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VEREDAS 23 (Santiago de Compostela, 2015), p. 77-93.

O símile épico em Camões:


Touros, cães e infidelidade
PEDRO MADEIRA
pdmadeira@gmail.com
Universidade de Lisboa
(Portugal)

Resumo:
Em três passos d' Os Lusíadas as manobras de um exército português que defronta muçulmanos são
ilustradas com símiles tauromáquicos em que figuram também cães. Dada a associação tradicional
dos cães, ou “perros”, à infidelidade, estabelece-se frequentemente uma confusão entre os contendo-
res. O propósito deste estudo é mostrar que esta confusão se integra num tecido alusivo que se arti-
cula numa autoridade discursiva oposta à justificação religiosa de um império comercial.

Palavras-Chave: Infidelidade; mouros; símile; império; Reconquista.

Abstract:
In three separate occasions, Camões illustrates the manoeuvres of a Portuguese army facing Mus -
lims with bullfighting similes, in which dogs have a prominent role. Given the traditional associati-
on of dogs and infidelity, a perplexing confusion between armies is established. The aim of the pre-
sent study is to show that this confusion relates to a web of allusions through which a discursive
authority that rejects the religious justification of a comercial empire is insinuated.

Keywords: Infidelity; Moors; simile; empire; Reconquista.

Data de receção: 01/12/2014


Data de aceitação: 29/05/2015
78 Pedro Madeira

Roger Stephens Jones e Ronald Sousa verificaram que as comparações alargadas n'
Os Lusíadas contrariam de modo desconcertante aquilo que se espera da épica, ou me-
lhor, a perspectiva crítica que pressupõe a adesão estrita da epopeia à propaganda ofi-
cial veiculada pelas crónicas quinhentistas. A maior causa de perplexidade para estes
autores é a insistência com que acções militares de mouros e portugueses são compa-
radas, ao longo do poema, com os mesmos objectos, sejam figuras históricas, como
Átila1, ou animais como touros e cães. O caso das comparações com touros, quatro no
total, duas das quais separadas por menos de vinte estâncias, é particularmente notá -
vel. Segundo Jones, “in terms of the poem as a whole”, símiles como o de iii, 47 con-
fundem “the distinction between Moslem and Christian Portuguese” (241). Este efeito
resulta da apresentação sucessiva de comparações que têm semelhanças não só ao ní-
vel do “pensamento propriamente dito”, a acção militar que ilustram, e do segundo ter-
mo de comparação, a acção do touro, mas também do léxico. O uso pejorativo dos
termos “perro” e “cão”, conotados com a infidelidade, na vizinhança de passos em que
os portugueses são comparados a cães exacerba a confusão.
Cerca de uma década mais tarde, Ronald W. Sousa fez notar que, nalguns casos, a
correspondência entre os termos é esclarecida muito depois de ser introduzida a com-
paração, cujo sentido fica em suspenso, e entra, quando finalmente esclarecido, em
contradição com o que o contexto fazia esperar, com as expectativas formais associa-
das à figura altamente codificada do símile épico, e mesmo com a expectativa ideológi-
ca de que os portugueses correspondam à figura mais simpática da comparação.
O pressuposto de que a epopeia se caracteriza pelo domínio absoluto de uma “voz
épica” impõe a rejeição a priori destes desvios, que são reconduzidos à regra, à manei-
ra de Faria e Sousa, ou desvalorizados como erros do poeta, como fez o “censor” José
Agostinho de Macedo. Seguindo a tradição classicista que este último representa nos
estudos camonianos, Jones reconhece a confusão, mas, nega a possibilidade de uma es-
tratégia discursiva global que a torne significativa, atribuindo aos símiles que mais
problemas põem à sua teoria geral da epopeia uma função meramente ilustrativa. Fa -
zendo-o, força a epopeia a uma univocidade que lhe é estranha 2, e desconsidera as ca-
racterísticas específicas de um poema cuja estrutura depende mais de uma organização
discursiva do que de uma sequência narrativa 3. Tudo o que implica desdouro dos por-

1 Em iii, 20 o exército muçulmano que travou a Batalha do Salado é comparado ao exército de Átila;
em iV, 24 Nun'Álvares é comparado ao “Huno” (Cf. Jones, p. 244).
2 R. O. A. M. Lyne, por exemplo, no livro Further Voices in Virgil's Aeneid (New York: Oxford
University Press, 1992 [1987]) argumenta que o bucolismo implica, já na Eneida, uma valorização
negativa do império.
3 A “unidade [do poema] não é, portanto, predominantemente de ordem narrativa, mas sim de ordem
discursiva. (…) o poema é sobretudo um longo discurso que insere no seu desenvolvimento trechos
narrativos” (Matos, Introdução, p. 42).
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 79

tugueses é descuido do poeta. Mas as sugestões de que mouros e portugueses não se


distinguem essencialmente são demasiado frequentes para que a tese do poeta distraí -
do seja verosímil. Mais sensata é a posição de Sousa, que as integra numa estratégia
discursiva deliberada, embora a teoria do “instinto aristocrático” com que tenta aco -
modar o poema à ideologia cavaleiresca que Jorge de Sena e António José Saraiva, en -
tre outros, julgaram ver n'Os Lusíadas me pareça muito discutível 4. O seu artigo tem
muito em comum com o paradigma da crítica apologética de Faria e Sousa. Nenhuma
destas posições reconhece importância à ambiguidade que no poema anda sistematica-
mente associada ao tema da infidelidade, e de que os símiles são uma das causas. Jun-
tamente com o tecido de alusões associadas à “perspectiva pastoril” 5, esta ambiguidade
insinua um critério moral que contradiz aquilo a que se pode chamar “voz épica”, ou
talvez com mais propriedade a propaganda oficial da expansão.
Parece arriscado sobrepor as categorias “ideal hero” e “corrupted barbarian” (Jones,
p. 244), respectivamente, a portugueses e muçulmanos. A ideia de que Camões atribuía
aos muçulmanos “[a] barbaric disregard of social conventions” (Jones, p. 242)6 é in-
compatível com o entendimento mútuo em Melinde, baseado numa civilização comum,
na partilha dos valores guerreiros e comerciais das empresas expansionistas e na con-
comitante exclusão dos “próprios da terra”7, cuja humildade Camões enaltece na Elegia
iii. Iludindo as expectativas criadas pela voz épica, o poeta constrói uma autoridade
moral que comenta a narração e expõe, contra o discurso oficial, a motivação comerci-
al da presença portuguesa no Oriente. Desse ponto de vista, estando cristãos e muçul-
manos numa relação de concorrência comercial, as conquistas de ambos são
igualmente ilegítimas.

I – Touros e cães em Moçambique


O artigo de Roger Stephens Jones divide os símiles de Os Lusíadas em duas catego-
rias. De um lado põe os “naturais” ou homéricos, que são “vivid, zestful illuminations
of the (...) dramatic moment” (245); do outro, os “históricos” ou virgilianos, esses sim,
“reflecting, in a complex fashion, the poem's moral theme” (Jones, p. 239). De acordo
com Jones, os símiles em que “um processo humano finito” é comparado “com um fe-

4 “the nobility not only possesses an instinct for success in battle, but along with—or as a part of—that
instinct comes some sort of understanding of, and therefore cooperation with, God's plan for the
history into which the battle immediatly at hand is being inserted” (Sousa, p. 265).
5 Assim definida por Helder Macedo: “Da perspectiva pastoril, associada ao mito da Idade de Oiro, a
própria matéria da celebração épica (…) é produto e sintoma da decadência que fizeram cair a
humanidade na Idade do Ferro” (128). O autor identifica com a “voz pastoril” (129), por exemplo, o
discurso do Velho do Restelo.
6 Segundo Jones, Camões acreditava que “the Moslems represented everything opposed to the
Portuguese ideal: heathen, cunning, malevolent and barbaric, they were the epitome of moral
disorder” (240).
7 cf. H. Macedo, 385,4.
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nómeno do mundo dos animais” (Lausberg, p. 239) (são deste tipo todos os exemplos
de símiles “naturais” recolhidos no artigo) têm “a purely illustrative and enlivening
rôle” (Jones, p. 240) e nenhuma implicação moral.
Há porém uma inconsistência nesta proposta de classificação. O primeiro termo da
oposição entre símiles “naturais” e “históricos” é substituído tacitamente na conclusão
por outro, símiles “concerned with the events and wonders of da Gama's voyage” (Jo-
nes, p. 245). O problema é que não há identidade entre os termos. Dos seis exemplos
de símiles “naturais” referidos por Jones, apenas três servem para descrever aconteci -
mentos da viagem do Gama, e desses apenas um descreve uma “maravilha”. Os outros
três servem para ilustrar episódios da História de Portugal passada (contada pelo
Gama ao rei de Melinde) e futura (cantada por Tétis no Canto X).
A aproximação do famoso símile da sanguessuga (V, 21) aos símiles com touros pa-
rece reforçar a tese de que “the nature similes (...) lack (...) any sense of continuity”
(Jones, p. 241). Como o efeito desconcertante, a confusão entre mouros e portugueses,
é cumulativo, Jones pretende neutralizá-lo isolando artificialmente as comparações
“naturais” umas das outras, e do seu contexto. Mas não é de modo algum evidente que
a representação de uma “maravilha” como a tromba de água deva ser considerada uma
mera ilustração8, mesmo que se pudesse aceitar a sua proposta de classificação. Parece-
me ainda que o facto de esta confusão ser reiterada ao longo do poema recomenda
uma revisão daquilo que consideramos ser as opiniões de Camões. De facto, onde se -
não na sua obra as poderemos encontrar?
A suspeita de intencionalidade torna-se quase uma certeza quando, na leitura isola-
da das passagens em que ocorrem estes símiles, encontramos intacto o efeito perturba-
dor, e isto desde que, em i 87-899, se caracteriza pela primeira vez uma acção humana
pelo símile, por ocasião de uma escaramuça na ilha de Moçambique:
Andam pela ribeira alva, arenosa,
Os belicosos Mouros acenando
Com a adarga e co a hástia perigosa,
Os fortes Portugueses incitando.
Não sofre muito a gente generosa
Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;
Qualquer em terra salta, tão ligeiro,
Que nenhum dizer pode que é primeiro:

Qual, no corro sanguino, o ledo amante,


Vendo a fermosa dama desejada,

8 A interpretação de David Quint de V, 21 vai no sentido contrário. Segundo este crítico, a tromba de
água prefigura o Adamastor, que por sua vez representa a resistência dos africanos ao domínio
europeu (cf. “The Epic Curse and Camoes' Adamastor.” Epic and Empire . New Jersey: Princeton U. P.,
1993 (99-130).
9 Para as citações do poema sigo a edição de Emanuel Paulo Ramos, indicada na bibliografia.
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O touro busca, e, pondo-se diante,


Salta, corre, sibila, acena e brada,
Mas o animal atroce, nesse instante,
Com a fronte cornígera inclinada,
Bramando, duro corre e os olhos cerra,
Derriba, fere e mata e põe por terra.

Eis nos batéis o fogo se levanta


Na furiosa e dura artilheria,
A plúmbea péla mata, o brado espanta,
Ferido, o ar retumba e assovia.
Sousa observa que “through the first half of the simile, one is quite lost with regard
to what the points of comparison really are” (259). Entende que o símile, de que os úl -
timos quatro versos de 87 seriam uma introdução, está inteiramente contido em 88, e,
portanto, que a hesitação afecta apenas os quatro primeiros versos desta estância. Mas
a resposta portuguesa à provocação dos “belicosos Mouros”, uma pesada carga de arti-
lharia só aparece em 89. Antes disso não se pode concluir que “the portuguese action
of routing the coastal ambush (...) is being characterized by the bull's charge” (Sousa,
p. 260), pelo que o estado de suspensão abrange pelo menos a totalidade da estância
88.
Embora o advérbio “eis” não seja uma fórmula regular de introduzir o segundo ter-
mo de uma comparação alargada, não há dúvida de que a irrupção da artilharia em i,
89 marca uma inversão do sentido. Até aí, o leitor tinha boas razões para acreditar que
a comparação era outra. Quando aparece, a conjunção “Qual” parece ter por antece-
dente “gente generosa”, logo, os portugueses estariam a ser comparados ao “ledo
amante”. Essa correspondência é pouco depois negada, embora a repetição da forma
“salta” (i, 88, v. 4) reitere a sugestão que a sintaxe recusa. Entretanto, a conjunção ad-
versativa “mas” (i, 88, v. 5) baralha ainda mais as correspondências. De qualquer modo,
a indecisão contamina já irremediavelmente este passo e os pares gente generosa-tou-
ro e Cães-amante10, criando uma ambiguidade que desmente o louvor dos portugue-
ses11.
A introdução do símile está, aliás, nos primeiros quatro versos da estância 87, não
nos últimos. Entre esses versos e a imagem tauromáquica há uma continuidade perfei-
ta, que a segunda imagem dos cães arreganhando os dentes interrompe, perturbando o
que de outro modo seria uma sequência narrativa linear. Esta inversão dramática do

10 “ the (…) initial syntactic disjuncture between the points of comparison creates a vagueness that
partially frees the simile from a reading (...) grounded in grammar-like logic” (Sousa, p. 259).
11 Neste ponto, concordo com Sousa, que escreve que o esclarecimento do sentido gramatical do símile
“comes too late for redress of the mode of reading the simile” (259). Ao contrário de Jones, Sousa
considera este efeito significativo, mas, como escrevo na introdução, recondu-lo à interpretação
tradicional: “the simile's primary force is to characterize the Portuguese response in armed
confrontation, in terms of both psychology and physical force; in so doing, it dwells on irrational
animal-like qualities” (260).
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sentido da comparação ludibria também expectativas mais gerais que reforçavam a lei-
tura provisória do passo: “Effective as the simile may be (…), it does not mesh with the
overall movement of the poem, for it is the Portuguese, not the Moslems, who are as-
sociated with love in the poem supported as they are by the Godess of Love herself”
(Jones, p. 241).
Em i, 89 não se quebra apenas o elo sintáctico entre “gente generosa” e a acção dos
portugueses em Moçambique, quebra-se um elo semântico fundamental que põe em
causa a esperada adesão do poema à “voz épica”. Surpreendentemente, aos navegado-
res portugueses corresponde, no plano da comparação, não o toureiro, que exibe a va-
lentia correspondente ao epíteto “generosa” das linhas anteriores, mas a figura
moralmente repugnante do touro.
Para salvaguardar o louvor do herói português, Jones rejeita as evidentes conota -
ções morais da comparação, que serviria apenas para dar vivacidade à descrição da ac-
ção dos portugueses. Mas a estância explicita que a reacção portuguesa é tão “cega” e
desproporcionada como a do touro, desautorizando completamente a redução dos ter-
tia comparationis à superioridade material do vencedor:
Não se contenta a gente Portuguesa,
Mas, seguindo a vitória, estrue e mata;
A povoação sem muro e sem defesa
Esbombardeia, acende e desbarata.
(i, 90)
Se dúvidas houvesse, os indícios de conduta vergonhosa dos portugueses comanda-
dos por Vasco da Gama são confirmados por outro mecanismo discursivo: a colisão da
prática de Vasco da Gama com as “moralidades que o narrador tornado sujeito do
enunciado faz aflorar à estrutura de superfície” (AlVes, p. 469). Hélio J. S. Alves mos-
trou o funcionamento deste mecanismo precisamente neste passo, que descreve um
comportamento claramente abrangido pela máxima “é fraqueza entre ovelhas ser leão”
(i, 68), corolário da estância em que se recomenda não usar a artilharia contra um ini-
migo indefeso: “Porque o generoso ânimo e valente, / Entre gentes tão poucas e me-
drosas, / Não mostra quanto pode” (i, 68).
A descrição da exageradíssima reacção dos portugueses, afim da carga do “animal
atroce”, ocupa a totalidade das estrofes 89, 90 e 91, e ainda os seis primeiros versos da
92. Só então aparece o verdadeiro remate da comparação. A acção que se compara com
a carga do touro inclui, portanto, a injustificável decisão de “seguir a vitória” com a
destruição da aldeia, uma vez desbaratado o insignificante exército que a defendia:
Destarte o Português, enfim, castiga
A vil malícia, pérfida, inimiga.
(i, 92: 7-8)
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A conjunção “destarte” é, entre as estâncias 88 e 92, o único meio gramaticalmente


escorreito, e sancionado pelo uso do poeta, de resolver a expectativa criada pela con -
junção “qual”12. O advérbio “enfim” (no sentido de “finalmente”) sublinha a distância
entre as duas conjunções. Lido assim, o símile descomunal reflecte a desproporção
monstruosa do ataque português, acentuando a ironia da dupla adjectivação da “malí-
cia” do inimigo, que não é nem “vil” nem “pérfida”, primeiro porque se alguém mostra
valor na refrega são os mouros, segundo porque, entre inimigos, a malícia é recíproca
e corresponde à prudência militar mais elementar. O que a imagem do touro põe em
evidência é o contraste entre a força dos portugueses e a sua fraqueza moral, bem
como a brutalidade que dele resulta.
Note-se ainda que o atributo “covarde” em i, 90 não implica vitupério daqueles afri-
canos que se puseram diante dos portugueses, cujo denodo é confirmado por uma
morte honrosa: “Já foge o escondido, de medroso, / E morre o descoberto aventuroso”
(i, 89 7-8). Compreende-se assim que os muçulmanos não estão a ser insultados gratui-
tamente, como Sousa e Jones pretendem, por ser naturalmente odientos. Pelo contrá-
rio, Camões mina subtilmente a conotação pejorativa do termo “cão” e, por
conseguinte, a ideologia que suporta a justificação religiosa da expansão.

II – Touros e cães na Reconquista


A aventura moçambicana dá o tom à representação da relação entre portugueses e
maometanos no resto do poema. Quando os dois blocos se encontram pela primeira
vez o poeta prepara o leitor para uma oposição significativa entre heróis virtuosos e
bárbaros corruptos que as irregularidades na exposição desmentem. Pode mesmo di-
zer-se que a diferença religiosa é apenas aparente. A ocorrência de “cães” em i, 87 é
apenas um dos modos de sugerir uma distinção que nunca se confirma.
A mesma estratégia aparece na narração do reinado de Afonso Henriques ao rei de
Melinde. Dois símiles com touros, com termos que remetem para i, 88-92, ilustram ba-
talhas travadas por Afonso Henriques, e acrescentam a estas ambiguidades o efeito
acumulado de que fala Jones. A haver diferença, não corresponde certamente à distin-
ção “natural” entre heróis admiráveis e bárbaros desprezíveis, o que dificulta muito a
identificação dos contendores. Em iii, 47 e 48, “the Moslems (...) are the bull and the
portuguese a bull-mastiff” (Jones 241). Menos de vinte estâncias depois, em iii, 66 e 67,
eis que se invertem os papeis, e os portugueses liderados por Afonso Henriques são

12 “Qual (…), tal (…)”, ou “Bem como (…) destarte (...)” introduzem habitualmente os termos da
comparação, por exemplo, em iii, 47-48 e iii, 49-50, respectivamente. A este propósito, note-se que
Faria e Sousa considera que cada um destes pares constitui uma “clausula”. O comentário de Faria e
Sousa a i, 89 justifica o uso da conjunção, assinalando, assim, a irregularidade na introdução do
segundo termo de comparação: “Usa el P. com frequencia desta voz (que es el Ecce del Latin, vale,
veys aqui patente) i siempre cõ las condiciones que deve usarse, que es quando se advierte, que se
oye, ò vè alguna coisa com novedad no pensada” (ii: 352).
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como um touro no cio. O primeiro dos dois símiles integra a narração da batalha de
Ourique:
Qual cos gritos e vozes incitado,
Pola montanha, o rábido moloso
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso;
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo, mais ligeiro que forçoso,
Até que, enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta:

Tal do rei novo o estamago acendido


Por Deus e polo povo juntamente,
O Bárbaro comete, apercebido
Co animoso exército rompente.
(iii, 47-48)
Afonso Henriques, duplamente encorajado por Cristo e pelo povo, ataca o exército
dos Cinco Reis no campo de Ourique com a mesma tenacidade com que um molosso
assalta um touro. A comparação dá uma imagem bastante viva de uma manobra de
guerrilha concebida para compensar a desigualdade de forças que o confronto directo
poria de manifesto. Mas não é possível escamotear o conspícuo vocábulo “Perros” nos
últimos versos de iii, 48, a sequência imediata do símile:
Levantam nisto os Perros o alarido
Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam!
Jones resolve sumariamente o problema: “Perros” é sinónimo de mouros e “Camões
expects his reader, very quickly indeed, to forget that the image of the dog is em-
ployed, only a few lines before, to praise the Portuguese”. Conclui, à maneira de Agos -
tinho de Macedo: “Such inattention of cumulative effect is typical of all the poet's
nature similes” (Jones, p. 241). Mas será verosímil que Camões esqueça uma compara-
ção que fez na mesma estrofe? Jones não está disposto a admitir que a proximidade
semântica faz recair o insulto sobre os portugueses. Assume que o leitor quinhentista
identificaria necessariamente a expressão com os muçulmanos . Mas o testemunho de
Faria e Sousa, que sentiu a necessidade de justificar o que parece ser um insulto gra -
tuito13, sugere que os leitores contemporâneos de Camões teriam alguma relutância em
aceitar linguagem deste tipo numa epopeia.

13 Faria e Sousa remete para o seu comentário a i, 87: “No se piense que el Poeta llama canes a estis
Moros, i negros, porque lo son, como oy hazen algunos, llamando canes, o perros a los que una vez
se hicieran Christianos, que esso es impiedad” (i 349-50).
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 85

E no entanto, só a conotação injuriosa do termo impede que se estabeleça a associa-


ção entre estes “perros” e os portugueses. Tanto mais quanto o símile do molosso não
diz exactamente respeito ao exército, mas ao “novo rei” português, designado obliqua-
mente pela pitoresca14 sinédoque15 do “estamago acendido”. Chamar “cães” aos solda-
dos por ele comandados não é mais que uma extensão da comparação. A confusão
surge, outra vez, quando um termo pejorativo habitualmente usado para referir os mu-
çulmanos aparece numa posição em que mais facilmente designaria os portugueses.
Desde o primeiro momento, é quase impossível dizer quem são os cães ou os infiéis.
Tudo aqui parece concebido para quebrar a solidariedade com a ideologia subjacente
ao insulto.
O facto de em iii, 49 ser introduzido, sem transição, um segundo símile a descrever
a reacção do inimigo, como se esta não tivesse ainda sido referida, torna quase obriga-
tória a identificação destes “perros” com os portugueses:
Bem como quando a flama que ateada
Foi nos áridos campos (assoprando
O sibilante Bóreas), animada
Co vento, o seco mato vai queimando;
A pastoral companha, que deitada
Co doce sono estava, despertando
Ao estridor do fogo que se ateia,
Recolhe o fato e foge pera a aldeia:

Destarte o Mouro, atónito e torvado,


Toma sem tento as armas mui depressa;
Não foge, mas espera confiado,
E o ginete belígero arremessa.
iii 49-50
Os pastores que fogem do incêndio são comparados aos mouros que não fogem.
Isto é mais uma fonte de perplexidade, pois a forma do símile fazia esperar a seme-
lhança entre a reacção do exército surpreendido e o fenómeno familiar que a ilustra, a
fuga dos pastores. O contraste dos termos explícitos desta comparação inesperada -
mente antitética, as reacções à ameaça repentina, faz sobressair a analogia entre os fe-
nómenos que alarmam mouros e pastores.
Dir-se-ia que ambos são surpreendidos pelo “estridor” da força destruidora que se
aproxima, o que sugere que a iniciativa pertenceu aos portugueses. O uso do adjectivo

14 A José Agostinho de Macedo parece impróprio usar esta “víscera” para representar o “ânimo” do rei:
“aqui parece que se deve tomar por molestia que Deos déra ao Rei, pois parece a inflammação desta
víscera, estomago
15 Emanuel accendido”
Paulo Ramos, (1: 62).do poema sigo neste artigo, dá o passo como exemplo de silepse,
cuja edição
com a seguinte justificação: “Comete não concorda com estamago mas com Rei novo ” (Camões, p.
610). Na verdade, o predicado concorda com ambos, e, além disso, não há nenhuma falta de
concordância com “estâmago”, o sujeito gramatical da frase. Ramos parece estar interessado em
evitar que “estâmago” seja tomado por sujeito, presumivelmente por lhe parecer que a frase é
imprópria de uma epopeia.
86 Pedro Madeira

“atónito”16, cujo sentido etimológico é “assustado pelo ruído do trovão”, é consistente


com esta interpretação. A torvação do mouro é, aliás, o ponto de chegada de uma lon-
guíssima cadeia metonímica que começa na aclamação de Afonso Henriques em iii, 46.
Os portugueses comunicam a chama dos seus “ânimos (…) inflamados” pelo sopro,
quer dizer, pelos gritos, ao rei (ou ao “estamago” do rei) “diante do exército potente /
Dos immigos” (iii, 46). O latido do molosso mantém a voz do lado português. Final-
mente, o fogo comunica-se metonimicamente ao campo de batalha, no símile do incên-
dio, que recupera a imagem de um fogo acendido pelo sopro, desta vez do “sibilante
Bóreas” (iii, 49). Vozes e vento, ambos com a função de “inflamar”, fundem-se numa
imagem incendiária que percorre todo o passo. O insulto aos muçulmanos far-se-ia,
portanto, à custa do nexo causal subjacente a esta cadeia e à sequência narrativa, que
só se salva se os portugueses forem os “perros” que fazem soar as tubas.
Sem dúvida, um inimigo “atónito” que “Toma sem tento as armas mui depressa” foi
surpreendido. Segundo Faria e Sousa, o verso é imitado da Eneida. Despertado pela
“grita” dos gregos que assaltam Tróia, também Eneias se arma à pressa: “exoritur cla-
morque virum clangorque tubarum. / arma amens capio; nec sat rationis in armis”
(Eneida 2.313-14). Pouco antes, o herói troiano também comparara o seu sobressalto ao
de um pastor que vê os campos devastados por um incêndio (cf. Eneida 2. 304-8). Esta
alusão ao texto fundador da épica do Renascimento reforça a ideia de que a astúcia e o
ruído, não o favor divino, valeram a vitória aos portugueses, e valida a sua identifica-
ção com os “cães”.
Contudo, a Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, a fonte de Camões
para este episódio, não fala de uma emboscada, mas de “batalha campall aprazada”
(66). Embora não se refira que os mouros tenham feito “alarido” em Ourique, lê-se aí
que Afonso Henriques mandou “dar aas trombetas, atabaques e anafijs”, para acordar
os seus próprios homens: “os do arrayall foram loguo todos aleuamtados” (GalVão, p.
61). É como se a crónica atestasse a identidade de perros e portugueses. Mas, enquanto
que no texto mais antigo a música antecede a aclamação e o milagre, n'Os Lusíadas as
“tubas” ouvem-se depois, durante a batalha. O facto de Camões ser habitualmente tão
fiel às fontes historiográficas — é comum falar-se de “crónica rimada” — torna especi -
almente significativo um desvio que naturaliza uma vitória atribuída por Duarte Gal-
vão a intercessão divina.
A crónica relata, contudo, uma manobra de guerrilha em que as trombetas foram,
realmente, determinantes:: a carga de sessenta cavaleiros cristãos liderados pelo pri-
meiro rei português contra os “quatro mill [homens] de cauallo, e saseemta mill de

16 Faria e Sousa: “Vsado a buen tiempo; porque vale atronado com el estruendo de las armas” (2: 76-
77).
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 87

pee” (GalVão, p. 145) do “rei” mouro de Badajoz. O pequeno contingente português em


missão de reconhecimento avista, perto de Palmela, os mouros “descuydados de verem
nem acharem alli christaãos”. Afonso Henriques expõe então aos seus homens uma
táctica que coincide perfeitamente com a versão camoniana da batalha de Ourique:
“Ho medo em que os Deus ja pos pera nos, mayormemte sedermos nelles de sobreu-
emta, fara que lhes pareçamos mujtos mais dos que ssomos, e elles assim meesmos,
menos mujtos dos que sam” (GalVão, p. 146). Passando à prática a sua teoria, aprovei-
ta a posição vantajosa no terreno para surpreender o inimigo antes que este se possa
organizar. Para lhe dar a ilusão de estar a ser atacado por um grande exército, “em sse
mostramdo fez dar aas trombetas”, e “ffoi o medo nelles tam gramde que começaram
loguo a fogir”. Aqui “emtrou”, observa o cronista, “saber de cauallaria” ( GalVão, p.
148).
O mouro de Ourique que, ao arrepio do movimento esperado do símile, “não foge,
mas espera”, alude, pelo contraste, àquele passo da história de Afonso Henriques em
que este efectivamente põe em fuga um exército muito mais numeroso, sem que para
isso seja necessário um milagre. Cruzando as duas batalhas num quadro compósito,
Camões afirma a autonomia do poema, a que o material de base é submetido, de tal
maneira que a sua carga ideológica acaba completamente subvertida.
Ao nível da economia interna do poema, o símile confirma o vínculo semântico en-
tre as duas batalhas, já que o passo que narra a vitória sobre o rei de Badajoz em Pal-
mela contém a terceira comparação com touros17:
(...) qual no mês de Maio o bravo touro,
Cos ciúmes da vaca, arreceosos,
Sentindo gente, o bruto e cego amante,
Salteia o descuidado caminhante:

Destarte Afonso, súbito mostrado,


Na gente dá, que passa bem segura,
Fere, mata, derriba, denodado;
Foge o rei Mouro, e só da vida cura.
(iii, 66-7)
Menos de vinte estâncias depois de iii, 47-8, reencontramos a comparação com o
touro, de novo caracterizando o ataque de Afonso Henriques a um exército muito mais
poderoso no contexto da Reconquista. A semelhança dos touros — ambos são bravos e
à “força horrenda” do primeiro correspondem a bruteza e a cegueira deste — condiz
com a semelhança das situações que ilustram. Contudo, desta vez o touro volta a ser
português, como no símile do Canto i.
A inconsistência no uso das comparações com touros e cães, referida por Jones,
manifesta-se sobretudo aqui. Se era pouco provável que Camões (ou o leitor) se esque-

17 Há quatro no poema. O último aparece em X, 34.


88 Pedro Madeira

cesse da comparação do molosso na mesma estrofe em que é introduzida, não é menos


improvável que se esqueça agora de ter empregado a imagem do touro em iii, 47. Além
disso, a “manifesta interferência do poeta sobre os textos cronísticos” (AlVes, p. 472) é
um indício fortíssimo de uma estratégia deliberada de subversão da “voz épica”.
Esta não é, aliás, a única via pela qual Camões insinua na epopeia uma autoridade
discordante que censura a conduta do herói, neste caso Afonso Henriques. Segundo
Maria Vitalina Leal de Matos, o primeiro rei de Portugal, não obstante parecer “um dos
heróis predilectos de Camões”, é um “herói incómodo” (Canto 150), e Hélio J. S. Alves
mostrou que a ambiguidade do epíteto “soberbo”, que, como forte, designa simultanea-
mente um vício e uma virtude, contamina o fundador do reino de Portugal: “D. Afonso
Henriques é 'soberbo' só quando procura uma conquista indevida [de Badajoz, precisa-
mente] e vem a ser do 'divino Juízo castigado' (iii, 72-74)” (AlVes, p. 458). A esse pro-
pósito também José Madeira escreve que “[n]a mesma estância 18 (…) se encontra
registado o erro e o castigo” (Madeira, p. 74). A verdadeira causa do desastre de Bada-
joz é, portanto, política, não a “maldição da mãe” (iii, 70) que a disfarça no discurso
oficial. Ainda segundo José Madeira, este episódio integra uma “invectiva geral contra
a guerra ofensiva” (77).
A este quadro junta-se a estratégia que esbate sistematicamente a distinção entre
sectários do Islão e cristãos no plano da viagem. Ao nível da economia global do poe -
ma, os símiles com touros estão ligados por uma espécie de rede de simpatias (lexicais,
estilísticas, semânticas) que se impõe sobre a ordem narrativa, criando uma confusão
que transcende o contexto imediato dos símiles.
Touros e cães têm inegáveis conotações negativas e são associados ora a portugue-
ses, ora aos seus inimigos. Aqueles parecem-se com um “touro” quando atacam os ha-
bitantes da Ilha de Moçambique; depois, na Reconquista, o touro corresponde primeiro
ao exército mouro, e, imediatamente a seguir, novamente ao exército cristão. Portanto,
como nota Jones, o touro não simboliza apenas “the devastating powers of Portugal”
(Jones, p. 241), o que, segundo ele, seria próprio de uma epopeia, mas também não cor-
responde sempre ao exército mais potente. Esgotadas estas possibilidades, conclui:
“[the similes] exist merely for the moment in the narrative at which they occur and
then call on our attention no more” ( Jones, p. 241). Há nisto uma contradição. O ponto
de partida do artigo é precisamente a constação de que os símiles sucessivos relembra-
mao leitor as ambiguidades dos anteriores, acrescentando-lhes outras. O artigo de Jo-
nes é a prova de que estes símiles chamam a atenção.

18 “(...) estando na cidade que cercara, / Cercado nela foi dos Leoneses, / Porque a conquista dela lhe
tomara / De Leão sendo e não dos Portugueses. /A pertinácia aqui lhe custa cara” (iii, 70).
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 89

A atitude de Jones é semelhante à dos que consideram que epítetos como “soberbo”
e “forte” designam sempre virtudes, nunca vícios, por exigência ideológica incontro-
versa. Essa ambiguidade é, aliás, a mesma do touro do primeiro símile. A força dos
portugueses, que massacram uma população indefesa, contrariando à uma a moral
cristã e a diplomacia, é também brutalidade, cegueira e incontinência, e, queira-se ou
não, essa constatação é um efeito do poema.
Quando, em iii, 66-67, a mesma imagem volta a ser confrontada com a acção de um
português, ela recupera também o feixe de conotações vergonhosas da força. O touro-
amante sintetiza as duas figuras do símile do canto primeiro, o amante e a besta, num
só “bruto e cego amante”, cuja cegueira decorre do desejo da vaca. O oponente do
“touro”, aqui correlato do inimigo “infiel”, transforma-se num caminhante indiferenci-
ado e sem identidade, porque os ciúmes “receosos” imaginam um rival em quem quer
que se aproxime. A ideia com que se fica, desta vez, é a de que a Lei que segue o inimi -
go é um pormenor sem importância.
Uma outra correspondência, desta feita nas palavras, intensifica a atracção que as
duas comparações exercem uma sobre a outra, e força o confronto entre os planos nar-
rativo e da comparação, ampliando o leque de qualidades comuns significativas: o tou -
ro em i, 88 “Derriba, fere e mata” como “Fere, mata, derriba” Afonso Henriques em iii,
67; tal como Vasco da Gama em Moçambique, o rei é “soberbo” quando “segue a vitó-
ria” (iii, 68, v.1), isto é, persegue o inimigo derrotado até Badajoz. Mas a crítica ao rei
português não está de modo nenhum circunscrita a esta conquista. O símile de iii, 66-
67 insinua a mesma crítica antes disso, e em Beja o rei, à maneira de Vasco da Gama,
tinha já “seguido a vitória” com um massacre: “sendo já rendida, / Em toda a cousa
viva a gente irada / Provando os fios vai da dura espada” (iii, 64, vv. 6-8). Fá-lo, para
“estender co a fama a curta vida” (iii, 64, v. 4), incorrendo a censura do Velho do Reste-
lo.

III – O espectáculo da Índia


A confusão generalizada entre mouros e portugueses gerada pelo efeito acumulado
dos símiles, ou pelo uso dos insultos “perro” e “cão”, contribui para um retrato muito
desfavorável de Vasco da Gama19, mas tem consequências ideológicas que transcendem
a intenção de vituperar o capitão português. O comentário de Faria e Sousa pode ser
esclarecedor. Depois de citar alguns exemplos do uso destes termos colhidos já nos
evangelhos, já na tradição épica, observa que na guerra o insulto é, como a malícia, re-
cíproco (“lo usò Homero de enemigo a enemigo”) e acrescenta que “el enemigo de or-
dinario no observa Fè, ni ley com el enemigo” (1: 350).
19 Hélio J. S. Alves refere que Camões se desvia sistematicamente das crónicas para atribuir ao capitão
português um “grande descuido diplomático” (466), por exemplo, “desconsiderando e ofendendo a
cultura e religião da pessoa a quem se dirige” (480).
90 Pedro Madeira

De facto, se no Canto Viii o desvio das crónicas, no caso as Décadas de João de Bar-
ros, anula a “motivação religiosa, reiterada na propaganda manuelina da dilatação da
Fé” (Alves 498), no Canto iii é a propaganda ideológica do projecto historiográfico pro-
movido pela dinastia de Avis que a intervenção de Camões anula. A guerra está, em
ambos os casos, inteiramente contida na esfera profana, e tanto o actual império como
a própria fundação da nação aparecem naturalizados. As guerras, mesmo as mais jus-
tas, ganham-se com bom senso, saber prático, ímpeto, não por se ter sido favorecido
por Deus.
A discussão é reconduzida ao âmbito da ética e da política. A história de Afonso
Henriques é, desse ponto de vista, exemplar: à maneira humanista, Camões insiste na
noção de responsabilidade, julgando as acções do fundador pelos mesmos critérios que
estão activos no resto do poema. Tanto a legitimação nacional por via do prodígio
como a ideia de império predestinado, com que aparenta solidarizar-se, são afinal im -
pugnadas pelo poema. Seria ainda possível conceber um império cuja necessidade de-
corresse inteiramente da virtude e obediência aos valores morais da verdadeira
cristandade. Mas tanto a aventura em Moçambique como o violentíssimo Canto X con-
tradizem o modo como o império é apresentado na dedicatória a D. Sebastião: “Só
com vos ver, o bárbaro Gentio / Mostra o pescoço ao jugo já inclinado” (i, 16). Na reali-
dade, o império impõe-se pela força, não pela justiça. Na mesma estância, além do
“gentio”, aparece já outro actor, o “Mouro”, o concorrente do cristão português no Índi-
co.
A simetria entre os dois blocos que disputam o comércio no Índico é um elemento
estruturante da acção do poema. Ao chegar às “vias nunca usadas” (i, 27) do Índico os
portugueses encontram, afinal, um invasor mais antigo. “Estrangeiros na terra, Lei e
nação”, os mouros de Moçambique apressam-se a reclamar uma civilização partilhada,
definida pela exclusão dos “próprios”, que “são aqueles que criou / A Natura, sem Lei e
sem Razão” (i, 53). O mouro de Moçambique, confuso, pergunta “Se porventura vi-
nham de Turquia” (i, 62), mas o Gama nunca chega a explicar de modo convincente o
que o distingue da concorrência. A agressividade e o interesse mercantil irmanam os
servidores de uma empresa expansionista contingente e vã. Como os turcos, os portu-
gueses podiam dizer da terra africana que “por ser necessária, procuramos, /Como
próprios da terra, de habitá-la” (i, 54).
Assiste-se em Melinde à celebração de uma cumplicidade entre gente desterrada,
anunciada desde o primeiro encontro. Na ausência de uma instância superior que san-
cione a expansão, é manifesta a ironia com que Camões dá conta das primeiras im-
pressões dos portugueses em Moçambique:
Qualquer então consigo cuida e nota
Na gente e na maneira desusada,
E como os que na errada Seita creram
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 91

Tanto por todo o mundo se estenderam.


(I, 57)
O espanto é certamente recíproco, e já José Agostinho de Macedo se insurgia con -
tra a simetria sugerida por expressões deste tipo: “infiéis (...) he o que tambem os Mou-
ros nos chamão a nós” (i, 161). Di-lo precisamente a propósito da epifania de Afonso
Henriques em Ourique:
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na Fé todo inflamado, assi gritava:
«Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,
E não a mi, que creio o que podeis»
(iii, 45)
O rei mostra-se ansioso por afastar a aparição, parecendo inseguro da sua posição
perante o sinal. Esta passagem atrai, assim, ao relato da fundação o motivo da simetria
que se começa a construir no Canto i. Tal como o equívoco de Moçambique, ela anun-
cia um símile que dilui a distinção entre inimigos, e a introdução do termo “cão” em
pontos estratégicos (i, 87 e iii, 48) cria, como vimos, um problema de atribuição do in-
sulto.
Perante isto, julgo oportuno reler o passo em que se dirige a atenção do dedicatário
do poema para esta questão: “Em vós os olhos tem o Mouro frio, / Em quem vê seu
exício afigurado” (i, 16: 1-2). A frase tem uma interpretação compatível com a propa-
ganda oficial, que seria válida se portugueses e muçulmanos se conformassem às ex-
pectativas dela decorrentes: o mouro vê que D. Sebastião sinaliza o seu aniquilamento.
Mas os dois grupos como que se espelham um ao outro e, nesse sentido, o mouro vê-se
representado pelos portugueses, que começa mesmo por confundir com turcos, tal
como o rei os vê prefigurando o exílio dos portugueses n' Os Lusíadas. Tendo em conta
a importância do tema elegíaco do desterro no poema, o termo latinizante “exício”, que
já em latim tinha o sentido de “perda ou destruição”, pode ser significativo desta afini -
dade, porquanto o seu radical é o mesmo de “exitum”, supino do verbo “exire”, que sig-
nifica “sair, expatriar-se, desterrar-se”.
A negação sistemática de uma distinção baseada na Fé precipita-se num discurso
ideológico coerente pela articulação com um eixo de valores morais que entram no po-
ema pela tradição antiga do bucolismo, contrapeso tradicional da euforia épica. O pa-
ralelismo apontado por José Madeira entre a condenação da ambição ilegítima dos
castelhanos, castigada em Aljubarrota, e a objurgatória do Velho do Restelo, mani-
festa-o claramente20. D. João I chega ao trono depois de libertar o reino em guerra jus-

20 “O paralelo com a fala do Velho do Restelo é flagrante, ressoando aqui [ iV, 44], sem dúvida, o tom
condenatório que naquele atinge os vencedores de Aljubarrota, na condenação às penas do
Profundo (iV, 102) como nos desamparos de mães e esposas (iV, 96 e também iV, 90 e 92)” (Madeira,
p. 77).
92 Pedro Madeira

ta, mas é também “o primeiro Rei que se desterra” voluntariamente da pátria, decisão
que Camões apresenta como fundadora do projecto expansionista:
E assi, não tendo a quem vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
(iV, 48)
O “insano” de que fala o Velho do Restelo é pois D. João I 21, que aventura o reino em
conquistas ultramarinas injustas, desnecessárias e perigosas para o reino, sem melho-
res motivos do que tinham os castelhanos para invadir Portugal. Na economia signific-
cativa do poema, a globalização a que Camões assiste não corresponde à
reactualização da “justiça real” da Idade de Ouro, representada na África livre da in-
fluência estrangeira em X, 94, porque os impérios cristão e muçulmano são igual-
mente vãos, conformes nos desejos e ambições que fazem de ambos infiéis. Ao rei, a
quem o poema didacticamente se recomenda, explica-se que “a vitória verdadeira / É
saber ter justiça nua e inteira” (X, 58), e pede-se que julgue, diante da matéria que
está diante dos seus olhos, o que é preferível, “Se ser do mundo Rei, se de tal gente”
(i, 10), da do “ninho meu paterno” (i, 10), entenda-se. De D. Sebastião exige-se que
seja justo, que oiça os conselheiros experimentados, mas sobretudo que seja modera-
do, porque os sonhos de grandeza, e em particular a quimera de um império univer-
sal, fazem perigar a pátria, de cuja independência ele é o único penhor. A disjuntiva,
como indica o tom elegíaco do fim do poema, exprime uma falsa alternativa. É obri-
gação do rei corrigir o erro funesto do seu antecessor D. João I, imitando aquilo que
nele é realmente digno de louvor, ter defendido a independência nacional.
O cristianismo n'Os Lusíadas é uma religião universal, que requer obediência a va-
lores morais absolutos. Nem a raça nem o baptismo garantem adesão a estes princípi-
os, e por essa razão é impiedade, como diz Faria e Sousa, chamar “canes, o perros alos
que una vez se hicieran Christianos” (i: 349), como é hipocrisia chamar piedade aos ac-
tos injustos dos portugueses. A lei que condena a guerra ofensiva aplica-se “seja a
quem for, aos portugueses como igualmente aos maometanos” (Madeira, p. 77). Esta
retórica serve também para persuadir de que em questões temporais a devoção não
substitui a prudência, a experiência e o conhecimento das artes da política e da guerra.
A estratégia abrangente de Camões afecta a própria ideia de império religioso: o
domínio político pode impôr-se—tem de impôr-se—, a conversão é voluntária. Camões

21 Refiro-me à apóstrofe: “ó tu, gèração daquele insano /cujo pecado e desobediência / (…) do Reino
soberano / Te pôs neste desterro e triste ausência” (iV, 97). Parece-me este um bom exemplo da
estratégia de “intromissão de vozes” de que fala Hélio J. S. Alves, através da qual o narrador
“ventríloquo” (470) fala pela boca da personagem. Embora o destinatário explícito da apóstrofe seja
a humanidade, ela dirige-se implicitamente a D. Manuel, e indirectamente a D. Sebastião, o
dedicatário do poema, também ele, descendente de D. João I.
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 93

dá assim a entender que a presença portuguesa na Índia é uma empresa comercial,


portanto profana, que não deve confundir-se com uma conquista territorial, e muito
menos com um apostolado. Esta concepção do Estado da Índia não é nem um anacro-
nismo, nem notável pelo seu radicalismo. Encontra-se já numa carta do primeiro vice-
rei da Índia a D. Manuel I, datada de 1508. Nela, D. Francisco de Almeida desaconselha-
va as conquistas, demasiado onerosas, e advertia o rei de que só caindo nas boas gra -
ças da população indígena, e assegurando uma carreira regular entre Portugal e a
Índia, se teria sucesso (quer dizer, lucro) no Oriente. Por isso mandou pagar em ouro a
pimenta para que os gentios (“os donos da pimenta”), que costumavam fiá-la aos tur-
cos, “cuydassem que tynhamos grande tysouro e grande certeza de vyrem as naos”.
“Esta”, escrevia, com grande sentido prático, “he a maneyra per onde os Mouros se
ham-de lançar da Indya” (Almeida, p. 381).

Referências
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