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A produção de material didático para o ensino de flauta doce na escola

fundamental

Viviane Beineke
Universidade do Estado de Santa Catarina
vivibk@uol.com.br

Resumo. O presente trabalho relata uma experiência de produção de material didático


desenvolvida no Curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), em Florianópolis/SC, Brasil. O projeto focalizou a elaboração de
material de apoio ao professor que trabalha com a flauta doce na escola fundamental,
sendo produzidos arranjos de canções brasileiras para flauta doce, voz e percussão. Ao
final do projeto foi organizado o caderno intitulado “Flauteando pelos cantos do Brasil”,
no qual os arranjos vêm acompanhados de explicações sobre os ritmos, folguedos e
danças abordadas e de sugestões sobre a metodologia de ensino. Atualmente, o material
está sendo utilizado em práticas de ensino na universidade e em escolas da rede pública.
Trabalhando na produção e execução de arranjos que pudessem ser tocados e cantados
na escola, os futuros professores anteciparam ações concretas de planejamento em
educação musical, possibilitando uma formação mais consciente e criativa.

Introdução
Analisando alguns currículos de Cursos de Licenciatura em Música no Brasil,
pode-se perceber que ainda há um distanciamento entre teorias e práticas pedagógicas,
entre a escola e o meio acadêmico. Um dos problemas que se apresenta é a relação entre
a formação musical dos futuros professores e a sua formação pedagógica.
O professor precisa dominar ferramentas pedagógicas específicas, o que, para
Swanwick e Paynter (1993) implica em prepará-lo para engajar-se em análises críticas
dos materiais da sala de aula, na prática e na avaliação das abordagens de ensino.
Assim, o futuro professor poderá perceber as dimensões sociais, psicológicas, políticas e
organizacionais da educação, e acima de tudo, ampliar a sua compreensão da criança.
Além disso, o conhecimento musical tem características intrínsecas que implicam em
um conhecimento prático – fazer música. Nesse sentido, também na formação do
professor é necessário que a música seja vivenciada diretamente para que se possa
discuti-la, objetivá-la, compará-la com outros exemplos, pesquisar suas origens e
delinear conclusões que possam servir como base para explorações futuras (ibid.).
Focalizando mais especificamente a formação musical do professor, poderíamos
nos perguntar “que tipo de formação musical o professor necessita?”. No Brasil,
tradicionalmente, podemos observar que nos currículos das licenciaturas a formação
pedagógica e a formação musical são dispostas aditivamente, sem a preocupação de
articulação entre elas (Souza, 1997). Se pensarmos que os professores em formação irão
para a escola ensinar música e, portanto, fazer música com seus alunos, podemos nos
perguntar se a aquisição de habilidades musicais tão específicas como tocar um
instrumento são suficientes para dar conta das necessidades que o fazer musical em sala
de aula abrange. Segundo Souza (ibid., p. 13), “não se trata de reivindicar uma
formação ‘menor’ para as licenciaturas, mas de estabelecer outros parâmetros”.
Plummeridge (1991) critica a ênfase dos cursos de formação de professores na
aquisição de habilidades tradicionais, tais como o alto nível de performance
instrumental, habilidades de regência e conhecimentos acadêmicos. Segundo o autor, os
alunos têm tido poucas oportunidades para compor e arranjar música por si mesmos,
sendo esse um conhecimento indispensável, porque a natureza da aula de música requer
do professor soluções musicais como a organização de atividades para crianças com
vários níveis de habilidade técnica, arranjar música para combinações não usuais de
instrumentos ou preparação de materiais para diferentes tipos de projeto. Refletindo
sobre a formação do licenciado em música no Brasil, Souza (1997) também destaca a
necessidade de dar maior ênfase às vivências práticas, em atividades de improvisação e
música instrumental em conjunto.
Nessa perspectiva, é necessário que o professor de música tenha um tipo
particular de formação musical que inclua oportunidades para compor, arranjar e tocar
suas próprias músicas, incluindo a prática de conjunto. Desenvolvendo trabalhos dessa
natureza, os professores em formação também podem registrar suas produções,
colaborando na elaboração de materiais didáticos de apoio ao professor de música que
atua na escola fundamental, proposta esta que norteou o projeto “Produção de material
didático para o ensino de música na escola fundamental”.

O projeto “Produção de material didático para o ensino de música na escola


fundamental”
O projeto “Produção de material didático para o ensino de música na escola
fundamental”1 foi realizado no 2º semestre de 2001. Os principais objetivos do trabalho
foram: desenvolver conhecimentos e habilidades que possibilitem a composição, arranjo

1
Projeto apoiado pela Pró-Reitoria Comunitária/PROCOM – Coordenadoria de Extensão da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
e/ou adaptação de repertório para atividades de ensino da flauta doce na escola
fundamental; tocar e analisar arranjos/composições musicais direcionados para o ensino
em diferentes contextos; analisar e discutir possibilidades metodológicas para o trabalho
com práticas instrumentais na escola. Ampliando esses objetivos, o projeto visou a
produção de material didático para o ensino musical e a instrumentalização músico-
pedagógica do educador, tendo em vista a carência desse tipo de material de apoio ao
professor que atua na escola.
Para atingir os objetivos propostos, foram realizados, sob minha coordenação,
encontros semanais com a equipe participante2 , nos quais foram desenvolvidas as
seguintes atividades: estudo e discussão do referencial teórico da proposta; análise e
seleção de músicas do folclore brasileiro; transcrição de partituras; elaboração e
experimentação dos arranjos produzidos pelo grupo; execução, análise e discussão de
abordagens metodológicas dos arranjos produzidos; pesquisas bibliográficas a respeito
das temáticas e conteúdos musicais abordados. Na fase final do projeto foi organizado
um livro contendo uma coletânea de canções brasileiras arranjadas para flauta doce e
outros instrumentos.

Flauteando pelos cantos do Brasil: apresentando resultados


Observando práticas de ensino musical em escolas públicas de Florianópolis, os
alunos do Curso de Licenciatura em Música da UDESC perceberam que a flauta doce
vem sendo muito utilizada no contexto da aula de música curricular. Por outro lado,
analisando alguns métodos de flauta doce comumente utilizados no Brasil, percebemos
que a maioria propõe, basicamente, uma coletânea de repertório com dificuldades
técnicas progressivas, focalizando o desenvolvimento das habilidades de execução
instrumental e leitura musical (Frank, 1980; Mascarenhas, 1978; Mönkemeyer, 1976;
Rocha, 1986; Santa Rosa, 1993; Tirler, 1976). Sobre isso, Souza, Hentschke e Beineke
(1996/1997) ponderam que no contexto da aula de música na escola encontramos alunos
com interesses bastante diversos, devendo os procedimentos metodológicos ser
diferenciados das práticas convencionais de ensino instrumental. Segundo as autoras
apesar de diversos métodos de flauta doce valorizarem o ensino coletivo, são raras as

2
Monitora: Áurea Demaria Silva. Alunos participantes: Alberto Valter Feuerharmel; Ana Paula Alves de
Souza; Cláudia M. Passos Karam; Gisele Ga rcia Vianna; Glauber Aquiles Sezerino; Rodrigo Gudin
Paiva; Silvana Kalff; Silvana Mariani Hueblin.
propostas direcionadas à introdução da flauta instrumento em aulas de música no
contexto escolar.
O material elaborado nesta primeira edição do projeto3 , chamado de “Flauteando
pelos Cantos do Brasil”, consiste em uma contribuição para o ensino de música na
escola e, em especial, ao trabalho com a flauta doce em sala de aula. Focalizando a
música brasileira, é apresentada uma coletânea de arranjos para flauta doce, voz,
percussão e, eventualmente, violão. Quanto à sua apresentação, a ênfase do material está
nas próprias músicas e em seus arranjos, mas foram incluídas breves explicações sobre
os ritmos, folguedos e danças brasileiras abordadas, bem como algumas sugestões
quanto à abordagem metodológica de cada música em sala de aula 4 .
O que nos moveu para produzir este material foram as particularidades do ensino
instrumental na escola5 , que difere de outros contextos por pelo menos dois motivos: (1)
o espaço da sala de aula com grupos heterogêneos e numerosos e (2) os alunos não
optaram pelo estudo da flauta doce, quando esta é uma proposta curricular da escola.
Outra questão que diferencia o trabalho com a flauta doce na escola é o de que a aula de
música é o centro da proposta, um conceito mais amplo do que o de “aula de flauta”.
Isto é, a flauta doce é um dos recursos a serem utilizados no fazer musical, não o único6 .
No caso desta contribuição, em termos de recursos instrumentais, optamos pelo
conjunto de flauta doce, percussão e voz pelo seu baixo custo, facilidade de transporte e
por que se adapta muito bem às necessidades do trabalho coletivo. Sobre isso, Videla e
Akoschky (1967) afirmam que o ensino da flauta doce se adapta muito bem às
necessidades de classes coletivas, pelas inúmeras possibilidades que a prática em
conjunto oferece e por favorecer uma participação mais viva dos alunos na atividade
musical. Já Swanwick explica que:
... fazer música em grupo nos dá infinitas possibilidades para aumentar nosso leque de
experiências, incluindo aí o julgamento crítico da execução dos outros e a sensação de
se apresentar em público. A música não é somente executada em um contexto social,
mas é também aprendida e compreendida no mesmo contexto (Swanwick, 1994, p. 9).

3
O projeto é de caráter permanente, permitindo que a cada edição sejam contempladas diferentes
temáticas ou contextos de ensino da música.
4
Os comentários pedagógicos foram elaborados conjuntamente pela professora Cláudia Ribeiro Bellochio
(UFSM) e por mim no 1º semestre de 2002.
5
Nessa parte do artigo utilizo a primeira pessoa do plural, tendo em vista que o material foi construído
coletivamente.
6
Para conhecer uma pesquisa que investigou a possibilidade de a flauta doce ser trabalhada nessas bases
no contexto escolar, ver Souza, Hentschke e Beineke (1996/1997).
Na construção da proposta, partimos do pressuposto de que os alunos têm
diferentes preferências, interesses, vivências, conhecimentos e habilidades musicais, e
precisamos pensar em como valorizar esta diversidade na sala de aula. Ao invés de ser
almejada uma homogeneidade das práticas musicais, acreditamos no potencial
educativo da diversidade, do reconhecimento das diferenças pessoais e subjetivas das
crianças (Zabala, 1996). Para tanto, consideramos fundamental que o repertório
procurasse contemplar os interesses muitas vezes divergentes dos alunos, e a própria
utilização de instrumentos musicais variados pode facilitar essa tarefa.
A execução do repertório precisa ser uma experiência musical rica e desafiadora
para todos e essa motivação dos alunos é mais difícil de obter quando solicitamos, por
exemplo, que todos os alunos toquem a mesma coisa, em uníssono. Por esse motivo,
estamos propondo arranjos que valorizam a participação de cada aluno no fazer musical,
com partes mais simples e mais complexas para diversos instrumentos. A idéia central é
a de inclusão no fazer musical: todos os alunos poderão participar com aquilo que já são
capazes de tocar ou cantar, tanto a partir da leitura de partitura como “de ouvido”.
Outra característica do trabalho é que a música brasileira freqüentemente
apresenta estruturas rítmicas bastante complexas quando vistas do ponto de vista da sua
notação, mas que, por fazerem parte do cotidiano dos alunos, podem ser facilmente
aprendidas e memorizadas. Nesses casos, o recurso didático do “tocar de ouvido” é
fundamental para que o repertório possa ser ampliado (Beineke, Torres e Souza, 1997).
Na canção Meu Canarinho7 (figura 1), por exemplo, recomenda-se que a
melodia seja cantada pelos alunos, para depois ser tocada “decor” na flauta. Quando for
trabalhado o arranjo instrumental, é importante reparar que neste a melodia está em
outra tonalidade, podendo ser explorada com os alunos a idéia de transposição. O
arranjo instrumental (figura 2) foi elaborado tomando-se como base o ritmo do baião,
que poderia ser trabalhado utilizando-se instrumentos de percussão antes de introduzir
as partes do arranjo apresentado8 .

7
Fonte da canção: PAZ (1989).
8 Depois de memorizada a melodia na flauta e o padrão rítmico do baião, poderiam então ser introduzidas
as outras partes, começando pela 4ª voz, que pode ser rapidamente decorada. Junto com o xilofone, os
alunos poderiam tocá-la na flauta, ajudando-os a internalizar a “levada” do baião. A seguir, poderia ser
acrescentada a parte da 2ª voz, que utiliza apenas as notas sol, lá e si, o que possibilita que ela seja
executada por alunos mais iniciantes. Para auxiliar na memorização do ritmo, os alunos poderiam bater o
ritmo dessa voz com palmas, enquanto os colegas tocam as outras vozes, para depois tocar a parte
completa. A parte da 3ª voz pode ser tocada “decor” por um aluno que se sinta desafiado a tocar a flauta
contralto, visto que são utilizadas apenas as notas dó#, ré, mi e fá. Caso haja alunos que já conseguem
tocar a 3ª voz na soprano (uma oitava abaixo), a contralto poderia ser substituída.
Figura 1:

Em termos do nível técnico exigido para a execução na flauta doce, o repertório


elaborado pode ser considerado de nível médio, sendo necessário introduzir o ensino do
instrumento através de outros materiais antes de trabalhar com este que estamos
apresentando. Por isso, também não nos propusemos a desenvolver uma parte específica
com explicações sobre a técnica de execução da flauta doce, além do que, materiais
dessa natureza já são bastante acessíveis aos professores de música.

Figura 2:

Acreditando que apenas o professor conhece a sua realidade de trabalho, as


demandas, interesses e capacidades dos seus alunos, pensamos que ele é potencialmente
a pessoas mais qualificada para elaborar planejamentos condizentes com seu contexto
de trabalho. Por isso, ressalto que este projeto não pretende cumprir as funções de um
método de flauta doce e/ou grupo instrumental, e sim, que sirva como material
instrumental, recursos a serem contextualizados e desenvolvidos no seu planejamento.
Atualmente, o material didático elaborado no projeto está sendo utilizado em
práticas de ensino na universidade e em escolas de ensino fundamental, tanto por
estagiários como por professores da rede pública de ensino.

Conclusão
A carência de materiais didáticos adequados à realidade educacional brasileira é
mais uma necessidade percebida no cotidiano das atividades dos professores de música
que atuam na escola fundamental. E este é um desafio que se apresenta também à
Universidade.
Participando do projeto, os acadêmicos tiveram a oportunidade de tocar e
discutir as músicas trabalhadas, adaptando-as às necessidades e recursos instrumentais
disponíveis, além de estarem sempre analisando-as do ponto de vista pedagógico, isto é,
pensando em como o repertório poderia ser utilizado no contexto escolar. Trabalhando
na produção de arranjos musicais que pudessem ser tocados e cantados na escola, os
alunos anteciparam ações concretas de planejamento em educação musical, articulando
seus conhecimentos musicais e pedagógicos. Ações como essas são relevantes e
contribuem para a preparação mais consciente e criativa dos alunos de cursos de
Licenciatura em Música.
A formação profissional competente do educador musical é uma
responsabilidade sentida no cotidiano das atividades de um curso de formação de
professores. Considera-se o processo vivido pelos alunos como uma importante etapa de
construção instrumental que os auxiliará na mediação profissional. Entende-se que a
criação e produção de material didático para o ensino de música nas escolas é uma das
funções de um curso comprometido com a produção de conhecimentos na área de
Educação Musical.

Referências

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colectiva. Buenos Aires, Ricordi Americana, 1977.

BEINEKE, Viviane, TORRES, Maria Cecília de A. Rodrigues; SOUZA, Jusamara.


Tocando flauta doce de ouvido: análise de uma experiência. Trabalho apresentado no
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1998.

FRANK, Isolde Mohr. Pedrinho toca flauta: volume 1. São Leopoldo, Ed. Sinodal,
1980.

MÖNKEMEYER, Helmut. Método para flauta doce soprano. São Paulo, Ricordi
Brasileira, 1976.

PAZ, Ermelinda. 500 Canções Brasileiras. Rio de Janeiro, Luís Bogo Editor, 1989.

PLUMMERIDGE, Charles. Music Education in Theory and Practice. London: The


Falmer Press, 1991.

ROCHA, Carmem Maria Mettig. Iniciando a Flauta Doce. São Paulo, RICORDI, 1986.

SOUZA, Jusamara. Da formação do profissional em música nos cursos de licenciatura.


In: SEMINÁRIO SOBRE O ENSINO SUPERIOR DE ARTES E DESIGN NO
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Artes e Design – CEEARTES, p. 13-20, 1997.

SOUZA, Jusamara; HENTSCHKE, Liane; BEINEKE, Viviane. A flauta doce no ensino


de música: análise e reflexões sobre uma experiência em construção. Em Pauta, Porto
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SWANWICK, Keith e PAYNTER, John. Teacher Education and Music Education: an


editorial view. British Journal of Music Education, Cambridge, v. 10, n. 1, p. 3-8, 1993.

SWANWICK, Keith. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Cadernos de


Estudo: Educação Musical, São Paulo, Atravez, n. 4/5, p. 7-14, 1994.

TIRLER, Helle. Vamos tocar flauta doce: volume 1. São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1976.

VIDELA, Mario; AKOSCHKY, Judith. Iniciación a la flauta dulce soprano en do:


tomo 1. Buenos Aires, Ricordi, 1967.

ZABALA, Antoni. Os Enfoques Didáticos. In: COLL, César; MARTÍN, Helena;


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