-Lobos dada a sua proximidade com o compositor e a sua
possível intervenção na criação das Cirandas. O autor enfatiza a relação entre Brasil e
Portugal – tema abordado no quarto capítulo deste trabalho – que se expressa, justamente,
através da “ciranda”, e define o gênero como “roda exclusivamente infantil e geralmente
cantada como uma estrofe e refrão” (Andrade 1934, 108)6.

5
Villa-Lobos faz menção a Pernambuco e, provavelmente, à ciranda pernambucana, através de sua obra
intitulada Ciranda das sete notas (1934) (única outra obra do compositor, com exceção das Cirandas e
Cirandinhas, com referência direta à ciranda no título principal). De acordo com as observações presentes
no catálogo do compositor (Museu Villa-Lobos 2009), nesta obra Villa-Lobos explora um “tema popular
de Pernambuco, recolhido por Ceição B. Barreto”.
6
Apesar de circunscrever a ciranda ao cenário da cantiga de roda infantil, Mário de Andrade reconhece as
relações desta com outras manifestações brasileiras, especialmente o coco. Tal associação é assumida pelo

14
Como referido anteriormente, ao intitular “ciranda” o seu conjunto para piano,
Villa-Lobos evoca o universo infantil ao mesmo tempo que ressalta a ideia de brasilidade.
Porém, como se constata, o conceito de ciranda enquanto dança e/ou cantiga de roda pode
ser amplo e pouco claro, tornando-se difícil estabelecer um ponto comum entre estas
manifestações no Brasil e precisar suas características – com exceção do consenso sobre
o seu caráter de dança circular. Contudo, neste caso, a importância do conceito atribuído
ao termo “ciranda”, mais do que residir na definição exata de sua significação, encontra-
se na acepção e no sentido dado por Villa-Lobos aquando da sua utilização. Em relação
aos temas folclóricos que compõem as Cirandas, é certo que nem todas as brincadeiras
que envolvem as respectivas cantigas são necessariamente executadas em roda. Assim,
compreende-se que a finalidade seria contactar com uma ideia pré-concebida de ciranda,
partilhada, em parte, por Mário de Andrade, evidenciando o caráter infantil e nacionalista
que permeia as pequenas peças.
Neste segundo nível – referente ao título Cirandas –, a dimensão paratextual que
envolve o título do conjunto para piano, além de evidenciar o caráter nacional, aponta
para a criação de uma expectativa, por parte do público, na qual o compositor se
aproximaria da ideia padronizada, se assim quisermos, de infância. Porém, o destaque
que é dado a este universo – seja por meio da inserção do tema folclórico, da dimensão
paratextual que acompanha as peças ou da exploração da poética do universo infantil por
meio de recursos estilísticos – é revertido num cenário de distorção e complexidade que
foge ao caráter real das canções folclóricas infantis e, por conseguinte, distancia-se desta
possível expectativa, afastando-se do retrato, por vezes idealizado, do “ser criança”. O
ouvinte, esperando cirandar, ouve, na verdade, as Cirandas.
Ter em conta o encadeamento de ideias aqui exposto significa, em parte,
considerar a perspectiva de Mário de Andrade sobre o gênero, cuja ideia incide justamente
na ciranda como dança de roda quase estritamente infantil. Tal noção implica reconhecer,
essencialmente, a importância do musicólogo no cenário artístico dos anos XX e, por
conseguinte, que a concepção de Mário de Andrade seria conhecida e até partilhada por
Villa-Lobos. Porém, há outra consideração paratextual que merece ser aqui apresentada
e que, por sua vez, contraria, de certa forma, o fato das Cirandas, enquanto título, estarem
associadas exclusivamente ao universo infantil.

autor em Danças dramáticas do Brasil, onde o mesmo define o coco como uma espécie de ciranda ainda
que “deformadíssima, ou antes reformadíssima” (Andrade 1959, 41).

15
Estabelecendo-se uma comparação entre os títulos das Cirandas (1926) e das
Cirandinhas (1925), estas últimas compostas um ano antes de acordo com o catálogo do
compositor (Museu Villa-Lobos 2009), constata-se imediatamente a escolha da utilização
do diminutivo. As Cirandinhas são um conjunto de 12 peças para piano as quais contêm
a citação de um tema folclórico infantil, sendo oito destes comuns às Cirandas. De acordo
com Farias (2015, 28) as Cirandinhas apresentam um tratamento mais didático e de
intuito pedagógico, sendo menos complexas em estrutura, técnica e estilo do que as
Cirandas. Nesse sentido, a autora ainda argumenta que

[…] Villa-Lobos’s Cirandinhas reflect his love of children and commitment to music education.
During his travels to the Brazilian countryside, Villa-Lobos had observed children performing the
folk music of their regions. He decided to transform some of the melodies he had collected into
attractive piano arrangements so children could play familiar music while also developing
technique and musicianship. (Farias 2015, 26)

A partir desta comparação torna-se relevante considerar a diferenciação dos títulos


de cada uma das peças não só como forma de assinalar uma diferença técnica entre as
mesmas, mas, também, distinguindo o caráter de cada uma. A exclusão do diminutivo nas
Cirandas também aponta para um tratamento do tema folclórico que “cresceu” em
complexidade técnica, estrutural, estilística e simbólica, fazendo das Cirandas uma
espécie de brincadeira pianística de adultos.
Apesar da associação paratextual com as Cirandinhas apresentar uma noção de
“evolução” e até “adultização”, a relação do infantil com a concepção de ciranda
anteriormente discutida não se invalida. Torna-se importante, nesta reflexão, evidenciar
a possibilidade de diálogo entre a ênfase no cenário infantil – e, assim, a ideia, já referida,
da criação de uma expectativa sobre a figura da criança – e a complexificação da interação
do material folclórico com a criação villalobiana.

1.2 Inter, hiper e metatextualidade: formas de conceber a relação entre


a melodia folclórica e o entorno villalobiano

Para além da dimensão paratextual, a inserção das melodias folclóricas constitui,


por si só, um caso de transtextualidade. As ditas melodias estão presentes em cada uma
das Cirandas, porém, tratar das relações transtextuais que permeiam a utilização e a
exploração de tais melodias pode levantar diferentes hipóteses. A intertextualidade pode

16
ser, neste caso em concreto, o tipo de transtextualidade mais evidente num primeiro plano
e é definida por Genette (2006, 8) como uma “relação de co-presença entre dois ou vários
textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um
texto em um outro”. Nesta perspectiva, as dezesseis pequenas peças que compõem as
Cirandas caracterizam-se pela citação da melodia de cantigas folclóricas.
Ao referir-se à prática da citação na literatura, Genette (2006, 8) qualifica-a como
a “forma mais explícita e mais literal” podendo ser representada “com aspas, com ou sem
referência precisa”. No caso da música, essa discussão torna-se mais complexa na medida
em que qualquer possível conclusão se confronta com a noção de “texto”, ou ainda, de
“texto musical”. Apesar de parecer, à primeira vista, simplista, dado que “texto musical”
pode se referir a uma obra específica, o fato da música ser construída a partir de diferentes
dimensões – melodia, harmonia, ritmo, etc. – torna a questão menos clara. A fim de
ampliar o sentido de tal vocábulo, “texto”, que comumente se vê restrito à esfera literária,
Paulo Ferreira de Castro (2015) propõe uma releitura do termo através de um regaste
etimológico da palavra. Derivada do latim, textus, e do verbo tecer (texere, em latim), o
termo se refere ao conceito de tecido, entrelaçado de fios, à textura. Nesse sentido, o autor
argumenta em prol da ideia de complexidade que o próprio termo “texto” pode vir a
abarcar: “The conceptual figure of the text has, in my view, the additional advantage of
emphasizing the complex, multi-layered nature of cultural practices, even as it refocuses
attention away from a reductionist construction of meaning based on the atomistic model
of the sign” (Castro 2015, 89). Assim, a noção de “texto”, não circunscrita à escrita, pode
abranger o complexo emaranhado das práticas culturais, inclusivamente da música,
compreendendo as diferentes esferas que a compõem.
Se a melodia de determinada cantiga folclórica, e somente ela, for considerada
como texto musical, considerar-se-ia um caso de intertextualidade em cada uma das
Cirandas. As dezesseis peças conservam as melodias folclóricas infantis quase
integralmente e torna-as claramente reconhecíveis aos ouvidos do público. Essa relação,
que se estabelece a partir da ideia de inserção da melodia folclórica noutro contexto, se
confirma em relatos significativos sobre as Cirandas. Entre eles, está o de Paulo Salles
(2009) que aborda as Cirandas e sua relação com o material folclórico através da ideia de
camadas texturais. Tal acepção considera a melodia da cantiga como uma destas camadas
inserida, das mais variadas formas, em um cenário que abrange sobreposições e
contraposições. Como reitera Salles (2009, 83) “sua técnica [de Villa-Lobos] de

17
justaposição de camadas está estabelecida, e as Cirandas são uma espécie de estudo da
concatenação de ostinati sobre e entre os quais as melodias folclóricas são inseridas”.
A primeira gravação integral das Cirandas, feita pelo pianista Joseph Battista,
contou ainda com as indicações interpretativas do próprio Villa-Lobos, de acordo com o
texto apresentado no LP (1953). As ideias do pianista norte-americano também
corroboram com a tese que permeia essencialmente o recurso à intertextualidade nas
Cirandas. O autor defende que a incorporação do tema folclórico constitui a base para
uma criação individual e imersa no universo brasileiro:

O tema serve a uma função, não diferente das melodias corais, nos prelúdios corais de Bach; eles
fornecem a trama e a textura da intricada elaboração com a qual o autor os urde. Ocasionalmente,
no entanto, o tratamento dos temas é equilibrado com a maior liberdade. E o compositor combina
com freqüência suas canções folclóricas, ou a elas opõe, amavelmente, melodias idiomáticas de
sua própria autoria. As peças são usualmente breves, às vezes quase resumidas, mas captam com
maravilhosa vivacidade os aspectos e os sons brasileiros: as savanas e as selvas, as úmidas
plantações e o intenso carnaval das ruas. A partitura para piano é espantosa: rica, idiomática,
controlada e, ainda, audaciosamente intrépida. (Battista 1953 citado em Vetromilla 2010, 33)

No que concerne à perspectiva do próprio Villa-Lobos sobre a forma como as


Cirandas se relacionam com as cantigas folclóricas, o compositor apresenta uma
classificação de suas próprias obras com base no tipo de exploração do elemento
folclórico. Registrada por Adhemar Alves da Nóbrega (Nóbrega 1971, 20-25 citado em
Vetromilla 2010, 22-23), a partir das palavras do próprio Villa-Lobos, tal classificação
consiste na divisão das suas composições em cinco grupos, dos quais as Cirandas se
encontram no segundo: conjunto de peças com “alguma interferência folclórica direta”.
(Nóbrega 1971, 20-25 citado em Vetromilla 2010, 22-23). Legitimada pelo próprio
compositor, tal “interferência direta”, no caso das Cirandas, corrobora com a leitura
intertextual inicialmente proposta, a partir da qual a citação da melodia assume certo
protagonismo.
Todavia, é consenso que as Cirandas de Villa-Lobos não consistem numa
harmonização de cantigas infantis, antes, exploram tais temas de forma mais complexa.
O material musical que envolve o tema folclórico adquire uma dupla função: por um lado,
descontextualiza a melodia, inserindo-a num novo cenário, por outro, recontextualiza-a,
construindo, de múltiplas formas, um “entorno villalobiano” que, por sua vez, propõe
uma releitura da melodia folclórica. Diversos relatos, alguns já aqui referidos, assinalam

18
o contraste entre a forma intacta na qual a melodia folclórica é exposta e o cenário
intricado que a circunda. O musicólogo Renato Almeida (1928, 1), a propósito de uma
conferência na embaixada americana cujo um trecho foi publicado no jornal O Paiz,
expõe o modo como compreende a relação de Villa-Lobos com o folclore, fazendo
referência às Cirandas:

[Villa-Lobos] Trata os motivos populares, a exemplo das cirandas, ou dos choros, ou da Próle do
bebê, não a maneira da musica temática, que é uma restrição, mas criando um ambiente sonoro,
do qual emerge a cantiga, para se perder depois no tumulto indefinível que a contorna. […] Villa-
Lobos, porém, não se tem deixado comprometer no folclore e a sua música, para brasileira, não
precisa dessa limitação. (Almeida 1928, 1)

Para o compositor Willy Corrêa de Oliveira, a relação entre folclore e seu entorno,
nas Cirandas, torna-se ainda mais intrincada. A exposição minuciosa de Oliveira
compreende, através de uma analogia aos conceitos de objet trouvé e collage, a melodia
folclórica como um material que recebe um novo significado a partir das relações de
tensão que são propostas em torno do mesmo. Numa significativa analogia
multimediática que parte das artes visuais, Oliveira (2008) discorre a respeito das
Cirandas:

Não é necessário, creio, escrever aqui que Villa-Lobos é um milagre. As "Cirandas" são collages
e não "ABAs", ou outras quaisquer tipologias morfológicas arroladas com letras do alfabeto latino
indexadas em Compêndios de Formas Musicais. […] E collages: mais pela distinção entre fundo
e a figura colada, como o "Le Quotidien" de Braque (no Musée d'Art Moderne, Paris); e, de
Picasso, o "Violon et Feuille de Musique" (Musée Picasso, Paris). E collages, sublinho, não tanto
no espírito do cubismo; mais relacionável, se possível, com Kurt Schwitters: As cantigas de roda
como objets trouvés. Não quero que pareça que estou a emparelhar grandezas, porque o Villa é
incomensurável. E as cantigas, como os tickets, etiquetas, velhas gravuras, recortes, retalhos de
pano de Schwitters, têm suas próprias estórias; porém não são as estórias das cantigas que o autor
das "Cirandas" se põe a narrar. Ou ele estaria, apenas, harmonizando cantos populares: cantando-
os a plenos pulmões, por cantar. Mas é evidente que cada cantiga carrega consigo suas vivências
e que vivificam a obra do Villa, embora o que ele está a dizer é mais centrado nas collages: tensões
estabelecidas, quase tácteis, plásticas, através de novas relações adquiridas pelas justaposições, e
sobreposições dos objets trouvés e dos fundos sobre os quais são colados. Nas "Cirandas", em
especial, os fundos são geralmente compostos por danças pianísticas para o saracotear dos dedos
nas teclas, e não danças de baile, para o corpo. Danças inventadas a partir de combinações de
certos ritmos (próprios da música popular brasileira), e variantes (engenhosas) imaginadas com o

19
fito de por o piano a bailar. Já as figuras, as cantigas de roda: em sua origem velhos folguedos
infantis, são redimensionadas pelo compositor por mérito das colisões, dos embates entre figura e
fundo, trombadas entre figuras e figuras. Choques e entrechoques é que narram as velhas cantigas
de novo: cantam as "Cirandas". Collages como forma e conteúdo (a um só tempo). (Oliveira 2008)

Reconhecer o “redimensionar” das melodias folclóricas é também assumir que o


material musical que as circunscreve modifica-as, em certa medida, através da releitura
do seu próprio significado. Porém, torna-se relevante ponderar sobre tal “releitura”, uma
vez que as transformações a que são sujeitas as melodias folclóricas podem corroborar
com, pelo menos, dois pontos de vista que em grande parte dos casos coexistem. O
primeiro refere-se à criação de um cenário que, de forma contrastante ou não, “prepara”
a entrada da melodia e, assim, “recontextualiza-a”, configurando-se como uma espécie
de ambiente sonoro – algumas vezes relacionando-se com o texto da cantiga ou com a
lenda que a envolve. O segundo é referente à ênfase dada ao cenário brasileiro e à
construção de uma brasilidade que vai além da citação do tema folclórico em si, se
referindo, na forma de menção musical, às características do universo brasileiro. Ambas
as concepções podem ser evidenciadas nos discursos já aqui referidos.
Outra exposição relevante para o tema em questão foi registrada no jornal A Noite
(1926, 7), no mesmo ano de composição das Cirandas (1926): a reportagem intitulada “A
grande arte brasileira do maestro Villa-Lobos”, a qual incluía uma entrevista ao
compositor brasileiro. A referida matéria expressa a importância de Villa-Lobos na
construção de uma identidade nacional através da música. No texto, o compositor
brasileiro é caracterizado como o “primeiro grande artista livre […] que um dia
condensará, palpitante e sonoro, o espírito mesmo do Brasil” (A Noite 1926, 7). Com
ênfase nas Serestas e nas Cirandas, ambas recém compostas, apresenta-se um discurso
demonstrativo da ideia de brasilidade presente na obra de Villa-Lobos:

Antes de tocar as suas composições características, o maestro fala-nos da arte como a compreende,
a arte pura, a arte instintiva e sincera do homem brasileiro, exprimindo sem falsificações técnicas
e ambientais, rudemente, virginalmente, embora com o selo da barbárie, as fases históricas, os
arroubos e as debilidades da nacionalidade […].
O maestro produz sempre fecundo como a terra que tanto ama. Quando seus íntimos julgam-no
esgotado, seu espírito criador frondeja e esplende em novas riquezas. Ainda agora compôs duas
séries de música brasileira: as ‘Cirandas’ e as ‘Serestas’. Aquelas são plasmadas nos motivos
populares infantis, as “danças de roda”, com que folgam as crianças brasileiras. Nas ‘Serestas’
encontram-se musicados os motivos de serenatas. Ambos compreendem os anos 1600, 1700, 1800.

20
Villa Lobos executa: “Therezinha de Jesus” e “A Condessa”, motivos cariocas; “Pobre cégo” e
“Senhora Dona Sancha”, características do Maranhão; “O cravo brigou com a rosa e “Sapo
Jururu”, motivos bahianos; “O pintor de Canahy”, de origem paulistana, e mais composições
inspiradas em temas do norte e do centro brasileiro: “Nesta rua nesta rua”; “Passa, passa Gavião;
“Vamos atrás da Serra Calunga”. Có-có-có; “A canoa virou” – todas repassadas de ardente
brasilidade. [...] Pela primeira vez, com a música do grande compositor patrício, sentíamos a arte
brasileira, isto é, motivos exclusivamente nossos interpretados por um esteta integrado,
absolutamente, no ambiente e no sentimento nacional. (A Noite 1926, 7)

Este discurso torna-se demonstrativo das ideias anteriormente desenvolvidas, na


medida em que aborda a construção de uma identidade nacional através da inserção de
temas folclóricos que, na sua condição de representantes regionais, corroboram com a
noção das Cirandas “repassadas de ardente brasilidade”. Além disso, concede a Villa-
Lobos a posição de “esteta integrado”, artista que detém “a arte instintiva e sincera do
homem brasileiro” e que, portanto, é legítimo enquanto “criador” de uma identidade
nacional.
Estes discursos corroboram com uma compreensão da citação folclórica e do
material musical a ela circunscrito como interdependentes e exercendo influências
bidirecionais significativas. O caráter transtextual, num primeiro plano associado à
intertextualidade, amplia-se de forma a abranger a hipertextualidade, uma associação
mais complexa entre textos.
É verdade que o retrato musical brasileiro nas Cirandas é feito, essencialmente,
com recurso à intertextualidade. A citação das cantigas relaciona as Cirandas ao folclore
brasileiro de forma evidente, facilmente reconhecível – como afirma Mário de Andrade
referindo-se justamente às Cirandas: através destas melodias “faz-se saber que estamos
no Brasil” (1934, 236). No entanto, ao retornarmos à ideia de que o entorno da cantiga se
relaciona com a construção de um “ambiente sonoro” e/ou com a representação de
elementos que constroem uma ideia de brasilidade, a relação entre cantiga e sua
envolvente torna-se mais complexa. Enquanto interdependentes, uma modifica a outra
não só a nível estrutural como também a nível simbólico. A partir desta perspectiva, a
hipertextualidade qualifica-se, também, como caso de transtextualidade adequado para a
relação entre textos: melodia folclórica e entorno villalobiano.
Como hipertextualidade, Genette (2006, 17) concebe “toda relação que une um
texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei
hipotexto) do qual ele brota de uma forma que não é a do comentário”. Neste caso,

21
consideram-se as Cirandas como hipertexto e as cantigas folclóricas – e desta vez não só
as suas melodias como também outros aspectos estruturais e simbólicos – como
hipotexto. A hipertextualidade pressupõe que o hipertexto só exista porque existe o seu
hipotexto, o que torna a relação entre texto A e B mais intrínseca e complexa do que no
caso da intertextualidade – na qual o texto A era apenas citado no texto B. Assim, mais
uma vez, os discursos já aqui transcritos reiteram a ideia de interdependência entre os
textos, onde as Cirandas (hipertexto) surgem, ou “brotam”, também por meio da cantiga.
Dentre outros discursos que possam ser analisados, os textos referidos neste capítulo
evidenciam o esbater dos limites entre inter e hipertextualidade, entre citação e relação
transformacional, no caso das Cirandas.
Considerando a coexistência de diferentes tipos de transtextualidade num mesmo
caso, Genette (2006, 23) alerta o leitor ao referir-se aos cinco tipos não como “classes
estanques”, mas reconhecendo suas relações como “numerosas e frequentemente
decisivas”. Com base nessa premissa, considera-se a intersecção entre inter e
hipertextualidade, nas Cirandas, um cenário possível.
Em seu artigo, intitulado “La Musique Au Second Degré: On Gérard Genette’s
Theory of Transtextuality and Its Musical Relevance”, Paulo Ferreira de Castro (2015)
argumenta em favor de uma concepção que pode integrar dois níveis de percepção. O
primeiro, microestrutural, relaciona-se com a intertextualidade (sendo expresso na forma
de citação, plágio ou alusão) e, o segundo, macroestrutural, comporta as relações
transformacionais ou imitativas derivadas da hipertextualidade (Castro 2015, 90).
Acordando com este ponto de vista, o caso das Cirandas pode ser concebido a partir desta
dupla perspectiva, sem que uma dimensão invalide a outra. Num plano microestrutural,
encontra-se a citação das cantigas infantis, isto é, a “transcrição” da melodia de forma
reconhecível na qual a referência ao tema folclórico é clara e evidente; numa dimensão
macroestrutural estão as relações de transformação que advém da construção de um
entorno significativo o suficiente para “alterar” a citação direta não só estruturalmente,
mas também simbolicamente.
Referindo-se a este entorno e considerando o texto do pianista Homero Magalhães
exposto adiante, torna-se relevante ponderar ainda outro caso transtextual, a
metatextualidade.

As 16 Cirandas são pequenos poemas pianísticos, formalmente singelos, mas de grande


dificuldade de execução. O processo de composição empregado por Villa-Lobos é muito simples:

22
a peça, em geral, se inicia por um comentário, uma atmosfera harmônica ou rítmica, estabelecida
pelo compositor, sobre a qual se ouve em seguida o tema popular infantil. A citação desse tema é
sempre textual, jamais variada (coral figurado de J. S. Bach). Ele pode aparecer camuflado e o
comentário musical em torno do tema é, às vezes, extremamente desenvolvido, quase se
transformando numa peça independente. (Magalhães 1994, 288 citado em Vetromilla 2010, 32)

De acordo com Genette (2006, 16-17) a metatextualidade constitui-se como a


“relação, chamada mais correntemente de ‘comentário’, que une um texto a outro texto
do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso,
sem nomeá-lo”. É verdade que, relacionada à música, a metatextualidade assume um
caráter literário mais imediato, uma vez que surge na forma de comentário escrito, ou
crítica. Mas, no caso das Cirandas, a proposta de “comentário” circunscreve-se às
próprias Cirandas. Trata-se de um comentário discursado pela própria música, pelo
próprio compositor. Assim, o caráter metatextual configura-se justamente na envolvência
da melodia folclórica, isto é, na criação villalobiana que comenta a cantiga, disserta sobre
sua letra, sua lenda, seus aspectos estruturais e seu simbolismo enquanto representante de
uma identidade nacional. O compositor (re)escreve a cantiga discorrendo sobre ela
mesma, confrontando-a e afirmando-a.
Ainda que de forma ampla, com a discussão a respeito da relação entre textos
musicais – melodia folclórica e seu entorno – aqui desenvolvida, pretende-se promover a
reflexão acerca das maneiras através das quais essa relação pode ser estabelecida, a partir
de quais níveis, coexistentes ou não, hierárquicos ou não, ela pode ser pensada e quais as
implicações referentes a estes enquadramentos. A partir disto, adiante apresenta-se uma
análise minuciosa que, através da Teoria dos tópicos, estuda os elementos estruturais das
pequenas peças em conjunto com o cenário extra-musical que as envolve.

23
2. Temática nacionalista: um pressuposto na
obra de Villa-Lobos

Este capítulo tem como objetivo desenvolver os tópicos nas Cirandas a partir do
enfoque na temática nacionalista. Enquanto parte de um contexto artístico marcado pelos
ideais modernistas e nacionalistas, a obra de Villa-Lobos não só se torna representativa
da estética vigente, como edifica, também ela, elementos centrais para a concretização e
legitimação destes ideais. Nesse sentido, o capítulo em questão parte de uma perspectiva
mais ampla para então desenvolver os tópicos síncope brasileira, citação folclórica e
ostinato. Para definição dos mesmos, foi necessária uma contextualização do panorama
artístico do Brasil no início do século XX o qual se estende ao papel da música e da obra
de Villa-Lobos neste cenário. Além disso, dada a recorrência do tópico síncope brasileira
ao longo das dezesseis pequenas peças, tornou-se fundamental refletir acerca da presença
de tal figuração rítmica na música brasileira.

2.1 A (re)definição de uma identidade nacional: contexto e implicações

No início do século XX o meio artístico brasileiro imergia numa atmosfera


modernista que, dentre outros propósitos, incitou a busca pela (re)definição de uma
identidade nacional, principalmente através das artes. Nesse sentido, torna-se importante
apresentar uma breve retrospectiva deste movimento. Seu início é marcado pela I
Exposição de Arte Moderna de Anita Malfatti, em 1917. Tal marco deveu-se,
essencialmente, ao fato de que foi “apenas nesse instante que um conjunto de obras
sintonizadas com a modernidade europeia provocou uma resposta pública no Brasil”
(Nascimento 2015, 379). Porém, é na Semana de Arte Moderna que o modernismo no
Brasil toma forma. Realizada nos dias 15, 17 e 19 de fevereiro de 1922, em São Paulo, a
Semana acompanhava a efervescência econômica que se estabelecia na cidade,
efervescência esta caracterizada pelo “advento da burguesia industrial, do proletariado a
ela vinculado e das classes médias em formação” (Nascimento 2015, 379). Seu programa
consistia em uma série de palestras e manifestações artísticas de personalidades influentes
neste cenário – como é o caso de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti,
Heitor Villa-Lobos, dentre outros. Assim, a Semana de Arte Moderna surge como uma
espécie de ruptura com o passado artístico. Como esclarece José Miguel Wisnik (1983,
63) em seu livro O coro dos contrários:

24
A tradição crítica firmou sobre a Semana de Arte Moderna um conceito que corresponde àquilo
que ela desejou ser: um marco, um divisor de águas, um ritual de ultrapassagem, inserindo-se
ostensivamente na “tradição de ruptura” que caracteriza, segundo Octavio Paz, a idéia de
modernidade, e que põe acentuada ênfase na oposição entre o velho e o novo.
Eclodindo em meio a esse campo da tácita promoção do passado, o movimento modernista
instaura-se basicamente como choque, confronto, polêmica, afirmação de tendências. (Wisnik
1983, 63)

Neste cenário efervescente de novas ideias e de reformulação de identidade(s),


torna-se essencial referir a noção de “antropofagismo” e a sua importância na concepção
da arte modernista brasileira: “Logo, assim define-se o traço de nacionalidade brasileira,
o ser antropófago. Em todos os níveis, nossa cultura teria sido feita, certamente desde o
Descobrimento, do deglutir a cultura alheia” (Nascimento 2015, 385). O marco inicial
desta vertente do movimento modernista é a publicação do “Manifesto Antropófago” de
Oswald de Andrade na Revista Antropofagia em maio de 1928. “Tupy or not tupy that is
the question” (Andrade 1928), é esta emblemática paródia de Hamlet, dentre outras
afirmações polêmicas apresentadas por Oswald de Andrade em seu “Manifesto
Antropófago” (1928), que representa com clareza alguns dos conceitos propostos pelo
escritor. O termo chave, antropofagismo, etimologicamente associado a rituais de
canibalismo, deu nome à manifestação que se caracterizou como uma corrente
modernista, artística e literária presente no Brasil a partir da década de 1920. Como um
dos principais agentes do que viria a ser o modernismo brasileiro, o escritor e dramaturgo
paulistano Oswald de Andrade teorizou a partir da ideia de assimilação da cultura
europeia, isto é, do “deglutir” da mesma que ao ser “digerida” transforma-se em arte
legitimamente brasileira: “O ‘Brasil Caraíba’ deglutiu a Europa, transformando-a em
outra coisa, em seu estômago, diferente do que existia no velho continente” (Jobim 2015,
402).
A relevância desta manifestação na redescoberta da identidade artística brasileira
reside no fato de que a sua proposta requer uma espécie de regresso ao que seriam os
“primórdios” da nação brasileira, um outro (e novo) olhar para o “descobrimento” e para
o encontro entre indígenas, portugueses e africanos. Como refere Nascimento (2015,
385), “a catequese pretendida pelo europeu foi apenas um engodo do aborígene para
poder fazer sua festa particular com a cultura do outro”. A manifestação antropofágica
pretendia um Brasil em que sua formação a partir da cultura e dos traços de “outros” é

25
um meio e o deglutir e digerir deste encontro é um fim, resultando, finalmente numa
estética “verdadeiramente” brasileira. Tal concepção não se restringe ao cenário de
“junção” dos três povos, mas expande-se para além do “descobrimento” do Brasil e
aplica-se ao fazer artístico de forma mais geral, sugerindo uma estética na qual as
tendências artísticas europeias passariam, justamente, por este processo de “digestão”:

Muito além da influência passiva, sem alterações, desfere-se o golpe da ruminação antropófaga,
glutona, digerindo e repetindo o elemento estrangeiro, porém inscrevendo-lhe o traço da diferença.
Nisso, é toda uma determinação entre dominador e dominado que se vê abalada como um todo,
quando o “selvagem” faz o “civilizado” escrever, levando-o a ver o que ele não poderia ter visto e
consequentemente dito, por motivos de etnocentrismo. (Nascimento 2015, 388)

Em seu artigo intitulado “A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Modernismo


Brasileiro: atualização cultural e ‘primitivismo’ artístico”, Evando Nascimento (2015)
estabelece uma relação próxima entre o antropofagismo e o “primitivismo”. O autor
argumenta em favor das relações entre o antropofagismo oswaldiano e os “diversos
‘primitivismos’ do início do século XX na Europa, entre eles, o do Manifeste Cannibale
Dada e da revista Cannibale, do dadaísta Francis Picabia, ambos de 1920” (Nascimento
2015, 377). Mais do que o sentido quase literal resgatado pela própria etimologia da
palavra “antropófago”, o já mencionado olhar para o passado, para os “primórdios da
nação” e a realocação do indígena como parte de um cenário que se quer “primitivo”, são
fatores que assinalam não só a relação entre a corrente antropofágica e o termo
“primitivo”, mas entre este último e o próprio modernismo brasileiro.

2.1.1 A música na idealização de uma identidade brasileira

Nas palavras de Elizabeth Travassos (2003, 9) “falar da interseção entre música


e modernismo significa dedicar atenção especial a Mário de Andrade”. Assim, torna-se
relevante considerar a perspectiva do autor expressa, especialmente, pela publicação do
Ensaio sôbre música brasileira (1962), em 1928. Nesta obra, sinteticamente, o autor
assume a “música artística”, termo utilizado pelo próprio para se referir à música erudita,
como devendo ser desenvolvida a partir de elementos da música popular.
De encontro com este ponto de vista, que coloca em diálogo conceitos como o
“popular” e o “erudito”, Travassos (2003), em seu livro Modernismo e Música Brasileira,
afirma que “o modernismo [no Brasil] procurou instituir um novo modo de

26
relacionamento entre a alta cultura – dos letrados, academias, conservatórios, salões – e
as culturas populares. As barreiras entre erudito e popular foram sacudidas tanto pela
transformação dos bens culturais em mercadorias produzidas em larga escala quanto pela
atuação dos artistas e pensadores da cultura” (Travassos 2003, 16-17). Da mesma forma,
Acácio Piedade (2013, 47) em seu artigo “A teoria das tópicas e a musicalidade brasileira:
reflexões sobre a retoricidade na música”, ao discutir o “ideário modernista” da década
de 1920 e a atuação de Mário de Andrade, também enfatiza a interação entre o de “fora”
(música erudita europeia) e o de “dentro” (música popular brasileira) afirmado que “ao
mesmo tempo em que há na musicalidade brasileira este olhar para fora, há este desejo
de inventar uma grande linguagem musical que evoque o nacional a partir das
musicalidades regionais, que por sua vez bebem nas tradições populares” (Piedade 2013,
47).
Ainda nesse sentido, torna-se importante considerar que a interação erudito-
popular que abarcava a criação musical do início do século XX edificava, também, uma
espécie de paradoxo: a procura por uma identidade brasileira a partir do “popular” é, ao
mesmo tempo, uma busca do “primitivo” e/ou do “exótico” requerida no cenário artístico
internacional. Os “primórdios” da nação brasileira, primórdios estes que deveriam ser
reconhecidos para o modernismo no Brasil, concentram-se num olhar voltado para a
cultura indígena e africana. Neste caso, cabe referir que o papel da cultura portuguesa se
torna complexo na medida em que Portugal é, ao mesmo tempo, parte destes “primórdios”
e uma herança europeia que, por isso, deveria ser também “digerida” – relação esta que
será trabalhada no último capítulo deste trabalho. Assim, a partir destas associações,
retorna-se ao movimento antropofágico, anteriormente discutido, e à noção de
“primitivismo” também atrelada a este conceito.
Ao abordar o retorno do escritor Oswald de Andrade de Paris, Evando Nascimento
(2015, 384) enfatiza esta ideia quase antagônica na qual a (re)definição da identidade
nacional brasileira passaria, dentre outras coisas, por uma espécie de necessidade do
“exótico” que o cenário artístico parisiense exigia:

Importa, entretanto, observar que, do ponto de vista da cultura europeia, o elemento popular da
cultura brasileira equivaleria ao elemento primitivo das culturas indígenas e africanas. Como diz
Antonio Candido, “Ora, no Brasil, as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são
reminiscências ainda vivas de um passado recente” (1976, p. 121). Enquanto para o europeu, o
primitivo era o exótico, o diferente da “cultura branca”, a ser explorado, para nós isso era conatural
de uma tradição. (Nascimento 2015, 384)

27
A partir disto, e para efeitos deste trabalho, faz-se essencial esclarecer a associação
estabelecida entre “primitivismo” e “exotismo” com as culturas indígenas e africanas.
Cabe clarificar que esta está, evidentemente, circunscrita a este contexto em específico.
De forma a evitar o equívoco que tais associações propõem, no decorrer deste trabalho,
estes termos são colocados entre aspas.
O cerne desta relação – primitivismo e culturas indígenas/africanas – constrói-se
a partir da ideia de que só através do retorno ao “puro” e ao “original” é que seria possível
criar uma arte verdadeiramente nacional. Nesse sentido, o chamado “primitivo” conota
justamente esta esfera “pura” e até “selvagem”, figurada maioritariamente pelo indígena
e, por vezes, pelo escravo africano. Por outro lado, como demanda internacional,
especialmente parisiense no caso de Villa-Lobos, o chamado “exótico” é este “outro”
distante, misterioso, quase inalcançável, a não ser por esta manifestação artística cujo
“traço de vanguarda”, muitas vezes, é o “primitivismo” (Nascimento 2015, 384).
Leonardo Martinelli (2009), em na sua comunicação para o Simpósio Internacional Villa-
Lobos intitulada “Visão do Paraíso?: Villa-Lobos e a idéia de Brasil”, disserta a esse
respeito abordando especialmente o papel da música:

Se de um lado o europeu toma estes estereótipos como elementos-chave na construção do “motivo


exótico”, os compositores em questão tomaram para si o papel de reforçar estes estereótipos. Para
isto, lançaram mão de todo um cabedal de informações e práticas que somente um “nativo” poderia
ter, e de certa forma, atuaram como uma espécie de guia turístico-musical, trabalhando de forma
mais acurada e sedutora sobre um montante de estereótipos que o europeu já tem ciência e anseia
por ver em detalhes e cores vivas quando se permite entrar em contato com a cultura estrangeira,
seja através de um city-tour, seja em uma sala de concertos. (Martinelli 2009, 78)

2.2 Villa-Lobos e a sua obra: da necessidade do “novo Brasil” à sua


legitimação

A partir desta espécie de continuum constituído pela exaltação do “primitivo”,


num cenário nacional, e pela demonstração do “exótico”, numa perspectiva internacional,
torna-se essencial referir, na trajetória de Villa-Lobos, seu contato com Paris. O vínculo
com o círculo artístico parisiense teve início ainda antes da Semana de Arte Moderna de

28
22 (Guérios 2003) e sua estadia na capital francesa será dividida em dois períodos7. O
primeiro período na capital francesa vai de 1923 a 1924 e foi financiado pela Câmara do
Deputados, pela ajuda de mecenas e admiradores, além de concertos que contribuíram
para angariar fundos (Almeida 2014, 100-1). A segunda viagem à Paris data do final de
19268 até 1930 e teve o financiamento dos irmãos Arnaldo e Carlos Guinle (pertencentes
à elite empresarial e social carioca) a pedido do pianista, e grande amigo de Villa-Lobos,
Arthur Rubinstein.
Ao contrário de outros grandes compositores brasileiros que o precederam (como
é o caso, por exemplo, de Alberto Nepomuceno, Carlos Gomes, dentre outros) a intenção
de Villa-Lobos não era a ampliação da sua formação musical em Paris, como o mesmo
afirmou: “Eu não vim aprender, vim mostrar o que sei. Se gostarem ficarei; se não,
voltarei para a minha terra” (Villa-Lobos citado em Horta 1986, 52). Entretanto, o
primeiro contato pessoal com a capital francesa parece não ter proporcionado o
reconhecimento esperado por Villa-Lobos. Em seu artigo intitulado “Heitor Villa-lobos
e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em um músico brasileiro”, Paulo
Guérios (2003) analisa justamente esta “quebra de expectativas” (Guérios 2003, 82),
considerando que a primeira viagem do compositor foi um “momento de inflexão” em
sua trajetória. Segundo o autor, “foi somente após essa viagem que ele [Villa-Lobos]
passou a dedicar seus esforços à produção de uma música de caráter nacional” (Guérios
2003, 81-2). Considerando um dos pontos fundamentais e ilustrativos desta primeira
estadia de Villa-Lobos em Paris, Guérios (2003, 81) relata:

Em seguida à sua chegada, o compositor foi convidado para um almoço no studio da pintora Tarsila
do Amaral, no qual estariam presentes, entre outros, o poeta Sérgio Milliet, o pianista João de
Souza Lima, o escritor Oswald de Andrade e, entre os parisienses, o poeta Blaise Cendrars, o
músico Erik Satie e o poeta e pintor Jean Cocteau.
Nesse dia, após o almoço, os artistas entretinham-se em animada conversação quando o assunto
se desviou para a arte da improvisação musical. Villa-Lobos, que já tinha uma extensa obra
composta para piano solo, sentou-se então ao Erard de concerto de Tarsila para improvisar.
Imediatamente, Jean Cocteau, conhecido por suas boutades e por suas atitudes espirituosas,

7
Para além dos dois períodos mencionados neste trabalho (1923-1924 e 1926-1930), Villa-Lobos retornou
a Paris em 1952 onde permaneceu até quase a sua morte, em 1959.
8
Entre estudiosos da biografia do compositor há divergências sobre a altura exata em que Villa-Lobos
embarcou para Paris pela segunda vez. Lisa Peppercorn (1985) e Gerard Béhague (1994), por exemplo,
consideram o ano de 1927 como sendo o correto. Em contrapartida, pesquisas mais recentes como a
biografia de Paulo Guérios (2009), Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação, considera que a
viagem foi feita no final do ano de 1926.

29
sentou-se sob o piano, no chão, “para que pudesse ouvir melhor”. Ao final da improvisação de
Villa-Lobos, no entanto, Cocteau voltou à sua poltrona e atacou ferrenhamente o que ouvira: em
sua opinião, a música que o compositor apresentara não passava de uma emulação dos estilos de
Debussy e Ravel. (Guérios 2003, 81)

A decepção sofrida por Villa-Lobos, reflete, também, as diferenças estéticas


expectadas pelo meio artístico brasileiro e parisiense. Isto é, “no Rio de Janeiro, Villa-
Lobos era considerado ousado e vanguardista por utilizar elementos da estética de
Debussy; em Paris, esse mesmo uso faria com que ele fosse criticado pelo principal
representante da vanguarda” (Guérios 2003, 93). A “emulação dos estilos de Debussy e
Ravel” parecia não mais satisfazer o anseio da vanguarda parisiense, frente a isso, coube
ao compositor brasileiro uma releitura das expectativas do meio artístico no qual se
encontrava, especialmente em relação à música erudita brasileira:

[…] toda uma série de pequenos contatos e interações […] agiu no sentido de convencê-lo aos
poucos da imperiosa necessidade de sua conversão, de sua transformação em um compositor de
músicas de caráter nacional. Como consequência, ele deixaria de tentar compor de acordo com as
regras estéticas de compositores franceses, tão valorizadas no Brasil, para tentar retratar sua nação
musicalmente, um projeto especialmente valorizado na França. (Guérios 2003, 97)

Assim, retorna-se ao continuum “primitivo-exótico” e sua relação com as idas de


Villa-Lobos à Paris: o caráter nacional que passará a compor grande parte de suas obras
encontra-se, justamente, com os ideais modernistas-nacionalistas brasileiros que se
relacionam diretamente com a busca pelo “primitivo”. Não se trata simplesmente da
construção da identidade musical brasileira, mas de uma identidade musical brasileira
específica – “selvagem”, ligada à natureza, à herança africana, ao indígena e, também,
“exótica”, ligada às expectativas do cenário artístico internacional.
Ainda nesse sentido, torna-se essencial abordar outro acontecimento marcante da
primeira estadia de Villa-Lobos em Paris e, assim, sua relação com esta espécie de ruptura
estilística que passa a enfatizar uma estética nacionalista e, neste caso, também
“primitivista” – o impacto da Sagração da Primavera. Apesar das inúmeras vezes que o
compositor brasileiro negou qualquer influência externa, incluindo a de Stravinsky, a
crônica de Manuel Bandeira (1924 citado em Almeida 2014, 171-3) deixa claro o impacto
que a obra do compositor russo teve em Villa-Lobos:

30
Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega Paris espera-se que venha cheio de Paris.
Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-Lobos. […] Villa-Lobos não precisava ouvir
com os ouvidos do corpo as excelentes orquestras de Paris. Pela sua imaginação alucinatória ele
as antecipava interiormente. Para um espírito dessa feição a surpresa é difícil. Todavia uma cousa
o abalou perigosamente: o Sacre du Printemps de Stravinsky. Foi, confessou-me ele, a maior
emoção musical da sua vida. (Bandeira 1924 citado em Almeida 2014, 171)

O retrato musical do “bárbaro” apresentado por Stravinsky, em conjunto com a


demanda estética parisiense, pode ter contribuído para esta mudança na trajetória
composicional de Villa-Lobos. A proposta do compositor russo não só pode ter incitado
em Villa-Lobos a procura de um Brasil também “selvagem”, mas apresentado elementos
para a construção musical deste outro “bárbaro” e “primitivo” que, no caso brasileiro,
recai maioritariamente sobre a figura do indígena. Realocando esta perspectiva para um
ponto de vista mais prático e analítico, torna-se essencial citar o trabalho de Rodolfo
Coelho de Souza (2010) em seu artigo “Hibridismo, Consistência e Processos de
Significação na Música Modernista de Villa-Lobos”. Souza (2010) propõe uma análise
aprofundada de Rudepoema onde apresenta uma “forma híbrida” de compreensão das
técnicas de composição, através da qual, segundo o autor, Villa-Lobos articula “funções
formais da forma sonata com o caráter seccional dos conjuntos de variações” (Souza
2010, 151). Para Souza (2010), os contrastes advindos do emprego destas duas técnicas
caracterizam também uma “alternância de significações tópicas” entre a ideia do
“selvagem” e do “civilizado”. Esta contradição se relaciona com a internacionalização de
Villa-Lobos, enquanto artista brasileiro, constituindo uma afirmação de um “Brasil
imaginado”:

Seu objetivo era encantar a audiência parisiense que respondia aos anúncios dos concertos de um
compositor brasileiro em busca de uma música exótica e extravagante. A música de Villa-Lobos
precisava então atender àquelas expectativas em tudo que eles imaginavam sobre a vida e a cultura
do Brasil: selvas, pássaros exóticos, praias paradisíacas, índios selvagens e escravos negros.
(Souza 2010, 181)

Além que reconhecer a construção musical de um Brasil idealizado na obra de


Villa-Lobos, Souza (2010, 184-5), em sua análise de Rudepoema, identifica algumas
semelhanças com as técnicas composicionais utilizadas por Stravinsky (nomeadamente a
estruturação em justaposição de blocos sonoros) e, ainda de forma mais clara, apresenta

31
uma comparação entre o motivo melódico do tema 2 de Rudepoema e o famoso contorno
melódico entoado pelo fagote no início da Sagração da Primavera:

Exemplo 1 - Transcrição de Souza (2010, 186).

Villa-Lobos (1965, 235 citado em Souza 2010, 184) “descreveu este tema como
um canto de índios brasileiros”, afirmação que aponta justamente para a relação que se
defende entre a suposta influência de Stravinsky, a representação do “primitivo” e a figura
do indígena como retrato de um Brasil virgem e “selvagem”.
Esta reflexão debruçada sobre a análise de Rudepoema de Souza (2010) faz-se
importante para este trabalho uma vez que esta peça, além de ser também escrita para
piano, foi composta no mesmo ano que as Cirandas, 1926. Assim, compreendê-la é,
também, uma forma de perceber com mais clareza aspectos composicionais desta fase na
qual se encontrava Villa-Lobos. A importância deste artigo em particular não esgota por
aqui, no próximo capítulo algumas questões abordadas por Souza (2010) serão tratadas
de forma mais aprofundada.
Adiante, é necessário ter-se em conta que o contato de Villa-Lobos com Paris
ampliou a percepção desta necessidade estética pelo “exotismo” e, ainda mais importante,
impulsionou o compositor para uma escrita que busca e valoriza um nacionalismo que
está em prol desta “construção exótica”. Mário de Andrade, ao mencionar algumas obras
de Villa-Lobos da década de 1920, realça justamente este aspecto “bruto” que pode ser
relacionado a um caráter “primitivista”:

Na fase moderna da obra de Villa-Lobos, Choros, Ciranda, Rudepoema, há incontestavelmente


uma procura consciente da aspereza que choque, que brutalize o ouvinte, um verdadeiro sadismo
musical. É difícil verificar nisso um defeito ou uma qualidade. É mais um caráter, próprio e
pessoal, desenvolvido pelo autor da brutalidade contemporânea. E portanto o torna mais específico
e histórico. (Andrade citado em Toni 1987, 53)

32
Como mencionado acima, algumas das mais conhecidas obras de Villa-Lobos de
caráter nacionalista são escritas justamente após a sua primeira ida à Paris – destacam-se
os Choros (compostos na década de 1920), o já mencionado Rudepoema (1926), as
Cirandas (1926), dentre outras. Corroborando com esta perspectiva, Manoel Correia do
Lago (2003), em seu artigo “Recorrência temática na obra de Villa-Lobos: exemplos do
Cancioneiro Infantil”, afirma que é justamente durante a década de 1920 que os temas
indígenas (especialmente relacionados aos cantos Perecís recolhidos por Roquette Pinto
em 1912) passam a marcar uma presença assídua nas obras do compositor –
nomeadamente os temas Nozani-Ná (utilizado, por exemplo, nos Choros n°3 e em
Rudepoema) e Ena-Mokocê-Maká (utilizado também em Rudepoema e nos Choros n°7 e
n°10). Além da exploração de temas indígenas, neste mesmo período, o folclore, mais
especificamente o folclore infantil, passou também a se fazer presente na produção
villalobiana. Assim, finalmente, torna-se possível abordar as Cirandas e como esta obra
se insere neste quadro contextual e ideológico.

2.2.1 As Cirandas

As Cirandas de Villa-Lobos são compostas justamente na efervescência artística


do Brasil dos anos 1920 e entre as duas viagens do compositor para Paris.
Compreendendo o contexto modernista-nacionalista brasileiro e o contato de Villa-Lobos
com a sociedade parisiense e suas implicações, torna-se claro que as Cirandas são produto
de um Villa-Lobos consciente de uma escrita que visava cumprir os propósitos artísticos
nacionais e internacionais, também exigidos pela vanguarda parisiense. Assim, apesar da
análise de tópicos se dar na última seção deste capítulo, torna-se imprescindível
compreender as Cirandas também enquanto resultado destes cenários, isto é, como uma
espécie de concatenação dos conteúdos aqui referidos.
Para além da presença recorrente do ostinato e da síncope nas pequenas peças,
referindo também ideias nacionalistas e “primitivistas” como será abordado mais adiante,
as Cirandas estão essencialmente interligadas pela citação de um tema folclórico infantil,
apresentado em seu título. Esse ponto comum que não só une as Cirandas como as
nomeia, faz do folclore infantil uma espécie cerne através do e para o qual Villa-Lobos
compõe. Ora, é justamente a “escolha” do protagonismo do folclore infantil nas pequenas
peças que corrobora com o quadro referencial e contextual aqui explorado: a relação entre

33
folclore, nacionalismo e “primitivismo” e “exotismo” constrói-se a partir das Cirandas
de Villa-Lobos.

2.3 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática nacionalista em Villa-


Lobos

Heitor Villa-Lobos tem se consolidado como uma das figuras centrais no que diz
respeito às análises de obras a partir da Teoria dos tópicos. Tal protagonismo, dentre
outros aspectos, pode estar relacionado com o fato do compositor permanecer no cerne
das discussões sobre os conceitos que envolvem a “música brasileira”. Logo, na
musicologia brasileira, muito do trabalho já feito sobre a Teoria dos tópicos se relaciona
com a faceta nacionalista de Villa-Lobos. Ou seja, explora elementos e estruturas
utilizados pelo compositor no seu discurso musical, este em prol da construção de uma
identidade musical brasileira.
Considerando que a Teoria dos tópicos é edificada por meio de uma construção
acadêmica ampla e conjunta e tendo em conta o aparato teórico explorado nas seções
anteriores, torna-se essencial apresentar o que já foi desenvolvido a respeito da relação
entre Teoria dos tópicos, Villa-Lobos e nacionalismo e as suas implicações no
modernismo brasileiro. Nesse sentido, alguns nomes se destacam, como é o caso de
Acácio Piedade, Paulo de Tarso Salles, Gabriel Moreira, Rodolfo Coelho de Souza,
Daniel Zanella e Juliana Ripke. Como ponto comum, todos apresentam trabalhos de
análise voltados para os tópicos na obra de Villa-Lobos.
Como se pode constatar, a temática indígena, recorrente na obra de Villa-Lobos,
ganhou destaque nos estudos sobre a Teoria dos tópicos. A esse respeito, Moreira (2013)
afirma:

De um lado da tabela, do lado do ouvinte, há um ideal acerca do índio. Esse ideal é construído por
diversas ideias particulares que se imiscuem entre si. Para evocar essas ideias há sons que Villa-
Lobos usou e que descrevo nesse trabalho. Alguns desses sons foram baseados na realidade exótica
das transcrições indígenas -as quais também evocavam memórias aos europeus, que desde as
Grandes Navegações do século XV tiveram contato com relatos desses povos e suas músicas -
outros se relacionaram exclusivamente com as ideias sobre música e representações desenvolvidas
na própria cultura europeia. A junção dessas representações sonoras construídas na imaginação
ocidental via história e experiência, seus anacronismos e coincidências no início do século XX,

34
tornaram possível a construção de estruturas musicais, que logo se tornariam partes de um idioma
villalobiano específico para a representação do selvagem além-mar. (Moreira 2013)

Nesse sentido, torna-se importante evidenciar alguns aspectos referentes ao grupo


de tópicos indígenas abordados por autores que foram ou serão referidos com destaque
neste trabalho – Moreira e Salles. De forma mais aprofundada é Gabriel Moreira (2010)
que, em sua dissertação de mestrado, propõe uma análise do “elemento indígena na obra
de Villa-Lobos”. Para tal, em sua discussão, o musicólogo define uma série de
características para os tópicos indígenas na obra do compositor. São estes: “Paralelismo:
uma tópica de 'simplicidade técnica'”; “O conceito de repetição/estaticidade figurado no
ostinato”; “A 'horizontalização' da estaticidade: o fluir da melodia na representação do
índio em Villa-Lobos” e “A Textura musical como 'Ambientadora' do índio: riqueza,
magnitude e biodiversidade musical na composição/orquestração de Villa-Lobos”
(Moreira 2010). Alguns dos conceitos e tópicos apresentados pelo autor serão abordados
e desenvolvidos adiante na análise das Cirandas.
Ao analisar os quartetos de cordas villalobianos, Paulo Salles (2018), retoma a
temática indígena concebendo a seguinte relação:

Estilo Tipo Símbolo/Tópica


Ameríndio Dança Flauta Nasal
Melodia Motivo indígena
Paisagem sonora Dança Ritual
Natureza: harmônicos
Tabela 1 - Transcrição da tabela de Salles (2018, 233).

Além da associação entre a análise estrutural dos quartetos de cordas e os tópicos


propostos, Salles (2018) reflete acerca da representação indígena em Villa-Lobos e da
forma como este retrato se relaciona com o contexto modernista brasileiro. O autor
reconhece que esta presença é expressa na obra do compositor de diferentes formas,
“desde os estereótipos recorrentes, passando por transcrições feitas com diferentes graus
de precisão e inevitáveis estilizações” (Salles 2018, 259), tornando-a intermediária entre
o “indianismo do século XIX e o Modernismo” (Salles 2018, 263). Concordando com
alguns dos pressupostos desenvolvidos por Moreira (2010), Salles reflete acerca da
criação das representações musicais indígenas, através das quais se acentuam as

35
divergências entre os universos “selvagem” e “civilizado”. Um exemplo desta
representação encontra-se na utilização do paralelismo de quartas e quintas na obra de
Villa-Lobos:

[…] trata-se de algo bastante curioso, já que se pode afirmar que essa característica praticamente
não existe, ou talvez ocorra com pouquíssima frequência, nas práticas musicais dos indígenas
brasileiros. Sua aceitação como meio de representação se dá por relação indireta, um índice, na
qual esses intervalos são usados como referência à série harmônica em oposição aos acordes
triádicos convencionais. Desse modo, o uso desses paralelismos faz alusão ao “primitivismo”, ou
à “negação do mundo civilizado” (tomando como mundo civilizado a noção de herança cultural
europeia). (Salles 2018, 260)

Outro tópico desenvolvido por Salles é a “dança ritual”. É, principalmente, através


deste tópico que o autor discorre sobre acepção do “primitivo” como especialmente
relacionado com o indígena brasileiro ou ainda com o “estilo ameríndio”. Definindo-a
como uma “tópica primitivista do modernismo”, Salles (2018, 264) apresenta a “dança
ritual” como um produto da abordagem de Stravinsky na “Dança das Adolescentes” da
Sagração da Primavera. Nesta obra, “o ostinato presente na tópica musical em Stravinsky
parece representar a um só tempo não apenas a gestualidade pagã da dança em sua
etnologia como também a violência necessária para transpor a barreira do preconceito e
isolamento sociocultural” (Salles 2018, 265). Para o autor, no caso de Villa-Lobos, tal
representação sonora estaria associada à figura do indígena não só nos quartetos, mas
também em outras obras.
Além dos estudos relacionados ao universo indígena, no âmbito da temática
nacionalista destacam-se, também, os tópicos referentes à cultura afro-brasileira. Estes,
por sua vez, estão maioritariamente associados à ideia de contramérica referente à prática
percussiva que caracteriza a esfera musical afro-brasileira. Nesse sentido, a próxima
seção é dedicada a uma reflexão do sincopado enquanto herança africana incorporada na
identidade musical do Brasil e, adiante, como um tópico presente nas Cirandas.

2.4 O papel do sincopado na construção de uma “música brasileira”

Tal como é empregada na música popular não temos que discutir o valor da síncopa. É inútil
discutir uma formação inconsciente. Em todo caso afirmo que tal como é realizado na execução e
não como está grafado no populário impresso, o sincopado brasileiro é rico. O que carece pois é

36
que o músico artista assunte bem a realidade da execução popular e a desenvolva. Mais uma feita
lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que a gente encontra já uma variedade maior
de sincopado. E sobretudo o desenvolvimento da manifestação popular. Isso me parece importante.
Se de fato agora que é período de formação devemos empregar com frequência e abuso o elemento
direto fornecido pelo folclore, carece que a gente não esqueça que música artística não é fenômeno
popular porém desenvolvimento deste. (Andrade 1962, 37)

É considerando a figura de Mário de Andrade como essencial para discussão do


nacionalismo musical no Brasil que se tem em conta a importância da síncope no cenário
musical brasileiro. “Um dos pontos que provam a riqueza do nosso populário é o ritmo”,
afirma Mário de Andrade (1962, 21), e é partindo desta concepção que o “sincopado”,
como denominou o autor, tornou-se característica especial do universo musical popular
brasileiro. Gêneros como o samba, a bossa nova, o maxixe, o coco, o forró, dentre outros,
são reconhecidamente marcados pelo ritmo sincopado.
Juliana Ripke (2017), em sua tese de mestrado intitulada Tópicas afro-brasileiras
como tradição inventada, compreende a síncope como indicadora “tanto [de] uma certa
especificidade musical quanto [de] um “sabor local”, uma característica particularizante”
(Ripke 2017, 62). A autora enfatiza a relevância de tal recurso rítmico afirmando não só
a sua presença como característica “da música brasileira em geral” (Ripke 2017, 62), mas
discutindo a utilização do próprio termo “síncope”, uma vez que o mesmo se apresenta
de forma tão assídua na música brasileira que sua definição na tradição musical ocidental
pode ser questionada. Segundo Ripke:

Em muitos casos a música brasileira poderia ser melhor descrita em agrupamentos rítmicos como
3+3+2 ou (2+1)+(2+1)+(2) de uma forma mais fiel do que a feita nas teorias do compasso. Desta
forma, podemos entender que não é tão adequado adotar o termo síncope na música brasileira, já
que esse termo indica uma anormalidade, e no Brasil ele é aplicado a algo que é normal a tal
cultura. Em outras palavras, a anormalidade europeia é aqui a normalidade brasileira, e a síncope
torna-se um recurso normal e não uma exceção. (Ripke 2017, 62-3)

Tal discussão, que compreende a síncope como elemento intrínseco e por isso
identitário da música popular e folclórica brasileira, insere também a síncope no cenário
da música erudita no Brasil. Assim, a utilização deste recurso rítmico, associado a outros
mecanismos harmônicos, melódicos e estilísticos, passa a ser uma forma de representação
ou alusão ao universo popular e/ou folclórico, referenciando, também, gêneros musicais
relacionados a estes contextos.

37
É neste cenário – social, político e artístico – que se enquadram as Cirandas de
Villa-Lobos. A representação assídua da síncope nas Cirandas requer uma discussão que
permeia desde o conceito de “síncope brasileira” – nomenclatura apresentada por Salles
(2018, 233) e utilizada nesta investigação – à ideia de tópico que pode advir da inserção
de tal célula rítmica nesta obra. Portanto, torna-se relevante apresentar alguns dos
enquadramentos e conceitos associados à síncope em estudos sobre a música brasileira, a
fim de compreender como tal recurso pode ser efetivamente representado e quais
associações podem ser feitas a partir destas representações.
Na discussão proposta por Ana Judite Medeiros e Eduardo Lopes (2019), em seu
artigo intitulado “O sertão imaginado na ária ‘Cantiga’ das bachianas brasileiras”, a
representação deste “Sertão imaginado” (isto é, sertão nordestino), como denominam os
autores, se dá através da utilização da chamada “escala nordestina”, caracterizada pelo
mixolídio e pela síncope, sendo esta última denominada “ritmo de baião” (Medeiros e
Lopes 2019). Os mesmos autores, considerando-o como ritmo descendente do lundu
africano, representam o chamado “ritmo de baião” através do seguinte esquema rítmico:

Exemplo 2 - Transcrição de Medeiros e Lopes (2019, 48).

Numa descrição pormenorizada a respeito da estrutura deste recurso rítmico,


Medeiros e Lopes (2019, 48) esclarecem:

Do ponto de vista estritamente de análise duracional, e considerando a construção fenomenológica


de análise rítmica Just in Time (Lopes, 2003; 2008), poderemos aferir que as qualidades
perceptuais do ritmo base de baião (Figura 3) demonstram uma clara acentuação no 1º tempo,
fundamental para uma efetiva receção cognitiva da métrica binária característica. De forma
complementar, a idiossincrasia de movimento (i.e. dançável) do baião é percepcionada através do
grande desiquilíbrio rítmico-métrico realizado, e expresso, pela semicolcheia na parte final do 1º
tempo (ponto métrico bastante instável) e da colcheia na segunda parte do 2º tempo. Estando esta
colcheia posicionada num ponto métrico relativamente instável, no entanto menos instável que a
semicolcheia que a precede, ela acaba por iniciar a resolução perceptual do compasso binário,
antecipando e resolvendo a instabilidade previamente iniciada e contribuindo para uma enfática

38
resolução no 1º tempo que a sucede; estabelecendo perfeitamente assim a desejada métrica binária.
(Medeiros e Lopes 2019, 48)

A partir de tal concepção rítmica, Medeiros e Lopes (2019) procuram


compreender como o sertão nordestino pode ser percebido na ária “Cantiga” das
Bachianas n°4. Para isso, recorrem à Teoria dos tópicos referenciando, especialmente,
Acácio Piedade e o seu conceito de “tópica nordestina”.
Dissertando a respeito do mesmo recurso rítmico, em seu artigo intitulado “O
paradigma do tresillo” (nomenclatura adotada na musicologia cubana para designar a
célula rítmica composta por duas colcheias pontuadas e uma colcheia), Carlos Sandroni
(2002) discorre sobre a presença da síncope em diferentes contextos musicais da América
do Sul. Através de uma revisão bibliográfica, o investigador apresenta algumas das
variações do chamado tresillo expondo três das principais configurações rítmicas desta
síncope:

1.

2.

3.

Exemplo 3 - Transcrição de Sandroni (2002, 102-3).

A primeira é referente ao que Mário de Andrade (1962) chamou “síncope


característica da música brasileira”, a segunda nomeada “ritmo de habanera” e a terceira
o tresillo cubano, sendo esta última estrturalmente correpondente ao que Medeiros e
Lopes (2019) chamaram “ritmo de baião”. Nesse sentido, Sandroni (2002, 103)
argumenta: “Se tomarmos o conjunto dos autores que escreveram sobre estas fórmulas,
veremos que elas são tacitamente consideradas como ‘equivalentes’ entre si, ou como
variantes de um mesmo ritmo básico, ora uma ora outra das versões sendo tomada como
a típica”.
No contexto deste trabalho, e assumindo a importância de Mário de Andrade no
cenário artístico brasileiro do início do século XX e seu contato com o próprio Villa-
Lobos e com a “criação” das Cirandas, torna-se relevante considerar a ideia de definição

39
de uma “síncope característica” da música brasileira. Para além das várias menções do
termo em trabalhos de musicólogos que dissertam sobre a música brasileira (como os aqui
já mencionados Salles, Sandroni, Juliana Ripke, dentre outros), destaca-se a tese de
doutorado de Enrique Menezes (2016), a qual tem como base uma transcrição, feita pelo
próprio, de um manuscrito inédito de Mário de Andrade intitulado “Síncopa”9. Mais do
que simples apontamentos, Mário de Andrade pretenderia compilar suas ideias num livro,
o qual já havia referido em sua obra Ensaio sôbre a música brasileira: “a síncopa, mais
provavelmente importada de Portugal que da África (como de certo hei-de mostrar num
livro futuro) […]” (Andrade 1962, 32).
Tratar das “origens” da chamada “síncope característica” torna-se obviamente um
trabalho complexo e a proposta de Mário de Andrade, nesse sentido, é questionar a
afirmação de que tal recurso rítmico no Brasil é, impreterivelmente, herança africana. No
discurso de Mário de Andrade, para além da discussão proposta pelo autor que remonta
a possível ancestralidade da síncope brasileira, o que se torna relevante para este capítulo
é a sua perspectiva sobre a síncope como parte integrada e, mais do que isso, essencial,
da música brasileira. Cabe ainda esclarecer que este trabalho não tem como objetivo
discutir as variadas teses de Mário de Andrade em relação às utilizações e possíveis
origens da síncope no Brasil, mas apreender o papel e, assim, a importância de tal recurso
rítmico para a formação de uma identidade musical e como tal figuração passa a constituir
um tópico importante nas Cirandas.

De acordo com Mário de Andrade:

A síncopa europeia é uma consequência prática das especulações obtusas dos francoflamengos e
madrigalistas. Na América o conceito de síncopa surgiu doutra necessidade que por mais
fisiológica e popular, se poderá chamar de mais essencial. Aqui a síncopa é de aplicação imediata,
constante e diretamente coreográfica. […] É ela quem dá o esquema rítmico do maxixe. No tango
é também uma constância. Na América a síncopa não provém da síncopa europeia. É uma
realização imediata e espontânea das nossas maneiras de dançar, mais sensuais, provindas do clima
talvez, e do amolecimento fisiológico das raças que se caldearam pra nos formar e formaram
também o remeleixo, o requebro, o dengue”. (Andrade em Menezes 2016, 48)

Ao intencionar compreender a aplicação da síncope nos contextos europeu e sul


americano, Mário de Andrade diferencia sua utilização dissertando, justamente, sobre a

9
Atualmente localizado no Instituto de Estudos Brasileiros - IEB/USP.

40
“essencialidade” da síncope num determinado contexto musical. É neste discurso que o
“deslocamento” (ou o sincopado) passa a ser regra, a “contramétrica” tratada como
métrica, tornando a síncope parte integrada e essencial de uma identidade musical e não
uma espécie de “exceção à regra”. Como clarifica Menezes (2016, 51), Mário de Andrade
procura descrever “um tipo de deslocamento sincopado de acentuação que não se dá como
um desvio ou ruptura do discurso musical, mas como uma regra da estrutura rítmica,
recorrente e normalizada”.

2.5 A síncope brasileira como tópico nacionalista nas Cirandas

Partindo, finalmente, para o universo dos tópicos e considerando, portanto, a


síncope brasileira como um destes, cabe esclarecer tal nomenclatura. Salles (2018, 239)
em seu livro sobre os quartetos de cordas villalobianos apresenta o tópico “síncope
brasileira” relacionado com o “tipo estilístico choro”, uma vez que a estrutura rítmica de
semicolcheias configurada pela soma das durações 3+3+2 compõe, neste referido caso,
um quadro harmônico e melódico referente ao gênero musical choro.
O referencial anteriormente explorado, ainda que sucintamente, apresenta
variadas formas de se conceber a síncope no Brasil (a nível de estrutura rítmica e
nomenclatura) e de estabelecer associações simbólicas através da mesma. Porém, como
denominador comum, está a ideia de que a utilização da síncope no contexto brasileiro,
seja esta “enraizada” na música popular e folclórica ou ainda “importada” para a música
erudita, contribui para a construção e representação de uma identidade nacional. A ideia
de sincopado, nas suas várias maneiras de concepção, passa a constituir, portanto, uma
parte da essência da música brasileira.
A partir da compreensão deste ponto de vista, onde a síncope é brasileira, sua
presença nas Cirandas, apresenta o Brasil, ou ainda se associando à ideia de exploração
da poética infantil como será desenvolvida no próximo capítulo, apresenta a infância
brasileira por meio da dança de roda. Neste caso, torna-se importante compreender que
tal representação pode não estar associada a um gênero específico da música brasileira
(como o baião, samba, choro, maxixe, coco, entre outros, nos quais a síncope também se
faz presente), mas justamente a uma ideia mais generalista onde utilizar a síncope é, por
si, “abrasileirar”.
Considerando a ideia de discurso musical relacionada ao conceito de tópico, a
síncope brasileira estabelece-se como um tópico nas Cirandas. Ainda se torna essencial

41
referir que a presença da síncope nas Cirandas, como se constata nos exemplos expostos
adiante, não é uma aparição casual, pelo contrário, é frequente, se apresentando muitas
vezes como um ostinato.
Assim, no decorrer deste trabalho, far-se-ão referência às estruturas rítmicas a
partir da nomenclatura atribuída na seção anterior – “síncope característica”, “ritmo de
habanera” e “tresillo”. Desde já se torna importante especificar que, das três estruturas
rítmicas acima transcritas, o tresillo e a síncope característica são as que se apresentam
com mais frequência nas Cirandas de Villa-Lobos.

2.5.1 O caso da Ciranda n°1 - Terezinha de Jesus

O caso da primeira Ciranda – Terezinha de Jesus, constitui-se como um exemplo


do tópico síncope brasileira uma vez que apresenta, justamente, esta ideia generalizada
na qual a síncope contém uma brasilidade inerente. Os primeiros 21 compassos (parte A)
podem ser divididos em uma pequena abertura ou um “chamado” – compassos 1 e 2 – e
outras 3 seções: a (compassos de 3 a 8), b (compassos de 9 a 15), a’ (compassos de 19 a
21). O “chamado” presente nos primeiros compassos (talvez referenciando a chamada do
mestre cirandeiro10) já introduz a nota sol, que guiará a seções a e a’, juntamente com a
anotação do compositor “> Êste sinal é para sempre cantar o sol”. A síncope brasileira é
apresentada com insistência do início ao fim da peça. Dos compassos 3 a 8, constata-se
um padrão rítmico que corresponde ao tresillo onde a pulsação está baseada num ciclo de
8 semicolcheias e deve ser compreendida através da lógica de acentuação 3+3+2. No
trecho referido, através da ligadura, desloca-se a acentuação “natural” do compasso para
a quarta semicolcheia do primeiro tempo. Com o sforzando e o tenuto assinalados na
última colcheia do compasso, obtém-se a terceira figura da síncope na variante abordada.

10
Figura essencial em algumas das manifestações denominadas “ciranda”, o mestre cirandeiro comanda a
roda convidando os participantes e indicando alguns elementos essenciais como a pulsação, o ritmo, a
tonalidade e os versos (Callender 2013, 116-7).

42
Exemplo 4 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 1 -
Terezinha de Jesus (1926), compassos 3 e 4. Rio de
Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

Para além desta variante de síncope, a seção b também conta com a presença da
síncope brasileira, desta vez na modalidade proposta por Mário de Andrade – “síncope
característica”. Tal figuração rítmica será especialmente desenvolvida no próximo
capítulo referente aos tópicos da temática infantil.
Adiante, no compasso 22, a entrada da melodia dá lugar a uma atmosfera mais
sombria, mas ainda ritmada, da qual a emerge o tema folclórico no último tempo do
compasso 27. O tema, ainda “dançando” ao ritmo da síncope brasileira, se apresenta em
dó menor. O processo de ressignificação ganha forma, isto é, a Ciranda n°1 distancia-se
da Terezinha de Jesus enquanto tema folclórico. No Guia Prático Villa-Lobos (2009a,
96-97) denomina o tema em questão como “um pouco mazurca” ou “quase mazurca” de
“caráter europeu”, sendo que neste mesmo compêndio a canção aparece em compasso
ternário (3/4). Na Ciranda n°1, a partir de uma métrica binária (2/4), a melodia é
deslocada ritmicamente tornando-se sincopada.

Exemplo 5 - Transcrição da melodia da Ciranda nº 1 - Terezinha de Jesus. Compassos 27 a 36.

43
Tal mudança métrica, acarreta numa mudança de caráter que “se desfaz” de algum
“caráter europeu”, inclusive da denominada mazurca, e ressalta uma certa brasilidade por
meio de invocação do tópico em questão. De uma “quase mazurca” de “caráter europeu”,
como designou o próprio compositor, emerge uma ciranda com características do
universo sonoro brasileiro.

Exemplo 6 - Melodia "Terezinha de Jesus". Guia prático (Villa-Lobos 2009a, 19). Compassos de 1
ao 8.

Numa perspectiva macro, onde se compreende a interação entre o tema folclórico


Terezinha de Jesus e o protagonismo da síncope, retorna-se à noção de hipertextualidade
abordada no primeiro capítulo desta dissertação. É justamente a mudança métrica da
melodia (de 3/4 para 2/4), e o que ela acarreta em termos estruturais, que acentua a
complexidade da relação entre hiper (Ciranda n°1) e hipotexto (melodia folclórica do
tema Terezinha de Jesus). Mais uma vez, a concepção de collages descrita pelo
compositor e musicólogo Willy Correa (2008) aponta para esta relação de influências
bidirecionais:

A "Ciranda nº 1", por exemplo, quando da entrada da cantiga "Teresinha de Jesus", ela se confunde
com o fundo, pois que a cantiga - de certo modo - acerta os passos com a dança (o fundo); e o
fundo - por seu turno - embala-se pela cantiga, como sombra sua, mas sombra que modula a

44
cantiga, impõe-se a ela, devolve-lhe o ensombro e ela deixa para trás serenidade, melancolia
contida, e desfila aflita. (Oliveira 2008)

Retornando ao início desta seção, onde apresenta-se o tópico síncope brasileira, e


após esta breve análise, é possível concluir que é, essencialmente, a figura da síncope
enquanto ostinato que carrega consigo o propósito de “abrasileirar” uma canção “quase
mazurca” numa métrica ternária. Será possível tornar o folclore, nesse caso ilustrado pela
melodia da canção Terezinha de Jesus, ainda mais nacional? Parece ser esse o objetivo
da peça que abre as Cirandas. Corroborando com todo o ideário modernista-nacionalista,
o gesto sincopado como ostinato ou ainda como “clave” (nomenclatura utilizada na
música popular), é deslocado de seu contexto “original” – a música popular – e passa a
servir como símbolo de um Brasil imaginado e (re)construído no universo erudito.

2.5.2 O caso da Ciranda nº 3 – Senhora Dona Sancha

Na Ciranda n° 3 – Senhora Dona Sancha, encontra-se um exemplo mais


complexo da intersecção de tópicos. Num sincretismo entre a síncope brasileira, a dança
ritual e a figura do caipira apresenta-se um exemplo da relação tênue entre “primitivismo”
e “mundo civilizado”. O tema folclórico em questão é, efetivamente, uma brincadeira de
roda e a versão representada na Ciranda corresponde à segunda versão apresentada pelo
Guia Prático11 (Villa-Lobos 2009a, 12).
A peça para piano começa com uma introdução em compasso ternário que, como
uma espécie de prelúdio, antecipa alguns dos elementos musicais das restantes seções. A
antecipação mais notória é a presença da nota lá, recorrente na introdução, mas constante
no resto da peça como parte do ostinato. Esta primeira parte da Ciranda n°3 está no modo
eólio em ré, cuja insistência no quinto grau resulta numa atmosfera sonora misteriosa.

11
Nota curiosa é que os primeiros compassos do tema Senhora Dona Sancha II do Guia Prático (Villa-
Lobos 2009a, 12) são, provavelmente, um acréscimo proposto por Villa-Lobos justamente a partir dos
primeiros compassos da Ciranda n°3, composta anteriormente.

45
Esta, em seguida, dá lugar ao ritmo forte e marcado que acompanha a melodia na segunda
seção.

Antecipação do lá

Exemplo 7 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 3 - Senhora Dona Sancha (1926), compassos 1 a 3. Rio de Janeiro:
Casa Arthur Napoleão, 1927.

Após a introdução, a partir do compasso 17, a pulsação ternária dá lugar ao


compasso binário no qual se estabelece firmemente um ostinato para a melodia folclórica,
que se ouve a partir do compasso 20. Mais uma vez, o tresillo é a configuração sincopada
que compõe o ritmo que acompanha o tema folclórico. Tarquinio caracteriza esta Ciranda
como “dança rústica” alegando cinco elementos que legitimam esta perspectiva. Para o
autor, o termo “dança rústica” deve-se

A) Aos acentos sonoros nos tempos fracos marcados com os acréscimos da nota Ré # ao acorde
de lá com quarta e sexta e com os sfz (c. 17-40);
B) À dinâmica, oscilando entre mf e ff;
C) À apresentação ininterrupta da melodia popular em colcheias e em terças paralelas, que
reforçam a intensidade sonora (c. 21 com anacruse-40);
D) Às notas Mi e Lá em colcheias marcadas com um acento (>), nos compassos finais de cada
semifrase (c. 22,24, 26, 28), em uma voz intermediária, que fazem um contraponto, como resposta
à melodia principal, dando continuidade ao fluxo sonoro (sugerem-me palmas em meio a uma
dança popular);
E) As notas Mi e Lá no final das duas frases (c. 29-30; c. 39-40) da seção a, marcadas com acento
(>), executadas em três registros diferentes. (Tarquinio 2010, 139)

Desenvolvendo esta concepção, é possível apresentar uma leitura que relaciona o


ostinato, presente na mão esquerda, a um impulso “primitivo”, enquanto a mão direita –
contrastado com este padrão rítmico através da melodia em terças paralelas –, corrobora
com uma ideia de infância expressa, essencialmente, pela própria citação folclórica. A
denominação proposta por Tarquinio (2010) – “dança rústica” –, pode abarcar tanto o

46
universo da ciranda (enquanto “dança” de roda) como aludir à esfera de um ambiente
“menos civilizado”, rústico.
A sustentação destas associações complexas tem relação com alguns dos tópicos
já definidos e explorados na literatura brasileira. Nesse sentido, começando pelo ostinato
da mão esquerda, torna-se necessário refletir acerca do seu possível vínculo com a esfera
“primitiva”. O tópico “selvagem”, concebido por Souza (2010, 182), para caracterizar
certos trechos de Rudepoema, parte da seguinte definição:

O sentido de "selvagem" pode ser reconhecido em seções da música que tem ritmos e melodias
muito simples ou "primitivas" (como opostas a "complexas"), harmonias muito dissonantes, e
contrastes dinâmicos brutais. Portanto texturas polimodais dissonantes e coleções simétricas são
índices importantes para se interpretar o sentido de "primitivo," na medida em que associações
simbólicas entre o "bárbaro" e o "dissonante" já haviam sido muito bem sedimentadas no
interpretante dos ouvintes por obras anteriores como A Sagração da Primavera de Stravinsky e o
Allegro Barbaro de Bartók. (Souza 2010, 182)

De forma semelhante, o ostinato que acompanha a melodia de Senhora Dona


Sancha contém alguns dos elementos acima referidos que, por sua vez, vão de encontro
à enumeração de Tarquinio (2010, 139), exposta anteriormente. Portanto, destacam-se: a
dinâmica contrastante que se estabelece com a utilização do sforzando e do piano
evidenciando, respectivamente, o acento que define o tresillo e o staccato que confere um
caráter mais leve às outras notas e a escrita em blocos rítmicos de colcheias que, em
conjunto com a melodia, caracterizam a massa sonora cheia desta peça.

Tresillo Sforzando e piano como Staccato Blocos rítmicos de


evidência da síncope colcheias

Exemplo 8 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 3 - Senhora Dona Sancha (1926), compassos 27 a


31. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

47
Complementando e ampliando o significado da interação do acompanhamento da
melodia com os ideais de “primitivo/selvagem”, faz-se importante reiterar a concepção
do musicólogo Gabriel Moreira (2010; 2013) a respeito dos tópicos indígenas na obra de
Villa-Lobos. Como será desenvolvido na seção 2.7, a utilização do ostinato como recurso
composicional pode corroborar com a ideia de “primitivo” representada pela estrutura da
mão esquerda na Ciranda em questão. Da mesma forma, torna-se necessário relembrar a
discussão proposta por Salles (2018) na qual o autor discorre sobre o chamado “estilo
ameríndio”. Salles (2018) desenvolve a associação entre o indígena brasileiro e o conceito
de “primitivo” desta vez através do tópico “dança ritual” o qual tem como característica
essencial a utilização do ostinato.
A partir das proposições de Salles (2018), o tópico “dança ritual” seria o que
melhor se enquadra ao ostinato presente na Ciranda em questão. Nesse sentido,
referenciando o antropólogo e etnomusicólogo Menezes Bastos, Salles (2018, 267-8)
concebe uma relação entre o caráter da dança – “catabática” e/ou “acrobática” – e a
marcação rítmica – marcato (>) e staccato (.), resultando na seguinte tabela:

Representações das tendências de dança, cosmogonia Notação musical


Catabática Bater pés, orientação para a terra, gosto pelo peso Marcato (>)
Acrobática Saltar, orientação para o céu, leveza Staccato (.)

Tabela 2 - Transcrição da tabela de Paulo Salles (2018, 267-8): "Cosmogonia das danças indigenas associada à
notação musical".

A interação proposta acima é justamente o que se verifica no ostinato da Ciranda


nº3. A partir do compasso 40, após a citação da melodia do tema folclórico, o sforzando
desaparece da mão esquerda, assim como os acentos que caracterizaram a síncope. Desta
vez, o marcato acentua os acordes da mão direita, assim como o baixo pertencente a estes
acordes, na mão esquerda. O staccato, por sua vez, permanece como a tendência
“acrobática” da “dança ritual”, considerando o tópico proposto por Salles (2018).
A partir do compasso 40 até ao compasso 58, o ostinato gravita em torno do
intervalo harmônico de quinta (lá-mi) formando blocos de quintas paralelas. Para Moreira
(2013), assim como para Salles (2018), o paralelismo – constituído pela repetição de
quartas e/ou quintas justas – é elemento essencial na representação do indígena e, numa
relação metonímica, da própria natureza que o rodeia. Este fator harmônico, somado à

48
estaticidade proporcionada pela repetição da mesma figura rítmica – a colcheia – com a
mesma articulação – em staccato – corrobora com uma leitura que aproxima a mão
esquerda, durante quase toda a peça, de um retrato do “primitivismo”. Torna-se ainda
importante relembrar, como mencionado na seção 2.3, que a presença do paralelismo de
quartas e quintas justas nas culturas indígenas constitui-se mais como um estereótipo,
uma vez que não se verifica uma recorrência da utilização deste recurso nos registros e
transcrições referentes às comunidades indígenas (Salles 2018, 260).
A mão direita, responsável pela apresentação da melodia, aproxima-se do “mundo
civilizado”, como definido por Salles (2018, 260). A apresentação da melodia é feita, na
generalidade, através de intervalos harmônicos de terças (simples ou compostos),
evidenciando o lá eólio. Por um lado, o modalismo, em detrimento da escala diatônica,
pode corroborar com a construção de uma esfera mais “rústica” e “exótica” associada ao
ostinato da mão esquerda. Por outro, a insistência nas terças paralelas, uma consonância
tão sistematizada pela herança musical europeia, aponta para este chamado “mundo
civilizado”.

Exemplo 9 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 3 - Senhora Dona Exemplo 10 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 3 - Senhora Dona
Sancha (1926), compassos 32 a 34. Rio de Janeiro: Casa Arthur Sancha (1926), compassos 41 a 43. Rio de Janeiro: Casa Arthur
Napoleão, 1927. Napoleão, 1927.

A apresentação da melodia em intervalos de terça e sexta (simples ou compostos) que evidenciam


a organização modal dos sons intercalando intervalos maiores e menores sem qualquer alteração ao
modo eólio.

A ambiguidade desta relação – terças paralelas e modalismo – pode ser explicada


por meio do “estilo caipira”, também definido por Salles (2018) para a análise dos
quartetos de Villa-Lobos. O caipira, referente ao morador do campo do interior de São
Paulo, além de ser caracterizado pelo “r” retroflexo, é “comumente associado com o
caráter ingênuo, matuto e simples” (Salles 2018, 278). A origem do termo enfatiza a ideia
de miscigenação como fundadora da identidade brasileira: “em geral, o integrante
autêntico da cultura caipira na região de São Paulo é resultado da miscigenação dos

49
colonos portugueses – homens, na maioria – com mulheres indígenas, ou seja, o
mameluco” (Salles, 2018, 280). Assim, a figura do caipira conjuga duas “fontes” da
identidade brasileira: o português, herança de uma Europa civilizada e o indígena,
símbolo do “selvagem” e do “exotismo”.
Em Ensaio sôbre a Música Brasileira, Mário de Andrade (1962, 95-100),
apresenta uma série de fandangos (dança também comum ao universo luso-brasileiro) os
quais contêm melodias em terças paralelas. Sobre um destes, Andrade (1962, 100)
discorre: “Este documento notável bem como os outros fandangos de Cananea, são
fandangos incontestavelmente bem nacionais. Foram colhidos de gente caipira dos sítios
do arredor da cidade, gente sem nenhum contacto a não ser mesmo com outros caipiras
brasileiros”. Com o mesmo padrão melódico, o autor apresenta algumas toadas (Andrade
1962, 132-5) sobre as quais confirma: “Também no Rio Grande do Sul é costume o canto
em comum sempre baseado num falso-bordão de terças e sextas”. É a partir desta
figuração que Salles (2018) define o tópico “canto em terças”, associado ao “tipo toada”
e, por sua vez, ao “estilo caipira”.
Além disso, corroborando com a ideia proposta acima, o autor discorre sobre a
frequente simultaneidade entre estilo “ameríndio” e “caipira”, como parece ser o caso na
Ciranda n°3:

Nota-se, por exemplo, que tanto o “estilo caipira” como o “estilo ameríndio” têm tendência a
apresentar motivos melódicos com notas repetidas […]. Também há certa frequência do tropo
entre o tipo toada e a tópica dança ritual, denotando o núcleo familiar do mameluco, como também
é comum a aproximação com a tópica Canto de Xangô, que remete ao contato entre os colonos e
os escravos. (Salles 2018, 280)

O canto em terças, característico do ambiente caipira, torna-se claro na melodia folclórica


apresentada e, além disso, os compassos que se seguem (41 ao 55) apresentam, na mão
direita, acordes que sobrepõem terças, sextas e quintas, maioritariamente, dialogando com
o ostinato em quintas juntas articulado em staccato. Considerando este emaranhado de
ideias, é possível considerar a interseção entre os tópicos, aqui nomeados, síncope
brasileira, ostinato, dança ritual e caipira.

50
2.5.3 O caso da Ciranda n° 8 – Vamos atrás da Serra Calunga

Outro caso no qual a síncope marca uma presença assídua é na Ciranda n°8 –
Vamos atrás da Serra Calunga. Acompanhando quase toda a peça, o ostinato sincopado
representa a herança musical africana, já por si impressa no gesto contramétrico da
síncope brasileira e, neste caso, no próprio título da canção folclórica e da Ciranda. A
referência à “serra” poderá ser uma alusão às serras presentes na região do cerrado do
atual estado de Goiás, especialmente na Chapada dos Veadeiros, ponto estratégico para
refúgio dos escravos durante a época da mineração (século XVIII) devido, justamente, às
várias serras “labirínticas” que constituem a sua geografia. A formação de quilombos
(zona de refúgio de escravos e descendentes africanos) nesta região, proporcionou a
formação de uma comunidade de escravos, fugitivos e libertos, e seus descendentes, que
seriam denominados “Kalungas” (MEC 2001). O livro Uma História do Povo Kalunga
(MEC 2001) define a comunidade Kalunga: “A população Kalunga é formada por
descendentes dos primeiros quilombolas e de pessoas que se fixaram na região ao longo
dos séculos, que passaram a viver em relativo isolamento, construindo para si uma
identidade e uma cultura próprias, com elementos africanos de sua origem e europeus,
marcados pela forte presença do catolicismo tradicional do meio rural.” Outro fator
relevante relacionado ao título da Ciranda em questão, é que no Guia Prático (Villa-
Lobos 2009c, 69-70) o título da canção folclórica é “Vamos atrás da serra, ó! Calunga”
que, assim como a letra da canção, confirmam a suposição de que “Calunga” não é o
nome de uma serra, como pode parecer pelo título da Ciranda n°8, mas sim de uma
personagem principal a qual são direcionadas as diversas perguntas e respostas que
constituem a parlenda.
Nesse sentido, concebendo o tema folclórico como um jogo de perguntas e
respostas, Tarquinio (2010) caracteriza a Ciranda n°8 como uma “pequena rapsódia”,
composta pelas seções A-B-C-D-A’, e suas subdivisões, “cujos principais ambientes
sonoros são contrastantes” (Tarquinio 2010, 228). O autor encontra uma relação entre a
“natureza episódica” da Ciranda em questão – isto é, as perguntas e respostas que se
apresentam no contraste proposto por cada seção – e as várias estrofes que compõem a
letra da canção folclórica. Além disso, o autor associa o andamento “um pouco coco
embolada”, proposto por Villa-Lobos na versão de “Vamos atrás da serra, ó! Calunga”
do Guia Prático (2009c, 69-70), com o caráter “dançante” da Ciranda n°8 (Tarquinio
2010, 212).

51
Em sua análise da mesma Ciranda, Schafaschek (2017, 83) concebe a seguinte
divisão por seções:

Figura 1 - Organização estrutural da Ciranda nº 8. Transcrição de Schafaschek (2017, 83).

Para efeitos desta breve análise, usar-se-á a proposta de seções definidas por
Schafaschek (2017), conforme apresenta a figura acima. Além de uma análise harmônica
baseada na Teoria dos conjuntos, o autor ressalta a esfera rítmica da Ciranda associando
alguns dos trechos sincopados ao ritmo do baião e, ademais, nota a presença do mixolídio
nos compassos de 7 a 13, o que sugere uma associação à cultura musical nordestina.
Mais uma vez retorna-se à tentativa de retrato de uma herança musical africana na
Ciranda n°8, desta vez não só relacionada ao título da Ciranda (que evoca a região centro-
oeste do país), mas à faceta nordestina que apresenta inúmeras características do universo
afro-brasileiro. Tarquinio (2010, 212) associando o “dançar” ao aspecto ritmado da
síncope que assinala o “coco embolada” e Schafaschek (2017) caracterizando a síncope
como baião, são evidências desta representação do universo sonoro afro-brasileiro,
ritmado e sincopado e, também, nordestino. Como constata Schafaschek (2017, 35), num
total de 112 compassos que compõem esta Ciranda, a melodia folclórica apresenta-se em
apenas 8 (compassos 38-45), envolta numa alta densidade rítmica e harmônica. Assim, o
antes e depois do aparecimento da melodia folclórica é imbuído de outros elementos
dentre os quais destaca-se a utilização recorrente da síncope brasileira na forma de tresillo
ou da síncope característica, na acepção andradiana.
Como já referido anteriormente, tratar das origens da síncope na música brasileira
constitui uma tarefa complexa e extensa que não compete a este trabalho. Porém, é quase
um consenso que o caráter sincopado da música brasileira se deve, maioritariamente, à
herança musical africana. Sandroni (2002), defende esta relação na medida em que
apresenta o tresillo como um “denominador comum” de outras fórmulas rítmicas (como
o ritmo da Habanera, o cinquillo e a síncope característica por exemplo) que, a partir do
sincretismo presente nas Américas, se torna constituinte de vários gêneros musicais.
Sobre estes o autor afirma: “Finalmente, deve-se notar que estes gêneros são ligados entre
si pela associação a um grupo de idéias extra-musicais, tais como ‘mestiço’, ‘afro-

52
americano’, ‘popular’” (Sandroni 2002, 104). Da mesma forma, Juliana Ripke (2017), em
seu trabalho sobre a presença de tópicos afro-brasileiros na música, não só relaciona a
síncope à música africana, mas questiona o próprio termo que, no seu “contexto original”,
não seria “sentido” como “fora do tempo”. Ana Judite Medeiros e Eduardo Lopes (2019,
45) ao dissertarem sobre o baião, também associam o ritmo (caracterizado pela
estruturação do tresillo) às danças e gêneros musicais africanos “como o lundu, calango
e batuque”. A partir disto, é possível considerar as propostas de Schafaschek (2017) e
Tarquinio (2010) complementares na medida em que o tresillo é a fórmula rítmica do
baião e do coco embolada. Logo, a Ciranda n°8 passa a ser uma alusão a este universo
afro-brasileiro que vai desde o título até o protagonismo da síncope durante quase toda a
peça.
Apesar de Schafaschek (2017, 86) considerar que a apresentação do ritmo do
baião ocorre já nos compassos 14-23 (seção A2 determinada pelo autor), é preciso ter em
conta que, se considerarmos a estrutura métrica do compasso, a acentuação presente na
mão direita não corresponde a acentuação característica do baião, ou ainda, do tresillo.
Neste caso, há uma antecipação da última figura rítmica. Enquanto o tresillo é constituído
pela estruturação temporal 3+3+2, a estrutura apresentada pela mão direita é 3+2+3.
Entretanto, a afirmação de Schafaschek (2017) pode ser considerada assumindo um
“tresillo deslocado”. Isto é, a repetição da fórmula 3+2+3 (como se verifica nos
compassos de 14 a 18) resulta, eventualmente, na figura rítmica do baião: 3+2+3+3+2+3.
Corroborando com esta ideia, está a sequência de acento e sforzando presentes na segunda
metade do segundo tempo e na segunda metade do terceiro tempo, respectivamente,
evidenciando o fim e o recomeço do tresillo.

3 2 3 Evidência do recomeço da figura do


tresillo.

Exemplo 11 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos atrás da Serra Calunga (1926), compasso 14.
Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

53
O crescendo, a partir do compasso 19, se intensifica com uma mudança de
acentuação que passa a marcar a primeira de cada três colcheias e atinge o seu clímax no
compasso 21. É, portanto, a partir do compasso 24 que o anterior “baião adiantado” se
afirma como tresillo persistente. Este último articulado de quatro formas diferentes, ao
longo dos compassos 24 a 36.

3 3 3

Exemplo 12 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos atrás da Serra Calunga


(1926), compassos 19 e 20. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

3 3 2

Exemplo 13 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 –


Vamos atrás da Serra Calunga (1926), compasso
24. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

Paralelamente a afirmação da síncope brasileira estruturada como tresillo, na mão


esquerda Villa-Lobos apresenta uma breve melodia a partir do compasso 26, cuja figura
rítmica também constitui uma síncope, desta vez não o tresillo, mas a chamada síncope
característica, identificada por Mário de Andrade – ainda que em modo ritmicamente
aumentado.

54
Síncope característica:

Exemplo 14 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos atrás da Serra


Calunga (1926), compasso 27. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão,
1927.

Esta pequena melodia apresentada entre os compassos 26 e 33, com a


predominância da figuração rítmica acima apresentada, antecipa o modelo rítmico a ser
utilizado aquando da apresentação da melodia folclórica que é o mesmo com que a
melodia é apresentada no Guia prático (Villa-Lobos 2009c, 52-53).

Síncope característica

Exemplo 15 - “Vamos atrás da serra, ó Calunga!”. Compassos Exemplo 16 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos
6 e 7. (Villa-Lobos 2009c, 52-53). atrás da Serra Calunga (1926), compassos 38 e 39. Rio de
Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

A melodia folclórica (compassos 38-45) se apresenta “estridente” (como consta


escrito na partitura) de forma a transpassar o emaranhado de acordes dissonantes na região
grave do piano. Ouve-se uma grande e densa massa sonora onde só é possível reconhecer
o tema folclórico. Como transição à seção seguinte em que se retorna à figura do tresillo
(compasso 51), volta-se a ouvir uma acentuação de três em três colcheias como já se tinha
visto na transição do compasso 19. É na seção C que o compositor expressa de forma
mais evidente a “brincadeira” com as variadas formas de se obter o sincopado. A leveza
com a qual o tresillo é, incialmente, apresentado é construída a partir do contraste com a
seção anterior, contraste este que pode ser caracterizado principalmente pela passagem

55
do registro grave para o agudo do piano e pela mudança para uma harmonia consonante
e praticamente estática que acompanha o tresillo.

Passagem do registro grave


para o agudo.

Harmonia consonante e
estática.

Exemplo 17 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos atrás da Serra Calunga


(1926), compassos 51 a 53. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

Na primeira subseção, C1 (compassos 51-56), a fórmula do tresillo está presente


não só na melodia principal, com os devidos acentos, mas também no tenor, obtendo
maior destaque. É a partir do compasso 57 que a estaticidade dá lugar ao movimento.
Quase como um desenvolvimento do gesto rítmico anterior – gesto esse que enfatizava o
tresillo – nesse trecho (compassos 57-72), verifica-se uma complexa combinação de
nuances rítmicas sincopadas, cujo resultado sonoro aproxima-se de uma referência ao
choro e ao samba. Sobre esta relação, comum na obra de Villa-Lobos, Salles (2018, 238)
afirma:

O hibridismo que permeia toda a cultura brasileira atravessa classificações baseadas em aspectos
etnográficos. O choro e o samba, por exemplo, manifestam a um só tempo elementos da rítmica
afro-brasileira, por meio do estereótipo da síncopa, e de progressões rítmico/melódicas trazidas
por portugueses e outros povos europeus. Assim, de certa forma, todas as tópicas aqui listadas são
de alguma forma uma espécie de tropo, no sentido atribuído por Robert Hatten. (Salles 2018, 238)

De forma a simplificar a análise deste trecho (correspondente a seção C2), o


mesmo será dividido em 2 partes – C2a (compassos 57-60) e C2b (compassos 60-65). O
ponto em comum que caracteriza toda a seção C2 são os “galopes” (semínima pontuada
seguida de colcheia) como ostinato na mão esquerda. Tal fórmula rítmica também se
apresenta de forma recorrente no samba e no choro evidenciando o “escorregar” dos
semitons que, neste caso, são a terça do acorde ré maior (fá sustenido) e a sétima do
acorde de lá maior (sol). Estes dois fatores, harmônico-rítmicos, constituem uma
figuração característica do samba e do choro, dentre outros gêneros derivados.

56
Para além da fórmula rítmica da mão esquerda, o trecho C2a apresenta outras duas
características que corroboram para o tropo, na acepção de Hatten (1994, 170), choro-
samba. Primeiro, a acentuação da linha mais aguda que reitera o tresillo relembrando a
importância deste. Em segundo, estão as “figurações de preenchimento”, no contralto,
que podem sugerir “típicas improvisações cadenciais do choro” (Salles 2018, 239).

Tresillo

“Figurações de preenchimento”

Galope

Exemplo 18 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos


atrás da Serra Calunga (1926), compassos 57 a 60. Rio de
Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

No trecho C2b, enfatizada, também, pela articulação da mão esquerda, está a


síncope característica, construída a partir dos intervalos de sexta e oitava na mão direita.

Síncope característica

Exemplo 13- Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 8 – Vamos atrás da Serra


Calunga (1926), compassos 60 e 61. Rio de Janeiro: Casa Arthur
Napoleão, 1927.

Apesar da falta de acentuação e do aparente ritmo métrico proporcionado pelas


colcheias da mão direita, as diferentes alturas promovem a sensação sincopada do famoso
“garfinho” (semicolcheia-colcheia-semicolcheia), como é chamado no meio da música
popular brasileira. Além de ser, como já foi concluído, uma fórmula rítmica recorrente na
música brasileira em geral, o “garfinho”, assim como o “galope”, encontra-se
especialmente presente no choro, gênero com o qual Villa-Lobos teve especial contato.
O restante da seção C apresenta uma repetição, quase idêntica, das subseções C1 e C2.

57
Adiante, na Ciranda n°8, retorna-se à introdução, à seção A e finaliza-se com uma
pequena coda.
No caso desta Ciranda, o tópico síncope brasileira enfatiza a herança musical
africana assinalada tanto pelo título da canção folclórica que dá nome à Ciranda, como
pela ênfase na própria utilização variada da síncope, aludindo à riqueza rítmica
proveniente da cultura musical africana e do sincretismo resultado da interação com a
cultura europeia. No decorrer da pequena peça, Villa-Lobos brinca com a ideia do
sincopado, variando os registros em que este se encontra, contrastando caráteres através
das mudanças de harmonia, construindo outras melodias que se tornam quase tão
importantes quanto a própria melodia folclórica e surpreendendo o ouvinte na medida em
que “brinca” com a acentuação e articulação expectadas.

2.5.4 Outros casos

A presença do tópico síncope brasileira nas Cirandas não se restringe aos casos
analisados anteriormente e reaparece em diversos trechos com maior ou menor ênfase no
decorrer das pequenas peças. Portanto, para além dos casos acima analisados, outros casos
merecem atenção.
Tem-se, por exemplo, o caso da Ciranda nº 14 – A canoa virou. Nesta, através de
uma estrutura complexa que combina a organização rítmica dos sons, as acentuações e o
registro dos sons, alcança-se uma sonoridade sincopada, em forma de tresillo, sugerindo
a presença do tópico síncope brasileira. Num acompanhamento rápido e agitado em
semicolcheias, através da repetição da mesma nota em diferentes oitavas, cria-se um
acompanhamento caracterizado, essencialmente, pela densidade sonora. Contrapondo
com este, a mão direita interpreta a melodia folclórica em séries de acordes dispostos
verticalmente, ritmicamente organizados em galope ou em tercina. As acentuações das
figuras da mão direita não correspondem às da mão esquerda, tornando os padrões

58
rítmicos mais difusos e enfatizando o caráter agitado que se sente quando ao se ouvir a
peça.
Na Ciranda n°11 – Nesta rua, nesta rua, por sua vez, a síncope brasileira surge,
na mão direita, sobreposta a um formato tercinado da mesma, na mão esquerda. Segundo
Mário de Andrade (1962, 34), que utiliza justamente um trecho desta Ciranda como
exemplo deste recurso, a forma tercinada da síncope está presente em outras obras de
Villa-Lobos e pode ser descrita como “a diluição característica da síncopa em tercina com
acentuação central” onde “a pseudo síncopa ora se dilui em tercina ora traz acentuação
mais forte no lugar ritual da tesis” (Andrade 1962, 34). É na mão esquerda dos compassos
11-12 e 15-16 que este recurso se torna evidente:

Acentuação e registro cria


sonoridade sincopada.

Figurações rítmicas da
melodia – galope e tercina.

Exemplo 20 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 14 – A canoa virou (1926), compasso 17. Rio de Janeiro: Casa
Arthur Napoleão, 1927.

Tresillo Síncope diluída

Exemplo 14 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 11 – Nesta rua, nesta rua (1926), compassos 11 e 12. Rio de Janeiro:
Casa Arthur Napoleão, 1927.

59
2.6 A citação folclórica como tópico nacionalista nas Cirandas

Souza (2010) apresenta uma análise aprofundada de Rudepoema – peça de Villa-


Lobos para piano escrita no mesmo ano das Cirandas – sobre a qual, dentre outras coisas,
disserta acerca da Teoria dos tópicos e a sua aplicação na referida obra. A partir de sua
análise, o autor afirma: “Portanto as significações no Rudepoema não dependem, em
nenhuma instância, do reconhecimento de citações folclóricas, mas com toda certeza da
interpretação de tópicas estilísticas” (Souza 2010, 182). Sendo as Cirandas justamente
um conjunto de pequenas peças onde nelas se inserem melodias folclóricas, faz-se
importante reconhecer o papel da citação folclórica e clarificar sua importância e sua
condição de tópico nas Cirandas.
Nesse sentido, o primeiro capítulo desta dissertação pode trazer algumas respostas
essenciais a esta questão. O paratexto, e sua dimensão simbólica já discutida, torna-se
fator fundamental para assinalar a importância da citação folclórica nas Cirandas na
medida em que os títulos e subtítulos são, justamente, os mesmos (ou referentes a uma
das versões) dos temas folclóricos aos quais a melodia pertence. Adiante, outro ponto a
ser considerado é o vínculo destas citações melódicas com o entorno villalobiano –
vínculo este que, por sua vez, pode configurar outras relações transtextuais. Tal diálogo
constrói-se de forma complexa e intrincada, especialmente através das camadas
texturais12 que vão se sobrepondo, interagindo e ressignificando a melodia folclórica,
tanto estruturalmente quanto simbolicamente. Por estes fatores, as Cirandas constituem-
se como peças onde a relação entre melodia e entorno é significativamente simbiótica e
parte da compreensão desta interação é possível através do reconhecimento do próprio
tema folclórico. Assim, retornando à citação de Souza (2010, 182) que inicia esta seção,
o caso das Cirandas concilia a interpretação dos tópicos – que, por sua vez, se manifestam
também no entorno villalobiano – com a citação da melodia em si e suas implicações
enquanto folclore, tornando-a, também ela, um tópico.
Entretanto, considerar a citação folclórica um tópico, por si só, significa associar
a citação a uma esfera de intertextualidade, nos termos de Genette (1982), onde cada uma

12
Entende-se o conceito de “camadas texturais” conforme desenvolvido por Salles (2009, 69) em seu
livro Villa-Lobos: Processos composicionais.

60
das melodias se insere quase literalmente num emaranhado criativo. Nessa perspectiva,
aborda-se a melodia folclórica pela sua presença quase entre aspas nas pequenas peças,
onde o próprio ato de citar esta melodia folclórica constitui-se como uma possibilidade
de figuração característica do discurso musical de Villa-Lobos, especialmente nas
Cirandas, mas não só. Tal concepção não exclui a presença de outros tópicos relacionados
com próprias citações folclóricas, pelo contrário, propõe a interação entre os mesmos.
O início deste capítulo abordou as noções de modernismo, nacionalismo e sua
ligação com outros conceitos em voga na época, como o “primitivismo” e o “exotismo”.
Assim, partindo desta primeira abordagem e alocando o tópico citação folclórica num
contexto específico, torna-se importante reconhecer que sua presença nas Cirandas, ou
até seu protagonismo, constitui, dentre outras coisas, uma forma de representação deste
nacionalismo e das suas implicações. Como já se constatou, as Cirandas foram compostas
num momento de efervescência da exploração do folclore como fonte para a criação
musical erudita brasileira, especialmente a partir da proposta de Mário de Andrade. Para
além da possível relação que o escritor tem com a criação das Cirandas, onde o mesmo
pede à Villa-Lobos uma composição a partir do folclore, o início emblemático do Ensaio
sôbre a música brasileira de Mário de Andrade (1962), elaborado justamente na década
de 1920, assinala o posicionamento do autor:

O compositor brasileiro tem de se basear quer como documentação quer como inspiração no
folclore. Este, em muitas manifestações caracteristiquíssimo, demonstra as fontes donde nasceu.
O compositor por isso não pode ser nem exclusivista nem unilateral. Se exclusivista se arrisca a
fazer da obra dele um fenômeno falso e falsificador. E sobretudo facilmente fatigante. Se
unilateral, o artista vira antinacional: faz música ameríndia, africana, portuga ou europeia. Não faz
música brasileira não. (Andrade 1962, 29)

É a partir desta perspectiva que, nas Cirandas, a citação folclórica configura-se


como um tópico musical, deslocada de seu “contexto original” passa a referenciar não só
a ela própria, mas a uma dimensão nacionalista (e seus desdobramentos) que a circundava
e se edificava através da sua presença.

61
2.7 O ostinato como tópico nacionalista nas Cirandas

Dentre outras técnicas, em seu livro Villa-Lobos: Processos composicionais¸


Paulo Salles (2009) aborda a utilização de camadas texturais como técnica de composição
na obra de Villa-Lobos, principalmente a partir de 1918. De acordo com o autor, “o
conceito de textura permite relacionar todos os elementos do tecido composicional sem
depender de uma hierarquização tonal ou serial” (Salles 2009, 69). Assim, no caso de
Villa-Lobos, muitas das obras da década de 1920, incluindo as Cirandas, apresentam-se
nesta forma de “justaposição de camadas autônomas de material musical” (Salles
2009,77), as quais o compositor manipula com certo grau de liberdade. É justamente esta
característica das Cirandas que permite uma relação conveniente desta obra com o
conceito de texto e transtextualidade desenvolvidos no primeiro capítulo desta
dissertação. Portanto, reitera-se a afirmação de Salles já parcialmente apresentada
anteriormente: “Nas 16 Cirandas para piano (1926), vemos Villa-Lobos reiterando essas
proposições, reescrevendo escutas de suas paisagens sonoras interiores. Sua técnica de
justaposição de camadas está estabelecida, e as cirandas são uma espécie de concatenação
de ostinati sobre os quais e entre os quais as melodias folclóricas são inseridas” (Salles
2009, 83).
Ao justapor camadas e explorar “blocos sonoros”, Villa-Lobos “passa a trabalhar
no eixo vertical da simultaneidade, criando para isso estruturas múltiplas nas quais o papel
do ostinato é fundamental, dando organicidade horizontal aos eventos de fontes diversas”
(Salles 2009, 78). Nas Cirandas não é diferente, pelo contrário, as dezesseis peças
apresentam, pelo menos, um ostinato que, por vezes, percorre-as do início ao fim. As
diferentes estruturas de ostinatos propostas ao longo das dezesseis Cirandas constituem
uma espécie de paradoxo na medida em que o ostinato dialoga com a melodia folclórica
citada, e com outras criações (que resultam em outras camadas texturais), e, ao mesmo
tempo, se apresenta com alguma independência, característica desta tentativa de
horizontalidade que o próprio ostinato propõe.
Pode ser arriscado afirmar que a presença do ostinato, por si só, numa determinada
obra, possa caracterizar um tópico. Porém, nas Cirandas, alguns fatores apontam para
esta ideia: primeiro, a já mencionada recorrência do ostinato em todas as pequenas peças,
tornando este, também, um fator de unificação nas Cirandas quase tão importante e
enfático quanto as citações folclóricas; depois, a significação que a utilização de um
ostinato como recurso musical pode vir a abarcar em razão de todo o contexto estético já

62
aqui referido. Nesse sentido, a utilização deste recurso ultrapassa um objetivo técnico de
composição e se torna, também ele, um símbolo, dotado de significado no discurso
musical villalobiano nas Cirandas. Além disso, assumindo as palavras de Piedade (2013,
50), os tópicos, na “sua plenitude significativa, seu efeito de tópica se dá não tanto por
sua estrutura interna mas pela posição de sua articulação no discurso musical”, torna-se
essencial considerar a interação e intersecção de diferentes tópicos numa mesma obra e
num mesmo trecho musical. Como é o caso de algumas Cirandas, o tópico ostinato,
enquanto recurso – e, por isso, automaticamente imbuído do caráter estático e repetitivo
– encontra-se com outros tópicos relacionados à figura ou ao elemento musical a partir
do qual o ostinato é constituído – como por exemplo o tópico da síncope brasileira que
aparece diversas vezes como ostinato.
Assim, a partir da compreensão do contexto artístico e estético, depreende-se que
o tópico ostinato nas Cirandas pode representar a dança (de roda, neste caso), o contato
com a música popular e o “primitivismo”. A primeira, talvez a mais óbvia, relaciona-se
com o atributo mais enfático de um ostinato, a repetitividade. A dança de roda é retratada
na medida em que a maioria dos ostinatos apresentados nas Cirandas são de caráter mais
rítmico. Isto é, não se trata só da repetição de um padrão musical, mas da ênfase no
aspecto rítmico deste padrão através da acentuação e da exploração dos diferentes
registros sonoros no piano. Tal ênfase não só se relaciona com a própria movimentação
corporal inerente à dança, que se dá maioritariamente a partir do ritmo, como com o bater
dos pés e das mãos característicos das cirandas e das brincadeiras relacionadas às canções
folclóricas.
O caráter nacionalista relacionado ao ostinato, encontra-se, também, associado à
representação da música popular e da importância da “cultura popular”, como já foi
abordado anteriormente, para a estética modernista brasileira. O contato de Villa-Lobos
com a música popular, por meio do choro em particular, é fato conhecido e comprovado
por diversos musicólogos. Como refere Donatello Grieco em seu livro Roteiro de Villa-
Lobos:

A mocidade de Villa-Lobos transcorreu nesse ambiente noturno de canto chorado, ao lado de


Catulo da Paixão Cearense, sob a inspiração maior da imaginação e da arte de Ernesto Nazaré.
[…] e o próprio Villa-Lobos, já dominando plenamente o violão, armazenaria, durante esses anos
boêmios, o vasto material do ambiente carioca, das noites de luar, das festinhas familiares, tudo
quanto viria a constituir uma fonte única de inspiração para seus Choros […]. (Grieco 2009, 19)

63
A interação de Villa-Lobos com a música popular não estaria circunscrita ao choro
uma vez que as suas várias viagens13 pelo Brasil teriam, também, proporcionado um
contato alargado com a variedade musical popular e folclórica inerente ao extenso
território brasileiro. Nesse sentido, o ostinato identifica-se com e, ao mesmo tempo,
representa um elemento particularmente presente na música popular brasileira: a chamada
clave. As Time-lines, Linhas-Guia ou claves (dentre outras nomenclaturas), designam-se,
simplificadamente, como uma forma de marcação temporal, isto é, um padrão rítmico que
“comanda” um determinado gênero musical. Em seu artigo intitulado “A utilização das
Linhas-guia na performance e no ensino da música brasileira”, José Alexandre Carvalho
(2010) discute estes conceitos apresentando uma breve retrospectiva na qual o termo time-
line (designado pelo etnomusicólogo Kwabena Nketia) surge, primeiramente, como um
recurso utilizado comumente na música africana. Para além de outros acadêmicos que
exploraram esta relação, destacam-se os estudos da presença deste tipo de padrão na
América Latina, especialmente com as chamadas claves cubanas. Como refere Carvalho
(2010, 789), “em uma discussão envolvendo música cubana fatalmente será abordado o
assunto clave”.
Apesar de já assimilada no contexto da performance popular, no Brasil têm se
desenvolvido estudos acadêmicos, relativamente recentes, sobre as mais variadas claves
associadas a gêneros como o samba, o choro, o maracatu, dentre outros. Nesse sentido,
considera-se a definição proposta por Carvalho (2010, 792) onde a clave é “uma marcação
regular e assimétrica, via de regra de origem africana, que, sobreposta a uma base formada
por pulsos regulares e simétricos, cria uma situação de tensão-relaxamento ou o contrário,
na qual a marcação rítmica é favorecida e o estilo fixado”. A partir disto, no caso das
Cirandas, torna-se possível aproximar o ostinato, enquanto um recurso utilizado na
música erudita, desta “marcação regular” que se encontra enraizada na música popular
brasileira. Ademais, a maioria dos ostinatos encontrados nas pequenas peças, como se

13
Algumas das biografias escritas sobre Villa-Lobos defendem que o compositor teria feito viagens pelo
Brasil no período de 1905 a 1912, porém, pouquíssimas são as provas de que tais viagens teriam
efetivamente ocorrido (Guérios 2003, 86). De acordo com Guérios (2003, 86) são somente dois os registros
escritos, encontrados no Museu Villa-Lobos, que colocam o compositor em Paranaguá (PR) e em Manaus
(AM). Nesse sentido, torna-se importante considerar a afirmação do autor: “Os relatos de Villa-Lobos, no
entanto, são muito mais extensos. Anos mais tarde, ele chegaria a afirmar que cruzara todo o interior do
Brasil, incluindo os rios Amazonas e Xingu, a bordo de uma canoa. Não por acaso, esses relatos
inverossímeis [sic] surgiram justamente após Villa-Lobos tornar-se um músico "nacional". Hoje parece
mais plausível que o compositor os criou para que pudesse, legitimamente, evocar para si mesmo o papel
do grande músico "nacional", aquele que conhecia todas as manifestações musicais de seu povo” (Guérios
2003, 86).

64
verá adiante, são sincopados, corroborando com o caráter “assimétrico” da definição de
clave. Sobre esta relação, ostinato-clave, e seus contextos, erudito-popular, Carvalho
(2010, 791) propõe uma reflexão válida:

Em primeiro lugar a marcação do ritmo ou do pulso na música européia jamais toma parte atuante
na performance. Ela pode (e geralmente deve) ser explicitada em um momento inicial por meio de
uma contagem ou de um gesto, mas, a partir do primeiro compasso fica retida apenas no intelecto
e no corpo dos músicos envolvidos, sendo transmitida para a audiência exclusivamente por meio
do discurso musical, que pode ou não facilitar o seu entendimento. No mundo da música européia
de concerto o som audível da marcação dos tempos, seja através de batidas do pé ou da mão, é
extremamente mal visto por músicos e pela audiência, só sendo permitido em situações de
aprendizado. Na música popular ocorre exatamente o contrário. Bater palmas no ritmo da música,
ou marcá-lo nos pés é a prova de que estamos gostando da mensagem da canção, e é por este
motivo considerada uma manifestação bem vinda. Esta marcação é ainda mais desejada se for feita
em algum ritmo que auxilie o desempenho da música tocada, o que pode contribuir, algumas vezes
de maneira decisiva, para o sucesso da performance. (Carvalho 2010, 791)

É nesse sentido que o ostinato utilizado por Villa-Lobos nas Cirandas evoca,
também, a esfera da música popular brasileira e, assim, os preceitos nacionalistas que o
modernismo brasileiro pregava.
A relação ostinato-primitivismo encontra-se associada à temática indígena e
sedimentada, especialmente, pela investigação de Gabriel Moreira (2010) intitulada “O
elemento indígena na obra de Villa-Lobos: observações músico-analíticas e
considerações históricas”. Como já referido na seção 2.3, dentre outros elementos
identificados pelo autor, está o ostinato como recurso essencial na figuração da ideia de
“repetição/estaticidade”, sendo estas características de um “primitivismo” associado à
música e à cultura indígena. Moreira (2013) afirma que, com a utilização do ostinato
como recurso à composição, Villa-Lobos “partilha do uso de uma estrutura musical
bastante apreciada por compositores da primeira metade do século XX – como
Stravinsky, de quem já falamos nesse trabalho –, um elemento constitutivo de parte da
linguagem musical da época, concernente ao bárbaro e exótico”. O autor ainda estabelece
paralelos com Schoenberg, citando seu tratado de composição, enquanto “teórico que
reclamou para si a continuidade da tradição musical germânica no século XX” (Moreira
2013):

65
Mas como se constrói essa relação entre ostinato e o não-civilizado? Dentro da composição
musical canônica europeia, tradicionalmente, o ostinato era considerado, segundo Schoenberg
(2008), como um recurso a ser evitado na composição. Seja por ser o oposto do desenvolvimento
variado - qualidade musical extremamente apreciada na música ocidental de concerto -ou por ser
uma ideia extremamente simples que ao soar repetidas vezes torna-se monótona e sem função
teleológica; o que - para uma análise funcional, orgânica - é um defeito musical: uma célula sem
função, que se repete por toda a estrutura. (Moreira 2013, 29-38)

No contexto em que Villa-Lobos estava inserido, a figura do indígena poderia


representar a esfera mais “primitiva” e, por isso, “pura” da nação brasileira. Logo, a
utilização recorrente de ostinato e toda a ideia de monotonia que o mesmo pode evocar
constrói, também, o conceito de “selvagem” relacionado, neste contexto, aos modos de
vida indígena. É nesse sentido que o estereótipo de uma música “repetitiva, estática e
visceral” pode culminar no uso do ostinato (Moreira 2013). O fato das Cirandas serem
peças que giram, essencialmente, em torno de canções folclóricas infantis, pode torná-
las, aparentemente, distantes de qualquer representação indígena. Porém, é considerando
todo o cenário nacionalista-modernista brasileiro que as mesmas se aproximam desta
tentativa de representação sonora do Brasil que, dentre outras temáticas, inclui o conceito
de “primitivo”, “selvagem”, associado à figura do indígena. Para além do trabalho de
Moreira (2010), Salles (2018, 266) também refere o ostinato como característica do seu
tópico “dança ritual”: “[…] representações quase icônicas dos passos de danças dos povos
indígenas, nas quais as marcações dos chocalhos e batidas de pés têm analogia com certos
ostinatos usados por Villa-Lobos”.
Por fim, ainda se faz importante referir que, apesar destas três ideias – dança,
música popular e “primitivismo” – terem sido aqui abordadas de forma mais ou menos
separadas, seus conceitos e implicações fundem-se num emaranhado de significados. A
dança de roda associa-se ao caráter “primitivo” através, por exemplo, de tópicos como
“dança ritual”, “selvagem”, etc., ou da própria ideia de infância ligada à dança de roda, à
ciranda e a um estágio inicial da vida que é, por isso, “primitivo” (relação esta que será
abordada no próximo capítulo); o “primitivismo”, por sua vez, é parte de uma estética
nacionalista em voga no Brasil dos anos 1920 para a qual é necessário um contato com o
que há de “autêntico” e, por isso, também popular; além disso, já aqui anteriormente
referida, outra característica importante do ostinato nas Cirandas é seu aspecto rítmico
enfático que aproxima este recurso do universo da percussão, universo este que evoca a
herança africana e indígena e, ao mesmo tempo, se relaciona com a dança de roda e com

66
o elemento corporal a ela relacionado – o bater das mãos e dos pés. É considerando o
contexto no qual as Cirandas foram compostas que o ostinato pode passar a ser um tópico
nestas pequenas peças, congregando, por isso, algumas das ideias do discurso musical
presente nas Ciranda, ideias estas partes do conceito de nacionalismo a ser explorado e
legíveis para a audiência do modernismo brasileiro e, em parte, para a vanguarda
europeia.

2.7.1 O Caso das Cirandas nº 6 – Passa, passa Gavião e nº 12 – Olha o passarinho


Dominé
Como já referido, todas as pequenas peças apresentam um ou mais ostinatos com
mais ou menos protagonismo. Nesse sentido, é possível encontrar alguns padrões na
formação destas estruturas musicais, dentre eles, destaca-se a utilização recorrente da
síncope brasileira. Muitos dos ostinatos que caracterizam as Cirandas são constituídos
por este tópico, tornando alguns dos casos já analisados neste contexto exemplos
representativos do tópico ostinato.
Além deste recurso, há outra figuração que se apresenta com certa recorrência
como ostinato em algumas das pequenas peças e será brevemente abordado. Trata-se do
fluxo sonoro, quase ininterrupto, caracterizado pelo desenho ascendente e descendente de
semicolcheias, encontrado nas Cirandas n°6 – Passa, passa gavião e n°12- Olha o
passarinho Dominé.
As Cirandas nº 6 e nº12 referem, no seu título, a figura do pássaro. O ostinato,
nesses casos, parece constituir uma referência musical a esse animal. No caso da Ciranda
nº 6, o ostinato é construído por um desenho melódico num registro principalmente agudo
que alterna escalas ascendentes e descendentes com trilos, podendo aludir ao voo e ao
bater das asas, respetivamente. Na Ciranda nº 12, mantém-se o andamento rápido e a
alternância de registros (com a prevalência de registros mais agudos) e o desenho
melódico é principalmente constituído por escalas ascendentes figurando, talvez até de
forma mais clara, o pássaro a levantar voo.

67
Exemplo 22 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 6 – Passa, passa gavião (1926), compassos 1 e 2. ed. Casa Arthur
Napoleão, 1927.

Trilo

Escalas ascendentes

Registro agudo

Andamento rápido

Exemplo 23 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 12 – Olha o passarinho Dominé


(1926), compassos 1 a 3. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

68
3. Temática infantil: a importância da figura da
criança na trajetória de Villa-Lobos

Neste capítulo, os tópicos síncope brasileira e citação folclórica são abordados em


relação à temática infantil. A figura da criança exerceu um papel ativo e fundamental na
trajetória de Heitor Villa-Lobos não só enquanto compositor, mas como pedagogo. Seu
contato com a infância está representado em muitas das suas obras, essencialmente
através da utilização do folclore, como é o caso das Cirandas. Além disso, a dimensão
paratextual da obra e de cada uma das peças alude a um retrato de infância, retrato que é
reafirmado pelas melodias folclóricas citadas. Assim, tornou-se essencial proceder a uma
releitura dos tópicos já abordados, desta vez sob outro enfoque significativo. À
semelhança do capítulo anterior, antes da análise dos tópicos, aborda-se a infância num
âmbito mais amplo que vai desde a reflexão sobre a poética infantil na música de uma
forma geral, até o contexto brasileiro, com destaque para a utilização recorrente desta
temática na obra de Villa-Lobos.

3.1 A poética infantil na música: de um panorama geral a Villa-Lobos

Muito pouco foi estudado sobre a representação musical da infância. Para além da
esfera educativa – que na trajetória de Villa-Lobos exerce grande importância como se
verá adiante –, a construção sonora da criança feita para e consumida pelo público adulto
não se apresenta com ênfase nos estudos sobre a música erudita. Como afirma Matthew
Roy (2018, 1):

A study of this kind has been largely understudied in the discipline of musicology; while other
humanistic disciplines have developed traditions that treat the topic of childhood as a significant
area of study, musicology, by and large, has neglected it. Both the musical histories of actual
children and the musical constructions of childhood remain unheard and undervalued, and in so
doing we not only miss out on a rich, humanistic, and interdisciplinary discussion, but participate
in the devaluing and marginalization of children’s studies as a scholarly discipline. (Roy 2018, 1)

Apesar disso, a presença da temática infantil, das mais variadas formas, na


tradição musical ocidental é consensual e reconhecida. Dentre os poucos trabalhos a esse
respeito, destaca-se está o livro de Ian Sharp (2001) intitulado Classical music's evocation

69
of the myth of childhood e as teses de Rachelle Woolston (2012) – “The Voice of Children
in Art Song: A Study of Six Cycles Involving a Child’s Perspective” – e Matthew Roy
(2018) – “The Musicalization of Romantic Childhood: Genre, Power, and Paradox” – as
quais oferecem abordagens mais amplas sobre o tema. O primeiro livro reflete acerca das
possíveis formas de interação entre os universos adulto e infantil na música vocal e
instrumental através de três esferas: a fonte de criação, que pode ser uma criança ou um
adulto; a personagem, infantilizada ou adulta, e o público-alvo, crianças ou adultos. A
partir disto, Sharp desenvolve o que chama de “routes of musical experience”,
enumerando possíveis formas de interação:

1. Adults assume a mode of childhood to relate to children.


2. Adults retain a mode of adulthood to relate to children.
3. Adults assume a mode of childhood to relate to adults.
4. Adults retain a mode of adulthood.
5. Children retain a mode of childhood to relate to adults.
6. Children assume a mode of adulthood to relate to adults.
7. Children retain a mode of childhood to relate to children.
8. Children assume a mode of adulthood to relate to children. (Sharp 2001, 31)

Tal conceptualização passou a ser especialmente significativa nos trabalhos


posteriores que abrangem o tema da infância. No que concerne às teses, em “The Voice
of Children in Art Song: A Study of Six Cycles Involving a Child’s Perspective”,
Woolston (2012) analisa seis ciclos de canções com temática infantil a partir da
configuração acima apresentada por Sharp (2001). Os ciclos são: A Garland for Marjory
Fleming de Richard Rodney Bennett, Sieben Lieder von Elisabeth Kulmann Op. 104 de
Robert Schumann, The Children de Theodore Chanler, I Hate Music! A Cycle of Five Kid
Songs for Soprano de Leonard Bernstein, La courte paille de Francis Poulenc e A Charm
of Lullabies de Benjamin Britten. Finalmente, a recente tese de Matthew Roy (2018),
aborda a temática infantil a partir da mudança de status que caracterizam a criança ao
longo dos séculos.
Em The Musicalization of Romantic Childhood: Genre, Power, and Paradox, Roy
(2018) explora as concepções musicais, manifestas por adultos, que expressam o “que as
crianças são ou deveriam ser” enquanto produtos culturais (Roy 2018, 8. Tradução do
autor). Dividindo a temática infantil na música em dois grupos – música para criança e
música sobre criança –, o autor reflete essencialmente sobre dois períodos: o Iluminismo

70
e o Romantismo. No primeiro, a criança é separada do adulto mas ainda associada a um
estado de incompletude: “The ‘imperfection’ of this stage of nonage became central to
the Enlightenment’s teleological view of human development in which adulthood—
specifically adulthood as defined by eighteenth-century, intellectual, European
standards—stood for a perfected or at least perfectable state of completion and stasis”
(Roy 2018, 21-2).
Tal categorização – que concebe a infância como “the human species in a state of
natural ignorance, pre-rational and pre-linguistic mind, and sensitivity to environmental
stimuli” (Roy 2018, 25) – tende a retornar a um conceito já abordado neste trabalho de
uma perspectiva de representação do nacional: o “primitivismo”. Como contrária à
“civilização” (representada pela “sociedade europeia”), a criança se torna comparável à
ideia de nativo ou “selvagem”. De acordo Roy (2018), foi a partir desta abordagem,
juntamente com a noção de Volk, desenvolvida por Johann Gottfried Herder (1744-1803),
que surge uma nova maneira de conceber a relação criança-adulto: o estágio da infância
deixa de ser subvalorizado e passa a ser desejado. A infância passa a significar uma forma
transcendente de conexão com a natureza, com a ingenuidade e simplicidade – em
detrimento da complexidade que é a civilização e a vida adulta. O “ser criança”, associado
ao mais novo conceito de “folclore”, torna-se ferramenta fundamental para alcançar o
“necessário” estágio infantil da própria humanidade.

This possibility of cultural redemption prompted Herder to engage in the collection of Volkslieder
(folksongs), publishing two volumes of selected and translated texts from various parts of the
world (1778–79). Herder argued that by reading these poems, the literate, urban public could begin
to heal the rift caused by their estrangement from nature and revitalize their relationship to their
original, childlike selves. The first volume begins with a direct message to his readers: “I dedicate
to you the voice of the Volk, of scattered humanity... I dedicate to you the rapture of when soul
binds itself to soul, and is again united with itself (Herder, Sämmtliche Werke, vol. 25, 645).”
(Roy 2018, 28)

Ainda relativamente à concepção iluminista de criança, torna-se indispensável


uma referência a Rousseau. Em sua emblemática obra Emílio ou da Educação (1979),
publicada originalmente em 1762, o autor apresenta uma perspectiva do desenvolvimento
humano desde o nascimento até aos 25 anos de idade, dividindo-a em fases
correspondentes aos diferentes estágios da vida humana. Desta obra, duas proposições
importantes, e inovadoras na perspectiva iluminista, podem ser aqui mencionadas e

71
pensadas em relação aos preceitos villalobianos. A primeira está relacionada com a
alteração da concepção de infância: ao invés desta ser um estágio caracterizado pela
incompletude, passa a ter um valor em si mesma e, ainda mais significativo, uma
importância fundamental na formação do homem: “Não se conhece a infância: com as
falsas ideias que dela temos, quanto mais longe vamos mais nos extraviamos. Os mais
sábios apegam-se ao que importa que saibam os homens, sem considerar que as crianças
se acham em estado de aprender. Eles procuram sempre o homem na criança, sem pensar
no que esta é, antes de ser homem”. Indo de encontro com este ponto de vista, as Cirandas
apresentam um retrato multifacetado da infância a partir do folclore. A segunda
proposição refere-se à preocupação com a educação infantil a qual, para Villa-Lobos
através da música, representa um meio elementar de se alcançar uma espécie de “civismo
e disciplina social coletiva” (Villa-Lobos 1991 em Santos 2010, 7).
Retornando à relação música-infância, foi no Romantismo, nomeadamente na
década de 1830, que esta relação se tornou mais significativa, a qual, em muitos aspectos,
perdura até aos dias atuais. Sobre esta questão Roy esclarece:

Composers and publishers did not merely make use of visual and textual signifiers in order to
attract the emerging category of child consumers, but to establish and propagate a Romantic
framing of childhood during the nineteenth century. Constant references to the natural world,
fantasy, and emotions reinforced the child’s nearness to nature, transcendence, and spiritual
wholeness. This in turn recast potentially mundane topics such as play, dancing, and sleeping as
deeply significant activities that reflects the child’s inherent innocence unsullied by the
contamination of the adult experience. (Roy 2018, 48)

Nesse sentido, a obra Kinderszenen (Cenas Infantis) (1838) de Schumann,


constitui-se como um marco, sendo o primeiro conjunto para piano – composto por um
compositor canônico – que procura, explicitamente, representar uma ideia musical de
infância. As “Cenas Infantis” de Schumann são consideradas “um divisor de águas no
surgimento da música infantil que teve um impacto duradouro na trajetória do gênero”
não só por ser o primeiro conjunto para piano nestes termos, mas por apresentar
“poderosamente a infância romântica, entrelaçando a produção musical do século XIX
com a criação de mitos da infância idealizada de formas que perduraram ao longo do
século e além” (Roy 2018, 49. Tradução do autor).

72
Salles, acordando com esta perspectiva, insere Villa-Lobos numa posição de
formulador de uma representação sonora da criança não só a partir do cenário folclórico
brasileiro, mas para a construção de um ideário de infância “abrasileirado”:

Na literatura musical, o universo infantil tem espaço importante, estabelecido no século XIX.
Robert Schumann, em suas Kinderszenen (1838), definiu um modelo de representação sonora da
criança, visitado também por Debussy em Children’s Corner (1908). Em ambas as peças para
piano, não se trata propriamente de material didático de técnica pianística, mas de visões poéticas
sobre a criança e o sentido da infância. Essa abordagem foi adotada muitas vezes por Villa-Lobos,
que buscou abrasileirar sua representação associando-a com cantigas e folguedos típicos. (Salles
2018, 248)

Não cabe aqui, neste trabalho, estabelecer uma discussão suficientemente


aprofundada sobre a concepção da criança no Brasil do século XX, ou ainda no
modernismo brasileiro, uma vez que tal tarefa requer mais tempo e mais espaço. No
entanto, torna-se eficaz fazer dialogar as concepções do ideário infantil trabalhadas por
Roy (2018) e expressas por Rousseau com o universo villalobiano, onde as Cirandas se
tornam um exemplo significativo no que diz respeito às interações entre adulto-música-
infância. A partir disto, algumas conclusões relevantes podem ser inferidas.
A primeira refere-se à presença de parte das concepções iluminista e romântica na
ideia de infância que Villa-Lobos representa musicalmente. Como já se concluiu no
capítulo anterior, a relação entre nacionalismo e primitivismo no Brasil dos anos 1920 era
evidente e até necessária. Os ideais antropofágicos consistiam num “tipo de redefinição
da cultura brasileira em face da cultura-matriz europeia, num movimento de autêntica
independência por meio de um ‘primitivo’ bem brasileiro” (Nascimento 2015, 388). Ao
mesmo tempo, o caráter “exótico” configurava-se como ferramenta eficaz para a
internacionalização da música erudita brasileira e da própria carreira de Villa-Lobos.
Constrói-se, assim, uma relação que tende a caminhar por uma linha tênue –
“primitivismo/exotismo” – onde os objetivos do modernismo e do nacionalismo brasileiro
se confundem com a expectativa da esfera internacional. A criança surge a fazer convergir
estes contextos aparentemente distantes. Associa-se ao “primitivo”, mas também ao
autêntico e nacional. Encontra-se com a natureza através da sua suposta ingenuidade e
instintividade, natureza esta que além de inspiração artística secular, constitui-se como
símbolo nacional brasileiro.

73
A assiduidade de temas infantis expressos na obra de Villa-Lobos e o
protagonismo da infância na sua trajetória enquanto educador – como se irá comprovar
mais adiante – corroboram com a ideia de que a infância exerce, para o compositor, um
papel particularmente importante na construção da complexa relação entre
“primitivismo”, folclore, infância e nacionalismo:

Hoje não é mais possível fazer abstração do material fornecido pelo folclore musical para as
questões educacionais da infância. Pois é perfeitamente intuitivo que a consciência musical da
criança não deve ser formada tão somente pelo estudo dos mestres clássicos estrangeiros mas,
simultaneamente, pela compreensão racional e quase intuitiva das melodias e dos ritmos
fornecidos pelo próprio folclore nacional, o que facilmente se compreende, pela analogia que
existe entre a mentalidade ingênua, espontânea, e primária do povo e a mentalidade infantil,
igualmente ingênua e primitiva. (Villa-Lobos 1991 citado em Santos 2010, 98)

Um exemplo prático desta relação que permeia a infância e a ideia do que é


“primitivo” está na recorrente utilização de ostinatos nas Cirandas. Como já se abordou
anteriormente, este recurso pode se configurar como uma alusão ao caráter “primitivo” e
até “selvagem” requerido para a construção da imagem sonora do Brasil no início do
século XX. Ao mesmo tempo, o ostinato como empregado por Villa- Lobos nas Cirandas,
frequentemente associado a estruturas rítmicas bem marcadas e, essencialmente, à
síncope, também refere o caráter de dança e brincadeira, intrinsecamente associado ao
gênero ciranda. Exemplos concretos desta utilização serão desenvolvidos no final deste
capítulo.
Apesar da pouca bibliografia referente à representação sonora da criança na
música erudita, no que concerne ao trabalho de Villa-Lobos, destaca-se um texto de Mário
de Andrade para o jornal O Estado de São Paulo, intitulado “Sonoras Crianças” (1939,
4-5). Praticamente não explorada em nenhum outro estudo, a crítica de Andrade (1939)
incide sobre as tentativas de retratar a criança musicalmente por parte de três
compositores – Schumann, Mussorgsky e Debussy. Após discorrer sobre os sucessos e
insucessos que, de acordo com o autor, assombram os referenciados compositores,
Andrade (1939) constata que é em Villa-Lobos que a criança é representada na sua forma
mais "inteira”:

Quem, a meu ver, conseguiu adquirir toda esta largueza interpretativa, e nos revelou a criança em
mais audaciosa e larga integridade foi Villa-Lobos. É certo que o compositor brasileiro não

74
dedicou apenas um momento da sua criação ao tema, como fizeram os outros três. Villa-Lobos,
pelo contrário, já compôs para perto de uma centena de peças interpretando a criança, divididas
em várias séries, de que as mais célebres são o “Momo Precoce”, a “Prole do Bebê” e a esplêndida
coleção das “Cirandas”. [...]
É que Villa-Lobos, já agora com toda a liberdade da música instrumental, não apenas nos interpreta
com leveza o mundo infantil, como na “Prole do Bebê”, mas também todo o seu drama interior. E
surgem então visões assombradas, de uma intensidade verdadeiramente trágica, em que os ritmos
se arrepiam, as melodias se quebram, as harmonias maltratam, bárbaras e rijas; e a sentimental
imaginação infantil, o campo grave, assustado, vibrátil da sensibilidade descontrolada […], vê
fantasmas, dores e milagres no menor brinquedinho de borracha. E surgem ursozinhos que são
monstros fantasmáticos. [...] O grande compositor brasileiro foi realmente o único dos
compositores que até agora nos deu a história da criança. E se lhe descreveu sorridentemente as
felicidades e lhe interpretou gravemente o trágico psicológico, na série incomparável das
“Cirandas”, fundiu inventivamente a graça e o drama, pelas formas bipartidas em que a primeira
parte intensamente dramática se continua por uma segunda, florida, pelas nossas cantigas de roda
que são das mais belas do mundo. (Andrade 1939, 4-5)

Referindo-se diretamente às Cirandas, Mário de Andrade consagra Villa-Lobos


ao patamar de compositor que melhor “interpreta” as várias facetas que compõem o
universo infantil. O seu discurso torna-se significativo não como uma verdade absoluta,
mas na medida em que apresenta uma concepção mais ampla da representação da
infância. Neste texto, Andrade (1939) defende uma perspectiva que expande a exploração
musical da infância para além de uma criação “idealizada” da criança, sempre alegre,
jovial, sonhadora. A edificação desta ideia pode estar relacionada com a música escrita
para criança – que pode ser parte do brincar e/ou associada à educação musical – ou com
o próprio folclore que também pode vir a abarcar uma percepção idealizada que se
relaciona ao autêntico, puro e simples. Para Mário de Andrade (1939), o revelar da
criança, e assim a diferenciação entre Villa-Lobos e os outros três compositores, está no
ultrapassar desta abordagem mais “superficial” da criança explorando uma possível faceta
trágica e misteriosa do universo infantil.
Ainda outra consequência do diálogo entre as ideias de infância e o ponto de vista
villalobiano, é desprender a infância da criança ampliando o seu conceito. Ao associar a
ideia de infância ao que é “primitivo” (e até “selvagem”), a um estado primeiro da
existência e ao seu caráter quase “sagrado” de conexão com natureza, a infância pode
ultrapassar a representação (quase) exclusiva da figura da criança. Na busca pela
construção de uma identidade musical brasileira, constrói-se a representação de uma

75
nação, também ela, “primitiva”. Assim, a ideia de infância passa a se referir também a
um país que se encontra – e precisa se encontrar para corresponder aos ideais nacionalistas
e modernistas – neste estágio ingênuo, puro e virginal de existência. Corroborando com
esta perspectiva, também as próprias Cirandas enfatizam este Brasil “infantil” e
idealizado:

E o admirável Tomás Terán se senta ao piano. Executa prestigiosamente uma "suite" das Cirandas
de Villa-Lobos... E a voz formidável da América, com seus ritmos de selva, suas melodias
primitivas, seus contrastes e choques que evocam a infância da humanidade, funde-se ao bochorno
da tarde estiva, através de uma música refinadíssima e muito atual. O encantamento surte efeito.
Os martelos do piano - baquetas de tambor? - golpeiam mil lianas sonoras, que transmitem ecos
do continente virgem. (Carpentier 1928 citado em e traduzido por Toni 1987,27)

Este relato é de autoria de Alejo Carpentier, musicólogo cubano que teria


encontrado Villa-Lobos aquando de seu retorno a Paris. Esta relação permite conceber
um Brasil rude e selvagem, mas ao mesmo tempo puro e ingênuo. Tais adjetivos, que
podem ser compreendidos tanto na esfera do infantil quanto deste nacionalista que exalta
“primitivo”, encontram-se também na primeira entrevista onde Villa-Lobos menciona as
Cirandas. Já transcrita no primeiro capítulo deste trabalho, a matéria do jornal A Noite
(1926, 7) utiliza adjetivos como rude, virginal e expressões como “sello da barbárie”,
“arroubos e as debilidades da nacionalidade”.
Indo além das três propostas anteriores – isto é, estabelecimentos de paralelos com
o iluminismo e romantismo através do trabalho desenvolvido por Roy (2018) e por
Rousseau (1979); da concepção de Mário de Andrade e da ampliação da ideia de ideia de
infância – e compreendendo o contexto brasileiro da primeira metade do século XX,
aborda-se uma outra possível visão sobre a criança por parte de Villa-Lobos. Numa
concepção, mais “prática” da infância, trabalhar com e para este estágio da vida é admitir
a criança como parte de uma espécie de solução para os problemas político-culturais da
época. Nesse sentido, e de forma a desenvolver este aspecto, a próxima seção deste
trabalho enfatiza o papel da criança neste contexto.

76
3.2 A criança brasileira do início do século XX na visão de Villa-Lobos

Ao desenvolver o quarto capítulo de seu livro intitulado “figuração e identidade


nos quartetos villalobianos”, Paulo Salles (2018) disserta a respeito do que chama “estilo
infantil”14 na obra de Villa-Lobos. Neste âmbito, define o gênero ciranda como dança de
roda infantil e destaca a importância da figura da criança e de seu simbolismo no contexto
em que Villa-Lobos estava inserido: “As cirandas, consideradas como tópicas musicais,
têm significado simbólico no contexto político dos anos de 1930: crianças representam a
mais pura inocência, vivacidade, alegria e um futuro promissor” (Salles 2018, 250).
Assim, passando de uma abordagem mais geral, tratada na seção anterior, e dada a ênfase
do “infantil” na obra de Villa-Lobos, cabe refletir sobre a importância da representação
da criança no contexto das primeiras décadas do século XX no Brasil.
Ao referir-se aos anos 1930, Salles (2018) remonta a chamada “Era Vargas”. Tal
período foi precedido por um cenário de crise econômica, especialmente no setor cafeeiro.
A partir de um contexto vulnerável – social, econômica e politicamente – e do término da
“política do café-com-leite”15, a Revolução de 1930 põe fim à República Velha. Em
outubro do mesmo ano, instaura-se o golpe de estado que coloca o gaúcho Getúlio Vargas
na presidência do Brasil. Seu governo corresponde a um período de 15 anos (1930-
1945)16, os quais podem ser compreendidos em três fases: Governo Provisório (1930-
1934), Governo Constitucional (1934-1937) e o Estado Novo (1937-1945). A
centralização do poder – caracterizada pela dissolução do Congresso Nacional – constitui-
se como aspecto integrante do governo Vargas. Por outro lado, em razão da sua veia
populista – especialmente associada à criação do Ministério do Trabalho –, o chamado
“pai dos pobres” “ainda hoje é reconhecido como um dos melhores presidentes que o
Brasil já teve” (Aguiar 2019, 66).
A centralização política proposta pelo governo Vargas, como em muitos outros
contextos políticos semelhantes, estava de acordo com uma ideologia nacionalista. Nesse
cenário, Adriana Aguiar (2019) em sua tese “Villa-Lobos: A propriedade da música na
Educação Musical” clarifica que, dentre outros objetivos,

14
O “estilo infantil”, definido por Salles (2018), compõe parte do fluxograma que abarca as categorias de
“gênero expressivo, estilo, tipo estilístico e símbolo/tópica”, a partir da “Teoria de Marcações”
(Markedness) de Robert Hatten (1994).
15
Alternância entre presidentes originários de São Paulo e de Minas Gerais.
16
Em 1951, Getúlio Vargas foi novamente eleito presidente por voto direto governando até 1953 quando
comete suicídio.

77
A grande meta do nacionalismo era fabricar as linguagens nacionais que provocavam a
identificação com a realidade de um povo e que pudesse ser compreendida por este mesmo povo.
Investiu-se então, na construção de uma nova visão da identidade brasileira, na qual a ideia de uma
nova raça forte e criativa oriunda da miscigenação, aniquilava a discriminação anteriormente
sofrida na gênese da formação do povo brasileiro. (Aguiar 2019, 77-8)

É neste quadro que se encontra Villa-Lobos. O compositor, “inserido em um


contexto político tumultuado, cava oportunidades para fazer a música surgir na sociedade
brasileira de maneira ampla, significativa e consolidativa” (Aguiar 2019, 67). Com esta
intenção, e de forma ativa na construção do nacionalismo proposto, Villa-Lobos assume,
em 1932, a direção da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), criada
no mesmo ano, “com o objetivo de orientar a implantação do canto orfeônico nas escolas
da municipalidade.” (Santos 2010, 42)
Encontra-se, nesta fase da trajetória de Villa-Lobos, o ápice de sua relação com a
educação musical e, por isso, com a criança. O compositor, “de volta de uma viagem ao
Velho Mundo” (Villa-Lobos 1991 citado em Santos 2010, 74), viu no canto coletivo não
só “uma proposta de ensino musical para a escola brasileira, mas de um movimento em
prol da aquisição de uma consciência cívica” (Ávila 2010, 22). Segundo Villa-Lobos

[…] nunca será demasiado insistir na finalidade pragmática do canto orfeônico. E não confundir o
seu objetivo cívico-educacional com outras exibições de ordem puramente estética, que não visam
senão o prazer imediato da arte desinteressada. […] Encarando, pois, o problema da educação
musical da infância sob esse aspecto, o ensino e a prática do canto orfeônico nas escolas impõem-
se como uma solução lógica, não só à formação de uma consciência musical, mas também como
um fator de civismo e disciplina social coletiva. (Villa-Lobos 1991 em Santos 2010, 76-7)

Dentre outros trabalhos de Villa-Lobos que se referem à criança e à educação


musical, está o Guia Prático (Villa-Lobos 2009a, 2009b; 2009c). Publicado em um
volume único no ano de 1941 pela editora Irmãos Vitale, o Guia Prático de Villa-Lobos
foi concebido como base para aulas de Canto Orfeônico e pretendia inicialmente,
constitui-se de 6 volumes. Durante a década de 1930, foram publicadas em vários
fascículos da Coleção Escolar (editada pelo Departamento de Cultura do Distrito Federal)

78
mais de 250 peças, das quais 137 passaram a integrar o volume único posteriormente
publicado17.
A referência a este compêndio e a este histórico de diálogo com a educação
musical, torna-se essencial neste trabalho não só para a comparação do tratamento das
melodias folclóricas nas Cirandas – compostas quatro anos antes – com a transcrição do
Guia Prático, mas para constatar a importância da figura da criança para o compositor e
para o contexto que o circundava. Apesar desta relação se manifestar de forma mais
intrínseca a partir do governo Vargas, o retrato do universo infantil impresso nas Cirandas
é, também ele, parte de uma projeção da figura da criança e de seu valor enquanto
protagonista na construção de uma identidade nacional – projeção esta que se estende
para outras obras do compositor. Representar a infância é, para Villa-Lobos, mais do que
um retrato da criança: é a caracterização da construção de uma “consciência musical
brasileira” e, ao mesmo tempo, um futuro esperado e necessário:

Tratava-se de preparar a mentalidade infantil para reformar, aos poucos, a mentalidade coletiva
das gerações futuras. […] Os caracteres psicológicos da nossa raça e os seus processos de evolução
histórica indicavam claramente o caminho a seguir: só a implantação do ensino musical na escola
renovada, por intermédio do canto coletivo, seria capaz de iniciar a formação de uma consciência
musical brasileira. Efetivamente, o canto orfeônico é uma síntese de fatores educacionais os mais
complexos. (Villa-Lobos, 1991, 7-8 em Ávila 2010, 25)

3.3 A presença do folclore infantil brasileiro em Villa-Lobos e nas


Cirandas

A exploração de temas do folclore infantil é recorrente na obra de Villa-Lobos, o


que atesta a relevância que o compositor lhe concede. Lago (2003), em seu artigo
intitulado “Recorrência temática na obra de Villa-Lobos: exemplos do cancioneiro
infantil”, reconhece “a presença de um grupo relativamente compacto de temas musicais
que apresentam um alto grau de recorrência – ao longo de obras e épocas distintas – e
entre os quais se destacam dois grupos principais”: temas indígenas e temas do
cancioneiro infantil. As obras Petizada (1912) e Brinquedos de Roda (1912), compostas
ainda na década de 1910, são exemplos de um início marcado pela presença do infantil.

17
A edição utilizada nesta dissertação refere-se ao ano de 2009 elaborada por Manoel Aranha Corrêa do
Lago, Sérgio Barboza e Maria Clara Barbosa e editada pela Academia Brasileira de Música.

79
Presença esta que, como já referido, atinge o seu ápice com a produção do Guia Prático
nos anos 1930, comprovando a tese do autor acima mencionado.
Como forma ilustrativa da presença assídua do cancioneiro infantil, Lago (2003,
109-110) concebe uma tabela intitulada Temas do Cancioneiro Infantil: sua presença na
obra de Villa-Lobos, onde identifica o “número de obras em que são citados temas do
Cancioneiro Infantil” (Lago 2003, 110). De forma a demonstrar a dimensão deste cenário,
demonstração essa que é essencial no âmbito deste trabalho, a tabela em questão será aqui
transcrita com destaque, em azul, para os temas folclóricos que estão inseridos nas
Cirandas.18

G.P Br. Petizada Prole B. Prole II Ciranda Cdinhas Outros


Fontes Vol I Roda (3) I (5) (6) (7) (8)
(1) (2) (1912) (4) (1921) (1926) (1926) (1923-1929)
(1932)19 (1912) (1918)
Temas

Senhora Viúva n°117 n°1


Fui no Itororó / Fic. n°54, n°1 n°1 n°9 n°2, 5°Q
Sozinha 55
Anquinhas/Dança da n°9,47 n°2 n°2
Carranquinha
Terezinha de Jesus n°123 n°3 n°1 Rude-
poema
Uma, duas argolinhas n°124 n°4 n°5
Garibaldi foi à missa n°58 n°5 n°5
Ciranda, cirandinha n°35 n°6, n°7
CB
Na mão direita tem n°75, n°1, Quarteto
uma rosa 110 e CB de Sopros
111
Vestidinho branco n°131 n°4

18
Observações fornecidas por Lago (2003, 110) referentes à tabela apresentada: “Os temas do Cancioneiro
Infantil estão identificados conforme seus títulos no Guia Prático. As abreviações correspondem a: Coluna
1: Guia Prático - Volume I; Colunas 2 a 7: títulos das coleções Brinquedo de Roda, Petizada, Prole do Bebê
I e II, Cirandas, Cirandinhas Negritos: CB = Caixinha de Boas Festas; 5º Q = 5º Quarteto de Cordas.”
19
O Guia Prático refere-se à primeira versão, para piano, composta por Villa-Lobos em 1932.

80
O cravo brigou com a n°45 e n°3 n°1
rosa 46
Cantigas de ninar n°1, 2 n°1, 2 Poema da
e 25 e8 mãe e da
criança
Vamos maninha, n°33 e n°3 n°3 Cantiga de
vamos 127 roda
Agulha (Olha aquela n°3 n°13 n°4
menina)
Bela pastora n°15 n°5, CB
Cae cae balão / Vitú n°19 e n°4 n°6
133
Passa -passa gavião n°89 n°6 n°7
Vamos atrás da Serra n°126 n°8 n°8, 5°Q
Calunga
Carneirinho, carneirão n°31 n°8 n°9, 5°Q
A canoa virou n°23 n°14 n°10
Nesta rua n°82 n°11 n°11
Que lindos olhos n°15 n°12,
5°Q
Senhora Dona Sancha n°116 n°3
Condessa/Constante n°39 e n°2
40
Sapo Jururu n°4
Pobre cega n°97 n°5
Xô-xô passarinho n°137 n°7
Pintor de Canahy n°94 n°12
Olha o passarinho n°85 n°7 n°10
Dominé
Co-co-co n°37 n°16
Vamo Maruca, vamo n°128 Rude-
poema /
Miudinho

81
Na Bahia tem / Fui n°12 e Na Bahia
passar na ponte 56 tem
Viva o Carnaval (Zé n°135 n°7
Pereira)

Tabela 3 - Temas do Cancioneiro Infantil: sua presença na obra de Villa-Lobos (Lago 2003, 109-110).

Com relação às Cirandas e de acordo com a tabela concebida por Lago (2003,
109-110), podemos concluir que dos 1720 temas folclóricos que se inserem nas pequenas
peças, 11 foram também desenvolvidos em outras obras de Villa-Lobos anteriores ou
posteriores às Cirandas. Nesse sentido, a tabela21 apresentada abaixo configura este
recorte, clarificando quais temas folclóricos foram explorados somente nas Cirandas e
quais foram também desenvolvidos em outras obras do compositor.

Outras obras de Brinquedo Petizada Prole do Prole do Cirandinhas Rudepoema Quarteto


Villa-Lobos de (1912) Bebê I Bebê II (1926) (1926) n° 522
Ci- Roda (1918) (1921) (1931)
randas (1912)
(1926) e
seus respecti-
vos temas
Ciranda n°1 – X X
Terezinha de
Jesus

Ciranda n°2 – A
condessa

20
Os temas que compõem as Cirandas totalizam 17 devido à Ciranda n° 4 – O cravo brigou com a Rosa
(O Sapo Jururu), que além do tema que compõe seu título, também contém a melodia da canção O Sapo
Jururu, indicada no subtítulo da mesma Ciranda.
21
Para além das obras citadas na presente tabela, todos os temas folclóricos estão também inseridos no
Guia Prático de Villa-Lobos (2009).
22
Apesar dos temas folclóricos comuns entre Quarteto de cordas n°5 e as Cirandas, as citações dos temas
“Vamos atrás da Serra Calunga” (Ciranda n°8), “Fui no Tororó” (Ciranda n°9) e “Que lindos olhos”
(Ciranda n°15) são citações da série para piano das Cirandinhas (1926), configurando-se como uma
transcrição para quarteto de cordas.

82
Ciranda n°3 –
Senhora Dona
Sancha

Ciranda n°4 – O X X
cravo brigou com
a rosa

Ciranda n°423 –
O sapo Jururu

Ciranda n°5 –
Pobre cega

Ciranda n°6 – X
Passa, passa
gavião

Ciranda n° 7 –
Xô, xô
passarinho

Ciranda n°8 – X X
Vamos atrás da
serra Calunga

23
Neste caso torna-se válido clarificar que:
1. Na Ciranda n°4 são explorados dois temas infantis indicados, respectivamente, em seu título e
subtítulo: O cravo brigou com a Rosa e O sapo Jururu. Na presente tabela os temas em questão
estão indicados separadamente, visto que as melodias não são apresentadas sequencialmente em
outras obras de Villa-Lobos.
2. De acordo com a classificação de Henriqueta Rosa Fernandez Braga para cantigas de roda infantis
(Braga 1970 em Lago 2003, 112), a cantiga “Fui no Tororó” apresenta uma estrutura ABC. Tal
estrutura, frequentemente encontrada no Cancioneiro infantil brasileiro, apresenta o tema
homônimo encadeado com as melodias de “Ficarás sozinha” e de “Tire o seu pezinho” na maior
parte de suas representações (Lago 2003, 112). No caso da Ciranda n°9, estão postas em sequência
somente as melodias de “Fui no Tororó” e de “Ficarás Sozinha”, assim como nas outras peças do
mesmo compositor expostas na tabela 1 – Prole do bebê II (1921) e Cirandinhas (1926). Por essa
razão, nesta tabela, as melodias das cantigas – “Fui no Tororó” e “Ficarás sozinha” – são tratadas
de forma conjunta.

83
Ciranda n°9 – X24 X X X
Fui no tororó
[Ficarás Sozinha]
Ciranda n°10 – O
pintor de Canahy

Ciranda n°11 – X
Nesta rua, nesta
rua
Ciranda n°12 – X
Olha o
passarinho
Dominé
Ciranda n°13 – À X
procura de uma
agulha

Ciranda n°14 – A X
canoa virou

Ciranda n°15 – X X
Que lindos olhos

Ciranda n°16 –
Có-có-có

Tabela 4 - Relação entre os temas folclóricos transcritos nas Cirandas e outras peças de Villa-Lobos.

Com a tabela acima, torna-se evidente como os temas trabalhados nas Cirandas
se apresentam em diversos contextos.
A relevância do título – Cirandas –, neste caso, já foi discutida através de uma
reflexão que propõe uma análise na dimensão paratextual, referida no primeiro capítulo
desta dissertação. No entanto, outro ponto a considerar ao analisar a representação infantil
em Villa-Lobos e, mais especificamente, nas Cirandas é compreender quais destas são

24
A melodia folclórica que se insere na peça Brinquedo de Roda (1912) pertence à cantiga “Tira o seu
pezinho”, sem apresentar os dois outros temas que, na maior parte das representações, estão em encadeados
- “Fui no Tororó” e “Ficarás Sozinha” (Lago 2003, 112).

84
efetivamente cirandas, na acepção de brincadeiras de roda – acepção assumida por Mário
de Andrade (1934). Para isso, construiu-se uma tabela onde se apresentam, na primeira
coluna, as Cirandas associadas aos seus respectivos temas folclóricos principais; na
segunda, a classificação de cada uma e, na terceira, a fonte referente a cada uma das
atribuições.
Sobre a terceira coluna, referente às fontes escolhidas para a classificação de cada
tema, teve-se em consideração alguns trabalhos em específico. O primeiro, são os três
cadernos do 1° volume do Guia Prático de Villa-Lobos (2009a; 2009b; 2009c), que
contam com um “quadro sinótico” no qual o autor apresenta, dentre outras informações,
o “gênero” de cada canção. Adiante está a dissertação de Lucilene Ferreira da Silva
(2016), intitulada “Música tradicional da infância - características, diversidade e
importância na educação musical”. Nesta extensa pesquisa, dentre outras fontes, a autora
utiliza como base “pesquisas de campo realizadas entre 1998 e 2015 em cerca de cento e
cinquenta e dois municípios brasileiros” com a intenção de “organizar, catalogar,
classificar e sistematizar um variado repertório da música tradicional da infância
brasileira” (Silva 2016). Para além das já citadas, outras pesquisas contribuíram, ainda
que não de forma tão enfática, na construção desta tabela, como é o caso da dissertação
de Márcia Vetromilla (2010), intitulada “Ciranda n.7 de Heitor Villa-Lobos: um estudo
da relação entre o texto musical e o enredo implícito na cantiga folclórica utilizada” e a
tese de Júlia Tygel: “Béla Bartók e Heitor Villa-Lobos: abordagens composicionais a
partir de repertórios tradicionais”. Não obstante, faz-se imprescindível reconhecer a
dimensão e a variabilidade de funções que estes temas folclóricos podem adquirir no
território brasileiro – e não só – e, por isso, considera-se que a tabela apresentada não
configura um fim em si, mas faz-se como forma de se obter uma noção panorâmica das
classificações de cada um dos temas.
A presente tabela constitui-se, também, como ferramenta metodológica para a
análise das obras que se seguirão neste capítulo. O estabelecimento da associação do tema
folclórico com um “tipo de brincadeira” pode refletir-se na própria composição de Villa-
Lobos.

85
Tema Folclórico Classificação Fonte
1 Terezinha de Jesus Roda de escolha Silva (2016, 165)
2 A Condessa Canção de roda25 Mello (1908, 82)
Lopes-Graça e Giacometti (1981,
20)26
Silva (2016, 44)27
3 Senhora Dona Sancha Canção e brinquedo de roda Villa-Lobos (2009a, 103)
4 O cravo brigou com a rosa Canção de roda Silva (2016, 165)28
4.1 Sapo Jururu Acalanto Silva (2016, 165)29
5 Pobre Cega ?
6 Passa, passa gavião Movimentação específica30 Silva (2016, 163)
7 Xô, xô passarinho Cantinela de berço31 Vetromilla (2010, 59)
8 Vamos atrás da Serra Jogo de perguntas e respostas Villa-Lobos (2009c, 69-70)32
Calunga (Parlenda)
9 Fui no tororó Roda de escolha Silva (2016, 163)
33
10 O pintor de Cannahy Cantiga de roda Villa-Lobos (2009c, 89)
11 Nesta rua, nesta rua ?
12 Olha o passarinho Dança canção Villa-Lobos (2009b, 112)
Dominé
13 À procura de uma agulha Canção e brinquedo de roda Villa-Lobos (2009a, 93)34
14 A canoa virou Roda de escolha Silva (2016, 165)

25
Vetromilla (2010, 61-2) faz uma descrição da brincadeira: “o jogo infantil consiste numa roda com uma
menina no centro representando a condessa. As outras meninas põem-se de joelhos e lhe seguram o vestido,
representando o papel de suas filhas. Por fora da roda, estão os cavalheiros em mesmo número. Durante o
jogo, um diálogo entre cada cavalheiro e a condessa será repetido. Este se refere ao pedido de casamento
com cada uma das filhas e as respectivas respostas da condessa, que reluta ao conceder a mão de cada filha,
mas acaba concedendo-a. No final da brincadeira, há um alegretto da condessa que canta sozinha o tema
da “viuvinha da banda d’além”, revelando que também deseja se casar”.
26
Com o título “Ó Condessa, condessinha”.
27
Com o título “Ó Condessa, condessinha”.
28
Com o título “O cravo e a rosa”.
29
Com o título “Sapo cururu”.
30
Lucilene não oferece mais detalhes sobre tal classificação. No entanto, Tygel (2014, 326) fornece uma
descrição da brincadeira e da possível representação desta a partir de Villa-Lobos: “Na brincadeira infantil
homônima, uma criança literalmente passa por entre as mãos cruzadas de outras duas, que estão levantadas
para o alto. Na peça, o tema da canção é apresentado acompanhado de figurações escalares em graus
conjuntos, talvez em alusão ao movimento de ida e volta da criança entre um lado e o outro da ponte feita
pelas mãos cruzadas de suas colegas”.
31
A autora faz referência à classificação de Mello (1908) em A Música no Brasil.
32
Com o título “Vamos Atrás da Serra, ó Calunga!”.
33
De acordo com as notas editoriais sobre o arranjo presente no Guia Prático (Villa-Lobos 2009c, 89), na
Coleção Mário de Andrade, localizada na Biblioteca Pública de São Paulo, constam duas melodias –
intituladas “O bom pintor” – das quais a segunda estaria inserida nesta Ciranda. Por isso, conforme consta
no Guia Prático (Villa-Lobos 2009c, 89), Mário de Andrade caracteriza esta melodia como “cantiga de
roda”.
34
Com o título “A Agulha”.

86
15 Que lindos olhos Canção e brinquedo de roda Villa-Lobos (2009c)
16 Có-có-có ?

Tabela 5 - Classificação das Cirandas de Villa-Lobos.

Das 16 Cirandas, constata-se que pelo menos nove são efetivamente brincadeiras
de roda, outras quatro são caracterizadas por “movimentação específica” (Silva 2016),
“cantinela de berço” (Vetromilla 2010), “jogo de perguntas e respostas” (Villa-Lobos
2009c, 69-70) e “dança canção” (Villa-Lobos 2009b, 112). Em relação às outras três
Cirandas não foi possível encontrar uma classificação.
A partir da tabela acima, pode-se aferir que nem todos os temas folclóricos
escolhidos são, de fato, danças de roda infantil, demonstrando que, provavelmente, o
título do conjunto para piano não se pretendia rigoroso nesse âmbito. Dessa forma, a
análise da tabela reitera as ideias propostas no primeiro capítulo (essencialmente
desenvolvidas na discussão da dimensão paratextual), onde as Cirandas configuram uma
ideia generalista de ciranda sendo esta associada ao folclore infantil brasileiro.

3.4 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática infantil em Villa-Lobos

Na literatura brasileira sobre tópicos, pouco se fala em infância ou na figura da


criança. De acordo com a bibliografia referenciada neste trabalho, apenas dois autores
mencionam tópicos associadas à infância, ambos referindo-se à obra de Villa-Lobos. O
primeiro é Paulo Salles (2017, 74) que em seu artigo intitulado “Villa-Lobos e sua
brasilidade: Uma abordagem a partir da teoria das marcações (markedness) de Hatten”,
classifica a infância, na obra de Villa-Lobos, como um “estilo”, subdivido-o em “tipos”
e “símbolos/tópicos”:

Tabela 6 - Transcrição da tabela de Paulo Salles (2017, 74).

87
Neste artigo, Salles (2017, 67) propõe uma “classificação de gêneros musicais
expressivos brasileiros” que articula as teorias de Robert Hatten (1994) e o trabalho de
categorização de Renato Almeida e Mário de Andrade. Assim, não sendo o objetivo
central da sua pesquisa, o autor não desenvolve o encadeamento acima apresentado.
Em seu livro Os Quartetos de Villa-Lobos: forma e função, por sua vez, Salles
(2018, 233) identifica, nos quartetos villalobianos, a presença de cinco temas folclóricos
infantis35, encadeando-os da seguinte forma:

Gráfico 1 – Esquema baseado no Quadro 4.4 (Classificação de gêneros, estilos, tipos e símbolos/tópicos
encontrados nos Quartetos de Villa-Lobos) de Paulo Salles (2018, 233).

Nesse caso, o autor dedica uma pequena seção para o desenvolvimento desta ideia,
intitulada “Estilo Infantil: das Cirandas para o Quarteto” (Salles 2018, 248-250). Após
contextualizar o leitor, Salles analisa brevemente a incorporação da melodia folclórica
nos quartetos apresentando duas formas de a conceber tecnicamente: “(1) harmonização:
técnica em que as melodias são tratadas convencionalmente de acordo com progressões
tonais ou sequências de acordes modais; (2) inserção: técnica em que a canção folclórica
é mais ou menos adaptada de modo a se adequar a um ambiente completamente inusitado,
muitas vezes organizado de maneira não tonal” (Salles 2018, 249-250). A utilização
destas associações também é possível no caso das Cirandas uma vez que Villa-Lobos
varia entre as técnicas de harmonização e inserção.
O segundo autor a tratar da infância na Teoria dos tópicos é Rodolfo Coelho de
Souza (2010) em seu artigo já mencionado: “Hibridismo, Consistência e Processos de
Significação na Música Modernista de Villa-Lobos”. Na sua análise ao Rudepoema, onde
apresenta os contrastes entre a ideia do “selvagem” e do “civilizado”, Souza (2010) coloca
a infância como intermediária destes dois universos. A interação recíproca apresentada
por estes três campos tópicos (selvagem-infância-civilizado), consiste na concepção de
que a criança é transformada a partir do processo educativo – passando de salvagem para
civilizada – e, por outro lado, “os comportamentos infantis dos adultos podem revelar o
lado selvagem do civilizado” (Souza 2010, 182). A fim de ilustrar musicalmente estas
associações, Souza (2010) caracteriza o “selvagem” através da apresentação de melodias

35
Torna-se válido relembrar que os temas folclóricos infantis presentes nos Quartetos de Villa-Lobos têm
mais em comum com as Cirandinhas (1925) do que com as Cirandas (1926).

88
simples ou “primitivas”, dinâmicas excessivamente contrastantes e “harmonias muito
dissonantes” (Souza 2010, 182). Além disso, o autor atribui a este campo tópico não só a
brutalidade mas a gentileza, relacionando esta última com um retrato da natureza e,
portanto, com uma “descrição sonora de cenas paradisíacas” (Souza 2010, 182). O
“civilizado”, por sua vez, pode ser representado pela “complexidade contrapontística,
estilo virtuoso, estilo brilhante, escalas diatônicas e harmonia consonante, estilo de
marcha, estilo cantabile, pathos operístico, Sturm und Drang e piantos cromáticos
transformados em suspiros [referindo-se à Monelle 2000, 17)]” (Souza 2010, 183).
Finalmente, a infância, que relaciona os dois campos, pode ser retratada pela
escala pentatônica, sendo esta um

protótipo de simplicidade que aponta para o "exótico" (uma correlação dada a partir de Debussy)
e para o "selvagem" (vide, por exemplo, a música nativa dos índios), mas também para o
"civilizado", na medida em que o pentatonismo pode ser desenvolvido em interpretações pastorais,
estilo scherzando, canções de ninar e de roda (que adultos cantam para as crianças, tornando-as
um índice civilizatório). (Souza 2010, 183)

Além disso, ainda relacionado ao cenário de tópicos infantis, o autor refere, sem
desenvolver, o tópico “scherzo infantil” que se apresenta em Rudepoema, a partir do
compasso 85 (Souza 2010, 189):

Exemplo 24 - Heitor Villa-Lobos, Rudepoema (1921-1926), compasso 85.Transcrição de Sousa


(2010, 162).

Ainda com relação ao Rudepoema, torna-se importante relembrar a presença de alguns


fragmentos da melodia do único tema folclórico infantil na peça – Terezinha de Jesus –,
apresentado no final. Nesse sentido, Souza (2010, 193-6) estabelece uma associação da
lenda e, por isso, da letra da canção com o “tabu do incesto”, relacionando-a com os
tópicos do “selvagem”.
As perspectivas aqui descritas, referem-se às únicas concepções que associam a
infância ao universo dos tópicos e são importantes na medida em que, tratando também

89
da obra de Villa-Lobos, podem ser articuladas na análise das Cirandas contribuindo para
uma construção analítica mais conjunta da obra do compositor.
*

Portanto, a concepção do universo infantil nas Cirandas pode coexistir de duas


formas que se justapõem. A primeira atesta a presença do infantil através da citação da
melodia folclórica – tópico citação folclórica. A segunda consiste na exploração da
poética do “ser criança”. Trata-se da utilização de recursos estilísticos que convergem
para um ideal de criança retratado nas canções folclóricas – como as ideias acima
descritas de Salles (2017) e Souza (2010).
Nesse sentido, torna-se importante clarificar que não é o objetivo deste capítulo,
ao estabelecer essa ligação com a poética infantil, caracterizar as Cirandas como sendo
harmonizações de temas folclóricos. Apesar da exploração intensa que Villa-Lobos faz
do universo infantil, as Cirandas destacam-se pelo contraste entre a inserção da melodia
infantil e o material musical que envolve o tema folclórico. Tal “material”, que diverge
da canção folclórica “original” (harmônica, métrica e estilisticamente), descontextualiza,
ou melhor, “recontextualiza” a cantiga. Ao “afastar” o tema folclórico do contexto
pressuposto (cantiga de roda/cancioneiro infantil) e inseri-lo num outro cenário, Villa-
Lobos edifica um novo simbolismo ainda que mantendo sua melodia reconhecível.

3.5 A síncope brasileira como tópico infantil nas Cirandas

Da mesma forma que ocorre com a citação folclórica, abordada na próxima seção,
o tópico síncope brasileira também pode ter implicações que vão além de uma roupagem
nacional. A representação do sincopado nas Cirandas, por vezes, não só constitui uma
forma de abrasileirar mas de acentuar o caráter infantil do conjunto para piano. Assim,
para além dos trechos em que a melodia folclórica está inserida – sendo estes já por si
uma invocação da infância brasileira –, é possível refletirmos sobre outras possíveis
caracterizações da criança.
Como discutido anteriormente, as células rítmicas identificadas como síncope
brasileira não se referem necessariamente a um gênero musical específico, mas podem
incorporar significações atreladas à manifestação do nacionalismo ou a caracterizações
musicais da infância. Para além disso, e corroborando com a associação síncope-
brincadeira, torna-se importante refletir sobre a relação da síncope brasileira, enquanto
tópico, com o próprio conceito de ciranda. Não se trata, aqui, da ciranda enquanto gênero
90
musical, mas enquanto invocação da infância brasileira, através da cantiga e da
brincadeira de roda.

3.5.1 O caso das Cirandas nº 1 – Terezinha de Jesus

A peça de abertura do conjunto para piano inicia-se (compassos 1-21) na


tonalidade de dó Maior, evocando um cenário de alegria e “luminosidade” (Tarquínio
2012, 114), apontando para a ideia de imersão num universo infantil brasileiro. A
simplicidade da melodia inicial, a métrica binária, a marcação rítmica e o caráter alegre e
festivo aludem à infância brasileira. Num primeiro momento, estas características se
apresentam sem fazer referência a um texto ou canção específica (nos primeiros 21
compassos), mas podem remeter o público à alegria e jovialidade que permeia o conceito
idealizado de infância. A componente rítmica da peça cria no ouvinte uma sensação de
movimento tipicamente associada à dança/brincadeira de roda e a presença da síncope
(em conjunto com as características já apresentadas) vem contribuir ativamente para essa
sensação. Nesse sentido, a ideia de assimetria temporal exerce um papel fundamental na
representação do brincar, do caráter inesperado que o envolve, da forma “desregrada” e
“desordenada” em que os saltos, os pulos, as mãos – hora entrelaçadas, hora batendo
palmas no brinquedo de roda – se diferem de forma tão enfática da esfera adulta,
“civilizada” e “previsivelmente” métrica.

A presença do ritmo sincopado


está graficamente presente
através da figuração rítmica
(síncopes com diferentes
durações alinhadas
verticalmente) e através das
dinâmicas com a acentuação do
último tempo do compasso e a
falta de acentuação do primeiro
– invertendo o ritmo
“naturalizado” na música da
Exemplo 25 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 1 - Europa ocidental.
Terezinha de Jesus (1926), compassos 3 e 4. Rio de
Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

91
Os elementos apresentados podem ser facilmente associados a uma brincadeira
cantada, sugerindo a criação, por parte de Villa-Lobos, de um brinquedo de roda – sendo
o próprio tema folclórico em questão uma “roda de escolha”, como se constata na tabela
5.
A forma como a síncope brasileira é explorada nesta Ciranda apresenta algumas
semelhanças com os primeiros compassos da obra do mesmo compositor intitulada
Cantiga de Roda (1925), o que reitera a associação com o gênero musical. A presença
assídua do tópico síncope brasileira nestas obras que evocam o universo infantil, logo à
partida através do seu paratexto, corrobora para uma releitura na qual o tópico não só se
refere a uma esfera nacionalista, mas – e na maior parte das vezes ao mesmo tempo – à
infância, através da brincadeira.

Exemplo 26 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº


1 - Terezinha de Jesus (1926), compassos 9
e 10. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão,
1927.

3.4.2 O caso da Ciranda nº 4 – O Cravo brigou com a Rosa (Sapo Jururu)

A Ciranda n° 4 – O cravo brigou com a rosa (Sapo Jururu) apresenta-se com uma
estrutura A-B-A – precedida por uma introdução nos quatro primeiros compassos. Nesta
Ciranda são citadas duas melodias folclóricas – O cravo brigou com a rosa na primeira
e última parte e O sapo Jururu na seção central. As seções são contrastantes e aludem a
dois diferentes “modos de estar” da criança.
Nas partes A, Villa-Lobos descreve o conflito que é referido na letra da canção.
De caráter “áspero, agitado e tumultuado” (Tarquíno 2012, 155), este trecho da Ciranda
n°4 conta uma história violenta. A esse respeito Farias (2015, 29) esclarece: “The lyrics
describe a fight between a carnation, representing a man, and a rose, representing a
woman. The conflict turns violent; the rose leaves the scene stripped of her petals, and

92
the carnation is wounded—probably bleeding from the rose’s thorns. In spite of the
violent content of the song, it remains popular among Brazilian children”.
O confronto torna-se nítido através das rápidas semicolcheias que inundam a
melodia e da politonalidade36 que sugere uma atmosfera quase competitiva. Além disso,
esta Ciranda constitui um exemplo enfático da utilização da alternância entre teclas pretas
e brancas nas mãos esquerda e direita, respectivamente – técnica37 amplamente explorada
por Villa-Lobos (Schafaschek 2017, 38-40). Este fator, associado ao registro e à
densidade rítmica e harmônica, corrobora com uma ideia visual de conflito, uma vez que
as mãos do pianista tendem a estar sobrepostas aquando da interpretação destas duas
partes A.
Ao constatar a exploração desta técnica por parte do compositor, Schafaschek
(2017, 38-9) estabelece uma relação clara entre a Ciranda n°4 e o Polichinelo de A Prole
do Bebê n° I (1918). Esta associação se torna especialmente significativa e permite
enquadrar a Ciranda n° 4 e a ideia de conflito no universo infantil através do tópico
“algazarra” que Salles propôs para o Polichinelo. A “algazarra”, por sua vez associada ao
tumulto, à confusão especialmente na esfera sonora, pode, também, ser considerada uma
característica do universo infantil e, ao mesmo tempo, vai de encontro à proposta de
confronto que se apresenta na letra da canção e que é defendida por estudiosos já aqui
mencionados como Tarquinio (2012) e Farias (2015). Logo, a confusão sonora
apresentada por Villa-Lobos é, simultaneamente, a expressão sonora da letra folclórica e
uma forma de representação da infância.

36
É, também, a utilização de uma escala diatônica e outra pentatônica que assinala a dissonância, causando
a sensação de conflito. A respeito da politonalidade presente neste trecho da Ciranda n°4, este trabalho
considerou especialmente a análise desenvolvida por Ronaldo Penteado (2012), onde o autor recorre à
Teoria dos conjuntos para refletir sobre a simetria harmônica nesta obra de Villa-Lobos.
37
A esse respeito torna-se importante mencionar o trabalho de Jamary Oliveira (1984): Black Key versus
White Key: A Villa-Lobos Device.

93
A semelhança no desenho
rítmico e textural das duas obras
resulta num “ambiente” sonoro
similar. Assim, nesse ambiente
nota-se o tópico “algazarra”,
inevitavelmente associado a uma
esfera infantil.

Exemplo 27 - Heitor Villa-Lobos, A prole do Bebê [Polichinelo] (1918),


compassos 1 e 2. Rio de Janeiro: Arthur Napoleão, s.d. (ca.1920).

Adiante está a parte B com a melodia folclórica de O Sapo Jururu. A massa sonora
que dominava a seção anterior é drasticamente substituída por um ambiente “lírico,
fluente e rítmico” (Tarquinio 2012, 162). O conflito dá lugar à leveza do brincar e, mais
uma vez, a figura da síncope faz-se presente caracterizando este outro “modo de estar” da
criança. Antes da entrada da melodia, nos compassos 24 a 32, a mão esquerda antecipa o
sincopado com a acentuação referente à estrutura do tresillo (3+3+2) com duração de uma
semibreve.
Na seção seguinte da parte B (a partir do compasso 32), introduz-se uma nova
estrutura rítmica – também sincopada e com a anotação “bem ritmada” – que é
apresentada como ostinato. Dessa vez, numa estrutura de oito semicolcheias, obtemos a
configuração do tresillo a começar da segunda semicolcheia do compasso, numa espécie
de deslocamento do tresillo anteriormente apresentando.

Exemplo 28 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 4 - O Cravo brigou com a


Rosa (Sapo Jururu) (1926), compassos 5 e 6. Rio de Janeiro: Casa Arthur
Napoleão, 1927.

94
Tresillo

Exemplo 29 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº Exemplo 30 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 4 - O


4 - O Cravo brigou com a Rosa (Sapo Cravo brigou com a Rosa (Sapo Jururu) (1926),
Jururu) (1926), compasso 24. Rio de compasso 32. Rio de Janeiro: Casa Arthur
Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927. Napoleão, 1927.

A parte B desvanece rapidamente em razão da enxurrada densa de notas que vêm


reapresentando O Cravo brigou com a Rosa. O final, três últimos compassos, retorna de
forma breve à ideia do início da Ciranda e, o último compasso, inesperadamente abrupto,
encerra a algazarra e a brincadeira de forma simples e até caricata, quase como se
colocasse um ponto final neste pequeno universo imaginativo.

3.6 A “citação folclórica” como tópico infantil nas Cirandas

Como já explorado no capítulo anterior, a citação folclórica, enquanto tópico,


pode compreender uma dimensão nacionalista. Mas, por outro lado, no caso das
Cirandas, ao se tratar de citações folclóricas do universo infantil, este tópico associa-se
de imediato à infância. Assim, configura-se o seguinte esquema:

Gráfico 2 – Relação de temáticas – tópicos.

Villa-Lobos trata de “abrasileirar” a infância representando-a sonoramente


também através da citação folclórica. Considerando o nacionalismo e a infância como
duas temáticas presentes nas Cirandas, para as quais podem se direcionar os tópicos do

95
discurso musical villalobiano, atrelar a citação folclórica também ao panorama da
infância é admitir que sua presença vai além da invocação do nacional. É, dentre outras
coisas, assumir que a escolha de material folclórico especialmente infantil, constitui, por
si, uma estratégia. Como já demonstrado no decorrer deste capítulo, a ideia de infância
neste contexto carrega consigo diversos significados – ideias relacionadas ao
nacionalismo e ao “primitivismo”, ao regresso à um estado “ancestral” da humanidade,
associação ao conceito de transcendência especialmente alusivo à natureza enquanto
símbolo nacional, conotações políticas no Brasil dos anos 1920 e 1930, dentre outros. Por
essa razão, torna-se essencial não restringir o tópico citação folclórica a uma esfera
nacionalista, mas observá-lo, também, a partir desta ótica de representação do infantil.
*
Para finalizar esta discussão, é importante ter em consideração o que foi tratado
no início deste capítulo, onde fica claro que explorar musicalmente a infância é uma tarefa
diversa, multifacetada e temporalmente mutável. As citações folclóricas constituem-se
como uma forma notória e incontestável desta exploração. Entretanto, indo além deste
mecanismo, apresentar as formas como Villa-Lobos manifesta a criança musicalmente
não se gosta nesta análise, uma vez que o compositor vai além de um retrato
“convencional” da criança – este relacionado maioritariamente com um caráter alegre e
festivo deste estágio da vida – invocando outras facetas da infância. Retornando às
palavras de Mário de Andrade (1939), as Cirandas podem ser, por inteiro, uma
interpretação do mundo infantil, mundo este caracterizado não só por uma felicidade
idealizada e inerente à figura da criança, mas composto também por seus dramas e medos.

96
4. Temática luso-brasileira: das cirandas às
Cirandas

Neste capítulo pretende-se analisar as relações luso-brasileiras presentes nas


Cirandas de Villa-Lobos, assim como desenvolver alguns tópicos a partir desta reflexão
– nomeadamente os tópicos “modinha” e “fado”. As relações luso-brasileiras presentes
nesta obra podem ser identificadas logo a partir do seu título, uma vez que referem um
gênero comum a ambos os países. Para além disso, constata-se a partilha de algum
material folclórico, fruto de um passado colonial que, na sua constante (re)construção,
deixa vestígios de um sincretismo musical.
Na primeira seção do capítulo, apresenta-se uma reflexão que introduz a discussão
sobre o papel de Portugal nos discursos musicais do Brasil do início do século XX por
meio do discurso de Mário de Andrade. Adiante, discorre-se acerca do contato de Villa-
Lobos com Portugal através das suas viagens e procede-se a uma análise da ciranda,
enquanto gênero comum, e das Cirandas como um retrato desses encontros.

4.1 A presença de Portugal no “folclore” brasileiro: uma reflexão a


partir da perspectiva de Mário de Andrade

Mário de Andrade foi uma das figuras mais emblemáticas do modernismo


brasileiro e como autor e crítico fez transparecer de forma muito clara a sua perspectiva
sobre a presença portuguesa na música brasileira. Assim, através do seu discurso,
pretende-se realizar uma análise da perspetiva do autor, análise esta que possa promover
uma reflexão acerca das relações luso-brasileiras no contexto das Cirandas de Villa-
Lobos.
Uma das mais emblemáticas e polêmicas falas de Villa-Lobos, “o folclore sou eu”
(Mariz 2005, 138), carrega consigo a ideia de que o compositor não só utilizou o folclore
brasileiro como fonte para suas obras mas, nesse processo, passou a ser criador, também
ele, de um “folclore brasileiro”. Nesse folclore, idealizado por Villa-Lobos, convivem
recolhas de temas populares, criações próprias e retratos dos ideais modernistas-
nacionalistas do Brasil do início do século XX. Como parte desta (re)criação de um Brasil,
está o retorno ao que seriam as “origens” da nação e, nesse sentido, a figura do indígena
e do africano constituem-se como estratégia fundamental para a formatação do seu retrato
artístico. Porém, nesse processo, alguns questionamentos tornam-se válidos em relação

97
ao papel de Portugal enquanto colonizador e, por isso, de alguma forma, vinculado às
“origens” do país. Qual seria o lugar da “herança” musical portuguesa nos discursos sobre
música no Brasil do início do século XX? De quais formas essa influência era
manifestada? Onde Portugal, enquanto parte da “origem da nação”, se enquadra na
dualidade “primitivo-civilizado”? Será possível aproximar o colonizador de um universo
“primitivo” e, por isso, colocá-lo, em termos de discurso, ao lado do indígena e do
africano? Ou será este associado à Europa civilizada e, assim, “deglutido” pelos ideais
antropofágicos?
Como um dos idealizadores do projeto artístico de (re)invenção do Brasil,
inclusive musicalmente, Mário de Andrade, em seu emblemático Ensaio sôbre a música
brasileira (1962), dedica-se brevemente a refletir sobre a forma como se deveria
compreender a herança musical portuguesa:

Já escutei de artista nacional que a nossa música tem de ser tirada dos índios. Outros embirrando
com guaraní afirmam que a verdadeira música nacional é... a africana. O mais engraçado é que o
maior número manifesta antipatia por Portugal. Na verdade a música portuguesa é ignorada aqui.
Conhecemos um atilho de pecinhas assim-assim e conhecemos por demais o fado gelatinento de
Coimbra. Nada a gente sabe de Marcos Portugal, pouquíssimo de Rui Coelho e nada de populário
portuga, no entanto puro e bom.
Mas por ignorância ou não, qualquer reação contra Portugal me parece perfeitamente boba. Nós
não temos que reagir contra Portugal, temos é de não nos importarmos com ele. Não tem o mínimo
de desrespeito essa frase minha. É uma verificação de ordem estética. Si a manifestação brasileira
diverge da portuguesa muito que bem, si coincide, si é influência, a gente deve aceitar a
coincidência e reconhecer esta influência. A qual é e não poderia deixar de ser enorme. E reagir
contra isso endeusando boróro ou bantú é cair num unilateralismo tão antibrasileiro como a lírica
de Glauco Velasquez. E aliás é pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se tradicionalisa e se
justifica na cultura europea. Isso é um bem vasto. É o que evita que a música brasileira se resuma
á curiosidade esporádica e exótica do tamelang javanês, do canto achanti, e outros atrativos
deliciosos mas passageiros de exposição universal. (Andrade 1962, 28-29)

O autor acima citado identifica dois pensamentos que circulam sobre a presença
portuguesa na música brasileira: o primeiro é a distância, proposital ou não, que o cenário
artístico brasileiro parece ter em relação ao cenário artístico português; o segundo, refere-
se ao fato de haver algum possível descontentamento relativo ao reconhecimento de uma
influência portuguesa neste Brasil imaginado. Para Mário de Andrade, a solução para este
dilema passa por assumir esta herança como um dado adquirido, como parte da

98
musicalidade brasileira e, além disso, como uma ponte significativa com a cultura
europeia. Adiante, o autor conclui:

O que a gente deve mas é aproveitar todos os elementos que concorrem prá formação permanente
da nossa musicalidade étnica. Os elementos ameríndios servem sim porque existe no brasileiro
uma porcentagem forte de sangue guarani. E o documento ameríndio propriedade nossa mancha
agradavelmente de estranheza e de encanto soturno a música da gente. Os elementos africanos
servem francamente se colhidos no Brasil porque já estão afeiçoados á entidade nacional. Os
elementos onde a gente percebe uma tal ou qual influência portuguesa servem da mesma forma.
(Andrade 1962, 29)

Retornando aos questionamentos que iniciaram este capítulo, é possível concluir


que, segundo Mário de Andrade, Portugal assume um papel muito particular quando
comparado ao da cultura indígena e africana neste contexto. Em princípio, um papel de
“sem-lugar”, onde sua influência não deve ser tão significativa quanto a indígena e
africana – afinal, trata-se do colonizador e, mais ainda, de um resquício do “civilizado
europeu” tão contrário ao “exotismo” e “primitivismo” exigidos. Mas, ao mesmo tempo,
o país não é exatamente o símbolo da Europa civilizada que deveria ser “digerida” –
afinal, é parte fundamental da ideia de miscigenação que dá “origem” ao Brasil enquanto
nação. Portugal, neste contexto, constitui-se como um paradoxo: caminhando numa linha
tênue onde, por vezes, faz parte de uma atmosfera primitiva, que narra (romanticamente)
o encontro entre indígena e colonizador, e, por outras, é também o “civilizado” que não
deve ser relembrado integralmente, mas sim “deglutido” e transformado em produto
nacional. Esta espécie de “presença inevitável” torna-se melhor aceite quando
“abrasileirada”. Isto é, quando as fontes portuguesas passam por um processo
reconhecível de aceitação e “deformação”, termo característico do discurso andradiano
(1934, 105), tornando-se folclore. É esta relação paradoxal que torna complexa a análise
de tópicos luso na música brasileira.

4.2 Villa-Lobos em Portugal: viagens do compositor

Pouco se sabe sobre o contato direto de Villa-Lobos com Portugal. Em termos


composicionais, além do manuscrito incompleto de um “fado” composto em 1929, o
compositor escreveu um Vira, para canto e piano, datado do mesmo ano das Cirandas
(1926) e publicado, em 1987, pela editora parisiense Max Eschig (Museu Villa-Lobos

99
2009). Tanto no catálogo do compositor, Villa-Lobos e sua Obra (Museu Villa-Lobos
2009), como na partitura editada está a referência a Lisboa como local de composição,
sendo que no primeiro caso se lê a seguinte nota: “Tema popular português recolhido pelo
autor". Entretanto, pouco se tem registro sobre as idas de Villa-Lobos a Portugal.
De acordo com os registros de execução de obras do compositor presentes no seu
catálogo (Museu Villa-Lobos 2009), é possível afirmar que Villa-Lobos regeu alguns
concertos em Portugal nos anos 1947 e 1952. O catálogo do apresenta os seguintes
registros:

− Bachianas Brasileiras n° 8: 14/8/47, Portugal - Pavilhão dos Desportos. OSN; Heitor Villa-Lobos,
regente
− Sinfonia n°2: 14/8/47, Portugal - Pavilhão dos Desportos. OSN; Heitor Villa-Lobos, regente
− Descobrimento do Brasil – 1ª Suíte: 14/8/47, Portugal - Pavilhão dos Desportos. OSN; Heitor
Villa-Lobos, regente. 1ª audição em Portugal
− Ouverture De L'homme Tel: 1ª [execução] 25/6/52, Lisboa, Portugal. OSN; Heitor Villa-Lobos,
regente. (Museu Villa-Lobos 2009)

Além dos registros presentes neste catálogo, duas outras fontes confirmam a
presença de Villa-Lobos em Portugal nos anos 1947 e 1952. A primeira são os boletins
informativos do Conservatório Nacional cuja edição do ano escolar de 1946-1947
apresenta uma foto com a descrição “Visita do compositor brasileiro Vila-Lobos [sic]”,
sendo esta a única menção sobre a visita do compositor brasileiro ao Conservatório.

Figura 2 - Villa-Lobos no Conservatório Nacional em Lisboa. Boletim


informativo do Conservatório Nacional, ano escolar 1946-1947, n°1, vol.1
sem página.

100
A segunda fonte é uma série de fotografias, catalogadas online pelo Museu Villa-
Lobos, as quais registram a presença do compositor em Portugal. Algumas estão sem data
e outras referem o ano de 1947 e a década de 1950. As fotos registram, dentre outras
ocasiões, momentos com o então diretor do Conservatório, Ivo Cruz; Villa-Lobos como
regente da “Orquestra de Lisboa” e um “almoço oferecido ao compositor, pelo Secretário
Nacional de Informação no círculo Eça de Queiroz” – segundo as descrições das
fotografias disponíveis online.
Além destas duas visitas, há uma hipótese de Villa-Lobos ter estado em Portugal
aquando de sua primeira viagem à Paris (1923-1924). Tal suspeita advém justamente da
suposta recolha do Vira português em Lisboa. Corroborando com esta hipótese estão as
palavras de Lisa Peppercorn (1985), consagrada biógrafa do compositor, em seu artigo
“Heitor Villa-Lobos in Paris”: “The first time he went to Paris was in 1923 on a one-year
Brazilian government grant to perform not only his own music - of which he did rather
little - but principally to organize and play Brazilian music. This was quite a novelty in
those days in France. He remained in Paris about one year, with short trips to Belgium
and Portugal” (Peppercorn 1985, 235-6). Ademais, a partir do trabalho de inventariação
de Isabel Pina (2016, 20), exposto nos anexos de sua dissertação intitulada
“Neoclassicismo, nacionalismo e latinidade em Luís de Freitas Branco, entre as décadas
de 1910 e 1930”, foi possível identificar uma crítica do compositor português intitulada
“Musica – S. Luís” datada do dia 10 de março de 1924, no Diário de Notícias (1924, 3
citado em Pina 2016, 20). A crítica em questão refere Villa-Lobos como regente em um
concerto no mesmo ano. Assim, apesar das várias lacunas na trajetória do compositor
brasileiro em Portugal, esta breve recapitulação sobre o contato direto de Villa-Lobos
com o país lusófono permite justificar algumas das relações luso-brasileiras neste
capítulo.

4.3 Ciranda: um gênero luso-brasileiro

A importância de abordar a presença portuguesa nas Cirandas encontra-se, logo à


partida, no título da obra. O gênero musical e algumas teorias sobre a sua origem no Brasil
foram abordadas no primeiro capítulo deste trabalho. Porém, torna-se válido relembrar o
vínculo que foi, desde já, estabelecido com Portugal. O musicólogo Luís da Câmara
Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro (1972, 267) não só define a ciranda, como
assinala a sua vinda para o Brasil: “dança infantil de roda vulgaríssima no Brasil e vinda

101
de Portugal”. Salles (2018, 248), ao dissertar sobre a presença da ciranda nos Quartetos
de Villa-Lobos também refere a ligação do gênero com a colonização portuguesa: “A
maioria das cirandas e cantigas infantis surgiu durante o processo de colonização do país,
antes mesmo do florescimento dos grandes centros urbanos, o que só acontece após a
chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808”. Mário de Andrade, por
sua vez, refere-se ao gênero em seu livro Música, doce música (1934). O autor reforça o
caráter “maternal” da relação Portugal-Brasil e concede às “cantigas-de-roda infantis do
Brasil” (Andrade 1934, 94) uma importância particular no que se refere ao
reconhecimento da presença portuguesa na música brasileira:

A influência portuguesa na formação da nacionalidade brasileira foi grande. Nem pode chamar
propriamente de influência o que se deu. Nós somos como início, criação de Portugal, e a entidade
portuguesa exerceu sobre nossa formação os poderes benéficos e maléficos da maternidade. [...]
Assim, a “entidade” da música popular brasileira teve base direta no canto e na dança portuguesa.
[...]
Á medida que o Brasil avança porém na formação e fixação dos caracteres musicais que lhe são
próprios, as fontes portuguesas vão se enfraquecendo. Muitas delas já desapareceram. Onde elas
inda permanecem mais facilmente reconhecíveis é nas cantigas-de-roda infantis do Brasil. [...]
As rodas infantis brasileiras apresentam numerosos processos de variação, deformação e
transformação de elementos musicais e literários das canções portuguesas. Por vezes a mixórdia é
bem intrincada. Troca-se textos e melodias; ajunta-se vários textos ou várias melodias; os textos
se fraccionam e as melodias também; inventa-se melodias novas pra textos tradicionais. (Andrade
1934, 93-4)

No que diz respeito ao gênero ciranda, as relações musicais entre Brasil e Portugal
defendidas por Mário de Andrade, são relevantes, na medida em que aproximam uma
manifestação reconhecida e afirmada como nacional da cultura portuguesa. Porém, indo
de encontro à ideia anteriormente proposta, torna-se válido explicitar como, no discurso
andradiano, o ser “originalmente” português, se converte, de forma mais ou menos
inconsciente, em autêntico e, portanto, nacional brasileiro.
No decorrer da sua argumentação, Mário de Andrade (1934) compara cantigas
infantis brasileiras com cantigas presentes em cancioneiros populares portugueses –
citando Cesar das Neves, Pedro Fernando Tomás, Teófilo Braga, dentre outros. Nesse
sentido, o autor apresenta algumas diferenças no texto e na melodia das canções que,
segundo o mesmo, estariam associadas a uma reconstrução “inconsciente e popular” das
cantigas de forma a que as mesmas se tornassem “mais afeiçoáveis à nossa [brasileira]

102
psicologia étnica” (Andrade 1934, 108-109). Ainda na acepção andradiana, são estas
diferenças ou esta espécie de “escolha não afirmada” que legitimam a cantiga como
nacional, distinguindo-a da europeia:

Não pretendo afirmar que as crianças brasileiras andaram conhecendo e comparando variantes pra
escolher o que ia melhor ao temperamento delas. Mas é curioso constatar essas seleções
inconscientes que formam enfim uma obra de todos, anônima no sentido mais elevado da palavra.
Na roda da ‘Ciranda’ se nota pois um processo de escolha, aceitação, desbastamento, deformação,
que transforma fontes exclusivamente estrangeiras numa organização que, sem ser propriamente
original, já é necessariamente nacional. (Andrade 1934, 109)

Mário de Andrade (1934) não procura necessariamente afastar-se das “raízes”


portuguesas, negando sua influência. Pelo contrário, o autor assume-as e ressignifica-as.
Para o mesmo, o reconhecimento da presença europeia, marcada especialmente por
Portugal na cantiga de roda infantil brasileira é parte do processo, ou da “luta”, para torná-
la autenticamente nacional: “No geral as nossas rodas estão impregnadas dessa tradição
europeia, certamente grandiosa, mas contra a qual lutamos pra nos reconhecermos a nós
mesmos em nossas obras. E pra, enriquecendo a humanidade com aquela contribuição
nova e americana que ela espera de nós, justificarmos a nossa realidade nacional”
(Andrade 1934, 110).
Em Portugal, o tema folclórico designado “Ciranda”, transcrito no Cancioneiro
de Musicas Populares de Cesar das Neves e Gualdino de Campos (1893), deixa clara a
disseminação da cantiga e, por isso, também do próprio gênero no país. Segundo a
descrição dos autores: “Esta moda, própria das ciras, vulgaríssima em todo o país, e no
Brasil, é talvez contemporânea da primitiva alfaia agrícola, a Ciranda, que serve para
joeirar os cereais; é dela que lhe provem o nome, e a ela são alusivas todas as cantigas e
se referem os ditos, como beber por uma cabaça ou assobio, que é o receptor dos grãos”
(Neves e Campos 1893, 131). Corroborando com o termo “moda” como associado à
dança de roda, está a descrição de “moda de roda”, por Margarida Moura e Maria do
Rosário Pestana na Enciclopédia da música em Portugal no século XX (2010, 806), a qual
descreve:

Canção dançada em círculo. Difundida em todo o país, adquiriu diversas designações […]. Os
passos usualmente utilizados incluem: marchas, passos de passeio, passos saltados, saltitados ou
marcados, aos quais os dançarinos por vezes acrescentam passos mais elaborados característicos

103
de outras danças (galopes, malhão, vira, e. o.), e ainda outros improvisados. Geralmente executada
em andamento moderado, a moda de roda utiliza ritmos binários, ternários ou quaternários. […]
A canção estrófica é frequentemente executada pelos dançarinos (geralmente as mulheres) em
uníssono e sem acompanhamento instrumental. Também pode ser executada a duas vozes,
alternando ou não com secções a solo ou com coro em uníssono, com acompanhamento de palmas,
estalido de dedos e um ou mais instrumentos musicais. […] Alguns jogos infantis populares como
“triste-viuvinha”, “pião” ou “a menina-do-meio”, são modas de roda. (Moura e Pestana 2010, 806)

A menção aos jogos infantis e a caracterização ampla das várias formas de se


dançar e cantar a “moda de roda” são comuns às descrições de Luís da Câmara Cascudo
(1972) e Mário de Andrade (1934), reforçando a ideia de ciranda como gênero musical
luso-brasileiro.

4.4 A Teoria dos tópicos no Brasil e a temática luso-brasileira em Villa-


Lobos

Para esta investigação, torna-se relevante referir os tópicos já definidos por outros
autores que se refiram a relações luso-brasileiras. Ao contrário do que se pode observar
nos tópicos associados às temáticas “nacionalista” e “infantil”, a temática em questão não
foi estudada com profundidade no contexto da Teoria dos tópicos. Reiterando a ideia
apresentada no início deste capítulo, embasada nos discursos andradianos – na qual a
herança portuguesa é compreendida como um dado adquirido e por isso logo
“abrasileirada” –, Portugal surge, no discurso sobre tópicos, maioritariamente como parte
de um todo já por si nacional. Enquanto os tópicos que caracterizam a presença africana
e indígena na música brasileira ocupam um lugar de destaque, a representação sonora de
Portugal, enquanto parte da “origem da nação”, aparece atrelada ao conceito de
miscigenação, ou seja, associada a outros símbolos, por sua vez, nacionais. Um exemplo
desta relação está na figura do caipira (abordada na seção 2.5.2) – sendo o caipira, por si,
resultado do “encontro” entre o português e o indígena e representando a dualidade
“civilizado-primitivo”.
Considerando os tópicos, também, uma forma de reler e compreender o Brasil
musical do início do século XX, torna-se importante ponderar o pouco destaque dado ao
universo luso neste campo de estudos que não está apenas relacionado com o enfoque das
recentes pesquisas sobre os tópicos no Brasil mas, também, com a própria estética
modernista-nacionalista brasileira que, como já referido, atribuiu à herança portuguesa

104
uma certa invisibilidade quando comparada com a representação sonora das heranças
africanas e indígenas.
Além da possível relação luso-brasileira que se encontra na figura do caipira, os
“tópicos época-de-ouro”, desenvolvidos por Acácio Piedade, aproximam-se da
representação sonora desta “herança portuguesa”. Mais uma vez, neste caso, o conceito
de miscigenação surge atrelado à colonização e ao “autêntico nacional”. Sobre os “tópicos
época-de-ouro”, Piedade (2013, 56-7) esclarece: “Trata-se aqui do verdadeiro
esquecimento dos conflitos originários e da evocação do mito de origem segundo o qual
o autêntico, o puro, a verdadeira musicalidade brasileira se perdeu nas sombras do
passado mas pode ser reavivada por meio destas figurações época-de-ouro”. Assim, ao
definir os tópicos desta temática, o autor afirma:

O universo de tópicas época-de-ouro inclui floreios melódicos das antigas modinhas, polcas, valsas
e serestas brasileiras. A execução de traços destas melodias ornamentadas evoca a simplicidade, a
singeleza e o lirismo do Brasil antigo. Este Brasil profundo se expressa em floreios melódicos em
certas frases, padrões harmônicos, ornamentação típica (muitas apojaturas e grupetos) que estão
fortemente presentes nas modinhas, polcas, no choro e, a partir daí, em vários outros repertórios
de música brasileira, e mesmo em segmentos de obras de um estilo completamente diferente do
ambiente época-de-ouro. (Piedade 2011, 105)

Paulo Salles (2018), por outro lado, numa reformulação do tópico de Piedade,
propõe o “estilo Carioca” que, por sua vez, também se relaciona com a presença
portuguesa na capital brasileira da época – Rio de Janeiro. O autor reconhece a
similaridade afirmando: “As tópicas do estilo carioca coincidem às vezes com as tópicas
época de ouro propostas por Acácio Piedade, que serão redistribuídas segundo a tipologia
estilística desenvolvida neste trabalho” (Salles 2018, 236). Portanto, Salles propõe uma
divisão em dois subgrupos: o primeiro caracteriza os “tipos mais rápidos, associados com
a dança, como lundu, maxixe, tango brasileiro, polca brasileira etc.,”; o segundo está
“associado aos tipos normalmente tocados e cantados em andamento mais lento, como
modinha, seresta, canção e a valsa brasileira” (Salles 2018, 237). Sobre a definição o
“estilo carioca” o autor esclarece:

O estilo carioca pode ser considerado como representativo da vida nas principais cidades
brasileiras desde a Independência, em 1822, até os anos de 1950, período durante o qual o Rio de
Janeiro foi promovido a capital federal. A cultura dessas grandes cidades é resultante da mistura
de valores socialmente aceitos pelas elites, que os importa dos grandes centros da Europa,

105
especialmente da França, mas necessariamente de Portugal, em contraste com os valores
populares, das culturas periféricas espalhadas pela cidade, nos cortiços, nas favelas. (Salles 2018,
236)

Logo, a “presença” portuguesa no universo musical brasileiro nota-se num


discurso que abrange especialmente as relações entre o antigo colono (seja este
diretamente representado pela corte portuguesa ou não) e o espaço urbano periférico.

4.5 O “luso” nas Cirandas

Como já constatado, o folclore brasileiro e, assim, a sua utilização enquanto


manifestação do “autêntico”, constitui-se como uma confluência de culturas que
“antropofagicamente” deram origem ao Brasil. Nesse sentido, as Cirandas apresentam,
também, elementos da cultura portuguesa. O título do conjunto para piano e as citações
folclóricas evocam esta herança. Abaixo encontram-se as melodias folclóricas presentes
nas Cirandas que se encontram também publicadas em fontes portuguesas:

Ciranda Nome do tema folclórico Fontes portuguesas


musical / conto / letra na
fonte portuguesa
Ciranda n°2 – A Condessa Tema musical: Condessinha Cancioneiro de Musicas
d’Aragão Populares (Neves e Campos
(1895, 25)38

Ciranda n°5 – Pobre Cega Conto: Xácara do Cego Cantos Populares do


Archipelago Açoriano (Braga
1869, 76)

Tema musical: O Ceguinho Cancioneiro de Musicas


Populares (Neves e Campos
1895, 97)

38
Com o título Ó Condessa, Condessinha, a mesma canção folclórica pode ser encontrada também no
Cancioneiro de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça (1981, 20).

106
Ciranda n°6 – Passa passa Tema musical: Passa, passa Cancioneiro Popular Português
Gavião Gabriel (Giacometti e Lopes-Graça
1981, 20)
Ciranda n°7 – Xô, Xô Conto: O Figuinho da Figueira Contos Tradicionais do Povo
Passarinho Português (Braga 2013)
Ciranda n°11 – Nesta rua, Letra: Nesta rua, nesta rua Cancioneiro Popular Português
nesta rua (Vasconcelos e Nunes 1975,
216)

Tabela 7 - Melodias das Cirandas em fontes portuguesas.

Portanto, das 16 Cirandas de Villa-Lobos pelo menos cinco dos temas folclóricos por ele
utilizados podem ter uma “origem” portuguesa.
Para além do próprio título – Cirandas – que, como já desenvolvido neste capítulo,
evoca a “presença” portuguesa na música brasileira, o tópico citação folclórica ganha uma
nova dimensão a partir desta reflexão. Este tópico, nos cinco casos das Cirandas expostos
acima, deixa de evocar somente a temática nacionalista e infantil e passa a abranger,
também, um terceiro elemento na “formação” do Brasil – Portugal e a sua música.
Reiterando a relação de intertextualidade entre o tema folclórico e a Ciranda (já
desenvolvida no primeiro capítulo deste trabalho), caracterizada pela “presença efetiva
de um texto em um outro” (Genette 2006, 8), o texto “original” faz referência ao folclore
português, possibilitando a tripla temática que este tópico pode abarcar – luso, infantil e
nacionalista.
Ainda nesta seção, torna-se importante referir a estreia das pequenas peças em
território português num dos concertos promovidos pela musicóloga Emma Romero
Santos Fonseca. O concerto foi intitulado “Obras de Villa-Lobos / segunda série” 39 e teve
lugar no Club Brasileiro, no dia 29 de novembro de 1934 (Reis e Meneses 1936, 165-
183), quatro anos depois de sua estreia integral no Brasil. Como consta no volume III dos
Seis anos de divulgação musical: programas, conferências, críticas o programa tem a
indicação de “primeiras audições em Portugal” e as pequenas peças são executadas pela
pianista Maria Amélia Teixeira (Reis e Meneses 1936, 165). Para além das Cirandas,

39
O primeiro concerto organizado por Emma Romero Santos Fonseca inteiramente dedicado à obra de
Villa-Lobos teve lugar no Club Brasileiro em março de 1933 e foi intitulado “Obras de Villa-Lobos” (Reis
e Meneses 1934).

107
foram interpretadas a Segunda Sonata (1914) e o Poema da criança e sua mamã (1908),
também de autoria do compositor brasileiro. A conferência de abertura do concerto foi
apresentada por Câmara Reis40 e o texto aborda, essencialmente, “o programa de festivais
dirigidos por Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, em 18 e 20 de junho deste ano [1934], e em
que se executaram dois Grandes Concertos Históricos de Música Brasileira, para fins de
propaganda da arte nacional e beneficência pública”. Câmara Reis destaca o papel do
compositor na educação musical brasileira, com a implementação do Canto Orfeônico no
governo Vargas, e enfatiza o teor nacionalista das obras de Villa-Lobos.

Que pretendemos nós, até certo ponto, no sarau de hoje? Mostrar como, nessa sequência de
séculos, desde as composições primitivas, através dos compositores da época colonial e nacional,
sobrepondo-se às tentativas dos introdutores de temas e ritmos populares brasileiros, Villa-Lobos,
criando já um ambiente elevado, dispondo já duma técnica especial, baseando-se nas melodias,
harmonias, ritmos e contrapontos de todos os géneros populares e típicos, desde os cantos
documentados dos índios da época colombiana até aos da atualidade, tende a criação da forma
genuinamente nacional da música brasileira. (Câmara Reis citado em Reis e Meneses 1936, 176-
7)

Em relação ao programa, o autor destaca as Cirandas e seu retrato do Brasil


reconhecendo alguma presença portuguesa nas pequenas peças:

A “Segunda Sonata”, para violoncelo e piano, tendo a originalidade de todas as obras de Villa-
Lobos, e sendo duma grande beleza em todos os andamentos, não é tão acentuadamente brasileira
como as Cirandas, que, apar das Sertanejas, Serestas, Choros e Noneto, são obras a que Villa-
Lobos deu tais títulos, designando formas originais de composição musical, em que sintetiza as
diferentes modalidades da música brasileira, indígena ou popular, tendo como principais
elementos o ritmo e qualquer melodia típica, de caráter popular, que apareça incidentalmente na
construção da obra como uma vaga lembrança, sempre transformada de acordo com a
personalidade do autor. Os processos rítmicos, harmónicos e contrapontísticos desses géneros de
composição são também quase uma estilização da fonte inspiradora. Representam, por assim dizer,
todo o Brasil musical.
[…] Nos dezasseis trechos das Cirandas vão VV. Ex.ª verificar a beleza dos ritmos, vagas
reminiscências da nossa música, lindas melodias, temas genuinamente brasileiros, influência dos

40
No início de seu texto, Câmara Reis informa que a conferência de abertura do concerto em questão seria
autoria de Frederico de Freitas, recém-chegado do Brasil, o qual não pode comparecer “por motivos de
saúde precária e por deveres oficiais inadiáveis” (Câmara Reis 1934 citado em Reis e Meneses 1936, 171).

108
mais belos lunduns e canções populares. (Câmara Reis 1934 citado em Reis e Meneses 1936, 177-
8)

O texto da conferência remete, essencialmente, para as questões relacionadas com


a temática nacionalista e luso-brasileira desenvolvidas nesta dissertação. Trata-se de um
retrato sonoro do Brasil miscigenado do qual Portugal também é parte, ainda que de forma
mais sutil. Retrato este que apresenta, musicalmente, as características necessárias para
tal: as melodias singelas, os ritmos sincopados, as referências percussivas, dentre outros
elementos. As críticas feitas ao concerto, publicadas no mesmo volume (Reis e Meneses
1936), por sua vez, referem a representação de uma identidade brasileira sem menção à
herança portuguesa.
Os cinco volumes dos Seis anos de divulgação musical: programas, conferências,
críticas (Reis e Menezes 1929-1940) constituem uma fonte relevante no que concerne às
relações Brasil-Portugal. Para além de conterem informações valiosas sobre as peças
brasileiras interpretadas em concertos promovidos por Emma Romero Santos Fonseca,
apresentam um conjunto de transcrições de críticas e conferências relativas aos mesmos,
as quais revelam uma série de percepções e concepções a nível estético, cultural e político.

4.6 A “modinha” e o “fado” como tópicos luso-brasileiros nas Cirandas

Já mencionada no contexto dos “tópicos-de-ouro” desenvolvidos por Piedade


(2011; 2013), a modinha, para Salles (2018, 244) constitui um dos “tipos” encontrados
nos Quartetos de Cordas villalobianos. Dentre as características do gênero nos quartetos,
o autor ressalta o cromatismo e o caráter melancólico “da modinha cantada, sem o recurso
do texto poético”. Salles ainda esclarece que, em Villa-Lobos, as modinhas “não se
parecem muito com as modinhas diatônicas do século XIX, mas adotam o modelo
consagrado por Catulo da Paixão Cearense, seu contemporâneo”, o qual, ao contrário de
outros modinheiros da época, “pretendeu romper” com elementos do lundu,
nomeadamente, a síncope. Por fim, Salles (2018, 246) conclui:

A modinha representa o tipo estilístico do estilo carioca mais associado com a representação de
uma tópica essencial da literatura brasileira: a saudade. Seu caráter sentimental é bastante
reconhecido pela musicologia, e não nos parece necessário reprisar o que já é bem familiar. Porém,
um aspecto importante para análises feitas neste estudo é a correlação da modinha com o

109
cromatismo, o que a distingue estruturalmente da maioria dos tipos estilísticos do estilo carioca.
(Salles 2018, 246)

Do outro lado do Atlântico, Rui Vieira Nery (2004) apresenta uma perspectiva
que vai de acordo com o discurso de Piedade (2011; 2013) e Salles (2018): a modinha, e
também o lundum são fruto de uma intensa interação transatlântica e, por isso, a definição
dos gêneros é complexa e abrangente: “Mais simples ou mais complexos, compostos no
Reino ou na colônia, improvisados por populares ou escritas por compositores
profissionais, cantados nas ruas ou nos palácios, dançados nos terreiros, nos teatros ou
nos salões, o Lundum e a Modinha tornam-se entre o último terço do século XVIII e o
primeiro do XIX, num fortíssimo traço de ligação cultural entre a metrópole e a América
portuguesa” (Nery 2004, 35).
As relações entre a modinha e o fado, ainda que polêmicas, são conhecidas e
reconhecidas no meio musicológico. Nesse sentido, torna-se imprescindível referir o livro
Para uma história do Fado de Rui Vieira Nery (2004). Construindo “uma história do
Fado” também a partir das relações com o Brasil (com o “Fado dançado”), o autor
apresenta alguns denominadores comuns entre os gêneros – modinha e fado – sugerindo
uma possível relação entre ambos. Para provar a proximidade dos mesmos, Nery (2004
32-3) serve-se do exemplo de duas modinhas. Sobre a primeira – Tempo Breve que
Passaste (1794) –, de autoria de António da Silva Leite, o autor afirma:

A música desta modinha, correspondendo ao carácter choroso das palavras, é triste, lamentatória,
em modo menor, construída também ela maioritariamente sobre a alternância de acordes de tónica
e dominante, como vimos que sucedia igualmente no Lundum. Percebe-se que a linha melódica
registada é apenas uma das versões possíveis de construir sobre estes mesmos acordes, e tudo
indica que a mesma música se poderia repetir seguidamente com novas quadras e ser objecto, em
cada estrofe, de novas variações melódicas improvisadas. (Nery 2004, 32)

A segunda denomina-se Cruel Saudade e é de Manuel José Vidigal. Sobre a letra e música
Nery (2004, 33) discorre:

Quando ao ambiente fatalista e saudosista – e de certo modo abertamente “pré-fadista” deste


poema e do anterior [referindo-se ao Tempo Breve que Passaste] – ele é por si só bem evidente.
Por outro lado, também aqui encontramos o mesmo tipo de acompanhamento simples em acordes
harpejados, sem grande variação das harmonias, e a mesma melodia expressiva inspirada pelo
sentimentalismo acentuado dos versos. (Nery 2004, 33)

110
É nesse panorama de intersecções que os tópicos modinha e fado se definem nas
Cirandas de Villa-Lobos. Por um lado, os encontros e as trocas culturais proporcionadas
por um passado comum são retratados nestes tópicos, por outro, as relações com Portugal
são relembradas e enfatizadas pela herança portuguesa expressa diretamente nas citações
folclóricas.

4.6.1 O caso da Ciranda n°2 – A Condessa

É na Ciranda n°2 – A Condessa que se encontra, de forma mais evidente, a


associação com uma melodia transcrita num cancioneiro português. A melodia citada na
peça de Villa-Lobos coincide integralmente com a versão presente no cancioneiro,
inclusive na tonalidade – fá maior. Além disso, Villa-Lobos, assim como na transcrição
de Cesar das Neves e Gualdino de Campos (1895), cita um trecho do tema folclórico
Viuvinha da Banda d’Além - apesar do mesmo não estar mencionado no título da Ciranda.
No caso do cancioneiro de Cesar das Neves Cesar e Gualdino de Campos (1895,
97), a peça apresentada pode ser dividida em A-B – dois temas folclóricos diferentes mas
que são, recorrentemente, apresentados em conjunto. A parte A (compassos 1-16)
apresenta a melodia Condessa d’Aragão e a parte B, em compasso 6/8 (compassos 16-
24), a Viuvinha da Banda d’Além.
Ao contrário de outras Cirandas, A Condessa apresenta a citação do tema
folclórico em toda a sua extensão, podendo ser estruturada em A (compassos 1-28) - B
(compassos 28-47) - A’ (compassos 48-65). A estrutura desta Ciranda tem a
particularidade de ser determinada pelas melodias folclóricas citadas. As partes A e A’
citam a melodia da Condessa d’Aragão e a parte B inclui a melodia Viuvinha da Banda
d’Além.

111
Parte A

Exemplo 32 - Condessinha d’Aragão, compassos 1


Exemplo 31 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 2 - A e 2. Recolha de César das Neves e Gualdino de
Condessa (1926), compassos 3 a 5. Rio de Janeiro: Campos. Porto: Cesar, Campos & Cª, 1895, 25.
Casa Arthur Napoleão, 1927.

Parte B

Exemplo 33 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 2 - A Condessa Exemplo 34 - Condessinha d’Aragão, compassos


(1926), compassos 28 a 31. Rio de Janeiro: Casa Arthur 17 a 19. Recolha de César das Neves e Gualdino
Napoleão, 1927. de Campos. Porto: Cesar, Campos & Cª, 1895, 25.

Apesar da similaridade melódica com o Cancioneiro português, a peça de Villa-


Lobos não apresenta a harmonia em terças. Em relação à harmonia, na Ciranda destaca-
se o uso contínuo de cromatismos no tenor, que contrapõem a estaticidade dos blocos
harmônicos do baixo, acompanhando a primeira parte da melodia. Ainda sobre a linha
cromática, torna-se importante considerar que a mesma faz referência à estrutura
melódica, também cromática, dos primeiros compassos da seção B.
A segunda parte da melodia refere-se ao tema folclórico Viuvinha da Banda
d’Além (compassos 28-47). Contrastando com o caráter calmo do primeiro tema, o
segundo, correspondente à seção B, surge com um andamento mais rápido em compasso
6/8. Esta seção inicia-se com a alusão a um cenário de brincadeira que se dilui num
crescendo que, melodicamente, corresponde à parte da canção folclórica referente à
vontade da Condessa/Viuvinha de se casar.
Na seção A’, a melodia reaparece de forma ritmicamente aumentada, na qual os
“galopes” característicos se tornam tercinas de semicolcheias e semínimas. Além do
retorno ao ostinato cromático, Villa-Lobos insere de forma insistente o dó5 que, devido
ao seu registro agudo, corrobora com a construção de um cenário “frágil” e “pueril”.

112
Insistência no dó5

Melodia ritmicamente
aumentada

Ostinato cromático

Exemplo 35 - Heitor Villa-Lobos, Ciranda nº 2 - A Condessa (1926), compassos 49 a


51. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão, 1927.

Sobre a Ciranda n°2 Schafaschek (2017, 70) afirma:

When setting folk melodies, Villa-Lobos frequently opted for a juxtaposition of melodic events
rather than a vertical harmonization. The most common instances are either a melody against some
form of rhythmic ostinato, as seen in “Que lindos olhos” (pp. 39-40), or a melody against a
rhythmically independent harmonic structure, as found in “Xô, xô, passarinho” (pp. 47-49) and “O
pintor de Cannahy” (pp. 31-32, 40-41). A completely different texture is found in the central
section of “A condessa” [The countess], the third piece of the set. Here the composer uses plain
homophony to emphasize textural elements found in the first section of the piece. (Schafaschek
2017, 70)

Destacando esta particularidade em A Condessa, o autor refere a linha cromática presente


no acompanhamento como “mais desenvolvida” em relação à versão que consta no Guia
Prático (Villa-Lobos 2009c, 81). Ao contrário da maioria das Cirandas nas quais, como
afirmou Schafaschek, predominam ostinatos complexos a nível rítmico e harmônico, na
Ciranda nº2 o ostinato cromático do tenor confere-lhe um caráter singelo e “quase triste”
(Tarquinio 2012, 129). O ostinato em questão, ainda que como acompanhamento da
melodia folclórica, não se apresenta essencialmente harmônico ou ritmicamente
complexo assumindo, portanto, um desenho melódico simples que remete à ideia de
“dedilhado”, dissociada do piano e associada ao violão/guitarra.
Acordando com esta perspectiva e relembrando a afirmação de Correa do Lago
no Guia Prático (Villa-Lobos 2009a, 137) sobre a fato da lenda associada ao tema d’A
Condessa provir de “antigas xácaras e romances ibéricos”, Tarquinio (2012, 127) afirma:
“O quadro que emerge, associando o gênero da melodia com as características e sentido
da letra, é de um trovador, que declama, ou canta uma história, acompanhado
possivelmente por instrumento de cordas dedilhadas”.

113
O compasso ternário, o acompanhamento lento, cromático, quase sofrido,
proporciona uma releitura da própria melodia folclórica acentuando o seu caráter lírico,
simples e declamatório. Por um lado, considerando os tópicos desenvolvidos, em primeira
instância, para uma análise da música erudita no século XVIII, é possível associar tais
características ao “tópico pastoral”. Raymond Monelle (2006), no capítulo quatro de seu
livro The Musical Topic: Hunt, Military and Pastoral, aborda a temática “pastoral” de
forma ampla, desde a sua construção enquanto gênero literário até à sua representação
sonora. O autor, ao referir-se aos “atos pastorais” da ópera L’Orfeo (1607) de Claudio
Monteverdi, define um conjunto de seis características associadas ao “tópico pastoral”,
cuja descrição corrobora com a conotação que pode ser atribuída à Ciranda n°2:

1. the range of the vocal line seldom exceeds a fifth,


2. the melody proceeds stepwise, seldom in leaps,
3. periodically framed songlike phrasing and melody are preferred,
4. the rhythm is limited to constantly repeated stress-patterns and dance-like
schemes, often in triple time with characteristic dotted effects,
5. the harmony is not expressive, distant scale-degrees are entirely missing
6. in the instrumental and vocal dance numbers, the tonality operates principally in the major area.
(Jung 1980, 124, slightly paraphrased). (Monelle 2006, 220-1)

Além disso, outros dois elementos referidos pelo autor podem enfatizar a relação
da Ciranda com a temática pastoral. O primeiro parte da ideia de “inocência” e
“juventude”. Sobre esta relação – “juventude” e “pastoral” – Monelle (2006, 271)
esclarece:

The pastoral is about finding perfection in innocence, heaven in the uncorrupted, true morality in
the irresponsible, the mystic vision of maturity in an allegory of youth and simplicity. These are
the meanings universally expressed by composers of all ages, from the pellucid Monteverdi to the
overheated Strauss, from the clear-edged Vivaldi to the lyric Brahms, from the fragrant Scarlatti
to the picture-postcard Respighi, from the pious Bach to the atheist Janácek, the sensualist Debussy
and the agnostic Vaughan Williams. (Monelle 2006, 271)

O segundo conceito, desenvolvido pelo mesmo autor na seção 15, intitulada “New
Pastorals”, refere-se ao folclore. De Schubert a Debussy, Monelle (2006) analisa a
associação entre a temática pastoral e as formas de utilização do folclore na composição
erudita do século XIX em diante.

114
We have seen, in Haydn and Beethoven, the adapted folksong functioning as a pastoral signifier.
There were, of course, folksongs in the music of older composers; Bach’s Peasant Cantata (no.
212) is based on several of these. This signifier comes to dominate the pastoral topic in the
nineteenth century, however. We may classify this as the “rustic” pastoral; it plays a major part in
Romantic melos. (Monelle 2006, 251)

Por outro lado, retornando ao contexto histórico-social do Brasil do início do


século XX e à relação enfática da Ciranda n°2 com o cancioneiro de Cesar das Neves e
Gualdino de Campos (1895), algumas das características citadas anteriormente –
nomeadamente o acompanhamento cromático lento, “dedilhado”, quase sofrido, a
melodia folclórica lírica, simples e declamatória –, juntamente com outros elementos
apresentados adiante, podem sugerir uma associação com dois gêneros musicais, não tão
distantes, cuja história se insere num cenário de relações luso-brasileiras – a modinha e o
fado.
O acompanhamento cromático sugere a ideia de “dedilhado” num instrumento de
cordas, talvez o violão e/ou a guitarra portuguesa, além de um caráter quase melancólico
enfatizado pelo cromatismo não tonal do acompanhamento da mão esquerda. Em termos
rítmicos, a aumentação da melodia na seção A’ e os diversos rallentandos presentes ao
logo da peça, representam o arrastar de uma lânguida declamação. Além disso, o
surgimento de uma segunda melodia (compassos 21-25) funciona como uma espécie de
contracanto ou ainda como appoggiaturas em relação à melodia principal, propondo uma
ideia de diálogo entre vozes ou entre solista e instrumento acompanhador.
Tais características aludem à modinha, gênero luso-brasileiro transitório entre as
esferas do erudito e do popular e presente em outras obras de Villa-Lobos. Como referido
anteriormente, o caráter nostálgico acentuado pelo cromatismo e a natureza declamatória
da melodia relacionam a Ciranda nº2 ao universo das “tópicas época-de-ouro” de Piedade
(2011; 2013) e do “estilo carioca” definido por Salles (2018), aproximando a pequena
peça do contexto colonial luso-brasileiro.
Sob outra perspectiva, não contrária mas complementar, as características
elencadas sobre a Ciranda n°2 podem aproximá-la do tópico fado. Neste caso, não se faz
referência necessariamente ao gênero em si, mas a uma ideia, por vezes estereotipada,
que se tem do mesmo. Nas palavras de Mário de Andrade (1962, 28) “o fado gelatinento
de Coimbra”. De acordo com Adalberto Paranhos (2017, 58), em seu artigo intitulado

115
“Xô, fado! Nacionalismo e antilusitanismo na terra do samba”, foi entre anos de 1930 e
1939 o “momento de maior difusão” do fado no Brasil, especialmente em termos
fonográficos e ligados, maioritariamente, ao nome do fadista Manuel Monteiro. Apesar
do trabalho de Paranhos (2017) identificar os registros fonográficos de fado no Brasil
somente na década de 1930 (concluindo sua pesquisa com um total 172 fonogramas),
sendo esse o ápice da divulgação do gênero português em território brasileiro, supõe-se
que as décadas anteriores já teriam notícias do fado. Além disso, de acordo com o catálogo
de Villa- Lobos (Museu Villa-Lobos 2009), o compositor teria começado a compor um
“fado” em 1929, conforme consta no autógrafo de um rascunho intitulado “Fado”. Tal
manuscrito pode corroborar com a ideia de que Villa-Lobos conhecia o gênero português.
Ainda nesse sentido, de acordo com Vetromilla (2010, 54), é a partir do livro A
Música no Brasil de Guilherme de Mello (1908) que Villa-Lobos busca conhecimento
sobre alguns dos temas folclóricos transcritos nas Cirandas. Em seu livro, Mello (1908)
procede a uma divisão de seções a partir do que o autor chama de “influências”, sendo
estas: indígena, jesuítica, portuguesa, africana e espanhola, bragantina, de D. João VI, de
D. Pedro I, de D. Pedro II e republicana. O tema A Condessa é enquadrado por Mello
(1908, 82) na seção da “influência portuguesa, africana e espanhola” como um “tipo
especial e característico dos nossos costumes coloniais”. Assim, a hipótese de Villa-
Lobos estar a par destes temas folclóricos a partir da obra de Mello (1908) também
corrobora com o fato do compositor considerar a origem portuguesa da canção folclórica.
Com esta reflexão considera-se a presença dos tópicos pastoral, modinha e fado
na Ciranda n°2. Tais conceitos tendem a compartilhar certas características como a
simplicidade melódica, harmônica, os desenhos melódicos ornamentados, a padronização
rítmica (que no caso da modinha e do fado torna-se válida dado o caráter acompanhador
do(a) violão/guitarra) e a baixa densidade sonora.

4.7 Outras relações luso-brasileiras

4.7.1 O caso da Ciranda n°6 – Passa, passa Gavião

Ao contrário dos exemplos que se seguem, nos quais a semelhança com as fontes
portuguesas é conseguida a partir do conto e/ou da letra relacionada ao tema folclórico, o
tema Passa, passa Gavião presente na Ciranda n°6 encontra-se transcrito de forma muito
similar no Cancioneiro popular português de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça

116
(1981, 20). Uma das diferenças que se constatou está no título – a fonte portuguesa utiliza
a palavra “Gabriel” em vez de “gavião”. Na estrutura melódica e rítmica notam-se poucas
diferenças, nomeadamente a tonalidade e o registro da melodia (lá maior/fá sustenido
menor na Ciranda e sol maior no cancioneiro português) e alguns intervalos melódicos e
figuras rítmicas.

Exemplo 36 - Transcrição de parte da melodia da Ciranda nº 6 – Passa, passa gavião, compassos 15 a 24.

Diferente tonalidade e
registro

Exemplo de diferença
intervalar

Exemplo de diferença
rítmica

Exemplo 37 - Passa, passa, Gabriel. Recolha de Michel Giacometti e Fernando Lopes-


Graça. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, 20.

A letra, presente no Guita Prático (Villa-Lobos 2009), também difere da versão


portuguesa:

Lá na ponte da Vinhaça Passa, passa, Gabriel


Todo mundo passa Todo o mundo passa,
Lá na ponte da Vinhaça Passa, passa ,Gabriel,
Todo mundo passa Todo o mundo passa.
Os cavaleiros fazem assim
Os cavaleiros fazem assim As lavadeiras fazem assim:
Assim, assim, assim Ai, ai, ai, ai,
Assim, assim, assim (Villa-Lobos 2009) Todo o mundo passa. (Giacometti e
Lopes-Graça 1981)

117
Relativamente à brincadeira associada à cantiga no Cancioneiro popular
português (Giacometti e Lopes-Graça 1981, 303), os autores descrevem: “Neste
conhecido jogo infantil, os gestos das ‘lavadeiras’ podem ser substituídos pelos de outros
ofícios ou ocupações, a combinar pelas crianças”. Acordando com a mesma ideia, Marli
Ávila em sua tese descreve o texto e a “ludicidade” da canção da seguinte forma: “Texto
- Descrição de brincadeira cantada, em que as profissões são apresentadas por meio de
mímica. [...] Ludicidade – A movimentação segue o pulso da música, podendo variar o
andamento. É também uma roda de movimento na qual as crianças em roda cantam e
imitam a movimentação sugerida pelas diferentes profissões” (Ávila 2010, 59). Além
disso, a autora identifica a origem do tema folclórico como sendo francesa com o título
Sur le pont d’Avignon, referindo-se a outra das nomenclaturas associadas ao tema
folclórico – Lá na ponte de Vinhaça.
Por outro lado, Júlia Tygel (2014) afirma: “Na brincadeira infantil homônima [à
canção Passa, passa Gavião], uma criança literalmente passa por entre as mãos cruzadas
de outras duas, que estão levantadas para o alto. Na peça, o tema da canção é apresentado
acompanhado de figurações escalares em graus conjuntos, talvez em alusão ao
movimento de ida e volta da criança entre um lado e o outro da ponte feita pelas mãos
cruzadas de suas colegas” (Tygel 2014, 326).
Assim, apesar das diversas similaridades entre os temas folclóricos apresentados,
não foi encontrado nenhum outro registro ou variação da mesma cantiga – considerando
os três volumes do cancioneiro de Cesar das Neves e Gualdino de Campos (1893; 1895;
1899). A suposta “versão original” da canção, em francês, poderá ter chegado ao Brasil
já traduzida e variada pelo próprio folclore português. Porém, sendo o Cancioneiro
popular português de Giacometti e Lopes-Graça bastante posterior à composição das
Cirandas de Villa-Lobos, torna-se difícil estabelecer relações consistentes que suscitem
tópicos luso-brasileiros nesta pequena peça.

118
4.7.2 O caso das Cirandas n°5 – Pobre Cega, n°7 – Xô, xô passarinho e n°11 – Nesta
rua, nesta rua

A melodia folclórica citada na Ciranda n°5 – Pobre Cega encontra-se transcrita


no Guia Prático (Villa-Lobos 2009, 45) com o título Pobre Cego41. A lenda sobre a qual
foi escrita a letra da canção é sobre uma menina chamada Anna que, com o consentimento
da própria mãe, é raptada por um homem que finge ser cego e pede a sua ajuda para
conseguir seguir o seu caminho. A mesma lenda, com o nome Xácara do Cego, pode ser
encontrada no Cancioneiro Cantos Populares do Archipelago Açoriano de Teófilo Braga
(1869, 372) com a seguinte descrição: “É popular nos Açores; suponho que é uma
transformação remotíssima, senão uma criação alusiva às primitivas relações da
sociedade mosarabe” (Braga 1869, 464).
Da mesma forma, mas desta vez musicada, o cancioneiro de Cesar das Neves e
Gualdino de Campos (1895, 97) conta a história de Anna e o cego, com o título O
ceguinho:

No tempo dos ricos senhores feudais vivia numa aldeia, em companhia da mãe, uma formosíssima
rapariga chamada Anna, cuja peregrina beleza tinha cativado muitos condes e duques. Um destes
nobres, não podendo vencer a formal recusa da bonita aldeã disfarçou-se em cego pedinte e, de
combinação com a própria mãe de Anna, bateu-lhe uma noite à porta, pedindo para que lhe
ensinassem o caminho de que se tinha perdido. Anna carregando a roca do branco linho foi então
encaminhar o cego, o qual tendo fora aldeia muitos criados a espera, a montou a cavalo, levando-
a para o seu castelo. Recolhido na Povoa de Lanhoso, em 1895, por Gonçalo Sampaio. Deve ser
antiquíssima. (Neves e Campos 1895, 97)

Em seu livro Romanceiro folclórico do Brasil, Rossini Tavares de Lima (1971


citado em Silva 2016, 47) identifica um total de onze versões do romance ibérico em
território brasileiro. O autor afirma: “Possivelmente se origina de uma velha balada
relativa à vida de Jaime V, rei da Escócia, falecido em 1542, que se disfarçava em trajes

41
Torna-se importante referir a contradição que se apresenta no título da Ciranda em relação a uma das
versões presentes no Guia Prático (Villa-Lobos 2009), à Xácara do Cego presente no Cancioneiro Popular
Açoriano (1869, 372) e ao Ceguinho presente no cancioneiro de Cesar das Neves e Gualdino de Campos
(1895, 97). A Ciranda n°5 é a única com o adjetivo (“cego”) no feminino. O Museu Villa-Lobos não possui
o autógrafo da Ciranda n°5 para clarificar se o título no feminino seria um erro de edição ou a intenção do
compositor. Sobre esta questão, Vetromilla (2010, 59-62) faz uma afirmação relevante na medida em que
considera que a “confusão” fosse explicada “pela fala da menina que descobre ter sido ‘cega’ em relação à
própria mãe. […] Discute-se, portanto, a possibilidade do compositor manejar esses títulos também com
certa imaginação e interpretação, a partir de seu conhecimento da lenda”.

119
de mendigo para andar correndo pelas aldeias e pelos escuros” (Lima 1971, 51 citado em
Silva 2016, 47).
Numa tentativa de relacionar a melodia e a história presentes no cancioneiro
português com a Ciranda n°5, é preciso considerar que a melodia folclórica presente na
Ciranda se refere à letra de Pobre Cego (semelhante à letra apresentada na versão do
cancioneiro português) apresentada no Guia Prático (Villa-Lobos 2009a, 45) – uma vez
que a Ciranda e versão do Guia Prático possuem a mesma estrutura melódica. Porém, as
melodias da Ciranda n°5 e d’O Ceguinho, conforme consta cancioneiro português de
Cesar das Neves e Gualdino de Campos (1895, 97), não são similares e, por isso, torna-
se difícil estabelecer uma relação entre as duas, a não ser, justamente, pela história que
possivelmente dá origem a ambos os temas.
Em relação à Ciranda n°7 – Xô, xô passarinho, torna-se essencial citar a
dissertação de Márcia Vetromilla (2010) intitulada “’Ciranda nº 7’ de Heitor Villa-Lobos:
um estudo da relação entre o texto musical e o enredo implícito na cantiga folclórica
utilizada”. Em seu trabalho, a autora clarifica as variadas versões das lendas que dão
origem ao tema folclórico, além de enumerar uma série de títulos que denominam as
diferentes variantes musicais. Nas palavras de Vetromilla (2010, 79):

As versões citadas narram a lenda de uma menina condenada pela madrasta, na ausência do pai, a
guardar os figos de uma figueira para que os passarinhos não os biquem. Fracassando em sua
tarefa, depois de passar o dia a espantar pássaros, a menina é enterrada viva no jardim da própria
casa. No local cresce um capim que se confunde com os cabelos da menina. Ao se aproximar o
momento de aparar esse capim, o jardineiro escuta um canto vindo de debaixo da terra no qual a
menina pede ao capineiro do pai que não lhe corte os cabelos, que outrora foram penteados pelo
pai (ou mãe), e delata a madrasta, por tê-la enterrado. (Vetromilla 2010,79)

Nos Contos tradicionais do Brasil, Luís Câmara Cascudo (2014) apresenta uma
versão da mesma história com o título “A menina enterrada viva”, recolhida em Natal,
Rio Grande do Norte. Numa tentativa de reconstituição das origens da lenda, o autor
apresenta evidências de sua presença em Portugal, nomeadamente registrada no livro de
Teófilo Braga (2013), intitulado Contos Tradicionais do Povo Português. Como se
verifica, o mesmo conto, desta vez recolhido no Algarve, é relatado pelo sociólogo
português com o título O figuinho da figueira. Corroborando com o passado luso-
brasileiro, o autor apresenta seguinte nota: “NOTA: Nos Contos Populares Portugueses,
n.º XLI, vem uma versão de Coimbra sob o título A Menina e o Figo. Acha-se nos Contos

120
Populares do Brasil n.º XVI, com o título A Madrasta. Celso de Magalhães coligiu-o na
tradição oral do Maranhão”.
Mais uma vez considerando a letra apresentada pelo Guia Prático (Villa-Lobos
2009b, 89) como base da melodia que se apresenta na Ciranda n°7, a semelhança com os
versos portugueses (Braga 2013) é evidente:

Ao contrário do caso da Ciranda n°5 – Pobre cega, apesar das semelhanças entre
o conto e a letra da canção Xô, xô passarinho, não foi encontrada nenhuma
correspondência musical em fontes portuguesas o que, mais uma vez, dificulta uma
comparação mais aprofundada, assim como impossibilita a identificação e a análise de
tópicos que possam se referir à temática luso-brasileira neste caso.
Episódio semelhante acontece na Ciranda n°11 – Nesta rua, nesta rua a qual,
considerando, também, a letra presente no Guia Prático (Villa-Lobos 2009a, 28),
apresenta uma versão da letra no Cancioneiro popular português de José Leite
Vasconcelos e Maria Arminda Zaluar Nunes (1975, 216). Mais uma vez, em termos
musicais, não foi encontrada nenhuma correspondência entre a Ciranda n°11 e
cancioneiros portugueses.
*
Nos casos acima mencionados, as figurações musicais características do discurso
villalobiano parecem referir-se a aspectos do conto ou da letra da canção folclórica. É
fato que as relações luso-brasileiras se fazem presentes pelo menos nestas Cirandas, mas
as formas pelas quais essa presença é efetivada aproximam mais ou menos o tema
folclórico e o seu entorno do contexto português. O caso da Ciranda n°2 – A Condessa,
constitui-se como o exemplo mais afirmativo desta relação porque tornam-se visíveis
alguns tópicos que remetem à cultura portuguesa e ao Brasil colonial. Por outro lado, a
Ciranda n°6 – Passa, passa gavião, coincide, na transcrição da melodia folclórica, com
a melodia apresentada pelo Cancioneiro popular português (Giacometti e Lopes-Graça
1981, 20). Porém, além de não ter sido encontrado nenhum registro do tema folclórico

121
em fontes portuguesas anteriores à composição das Cirandas, mais uma vez, não foram
identificados outros tópicos que enfatizassem as possíveis relações luso-brasileiras, a não
ser pela própria citação folclórica.

122
Conclusão

Ao longo da investigação que deu origem a este trabalho, desenvolveu-se uma


análise às Cirandas de Heitor Villa-Lobos a partir da Teoria dos tópicos, organizada sob
três temáticas distintas – nacionalista, infantil e luso-brasileira. Como produto deste
diálogo entre contextos e análise estrutural, proposto pela Teoria dos tópicos, foram
definidos oito tópicos que são apresentados a partir de casos concretos em algumas
Cirandas. Com a identificação e o desenvolvimento destes, desenvolve-se uma nova
interpretação das Cirandas, interpretação essa que as põe em diálogo com o Brasil dos
anos 20 – este estético, cultural e político – e com a trajetória de Villa-Lobos.
Contrapondo o conteúdo teórico e os casos práticos que compõem este trabalho,
algumas conclusões e questionamentos se tornam relevantes. O primeiro capítulo, como
sendo uma primeira abordagem às Cirandas, constata e desenvolve uma ideia essencial:
a presença enfática do folclore infantil nas pequenas peças não torna as Cirandas uma
harmonização de melodias infantis. Tal concepção é fundamental para classificar, em
termos musicais, o objeto de estudo aqui proposto e, a partir de então, compreender como
se dão as relações, mais ou menos hierárquicas, entre melodia e entorno viallalobiano.
Adiante, amplia-se esse ponto de vista dialógico na medida em que são estudadas
não só as relações entre melodia e entorno musical, mas entre a peça, como um todo, e o
entorno contextual. Nesse sentido, propõe-se uma análise que tem como base três
universos coexistentes nas Cirandas, denominados, neste caso, temáticas – nacionalista,
infantil e luso-brasileira. Estas, num primeiro plano, podem ser pensadas de forma mais
específica – como se verifica na organização deste trabalho no qual as temáticas são
desenvolvidas separadamente. Porém, por outro lado, a partir desta análise “individual”
torna-se claro o caráter intrincado e complexo das associações entre estas temáticas e os
tópicos concebidos.
Relativamente às três temáticas, cabem aqui algumas considerações. Sobre o
desenvolvimento da temática nacionalista conclui-se que apesar do enfoque na construção
de uma identidade nacional, inscrita na obra e na trajetória de Villa-Lobos, a necessidade
de corresponder aos padrões europeus é evidente na escrita musical das Cirandas. A
dualidade nacional-europeu deixa de ser totalmente opositiva e passa a ser complementar
na medida em que, neste contexto, torna-se necessário criar uma identidade nacional que
corresponda aos critérios da audiência internacional. Assim, neste panorama, os tópicos
citação folclórica, síncope brasileira e ostinato e os conceitos de “primitivo”, “selvagem”,
123
“exótico”, dentre outros, não se referem somente à formação de uma linguagem musical
que expresse os ideais nacionais. Estes também participam, de certa forma, numa
estratégia para a internacionalização da música brasileira e da própria carreira do
compositor42.
No capítulo 3 reflete-se acerca da proximidade da obra de Villa-Lobos com o
universo infantil. A referência à infância nas Cirandas, por meio dos tópicos citação
folclórica, síncope brasileira e algazarra não é ocasional nem tem um fim em si. Constitui-
se como um retrato da concepção villalobiana de criança e da importância que o
compositor concede a este estágio da vida e às suas características. Compreende-se,
portanto, que a representação musical do universo infantil em Villa-Lobos ultrapassa a
esfera da música para criança e torna-se sobre a criança que o compositor considera um
ser completo e essencial para uma perspectiva de “futuro nacional”.
O capítulo relativo à temática luso-brasileira atesta outro ponto de vista
inexplorado sobre as pequenas peças. Na busca pelas relações entre luso-brasilidade e as
Cirandas, propõe-se uma breve reconstrução do contato de Villa-Lobos com Portugal e
disserta-se sobre o papel desse país no pensamento estético modernista brasileiro. Nesta
reflexão, mediada pela ciranda enquanto gênero comum aos dois países, pela partilha de
temas folclóricos citados nas pequenas peças e pelo discurso andradiano, conclui-se que
a alusão a Portugal se verifica, pelos menos, de duas formas. A primeira refere-se ao
passado colonial: a presença portuguesa que se instaura na colônia das mais variadas
maneiras e constrói, juntamente com outras culturas ali instaladas, parte do folclore e da
música brasileira. A segunda está na visão estereotipada da cultura portuguesa, seja por
parte do próprio Villa-Lobos ou um reflexo de um ponto de vista generalizado de Portugal
no Brasil da época.
Nesse sentido, o estudo da presença portuguesa nas pequenas peças em análise
pode servir de ponte para uma reflexão aprofundada acerca das relações musicais luso-
brasileira no início do século XX. Ainda assim, as muitas lacunas sobre a temática luso-
brasileira associada a Villa-Lobos e ao contexto modernista/nacionalista no Brasil
constituem-se como um difícil desafio no estabelecimento de relações musicais, inclusive
no caso particular das Cirandas. Ao apresentar uma espécie de cronologia do estudo

42
Nesse sentido, torna-se válido ressaltar que a estreia das Cirandas em Paris (ainda que não integralmente),
de acordo com o catálogo do compositor (MVL 2009), foi apenas sete meses depois (14/03/1930) da estreia
das Cirandas no Brasil.

124
musical das relações luso-brasileiras, o musicólogo Paulo Castagna, num artigo de 1995
que em parte permanece atual, afirma:

Resta aos musicólogos brasileiros e portugueses iniciarem a tarefa de aproximação da musicologia


dos dois países, a única forma de propiciar um aumento futuro do contato entre a totalidade das
nossas manifestações musicais e a consequente universalização e expansão da pesquisa e do
repertório musical luso-brasileiro no cenário internacional da música erudita. (Castagna 1995, 17)

Partindo para uma visão que considere a intersecção entre estas temáticas, conclui-
se que as mesmas não se constroem nem se desenvolvem separadamente. Pelo contrário,
são os tópicos que articulam estas diferentes esferas. Um tópico pode fazer referência a
diferentes temáticas associando-se a uma paleta de significados que, por vezes, são
miscigenados. Assim, considerando o conteúdo sobre o nacionalismo, a infância, a
questão luso-brasileira e as ideias desenvolvidas a partir destas temáticas, é possível
propor outros termos – subdivisões destas temáticas – que caracterizam os tópicos aqui
desenvolvidos.
No âmbito da temática nacionalista, formulam-se os subtemas “cultura indígena”43
e “cultura africana”, que se subdividem nos seguintes tópicos:
- Síncope brasileira especialmente ligada a ideia do ritmo contramétrico e
percussivo da herança africana;
- Dança ritual associada ao “primitivismo” do “bárbaro” que, no caso brasileiro,
é o indígena;
- Ostinato que se encontra num intermédio entre a “cultura africana” e a “cultura
indígena”, reiterando as relações com a música popular e o caráter repetitivo e estático
ligado à dança de roda e às culturas ancestrais.
Na temática infantil, que pode se dividir nos subtemas “brincadeira” e
“conflito/drama”, enquadram-se os tópicos:
- Síncope brasileira relacionada ao caráter “descompassado” e irregular do
brincar em detrimento das regras de uma fase adulta;
- Algazarra como representativa da confusão sonora atrelada ao universo da
infância.

43
A referência às diferentes “culturas” é, na verdade, relativa a ideias, muitas vezes, estereotipadas destas
culturas. Como é caso, por exemplo, da concepção de fado ou das quartas e quintas justas paralelas no
repertório indígena, dentre outros.

125
Estes são referentes a duas facetas da criança: a brincadeira e o conflito. Esta
dualidade vai de encontro à concepção de Mário de Andrade (1939, 4-5) – apresentada
na seção 3.1 – na qual Villa-Lobos, ao longo de sua obra, apresenta variados “modos de
estar” da criança, explorando o lado ingênuo e alegre deste estágio da vida mas, também,
os seus dramas e monstros.
No caso da questão luso-brasileira, consideram-se os subtemas “cultura
portuguesa” e “Brasil colonial”, dos quais surgem os tópicos:
- Fado associado a um estereótipo da cultura portuguesa;
- Modinha relativa à construção de um gênero que é fruto de um passado comum.
Ambos os tópicos são evidentes no caso da Ciranda n°2 – A Condessa, retratando o
passado colonial brasileiro, cuja modinha constitui um exemplo enfático deste
sincretismo e, ao mesmo tempo, o estereótipo de um fado, enquanto símbolo nacional
português.
Ainda de forma mais intrincada do que as associações já constatadas entre
temáticas e tópicos, e entre os próprios tópicos, estão os casos dos tópicos:
- Caipira figura legitimada na cultura brasileira como sendo a junção entre
indígena e português;
- Citação folclórica aspecto unificador e simbólico das Cirandas.
O primeiro, enquanto figura miscigenada que congrega o indígena e o português,
reúne em si a contradição “selvagem-civilizado” como se constata no caso da Ciranda
n°3 – Senhora Dona Sancha – onde as terças paralelas referem o “canto em terças”
característico do caipira e, ao mesmo tempo, o ostinato alude ao tópico dança ritual
relacionado ao universo indígena. Por fim, é o tópico citação folclórica que congrega em
si todas as temáticas sendo, também ele, uma espécie de produto do “mito das três raças”.
O protagonismo do folclore, como já discutido, é expresso através dos títulos das
pequenas peças, da própria citação melódica e do entorno que, de alguma forma, reconta
as lendas folclóricas. É, afinal, neste protagonismo que incide também a interação entre
as próprias temáticas, isto é, todas culminam na citação folclórica. A fim de tornar mais
clara estas intersecções, recorre-se ao seguinte gráfico:

126
Gráfico 3 – Esquema de relações entre temáticas, subtemas e tópicos.

Este gráfico procura ilustrar as complexas relações entre temáticas e tópicos no


caso das Cirandas. O enquadramento destes tópicos em esferas maiores proporciona uma
visão clara de algumas ideias importantes para o cenário brasileiro dos anos 1920, além
de enfatizar o caráter híbrido dos próprios tópicos enquanto emergentes de diferentes
temáticas. Retornamos, portanto, à definição concebida na introdução desta dissertação
na qual, concordando com Hatten (1994), um tópico pode abarcar uma multiplicidade de
sentidos.
Conceber um mapa das relações entre música, esfera contextual e estética vigente
pode resultar numa infinidade de possibilidades. Por outro lado, este esforço pode trazer
respostas e novas perspectivas sobre a própria obra e sobre a conjuntura que a
circunscreve. Ainda que com muito por explorar, a análise do panorama específico das
Cirandas possibilitou uma leitura inovadora das pequenas peças e das relações destas
com seu contexto. Nesta perspectiva, o trabalho aqui proposto não se esgota nesta análise,
mas, antes, contribui para a construção de uma teia de significações, mais ou menos
mutáveis, que se constrói a partir da obra de Villa-Lobos no cenário brasileiro do início
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127
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Vetromilla, Márcia da Costa. 2010. “‘Ciranda No 7’ de Heitor Villa-Lobos: um estudo


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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Villa-Lobos, Heitor. 2009a. Guia Prático para a educação artística e musical, 1º volume:
estudo folclórico musical. Editado por Manoel Lago, Sérgio Barboza e Maria
Clara Barbosa. 1º caderno. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Música/Fundação Nacional de Artes.

Villa-Lobos, Heitor. 2009b. Guia Prático para a educação artística e musical, 1º volume:
estudo folclórico musical. Editado por Manoel Lago, Sérgio Barboza e Maria
Clara Barbosa. 2º caderno. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Música/Fundação Nacional de Artes.

Villa-Lobos, Heitor. 2009c Guia Prático para a educação artística e musical, 1º volume:
estudo folclórico musical. Editado por Manoel Lago, Sérgio Barboza e Maria
Clara Barbosa. 3º caderno. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Música/Fundação Nacional de Artes.

Wisnik, José Miguel. 1983. O coro dos contrários. 2a ed. São Paulo: Livraria duas
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História do Povo Kalunga. 2001. Brasília: Ministério da Educação (MEC).

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https://museuvillalobos.acervos.museus.gov.br/fotografias/?view_mode=masonry&perp
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Villa-Lobos, sua obra. 2009. Rio de Janeiro: Minc/IBRAM - Museu Villa-Lobos.

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