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Aquejado de apreturas familiares, en- ção da obra de Juan Rulfo.

É a realiza-
fermo con frecuencia, pasa las noches da por Eric Nepomuceno e publicada
devorando libros y oyendo música.” pela Editora Record. A nova tradução
Ése es el hombre sobre cuya obra se irá competir com a precedente de 1977,
han escrito miles y miles de páginas. efetuada por Eliane Zaguri e lançada
Algunas admirables; otras, no tanto. pela Editora Paz e Terra.
El hombre al que su obra, no la crítica,
O novo tradutor de Rulfo exibe como
ha llevado a la inmortalidad como el
credenciais a tradução ao português
máximo exponente de la literatura lati-
de El gallo de oro (O Galo de ouro,
noamericana moderna.
Civilização Brasileira, 1999), do próprio
El libro de Federico Campbell es uno Rulfo, e a dos livros de Eduardo
de los más completos en el intento de Galeano, dentre outros. Exilado no
reunir la crítica representativa sobre la México a partir de 1964, entrou ali em
obra de Rulfo. En palabras del propio contato com os escritores mexicanos,
Campbell, sería imposible recopilar inclusive com Juan Rulfo, e colaborou
todo lo que se ha escrito sobre el au- com publicações em periódicos do
tor de El Llano en llamas. Por ello, el país. Teve, por tanto, a oportunidade
volumen constituye una pequeña de vivenciar a língua e compenetrar-
muestra de la gran alfombra, un peque- se com a literatura mexicana, e latino-
ño recuadro del mosaico que fue y si- americana em geral. Em posse dessa
gue siendo en las letras latinoamerica- bagagem, EN não se limita à tradução
nas Juan Rulfo. de Pedro Páramo e de El llano em
llamas. O volume, que na versão por-
Esta antología, cuidadosamente selec-
tuguesa inclui as duas obras, inicia
cionada, es material imprescindible, tan-
com um prefácio de dez páginas: “Ano-
to para el estudiante que se acerca por
tações sobre um gigante silencioso”,
vez primera a la narrativa rulfiana, como
com valiosa informação sobre Rulfo e
para el maestro especializado que quie-
sua narrativa, oportuno “pré-aqueci-
ra poseer en un mismo libro los ensa-
mento” para a leitura da obra. Segue
yos ya clásicos y los más recientes.
um escrito menor, de duas páginas e
meia, “Nota do tradutor”. A preocupa-
Sonia Peña ção constante de Rulfo com a
lapidação e polimento de seus escri-
UNAM
tos exige um esforço semelhante do
tradutor, sob pena de não dar conta
do empreendimento.
Abordando agora a novíssima tradu-
ção, cabe indagar sobre os motivos do
Juan Rulfo. Tradução de seu aparecimento a menos de três dé-
Eric Nepomuceno. Pedro cadas da precedente. Antes de
adentrar o texto, reparemos na apre-
Páramo e Chão em Chamas, sentação, no “paratexto”. A edição da
Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra concentra em um volume
de 212 páginas ambos Pedro Páramo
Record, 2004, 398 pp.
e El Llano em llamas. A simplicidade
do formato e da impressão visa decer-
A partir de junho do corrente ano os to à redução dos custos; isso, porém,
amantes da literatura hispano-america- reduz o apelo da obra traduzida, tor-
na em português têm mais uma tradu- nando pouco provável “o amor à pri-

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meira vista”. Já a publicação da Record curso ministrado pelo Professor Ser-
cuidou mais da editoração. O atrativo gio López Mena, no segundo semes-
volume de 398 páginas convida o lei- tre de 2000. Segundo a acadêmica, a
tor em potencial a folheá-lo. O passo tradução de E. Zaguri passa ao leitor
seguinte, a leitura, é quase inevitável. brasileiro a impressão de que o “O Pa-
lácio do Planalato”, sede do Governo
Quanto à tradução, começando pelo
em Brasília, está queimando. “O Pla-
título, há uma importante inovação. O
nalto em chamas puede sugerir algo
do romance, sendo nome próprio, fica
así como El Palácio de Gobierno en
igual; o volume dos contos, no entan-
llamas” (cf. Como traducir a Juan
to, passou de O Planalto em chamas
Rulfo, López Mena, S., (Coord.), Méxi-
(Paz e Terra), para Chão em Chamas
co, Práxis, 2000, p. 27).
(Record). Curiosamente, foi esse o tí-
tulo sugerido por uma estudante bra- A mudança de título estende-se tam-
sileira de Pós-Graduação, Marilena M. bém à maior parte dos contos. Veja-
de Oliveira, da UNAM (Universidad mos no quadro a seguir:
Nacional Autónoma de México), no

Tradução de 1977 Tradução de 2004


Eles deram a terra pra nós, E nos deram a terra,
A encosta das comadres, A Colina das Comadres,
É porque somos muito pobres, É que somos muito pobres,
De madrugada, Na madrugada,
O Planalto em chamas, Chão em chamas,
Diga a eles que não me matem, Diga que não me matem,
A noite em que deixaram ele sozinho, A noite em que o deixaram sozinho,
Você se lembra, Lembre-se,
Não está ouvindo os cachorros latirem? Você não escuta os cães latirem.

Por razões óbvias os contos como Mi madre me lo dijo. Y yo le


Luvina, Talpa, Anacleto Morones, prometí que vendría a verlo en
etc., mantêm o mesmo título. No en- cuanto ella muriera.
tanto, o número e o teor das altera-
ções ocorridas nos títulos dos nove Minha mãe que disse. E eu prometi
contos supracitados antecipam algu- que viria vê-lo quando ela morresse
mas das mudanças intratextuais com (EZ)
que nos depararemos, tanto nos con- Minha mãe me disse. E eu prometi
tos quanto no romance. O novo tradu- que viria vê-lo assim que ela
tor de Rulfo conta, em primeiro lugar, morresse (EN).
com a facilidade decorrente da seme- O en cuanto do original expressa o
lhança entre as línguas fonte e alvo. cumprimento imediato do desejo ma-
Além disso, tem a seu dispor a tradu- terno, sem lugar para delongas. É isso
ção ou traduções anterior(es). Que uso que aparece na segunda tradução, mas
é feito dessa dupla vantagem? Nas não na primeira que lança mão do ge-
primeiras linhas de Pedro Páramo há nérico quando.
coincidência entre as duas traduções:
Vine a Comala - “Vim a Comala...”. A A amostra será ampliada com mais al-
seguir, o mesmo personagem explica o gumas expressões típicas da narrativa
motivo da viagem. Reparemos nas tra- rulfiana e em cuja tradução nem sem-
duções da expressão em destaque: pre há consenso entre as duas tradu-

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ções. O simples cotejo mostrará qual te, o narrador conta: “se puso bo-
delas considero correta, ou, adequada. nita la muchacha, lo que sea de
Ahi se/te lo haiga cada quien”.

Encontramos esta expressão nas pri- No primeiro exemplo, a tradução de EZ


meiras páginas de Pedro Páramo. O é: quanto ao que era de cada um; a de
tropeiro, guia de Juan Preciado, ao se EN: verdade seja dita. É a segunda tra-
aproximar de Comala, convida-o para dução que transmite a idéia do origi-
ir até sua casa, a não ser que o viajante nal, ao passo que a primeira lhe atribui
prefira ficar em Comala. Cabe a ele es- uma carga semântica que não possui.
colher: ahi se lo haiga. A tradução de Já em b) os termos se invertem: é pre-
Zaguri reduz a expressão a um simples ciso reconhecer vs cada qual com o
fique se quiser ficar aqui, fique. seu. Em c) apesar da formulação dife-
Nepomuceno prefere: ... que assim seja. rente, ambas transmitem a idéia do ori-
Ambos transmitem a idéia, mas não o ginal: ... não há como negar (EZ) ... a
sabor da expressão “errada”, ou seja, cada um sua justiça seja feita (EN);
popular, do original. A mesma expres- porém, a tradução de Zaguri apresen-
são, em A Colina das Comadres é ta a vantagem da concisão.
traduzida como “azar é seu” (EZ) e “ai Nesta simples amostra pode-se cons-
de ti” (EN). Em ambos os casos se tatar o progresso da segunda tradu-
extrapola do original, que insinua uma ção em relação à primeira. Mas a supe-
aparente neutralidade. O contexto de ração não é onímoda, como mostra a
violência que permeia a história pode análise de algumas expressões-chave.
ter induzido à conotação de ameaça Na primeira parte do romance narra-se
adotada pelas traduções. a reação de Dolores Preciado ao saber
Lo que sea de cada quien que Pedro Páramo pede a sua mão.
Após agradecer a Deus pelo presente,
A expressão vem a confirmar algo que acrescenta: “aunque después me
acaba de ser afirmado, pleonasmo re- aborrezca”. EZ traduziu: “mesmo que
corrente na linguagem coloquial. depois eu me aborreça”. A tradução
a) Toribio Alderete, em conversa com de EN, ainda que diferente na forma,
Fulgor Sedano, capataz de Páramo, mantém o mesmo enfoque: “mesmo
admite, em tom irônico, a sua preo- que depois eu odeie”. No original o
cupação a respeito das reivindica- “me” não é reflexivo e sim complemen-
ções do patrão: “porque me tenía to objeto. Dolores se alvoroça ao re-
usted preocupado, lo que sea de ceber a notícia, mas fica com um pé
cada quien”. atrás: a escolha de Páramo, em matéria
de mulheres, não é para toda a vida.
b) Em outra ocasião, o próprio As juras de amor transmitidas por
Sedano, ao olhar as fitas pretas na Sedano em nome do seu patrão não
porta da casa grande, indicando demorarão a ser substituídas pela afir-
luto pela morte de Miguel Páramo, mação do próprio Páramo: ya me tenía
diz como que pensando em voz enfadado. Por tanto, quem se aborre-
alta: “se ven bonitos esos moños, ce ou odeia, é Páramo, sendo Dolores
lo que sea de cada quien”. a “aborrecida” e não a “aborrecedora”
c) Um terceiro exemplo está no conto como sugerem a traduções.
A herança de Matilde Arcángel. Em uma outra passagem que envolve
Referindo-se à moça, subitamente também o reflexivo, as traduções dife-
convertida em mulher deslumbran- rem. Cuca (apelido de Refugio), mu-

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lher de Abundio, adoeceu. Ele fez tudo ar se era a Cuca. É esse o sentido trans-
o que estava ao seu alcance, inclusive mitido pela tradução de Nepomuceno.
vender os burros: “Hasta eso vendí Já a de Zaguri, de duas uma: ou faz
porque se me aliviara”. Comparemos supor que o doente é Abundio, ou que
as traduções: os burros são um fardo do qual deseja
liberar-se.
“Até isso eu vendi para me aliviar”
(EZ) “Até isso eu vendi para que Enfoquemos agora alguns dentre os
se aliviasse”(EN). numerosos itens lexicais típicos da pro-
sa rulfiana e em cuja tradução não há
O sentido muda de acordo com o clítico coincidência. O simples cotejo indicará
escolhido. Obviamente, quem estava que uma das traduções se afasta, em
doente e, por tanto, necessitava alivi- maior ou menor grau, do original.
Original Tradução 1997 Tradução 2004
a) zopilote brisa urubu,
b) culebra de agua cobra d’água tromba d’água,
c) madres freiras mães,
d) rebozo mantilha chale,
e) chula(o) chula(o) graciosa(o),
f) guango cacho de bananas facão.

Ante diferenças tão gritantes é inevi- cipalmente num deles: El Llano en


tável se perguntar o porquê das mes- llamas. Cabe salientar o uso freqüen-
mas. Em casos como chula, madres, e te de apelidos na linguagem familiar
culebras de agua a teoria dos falsos do México, alguns de caráter amisto-
cognatos explica, embora não justifi- so, outros ofensivos. Com freqüência
que a fé cega na semelhança entre as eles têm a ver com alguma característi-
duas línguas. Quanto às unidades res- ca ou malformação da pessoa. Dorotea,
tantes cabe perguntar o que tem a ver personagem de Pedro Páramo, é fisi-
zopilote com “brisa”, madres com camente deforme, daí o apelido de
“freiras” e guango com “cacho de ba- Cuarraca (itálico no original), que sig-
nanas”? Aqui a resposta sugere a con- nifica desengonçada. Zaguri traduziu
fiança absoluta nos dicionários, acre- como “Matraca”, mantendo o caráter
ditando que eles podem substituir a de apelido. Já Nepomuceno preferiu
vivência da língua, também a da lín- “Perneta”, elevando-o à categoria de
gua de partida. Só isso pode explicar, sobrenome. Pode-se observar, via de
por exemplo, a tradução de guango regra, que a tradução da Paz e Terra
como “cacho de bananas”, desconsi- mantém os apelidos, grinfando-os. O
derando o contexto e até o bom senso. tradutor da Record prefere traduzi-los,
Sendo guango uma espécie de foice, ainda que nem todos. Tilcuate, espé-
passível de ser utilizado para agredir, a cie de cobra, é traduzido como
tradução de Nepomuceno é a mais ade- “Zucuri”, La Perra, como “A Cachor-
quada, aliás, a correta, acontecendo o ra”, El Pichón como “O Filhote”. No
mesmo com os outros itens da lista. entanto, Zanate fica tal qual, talvez
Voltemos agora à atenção para a tra- porque o tradutor ignora que “zanate”
dução de nomes, sobrenomes e apeli- é um pássaro preto da região, de as-
dos. Estes últimos, poucos no roman- pecto nada agradável.
ce, são abundantes nos contos, prin- A presente amostra, abordagem com-
parativa das duas traduções, confron-
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tando-as como o original, embora li-
mitada, revela aspectos interessantes.
Demonstra, em primeiro lugar, a difi-
culdade de traduzir Juan Rulfo, mes-
mo ao português. Baste lembrar que
até os hispano-falantes não-mexica-
nos precisam de glossários para com-
preender os regionalismos e ditados,
abundantes na obra do escritor
jalisciense. Daí o desafio com que se
deparam os tradutores, que devem ser
fieis no con relación a la forma, sino
en atención al sentido. Pero en Rulfo
técnica y sentido están imbricados
(López Mena, o. c., pág. 8). Essa
constatação é um chamado à tolerân-
cia em relação ao tradutor, mas não o
isenta das críticas. Estas, no caso aqui
analisado, são encaminhadas à tradu-
ção publicada pela Paz e Terra, não só
pela falta de aprimoramento em rela-
ção ao formato, mas principalmente
pelo descuido na própria tradução. A
tradução patrocinada pela Record, tal-
vez a primeira do século XXI de uma
obra de Rulfo, pelo menos ao portu-
guês, representa um avanço em mais
de um aspecto. Contudo, fica ainda
distante do ideal, segundo foi apon-
tado. Talvez a próxima tradução de
Juan Rulfo ao português brasileiro,
levando em consideração os acertos
e erros das precedentes, se aproxime
um pouco mais da utopia da tradução
perfeita.

Rafael Camorlinga
UFSC

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