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U10a risão holistÍ~a da Terra e do Espa-;o

nas suas vertentes naturais e hn10anas

DoDJ.enageDI à Professora (;eleste RoDJ.oaldo Go01.es

Volume II

Coordenação da edição
Isabel Abrantes, Pedro M. Callapez, Gina P. Correia, Elsa Gomes,
Betina Lopes, Fernando C. Lopes, Estefânia Pires & Ana Rola

CITEUC - Centro de Investigação da Terra e do Espaço da


Universidade de Coimbra

2020
U10a visão holístÍ~a da Terra e do espaço
nas suas vertentes naturaÍs e hu10anas.
HoiDenageJD à Professora Celeste RoJDualdo Go10es

VoluiDe II

Editores

I sabel Abra ntes, P edro M. Callapcz, Gina P . Correia, Elsa Gomes,


Betina Lopes, F ernando C. Lopes, Est efânia Pires, Ana Rola

CITEUC- Centro de Investigação da Terra


e do E spaço da Universidade de Coimbra

2020
Ficha técnica

Titulo:
Uma visão holística da Terra e do espaço nas suas vertentes naturais e humanas. Homenagem à
Professora Celeste Romualdo Gomes (3 vols.)

Coordenação:
Isabel Abrantes, Pedro M. Callapez, Gina P. Correia, Elsa Gomes, Betina Lopes,
Fernando C. Lopes, Estefânia Pires, Ana Rola

Edição:
CITEUC - Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra

Design Gráfico:
Fernando C. Lopes {capa)
Pedro M. Callapez (paginação e edição de imagem )

Impressão e Acabamento:
Tipografia Cruz & Cardoso, Figueira da Foz

Tiragem:
1000 exemplares

Referenciação:
ISBN : 978-989-33-1682-5
Depósito legal: 482144/21

18 edição: 2020

Patrocínios:
Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra
Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra
IIIUC - Doutoramento em História das Ciências e Educação Científica
Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra
Comissão nacional da UNESCO- Portugal
Associação Portuguesa de Professores de Biologia e Geologia
Associação Portuguesa de Geólogos
Sociedade Geológica de Portugal

Reservados todos os direitos, enquanto obra como um todo, sendo os conteúdos individuais
património exclusivo dos autores. Nenhuma parle deste livro pode ser reproduzida sem a permissao
escrita dos coordenadores e/ou autores.
,
lndice
Parte 11
Ambiente e ordenamento
Até onde podem ir as emissões de C02 por queima de
combustíveis fósseis (CFs), sem prejuízo da saúde humana? ...................................................... 3
Manuel M. Godinho

Contributo para uma pedagogia reflexiva dos problemas ambientais nas Geociências .......... 19
Alexandre O. Tavares

As alergias poli nicas e a poluição atmosférica ............................................................................. 37


António P. Coutinho

Avaliação dos impactes ambientais de emulsões explosivas ..................................................... 43


Cor/os Ferreiro & José Ribeiro

Separação de misturas de plásticos por flutuação por espumas ............................................... 55


Fernando A. G. Pito & Ano Castilho

Mudanças climáticas na história da Terra: Extinções em massa e


biodiversidade. Uma breve síntese ................................................................................................. 75
Lufs M. F. Símões

Caracterização de uma pedreira de anortositos, Província da Huíla, Angola ............................ 85


Nelzo Y. F. F. Silvo, Pedro G. C. S. Andrade & Fernando P. O. O. Figueiredo

Caracterização física e mecânica da Formação de Castelo Viegas (Grupo de Silves) ........... 101
Rui J. C. F. F. Silvo, Pedro G. C. S. Andrade & Fernando P. O. O. Figueiredo

Caracterização dos calcários utilizados na Calçada Portuguesa


(Aiqueidão da Serra, Porto de Mós/Aicanede e Alenquer) ......................................................... 113
Fóbio J.G. Rocha, Fernando A. G. Pito, Lídia M. G. Catarina & Fernando P. O. Figueiredo

Caracterização superficial de Geologia de Engenharia da


margem direita do rio Mondego, na Av. Cidade Aeminium, em Coimbra ................................. 133
Mónica P. Silvo & Mório Quinto-Ferreiro

Slope stabilíty analysis along A03 Karimbala Road, liquiça Municipality, Timor-Leste ........ 147
Oktoviono V. Tilmon de Jesus & Mó rio Quinto-Ferreiro

Parte III
Museologia e História da Ciência
A história da ciência como ferramenta didático-pedagógica nos curricula das Faculdades
de 'Sciencias Naturaes' na 'Nova' Universidade de Coimbra (1772) ......................................... 171
Fernando 8. Figueiredo

Uma proposta temporã de arrendamento das minas de carvão


do Porto e Buarcos (c.1820) ........................................................................................................... 191
José Manuel BrondlJo

Atuações humanas face a algumas adversidades da natureza ................................................. 215


Manuel M. Godinho
A Química ao serviço da vida e prisioneira da guerra ................................................................. 229
Sérgio P. J. Rodrigues

O Museu Mineralógico e Geológico da Universidade de Coimbra (1991-2010), instrumento


de ciência, educação e cultura ao serviço da Academia e da comunidade ...... v······················243
Pedro M. Collapez, Júlia F. Marques, José M. Soares Pinto, António Ferreira Soares, António F. Ferreira Pinto,
Luís C. Gama Pereira, Elsa M. C. Games & Regência Macedo

Os gabinetes de História Natural no Iluminismo. Do coleccionismo de


curiosidades à colecção científica ......................................................................•......................... 273
João Paulo S. Cabral ...

Os manuais de Mineralogia e Geologia adotados no ensino técnico,


no Instituto Industrial do Porto (1864-1950) .................................................................................285
Patrícia Costa, Pedro M. Cal/apez & Helder I. Chaminé

A contribuição de Gabriel Grisley para o conhecimento das plantas de Portugal .................. 313
João Paula S. Cabral

O Evento de Tunguska de 1908 nos registos do Observatório


Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra .............................................................. 325
Fernando C. Lopes, Ana I. Gomes, Paulo Ribeiro & Eduarda I. Alves

Santos Viegas e as Ciências Geofísicas em Coimbra ................................................................. 341


Décio R. Martins

O. Vasco da Gama e o descobrimento do caminho marítimo para a Índia imortalizados


na Heráldica e Faleristica, nas Ciências Naturais e no registo paleontológico ........................385
Pedro M . Callapez, José M . Pedroso da Silva, Fernanda Barroso-Barcenilla,
José M. Brandão, Ricardo J. Pimentel & Vanda F. das Santos
A contribuição de Gabriel Grisley para o
conhecimento das plantas de Portugal

João Paulo S. Cabral

Universidade do Porto, Faculdade de Ciências, Departamento de Biologia, Rua do Campo


Alegre, P-4169 007 Porto, Portugal. E-mail: jpcabral@fc.up.pt

Resumo: Gabriel Grisley, químico, médico e botânico alemão, veio para Portugal na década de 161 O. Em Lisboa,
perto da foz do rio Xabregas, criou um horto botânico que tinha privilégio régio. Percorreu o reino estudando a flora
espontânea e cultivada. Publicou duas obras- Desenganos para a medicina (1656), onde enumera e descreve as
plantas que cultivava no horto de Xabregas, e Viridarium lusitanicum (1661), onde enumera as plantas que
cresciam na região de Lisboa. A partir dos nomes comuns e dos polinomes latinos, e recorrendo a bibliografia
especializada. foi possível identificar, com razoável certeza, a maioria das plantas para as quais Grisley indica o
nome comum. Em termos de plantas cultivadas no reino, concluiu-se que já se cultivavam todos os cereais
modernos, exceto o arroz. t mencionada a batata-doce e o tomate, mas não a batata. Nas árvores de fruto, são
mencionadas todas as espécies modernas. incluindo a bananeira e a tamareira. Relativamente às infestantes
atuais, já tinham chegado a cana, a piteira e o estramónio. Das exóticas medicinais, salienta-se a menção ao
dragoeiro, cana-de-açúcar, aloé e tabaco. Relativamente às árvores. é surpreendente a não referência a qualquer
pinheiro. As obras de Grisley, relegadas para um injusto esquecimento, contribuem para um melhor conhecimento
da História Natural do Portugal de Seiscentos.

Palavras-Chave: Flora, Gabriel Grisley, Portugal, Seiscentos.

Abstract: Gabriel Grisley, a German chemist, physician and botanist, came to Portugal in the 1610s. ln Usbon,
near the mouth of the river Xabregas, he created a bota nicai garden that had royal privilege. He toured the kingdom
studying the spontaneous and cultivated flora. He published two works - Desenganos para a medicina (1656),
where he enumerates and describes the plants that he cultivated in the garden of Xabregas, and Viridarium
lusitanicum (1661), where he enumerates the plants that grew in the region of Lisbon. From the common names
and Latin polynames, and using specialized literature, it was possible to identify, with reasonable certainty, most of
the plants for which Grisley indicates the common name. ln terms of plants grown in the kingdom, it was concluded
that ali modem cereais were grown, except rice. Sweet potatoes and tomatoes are mentioned, but not potatoes. ln
the fruit trees, ali the modem species are mentioned, including the banana tree and the date palm tree. As for the
current weeds, the giant cane, the maguey, and jimsonweed had already arrived. Of the medicinal herbs, mention

Abrantes, 1., Callapez, P. M., Correia, G. P.. Gomes, E., Lopes, 8., Lopes, F. C., Pires, E., & Rola, A . (Eds.), Uma visão holfstica da
a
Terra e do Espaço nas suas vertentes naturais e humanas. Homenagem Professora Celeste Romualdo Gomes. Coimbra: CITEUC.
C CITEUC. 2020 DOI: http://doi.org/ 10.5281/zenodo.4409392
João Paulo S. Cabral

should be made of lhe dragon tree, sugar cane, aloe and tobacco. Regarding the trees it is amazing that Grisley
does not mention any pine. The works of Grisley, relegated to unjust oblivion, contribute to a better knowledge of
lhe natural history of Portugal of lhe 17'h century.

Keywords: Flora, Gabriel Grisley, Portugal, 17th century.

O que foi o Horto Real de Xabregas?

Pelas próprias palavras de Gabriel Grisley (?-depois de 1669 1) , que se identifica como químico e
botânico, a sua vinda para Lisboa e a criação de um primeiro horto botânico privado, remontaria à
década de 1610. Na sua obra Desenganos para a medicina, referindo-se ao seu horto botânico, Grisley
informava que a «plantagem que se praticou de quarenta annos para cá, como a experiencia presente»
(Grisley, 1656, p. 3v). Mais à frente, no texto do prólogo, depois de mencionar que o livro afinal não iria
ser ilustrado, compensava esta falta pela descrição, com «certeza» e «segurança » das «virtudes» das
plantas, informações «retiradas dos mais affamados Authores» e pela sua [de Grisley] prática de
«quarenta annos nesta cidade» de Lisboa (Grisley, 1656, prólogo).
Os objetivos deste horto botânico eram múltiplos: 1) O crescimento de plantas medicinais, frescas,
em certas quantidades, para uma posterior utilização (Grisley, 1656, pp. 3f-4f); 2) A formação de
boticários (Grisley, 1656, p. 3f). Segundo o autor, a maior parte das plantas medicinais da flora
portuguesa descritas nos Desenganos eram desconhecidas dos ervanários (Grisley, 1656, p. 4v)
pretendendo precisamente esta obra e outra posterior, o Viridarium (Grisley, 1661 ), suprir esta lacuna
de conhecimento; e 3) A formação de um herbário anexo ao horto (Grisley, 1656, prólogo), uma
novidade absoluta em Portugal (Cabral, 201 O, pp. 67-68). Este herbário seria um instrumento de estudo
para que os boticários pudessem reconhecer e identificar correctamente as plantas medicinais (Grisley,
1656, p. 3v).
Na segunda edição dos Desenganos para a medicina, publicada em 1669, Grisley refere que o Horto
Real de Xabregas tinha sido uma iniciativa de D. João IV, possivelmente resultado da experiência por
si acumulada num primeiro horto botânico privado que tinha estabelecido na década de 1610 (Grisley,
1669, prólogo ao leitor) . Efetivamente, D. João IV, em alvará datado 8 de Maio de 1652, perante a
petição feita por Grisley, ordenava que lhe fosse entregue a horta para cultivar plantas úteis para o
reino (Cabral, 2018a).
Onde se encontrava situado o Horto Botânico de Xabregas? Recorrendo a múltiplas fontes
históricas. sobre os conventos de São Francisco e da Madre de Deus de Xabregas, a fonte da
Samaritana, a antiga bacia hidrográfica do rio de Xabregas. a geografia do antigo sítio de Xabregas e
as próprias obras de Grisley, foi possível colocar a hipótese de que o Horto Real de Xabregas de Gabriel

1
Na Royal Society de Londres exist~ correspondência trocada entre Grisley e membros da sociedade, datadas de 1669. Não
nos foi possível determinar as datas e lugares de nascimento e de morte.

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A contribuição de Gabriel Grisley para o conhecimento das plantas de Portugal

Grisley se localizava perto da foz do rio de Xabregas, da fonte da Samaritana e, ainda, dos conventos
da Madre de Deus e de São Francisco de Xabregas (Cabral , 2018a).

Que obras publicou Gabriel Grisley?

Gabriel Grisley publicou duas obras, das quais os Desenganos para a medicina foi a que teve mais
sucesso editorial, com edições em 1656, 1669, 1676, 1690, 1700, 1714, 1754 e 1851 , em diferentes
casas editoriais, promovidas por diversas personalidades e instituições. A obra está dividida em duas
partes. Na primeira parte são descritas as propriedades de 260 plantas medicinais, tanto da flora
portuguesa, como exóticas cultivadas, organizadas em três capítulos, a que chama de «canteiros». A
maioria ou todas estas plantas seriam cultivadas no Horto Real de Xabregas. A segunda parte desta
obra contém uma introdução geral à técnica da destilação e ao estudo de 60 águas destiladas. Esta
obra tem ainda um índice de nomes vulgares e de nomes latinos, e um índice de «achaques e
enfermidades».
A segunda obra que Grisley publicou - Viridarium lusitanicum, teve menos edições do que os
Desenganos para a medicina, quiçá menos divulgação junto dos médicos e boticários, mas mais junto
de académicos e universitários. A primeira edição, na oficina de António Craesbeeck, em Lisboa, saiu
em 1661 (Grisley, 1661). Encontramos referência a uma segunda edição publicada em Londres em
1694, por iniciativa de John Ray, mas não nos foi possível localizar nenhum exemplar. Em 1749, saía
em Verona uma nova edição com muitas adições relativamente à primeira edição.
Na primeira edição do Viridarium lusitanicum, Gabriel Grisley apresenta uma lista das «árvores,
arbustos e plantas que o terreno de Lisboa produz, de ambos os lados do Tejo, até 30 000 passos»,
cerca de 25 quilómetros2 • Depois de um texto dedicado ao conde de Schomberg, general alemão
contratado pelo conde de Soure, em 1660, para reorganizar o exército português segue-se um prólogo
dirigido ao leitor. Depois de referir que o rio Minho é a sua fronteira norte, menciona que «O território é
irrigado e humedecido por uma saudável temperatura do ar, em todas as direcções», o que propiciava
que fosse em «todos os géneros de plantas tão abundante e variadamente fecundo» , sendo «com
mérito» «chamado Jardim da Europa» . Volta a frisar que existia neste jardim «uma inúmera variedade
de plantas, e aqui e acolá até algumas [plantas] desconhecidas». «Percorri na totalidade, durante quase
seis lustros, [esse jardim] que se estende ininterruptamente desde os rochedos do Sacro Promontório
do Sul3 até à região mais a norte, Entre-os-rios4, sem parar» (Grisley, 1661). Tendo chegado a Portugal
na década de 1610, e sendo o Viridarium datado de 1661 , estes 30 anos teriam ocupado uma parte
considerável do seu tempo de estadia em Portugal.

2
Medida antiga romana correspondente ao passo dos legionários. cerca de 0,82 m (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira,
vol. 20, p. 549).
3 Estaria a referir-se ao Cabo de São Vicente.

• Estaria a referir-se ao Entre-Douro-e-Minho.

315
João Paulo S. Cabral

A Grisley não escapou a observação da grande diferença nas plantas, entre o norte e o sul do reino,
porque escreve que «tanto divergem mutuamente entre si no que concerne à variedade de plantas que
podemos considerar num lado os Alpes dos Suíços, no outro Creta». Grisley indica ter ficado sobretudo
impressionado com o Buçaco, a Serra da Estrela e a Serra de Portalegre. ..
Seguem-se duas listas de plantas, sendo a segunda, a das plantas com bolbos e tubérculos. As
listas seguem a ordem alfabética dos polinomes. Algumas plantas têm o nome comum em português e
muitas têm a indicação de não terem sido antes descritas por nenhum tratadista.

Plantas de Portugal mencionadas nas obras de Grisley

Comparando os polinomes apresentados por Grisley no Viridarium com os já existentes e


compilados no Pinax de Bauhino (Bauhino, 1623), desde logo nos apercebemos que muitos dos
polinomes de Grisley eram muito semelhantes, ou mesmo idênticos, a nomes já referidos pelos
tratadistas. Grisley não indica onde observou as plantas, nem se são espontâneos ou cultivadas,
limitação importante da sua obra. No presente trabalho discutiremos apenas plantas para as quais
Grisley indicou o nome comum e o respetivo nome latino. Para saber a que espécie lineana se estava
a referir, comparámos os polinomes que usou com nomes dos tratadistas e os do Pinax de Bauhino.
Dado que muitos dos nomes usados por Bauhino encontram-se nas obras de referência de Lineu ,
chegámos ao nome da espécie lineana correspondente ao polinome original de Grisley. De seguida,
verificámos se este nome lineano era compatível com o nome comum apresentado por Grisley. Para
conhecer os nomes comuns das plantas usadas em Portugal (nativas e cultivadas) recorremos às obras
clássicas de Figueiredo (1825), Coutinho (1939) e Sampaio (1947), e às bases de dados nacionais da
Flora-on e da Flora Digital de Portugal. A grande maioria dos nomes comuns usados por Grisley
permanece nos dias de hoje. Comparámos a identificação feita desta forma com a apresentada por
Vandelli (1789) e por Colmeiro y Penido (1885, 1886, 1887, 1888). Na maior parte das identificações,
o nosso resultado coincidiu com o proporcionado por estes dois autores.

Cereais

Grisley menciona nos seus trabalhos todos os cereais que se cultivam modernamente, exceto o
arroz: aveia (Avena; Avena sativa l.5); centeio (Seca/e; Seca/e cereale L.); cevada (Hordeum; várias
espécies do género Hordeum L.); milhã (Gramen miliaceum aestivum vestibus infestum; Panicum
sanguinale L.); milho6 (Milium ; Panicum miliaceum L.); milho-zaburro ou sorgo (Milium indicum; Holcus
sorghum L.); «milho zaburro»- milho-maís7 (Triticum turcicum; Zea mays L.); painço (Panicum vu/gare;

5 Indicamos o nome latino usado por Grisley e o nome lineano correspondente. Para o nome atual em vigor podem ser
, consultadas bases de dados como The Plant Ust.
6 Modernamente designado de milho-miúdo.
7
Pelo nome latino que usou e por já ter referido o milho-zaburro, trata-se certamente do milho-maís. Este caso ilustra as limitações
do recurso exclusivo aos nomes comuns para identificar uma planta. Depois das obras de Grisley, será necessário esperar
mais de um século para, com os trabalhos de Vandelli sobre a flora de Portugal, se voltar ao uso dos nomes latinos das plantas,

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A contribuição de Gabriel Grisley para o conhecimento das plantas de Portugal

Panicum ita/icum L.); trigo (Triticum; várias espécies do género Triticum L.). Destas plantas, só o milho-
miúdo e a cevada são mencionadas nos Desenganos para a medicina.
A inexistência de referência ao arroz confirma informações da bibliografia que mostram que esta
cultura só começou a ter alguma expressão em Portugal, em finais do século XVIII (Cabral, 2018b). A
referência a Triticum turcicum, o milho-mais, confirma que esta cultura trazida da América Central
durante os Descobrimentos teve uma aceitação rápida no reino (Braga, 2007, p. 111; Cabral, 2018b).

Solanáceas e outras amiláceas

Grisley menciona nos seus trabalhos diversas solanáceas e amiláceas: alquequengue (Solanum
halicacabum sive Alkekengi; Physalis alkekengi L.); batateira8 (Batatas; lpomoea batatas (L.) Lam .);
beringela (Ma/a insana; So/anum melongena L.); erva-moura (Solanum hortense; So/anum nigrum L.);
gingeira-do-Brasil (Pseudocapsicum Dodonaei; Solanum pseudo-capsicum L.); tomateiro (Pomum
amoris; Solanum lycopersicum L.); Solanum somniferum (Physalis somnifera L.). Destas plantas, são
mencionadas nos Desenganos, a alquequengue e a erva-moura.
Não menciona a batateira , uma planta de uso extremamente tardio na Europa, praticamente só a
partir do século XIX (Cabral, 2018b). A referência ao tomateiro é interessante. Planta originária da
América Central, foi trazida para a Europa no século XVI pelos espanhóis (Ferrão, 1992, pp. 142-143;
Cabral , 2018b, p. 201). As variedades importadas deveriam ter os frutos amarelos. Esta característica
e a forma do fruto, devem estar na origem da designação latina de Pomum amoris (Ferrão, 1992, p.
143) que Grisley e vários tratadistas usaram. A planta encontrou óptimas condições de crescimento
nas regiões mediterrânicas, mas durante muito tempo foi considerada uma planta venenosa (Braga,
2007, p. 103). Este preconceito ter-se-á desvanecido pela primeira vez em Itália, mas só no século
XVIII a cultura atingiu, na Europa, uma escala apreciável {Ferrão, 1992, pp. 142-143; Renfrew &
Sanderson, 2005, pp. 129-130; Braga, 2007, p. 103). Quando se começou a cultivar em Portugal?
Duarte Nunes do Leão, na sua Descrição do Reino de Portugal publicada em 1610 no capítulo XXXII
que trata «da muita hortaliça que há em Portugal », não refere o tomateiro (Nunes do Leão, 2018, p.
329). Francisco da Fonseca Henriques, médico de O. João V, na descrição dos vários legumes e
hortaliças que se consumiam no reino, refere o tomate (Henriques, 1731, p. 229), mas não fornece
elementos quanto à abundância e regularidade da ingestão destes frutos. Não existe qualquer
referência ao tomate na primeira edição de Arte de Cozinhar de Domingos Rodrigues (Rodrigues, 1621)
nem na edição de 1732 (Rodrigues , 2009). Pelo contrário, o livro de receitas de Francisco Borges
Henriques, escrito entre 1715 e 17299 , apresenta diversas receitas com tomate. Nenhuma das receitas

desta vez de acordo com a nomenclatura lineana (Cabral, 2018b). Até às obras de Vandelli, os trabalhos sobre a história natural
de Portugal, nomeadamente de Duarte Nunes do Leão, João Baptista de Castro, Manuel de Figueiredo e Cristóvão dos Reis,
recorreram unicamente aos nomes comuns para designar as plantas e os animais (Cabral, 2018b).
8 Grisley usou o mesmo nome de Clúsio que, pela descrição e pelo desenho que apresenta, não deixa dúvidas de que se trata

da batata-doce e ntio da batata. Este caso ilustra mais uma vez as limitações do recurso exclusivo aos nomes comuns para
identificar uma planta.
9 Francisco Borges Henriques -Receitas de milhares de doces e de alguns guizados particullares ( ...). Ms 7376 da BNP, datado

de 1715-1729, estudado por Braga (2004).

317
João Paulo S. Cabral

do manuscrito do mosteiro de Tibães (datável do século XVII} publicadas por Ramos et ai. (2004-2005)
e Ramos & Claro (2013) referem o tomate. Quando em finais do século XVIII , J. H. F. Link e J. C.
Hoffmansegg viajaram por Portugal observaram que no verão temperavam-se muitos pratos e faziam-
se saladas, com tomate (Link, 1803a, pp. 257-258). Também em finais do sécl11Ó XVIII , nos trabalhos
de D. Vandelli é referido o tomateiro como uma das solanáceas cultivadas no reino (Cabral, 2018b, p.
236). No seu conjunto, estes elementos informativos sugerem, portanto, que o tomateiro era cultivado
no Portugal de Seiscentos, mas só terá adquirido um uso apreciável no séêül<kSeguinte .
A batateira-doce é uma planta de origem americana, nativa da Colômbia, Equador_e norte do Peru .
Já se cultivava no Brasil quando os portugueses lá chegaram. A referência de Grisley à batata-doce
confirma as informações que encontramos na bibliografia. Foi trazida para a Europa pelos portugueses
e teve uma expansão rápida , ao contrário da batata. Já se cultivava no Açores em meados do século
XVI e, em finais deste século, estava muito divulgada em Portugal, Espanha e Itália (Ferrão, 1992, p.
66; Braga, 2007, pp. 91-93).

Algumas plantas medicinais exóticas

Grisley menciona a existência no reino de algumas plantas exóticas com propriedades medicinais:
a açafroa ( Carthamus sive cnicus; Carthamus tinctorius L); a árvore-dragão ou dragoeiro (Arbor draco;
Dracaena draco (L) L); a cana-de-açúcar (Arundo saccharina; Saccharum officinarum L); a cana-da-
Índia (Canna indica, flore rubro ; Canna indica L); o cânhamo (Cannabis sativa mas & foemina;
Cannabis sativa L) ; a erva-babosa (A/oe; Aloe perfoliata L var. vera L e outras espécies deste género) ;
a erva-gigante (Acanthus ; Acanthus moi/is L) ; a figueira-do-inferno (Ricinus vulgaris; Ricinus communis
L.); o tabaco (Tabacum longifolium, usuale; Nicotiana tabacum L.). Apesar de todas terem propriedades
medicinais, só a açafroa e o tabaco são mencionadas nos Desenganos para a medicina.
Algumas destas plantas merecem especial discussão.
O uso do sangue-de-dragão, uma resina extraída de várias plantas, em particular do dragoeiro,
remonta à Antiguidade. Era obtida nomeadamente de Dracaena cinnabari Balf.f. , uma planta endémica
da ilha de Socotorá e, sobretudo, de Dracaena draco (L.) L, uma planta endémica das Macaronésia e
Marrocos. Clúsio refere na sua obra Rariorum a/iquot stirpium per Hispanias observatarum historia que,
quando visitou Lisboa em 1564, observou um dragoeiro em Lisboa , no mosteiro da Graça. A árvore
tinha «oito palmos de espessura» , possivelmente o diâmetro do tronco (Ciúsio, 2005, p. 70). Os
trabalhos de Grisley indicam que o dragoeiro continuou a ser cultivado no reino em Seiscentos. Todavia,
não o refere nos Desenganos. Não seria cultivado no Horto Real de Xabregas?
A cana-de-açúcar é uma planta nativa do Sudeste Asiático. Os muçulmanos introduziram a cultura
no norte de África e na Europa Mediterrânea. No sul da Península Ibérica já seria cultivada no século
X. Ao tempo de D. João I, cultivava-se no Algarve e pode ter-se expandido até Coimbra . No século XV,
foi introduzida na ilha da Madeira e nos Açores (Ferrão, 1992, pp. 21-22) . Duarte Nunes do Leão, na
sua Descrição do Reino de Portugal publicada, em 161 O, no capítulo XXXII que trata «da muita hortaliça

318
A contribuição de Gabriel Grisley para o conhecimento das plantas de Portugal

que há em Portugal» refere que tinha visto canas-de-açúcar numa propriedade do milanês João Batista
de Revelasca, entre Alcântara e Belém (Nunes do Leão, 2018, p. 329).
Desde a Antiguidade que o Aloe vera (L.) Burm.f., distribuído nativamente pelo nordeste de África e
Península Arábica, era a espécie de aloé mais usada. Foi depois introduzido na Europa e nas Américas,
estando hoje naturalizado na região Mediterrânea, Macaronésia, América Central e do Sul (Paiva,
2015) . Os trabalhos de Grisley mostram que os aloés já cresciam no reino, em Seiscentos. Fr. Cristóvão
dos Reis, carmelita descalço, nascido em 1717, farmacêutico e administrador da botica de Nossa
Senhora do Carmo de Braga, refere que o aloé baboso (Aioe vera) crescia bem «nos territorios quentes,
como são o Alentejo, vizinhanças de Lisboa, e alguns Sítios da Província da Beira, principalmente nas
vizinhanças de Coimbra». Desde que colocado em locais «onde o Sol faça grande impressão», até
crescia no Minho (Reis, 1779 , p. 245) . Link e Hoffmansegg observaram que no Algarve se
confecionavam cordas com as fibras das folhas do aloé baboso (Link & Hoffmansegg, 1808, p. 313) .
Este conjunto de informações sugere pois que os aloés, nomeadamente o Aloe vera, se terão adaptado
às condições do território português, tendo-se naturalizado num espaço de tempo não muito longo.
O tabaco é uma planta originária do continente americano e já usada na América quando chegaram
os europeus. Estava largamente difundido no Brasil quando chegaram os portugueses. Folhas da
planta do tabaco foram trazidas para Espanha nos princípios do século XVI por Fernandez Oviedo. Em
meados deste século, a planta seria já cultivada em Portugal. Por volta de 1560, Jean de Nicot,
embaixador de França em Portugal , ofereceu à rainha-regente D. Catarina de Áustria, folhas de tabaco,
possivelmente já produzidas em Portugal, que a soberana usou aspirando o fumo de braseiras onde a
folha era queimada, tendo sentido alívios dos seus padecimentos. O cardeal de Santa Cruz, Núncio
Apostólico em Lisboa, levou a planta para Itália. Antes do final do século XVI, a cultura já era conhecida
na Alemanha e nos Países Baixos. Apesar de presente em Portugal, a cultura só adquiriu significado
no século XIX (Ferrão, 1992, pp. 133-142). A referência de Grisley ao tabaco confirma a sua presença
no reino em Seiscentos.

Algumas árvores de fruto

Grisley menciona todas as árvores e arbustos de fruto vulgares nos tempos atuais, como o
abrunheiro (Pruni sylvestris 3 species; Prunus spinosa L.) , a alfarrobeira, ameixieira, amendoeira,
aveleira , castanheiro, cerejeira, damasqueiro, figueira, ginjeira. laranjeira, limoeiro, macieira,
nespereira, nogueira, oliveira e zambujeiro, pereira, romãzeira, pessegueiro e videira. Merece especial
destaque a bananeira (Arbor musa; híbridos de várias espécies do género Musa L.) e a palmeira-
tamareira (Palma Dactilifera; Phoenix dactylifera L.). As bananeiras são originárias do Sudeste Asiático
e a hibridação entre espécies deverá ser muito antiga. A propagação sempre se fez por via vegetativa.
Documentos da época dos Descobrimentos referem a bananeira, cuja cultura terá sido levada pelos
portugueses para Cabo Verde, São Tomé e Brasil (Ferrão, 1992, pp. 152-158). A referência que Grisley
faz a esta planta indica que em Seiscentos a sua cultura já se fazia no reino.

319
João Paulo S. Cabral

Árvores modeladoras da paisagem

Várias das principais árvores nativas ou naturalizadas da flora portuguesa são mencionadas por
Grisley: o acipestre (Cupressus arbor, Cupressus sempervirens L.); o álam.o (Populus alba, nigra,
Lybica; Populus tremula L.); a azinheira (l/ex cujus glandibus in Lusitania & Baetica vescuntur. Esculus
verus autiquorum; Quercus i/ex L.); o carrasco (//ex coccigria; Quercus coccifera L.); a faia (Fagus;
Fagus sylvatica L.); o freixo (Fraxinus; Fraxinus excelsior L. ou Fraxinus OfTJUS L.); a olaia (Arbor Judae
sive siliquastrum; Gereis siliquastrum L.) ; o plátano (Acer majus, Lusitanis; Acer pseudo-platanus L.); o
sovereiro ou sobreiro (Suber latifolium & angustifolium; Quercus suber L.) ; o ulmeiro (Uimus ; Ulmus
campestris L.). É interessante a referência à palmeira-anã (Chamaeriphes; Chamaerops humilis L.),
uma planta que só se encontra no litoral do Algarve.
Todavia , não encontramos nas obras de Grisley qualquer referência a pinheiros. As três espécies
mais importantes seriam certamente o pinheiro-manso (Pinus domestica Matth., Pinus sativa Bauh.,
Pinus pineaL.) , o pinheiro-bravo (Pinus marítima altera Bauh., Pinus sy/vestris L. var. 13, Pinus pinaster
Ait.) e, em zonas de altitude, o pinheiro-silvestre (Pinus sylvestris Bauh., Pinus sylvestris L.), todas
descritas por Bauhino e outros tratadistas (Cabral, 2018b). Clúsio menciona no capítulo VIl do livro I
três pinheiros: pinaster I, pinaster 11 e pinaster III (Ciúsio, 2005). Estas espécies foram designadas por
Bauhino de Pinus marítima altera, Pinus marítima major e Pinus marítima minor, respetivamente
(Bauhino, 1623, p. 492), variedades do pinheiro-bravo - Pinus pinaster Aiton (Lamarck, 1804, p. 337).
Tournefort, no relato da sua excursão por Portugal em 1689, não menciona nenhum pinheiro
(Henriques, 1890). No entanto, João Vigier, que veio para Portugal em finais do século XVII e que
conhecia bem as plantas do reino, na sua obra Historia das Plantas da Europa publicada em 1718,
menciona as três espécies de pinheiros mais vulgares. Relativamente ao pinheiro-manso (Pinus sativa
Bauh.), cujo nome comum era idêntico ao atual, refere que se escusa a dar uma descrição «por ser
arvore comua neste Reino» (Vigier, 1718, p. 852). O pinheiro-silvestre (Pinus sylvestris Bauh .) atingia
grande altura, sendo as pinhas «mais pequenas [e] muyto fechadas» em relação às do pinheiro-manso
(Vigier, 1718, p. 853). O pinheiro-bravo (Pinus marítima major Bauh., Pinus marítima altera Bauh.)
crescia perto do mar e as pinhas eram «piquenas & muito compridas» (Vigier, 1718, pp. 856-857).
Já em finais do século XVIII, a Flora Espano/a de Joseph Quer indicava estas três espécies de
pinheiros como fazendo parte da flora do país vizinho (Quer y Martínez, 1784, pp. 100-105). Existindo
certamente no Portugal de Seiscentos, por que razão os pinheiros não constam dos trabalhos de
Grisley?

Algumas plantas exóticas que j ã tinham chegado ao reino

Muitas plantas exóticas adquiriram , em território nacional, um carácter infestante e hoje ocupam
lugar de relevo na paisagem . Tem sido estudado e discutido como, e quando, foram introduzidas em
Portugal (Cabral, 2018b). Neste contexto, os trabalhos de Grisley, mais de um século anteriores aos
de D. Vandelli (Cabral, 2018b) , são de inestimável valor para esta temática. Não considerando

320
A contribuição de Gabriel Grisley para o conhecimento das plantas de Portugal

naturalmente os eucaliptos, plantas endémicas do continente australiano, ainda não explorado


cientificamente (e portanto não mencionadas pelos tratadistas), e modernamente determinantes na
paisagem portuguesa, Grisley refere como existindo no reino as seguintes plantas exóticas, hoje com
carácter infestante: a cana (Arundo cypria seu donax ; Arundo donax L.), o estramónio (Stramonium
vulgare ; Datura stramonium L.) , e a pita ou piteira (Aioe Americana; Agave americana L.).
A cana (Arundo donax) é considerada atualmente como uma exótica naturalizada com acentuado
carácter invasor. A planta tem propriedades medicinais e era cultivada no Horto Real de Xabregas.
Estará esta cultura relacionada com a sua introdução no meio ambiente e naturalização?
A piteira , uma planta originária do México e outras regiões da América tropical, terá sido trazida para
a Europa na época dos Descobrimentos 10 . Quando visitou a Península Ibérica em 1564-1565, Clúsio
observou-a viva num mosteiro perto Valência. Levou consigo duas plantas para os Países Baixos, uma
das quais não resistiu aos rigores do inverno. Os povos do México faziam múltiplos usos desta planta,
em particular utilizavam as fibras das folhas para fins variados " costume que foi trazido para Espanha
e, depois, para Portugal. Clúsio refere que viu em Valência uma bolsa feita com fibras das folhas e ouvi
dizer que em Sevilha se vendia roupa para senhora feita com estas fibras (Ciúsio, 2005, p. 314).
Quando, em finais do século XVIII , J. H. F. Link e J . C. Hoffmansegg exploraram o Algarve, observaram
que a piteira era muito vulgar e formava cercas e sebes (Link, 1803a, pp. 242-243). Com as folhas
fabricavam-se, nos arredores de Loulé, cordas («fio de pita») (Link, 1803b, p. 143). Na Descripção de
Portugal de Fr. Manuel de Figueiredo, publicada em 1817, refere-se que no Algarve a fibra das folhas
da piteira era utilizada para confecionar tecidos que Manuel de Figueiredo qualifica de «delicados»
(Figueiredo, 1817, pp. 5-6). Este conjunto de informações sugere, portanto, que a cana e a piteira se
terão adaptado bem às condições do território português estando presentes em Seiscentos,
possivelmente já como plantas naturalizadas.

Considerações finais

F. A. Brotero, no prefácio à sua Flora Lusitanica (Brotero, 1804), criticava negativamente o Viridarium
de Grisley, com os seguintes argumentos: 1) a obra não tinha seguido «nenhuma disposição
sistemática, mas, sim , alfabética»; 2) «no lugar das que não estavam descritas, elencou várias plantas
que já tinham sido objeto de nota e também descritas por outros botânicos» 12; 3) a nomenclatura era
«bastante desprovid[a] de suporte [científico] e confus[a]»; 4) não tinha distinguido as plantas nativas
das exóticas; e 5) não tinha indicado o lugar onde tinham sido colhidas as plantas e tinha atribuído «por
vezes, em números diferentes, dois nomes [diferentes] a uma mesma espécie» .13 Apesar de algumas

10
Encontra-se hoje naturalizada na Europa, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia (Pieroni, 2005, p. 32).
11
1ncluindo o fabrico de papel (Ciúsio, 2005, p. 314). Domingos Vandelli, na sua Memoria sobre as producções naturaes do
Reino, e das Conquistas, primeiras materias de differentes Fabricas, ou Manufacturas, publicada em 1789, aproveitando a
abundância de pitas no reino, sugeria precisamente o uso das fibras das folhas para o fabrico de papel.
12
Brotero não indica concretamente quais são estas plantas.
13
O conceito de espécie nos autores do século XVII como Grisley não é comparável com o dos autores do século XVIII, em
particular com o de Lineu (Cabral, 201 0).

321
João Paulo S. Cabral

destas críticas estarem corretas, a conclusão que Brotero tira de que Grisley não era «suficientemente
versado nos escritos dos botânicos» e que a sua obra é «lamentável e muitas vezes desprovida de
inteligência», já nos parece injusta e anacrónica , parecendo esquecer que as obras de Grisley
incorporaram muitas informações dos tratadistas , em particular nomes de plantas, e que tinham sido
escritas século e meio antes das suas, e muito antes da revolução lineana, avanço que já Brotero tinha
presenciado e aproveitado. Apesar das limitações. e ao contrário das conclusões apontadas por
Brotero, tentámos demonstrar no presente trabalho que as obras de Grisley são importantes para o
conhecimento da matéria médica e da História Natural de Portugal de Seiscentos.

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