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Resumo:
Em três passos d' Os Lusíadas as manobras de um exército português que defronta muçulmanos são
ilustradas com símiles tauromáquicos em que figuram também cães. Dada a associação tradicional
dos cães, ou “perros”, à infidelidade, estabelece-se frequentemente uma confusão entre os contendo-
res. O propósito deste estudo é mostrar que esta confusão se integra num tecido alusivo que se arti-
cula numa autoridade discursiva oposta à justificação religiosa de um império comercial.
Abstract:
In three separate occasions, Camões illustrates the manoeuvres of a Portuguese army facing Mus -
lims with bullfighting similes, in which dogs have a prominent role. Given the traditional associati-
on of dogs and infidelity, a perplexing confusion between armies is established. The aim of the pre-
sent study is to show that this confusion relates to a web of allusions through which a discursive
authority that rejects the religious justification of a comercial empire is insinuated.
Roger Stephens Jones e Ronald Sousa verificaram que as comparações alargadas n'
Os Lusíadas contrariam de modo desconcertante aquilo que se espera da épica, ou me-
lhor, a perspectiva crítica que pressupõe a adesão estrita da epopeia à propaganda ofi-
cial veiculada pelas crónicas quinhentistas. A maior causa de perplexidade para estes
autores é a insistência com que acções militares de mouros e portugueses são compa-
radas, ao longo do poema, com os mesmos objectos, sejam figuras históricas, como
Átila1, ou animais como touros e cães. O caso das comparações com touros, quatro no
total, duas das quais separadas por menos de vinte estâncias, é particularmente notá -
vel. Segundo Jones, “in terms of the poem as a whole”, símiles como o de iii, 47 con-
fundem “the distinction between Moslem and Christian Portuguese” (241). Este efeito
resulta da apresentação sucessiva de comparações que têm semelhanças não só ao ní-
vel do “pensamento propriamente dito”, a acção militar que ilustram, e do segundo ter-
mo de comparação, a acção do touro, mas também do léxico. O uso pejorativo dos
termos “perro” e “cão”, conotados com a infidelidade, na vizinhança de passos em que
os portugueses são comparados a cães exacerba a confusão.
Cerca de uma década mais tarde, Ronald W. Sousa fez notar que, nalguns casos, a
correspondência entre os termos é esclarecida muito depois de ser introduzida a com-
paração, cujo sentido fica em suspenso, e entra, quando finalmente esclarecido, em
contradição com o que o contexto fazia esperar, com as expectativas formais associa-
das à figura altamente codificada do símile épico, e mesmo com a expectativa ideológi-
ca de que os portugueses correspondam à figura mais simpática da comparação.
O pressuposto de que a epopeia se caracteriza pelo domínio absoluto de uma “voz
épica” impõe a rejeição a priori destes desvios, que são reconduzidos à regra, à manei-
ra de Faria e Sousa, ou desvalorizados como erros do poeta, como fez o “censor” José
Agostinho de Macedo. Seguindo a tradição classicista que este último representa nos
estudos camonianos, Jones reconhece a confusão, mas, nega a possibilidade de uma es-
tratégia discursiva global que a torne significativa, atribuindo aos símiles que mais
problemas põem à sua teoria geral da epopeia uma função meramente ilustrativa. Fa -
zendo-o, força a epopeia a uma univocidade que lhe é estranha 2, e desconsidera as ca-
racterísticas específicas de um poema cuja estrutura depende mais de uma organização
discursiva do que de uma sequência narrativa 3. Tudo o que implica desdouro dos por-
1 Em iii, 20 o exército muçulmano que travou a Batalha do Salado é comparado ao exército de Átila;
em iV, 24 Nun'Álvares é comparado ao “Huno” (Cf. Jones, p. 244).
2 R. O. A. M. Lyne, por exemplo, no livro Further Voices in Virgil's Aeneid (New York: Oxford
University Press, 1992 [1987]) argumenta que o bucolismo implica, já na Eneida, uma valorização
negativa do império.
3 A “unidade [do poema] não é, portanto, predominantemente de ordem narrativa, mas sim de ordem
discursiva. (…) o poema é sobretudo um longo discurso que insere no seu desenvolvimento trechos
narrativos” (Matos, Introdução, p. 42).
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 79
4 “the nobility not only possesses an instinct for success in battle, but along with—or as a part of—that
instinct comes some sort of understanding of, and therefore cooperation with, God's plan for the
history into which the battle immediatly at hand is being inserted” (Sousa, p. 265).
5 Assim definida por Helder Macedo: “Da perspectiva pastoril, associada ao mito da Idade de Oiro, a
própria matéria da celebração épica (…) é produto e sintoma da decadência que fizeram cair a
humanidade na Idade do Ferro” (128). O autor identifica com a “voz pastoril” (129), por exemplo, o
discurso do Velho do Restelo.
6 Segundo Jones, Camões acreditava que “the Moslems represented everything opposed to the
Portuguese ideal: heathen, cunning, malevolent and barbaric, they were the epitome of moral
disorder” (240).
7 cf. H. Macedo, 385,4.
80 Pedro Madeira
nómeno do mundo dos animais” (Lausberg, p. 239) (são deste tipo todos os exemplos
de símiles “naturais” recolhidos no artigo) têm “a purely illustrative and enlivening
rôle” (Jones, p. 240) e nenhuma implicação moral.
Há porém uma inconsistência nesta proposta de classificação. O primeiro termo da
oposição entre símiles “naturais” e “históricos” é substituído tacitamente na conclusão
por outro, símiles “concerned with the events and wonders of da Gama's voyage” (Jo-
nes, p. 245). O problema é que não há identidade entre os termos. Dos seis exemplos
de símiles “naturais” referidos por Jones, apenas três servem para descrever aconteci -
mentos da viagem do Gama, e desses apenas um descreve uma “maravilha”. Os outros
três servem para ilustrar episódios da História de Portugal passada (contada pelo
Gama ao rei de Melinde) e futura (cantada por Tétis no Canto X).
A aproximação do famoso símile da sanguessuga (V, 21) aos símiles com touros pa-
rece reforçar a tese de que “the nature similes (...) lack (...) any sense of continuity”
(Jones, p. 241). Como o efeito desconcertante, a confusão entre mouros e portugueses,
é cumulativo, Jones pretende neutralizá-lo isolando artificialmente as comparações
“naturais” umas das outras, e do seu contexto. Mas não é de modo algum evidente que
a representação de uma “maravilha” como a tromba de água deva ser considerada uma
mera ilustração8, mesmo que se pudesse aceitar a sua proposta de classificação. Parece-
me ainda que o facto de esta confusão ser reiterada ao longo do poema recomenda
uma revisão daquilo que consideramos ser as opiniões de Camões. De facto, onde se -
não na sua obra as poderemos encontrar?
A suspeita de intencionalidade torna-se quase uma certeza quando, na leitura isola-
da das passagens em que ocorrem estes símiles, encontramos intacto o efeito perturba-
dor, e isto desde que, em i 87-899, se caracteriza pela primeira vez uma acção humana
pelo símile, por ocasião de uma escaramuça na ilha de Moçambique:
Andam pela ribeira alva, arenosa,
Os belicosos Mouros acenando
Com a adarga e co a hástia perigosa,
Os fortes Portugueses incitando.
Não sofre muito a gente generosa
Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;
Qualquer em terra salta, tão ligeiro,
Que nenhum dizer pode que é primeiro:
8 A interpretação de David Quint de V, 21 vai no sentido contrário. Segundo este crítico, a tromba de
água prefigura o Adamastor, que por sua vez representa a resistência dos africanos ao domínio
europeu (cf. “The Epic Curse and Camoes' Adamastor.” Epic and Empire . New Jersey: Princeton U. P.,
1993 (99-130).
9 Para as citações do poema sigo a edição de Emanuel Paulo Ramos, indicada na bibliografia.
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10 “ the (…) initial syntactic disjuncture between the points of comparison creates a vagueness that
partially frees the simile from a reading (...) grounded in grammar-like logic” (Sousa, p. 259).
11 Neste ponto, concordo com Sousa, que escreve que o esclarecimento do sentido gramatical do símile
“comes too late for redress of the mode of reading the simile” (259). Ao contrário de Jones, Sousa
considera este efeito significativo, mas, como escrevo na introdução, recondu-lo à interpretação
tradicional: “the simile's primary force is to characterize the Portuguese response in armed
confrontation, in terms of both psychology and physical force; in so doing, it dwells on irrational
animal-like qualities” (260).
82 Pedro Madeira
sentido da comparação ludibria também expectativas mais gerais que reforçavam a lei-
tura provisória do passo: “Effective as the simile may be (…), it does not mesh with the
overall movement of the poem, for it is the Portuguese, not the Moslems, who are as-
sociated with love in the poem supported as they are by the Godess of Love herself”
(Jones, p. 241).
Em i, 89 não se quebra apenas o elo sintáctico entre “gente generosa” e a acção dos
portugueses em Moçambique, quebra-se um elo semântico fundamental que põe em
causa a esperada adesão do poema à “voz épica”. Surpreendentemente, aos navegado-
res portugueses corresponde, no plano da comparação, não o toureiro, que exibe a va-
lentia correspondente ao epíteto “generosa” das linhas anteriores, mas a figura
moralmente repugnante do touro.
Para salvaguardar o louvor do herói português, Jones rejeita as evidentes conota -
ções morais da comparação, que serviria apenas para dar vivacidade à descrição da ac-
ção dos portugueses. Mas a estância explicita que a reacção portuguesa é tão “cega” e
desproporcionada como a do touro, desautorizando completamente a redução dos ter-
tia comparationis à superioridade material do vencedor:
Não se contenta a gente Portuguesa,
Mas, seguindo a vitória, estrue e mata;
A povoação sem muro e sem defesa
Esbombardeia, acende e desbarata.
(i, 90)
Se dúvidas houvesse, os indícios de conduta vergonhosa dos portugueses comanda-
dos por Vasco da Gama são confirmados por outro mecanismo discursivo: a colisão da
prática de Vasco da Gama com as “moralidades que o narrador tornado sujeito do
enunciado faz aflorar à estrutura de superfície” (AlVes, p. 469). Hélio J. S. Alves mos-
trou o funcionamento deste mecanismo precisamente neste passo, que descreve um
comportamento claramente abrangido pela máxima “é fraqueza entre ovelhas ser leão”
(i, 68), corolário da estância em que se recomenda não usar a artilharia contra um ini-
migo indefeso: “Porque o generoso ânimo e valente, / Entre gentes tão poucas e me-
drosas, / Não mostra quanto pode” (i, 68).
A descrição da exageradíssima reacção dos portugueses, afim da carga do “animal
atroce”, ocupa a totalidade das estrofes 89, 90 e 91, e ainda os seis primeiros versos da
92. Só então aparece o verdadeiro remate da comparação. A acção que se compara com
a carga do touro inclui, portanto, a injustificável decisão de “seguir a vitória” com a
destruição da aldeia, uma vez desbaratado o insignificante exército que a defendia:
Destarte o Português, enfim, castiga
A vil malícia, pérfida, inimiga.
(i, 92: 7-8)
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12 “Qual (…), tal (…)”, ou “Bem como (…) destarte (...)” introduzem habitualmente os termos da
comparação, por exemplo, em iii, 47-48 e iii, 49-50, respectivamente. A este propósito, note-se que
Faria e Sousa considera que cada um destes pares constitui uma “clausula”. O comentário de Faria e
Sousa a i, 89 justifica o uso da conjunção, assinalando, assim, a irregularidade na introdução do
segundo termo de comparação: “Usa el P. com frequencia desta voz (que es el Ecce del Latin, vale,
veys aqui patente) i siempre cõ las condiciones que deve usarse, que es quando se advierte, que se
oye, ò vè alguna coisa com novedad no pensada” (ii: 352).
84 Pedro Madeira
como um touro no cio. O primeiro dos dois símiles integra a narração da batalha de
Ourique:
Qual cos gritos e vozes incitado,
Pola montanha, o rábido moloso
Contra o touro remete, que fiado
Na força está do corno temeroso;
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo, mais ligeiro que forçoso,
Até que, enfim, rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se quebranta:
13 Faria e Sousa remete para o seu comentário a i, 87: “No se piense que el Poeta llama canes a estis
Moros, i negros, porque lo son, como oy hazen algunos, llamando canes, o perros a los que una vez
se hicieran Christianos, que esso es impiedad” (i 349-50).
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14 A José Agostinho de Macedo parece impróprio usar esta “víscera” para representar o “ânimo” do rei:
“aqui parece que se deve tomar por molestia que Deos déra ao Rei, pois parece a inflammação desta
víscera, estomago
15 Emanuel accendido”
Paulo Ramos, (1: 62).do poema sigo neste artigo, dá o passo como exemplo de silepse,
cuja edição
com a seguinte justificação: “Comete não concorda com estamago mas com Rei novo ” (Camões, p.
610). Na verdade, o predicado concorda com ambos, e, além disso, não há nenhuma falta de
concordância com “estâmago”, o sujeito gramatical da frase. Ramos parece estar interessado em
evitar que “estâmago” seja tomado por sujeito, presumivelmente por lhe parecer que a frase é
imprópria de uma epopeia.
86 Pedro Madeira
16 Faria e Sousa: “Vsado a buen tiempo; porque vale atronado com el estruendo de las armas” (2: 76-
77).
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18 “(...) estando na cidade que cercara, / Cercado nela foi dos Leoneses, / Porque a conquista dela lhe
tomara / De Leão sendo e não dos Portugueses. /A pertinácia aqui lhe custa cara” (iii, 70).
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A atitude de Jones é semelhante à dos que consideram que epítetos como “soberbo”
e “forte” designam sempre virtudes, nunca vícios, por exigência ideológica incontro-
versa. Essa ambiguidade é, aliás, a mesma do touro do primeiro símile. A força dos
portugueses, que massacram uma população indefesa, contrariando à uma a moral
cristã e a diplomacia, é também brutalidade, cegueira e incontinência, e, queira-se ou
não, essa constatação é um efeito do poema.
Quando, em iii, 66-67, a mesma imagem volta a ser confrontada com a acção de um
português, ela recupera também o feixe de conotações vergonhosas da força. O touro-
amante sintetiza as duas figuras do símile do canto primeiro, o amante e a besta, num
só “bruto e cego amante”, cuja cegueira decorre do desejo da vaca. O oponente do
“touro”, aqui correlato do inimigo “infiel”, transforma-se num caminhante indiferenci-
ado e sem identidade, porque os ciúmes “receosos” imaginam um rival em quem quer
que se aproxime. A ideia com que se fica, desta vez, é a de que a Lei que segue o inimi -
go é um pormenor sem importância.
Uma outra correspondência, desta feita nas palavras, intensifica a atracção que as
duas comparações exercem uma sobre a outra, e força o confronto entre os planos nar-
rativo e da comparação, ampliando o leque de qualidades comuns significativas: o tou -
ro em i, 88 “Derriba, fere e mata” como “Fere, mata, derriba” Afonso Henriques em iii,
67; tal como Vasco da Gama em Moçambique, o rei é “soberbo” quando “segue a vitó-
ria” (iii, 68, v.1), isto é, persegue o inimigo derrotado até Badajoz. Mas a crítica ao rei
português não está de modo nenhum circunscrita a esta conquista. O símile de iii, 66-
67 insinua a mesma crítica antes disso, e em Beja o rei, à maneira de Vasco da Gama,
tinha já “seguido a vitória” com um massacre: “sendo já rendida, / Em toda a cousa
viva a gente irada / Provando os fios vai da dura espada” (iii, 64, vv. 6-8). Fá-lo, para
“estender co a fama a curta vida” (iii, 64, v. 4), incorrendo a censura do Velho do Reste-
lo.
De facto, se no Canto Viii o desvio das crónicas, no caso as Décadas de João de Bar-
ros, anula a “motivação religiosa, reiterada na propaganda manuelina da dilatação da
Fé” (Alves 498), no Canto iii é a propaganda ideológica do projecto historiográfico pro-
movido pela dinastia de Avis que a intervenção de Camões anula. A guerra está, em
ambos os casos, inteiramente contida na esfera profana, e tanto o actual império como
a própria fundação da nação aparecem naturalizados. As guerras, mesmo as mais jus-
tas, ganham-se com bom senso, saber prático, ímpeto, não por se ter sido favorecido
por Deus.
A discussão é reconduzida ao âmbito da ética e da política. A história de Afonso
Henriques é, desse ponto de vista, exemplar: à maneira humanista, Camões insiste na
noção de responsabilidade, julgando as acções do fundador pelos mesmos critérios que
estão activos no resto do poema. Tanto a legitimação nacional por via do prodígio
como a ideia de império predestinado, com que aparenta solidarizar-se, são afinal im -
pugnadas pelo poema. Seria ainda possível conceber um império cuja necessidade de-
corresse inteiramente da virtude e obediência aos valores morais da verdadeira
cristandade. Mas tanto a aventura em Moçambique como o violentíssimo Canto X con-
tradizem o modo como o império é apresentado na dedicatória a D. Sebastião: “Só
com vos ver, o bárbaro Gentio / Mostra o pescoço ao jugo já inclinado” (i, 16). Na reali-
dade, o império impõe-se pela força, não pela justiça. Na mesma estância, além do
“gentio”, aparece já outro actor, o “Mouro”, o concorrente do cristão português no Índi-
co.
A simetria entre os dois blocos que disputam o comércio no Índico é um elemento
estruturante da acção do poema. Ao chegar às “vias nunca usadas” (i, 27) do Índico os
portugueses encontram, afinal, um invasor mais antigo. “Estrangeiros na terra, Lei e
nação”, os mouros de Moçambique apressam-se a reclamar uma civilização partilhada,
definida pela exclusão dos “próprios”, que “são aqueles que criou / A Natura, sem Lei e
sem Razão” (i, 53). O mouro de Moçambique, confuso, pergunta “Se porventura vi-
nham de Turquia” (i, 62), mas o Gama nunca chega a explicar de modo convincente o
que o distingue da concorrência. A agressividade e o interesse mercantil irmanam os
servidores de uma empresa expansionista contingente e vã. Como os turcos, os portu-
gueses podiam dizer da terra africana que “por ser necessária, procuramos, /Como
próprios da terra, de habitá-la” (i, 54).
Assiste-se em Melinde à celebração de uma cumplicidade entre gente desterrada,
anunciada desde o primeiro encontro. Na ausência de uma instância superior que san-
cione a expansão, é manifesta a ironia com que Camões dá conta das primeiras im-
pressões dos portugueses em Moçambique:
Qualquer então consigo cuida e nota
Na gente e na maneira desusada,
E como os que na errada Seita creram
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20 “O paralelo com a fala do Velho do Restelo é flagrante, ressoando aqui [ iV, 44], sem dúvida, o tom
condenatório que naquele atinge os vencedores de Aljubarrota, na condenação às penas do
Profundo (iV, 102) como nos desamparos de mães e esposas (iV, 96 e também iV, 90 e 92)” (Madeira,
p. 77).
92 Pedro Madeira
ta, mas é também “o primeiro Rei que se desterra” voluntariamente da pátria, decisão
que Camões apresenta como fundadora do projecto expansionista:
E assi, não tendo a quem vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
(iV, 48)
O “insano” de que fala o Velho do Restelo é pois D. João I 21, que aventura o reino em
conquistas ultramarinas injustas, desnecessárias e perigosas para o reino, sem melho-
res motivos do que tinham os castelhanos para invadir Portugal. Na economia signific-
cativa do poema, a globalização a que Camões assiste não corresponde à
reactualização da “justiça real” da Idade de Ouro, representada na África livre da in-
fluência estrangeira em X, 94, porque os impérios cristão e muçulmano são igual-
mente vãos, conformes nos desejos e ambições que fazem de ambos infiéis. Ao rei, a
quem o poema didacticamente se recomenda, explica-se que “a vitória verdadeira / É
saber ter justiça nua e inteira” (X, 58), e pede-se que julgue, diante da matéria que
está diante dos seus olhos, o que é preferível, “Se ser do mundo Rei, se de tal gente”
(i, 10), da do “ninho meu paterno” (i, 10), entenda-se. De D. Sebastião exige-se que
seja justo, que oiça os conselheiros experimentados, mas sobretudo que seja modera-
do, porque os sonhos de grandeza, e em particular a quimera de um império univer-
sal, fazem perigar a pátria, de cuja independência ele é o único penhor. A disjuntiva,
como indica o tom elegíaco do fim do poema, exprime uma falsa alternativa. É obri-
gação do rei corrigir o erro funesto do seu antecessor D. João I, imitando aquilo que
nele é realmente digno de louvor, ter defendido a independência nacional.
O cristianismo n'Os Lusíadas é uma religião universal, que requer obediência a va-
lores morais absolutos. Nem a raça nem o baptismo garantem adesão a estes princípi-
os, e por essa razão é impiedade, como diz Faria e Sousa, chamar “canes, o perros alos
que una vez se hicieran Christianos” (i: 349), como é hipocrisia chamar piedade aos ac-
tos injustos dos portugueses. A lei que condena a guerra ofensiva aplica-se “seja a
quem for, aos portugueses como igualmente aos maometanos” (Madeira, p. 77). Esta
retórica serve também para persuadir de que em questões temporais a devoção não
substitui a prudência, a experiência e o conhecimento das artes da política e da guerra.
A estratégia abrangente de Camões afecta a própria ideia de império religioso: o
domínio político pode impôr-se—tem de impôr-se—, a conversão é voluntária. Camões
21 Refiro-me à apóstrofe: “ó tu, gèração daquele insano /cujo pecado e desobediência / (…) do Reino
soberano / Te pôs neste desterro e triste ausência” (iV, 97). Parece-me este um bom exemplo da
estratégia de “intromissão de vozes” de que fala Hélio J. S. Alves, através da qual o narrador
“ventríloquo” (470) fala pela boca da personagem. Embora o destinatário explícito da apóstrofe seja
a humanidade, ela dirige-se implicitamente a D. Manuel, e indirectamente a D. Sebastião, o
dedicatário do poema, também ele, descendente de D. João I.
O símile épico em Camões: Touros, cães e infidelidade 93
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