Você está na página 1de 375

ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA

EM PORTUGAL (XVIII-XX)
TÍTULO
Espaços e Actores da Ciência em Portugal (XVIII-XX)
COORDENAÇÃO
Maria Fernanda Rollo, Maria de Fátima Nunes,
Madalena Esperança Pina e Maria Inês Queiroz
DESIGN E PAGINAÇÃO
Nuno Ribeiro e Nuno Pacheco Silva
ISBN
978-989-658-
DEPÓSITO LEGAL
___/14
DATA DE EDIÇÃO
Junho de 2014
EDIÇÃO

CALEIDOSCÓPIO – EDIÇÃO E ARTES GRÁFICAS, SA


RUA DE ESTRASBURGO, 26, R/C DTO.
2605-756 CASAL DE CAMBRA
TELEF. (+351) 21 981 79 60
FAX (+351) 21 981 79 55
www.caleidoscopio.pt
e-mail: caleidoscopio@caleidoscopio.pt

ORGANIZAÇÃO

APOIO INSTITUCIONAL
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA
EM PORTUGAL (XVIII-XX)
COORDENAÇÃO

Maria Fernanda Rollo, Maria de Fátima Nunes,


Madalena Esperança Pina e Maria Inês Queiroz
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 0

ESPAÇOS E ACTORES: LUGARES DA CIÊNCIA


A criação do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra (1799)
e o estabelecimento do seu programa científico 1
Fernando B. Figueiredo

Espaços e actores do ensino da electricidade em Portugal (1850-1911) 2


Ana Cardoso de Matos

A Imprensa Científica Militar (1851-1918):


Trocas e circulação de saberes entre Portugal e a Europa 3
José Luís Assis

Laboratórios universitários – espaços de ciência


na transição da Monarquia para a República 4
Ângela Salgueiro,

O Hospital de Santa Marta no Nascimento da Psicocirurgia:


espaços, ideias e atores 5
Manuel Correia e Célia Pilão

Casa de Saúde do Telhal na História da Psicocirurgia:


Ideias, Espaços, Práticas e Protagonistas 6
Aires Gameiro, Manuel Correia e Augusto Moutinho Borges

ORGANIZAÇÃO DA CIÊNCIA: PROMOTORES E ORGANISMOS


La lucha por la modernidad:
La Junta para Ampliación de Estudios y sus protagonistas 7
José María López Sánchez

Instituto Nacional de Investigação Industrial:


a investigação científica aplicada ao desenvolvimento industrial 8
Ana Carina Azevedo

A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT, 1967-1974)


Numa ‘esquina da história’... 9
Tiago Brandão

Escolas médicas e tuberculose:


um olhar sobre as dissertações médicas em tisiologia em Portugal (sécs. XIX – XX) 10
Ismael Cerqueira Vieira

O internacionalismo científico no âmbito das origens da INVOTAN 11


Paulo Vicente
ESPAÇOS E ACTORES: PROTAGONISTAS DA CIÊNCIA
A ciência e a criação de um «homem novo» português.
O pensamento de Barahona Fernandes e a influência das teorias eugénicas alemãs 12
Cláudia Ninhos

Agustín Pascual (1818-1884).


El modelo alemán y la primera enseñanza forestal en España 13
Ignacio Garcia Pereda

Apontamentos para a História da contenda entre António Sérgio


e Abel Salazar sobre a “Falência da Metafísica” 14
António Mota Aguiar

Dr. Costa Sacadura (1872-1966) e a sua obra científica:


os seus contributos para a higiene e construção escolar em Portugal
na transição do século XIX para o séc. XX 15
Soia Fernandes

Bettencourt Ferreira (1866-1948) e a divulgação científica em Portugal 16


Marisa Costa

Mulheres cientistas e os Trópicos:


(in)visibilidades da primeira metade do novecentos português 17
Ana Cristina Martins

António Oliveira Pinto S.J. e as primeiras experiências com Radioactividade


em Portugal 18
Francisco Romeiras

Combatendo epidemias: Bernardino António Gomes, Sousa Martins,


Ricardo Jorge, Câmara Pestana, Almeida Garrett, Fernando da Silva Correia 19
Maria Antónia Pires de Almeida

PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO E ARQUIVOS DE CIÊNCIA


O Instituto Industrial do Porto
e a divulgação da Ciência na segunda metade do séc. XIX 20
Patrícia Costa, Helder I. Chaminé e Pedro M. Callapez

Um projecto de musealização para o Gabinete de História Natural da Ajuda


(1768-1836). História, Colecções, Espaços 21
João Brigola e Luís Ceríaco

Os acervos do Arquivo de Ciência e Tecnologia 22


Madalena Ribeiro e Paula Meireles
6
Espaços e Actores da Ciência
em Portugal (XVIII-XX)

INTRODUÇÃO

O Encontro Internacional Espaços e Actores da Ciência em Portugal (XVIII-XX),


foi realizado no contexto das actividades desenvolvidas pelo HetSci | Grupo de
Estudos em História e Ciência, que reúne investigadores ligados à História da
Ciência, com origem em duas Unidades de Investigação avaliadas e inanciadas
pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): o Instituto de História Con-
temporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa e o Centro de Estudos de História e Filosoia da Ciência, da Universidade
de Évora.
O HetSci, como se tem relectido pelo conjunto de actividades desenvolvidas,
tem como objectivo promover e desenvolver a investigação em História da Ciên-
cia em Portugal, no período compreendido entre os séculos XVIII e XX.
Neste sentido, e tendo presentes as linhas de acção traçadas no âmbito desta
rede, o seu primeiro Encontro internacional realizou-se nos dias 24 e 25 de Fe-
vereiro de 2012, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, pretendendo relectir sobre a dinâmica dos protagonistas da Ci-
ência em diversos patamares e esferas de actividade e vivência. Procurou-se deste
modo dar expressão aos construtores/actores da ciência (pessoas, instituições e
mesmo lugares) e dar a conhecer o peril, a natureza, os motivos e percursos desses
agentes que construíram ciência em Portugal.
O encontro compreendeu relexões sobre as transformações ocorridas desde o
século XVIII e a sua repercussão em matéria de arranque/desenvolvimento cien-
tíico veriicado até ao século XX, observando o papel dos espaços, instituições e
cientistas enquanto actores de ciência, não só no que diz respeito à crescente va-
lorização do conhecimento cientíico mas também no que se refere ao quadro de
organização da ciência, processos de internacionalização e dinâmicas associadas.
Permitiu ainda cruzar várias perspectivas e metodologias de trabalho, linguagens

7
da História enquanto Ciência Social e linguagens cientíicas oriundas de vários
saberes da Ciência, com a carga de um tempo histórico incorporado.
Tendo presentes as diversas linhas de investigação e a actualidade destas ques-
tões, o encontro reuniu também relexões sobre metodologias de investigação em
História da Ciência e arquivos de ciência (também eles espaços de ciência), asso-
ciando questões mais intimamente ligadas ao património cientíico museológico,
identiicando protagonistas, espaços de desenvolvimento e produção cientíica e o
modo como participaram na construção de agendas de investigação e ciência.
Os dois dias de trabalhos foram organizados nos seguintes paineis temáticos:
Painel 1 – Espaços e Actores: lugares da Ciência
Painel 2 – Organização da ciência: promotores e organismos
Painel 3 - Internacionalização cientíica em Portugal: agentes e dinâmicas
Painel 4 - Espaços e actores: protagonistas da Ciência
Painel 5 - Património museológico e arquivos de Ciência
Os contributos dos conferencistas do Brasil e de Espanha, convidados a integrar
estas sessões, suscitaram novas linhas de abordagem e estudo para a história com-
parada da Ciência, dos seus principais agentes e promotores, promovendo mesmo
a projecção de novas iniciativas conjuntas, de carácter internacional.
Tendo presentes os objectivos gerais e as linhas de acção propostas pelo HetSci,
a realização deste Encontro permitiu assim cruzar perspectivas e abordagens de
natureza diversiicada, tendo em consideração os painéis temáticos propostos, esti-
mulando desta forma a interdisciplinaridade e o debate.
O livro que agora se publica reproduz uma parte signiicativa das comunicações
apresentadas aos diferentes painéis temáticos, assinalando precisamente a primeira
iniciativa organizada pelo Hetsci.

COORDENAÇÃO

Maria Fernanda Rollo (IHC-FCSH/UNL)


Maria de Fátima Nunes (CEFHCi-U.Evora)
Madalena Esperança Pina (CEFHCi-U.Evora)
Maria Inês Queiroz (IHC-FCSH/UNL)

8
ESPAÇOS E ACTORES:
LUGARES DA CIÊNCIA
A Criação do Observatório Astronómico
da Universidade de Coimbra (1799)
e o Estabelecimento do seu Programa Científico
Fernando B. Figueiredo1
Centro de Geofísica da Universidade de Coimbra/Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra

A ideia de criar um Observatório Astronómico surge desde logo nos Estatutos


Pombalinos (1772) a propósito da Faculdade de Mathematica e da respectiva cadeira
de Astronomia2. A sua criação tinha dois objectivos distintos: um a leccionação e
a prática da astronomia universitária e outro, o desenvolvimento da ciência astro-
nómica – “para se ixarem as Longitudes Geográicas; e rectiicarem os Elementos
fundamentais da mesma Astronomia” [Estatutos 1772, v.3 p.213]. Os Estatutos
Pombalinos encaravam a ciência como a força motriz para uma mudança de men-
talidades essencial à modernização do país e a astronomia desempenhava um papel
fundamental pelas “consequências tão importantes ao adiantamento geral dos co-
nhecimentos humanos, e à perfeição particular da Geograia, e da Navegação”. Por
isso mesmo o Observatório Astronómico era representativo desse modo de ver a
ciência, constituindo simultaneamente um meio para o seu desenvolvimento. Atra-
vés dele Portugal sintonizar-se-ia com a Europa cientíica do seu tempo – “Tem
merecido em toda a parte a atenção dos Soberanos, fazendo ediicar Observatórios
magníicos, destinados ao progresso da Astronomia.”3. Contudo, apesar dos Esta-
tutos estipularem desde logo a ediicação do Observatório a verdade é que só em

1 bandeira@mat.uc.pt
2 O plano de estudos do novo curso mathematico compreendia 7 cadeiras (4 na Faculdade de Matemática e 3 na de
Filosoia): 1º ano: Geometria + Filosoia Racional e Moral + História Natural; 2º ano: Álgebra + Física Experi-
mental; 3º ano: Foronomia (Física-Matemática Aplicada); 4º ano: Astronomia. Havia ainda uma cadeira anexa
de Desenho e Arquitectura que poderia ser frequentada no 3º ou 4º ano.
3 É precisamente durante o século XVIII que na Europa a astronomia se torna na primeira ciência aplicada a to-
mar um papel cimeiro na hierarquia das ciências. A título de curiosidade veja-se a percentagem de membros da
Académie Royal dês Sciences de Paris, um dos centros mundiais de ciência mais importantes do século XVIII,
cujo interesse académico se centrava na astronomia: 16,4%; só ultrapassada pelos membros que se interessava por
botânica e pela história natural: 18,7% [McClellan 1981].

11
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

1799 a Universidade se vê dotada com este estabelecimento cientíico.


O papel e a prática astronómica que se requeriam para o Observatório (traça-
dos logo nos Estatutos e depois reforçados no seu regulamento, a Carta Régia de
4-12-1799) prendem-no a uma dicotomia muito própria: como Observatório uni-
versitário por um lado e como Observatório nacional por outro4. Um programa as-
tronómico que lhe confere a característica de Observatório nacional, envolvendo-o
na elaboração das Efemérides – “Para o Meridiano do Observatório, e para uso
dele (assim como se pratica nos mais célebres da Europa) se calculará a Efeméride
Astronómica, a qual igualmente possa servir para uso da Navegação Portuguesa” –,
e alguns aspectos que, também, o caracterizam como Observatório universitário, a
investigação cientíica dos seus professores, para que “trabalhem com assiduidade
em fazer todas as Observações […]; e rectiicarem os Elementos fundamentais da
mesma Astronomia” e o papel pedagógico como estabelecimento de ensino agre-
gado à Faculdade de Matemática onde os alunos deveriam ter aulas práticas –
“fazendo-se adquirir aos Ouvintes o hábito, e prontidão necessária nos Cálculos
Astronómicos, e na prática das observações [...]”5.
No que diz respeito à actividade cientíica do Observatório, só a partir de 1799
este passa a ser um verdadeiro estabelecimento astronómico, com as necessárias
condições para se trabalhar assiduamente nas observações e no cálculo das efe-
mérides astronómicas [Freire 1872, p.95]. Até meados da década de 80 do século
XVIII o Observatório interino, que havia sido construído por volta de 1775-77,
desempenhara quase em exclusivo uma função pedagógica, funcionando principal-
mente como estabelecimento de ensino prático. A partir de meados dessa década o
Observatório vê-se dotado do acervo instrumental que lhe permite passar a outro
patamar: o de estabelecimento cientíico. Porém enfrentava um grave problema a
falta instalações para as necessárias e diversas valências ao seu funcionamento.

4 A propósito destes conceitos de observatórios universitários e nacionais, veja-se [Hutchins 1999, pp.4-22].
5 “[...] Para isso distribuirá os discípulos em turmas, que lhe assistirão no Observatório pelos seus turnos […] e
lhes ensinará o uso dos Instrumentos, fazendo muito por formá-los na precisão, e delicadeza escrupulosa, que
distingue os Grandes Observadores, úteis ao progresso da Astronomia” [Estatutos 1772, v.3 p.195, 203]; “com
o cuidado expresso de distinguir e não deixar interferir as aulas e a prática lectiva com as observações e práticas
astronómicas quotidianas do Observatório” [C.R 4-12-1799, §.9].

12
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

OAUC: VICISSITUDES DA SUA CONSTRUÇÃO6

Hoje, a maior parte dos muitos visitantes que franqueiam a Porta Férrea da
Universidade e olham, ao entrar no Pátio das Escolas, à sua esquerda e se aproxi-
mam do varandim para desfrutar a imensa vista sobre a baixa da cidade e do rio
Mondego, não sabe que era aí que durante muitos anos (c.150 anos) esteve edi-
icado o Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra (OAUC) – um
edifício de coniguração rectangular, “constituído por três corpos contíguos em que
o central é três vezes mais alto do que os laterais.” [Bandeira 1943-1947, p.129] –,
demolido aquando das obras de requaliicação da Universidade de Coimbra nos
anos 40 e 50 do século XX. Porém, este Observatório instalado no Pátio não foi
aquele que a Reforma Pombalina previu ediicar. O sítio que se determinou pri-
meiramente para a construção do Observatório foi o Castelo da cidade, que se
situava na vertente da Alta de Coimbra oposta ao Paço das Escolas, onde hoje é o
Largo D. Dinis [Lemos 1777, p.260].
O sítio do Castelo da cidade para além de corresponder a um dos principais
requisitos que um estabelecimento cientíico desta natureza exigia, o ser ediicado
num lugar alto e “desassombrado por todos as partes” [Estatutos 1772, v.3 p.214]7,
desempenhava também um papel simbólico da própria Reforma Pombalina. A
monumentalidade da Reforma espelhava-se na obra arquitectónica dos vários es-
tabelecimentos cientíicos, dos quais sobressairia pela monumentalidade e locali-
zação o Observatório Astronómico. É com base neste programa que Guilherme
Elsden (?-1779), irá desenvolver as duas versões conhecidas do projecto para o
referido Observatório8.

6 Foram muitas as vicissitudes por que passou a construção do Observatório da Universidade, os trabalhos mais
signiicativos que até à data se escreveram são os seguintes: [Freire 1872], [Ribeiro 1871-1914, vols.1-2], [Braga
1898-1902, v.3], [Bandeira 1943-1947, pp.75-138], [Reis 1964], [Carvalho 1985], [Osório 1985], [Mariano &
Pinheiro 1991], [Craveiro 1990], [Lobo 1999], [Craveiro 2004], [Martins & Figueiredo 2008] e [Figueiredo
2011].
7 “O dito Observatório deverá ser desassombrado por todos as partes; de sorte, que dele se domine livremente o
Horizonte; e se possam observar todos os Fenómenos, que sucederem no Hemisfério superior. Além disso deverá
ser amplo, e cómodo; para nele poderem diversos Astrónomos observar ao mesmo tempo o mesmo Fenómeno:
Tendo-se grande atenção em dispor as janelas com tal artifício, que se possam fazer as Observações nocturnas
em quaisquer distâncias do Zénite, sem os Observadores serem incomodados pelo sereno.” [Estatutos 1772, v.3
p.214]. O astrónomo francês Antoine Darquier de Pellepoix (1718-1802) a propósito do local mais adequado
para instalar um observatório astronómico escreve: “La position le plus avantageuse, pour un observatoire, seroit
sans contredit d’être situe au rez-de-chaussée, isole de toute parts, & ayant un ciel découvert de tous les côtés
jusqu’à l’horizon [lettre de 10 Juillet 1777]” [Darquier 1786, p.4].
8 Guilherme Elsden chega a Coimbra em inícios de Março de 1773 [DRP 1937-1979, v.1 p.80] e no inal do
mês começam os preparativos da obra com a demolição do Castelo medieval e a regularização do terreno. Os
trabalhos começaram em 29 Março de 1773 com 64 trabalhadores desmanchando as paredes velhas do castelo
[ANTT Mç.513 Ministério do Reino]. Na semana que inda em 3 de Abril de 1773 são pagos os primeiros
ordenados e despesas referentes à obra [AUC Liv.1 Est.10 Tab.2 n.15].

13
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

O Castelo era constituído por duas torres: a de menagem quadrada, de constru-


ção afonsina, a que se chamava Torre Nova; e uma segunda torre de coniguração
pentagonal que embora fosse de construção mais recente, pois havia sido erguida
nos tempos de D. Sancho I, era designada por Torre Velha [Lobo 1999, p.4].
Na tentativa de aproveitar as duas torres é delineada uma primeira versão para
o projecto do Observatório, constituído por um volume com três pisos organizado
a partir do aproveitamento das duas torres, enquadrando-as nos topos laterais do
edifício a construir.
Assim temos um piso térreo porticado em silharia de junta fendida, com treze
vãos formados por arcos de volta perfeita em correspondência aos treze vãos em
cada um dos dois pisos superiores, deinindo um bloco maciço enquadrado pelas
pilastras laterais e entablamento superior de grande contenção e sobriedade, com
as duas torres a projectarem-se nas extremidades, À esquerda uma formação apa-
rentemente quadrangular com três vãos por lado, à direita, e assente em estrutura
quadrangular rematada por mísulas (com assentamento para uma inscrição ausen-
te e ladeada pela iconograia relativa ao Observatório), a outra torre de deinição
octogonal com um vão em cada um dos lados do octógono. A cobertura apresen-
ta o remate coroado por pequenos balaústres [Martins & Figueiredo 2008]. Esta
proposta foi discutida e trabalhada com os vários professores, principalmente com
Miguel Ciera (1725?-1782), à data o professor da cadeira de Astronomia [Lemos
1777, p.126], [ANTT MNR Ms.513].
Ao que parece que a torre pentagonal não estava em bom estado de conservação
e é demolida, avançando-se assim para outra versão onde a Torre Nova de forma
quadrada vai constituir o elemento fundamental, situando-se no centro da compo-
sição e não de um dos lados. Com esta 2ª versão, ao deslocar-se a implantação do
edifício para mais próximo do Colégio de São Jerónimo, ou seja, ao icar centrado
na torre quadrada, evitava-se um embasamento muito maior, podendo-se assim
endireitar o terreno e “formar-se uma planta regular”, como o reitor Francisco de
Lemos (1735-1822) airma. Esta 2ª versão, a mais monumental das propostas para
o Observatório do Castelo, será aprovada no último trimestre de 17739.

9 Esta é a versão inal do Observatório Astronómico do Castelo, aquela que é apresentada por Francisco de Lemos
à Rainha ([Lemos 1777], [Franco 1983]). Na verdade ao longo de todo o ano de 1773 houve imensas indeini-
ções relativas ao projecto deinitivo, com várias e sucessivas plantas a serem desenhadas e discutidas (de que hoje
se desconhece o paradeiro e que creio mesmo que não será fácil encontrá-los!). No Ofício de 15-4-1773 come-
çam a ser discutidas e aprovadas as plantas das obras [DRP 1937-79, v.1 p.69]. Três meses depois (24-6-1773)
o Reitor informa que as obras preparativas para a construção do edifício haviam entretanto começado, estando
o Castelo já desembaraçado das muitas paredes velhas que eram necessárias demolir para fundar o Observatório
[Braga 1898-1902, v.3 p.470]. Em 3 de Setembro de 1773, ao que parece, as plantas estavam quase prontas com
as obras de preparação ainda a decorrer [Braga 1898-1902, v.3 p.504].

14
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

fig.1 - “Planta do Castelo e Casas a ele contíguas em a Universidade de Coimbra


[Elsden, 1773]” [BGUC, Ms.3377/41]

fig. 2 - alçado do Observatório do Castelo [Elsden, c.1773] [MNMC, Inv. 2945/DA 23]
fig. 3 - “Elevação Geométrica da frente principal do Observatório Astronómico
da Universidade de Coimbra” [Franco 1983]

15
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Estamos perante o projecto de um edifício de dois pisos, porticado no piso térreo,


e encimado por um corpo recuado onde se eleva, ao centro da composição, a torre do
Observatório (aproveitamento da torre de menagem afonsina de planta quadrada).
Neste projecto, um dos mais belos projectos de Elsden para a Universidade, a galeria
porticada do piso térreo, em cantaria de junta fendida, clariicava a função urbana
de porta: iniciar o acesso à Rua Larga e prolongar o Passeio Público que vinha des-
de o já idealizado Jardim Botânico, em confronto com o Colégio de S. Jerónimo;
implantava-se no local onde desembocava uma das mais importante vias de acesso
à Alta. O Observatório Astronómico tem um forte poder simbólico, pois representa
ele próprio o paradigma de uma monumental Reforma: a Reforma dos estudos
universitários como um todo e dos estudos das ‘Sciencias Naturaes’ em particular10.
Em 1775 (a partir do mês de Setembro) quando estava realizado o essencial
do piso térreo, com o edifício erguido até ao 1º piso, “a uma altura não inferior a
8 metros”, as obras a param. O elevado custo dos trabalhos atingido em cerca de
dois anos e meio, e quando estava ainda por realizar parte signiicativa da obra, é a
principal causa para a interrupção, por parte do Governo e da Universidade, de tão
ambicioso projecto11. Entretanto, o reitor consciente do tempo que levaria a pôr de
pé tal equipamento mandou construir para uso das aulas um pequeno Observa-
tório interino (provisório) no terreiro do Paço das Escolas12. A escolha deste local
para a construção deste pequeno edifício provisório, que foi realizado de imediato,
representa uma opção que era admitida pelos próprios Estatutos, a da comodida-
de: “procure escolher o lugar, que para o sobredito Observatório for mais próprio;
na maior vizinhança da Universidade, que couber no possível; quando não haja a
comodidade para o estabelecer dentro nos Paços dela”. Distante dos acessos à Alta,
mais recatado para o exercício de um trabalho que exigia longo isolamento, o local

10 Na Provisão de 16-10-1772 o próprio Marquês faz questão de referir essa função simbólica do edifício: “para
que a entrada para o mesmo Observatório e para a Rua Larga dos Colégios, sendo uma das principais e mais
úteis, e necessárias ique em beneicio publico dos Académicos, e dos Habitantes de Coimbra livre e desembara-
çada dos impedimentos, e perigos que nela se acham; e constituindo uma das porções mais formosas da mesma
Cidade naquela parte destinada aos passeios públicos”. A respeito do discurso arquitectónico da própria Reforma
Pombalina vejam-se [Pimentel 2000] e [Craveiro 2004].
11 Desde o início da Reforma que o custo das obras foi uma preocupação constante [DRP 1937-1979, v.1 p.71],
havendo em Novembro de 1775 grandes diiculdades de tesouraria para o pagamento das “Folhas das Obras”
[DRP 1937-1979, v.1 p.215]. De facto os livros de despesa referentes às obras do Observatório do Castelo
fecham as contas no mês de Setembro de 1775 com um custo total de 18879$582reis [AUC: Universidade de
Coimbra, Administração e Contabilidade, Obras, Observatório Astronómico. Despesas com Obras. Livro I, II,
III] – valores de facto elevados a representarem cerca de 15% do custo global das obras da Universidade quando
o edifício pouco ia, como se vê, além dos alicerces.
12 “Para o uso interino das Lições, e Observações Astronómicas iz construir hum pequeno Observatório no Ter-
reiro dos Paços das Escolas, o qual tem servido até aqui para o dito im. […] Para se não suspender o Exercício
das lições e Observações Astronómicas enquanto não se acabar o Grande Edifício [Observatorio do Castelo]
para elas destinado construir-se no Território dos Paços da Universidade uma Casa térrea para servir de Obser-
vatório interino” [Lemos 1777, p.214, 127].

16
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

dispunha de um amplo espaço aberto sobre o vale do Mondego. Este conjunto


de condições favoráveis talvez explique a posterior escolha, nos inais da década
de 1780, deste local para a ediicação do deinitivo Observatório Astronómico da
Universidade (OAUC). O Observatório interino terá sido então construído entre
1775 e 177713 e com o passar dos anos vai sendo alvo de algumas obras e peque-
nas requaliicações. Deverá ter inclusive sofrido uma ampliação, pois são feitos
pagamentos em 1784 ao que se chama “novo acrescento do Observatório dentro
da Universidade” (explicando-se assim as despesas que para ele se encontram nos
arquivos). Em 1787 é alvo de mais intervenções [ANTT Mç.517 Ministério do
Reino]. Este edifício provisório terá, muito provavelmente, servido quase em ex-
clusivo para o uso das aulas, até cerca de 1790, data em que se começa a construção
do deinitivo OAUC14.
O problema da efectiva falta de um verdadeiro Observatório Astronómico na
Universidade exige uma solução que se começa a desenhar por volta de 1785-87.
Poderão ser várias as razões para que só por volta desta data a questão da falta de um
verdadeiro Observatório Astronómico volte a estar em cima da mesa. Uma deve-se
a questões internas à própria astronomia, as outras a condicionalismos externos.
Por volta de 1785-1787 encontra-se reunido praticamente todo o acervo instru-
mental indispensável à efectiva função e actividade astronómica que se pretendiam
para um verdadeiro estabelecimento cientíico tal como os Estatutos estipulavam,
nomeadamente a elaboração das efemérides astronómicas. O Observatório interi-
no, de carácter provisório e relativamente acanhado, construído para uso das aulas
não possuía as necessárias condições de acomodação e uso dos instrumentos que
entretanto se haviam adquirido, nem as condições mínimas de trabalho para os as-
trónomos e calculadores das efemérides. Parece-nos bastante provável que o Aviso
Régio de 1-10-1787 assinado pelo Ministro do Reino de Vila Nova de Cerveira15
seja uma consequência directa de sucessivas interpelações de José Monteiro da Ro-

13 Segundo John Blankett (?-1801) em 1777 já estava construído [Blankett 1777, p.33].
14 Castro Freire [Freire 1872] defende que o Observatório interino foi construído entre 1782 e 1789, porém
convém notar que o autor desconhecia o relatório de Francisco de Lemos [Lemos 1777]. Lurdes Craveiro,
mais recentemente, defende que o Observatório interino foi construído ao longo da década de 1780, sofrendo
depois uma grande obra virando deinitivo em 1799 [Craveiro 2004]. Em nossa opinião a autora está errada. O
Observatório Interino foi construído na década de 70, sendo alvo de contínuos melhoramentos até c.1785, tendo
sido demolido aquando da construção do deinitivo Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra
(OAUC), que aproveita parte do espaço que este ocupava [Figueiredo 2011, pp.283-305].
15 D. Tomás Xavier de Lima (1727-1800), Visconde de Vila Nova de Cerveira e posteriormente Marquês de
Ponte de Lima (17-12-1790), substitui o Marquês do Pombal (1699-1782) na Secretaria de Estado do Reino,
ocupando o cargo de 14 de Março de 1777 a 15 de Dezembro de 1788; nesta altura deixou a pasta do Reino e
foi nomeado Ministro Assistente ao despacho e Ministro e Secretário de Estado da Fazenda, acumulando com a
presidência do Erário e da Junta do Comércio; a partir de Agosto de 1799, após a demissão de José de Seabra da
Silva, reocupou interinamente a Secretaria de Estado do Reino.

17
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

cha (que para além de professor da cadeira de Astronomia é também Vice-Reitor da


Universidade desde 31-7-1786) face à inexistência de um verdadeiro Observatório
Astronómico na Universidade capaz de trabalhar no “aditamento da astronomia”16.
Há outras razões que poderão, também, ter contribuído para que esta ques-
tão se tenha tornado premente. Uma é a actividade cientiica da Academia das
Ciências de Lisboa (ACL), que inaugura o seu Observatório Astronómico, ins-
talado no Castelo de São Jorge, a 3-1-1787, e que tinha também como objectivo
a publicação de umas efemérides ‘para utilidade da navegação portuguesa e au-
mento da Astronomia’, colidindo directamente com um dos principais objectivos
do inexistente Observatório da Universidade17; também data destes anos uma
série de discussões no seio da ACL sobre a organização e possível levantamento
geodésico e cartográico do Reino. Outra das razões é a mudança de Governo. O
Governo que se formou (24-02-1777) após a subida ao poder da rainha D. Maria
I (1734-1816) não contribuiu para dar um novo impulso às obras da Universi-
dade de Coimbra. Pelo contrário, faltou empenho e persistência nos trabalhos
públicos ao ministro Vila Nova de Cerveira que substituiu Pombal na pasta do
Reino. Este Governo, marcado por hesitações e adiamentos, relegaria a questão
do Observatório da Universidade para o esquecimento, sendo, porém, a partir
de 1785 reavivada por José Monteiro da Rocha – há instrumentos, há recursos
humanos, mas não existe um edifício com a capacidade de albergar as diferentes
valências indispensáveis à actividade astronómica que se deseja. Contudo no ano
seguinte, com a formação de um novo Governo (15-12-1788) que vê nomeado
José Seabra da Silva (1732-1813), antigo colaborador do Marquês de Pombal na
Junta de Providência Literária, para a Secretaria de Estado do Reino, a questão
iria inalmente resolver-se18. Fazia parte do programa deste novo Governo, movi-

16 No Aviso Régio de 1-10-1787 o ministro Vila Nova de Cerveira informa o Reitor de que o Observatório da
Universidade era para ser efectivamente construído, “Sua Majestade, achando muito justo, e necessário que o
Observatório Astronómico, e o Teatro Anatómico se concluam, e acabem, como V. Exa. lhe representou: Há por
bem que estas duas Obras se acabem pelo modo que V. Exa. aponta para a despesa delas: mas que não se entre a
promover o trabalho destas Obras, enquanto com a Oicina da Tipograia Régia e Sua Direcção, não se regula a
porção que poderá dar, ou a Consignação ânua, que poderá fazer, por conta do capital, que deve a essa Universi-
dade; o que só poderá ter depois que Eu recolhido a Lisboa poder tratar e ajustar este Negócio. O que participo
a V. Exa. de Ordem de Sua Majestade, para que ique a este respeito entendendo qual é a Resolução da mesma
Senhora.” [DRP 1937-1979, v.2 pp.177-178]. Convém salientar que nem no livro de Actas da Congregação de
Matemática, nem em nenhum outro documento por nós consultado se encontra informação alguma sobre uma
possível discussão no seio da Congregação da Faculdade da questão do Observatório (a última Congregação
da Faculdade antes do referido Aviso Régio data de 25-7-1787 e nela participaram Monteiro da Rocha, José
Joaquim de Faria, Manuel José Pereira da Silva e Manuel Joaquim Coelho da Maia).
17 O projecto da publicação das ‘Ephemerides Náuticas, ou Diário Astronómico’ (Lisboa, 1788) começara a ser
pensado cerca de meia dúzia de anos antes (1781), tendo José Monteiro da Rocha sido sondado pelo Secretário
da Academia sobre o assunto (veja-se [Figueiredo 2011, pp.365-369]). Lembremos que data também deste ano
a tentativa (Aviso Régio de 16-3-1787) do estabelecimento da Congregação Geral das Ciências conforme os
Estatutos, uma reacção evidente da Universidade face ao papel competitivo que a ACL vinha assumindo.
18 Seabra da Silva estará à frente do Governo até 5-8-1799, data em que é demitido pelo Príncipe Regente D. João

18
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

do pela acção de fomento para o território continental, a conclusão de obras que


se arrastavam ou de projectos que não tinham sido postos em prática [Martins
2009]. É assim que a partir de 1788 o projecto da construção de um Observatório
Astronómico deinitivo na Universidade passa a estar verdadeiramente em cima
da mesa. Vários projectos são então delineados por Manuel Alves Macomboa (?-
1815), o arquitecto agora responsável pelas obras universitárias19, sob as ordens e
considerações de Monteiro da Rocha.
A solução para o deinitivo Observatório Astronómico da Universidade de
Coimbra (OAUC) passava por ixar a sua localização no topo Sul do Paço das
Escolas. Abandonava-se, assim, deinitivamente, o longínquo e primitivo Obser-
vatório do Castelo projectado por Guilherme Elsden. A concretização da opção
de realizar o OAUC no Pátio das Escolas foi muito debatida. Pelo menos em
projecto, pois são realizados quatro projectos em relativamente pouco tempo. No
espaço de quatro anos (1788-1792) são conhecidos quatro projectos arquitectóni-
cos (três deles em menos de meio ano): primeira versão de 1788; segunda versão
de Setembro de 1790; terceira versão de Novembro de 1790; quarta versão de
Fevereiro de 1791 e Setembro de 1792 (a versão construída). Ou seja, a concreti-
zação do projecto do OAUC constituiu um processo riquíssimo de desenho, es-
tando em cima da mesa duas hipóteses (que decorrem, aparentemente, entre 1788
e 1791)20. Ambas as soluções têm pontos comuns: o programa, a localização e o
carácter permanente do edifício. Têm como temas comuns o programa de instala-
ções e a amarração do edifício ao muro do Terreiro que dá para a rua da Trindade
(hoje Rua José Falcão). Estes dados de trabalho, essenciais para se poder projectar,
devem ter passado pela Secretaria de Estado do Reino e deviam constituir temas
decididos e acordados entre o Estado e a Universidade, ou seja entre José de Se-
abra da Silva, o Reitor e José Monteiro da Rocha21. Em nenhum dos projectos,

(a oicialização da Regência do Príncipe é de 15-7-1799).


19 Manuel Alves Macomboa, que chega a Coimbra em 1773 como mestre-de-obras, exercerá a partir do ano de
1782, e até 1810, as funções de arquitecto das obras da Universidade. Morre em Lisboa a 11-3-1811.
20 A partir de Setembro de 1790 tudo se passa muito rápido dando a impressão que a decisão tem de ser rapida-
mente tomada, sendo em pouco tempo realizados três projectos.
21 Para Seabra de Albuquerque o cerne da questão do projecto do novo OAUC ter-se-á desenvolvido num diálogo
mais restrito entre Monteiro da Rocha e Macomboa, em que este vai respondendo de acordo com as hipóteses
colocadas pelo Vice-reitor [Albuquerque 1876, p.76]. Há porém outra hipótese a considerar, as propostas
do arquitecto e de Monteiro da Rocha por um lado serem tratadas directamente com a Junta da Fazenda da
Universidade (Monteiro da Rocha era Vice-Reitor e há documentação que explicita “por mando do vice-reitor”).
Outra alternativa, que nos parece mais plausível, é a de ter sido um diálogo directo de Monteiro da Rocha
com o ministro que tutelava as obras públicas, José de Seabra da Silva. Segundo o investigador Carlos Martins
(comunicação privada) muitas obras públicas desta altura conhecem vários projectos e alternativas e o processo
vai passando directamente pelo ministro, que vai dando instruções caso a caso (as alternativas normalmente
vêm da equipa projectista mas passa tudo pelo ministro). Assim no caso do projecto do OAUC estamos em crer
que este terá sido fruto de Monteiro da Rocha em diálogo com o Ministro e Macomboa a desenhar e a fazer o
que o primeiro manda (Monteiro da Rocha é referido explicitamente não só nas próprias plantas e desenhos do

19
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

fig. 4 - “Prospecto ou vista do patio a Universidade” [BGUC Ms. 3377-44]

realizados nesta fase, estes dados estão em causa. Varia isso sim, e isso os distingue,
a forma e a disposição volumétrica (para mais detalhes dos planos e da construção
do deinitivo OAUC veja-se [Figueiredo 2011, pp. 293-305]).
A forma inal do edifício – o projecto inal do OAUC é aprovado pela Junta da
Universidade em 5-2-1791 e em 1799 o edifício está concluído –, será constituída
por um corpo horizontal com um piso e cobertura plana, e uma torre com três
pisos deinida a partir do vão central, também com cobertura plana.
Este edifício é um bom exemplo do desfasamento entre as ambições iniciais
da reforma pombalina e a nova realidade. Pensado no seu início como um edifí-
cio destacado de todos os estabelecimentos cientíicos, acabava no mais modes-
to de todos eles. Abdicava-se da carga simbólica e da função urbana iniciais e
concentrava-se a atenção na criação de um simples estabelecimento astronómico
[Martins & Figueiredo 2008].

OAUC mas em vários outros documentos que justiicam várias despesas referentes à obra; note-se que o Aviso
Régio de 23-1-1778 autorizava a Junta da Fazenda a dispor sem prévia licença régia de 400$000 reis anuais para
despesas de obras).

20
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

fig. 5 - “Planta do Observatório Astronómico que a Universidade mandou fazer dentro no seu pátio no
anno de 1791” [BGUC Ms. 3377-44]

O ACERVO INSTRUMENTAL DO OAUC

A real prática astronómica de um Observatório está, obviamente, ligada ao acer-


vo instrumental que este possui22, ou, para sermos mais precisos, devemos airmar
que é o acervo instrumental de um Observatório que dita o seu programa obser-
vacional, ou seja, a sua real e efectiva prática astronómica. Como atrás airmámos
um dos motivos que leva, nos inais da década de 1780, à resolução do problema
da inexistência de um verdadeiro Observatório Astronómico, tal qual os Estatutos
estabeleciam, é o património instrumental que ao longo dos anos foi sendo adqui-
rido e cujo núcleo fundamental se encontrava nos inais dessa década praticamente
completo. O Observatório Interino se servia para que “os estudantes [pudessem]
nele tomar as Lições da Astronomia Prática”, não servia com certeza para que os
professores e os astrónomos nele trabalhassem. Este edifício ‘provisório’ não reunia
nem as necessárias condições materiais para uma verdadeira prática observacional,
nem, pelas suas pequenas dimensões, as condições suicientes para uma efectiva e
desejada investigação cientíica. Servia quando muito, e possivelmente com várias
condicionantes, para as aulas dos alunos do 4º ano e para a guarda de alguns dos
instrumentos. Porém os sucessivos projectos para o edifício deinitivo, que a partir
de 1788 são delineados, contemplam todos os requisitos de um verdadeiro estabe-
lecimento cientíico: espaços especíicos tanto para arrumação dos instrumentos,

22 Por exemplo, a brevidade do fenómeno condiciona o uso dos instrumentos, tal é o caso, por exemplo, dos trânsi-
tos dos planetas Mercúrio e Vénus sobre o disco solar.

21
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

fig. 6 - “Prospecto ou fasia da rua da Trindade e Expecato emtrior por A B” [BGUC Ms. 3377-45]
fig. 7 - “«Observatorium Conimbricense Academian Moderante Ex.mo ac Rmo D. D. Francisco Raphaele
de Castro Ex Comitibus Resendiensibus, A Regiis Consiliis, S. E. P. Lisbon principali, Anno M.DCC.
XCII exstructumicense (1792)’ [OAUC G-006]

como para a sua instalação deinitiva em salas e locais próprios para a observação.
O deinitivo OAUC (1799) organiza-se em vários espaços diferenciados: salas de
aula, salas de observação, gabinetes, salas de instrumentos (nas plantas dos projec-
tos (1790-1792) especiica-se mesmo as salas do Mural, do Sector e do Zénite),
biblioteca, quarto de dormir e sala de jantar23. A organização do espaço do OAUC
responde às exigências práticas da própria praxe observacional, ou seja o espaço de
observação disciplina o próprio espaço no qual se inscreve24. A própria escolha do
lugar para a ediicação de um observatório deverá ter em atenção algumas carac-
terísticas. O astrónomo francês Darquier ressalva a importância dos observatórios
se construírem num sítio que proporcione estar “isolé de toutes parts, & ayant un
ciel découvert de tous les côtés jusqu’à l’horizon”, sendo a solidez e a estabilidade as
qualidades fundamentais e primeiras de um bom observatório astronómico [Dar-
quier 1786, p.4]. A falta de solidez do edifício pode comprometer a qualidade das
observações pois a estabilidade dos instrumentos é um factor essencial para a ob-
tenção de bons resultados. Quanto ao interior Darquier escreve que este deve ser:
“bien dressé et sans aucun ornement, ain que dans la suite on pusse y mètre avec
plus de facilite, les peintures nécessaires”25. O núcleo instrumental fundamental do

23 Esta organização é transversal, embora, obviamente, com algumas diferenças, a todos os projectos, desde o
primitivo projecto do Castelo até ao projecto inal construído no Pátio.
24 Esta organização do espaço, diferenciado em vários subespaços com funções especíicas, é herdeira do Obser-
vatório de Tycho Brahe (1546-1601), em Uraniborg (1580-1597), e encontra-se em praticamente todos os
observatórios construídos no século XVIII [Shackelford 1993].
25 Também estes factores e características foram considerados logo nos Estatutos: “O dito Observatório deverá ser
desassombrado por todos as partes; de sorte, que dele se domine livremente o Horizonte; e se possam observar
todos os Fenómenos, que sucederem no Hemisfério superior. Além disso devera ser amplo, e cómodo; para nele

22
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

OAUC está bem identiicado na planta inal de 1792: ‘Observatorio Conimbricen-


se (1792)’ (ig. 7 acima), onde se mostra a localização especíica das salas para esses
instrumentos: quadrante mural – ‘Fundamentum Quadranti Murali destinatum
ubi interim Quadrans mobilis tripedalis, opus Troughtoni absolutissimum’; instru-
mento de passagens – ‘Fuandamentum pro Telescopio Meridiano acromático Cel.
Dollondi’; luneta paralática – ‘Podium australe, ubi Columna pro Instr. Parallat. cl.
W. Cary’; sector – ‘Ichnographia plani superioris, ubi Sector G. Adams decempe-
dalis, quem ternae columnae limbo ortu respiciente, ad occidentem verso, ternae
aliae sustinent’; bem como três pêndulas e ainda pequenos telescópios – ‘speculae
minores’. São estes os principais instrumentos que, no século XVIII, constituem
o cerne instrumental de um observatório astronómico, sendo fundamentais para o
estabelecimento de um efectivo programa observacional astrométrico26.
O grande programa astronómico dos séculos XVIII e XIX, concentra-se em
torno da mecânica celeste, caracteriza-se por uma constante busca de precisão na
posição dos astros, principalmente os do sistema solar e das estrelas, de modo a
contribuir para a melhoria da teoria newtoniana e das ferramentas matemáticas
que compreendem os fenómenos celestes – “le seul moyen de connaître la nature,
est de l’interroger par l’observation et le calcul” [Laplace 1835, p.207]27. Neste pro-
cesso contínuo – de desenvolvimento dos métodos instrumentais de observação,
redução das observações e reinamento da teoria –, a astronomia prática desen-
volve-se essencialmente em torno da medição angular das ascensões rectas e das
declinações dos astros que passam no meridiano dos observatórios [Bennett 1992].
O programa delineado para o OAUC [C.R. 4-12-1799, §§.7-10] sintoniza-o
em absoluto com o programa da ciência astronómica dos grandes observatórios da
época. A astronomia observacional não é por si própria investigação, mas fornece,
isso sim, dados observacionais para o astrónomo teórico. Esta necessidade de dados

poderem diversos Astrónomos observar ao mesmo tempo o mesmo Fenómeno: Tendo-se grande atenção em
dispor as janelas com tal artifício, que se possam fazer as Observações nocturnas em quaisquer distâncias do Zé-
nite, sem os Observadores serem incomodados pelo sereno. No mesmo edifício do Observatório haverá alguns
aposentos; assim para neles descansarem os Observadores no tempo, que esperarem pelas Observações; como
para icarem o resto da noite, quando as acabarem a horas incómodas de voltarem para suas casas.” [Estatutos
1772, v.3 p.214].
26 E são também estes os instrumentos que os Estatutos de 1772 já estipulam como os que deveriam provir a
“Colecção de bons Instrumentos do Observatório da Universidade”: “um Mural, feito por algum dos melhores
Artíices de Europa; e um bom sortimento de Quadrantes; de Sectantes de diferentes grandezas; de Micróme-
tros; de instrumentos de Passagens; de Máquinas Paraláticas; de Telescópios; de Níveis; de Pêndulas [...] e de
tudo o mais necessário a um Observatório, em que se há-de trabalhar eicaz, e constantemente no Exercício das
Observações, e progresso da Astronomia” [Estatutos 1772, v.3 p.214].
27 “L’Astronomie, considérée de la manière la plus générale, est un grande problème de Mécanique, dont les élé-
ments des mouvements célestes son les arbitraires; sa solution dépend à la fois de l’exactitude des observations et
de la perfection de l’analyse, et il importe extrêmement d’en bannir tout empirisme et de la réduire à n’emprunter
de l’observations que les données indispensables” [Laplace 1878-82, v.1 p.i].

23
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

leva a que os Observatórios se apetrechem com instrumentos cada vez mais preci-
sos ocupando os telescópios meridianos, os instrumentos de passagens, os sectores,
os telescópios relectores e os quadrantes murais o cerne instrumental de qualquer
observatório bem apetrechado [Daumas 1972, p.122]. A grande preocupação do
astrónomo do século XVIII é a recolha sistemática e precisa das posições dos astros,
principalmente dos corpos dos sistema solar e das posições estelares. O essencial
para o astrónomo é medir e essas medições exigem instrumentos cada vez mais pre-
cisos (os telescópios e lunetas por si só não o fazem). Como Pannekoek airma a as-
tronomia prática tornou-se a rotina principal de qualquer Observatório oitocentista,
uma rotina que se renovava continuamente numa procura de uma maior exactidão
observacional e na busca de novos métodos de instrumentação e observação [Pan-
nekoek 1989, p.280]. Este programa foi a base de um progresso triunfante para a
ciência astronómica e esteve na base do desenvolvimento de uma verdadeira indús-
tria de instrumentos astronómicos, onde os fabricantes ingleses passam a ocupar, a
partir da década de 20 de 1700 um lugar de destaque, consequência dessa demanda
de exactidão e precisão [Daumas 1972, pp.121-135]. O núcleo duro instrumen-
tal de um típico Observatório do século XVIII ancorava-se então num conjunto
de meia dúzia de instrumentos imprescindíveis ao desenvolvimento da astronomia
meridiana. No centro deste grupo está o quadrante mural que se torna a quintes-
sência do observatório oitocentista [Turner 2002]28. Juntamente com o quadrante
mural outros instrumentos compõem esse núcleo essencial de instrumentos mui-
to precisos. No verbete “Observatoire”, que Lalande escreve para a Encyclopédie
Méthodique, lá estão especiicados, como indispensáveis, esses instrumentos: “un
quart de cercle mobile [...], une lunette méridienne [...], un mural [...], une bonne
lunette achromatique de 3 à 4 pieds, montée sur un pied parallactique [...], pendule
& le compteur” [Encyclopédie Méthodique (mat.) 1784-89, t.II p.481]29. Também
Darquier especiica quais os instrumentos necessários para habilitar um observató-
rio para um efectivo estudo dos céus, “[Avec les instruments ci-dessus détaillés, un
observateur exercé & laborieux pourra faire beaucoup d’observations utiles]: 1º un
quart de cercle de cuivre [...]; 2º un bon instrument de passages de deux pieds [...];

28 Este instrumento, que já ocupa, é certo, nos grandes observatórios árabes da época medieval, mais tarde no ob-
servatório de Tycho Brahe (1546-1601) e depois no de Greenwich com Flamsteed um papel de relevo, assume
no século XVIII uma primazia tornando-se o primeiro de uma nova classe de instrumentos muito precisos.
É a partir do quadrante mural de 8 pés feito por George Graham (1673-1751), em 1725, para uso de Halley
(1656-1742) no Observatório de Greenwich, que o modelo se desenvolve, tornando-se então a partir daí quase
omnipresente nos Observatórios (veja-se [Learner 1981, pp.52-72]).
29 E são também estes os instrumentos que Lalande dedica dois capítulos no seu Astronomie (1771): “des ins-
truments d’astronomie (Cap. XIII)” [Lalande 1771-81, v.2 pp.722-830] e “de l’usage des instruments & de la
pratique des Observations (cap. XIV)” [Lalande 1771-81, v.3 pp.1-82].

24
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

3° une bonne pendule à secondes, à verge simple ou composée [...]; 4° un compteur,


vous savez que c’est un mouvement de pendule simple qui marque les minutes, se
sonne les secondes, 5° une lunette ordinaire de deux pieds [...]; 6° un petit quart de
cercle de 18 à 20 pouces de rayon [...]; 7° une lunette de 7 à 8 pieds, ou un télescope
à rélexion de 18 pouces au moins” [Darquier 1786, pp.5-7]. O Observatório de
Coimbra não chegou a ter um quadrante mural ixo mas tinha quartos-de-círculo,
onde se destaca o quadrante portátil de Troughton30. O quarto-de-círculo, munido
de micrómetro ou retículo romboidal, acabará por ser o instrumento mais versátil e
de mais amplo uso nos observatórios, suplantando o quadrante Mural que é difícil
de fabricar, difícil de instalar e acima de tudo muito caro, sendo incomportável para
o orçamento da maior parte dos Observatórios (veja-se [Turner 2002] e [Brooks
1991]). Efectivamente o arsenal instrumental do OAUC coloca-o a par dos bons
Observatórios europeus desta época31.

A ACTIVIDADE LECTIVA E CIENTIFICA DO OAUC. A CRIAÇÃO DA CADEIRA


DE ASTRONOMIA PRÁTICA (1801) E AS AULAS PRÁTICAS NO OAUC

No que concerne às aulas de astronomia (na sua componente prática) é evidente


que o estabelecimento do OAUC (1799) traz também mudanças signiicativas.
Antes de 1799 a componente prática da cadeira de astronomia terá funcionado
no Observatório interino, e mesmo durante o intervalo de tempo de 1790 a 1799,
correspondente ao período de construção do deinitivo OAUC e que levou à de-
molição deste pequeno edifício provisório, ou seja período durante o qual não há
efectivamente Observatório na Universidade, é aceitável pensar que o professor
se reuniria com os alunos no Pátio da Universidade a im de realizarem algumas
observações de cariz didáctico (note-se que durante este período só 13 alunos fre-
quentaram o quarto ano). A partir de 1799 o ensino da disciplina sofre uma sig-
niicativa mudança, cerca de 16 meses depois da entrada em funcionamento do
OAUC procede-se a uma reforma curricular do 4º ano, deixando a astronomia de
ser ensinada numa única cadeira e passando a sê-lo em duas. Pela Carta Régia de

30 Numa das plantas para o Observatório do Castelo há uma com um quadrante: “Risco do Quadrante Mural
copiado do que se acha no Real Observatório da Vila de Greenwich, com a descrição da construção, uso dele em
observações astronómicas” [BNRJ Inv. 1.093.803AA n.X].
31 Adrien Balbi em visita (1808) ao OAUC airma-o, para além de bem construído e bem situado, como “il était
aussi trés-bien fourni d’instrumens” [Balbi 1822, v.2 p.95] ; também Lalande se lhe refere: “Nous avons reçu
encore une description de l’Observatoire de Coimbre, par laquelle on voit qu’il y a des instrumens considérables;
un secteur de dix pieds, une lunette méridienne de cinq pieds, un quart-de-cercle de trois pieds et demi, divisé à
Londres par Troughton.” [Lalande 1803, pp.871-872].

25
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

1-4-1801 a primitiva cadeira de astronomia é desdobrada em duas cadeiras autó-


nomas: uma de Astronomia Teórica e outra de Astronomia Prática, cada uma com
um professor respectivo [AUC IV-1ªE-8-3-4]. A justiicação desta reestruturação
é apresentada logo no preâmbulo da referida carta régia: “visto que pela sua vasti-
dão não podem ser compreendidos nas lições delas com a extensão e profundidade
que convém”. Imponham-se novos desaios à Faculdade de Matemática e ao ensino
de algumas matérias que esta reestruturação tenta resolver32. A criação da cadeira
de Astronomia Prática é, no nosso entender, uma consequência directa da própria
criação do OAUC e da necessidade que se lhe impõe de começar a desenvolver
uma sólida actividade cientíica de modo a cooperar com os trabalhos dos Ob-
servatórios mais acreditados na Europa. Pretendia-se que os poucos alunos que
chegavam ao 4º ano do curso adquirissem um sólido conhecimento e formação as-
tronómica, para os empregar mais tarde, se isso fosse seu desejo, no trabalho teórico
e prático do OAUC33. Ficava assim deinido que na cadeira de Astronomia Teórica
se faria o estudo da mecânica celeste, mencionando-se explicitamente o estudo dos
“últimos descobrimentos das desigualdades seculares”, matéria fundamental para o
suporte teórico das tabelas e efemérides astronómicas e que Laplace havia tratado
no 2º volume do seu Mécanique Celeste (1799) e que depois desenvolveria e apro-
fundaria no 3º volume (1802). Na cadeira de Astronomia Prática tratar-se-ia da
teoria e uso dos instrumentos astronómicos, bem como dos cálculos e métodos das
reduções das observações e especialmente “do cálculo das Tábuas Astronómicas em
todas as suas partes” [C.R. de 1-4-1801]. No que diz respeito ao horário das aulas,
a Carta Régia deixava-o à consideração do Reitor34.
No que diz respeito aos compêndios a mesma Carta Régia mandava que se i-
zessem “[desde] logo suplementos aos Compêndios até agora adoptados, enquanto

32 Esta reestruturação de 1801 também introduz uma outra cadeira no currículo do curso mathematico, a cadeira de
Hidráulica; cuja criação foi fortemente motivada pelos desaios que se colocavam com a obra do encanamento do
Mondego para a qual o Governo havia solicitado parecer cientíico à Faculdade [Figueiredo 2011, pp.190-196].
33 Embora segundo o novo regulamento do OAUC as aulas práticas de Astronomia devessem decorrer de modo
a não interferirem com a actividade principal dos astrónomos, os melhores alunos, sob supervisão, podiam
participar nas actividades observacionais quotidianas do OAUC, com o objectivo expresso de “nesse exercício se
habilitarem melhor para serem providos nos lugares, que vagarem”.
34 Segundo parece reservou-se inicialmente o horário das 9h:30m-11h:30m para a cadeira de Astronomia Prática e
o das 15h:30m-17h:30m para a de Astronomia Teórica, mas este seria mudado a pedido dos alunos: “Repre-
sentam a V. Exa. os Estudantes do 4º ano Matemático cujo número é composto de um representante e cinco
voluntários que tendo duas aulas uma de Astronomia Prática que principia à nove horas e meia, e acaba às onze
da manhã, e outra teórica desde as três e meia até às cinco da tarde devendo para cumprir qualquer delas fazerem
uma séria aplicação para que o quantas muitas vezes não chega o tempo, gastando-se uma parte dele nas vindas
e idas ao Real Observatório, lugar das mesmas Aulas, e sendo o meio mais próprio para evitar isto a mudança da
Aula de Astronomia Teórica para as onze e meia da manhã, tempo em que inaliza a de Astronomia Prática; e
como para isto obtiveram o consentimento do respectivo Lente, que atendendo à evidente comodidade dos seus
Alunos anuiu dar a esta hora as suas Lições, e tem disto esta Aula, como modernamente criada não tem hora
senão a que V. Ex.ª lhe apresar, por isso pede a V. Ex.ª se digne transferir a Aula de Astronomia Teórica para a
hora em que inalizar a de Astronomia Prática [s.d.]” [BGUC Ms. 2530, nº.36].

26
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

não se formarem outros mais completos ao nível dos conhecimentos actuais”. Na


Astronomia Teórica seria então usado o Mécanique Celeste de Laplace e na de
Astronomia Prática continuaria a ser adoptado, cerca de 20 anos mais, o compên-
dio de Lacaille (só em 1823 se adoptará o compêndio de Biot35). Sobre as efectivas
aulas práticas, observações e cálculos astronómicos que praticariam os alunos do
curso matemático não encontrámos, infelizmente, suporte documental algum que
no-lo revelassem com pormenor. Porém, não seriam muito distintos dos trabalhos
e observações astronómicas que os alunos da Academia Real da Marinha efectu-
avam no seu Observatório da Marinha36, pois tratam-se de observações e cálculos
fundamentais para qualquer futuro astrónomo e piloto da marinha, e que compre-
endiam: determinações da altura do Sol; determinação das suas ascensões rectas e
declinações; cálculo de distâncias de estrelas ao Sol; alinhamento e ocultações de
estrelas; determinação dos instantes de emersões e imersões dos eclipses dos saté-
lites de Júpiter; determinação da latitude e longitude do observatório; rectiicação
de instrumentos e regulação das pêndulas37.

A PRODUÇÃO ASTRONÓMICA: AS ‘EPHEMERIDES ASTRONÓMICAS


DO REAL OBSERVATÓRIO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA’ (EAOAUC)

O ponto sétimo da C. R. de 1799 ixa com precisão o objectivo maior de toda


a actividade cientíica do OAUC: a publicação das ‘Ephemerides Astronómicas’
[EAOAUC] – “Para o Meridiano do Observatório, e para uso dele (assim como se
pratica nos mais célebres da Europa) se calculará a Ephemeride Astronómica, a qual
igualmente possa servir para uso da Navegação Portuguesa e que não será, reduzida
e copiada do Almanac do Observatório de Greenwich, nem de outro algum, mas
calculada imediatamente sobre as Tábuas Astronómicas”. O mesmo documento es-
tabelece ainda que se deveria começar “logo pelo trabalho da que há-de servir no

35 Para a cadeira de astronomia foram adoptados desde logo; o Leçons Elémentaires d’Astronomie Géometrique et
Physique (Paris, 1746), de Lacaille, e o Astronomie (1764), de Lalande [Figueiredo 2011, pp.82-86, 131-136].
36 A Academia Real da Marinha, fundada em 1779, tinha como objectivo formar os futuros oiciais da Armada e
para o efeito ministrava um curso de três anos, onde se ensinavam matérias de matemáticas puras e aplicadas,
astronomia e náutica (trigonometria esférica, navegação teórica e prática). O Observatório Real da Marinha foi
criado em 1798, “destinado à prática de instrumentos de observação astronómica como meio de preparação dos
futuros oiciais da Marinha” [Reis 2009, p.30].
37 “Diário de exercícios práticos que se tiveram no Real Observatório da Marinha” [ANB Códice 807 NP];
informação remetida pelo Inspector do Observatório da Marinha, Pedro Mendonça de Moura (1745-?), a D.
Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812), o então ministro do Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos,
informando-o sobre aulas e outros assuntos da Academia da Marinha.

27
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

ano de 1804 e depois dela nas dos seguintes”38. O cálculo, a elaboração e a publicação
das ‘Ephemerides Astronomicas calculadas para o meridiano do Observatório Real
da Universidade de Coimbra para uso do mesmo Observatório, e para uso da Nave-
gação Portuguesa serão a partir do primeiro momento o trabalho maior e a imagem
de marca do OAUC durante todo o século XIX. Nos seus primeiros volumes (1803-
1813) foram uma constante fonte do progresso cientíico astronómico português,
pois para além das respectivas efemérides em 10 folhas mensais, publicariam vários
trabalhos astronómicos da responsabilidade Monteiro da Rocha – “Esta publicação
continua com regularidade, e constitui a parte principal dos trabalhos de que o Ob-
servatório se tem ocupado até ao presente» [Pinto 1878].
As EAOAUC foram idealizadas e criadas por José Monteiro da Rocha, adop-
tando desde o 1º volume (1803) algumas particularidades face às suas congéneres
europeias (Connaissance des Temps (Paris), Nautical Almanac (Londres) e Berli-
ner Astronomisches Jahrbuch (Berlim)); eram calculadas em relação ao Sol médio
e não ao Sol verdadeiro, usavam a medida dos 360º e não a amplamente utilizada
unidade de signo, e adoptaram um método de interpolação especial para calcular
as efemérides da Lua. Estas inovações seriam alvo de críticas positivas por parte de
alguns dos principais astrónomos da época (p. ex. Delambre (1749-1822) e John
Pond (1767-1836)), que as incorporariam mais tarde nas suas publicações.
O trabalho de cálculo das efemérides obrigava a um intenso trabalho teóri-
co que articulado com as observações astronómicas exigiam um enorme esforço
de computação, cabendo ao Director dirigir toda essa actividade, começando pelo
programa observacional – “Para tudo se fazer com ordem, o Director no im de
cada mês distribuirá pelos Astrónomos e Ajudantes as Observações, que deverão
fazer-se no mês seguinte, e mandará pelo Guarda avisar a cada um das que lhe são
encarregadas” –, e acabando na distribuição do cálculo pelos vários astrónomos – “o
Director distribuirá o Cálculo dos diferentes artigos da dita Efeméride pelos As-
trónomos e Ajudante do Observatório”. A vastidão dos fenómenos astronómicos é
enorme e o seu estudo exaustivo uma exigência nos programas observacionais dos
Observatórios e dos seus astrónomos [Darquier 1786, p.94]. O regulamento de
1799 especiica bem o programa observacional do OAUC: “As Observações diárias
que se hão-de fazer, são: as passagens dos Planetas e das Estrelas pelo Meridiano, e
as suas alturas; [...]. Além disto se observarão indefectivelmente todos os Eclipses

38 O mesmo documento isentava de qualquer licença as publicações do OAUC: “E tanto a Ephemeride, como as
Colecções de Observações Astronómicas, Tábuas, e Explicações delas, sendo assinadas pelo Director, e com a
licença do Reitor, serão impressas na Oicina da Universidade, como de ordem Minha, sem dependerem de outra
licença.”

28
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

do Sol, da Lua, dos Satélites, ocultações das Estrelas, e todos os fenómenos dos
movimentos celestes.”39 Apesar de ser obrigatório um registo “diário rubricado pelo
Director” das observações efectuadas pelos astrónomos do OAUC, que depois de
coligidas e reduzidas (i. é depois de calculadas as refracções, paralaxes e erros ins-
trumentais) seriam publicadas em “Colecções Gerais das Observações”40.
Em 1813 com a publicação das ‘Tábuas Astronómicas ordenadas a facilitar o
cálculo das Ephemerides da Universidade de Coimbra’, José Monteiro da Rocha
estabelecia a base teórica para o seu cálculo (que ainda permanecerá em uso na
década de 1840). A articulação destas ‘tábuas’ com tabelas similares francesas e
inglesas, e principalmente com os fundamentos teóricos estabelecidos por Laplace
(1749-1827) no seu Mécanique Céleste (1799-1825), é um dos alvos prioritários
na nossa actual investigação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Primárias – Siglas dos Arquivos


ANB – Arquivo Nacional do Brasil
ANTT – Arquivo nacional Torre do Tombo
AUC – Arquivo da Universidade de Coimbra
BGUC – Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio De Janeiro
OAUC – Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra

Fontes Secundárias – Bibliografia


ABREU, José Maria de; Legislação académica desde os Estatutos de 1772 até ao im do anno de 1850

39 A C. R. de 4-12-1799 vem por assim dizer precisar o que os Estatutos em 1772 já haviam previamente estipu-
lado no sentido dos “os Professores trabalhem com assiduidade em fazer todas as observações [mais apuradas e
exactas], que são necessárias para se ixarem as Longitudes Geográicas; e rectiicarem os Elementos fundamen-
tais da mesma Astronomia” [Estatutos 1772, v.3 p.213].
40 Somente encontrámos 2 pequenos cadernos manuscritos (com a maior parte das respectivas páginas em branco)
onde estão registadas algumas observações efectuadas no OAUC entre os anos de 1806 e 1808 (estes dois
cadernos encontram-se na secção de reservados da biblioteca do OAUC). Nesses cadernos anotaram-se imersões
e emersões dos satélites de Júpiter; ocultação de estrelas pela Lua; observações do Sol e de um eclipse solar (a
título de curiosidade diga-se que no Observatório de Greenwich sob a direcção de Maskelyne (1765-1811) as
observações dos trânsitos de estrelas e suas ocultações pelo disco lunar correspondiam a cerca de 80% de toda a
actividade observacional [Croarken 2003, p.290]). As ‘Colecções’ não chegaram, tanto quanto nos foi possível
investigar, a ser publicadas. Os únicos registos impressos que se conhecem de observações efectuadas no OAUC
são as que foram publicadas nos volumes III, IV, V, VI e VIII das EAOAUC e dizem respeito a observações
realizadas nos anos 1802-1808.

29
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

/ colligida e coordenada por ordem do Conselheiro Reitor da Universidade de Coimbra, Coimbra:


Imprensa da Universidade, 1851
ALBUQUERQUE, António Maria Seabra de; Bibliograia da Imprensa da Universidade de Coimbra
[...] de 1874 a 1875, Coimbra, 1876
BALBI, Adrien. Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, 2 vols. Paris, 1822
BANDEIRA, José Ramos; Universidade de Coimbra, 2 vols., Coimbra: Gráica de Coimbra, 1943-1947
BENNETT, Jim A.; “he English Quadrant in Europe: Instruments and the growth of consensus in
practical astronomy”, Journal for History of Astronomy 23 n.1 (1992), pp.1-14
BLANKETT, John; Letters from Portugal, on the late and present state of that Kingdom / [ John
Blankett], London: printed for J. Almon, opposite Burlington House, in Piccadilly, [1777]
BRAGA, Teóilo; História da Universidade de Coimbra (1891-1902), 4 vols. [v.3 de 1700-1800 (1898) e
v.4 de 1801 a 1872 (1902)], Lisboa, 1898-1902
BROOKS, Randall C.; “he Development of Micrometers in the Seventeenth, Eighteenth and
Nineteenth centuries”, Journal for the History of Astronomy 22:68 (1991), pp.127-173
REGULAMENTO DO REAL OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE
COIMBRA, Carta Régia de 4 de Dezembro de 1799 [C.R 4-12-1799], in Ephemerides Astronómicas
do Real Observatório da Universidade de Coimbra, pp.iv-xxii, Imprensa da Universidade, Coimbra 1803
CARVALHO, Rómulo de; A Astronomia em Portugal no séc. XVIII, Lisboa: Biblioteca Breve, 1985
CRAVEIRO, Lurdes; Manuel Alves Macomboa, arquitecto da Reforma Pombalina da Universidade de
Coimbra, Instituto de História da Arte da FLUC, Série - Subsídios para a História da Arte Portuguesa,
XXXI. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1990
CRAVEIRO, Lurdes; “A Arquitectura da Ciência”, pp.49-101, Laboratório do Mundo. Ideias e Saberes
do Século XVIII”, Catálogo de Exposição, S. Paulo, 2004
CROARKEN, Mary; “Astronomical labourers: Maskelyne’s assistants at the Royal Observatory,
Greenwich, 1765-1811”, Notes Records Royal Society of London 57:3 (2003), pp.285-298
DARQUIER de Pellepoix, Antoine; Lettres sur l’Astronomie Pratique, Paris, 1786
DAUMAS, Maurice; Scientiic Instruments of the 17th & 18th Centuries and their Makers, Londres,
1972
DOCUMENTOS DA REFORMA POMBALINA [DRP 1937-1979], publicados por M. Lopes
d’Almeida [v.1 (1771-1782), Coimbra, 1937; v.2 (1783-1792), Coimbra, 1979], Coimbra: Universidade
de Coimbra, 1937-1979
ENCYCLOPEDIE METHODIQUE MATHEMATIQUES, par D’Alembert, Bossut, Lalande,
Condorcet, et al. (3 vols.). Paris, 1784-89
ESTATUTOS da Universidade de Coimbra compilados debaixo da immediata e suprema inspecção
de El Rei D. José I pela Junta de Providencia Litteraria [...] ultimamente roborados por sua magestade
na sua Lei de 28 de Agosto deste presente anno. MDCCLXXII, 3 vols., Coimbra: UC, 1972 [obra fac-
similada da edição de 1772]
FIGUEIREDO, Fernando B., José Monteiro da Rocha e a actividade cientíica da ‘Faculdade de
Mathematica’ e do ‘Real Observatório da Universidade de Coimbra’: 1772-1820. Tese de doutoramento,
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2011
FRANCO, Matilde Sousa; Riscos das obras da Universidade de Coimbra: o valioso álbum da Reforma
Pombalina / Organizado por Matilde Pessoa de Figueiredo Sousa Franco, Coimbra: Museu Nacional de
Machado de Castro, 1983
FREIRE, Francisco de Castro; Memoria Histórica da Faculdade de Mathematica nos cem annos
decoridos desde a Reforma da Universidade em 1772 até o presente, Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1872
HUTCHINS, Roger; British University Observatories c.1820-1939: Ideals and Resources [PhD thesis,
Faculty of Modern History, University of Oxford]. Oxford, 1999
LALANDE, Jérôme; Astronomie, par M. de La Lande, 4 vols. [3 vols. em 1771 e o 4º vol. em 1781],
Paris, 1771-81
LALANDE, Jérôme; Bibliographie Astronomique, avec l’Histoire de l’Astronomie depuis 1781 jusqu’à
1802: Par Jérôme De La Lande, Paris: L’Imprimerie de la Republique, An XI [1803]
LAPLACE, Pierre Simon; Exposition du système du Monde, Paris, 1835

30
A CRIAÇÃO DO OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1799)
E O ESTABELECIMENTO DO SEU PROGRAMA CIENTÍFICO

LAPLACE, Pierre Simon; Mécanique Céleste, in Oeuvres complétes de Lapalace, publiées sous les
auspices de L’Académie des Sciences. Paris: Gautiher-Villars, Imprimeur-libraire, 1878-1882
LEARNER, Richard; Astronomy through the Telescope, New York: van Nostrand Reinhold Company,
1981
LEMOS, Francisco de, Relação Geral do Estado da Universidade (1777) [edição fac-similada], Imprensa
da Universidade, Coimbra, 1980
LOBO, Rui; Os Colégios de Jesus, das Artes e de S. Jerónimo evolução e transformação no espaço
urbano, DAUC, Coimbra, 1999
MARIANO, Emília Henriques Gouveia; PINHEIRO, Manuel Augusto Moreirinhas, “O Observatório
Astronómico da Universidade de Coimbra”, Universidade(s). História. Memória, Perspectivas, Actas do
congresso «História da Universidade (no 7º centenário da sua fundação), 5 a 9 de Março de 1990, 2 vols.,
v.2 pp.21-53. Coimbra: Comissão organizadora do Congresso, 1991
MARTINS, Carlos; FIGUEIREDO, Fernando B.; “O Observatório Astronómico da Universidade de
Coimbra, 1772-1799”, Rua Larga 21 (2008), pp.57-61
MARTINS, Carlos Moura; Os projectos pata o porto de São Martinho e campos de Alfeizarão, 1774-
1800. As opções dos técnicos e dos políticos [Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Cientíica,
DAFCTUC]. Coimbra, 2009
McCLELLAN, James E.; “he Academie Royale des Sciences, 1699-1793: a statistical portrait”, Isis
72 :4 (1981), pp.541-67
OSÓRIO, J. Pereira; Sobre a história e desenvolvimento da Astronomia em Portugal, História e
Desenvolvimento da Ciência em Portugal, publicação do 2° Centenário da Academia das Ciências de
Lisboa, pp.111-141, Lisboa, 1985
PANNEKOEK, A.; A History of Astronomy, N.Y.: Dover, 1989
PIMENTEL, António Filipe; “A cidade do Saber/Cidade do Poder. A Arquitectura da Reforma”, in
[Cristina Araújo 2000, pp.265-288] [Cristina Araújo 2000] O marquês de Pombal e a universidade,
Coord. Ana Cristina Araújo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000
PINTO, Rodrigo Ribeiro Sousa; “Observatório Astronómico”, in Visconde de Villa-Maior, Exposição
succinta da Organisação actual da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1878
[?]; “Memórias Astronómicas: Observatório da Marinha, 1978-1803”, Revista do Instituto Historio
Geográico Brasileiro, a.163 n.416 (2002), pp.231-268
REIS, Manuel dos; “Para a história do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra”, Revista
da Faculdade de Ciências 34 (1964), pp.xxi-xxxi
REIS, António Estácio dos; Observatório Real da Marinha (1798-1874), Lisboa: CTT Correios de
Portugal, 2009
RIBEIRO, José Silvestre; História dos estabelecimentos scientiicos litterarios e artisticos de Portugal
nos sucessivos reinados da monarchia, 19 vols., Lisboa: ACL, 1871-1914
SHACKELFORD, Jole; “Tycho Brahe, Laboratory design and the aim of science. Reading plans in
context”, Isis 83:2 (1993), p.211-230
TURNER, A. J.; “he observatory and the quadrant in eighteenth-century Europe”, JHA, 33 part.4
no.113 (2002), pp.373-385

31
Espaços e actores do ensino da electricidade
em Portugal (1850-1911)1
Ana Cardoso de Matos
Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) / Universidade de Évora

INTRODUÇÃO

No inal do século XIX, a electricidade conquistara já um número signiicativo


de cidades cujo espaço público passara a ser iluminado a luz eléctrica. Paulatina-
mente esta fonte de energia e iluminação começava a ter uma utilização crescente
na indústria e nos transportes e a fazer a sua entrada nas habitações da população
dos principais países economicamente desenvolvidos.
Em Portugal, embora a sua utilização estivesse especialmente ligada à telegraia
elétrica e à iluminação pública e privada das principais cidades, a verdade é que gra-
dualmente começava também a ser utilizada na indústria, ainda que num primeiro
momento sobretudo ligada à iluminação dos espaços industriais2.
A utilização cada vez maior e mais diversiicada da electricidade, exigia a existên-
cia de técnicos com saberes e capacidades especíicas para montarem centrais e ins-
talações eléctricas. Por essa razão, em 1891, o engenheiro Paulo Benjamin Cabral,
professor do Instituto Industrial Lisboa considerava que “mesmo admitindo que em
Portugal se não possam estabelecer as indústrias de construção das máquinas e ins-
trumentos eléctricos, não deixa de ser necessário o ensino técnico da eletricidade”3.
Contudo, até às últimas décadas do século XIX, o ensino da electricidade res-
tringiu-se praticamente aos Institutos Industriais de Lisboa e Porto, se exceptu-
armos a formação em telegraia e o ensino sobre os dínamos que eram dados na
Escola do Exercito4.

1 Este tema, embora com um desenvolvimento diferente, foi também desenvolvido em “he teaching of electricity
in Portugal from the Instituto Industrial de Lisboa to the Instituto Superior Técnico: places of training and the
circulation of experts and knowledge” (em publicação)
2 Sobre o assunto veja-se Ana Cardoso de Matos et ali, A electricidade em Portugal dos primórdios à II Guerra Mun-
dial, Lisboa, EDP, 2004, Cap. I.
3 CABRAL, Paulo Benjamin, O ensino da Electrotechnia em Portugal, Lisboa,1892, p.4
4 Segundo Benjamin Cabral esta formação visava « simplesmente a completara a educação dos engenheiros com
os conhecimentos gerais das aplicações mais vulgares de eletricidade”. Ibidem, p. 11.

33
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

O Instituto Industrial de Lisboa e a Academia Industrial do Porto criadas em


1852, inscreviam-se no ideário do novo regime político estabelecido em Portugal
em 1851, que preconizava o progresso económico do país assente em princípios
técnico-cientíicos. O que pressupunha o desenvolvimento do ensino técnico-in-
dustrial.
Na lição de abertura das aulas do Instituto Industrial o engenheiro José Vi-
torino Damásio, que 4 de Agosto de 1853 fora nomeado Director interino do
mesmo5, deixou claro que considerava a ligação entre ciência e indústria um factor
primordial para o progresso industrial do país.6
Procurando dar resposta a falta de técnicos, mas também de operários com
alguma formação, o ensino no Instituto Industrial de Lisboa foi organizada em
3 graus: elementar, secundário e complementar. Para assegurar que este instituto
formaria técnicos capazes de aplicar na prática os conhecimentos teóricos, o go-
verno “mandou organizar Oicinas, aonde praticamente se ensinassem todos os
princípios ensinados e desenvolvidos nas Aulas.”7 De acordo com o decreto de
criação deste instituto deviam ser estabelecidas as seguintes oicinas: instrumentos
de precisão; modelação; fundição; serralharia e forjas; desenho; e litograia. O de-
creto estipulava também a criação de um laboratório químico, de uma biblioteca e
de museu industrial8, que apoiassem o ensino dado na escola.
Ao longo dos anos o ensino dado nesta instituição foi-se alterando com o
objectivo de se adaptar o ensino aos avanços técnico-cientíicos registados a nível
internacional e às necessidades do progresso económico que se ia registando no
país, mas o ensino na área da electricidade continuou a ser insuiciente para a
formação de técnicos e engenheiros nesta área.
Em 1897 a reforma da Academia Politécnica do Porto introduziu a cadeira de
Tecnologia Industrial, que devia compreender essencialmente o ensino da electro-

5 Cargo que, em acumulação com as suas funções de vogal do Conselho de Obras Públicas e Minas, desempenhou
até 1855, altura em que foi substituído por Júlio Máximo de Oliveira Pimentel.
6 José Vitorino Damásio “Abertura das aulas no Instituto Industrial de Lisboa, Boletim do Ministério das Obras
Públicas, Commercio e Industria, nº10, 1854, p. 250.
7 Ibidem, p. 251.
8 Sobre este museu vejam-se MATOS, Ana Cardoso de Matos, « Les musées techniques portugais et les
expositions universelles au XIXe siècle » in Ana Cardoso de Matos, Irina Gouzevitch e Marta C. LOurenço,
Expositions universelles, musées techniques et société industrielle/World Exhibitions, Technical Museums and Industrial
Society, Lisboa, Colibri, 2010, pp. 49-74; NEVES, José Miguel Casal Cardoso (1996), Museus Industriais em
Portugal (1822-1976), thèse de maîtrise, Lisbonne, FCSH/UNL; CUSTÓDIO, Jorge et alii (1991), “Estudos
e projectos”, in Museologia e Arqueologia Industrial, Lisboa, Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial
(APAI), 1991, pp. p. 7-22; SILVA, Mário, « Apontamentos históricos sobre Museus tecnológicos em Portugal »,
in Publicações do Museu Nacional da Ciência e da Técnica, Coimbra, nº 1, 1971, GOMES, Joaquim Ferreira, ”Dois
Museus Industriais e Comerciais criados no séc. XIX” in Publicações do Museu Nacional da Ciência e da Técnica, nº
8. Coimbra 1978, pp. 163-172

34
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

tecnia e das indústrias químicas9. Tendo icado o ensino desta cadeira icado a car-
go de José Pedro Teixeira, doutorado em Ciências Matemáticas pela Universidade
de Coimbra, o programa da mesma foi dedicado exclusivamente à electrotecnia
e baseou-se na obra de Éric Gérard, “Leçons sur l’Électricité”, que reproduzia as
lições que Gérard dava no Instituto de Monteiore, anexo à Universidade de Liège.10
Com a reforma do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa realizada no ano
seguinte criaram-se os seguintes cursos: artes químicas; electrotecnia; máquinas;
construções civis e obras pública; minas; e telégrafos. A criação dos cursos de artes
químicas, electrotecnia e máquinas era justiicada pelas “aplicações à indústria, que
de dia para dia se multiplicam, da química, da electricidade e da mecânica”11. Nos
vários cursos procurava-se combinar o ensino teórico com o ensino prático nos
laboratórios, museus e oicinas, e os alunos dos cursos industriais eram obrigados
a fazer um tirocínio de 6 meses em estabelecimentos fabris da sua especialidade
pertencentes ao Estado ou a particulares.
Contudo, apesar dos esforços para se implantar o ensino da electrotecnica em
Portugal12, só com a criação do Instituto Superior Técnico em 1911, o ensino
da engenharia, nomeadamente da engenharia electrotécnica, teve uma alteração
qualitativa que foi marcada pela airmação da formação escolar nas várias áreas da
engenharia, pela actualização do ensino e pelos métodos pedagógicos e avaliativos
que aí foram introduzidos13.
Neste texto analisam-se: a evolução do Instituto Industrial de Lisboa até à
criação do Instituto Superior Técnico como um espaço de ensino da electricidade;
alguns dos principais actores que estiveram ligados a este ensino como foi o caso
do físico Francisco da Fonseca Benevides ou de Benjamin Cabral.

9 Decreto de 8 Outubro de 1897.


10 GUEDES, Manuel Vaz, “Nos primórdios da Electrotecnia” in Revista Robótica e Automatização, nº29, Novembro
de 1997, p. 26.
11 Decreto de 30 de Junho de 1898. Diário do Governo, nº 150, de 12 de Julho de 1898.
12 A insuiciência do ensino da electrotecnia em Portugal obrigou vários engenheiros portugueses a completar a sua
formação no estrangeiro. Sobre o assunto veja-se MATOS, Ana Cardoso de, “Formation, carrière et montée en
puissance des ingénieurs électriciens au Portugal (de la in du XIXe siècle aux années 1930) ». In André Grelon e
Marcela Efemertova (ed.), Le monde progressivement connecte - Les électrotechniciens au sein de la société européenne
au cours des 19e et 20e siècles, Bruxelas, Peter Lang S.A.- Editions scientiiques internationales, (no prelo)
13 RODRIGUES, Maria de Lurdes, Os Engenheiros em Portugal, Lisboa, Celta, 1999, p. 85.

35
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

O ENSINO DA TELEGRAFIA ELÉCTRICA NO INSTITUTO INDUSTRIAL DE LISBOA

Num primeiro momento o ensino da electricidade no Instituto Industrial es-


teve ligado à telegraia eléctrica que conheceu um desenvolvimento progressivo
a partir de 1855, altura em que foi que assinado o contracto entre o governo e
a Casa MM Bréguet & Companhia, de Paris14. A instalação de uma rede de
telegraia eléctrica exigia a existência de técnicos que pudessem assegurar o seu
funcionamento, razão pela qual em 1856 se determinou que fosse estabelecido no
Instituto Industrial de Lisboa um curso especial de telegraistas15.
A formação dada pelo curso destinado aos funcionários dos telégrafos era, no
entanto, insuiciente para que os alunos dominassem as técnicas necessárias ao
exercício da proissão. Com efeito o ensino de telegraia era dado apenas na 3ª
cadeira- Física e suas aplicações às artes, à telegraia elétrica e aos faróis – o que
era claramente escasso para dotar os alunos dos conhecimentos necessários. Fal-
tava também a este curso um tirocínio metodicamente organizado. Aliás, a posse
de um diploma do curso de telegraista dos Institutos industriais de Lisboa e
Porto, não era uma condição essencial para a entrada no serviço dos telégrafos
dos Estado16. Daí que em 1880 se tivesse criado um curso prático de correios e
telégrafos formado por disciplinas dos Institutos Industriais de Lisboa e Porto17 e
por disciplinas lecionadas nas direções gerais dos telégrafos das duas regiões, que
apesar dos esforços feitos para garantir um melhor ensino dos seus técnicos, con-
tinuavam também a apresentar grandes deiciências na formação de funcionários
telegraistas.
Em 1886 o Instituto Industrial de Lisboa foi objeto de uma reforma que esta-
beleceu nesta escola a disciplina de “Eletrotecnia, telegraia e outras aplicações de
eletricidade” (8ª cadeira) e uma escola prática de telegraia18, destinada ao ensino
do uso e manipulação dos aparelhos telegráicos e telefónicos dos diversos sistemas.

14 O contracto foi assinado em 26 de Abril de 1855.Em 16 de Setembro de 1855 inaugurou-se o primeiro troço da
rede telegráica elétrica que estabelecia as comunicações entre as quatro estações de telegraia já instaladas: Ter-
reiro do Paço, Cortes, Necessidades e Sintra. Para coordenar este serviço cria-se a Direção de Telegraia Elétrica.
15 Portaria de 23 de Dezembro de 1856.
16 Independentemente destes cursos ensinava-se gratuitamente nas estações telegráicas, sob a responsabilidade dos
respetivos chefes, o ensino prático de manipulação dos aparelhos telegráicos. Este ensino não era acompanhado
de qualquer ensino teórico de física ou de química.
17 A partir de 1868 estes Institutos integram um curso comercial e passam a ser designados Institutos Industrial e
Comerciais
18 Por decreto de 13 de Janeiro de 1887 o curso prático de correios e telégrafos que era lecionado nas direções
gerais dos telégrafos de lisboa e Porto foi extinto passando a formação a ser feita exclusivamente nos institutos
Industriais e Comerciais de Lisboa e Porto completando-se a formação dos alunos com um tirocínio nos servi-
ços telegráicos do Estado.

36
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

Após a criação, em 1887, do curso de Correios e telégrafos o número de alunos


foi signiicativo, embora o encerramento deste curso na sequência da reforma de
1891 não tenha permitido ter uma ideia clara do que seria a evolução da frequência
deste curso.
QUADRO Nº1 - Nº DE ALUNOS INSCRITOS NO CURSO DE CORREIOS E TELÉGRAFOS

1887-1888 1888-1889 1889-1890 1890-1891

Alunos matriculados sem subsídio - 94 102 106

Alunos matriculados subsidiados 12 23 35 18

Fonte: Paulo Benjamin Cabral, O ensino da Electroctenia em Portugal, ob. Cit, p. 30

Dos 23 alunos subsidiados que entraram em 1889-1890, menos de metade re-


alizou no ano seguinte a totalidade do tirocínio na administração dos correios e
telégrafos.19
Dada a inexistência de empresas portuguesas que trabalhassem com os apare-
lhos de precisão e telegraia20, logo na altura da criação do Instituto Industrial de
Lisboa foi estipulado que a oicina de instrumentos de precisão do Instituto fosse
organizada de modo a poder reparar os aparelhos e máquinas que eram utilizados
na telegráica elétrica.
Como se reconhecia em 1866, esta oicina, que se considerava ser “ao mesmo
tempo fábrica e escola”, tinha como um dos principais objetivos,
facilitar os trabalhos de muitas corporações e repartições cientíicas, que sem a existên-
cia de uma tal oicina seriam constantemente obrigadas a mandar aos países estrangei-
ros não só fabricar, mas até reparar, com grave e incalculável prejuízo, os instrumentos
do seu uso ordinário.21
Ao longo da segunda metade do século XIX a oicina de Instrumentos de pre-
cisão conheceu um importante desenvolvimento que se deveu em grande parte à
ação de Francisco da Fonseca Benevides, professor de física do Instituto Industrial
e Lisboa desde 1854. Como suporte das aulas de física que lecionava Benevides fez
mesmo construir no próprio Instituto alguns aparelhos e máquinas, como foi o caso
do aparelho destinado a observar o movimento do pêndulo de Foucault através do
eletroíman22.

19 Apenas 14 alunos realizaram o tirocínio no mês de Agosto e 11 no mês de setembro. Arquivo Instituto Indus-
trial, Caixa correspondência recebida 1890.
20 Só mais tarde foi criada a oicina de instrumentos de precisão Maximiliano Augusto Herrmann.
21 Decreto de 30 de Dezembro de 1869
22 Este pêndulo integrou a coleção de objetos que o Instituto enviou à Exposição Universal de Londres de 1862.

37
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

FRANCISCO DA FONSECA BENEVIDES E A ELECTRICIDADE


NO INSTITUTO INDUSTRIAL DE LISBOA

Num primeiro momento os desenvolvimentos da electricidade foram feitos no


âmbito da física, o que explica o interesse que desde muito cedo Francisco da Fon-
seca Benevides demonstrou por esta área, e que foi reforçado pelas várias visitas
de estudo que fez ao estrangeiro e que lhe permitiram acompanhar os progressos
desta energia e das suas aplicações. Em 1867, quando foi encarregado pelo go-
verno português de estudar a Exposição Universal de Paris, Benevides apresentou
um relatório onde descreveu as máquinas eléctricas que tinham sido expostas23.
Os estudos que realizou nesta exposição ajudaram-no a redigir, no ano seguinte,
um Tratado elementar sobre electricidade e magnetismo24. O interesse de Fonseca
Benevides pelo estudo e divulgação dos desenvolvimentos da electricidade era,
aliás, anterior e, em 1865, tinha já proferido no Grémio Literário uma conferência
sobre este tema25. Para a realização da esta conferência instalou-se na sala uma
máquina eléctrica “para que assim melhor se pudessem gozar as experiências da
máquina de indução de Reim Korf ” e as “últimas frases do Sr. Benevides foram
seguidas da aparição repentina de claridade na sala. Foi o iat lux da matéria,
seguindo-se ao iat lux do espírito.” 26
Nos anos seguintes Fonseca Benevides continuou a desenvolver os estudos so-
bre a electricidade, associando às publicações de carácter técnico, que publicou em
revistas como o Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, a redacção, à
publicação de artigos de maior divulgação em revistas que se dirigiam a industriais,
como a Gazeta das Fábricas, ou a um público mais amplo e diversiicado, como a
revista O Occidente.

23 BENEVIDES, Francisco da Fonseca, Relatório sobre a Exposição Universal de Paris de 1867, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1867.
24 BENEVIDES, Francisco da Fonseca, Tratado Elementar de Electricidade e Magnetismo contendo numerosas appli-
cações ás sciencias, artes e industrias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. Para além desta escreveu várias outras obras
como obra Tabellas, dados práticos, regras e instruções para uso de engenheiros, condutores de trabalhos, construtores
e em geral dos industriais, Lisboa imprensa Nacional, 1868, e Noções de physica moderna com numerosas aplicações,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1870.
25 Neste mesmo ano publicou na Gazeta das Fábricas o artigo “Machinas de dividir circulos”, no qual defendeu a
vantagem da utilização da electricidade para as pequenas máquinas, referindo que os motores electro magnéticos
“cuja força não pode ainda exceder um cavalo, não têm vantagens para grandes máquinas pelo seu grande peso,
alto preço, grande deterioração nos contactos etc.; mas para máquinas de pequena força, grande velocidade e
regularidade, podendo funcionar a qualquer distancia etc., são preferíveis a outros motores”. Gazeta das Fábricas,
vol. 1, nº2, Fevereiro de 1865, p. 47.
26 União Académica. Folha Hebdomaria publicada por uma empreza de estudantes, Lisboa, nº4, 29 de Abril, 1865, p.3.

38
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

Em 1865, publicou na Gazeta da Fábricas, editada pela Associação Promotora


da Indústria Fabril27, um artigo em que defendeu a vantagem da utilização da
electricidade para as pequenas máquinas. Neste artigo referia que os motores elec-
tromagnéticos “cuja força não pode ainda exceder um cavalo, não têm vantagens
para grandes máquinas pelo seu grande peso, alto preço, grande deteriorização
nos contactos etc; mas para máquinas de pequena força, grande velocidade e re-
gularidade, podendo funcionar a qualquer distância etc., são preferíveis a outros
motores”28. Apesar das vantagens que atribuía aos motores eléctricos, dois anos
depois Fonseca Benevides referia as limitações económicas da utilização da elec-
tricidade, considerando que “o trabalho mecânico produzido por um motor eléc-
trico” custa normalmente “vinte vezes mais que o das máquinas a vapor.”29
Ao longo da década de 1880 registou-se, em Portugal, um desenvolvimento im-
portante das aplicações de eletricidade no país,30 que no fundo eram um relexo
do desenvolvimento das aplicações de eletricidade, registadas a nível internacional
desde os inais da década anterior. O progresso da electricidade esteve na origem da
Exposição Internacional de Eletricidade organizada em 1881 na cidade de Paris31.
Em 1884, quando foi encarregado de realizar uma viagem de estudo aos esta-
belecimentos de ensino na Itália, Alemanha e França, Fonseca Benevides aprovei-
tou a oportunidade para se deslocar à Exposição de Electricidade que nesse ano
se realizou em Turim. Segundo ele, esta exposição, na qual a “colecção de aparelho
e máquinas de Edison era a mais brilhante”, representava “o estado actual dos
progressos da ciência nas suas múltiplas aplicações”32.
O interesse que o físico Fonseca Benevides tinha pelos desenvolvimentos da
eletricidade e o facto de ser desde 1854 professor do Instituto Industrial de Lisboa
foram determinantes para que as primeiras experiências feitas no país com as lâm-

27 Agremiação que se tinha constituído em 1860 com o objectivo de representar a indústria fabril do país e de
promover o seu melhoramento.
28 Gazeta das Fábricas, nº 2, Janeiro de 1865, p. 47.
29 BENEVIDES, Francisco da Fonseca, Relatório sobre a Exposição Universal de Paris de 1867, Lisboa, Imprensa
Nacional, p. 45.
30 Em Portugal o primeiro dínamo foi introduzido em 1872, em 1878 a cidadela de Cascais foi iluminada a eletri-
cidade com seis candeeiros Jablochkof de arco voltaico, e em 1881 constituiu-se a empresa de Motta & Cª que
realizava instalações de electricidade.
31 Segundo Alain Beltran e Patrice A. Carré, esta exposição foi a « séquence majeure dans l’histoire des techniques,
la séquence inaugurale de l’histoire des applications de l’électricité ». BELTRAN, Alain et CARRE, Patrice A.,
La fée et la servante. La société française face à l’électricité XIXe-XXe siècle, Paris, Belin, 1991, p. 64. Também André
Grelon et Girolamo Ramunni destacam a importância desta exposição e a consideram um marco importante na
história da electricidade, « cette année 1881 marque la frontière entre deux étapes du développement industriel
de l’électricité », GRELON, André et RAMUNNI, Girolamo, « Ingénieur, vecteur de la science électrique », La
naissance de l’ingénieur-électricien. Origines et développement des formations nationales électrotechniques, Paris PUF,
1997, p.8.
32 BENEVIDES, Francisco da Fonseca, Relatório sobre alguns estabelecimentos de instrução e escolas de desenho indus-
trial em Itália, Allemanha e França e na Exposição de Turim de 1884, Lisboa Imprensa Nacional, 1884.

39
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

padas Swan e uma máquina Siemens tenham sido realizadas, por sua iniciativa,
em 1883-84 neste Instituto. Esta iluminação foi possível porque o laboratório
de física possuía uma instalação completa para a demonstração dos fenómenos
elétricos, nomeadamente duas máquinas dinamoelétricas Siemens e uma máquina
dinamoelétrica Gramme.

BENJAMIN CABRAL E A INTRODUÇÃO DO ENSINO


DE ELETROTÉCNICA NO INSTITUTO

Em 1886 o Instituto Industrial de Lisboa foi objeto de uma reforma que estabe-
leceu, como se disse, a disciplina de “Eletrotecnia, telegraia e outras aplicações de
eletricidade” (8ª cadeira) e uma escola prática de telegraia.33 Como suporte deste
ensino criou-se um laboratório de eletrotecnia, onde se realizariam as “experiências
necessárias para as lições da 8ª cadeira, e bem assim para a exempliicação e ensino
das diversas aplicações de eletricidade”34.
Em 1887 foi nomeado lente da disciplina de eletrotécnica o engenheiro Paulo
Benjamin Cabral. Este engenheiro possuía, devido à sua formação, aos estudos
que realizara e ao seu percurso proissional, um grande conhecimento e prática
das aplicações de electricidade, nomeadamente da telegraia elétrica. Com efeito,
era formado pela Escola do Exército e entrou para o serviço da Direção dos te-
légrafos e faróis do reino, em 25 de Fevereiro de 1876, sendo elevado a chefe da
Repartição da mesma Direção geral em 4 de Outubro de 1879, e em 1880 passou
a ser inspetor-geral dos telégrafos. Por nomeação de 15 de Dezembro de 1881 foi
nomeado professor do curso prático dos correios e telégrafo estabelecido em 1880.
Na disciplina de “Eletrotecnia, telegraia e outras aplicações de eletricidade” mui-
to escasso o número de alunos de electrotecnia aprovados em 1887 e 1891: 2 no ano
letivo de 1887/1888; nenhum em 1888/1889; 1 em 1889/1890; e novamente apenas
1 em 1890/1891.35 Na verdade esta disciplina não teve oportunidade de conhecer
um maior desenvolvimento, pois a reforma de 1891 substituiu esta disciplina pela
disciplina de Industrias físicas e construção de instrumentos de precisão.36

33 Por decreto de 13 de Janeiro de 1887 o curso prático de correios e telégrafos que era lecionado nas direções
gerais dos telégrafos de lisboa e Porto foi extinto passando a formação a ser feita exclusivamente nos institutos
Industriais e Comerciais de Lisboa e Porto completando-se a formação dos alunos com um tirocínio nos servi-
ços telegráicos do Estado.
34 Decreto de 30 de Dezembro de 1886.
35 CABRAL, Paulo Benjamin, O ensino da Electroctenia em Portugal, ob. Cit, p. 31. Entre 1887 e 1891 apenas um
aluno foi aprovado na disciplina de eletrotecnia existente no Instituo Industrial do Porto.
36 A reforma de 8 Outubro de 1891 no Instituto Industrial do Porto esta disciplina foi suprimida.

40
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

A formação em eletrotecnia era completada pelo ensino prático dado no la-


boratório de Eletrotécnica37. No início da década de 1890, embora as instalações
do laboratório de eletrotecnia do Instituto Industrial de Lisboa ainda não fossem
comparáveis “aos laboratórios magníicos existentes em certos países, são todavia
muito importantes não só em relação ao que existe nos demais estabelecimentos
cientíicos deste país, mas ainda em comparação com instalações semelhantes do
estrangeiro”38. Com efeito, embora o laboratório estivesse instalado numa constru-
ção provisória, possuía uma coleção importante de instrumentos e máquinas que
garantiam a realização do trabalho prático correspondente ao ensino teórico que
era dado, ao mesmo tempo que possibilitavam aos professores realizar trabalhos
de investigação e encarregaram-se de alguns trabalhos solicitados por particulares,
como era o caso da graduação de instrumentos de medidas elétricas, os ensaios de
dínamos e outras máquinas.39
No laboratório existiam: um espaço em que estavam instalados os dínamos e os
motores; uma instalação de acumuladores; uma sala para medidas elétricas e ou-
tras experiências “delicadas”; um gabinete fotométrico especialmente destinado à
fotometria elétrica; uma sala destinada para o ensino prático de telegraia. O labo-
ratório dispunha dos seguintes maquinismos: uma locomóvel instalada ixamente
com a força de 30 C/v; motor a gás do sistema Otto com a força de 4 C/V; dois dí-
namos Siemens & Halske; um antigo dínamo Gramme; e uma máquina Siemens
para galvanoplastia. Possuía ainda uma bateria de acumuladores 34 elementos do
sistema Tudor, estando prevista a instalação de mais duas baterias. Possuía ainda
diversos instrumentos para a execução das medidas elétricas e para a realização
de outras experiências importados das fábricas reconhecidas internacionalmente
como era o caso da Latimar Clark de Londres, Jules Carpentier de Paris ou de
Hartmam Braunn de Francfort.
Para o ensino da telegraia o laboratório possuía oito mesas telegráicas com
aparelhos Morse, duas mesas com sounders, quatros instalações Hughes e duas ins-
talações de aparelhos duplex heiler, diversos exemplares do aparelho de Bréguet
entre outros. Dispunha ainda de uma coleção de diferentes tipos de aparelhos te-
lefónicos, de uma coleção de diferentes modelos de cabos elétricos, de condutores
metálicos, de isoladores e de ferramentas para os trabalhos de construção e repara-
ção das linhas elétricas aéreas ou submarinas40.

37 Neste laboratório era também completada a formação em telegraia elétrica


38 CABRAL, Paulo Benjamin, O ensino da Electroctenia em Portugal, ob. Cit, p. 34.
39 Ibidem, p. 35.
40 Ibidem, p. 37.

41
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

A REFORMA DE 1891 E AS PROPOSTAS DE REORGANIZAÇÃO


DO INSTITUTO INDUSTRIAL DE LISBOA

Em 1891 Portugal foi afetado por uma importante crise inanceira decorrente
da entrada em colapso das inanças do Estado e do sistema bancário41.
As diiculdades inanceiras que se viveram então no país obrigaram a reduzir a
despesa nos vários sectores da administração pública e nas instituições que eram
subsidiadas pelo Estado. Assim, a dotação orçamental destinada ao ensino foi re-
duzida obrigando a restruturar a formação dada em várias instituições. Foi o que se
passou nomeadamente com os Institutos Industriais de Lisboa e Porto, cujo ensino
foi reorganizado pelo decreto de 8 de Outubro de 189142. Com esta reforma estas
escolas passaram a ser escolas de formação média, sendo-lhe retirada, por um lado,
a formação industrial de nível elementar, que desde a década de 1880 tinha passado
a ser dada nas escolas industriais e de desenho industrial que se tinham criado em
várias regiões do país, e, por outro lado, a formação de nível superior que conside-
ravam insuiciente pois
para habilitarem chefes de industrias. Só de nome os têm formado, pois os seus cursos
chamados de diretores são simplesmente da categoria dos cursos de condutores e não
bastam na realidade para diretores ou engenheiros. Nem essa é a sua missão, os nossos
engenheiros se são de obras públicas formam-se na escola do exército e na academia
politécnica; se são de minas ou industriais, na mesma academia onde é de presumir que
especialmente o ensino industrial chegue a tomar maior incremento.43
A reforma de 1891 teve um impacto direto no curso de correios e telégrafos,
que foi suprimido, e na disciplina Eletrotecnia, telegraia e outras aplicações de
eletricidade, existente no Instituto de Lisboa44, que como se disse, foi transformada
numa disciplina de Indústrias físicas e construção de instrumentos de precisão.
Esta disciplina passou a ser dividida em duas partes “reservando uma para o ensino
das aplicações de eletricidade e destinando a outra propriamente para a construção
dos instrumentos cientíicos”45.

41 Sobre esta crise inanceira veja-se SANTOS, Luis Aguiar, “A crise inanceira de 1891: uma tentativa de Explica-
ção”, Análise Social, vol. XXXVI (158-159), 2001, p. 185-207. Esta crise inanceira vai ter como resultado uma
crise económica e a adoção de uma política protecionista dos mercados portugueses.
42 Como neste decreto “As alterações que o governo introduz nos estabelecimentos de ensino industrial e comercial
(…) inspiram-se no propósito de lhe comunicar o espírito de economia que deve presidir a todos os serviços
públicos, de tal modo que não só o tesouro faça com eles o mínimo de dispêndio, mas ainda se colha da sua
organização o maior proveito possível”
43 Preâmbulo do decreto de 8 de Outubro de 1891.
44 Esta mesma reforma suprimiu a disciplina de eletrotécnica do Instituto Industrial do Porto.
45 CABRAL, O ensino de Electroctécnica…op. cit., p. 33.

42
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

Na sequência da reforma foi solicitado ao Conselho escolar do Instituto Indus-


trial de Lisboa que apresentasse uma proposta de organização do ensino que tivesse
em conta as limitações orçamentais. Assim, em 1892 o conselho escolar apresentou
um projeto de reorganização do instituto que, como referiram na altura, “não repre-
senta por completo as suas aspirações, e tão-somente tem em vista obviar aos in-
convenientes do decreto de 1891”.46 O projeto foi subscrito por todos os professores
titulares47 à exceção de Alfredo Bensaúde que apresentou um relatório individual.
A proposta de organização do ensino que foi apresentada teve em conta, entre
outros aspetos, a ideia de ser “uma escola em que se habilitassem os primeiros auxi-
liares dos engenheiros”, preocupação que não perdeu de vista a ideia de que era im-
portante a formação prática, dada “não somente nas salas de estudo, nos gabinetes e
nos laboratórios, mas também nas oicinas para que saibam usar das ferramentas os
que têm que estar em contacto com os operários e de os dirigir no seu trabalho”48.
Como se referiu, o engenheiro Alfredo Bensaúde apresentou um parecer se-
parado49. Neste parecer Bensaúde apontava as razões que considerava estarem na
origem da desadequação do Instituto às necessidades de formação técnica de que o
país necessitava. Entre estas razões contavam-se:
a) A forma como se recrutavam os professores. Normalmente os professores
ascendiam às cátedras muito jovens sem terem tido qualquer experiência
proissional, contrariamente ao que se passava em vários outros países da
Europa, em que só depois de ter passado “boa parte da sua vida projetan-
do e dirigindo trabalhos de construção de caminhos-de-ferro, de túneis,
dirigindo estabelecimentos fabris etc., conforme a sua especialidade. Só
depois de ter mostrado praticamente, aos olhos de todos, que sabe tirar
o máximo partido dos seus conhecimentos, é que em geral é chamado ao
magistério, sobretudo se aos trabalhos da prática sabe aliar a parte espe-
culativa da sua ciência especial”. Além disso, a sua produção cientíica era
diminuta pois, “o seu primeiro escrito, é também o último escrito sobre a
ciência que se propõe ensinar, é a tese do concurso, que frequentemente é
apenas uma compilação de pouco ou nenhum valor cientíico”50;

46 Projecto de reorganização do Instituto Industrial e Commercial de Lisboa p.3-4.


47 Apesar de três dos 21 Professores membros do conselho escolar que subscreveram o projeto o terem feito com
declarações de votos, em que manifestavam algumas reticências relativamente à organização proposta.
48 Ibidem, p. 4.
49 BENSAUDE, Alfredo, Projecto de Reforma do Ensino Technologico para o Instituto Industrial e Commercial de
Lisboa, Lisboa, 1892.
50 Ibidem, pp. 10-11

43
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

b) A maior parte dos professores não dominava a prática das disciplinas que
ensinava e para colmatar essa insuiciência recorria-se de preparadores que
os auxiliavam nos trabalhos práticos. Mas, como referia Bensaúde, para a in-
dustria era mais importante “saber fazer do que saber só como é que se faz”51;
c) A pouca atenção dada ao ensino do desenho, que “de certo modo é a
linguagem escrita do técnico”, deiciência que só podia ser superada se
se obrigasse “os alunos a elaborar o maior número possível de projetos
concernentes às cadeiras de aplicação (...). Assim, aprenderiam ao mesmo
tempo a desenhar e a aplicar os conhecimentos teóricos”.52
Tanto a proposta apresentada pelo conselho escolar como a apresentada por
Alfredo Bensaúde estabeleciam a existência de 7 cursos: curso de construções civis;
curso de máquinas; curso de eletrotecnia; curso de química tecnológica, curso de
minas; curso secundário de comércio curso superior de comércio. No entanto, a
forma como os mesmos deviam ser organizados diferiam. Na proposta de Ben-
saúde devia ser criado um primeiro ano comum para todos os cursos industriais.
A organização do curso de eletrotécnica era também diversa nas duas propostas.
Na proposta do conselho escolar tinha a duração de 4 anos, enquanto na de Ben-
saúde se reduzia a 3 anos. Apesar disso o ensino especíico de eletrotecnia não ocu-
pava mais horas na primeira proposta, embora estivesse dividido pelos 3º e 4º anos.
Na sequência da importância que Bensaúde atribuía ao ensino do desenho no
primeiro ano do curso, que como se disse era comum aos todos os cursos industriais,
existia uma disciplina de desenho de carácter prático que ocupava 12 horas sema-
nais. No 2º Ano foi incluída uma disciplina de construções urbanas, o que provavel-
mente se ligava com a introdução cada vez maior da eletricidade nas habitações, e
no 3º Ano uma disciplina de higiene.
O projeto de reforma apresentado por Alfredo Bensaúde foi objeto de numero-
sas críticas que o consideravam eivado de estrangeirismo. A inluência estrangeira
foi, aliás, reconhecida por ele. Bensaúde tinha-se formado em mineralogista e enge-
nharia de minas na Alemanha, onde frequentara as classes preparatórias da escola
Técnica Superior de Hannover e a Escola de Minas de Chausthal, terminando os
seus estudos na universidade de Goettingen em 1881. A sua passagem pelas escolas
alemãs e o conhecimento de outras escolas europeias permitiam-lhe aperceber-se
as vantagens dos sistemas de ensino que aí eram seguidos e, por isso, os procurava
introduzir em Portugal. Respondia, também aos seus críticos airmando que,

51 Ibidem, p. 12
52 Ibidem, pp. 22-23

44
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

em toda a parte se tem aproveitado a experiência alheia em assuntos de instrução e edu-


cação, sendo por isso una boa escola sempre, mais ou menos, um produto internacional.53

Tendo sido posta em prática a organização dos cursos propostos pelo conselho
da escola, a forma como se organizava o ensino da eletrotecnia era claramente in-
suiciente para formar técnicos capazes de realizarem instalações elétricas, e ainda
menos para formar engenheiros eletrotécnicos.

AS REFORMAS DO INSTITUTO INDUSTRIAL DE LISBOA


E O ENSINO DA ELETROTECNIA E DA TELEGRAFIA ENTRE 1892 E 1910

Ao longo destes anos foram poucas as modiicações que se registaram no en-


sino da eletrotécnica. Uma das modiicações que se veriicou foi a criação de um
curso telégrafos, pois a reforma de 1892 não tinha previsto a formação em tele-
graia elétrica, área em que a necessidade de técnicos era cada.
Em contrapartida procurou-se melhor o laboratório de eletrotecnia e foi-se
ampliando a iluminação elétrica dos diferentes espaços do edifício, que era feita
a partir do laboratório de eletrotecnia. Em 1893 foi introduzida no laboratório
uma antiga máquina dinamoelétrica Siemens do sistema Compound, cujos vários
elementos que se encontravam grandemente degradados foram recuperados nas
várias oicinas do Instituto. Para a instalação desta máquina foi construída uma
pequena barraca de madeira, anexa à barraca que já aí existia e na qual se encon-
trava a locomóvel.54
Em 1898 o Instituto Industrial de Lisboa foi objeto de nova reforma que es-
tabeleceu os seguintes cursos: artes químicas; eletrotecnia; máquinas; construções
civis e obras pública; minas; e telégrafos. A criação dos cursos de artes químicas,
eletrotecnia e máquinas era justiicada pelas “aplicações à indústria, que de dia
para dia se multiplicam, da química, da eletricidade e da mecânica”55. Nos vários
cursos procurava-se combinar o ensino teórico com o ensino prático nos labora-
tórios, museus e oicinas, e os alunos dos cursos industriais eram obrigados a fazer
um tirocínio de 6 meses em estabelecimentos fabris da sua especialidade perten-
centes ao Estado ou a particulares.

53 BENSAUDE, Alfredo, Notas Histórico- pedagógicas sobre o Instituto Superior Técnico, Lisboa, p.8.
54 BENEVIDES, Relatório … Ano lectivo de 1893-1894, Ob.cit., pp. 10-11.
55 Decreto de 30 de Junho de 1898.

45
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

A importância que estas áreas da engenharia iam assumindo no país determi-


nou que, também em 1898, na Associação dos Engenheiros Civis Portugueses se
criasse uma secção de engenharia industrial, máquinas e eletricidade. Os enge-
nheiros membros desta secção apresentaram um relatório no qual defenderam que
a direção técnica das fábricas e minas e dos trabalhos municipais de iluminação a
gás, de abastecimento de águas ou de tração elétrica deviam ser assegurados por
engenheiros.
No entanto, a reforma do Instituto Industrial datada de 1898 mantinha lacunas
importantes no que respeitava ao ensino da eletrotecnia. Assim, o curso de má-
quinas não incluía a disciplina de eletrotecnia, lacuna tanto mais grave quanto na
altura “tanto na velha Europa, como na jovem América, o emprego da energia elé-
trica, como potência mecânica de primeira ordem, atingiu já tão grande desenvol-
vimento e constitui mesmo o grande desenvolvimento industrial mais em voga”.56
Esta reforma alterou também a disposição estabelecida pelo decreto de 8 de
Outubro de 1891, segundo o qual a receita das oicinas do Instituto Industrial de
Lisboa pertencia ao próprio Instituto e eram utilizadas para o seu funcionamento.
Durante anos o recurso a esta verba tinha permitido atenuar a fraca dotação de
recursos inanceiros que o governo atribuía ao Instituto. Com a reforma de 1898 o
instituto passou a ser obrigado a entregar a receita das oicinas ao governo,57 o que
criou uma situação de grande diiculdade inanceira que se reletiu no funciona-
mento desta escola, que se traduziu na diminuição do pessoal auxiliar, na redução
dos trabalhos práticos e das visitas de estudo que eram realizadas todos os anos
pelos alunos.
No ano seguinte um novo decreto datado de 28 de Dezembro desanexou a
oicina de instrumentos de precisão do Instituto Industrial de Lisboa e suprimiu a
oicina de motores e máquinas elétricas. O serviço de iluminação do Instituto, que
nos anos anteriores estivera a desta oicina de motores e máquinas elétrica, voltou
a icar a cargo do laboratório eletrotécnico58.
Apesar das várias reformas que foram sendo feitas, o ensino da eletrotecnia que
era dado em Portugal estava longe de corresponder ao desenvolvimento das aplica-
ções de eletricidade que se tinham veriicado no país.

56 BENEVIDES, Relatório … Ano lectivo de 1897-1898, Lisboa, 1899, p. 9.


57 Portaria de 26 de Agosto de 1898.
58 Sobre a forma como foi sendo ampliada a iluminação do Instituto Industrial de Lisboa veja-se MATOS, Ana
Cardoso de, em “he teaching of electricity in Portugal from the Instituto Industrial de Lisboa to the Instituto
Superior Técnico: places of training and the circulation of experts and knowledge”, ob. Cit.

46
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

Com efeito, no im do século XIX existiam já em Portugal várias empresas


nacionais e estrangeiras que forneciam e montavam instalações elétricas. Entre
as empresas portuguesas contaram-se a Companhia Portuguesa de Electricidade e a
empresa de Hermann. A primeira destas empresas possuía escritórios em Lisboa e
no Porto e encarregou-se da montagem de diversas instalações elétricas, como foi
o caso da iluminação do Chiado ou da Iluminação da Companhia de Caminhos
de Ferro do Norte e Leste59. A segunda realizou, entre outras obras, a iluminação
elétrica da estação do Rossio60. Entre as várias empresas que se estabeleceram no
Porto contou-se a Sociedade Emílio Biel, representante da Sociedade Schuckert &
Cª. de Nuremberg, que em 1895 tinha já montado instalações elétricas em várias
fábricas e estações de caminho-de-ferro em Lisboa, Porto e Portalegre. No total
instalara 24 dínamos, mais de 1.826 lâmpadas (incandescentes e de arco voltaico).
Esta Sociedade realizou também o projeto e forneceu as máquinas para a ilumina-
ção pública a eletricidade de Vila Real, uma das primeiras localidades portuguesas
a beneiciar deste melhoramento61.
O próprio interesse dos engenheiros em acompanhar progressos da eletricidade
manifesta-se nos relatórios da direção da Associação dos Engenheiros Civis Portu-
gueses. No relatório de 1900, quando são avaliados os progressos da engenharia ao
longo do século XIX, considera-se a eletricidade um agente do progresso a par do
caminho-de-ferro, acrescentando-se que «na telegraia e na iluminação o seu triun-
fo pode dizer-se completo».62 Neste relatório são ainda salientadas as vantagens da
utilização do telefone, que transmite a fala, facilitando as comunicações urbanas e
abreviando as transações, e são referidas algumas das aplicações da luz elétrica nas
cidades referindo-se algumas aplicações da eletricidade em Portugal.63 O papel de
destaque que a engenharia eletrotécnica ia assumindo está bem reletido no relató-
rio de 1902 em que se airma,
«[…] de todos os ramos da arte do engenheiro o que de dia para dia mais avan-
ça, contando vitórias e proporcionando surpresas é a eletricidade. “L’ingénieur mo-
derne sera électricien ou il ne sera pas”, disse M. Carnet por ocasião da exposição
universal de Paris de 1900»64.

59 SOUSA, homaz Salter de, A luz eléctrica, Lisboa, 1886, p. 62.


60 Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, 18 do 7º Ano, nº 162, 16 de Setembro de 1894, p. 295.
61 MORAES, Carlos, “A luz eléctrica em Vila Real”, Revista de Obras Públicas e Mina,tomo XXVIII, nº 327 e nº
328, 1897, pp. 81-127.
62 Revista de Obras Públicas e Minas, Tomo XXXI, 1900, nºs 361-363, pp. 4-8.
63 Destas últimas salienta-se a aplicação da tração elétrica aos “tramways” do Porto, que circulando entre Campa-
nha e o Porto de Leixões permitiam superar com êxito as diiculdades da planta e do peril da cidade. Ibidem, p.
33.
64 Revista de Obras Públicas e Minas, Tomo XXXIII 1902, nºs 385-387, p.10.

47
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

A CRIAÇÃO DO INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO

Apesar dos progressos das aplicações da eletricidade que se veriicam em Por-


tugal até à criação do Instituto Superior Técnico a formação na área da eletrotec-
nia era ainda insuiciente para dotar os engenheiros portugueses das competências
necessárias à instalação e exploração de Centrais elétricas. Por essa razão, entre o
inal do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a maior parte das insta-
lações elétricas realizadas no país foram dirigidas tecnicamente por engenheiros
estrangeiros ou por engenheiros portugueses que tinham feito a sua formação no
estrangeiro, que em muitos casos também elaboraram os projetos65.
Consciente que o ensino que era dado no Instituto Industrial de Lisboa estava
longe de responder às necessidades da indústria portuguesa e procurando que o
ensino da engenharia se aproximasse mais daquilo que era praticado nos outros
países, em Dezembro de 1910, Brito Camacho, ministro do Fomento, nomeou
Alfredo Bensaúde, diretor do Instituto Industrial de Lisboa com o encargo de
proceder à sua remodelação. Esta remodelação devia prever que os cursos de enge-
nharia civil e de minas da antiga Escola do Exército passassem a funcionar no Ins-
tituto, que passaria a ser uma escola técnica de grau superior, enquanto a Escola do
Exército passaria a ser uma escola exclusivamente dedicada aos estudos militares.
Alfredo Bensaude aceitou a nomeação reconhecendo que,
Não me faltava certa preparação para tentar o empreendimento, embora tivesse mais
coniança na minha vontade do que na minha competência. Ensinava havia muitos
anos, tinha assistido ao grande desenvolvimento da indústria e do ensino técnico
realizado na Alemanha depois da guerra de 1870-1871, por Ter frequentado duas
escolas técnicas e duas universidades alemãs de 1874 a 1882; e, de volta a Portugal,
continuara seguindo com interesse a orientação desse movimento pedagógico, que gra-
dualmente se impôs, mais ou menos aos países progressistas, inclusivamente à Itália,
que tem tantas ainidades com Portugal.66
A nova organização escolar foi decretada em 1911 e o Instituto Industrial de
Lisboa foi dividido em duas instituições de ensino superior: o Instituto Superior
Técnico e o Instituto Superior do Comércio, que só foi organizado anos mais
tarde.

65 Sobre a formação dos engenheiros eletrotécnicos portugueses formados no estrangeiro veja-se MATOS, Ana
Cardoso de, “Formation, carrière et montée en puissance des ingénieurs électriciens au Portugal” (en publication).
66 Alfredo Bensaúde, Notas Histórico- pedagógicas …, ob. cit., p. 9

48
ESPAÇOS E ACTORES DO ENSINO DA ELECTRICIDADE EM PORTUGAL (1850- 1911)

A criação do IST foi um marco decisivo airmação do ensino da engenharia,


quer pela qualidade do ensino, quer pelos métodos pedagógicos e avaliativos que
aí foram introduzidos67.
Nomeado diretor do novo instituto, Alfredo Bensaúde selecionou para profes-
sores homens que associassem à formação cientíica a experiência industrial, que
demonstrasse que sabiam tirar partido dos seus conhecimentos teóricos. Esta op-
ção decorria das ideias que já tinha tido oportunidade de expor em 1892, quando
apresentou o Projecto de Reforma do ensino Tecnológico para o Instituto Industrial e
Comercial de Lisboa. Anos depois, alargava esta ideia ao considerar que os
professores que ao mesmo tempo exercem na indústria particular a proissão que en-
sinam, são os que melhor podem encaminhar os seus alunos para as carreiras em que
terão maiores probabilidades de êxito. A escola assim organizada é naturalmente o
“ bureau de placement” dos jovens engenheiros mais competentes que vai produzindo.68
Os professores escolhidos por Bensaúde para ensinarem as disciplinas do curso
de engenharia eletrotécnica correspondiam ao peril de professor que ao longo dos
anos tinha preconizado. Reiram-se os exemplos dos professores das cadeiras de li-
gadas à eletricidade. Léon Fesch, professor das disciplinas de teoria da eletricidade-
corrente contínua e corrente alternada e aplicações de eletricidade, era formado em
engenharia eletrotécnica pela Universidade de Liége, no Instituto de Monteiore,
onde foi assistente de E. Gerard, tendo depois trabalhado na empresa Siemens-
Schuckert69.Em 1924, quando já era professor do IST entrou para as Companhias
Reunidas de Gás e Eletricidade. Também o professor escolhido para as disciplinas
de eletrotecnia geral e construções e instalações industriais, Maximiano Gabriel
Apolinário, natural de Lisboa, tinha tirado o curso de engenharia eletrotécnica na
Universidade de Liége, no Instituto de Monteiore. Antes de ser nomeado profes-
sor do IST elaborou projetos e trabalhou em várias empresas particulares: em 1905
realizou o projeto e dirigiu as obras da Central Elétrica de Évora pertencente à Cª
Eborense de Eletricidade; em 1907, foi coautor de um projeto não concretizado
de aproveitamento energético do Rio Tejo; trabalhou ainda na Fábrica Promitente.
Maximiano Apolinário era membro da Associação dos Engenheiros Civis Portu-
gueses e depois da Ordem dos Engenheiros e publicou vários artigos sobre eletri-
cidade na Revista de Obras Públicas e Minas e na Revista da Ordem dos Engenheiros.

67 A reforma do ensino estender-se-ia, em 1915, ao Porto, onde a Academia Politécnica foi transformada em
Faculdade Técnica. RODRIGUES, Maria de Lurdes, Os Engenheiros em Portugal, ob. Cit.p. 85.
68 Ibidem, pp. 68-69.
69 Em 1924 Léon Fesh foi convidado para trabalhar na Companhia Reunidas Gás e Electricidade de Lisboa.
SIMÕES, Ilídio Mariz, Pioneiros da electricidade e outros estudos, Lisboa, EDP, 1997, p.58.

49
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Vários dos alunos que saíram dos primeiros cursos de engenharia eletrotécnica
encontraram colocação em empresas elétricas, como a CRGE de Lisboa, a Socie-
dade Energia Hidrelétrica e a Casa H. B.C de Lisboa, em empresas ou instituições
que utilizam a eletricidade como iluminação ou força motriz, na Companhia de
Telefones e na secção de estudos hidrelétricos da Casa Henry Burnay & Cª. É
possível, que pelo menos nalguns casos, os professores tenham funcionado como
bureau de placement, tal como Alfredo Bensaúde defendia.

CONCLUSÃO

A partir das últimas décadas do século XIX a eletricidade passou a ser uma
energia essencial à vida doméstica, à vida urbana e social, às comunicações e ao de-
senvolvimento económico dos vários países. No entanto, em Portugal, o seu ensino
em Portugal não acompanhou nem os progressos que se registaram nesta área, nem
a forma como se foi organizando o ensino da electricidade e das suas aplicações.
No Instituto Industrial de Lisboa, apesar dos esforços feitos por homens como
Franciscco da Fonseca Benevides ou Benjamin Cabral, o ensino da telegraia eléc-
trica foi dado de uma forma pouco sequencial e, nem sempre organizado de forma
a dar aos alunos os conhecimentos necessários para prosseguirem com segurança
e eicácia uma vida proissional nesta área. Por seu lado, o ensino da electrotecnia
continuou a não dotar os técnicos portugueses com as competências necessárias
para poderem projectar e construir centrais e instalações elétricas com um certa
dimensão, o que obrigou vários engenheiros a completar a sua formação no estra-
geiro. Só com a criação, em 1911, do Instituto Superior Técnico, e no ano seguinte,
da Faculdade de Ciências do Porto, o país passou a formar engenheiros eletrotéc-
nicos com as competências necessárias ao desenvolvimento das várias aplicações da
eletricidade. Aliás, nas primeiras décadas do século XX, os engenheiros eletrotécni-
cos assumiram em Portugal uma importância crescente e airmaram-se como um
grupo essencial ao desenvolvimento económico e social do país.

50
A Imprensa Científica Militar (1851-1918):
Trocas e circulação de saberes entre Portugal
e a Europa
José Luís Assis
Comissão Portuguesa de História Militar – Ministério da Defesa Nacional / Centro de Estudos História e Filosofia da
Ciência (CEHFCi) / U. Évora Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL /HetSci

INTRODUÇÃO

A Regeneração surgiu em Portugal após as lutas civis e os golpes que consa-


graram os militares como os grandes protagonistas. Esse clima afastou qualquer
possibilidade que proporcionasse a realização de discussões associadas à cultura
cientíica tão necessária ao progresso do País. Apesar desses constrangimentos, a
Regeneração iria airmar-se, tendo como alicerce as ideias positivistas que permiti-
ram a secularização do progresso e a criação de uma nova sociedade.
O atraso técnico e cientíico decorrente desse quadro político-militar tornara-se
desprestigiante para o Exército e impediu o progresso e desenvolvimento de Por-
tugal. É no sentido de alterar esse panorama político que em 1848 Fontes Pereira
de Mello funda a Revista Militar e na sua linha editorial vinca a importância da
Ciência no progresso da Humanidade e o papel da imprensa livre na democratiza-
ção do saber e no desenvolvimento das nações.
A imprensa militar, pela relação estreita que estabeleceu com o conhecimento
cientíico, contribuiu como factor paradigmático para o aparecimento de uma nova
era na historiograia portuguesa onde os militares se apresentavam como os mais
habilitados para, num momento de paz, se tornarem os difusores das mais recentes
conquistas cientíicas que por essa Europa se iam airmando.
Numa sociedade cientíica e culturalmente incipiente, não admira que fossem
os militares a divulgar uma ciência ainda militarizada1. Dotados de conhecimentos

1 NUNES, Maria de Fátima, “Leitura e Leitores”, in Imprensa Periódica Cientíica (1772-1852), Leituras de Sciencia
Agrícola em Portugal, Lisboa, 2001, p. 9.

51
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

técnicos e cientíicos vão inserir-se na sociedade civil, tornando-se os mais capazes


para acompanhar e aplicar as conquistas que nesse domínio mais interessavam à
modernização de Portugal.
A Ciência constituía, de facto, a manifestação mais evidente aos olhos da Hu-
manidade. Não era possível aos homens ignorá-la, quando as exposições industriais
por toda a Europa, celebravam o seu triunfo. Por maior que fosse a importância
cognoscitiva do método experimental, das leis da hereditariedade ou do transfor-
mismo, diicilmente os conceitos teóricos podiam competir com a realidade viva
da máquina a vapor, da luz eléctrica, da telegraia sem ios (para apenas mencionar
alguns dos inventos mais emblemáticos do século)2. A imprensa cientíica rendida,
divulgava as maravilhas da mecanização, exaltava os seus benefícios e a sua vocação
universalista3.
Nas exposições, apresentavam-se os avanços e as conquistas alcançados pelos
incessantes trabalhos dos povos. Serviam para patentear o aperfeiçoamento alcan-
çado nas diversas ciências e estimular os grandes inventores. As nações, que preten-
diam modernizar-se nas diferentes ciências e na tecnologia, precisavam imperio-
samente de conhecer os seus avanços e resultados. Em presença dos grandes factos
procuravam conhecer as suas origens a fonte de onde dimanavam. Isso permitia
estabelecer a corrente lógica do progresso nos diferentes ramos do conhecimento e
da Ciência. Para eles, ligar o passado ao presente não era apenas perceber e explicar
o presente, mas descortinar o alvorecer do futuro.
A divulgação de «conhecimentos úteis», terminologia utilizada na época, iria
a partir da segunda metade de oitocentos inaugurar uma nova era no panorama
cultural e cientíico português. Foram Homens que implementaram um conjunto
de práticas cientíicas e destreza técnica que só eles souberam colocar ao serviço da
Nação, obedecendo aos princípios do utilitarismo liberal e à valorização de um pu-
blicismo cientíico como forma de educar e civilizar o Povo ou os Povos conforme
a retórica oitocentista. É neste quadro sequencial e encadeado de práticas técnicas
e cientíicas que percebemos a queda da fronteira entre a sociedade civil e a militar.
Pretendemos com esta comunicação apresentar a leitura e interpretação de al-
guns textos cientíicos sobre exposições, congressos e viagens cientíicas publicados
e difundidos pela imprensa cientíica militar. Esta abordagem implicará um olhar

2 Cfr. BAPTISTA António M., A Primeira idade da Ciência. A Ciência no Século XIX e tempo de D. Carlos I,
(1863-1908), Lisboa, Gradiva, 1996, pp. 65-85. O volume inclui, além de uma síntese sobre o estudo da Ciência
portuguesa deste período, uma cronologia dos principais acontecimentos cientíicos e tecnológicos do século.
3 Sobre este tema veja-se BARREIRA, Cecília, Onde está a felicidade? O Conceito de Progresso Técnico no século XIX,
Lisboa Universitária editora, 1997. (ensaio orientado para a vertente simbólica e a metafórica do discurso sobre a
técnica na imprensa portuguesa nos anos 50-60 do século XIX).

52
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

sobre as relações entre os elementos cientíicos do contexto técnico e cientíico na-


cional e europeu de modo a conseguir-se compreender a importância e signiicado
das opções tomadas na aquisição e na divulgação desse conhecimento.

TROCAS E CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS

A 31 de Janeiro de 1856, o Escholiste Medico iniciou a publicação de um vasto


estudo sobre os serviços médicos franceses intitulado, Impressões de uma Viagem
Medica4 resultante da deslocação realizada pelo cirurgião de divisão João Clemente
Mendes5 a França. Apresenta as suas considerações organizadas em doze capítulos
que passaremos a apresentar.
No primeiro, enaltece a administração dos hospitais e serviço clínicos franceses
pela forma como estavam organizados6. Estabelece a diferença entre os dois mo-
delos de hospitais: os gerais e os especiais. Nos primeiros entravam os doentes com
qualquer tipo de moléstia enquanto, nos segundos apenas eram tratados determi-
nados tipos de doenças7. Faz referência à forma de selecção do corpo médico8, ao
regime dietético dos doentes9 e ao internamento10.

4 MENDES, João Clemente, “Impressões de uma Viagem Medica”, O Escholiaste Medico, 13.º Anno, 3.ª Serie,
1856, n.º 26, pp. 17-21; n.º 28, pp. 49-53; n.º 30, pp. 81-84; n.º 31, pp. 97-100; n.º 33, pp. 129-133; n.º 34, pp.
145-150, n.º 36, pp. 177-182; n.º 37, pp. 193-197; n.º 39, pp. 225-229; n.º 40, pp. 241-245; n.º 42, pp. 273-276;
n.º 44, pp. 304-309.
5 O cirurgião de divisão João Clemente Mendes, era diplomado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (1840)
e doutorado em Medicina, Cirurgia e Partos pela Universidade de Bruxelas (1855). Ingressou no Exército com
o exame militar para cirurgião ajudante a 28 de Outubro de 1840 e por Decreto de 2 de Novembro do mesmo
ano tomou posse naquela função. Pertenceu às comissões cientíicas responsáveis por elaborar os formulários de
medicamentos para os hospitais militares, (1858 e 1871); o Regulamento Geral do Serviço de Saúde (1852-1872);
o Projecto das Tabelas das Lesões (1870). Foi adjunto da repartição de Saúde do Ministério da Guerra. Para
mais informação sobre esta notável personalidade médica consulte-se REIS, Carlos Vieira, (2004), História da
Medicina Militar Portuguesa, vol. II, Lisboa, Estado-maior do Exército, pp. 249-250.
6 Idem, n.º 26, p. 18.
7 As doenças mais frequentes e que requeriam um determinado tipo de cuidados e de meios eram tratadas em
hospitais próprios. Havia hospitais para doentes com a síilis de ambos os sexos. O do Midi onde se tratavam
os homens e o de l’Ourcine as mulheres. O de S. Luiz tratava os doentes da pele. As crianças dos 2 aos 15 anos
tinham os seus próprios hospitais, o Enfants Malades. Existia, ainda, os hospícios para mulheres e para homens,
maternidades, asilos, instituições de caridade e um considerável número de casas saúde. Para mais informação
consulte-se Idem, pp. 18-19.
8 O pessoal médico e administrativo para prestar serviço nos hospitais era seleccionado entre os melhores elementos
do país e cada um, dentro da sua área, prestava os melhores serviços. Contudo ocorriam, por vezes, conlitos entre
os médicos e os directores da administração dos hospitais. Esta situação dava razão aos que defendiam que a
administração dos hospitais devia ser entregue a um facultativo. Veja-se Idem, p. 21.
9 O regime dietético dos doentes em todos os hospitais era óptimo. Recebiam o vinho, o leite, os legumes e uma
ininidade de iguarias. Veja-se Idem, Ibidem, p. 21.
10 A baixa dos doentes aos hospitais era determinada pelo Bureau central d’admission, instituição no dizer do autor
perfeitamente organizada, na qual doze médicos e seis cirurgiões desempenhavam o serviço de avaliar a situação
clínica de cada doente e designar o hospital em que deveria ser internado. Em situação de urgência os doentes
não eram apresentados àquela instituição, iam directamente para o hospital. Consulte-se Idem, p. 21.

53
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

No segundo, descreve o Hospital Val-de-Grâce composto por três corpos de


edifícios com as enfermarias, um jardim botânico, uma livraria e um museu anató-
mico e patológico11. Do ponto de vista médico observou o método do barão Larrey
(ilho) quanto ao tratamento das fracturas das pernas e das lesões traumáticas pelas
aplicações frias do dr. Baudens12.
No terceiro, na visita ao hôtel dos invalidos, alude ao tratamento das oftalmias por
oclusão feitas pelo dr. Bonnafont13. O quarto é marcado pelos estudos metódicos e
aperfeiçoados da aplicação da electricidade14 ao uso médico pelo isiologista dr. Du-
chenne, que acompanhou nas experiências isiológicas e nas sessões terapêuticas15.
No quinto, visita o Hôtel-Dien (hospital de Paris), o lugar de destaque é atri-
buído às reuniões médicas onde se discutiam os actos cirúrgicos, a avaliação de
descobertas, se indicavam os erros e revezes da prática clínica e as questões de
diagnóstico. Ressalve-se o contacto pessoal com o professor e cirurgião Jobert que
lhe transmitiu particularidades da sua medicina e o convidou a assistir às cirurgias
juntamente com os seus internos. Acompanhou o professor Jobert nas observações
dos doentes e tomou apontamentos16. No âmbito do sexto capítulo, um olhar mui-
to particular mereceu a visita ao hospital das clínicas ou da Faculdade. Enaltece
o sistema de ensino daquela instituição e a forma perfeita como os doentes eram
tratados por médicos e alunos de medicina. Considera que a situação se deve aos
dois professores, o barão Paul Antoine du Dubois (1795-1871), no serviço de par-
tos, (uma autoridade na Obstetrícia) e o doutor Auguste Nélaton, (1807-1873)
na Cirurgia. Foi apresentado pelo dr. Monceaux, ao professor Paul Pierre Broca
(1824-1880), chefe e representante de uma nova geração de médicos e grande
especialista em aneurismas17. Neste serviço pôde acompanhá-lo e observar os seus
doentes, nomeadamente um caso de aneurisma varicoso18.

11 Veja-se Idem, n.º 28, p. 50.


12 Sobre o método seguido pelo barão Larrey na fractura das pernas e tratamento das lesões traumáticas pelas
aplicações frias consulte-se, Idem, Ibidem, p. 52.
13 “[...] Este meio consiste em tapar os olhos, pondo-os completamente ao abrigo do contacto da luz; e para isto
recorreu successivamente o sr. Bonnafont a collodio, ao tafetá adhesivo, e por ultimo ao esparadrapo, que lhe
pareceu o mais simples e seguro. Pelo methodo de occlusão diz elle ter alcançado os melhores resultados em
casos de conjuntivite aguda e de keratites mesmo ulceradas”. Veja-se Idem, n.º 30, p. 83.
14 “As suas bellas investigações sobre as propriedades physiologicas das diferentes especies de electricidade são de
um alcance apenas igualado pela importância das suas observações electro-therapeuticas. A grande descoberta de
Faraday deve ao medico francez um tão amplo desenvolvimento, e tudo quanto se refere á origem e emprego das
correntes é hoje, graças aos esforços e sagacidade do sr. Duchenne, conhecido com tanta precisão, que se póde
dizer uma sciencia nova”. Veja-se Idem, n.º 31, p. 98.
15 Idem, Ibidem, p. 98.
16 Idem, n.º 33, p. 132.
17 Idem, n.º 34, p. 148.
18 “No seu serviço pude vêr um aneurisma varicoso na lexura tratado pela compressão feita com uma chapa de
gutta-percha e ligadura circular. O tumor estava já reduzido, quando o vi, a um pequeno volume, e as pulsações
eram apenas perceptiveis”. Veja-se Idem, Ibidem, p. 148.

54
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

No capítulo sete, consagrado aos Hospitais da Caridade e da Piedade, assistiu, no


primeiro, a dissertações sobre doenças raras e cirurgias; no segundo a tratamentos
de doentes com tumores19. A propósito do oitavo capítulo, faz um reparo sobre
o Hospital Lariboissière que considerou um excelente hospital pela disposição e
espaço das enfermarias e do inovador sistema de aquecimento e ventilação. Do
contacto pessoal com o dr. Chaissaignac registou a sua clínica e assimilou algumas
ideias no que diz respeito ao tratamento dos tumores; do dr. Lariboissier, assistiu
às suas cirurgias de amputação pelo «methodo ovalar» e à aplicação de instrumentos
cirúrgicos20. No capítulo nove, na deslocação ao Hospital de S. Luiz, observou todos
os tipos de doenças: desde as mais benignas às mais «horrorosas» (Síilis, Lepra e
Tuberculosa). Assistiu a prelecções e a diagnósticos de doenças cutâneas e a uma
cirurgia do dr. Malgaigne na extirpação de um «tumor canceroso»21. O décimo
capítulo, é assinalado por um discurso de enaltecimento do hospício dos engeitados
e orfãos que considerou um dos mais bem administrados de Paris22. Num segundo
momento, dá notícia das diferentes casas de saúde que tratavam determinadas do-
enças: a instituição nacional dos surdos-mudos, hospitais asilo e casas de socorro23.
O penúltimo capítulo, sobre hospitais e casas de alienados e estudos de doenças
mentais, dá notícias dos dois grandes hospícios: o de Salpetrière e de Bicétre e a casa
Nacional de Chareton. O primeiro, destinado às mulheres, estava organizado em
secções separadas de acordo com as enfermidades e as necessidades do serviço24. O
segundo era dos melhores no seu género e representava para os homens o mesmo
que o primeiro para as mulheres. Nele, tudo se encontra devidamente organizado25.
O Chareton, também ele muito bem organizado com um espaço para mulheres e
outro para homens, tinha um excelente regime alimentar e era destinado aos mili-
tares de terra e de mar26.

19 Idem, n.º 36, p. 181.


20 Para mais informação consulte-se Idem, Ibidem, p. 195-197.
21 “[…] Quando eu entrei na enfermaria preparava-se o celebre pratico a operar uma pobre doente de um tumor
canceroso, ou que parecia tal, e que elle extirpou em um abrir e fechar d’olhos. Depois deixando aos internos
o cuidado de ligar as arterias e fazer o necessario curativo, o sr. Malgaigne pôz-se a mirar o produto morbido,
cortando-o e examinando-o attentamente […]”. Veja-se Idem, n.º 39, p. 226.
22 “mais bellos, bem dirigidos e optimamente administrados estabelecimentos de Paris. A instituição reclamada
pelas vistas philanthropicas e espirito philosophico de seculo, foi realisada em toda a sua extensão, em todo o seu
desenvolvimento, Não é simplesmente um asylo ou deposito de creanças repudiadas por mães desnaturadas, ou
a quem a morte roubou o carinho e amor de seus paes; é uma casa onde a caridade christã as recebe para lhes
robustecer o corpo, para lhes alimentar a intelligencia”. Veja-se Idem, n.º 40, p. 241.
23 Para mais informação sobre o assunto consulte-se Idem, pp. 243-245.
24 Idem, n.º 42, p. 274.
25 Para mais informação sobre a organização interna destes dois estabelecimentos de alienados consulte-se Idem,
pp. 274-275.
26 Consulte-se Idem, Ibidem, p. 275.

55
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Por im, o último capítulo, dedicado exclusivamente ao Jardim das Plantas e ao


Museu da História Natural. O Jardim das plantas era um dos mais esplêndidos e
úteis da Europa27. O Museu era composto por diversas galerias: Zoologia, Mine-
ralogia e Geologia, Botânica e Anatomia Comparada, encerrando cada uma delas
as suas preciosidades28. Demorou-se na galeria de mineralogia e geologia onde
tirou apontamentos. Na galeria de anatomia comparada destacou a colecção de
craniologia que mostrava exemplares de diversas raças humanas e tipos de todas as
nações29. O museu dependia do Ministério de Instrução Pública e tinha a função de
escola cientíica superior.
A 31 Agosto de 1878, a Gazeta dos Hospitaes Militares anunciava a Exposição
de Paris – Congresso de Medicina Militar30 do cirurgião-mor do Exército António
Manuel da Cunha Bellem (1823-1905).
A Medicina Militar Francesa, aproveitando a realização da Exposição Universal
no seu país, convidou os médicos dos exércitos de todas as nações presentes para,
em congresso, debaterem o exercício médico nos campos de batalha. A iniciativa
foi coroada de êxito e nos debates participaram a maior parte dos países europeus e
os Estados Unidos da América. Estiveram presentes iguras de primeira ilustração
da ciência médica31 pelo seu profundo saber e esclarecida prática nos cenários dos
campos de batalha. De acordo com o programa, teve o primeiro lugar no debate a
questão da organização dos maqueiros, o qual abriu com a exposição e descrição do
sistema adoptado em cada exército, ao que se seguiram as correspondentes consi-
derações teóricas e práticas.
Outro ponto de relevante signiicado foi o transporte de feridos, tendo os con-
gressistas considerado a maca como o elemento essencial de transporte de doen-
tes32. Note-se que as carruagens de transporte de feridos surgem neste congresso

27 Idem, n.º 44, p. 303.


28 Idem, Ibidem, p. 303.
29 Idem, Ibidem, p. 308.
30 BELLEM, António Manuel da Cunha, “Exposição de Paris – Congresso de Medicina Militar”, Gazeta dos
Hospitaes Militares, 2º Anno, n.º 40, 1878, pp. 184-187. Ainda sobre o assunto consulte-se, SARMENTO, José
Estêvão de Moraes, “Congresso do Serviço Medico dos Exercitos em Campanha”, Revista Militar, Tomo XXX,
n.º 16, 1878, pp. 499-507.
31 Numa das salas do Palais des Tuileries reuniram-se os médicos barão Larrey, Neudörfer, Legouest, Roth,
Esmarch, Longmor, Léon Le Fort, Evans, Gori, Trélat, Koslof, Després, Appia, Riant, Porter, Wittelshöfer, de
Varennes, Gassner, Van Diest, Kolf, Wywodzof, froehlich, Gueury, Cabello y Bruler, Mathieu, Brault, Troppo,
Peruy, Lecomte, Vallin, Gaujot, Rapp, Cunha Bellem, Ennes. Esta elite médica representava a Áustria, a Ingla-
terra, a Alemanha, a Prússia, a Baviera, a Saxónia, a Bélgica, os Países Baixos, a Espanha, a Suíça, a Rússia, os
Estados Unidos da América, a França e Portugal. BELLEM, António Manuel da Cunha, “Exposição de Paris
– Congresso de Medicina Militar”, Gazeta dos Hospitaes Militares, 2º Anno, n.º 40, 1878, p. 184.
32 No Congresso seriam recuperados os conceitos de cacolets e liteiras que deveriam ser empregues em situações
excepcionais. A esta posição argumentou o representante português que as macas de rodas tinham sido adopta-
das com excessivo entusiasmo e depois foram desprezadas, quando a medida correcta a ser adoptada teria sido
o meio-termo. BELLEM, António Manuel da Cunha, “Exposição de Paris – Congresso de Medicina Militar”,

56
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

com duas correntes de opinião completamente diferentes: o médico Roth susten-


tava a utilização das grandes carruagens porque num cenário de devastação o ideal
era transportar os feridos o mais rápido possível ao primeiro posto e socorros33; a
outra, a do barão Larrey e do médico Trélat, apoiados em experiências ponderavam
como era horrível colocar soldados feridos em macas suspensas, sobrepondo feridos
sobre feridos e defendiam a utilização das pequenas carruagens para transporte34.
Perante esta divergência de opiniões, não se chegou a tomar uma decisão dei-
nitiva, embora o consenso geral apontasse para a utilização da ambulância de qua-
tro macas puxada por dois cavalos35. Na segunda sessão, mereceu especial atenção
a hospitalização dos feridos considerados cirurgicamente como intransportáveis,
sendo o consenso dos congressistas de que o recurso deveria ser muito excepcional,
apenas restrito aos feridos moribundos36.
Ainda sobre o problema do transporte de feridos, ocupa lugar no debate a uti-
lização dos wagons das vias-férreas, suscitando-se a questão do que mais convinha
aos exércitos: carruagens especiais para aquele im (como a adquirida pela Sociedade
Francesa de Socorros) ou utilizar, em momento de necessidade, o material dos cami-
nhos-de-ferro. Aproveitaram, neste ponto, os médicos portugueses para apresentar
as suas propostas: a primeira que fosse adoptado o material das vias-férreas; a segun-
da que os governos interviessem junto das companhias de caminho-de-ferro para
que no futuro os wagons de mercadorias fossem construídos de modo a que com
facilidade pudessem ser convertidos em transporte de feridos37. Estas propostas fo-
ram perilhadas pelo médico e cirurgião Léon Clément Le Fort (1829-1893) que as
reuniu, lhes deu um último alinho nas redacções e depois foram aprovadas por una-
nimidade pelos congressistas para serem apresentadas aos respectivos governos38.
Na terceira sessão, os congressistas trataram das actividades que as sociedades
de socorros teriam de desempenhar e da forma como os serviços deveriam ser
organizados, tendo em atenção a sua relação com os serviços médicos militares. A
regulamentação do serviço médico das sociedades civis de socorros foi um ponto
muito importante que não teve solução, pois dependiam do serviço médico militar
de cada país. As diferentes posições39 apresentadas pelos congressistas demons-

Gazeta dos Hospitaes Militares, 2º Anno, n.º 40, 1878, p. 185.


33 Idem, Ibidem, p. 185.
34 Idem, Ibidem, p. 185.
35 Idem, Ibidem, p. 185.
36 Idem, Ibidem, p. 185.
37 Idem, Ibidem, p. 185.
38 Idem, Ibidem, p. 185.
39 Nessa discussão encontram-se posições como a do reputado cirurgião militar francês Venant Antonie Léon Le-
gouest (1820-1889) que não era favorável à intervenção das sociedades civis na organização médica nos campos

57
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

traram que o assunto ainda não estava devidamente amadurecido para ter uma
solução consentânea.
No quadro do Congresso, salientamos as insistentes e oportunas intervenções
dos congressistas portugueses António Manuel da Cunha Bellem e Guilherme
José Ennes através das interpelações e apresentação de propostas que seriam discu-
tidas e aprovadas por unanimidade pelos representantes dos países presentes para
depois serem adoptadas de forma universal. Eram momentos muito relevantes nos
quais se procurava encontrar soluções para os problemas de modo consensual para
que depois as medidas fossem deinitivas e uniformes.
Nas viagens de instrução das Corvetas Rainha de Portugal e Bartolomeu Dias,
ocorridas nos anos de 1888 e 1889, foram visitados alguns portos do Atlântico e
do Mediterrâneo, admiráveis do ponto de vista militar e industrial, pelos arsenais
que possuíam e as obras de arte que os protegiam. O relatório dessas visitas viria
à luz no ano seguinte nas páginas dos Annaes do Club Militar Naval40 sob o título
Arsenaes e Portos Militares do oicial de marinha J. A. Celestino Soares. De tudo
o que visitou e dos apontamentos que tomou relativamente ao assunto, apenas
daremos uma ideia dos portos e arsenais de Cherbourg e de Toulon41. Na costa
da Normandia, na baía formada pelas águas do Canal da Mancha que banham a
península de Cotentin, ixa-se a cidade de Cherbourg com o seu porto e arsenal
militar. Celestino Soares inicia a sua exposição com um olhar geral sobre a defesa
marítima e terrestre da cidade, do porto e do arsenal42. Como a organização desse
serviço público era igual em todos os portos e arsenais franceses, apresenta um
esboço da sua estrutura que lhe pareceu muito metódica e bem regulada43.
A Direcção de Construções Navaes francesa era semelhante à 2ª Direcção do Arse-
nal de Marinha e estava dotada das mesmas atribuições44. O Arsenal Cherbourg era
um enorme recinto de 97 hectares de superfície com duas grandes bacias, (docas
molhadas) com o nome de Carlos X e Napoleão III, ambas com profundidade para

de batalha. Riant, pelo contrário, como delegado da Sociedade Francesa de Socorros defendia calorosamente a
utilidade e proicuidade dos serviços prestados por tais instituições no campo de batalha. Os médicos Le Fort e
Després achavam que as sociedades se deveriam limitar à simples função de beneicência promovendo donativos
que depois enviariam para os serviços hospitalares a cargo dos médicos do exército. Outros ainda, onde se incluía
o barão Larrey aceitavam plenamente a coadjuvação do pessoal médico civil das sociedades de socorros a feridos
de batalhas, desde que subordinados à autoridade médica militar. Idem, pp. 186-187.
40 SOARES, J. A. Celestino, “Arsenaes e Portos Militares” Annaes do Club Militar Naval, Anno XX, 1890, pp. 16-
26; pp. 39-42; pp. 95-100; pp. 142-148; pp. 205-210; pp. 249-253.
41 Cada departamento tinha apenas um porto militar e nele um arsenal marítimo que estava dividido em quatro
direcções: movimento do porto; construções navais; subsistências; artilharia.
42 Para mais informação sobre o sistema de defesa da cidade e do seu porto, nomedamente a posição dos fortes e da
artilhria bem como da articulação de forças navais consulte-se Idem, Ibidem, pp. 95-100.
43 Para um estudo rápido sobre a organização dos portos e arsenais franceses, consulte-se Idem, Ibidem, pp. 20-23.
44 Idem, p. 21.

58
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

aí lutuarem os maiores navios em todas as marés. Além daquelas, existiam outras


duas de menor dimensão e profundidade que comunicavam com o mar. Com a ba-
cia designada de Napoleão III comunicavam as docas secas, (diques de reparação)
e as carreiras de construção. No interior da fortiicação do arsenal encontravam-se
todas as oicinas, armazéns e a fundição45. Apresenta a localização do porto de
Toulon46 na costa da antiga Provença e ortografa de forma cuidadosa o sistema
de defesa com a localização dos fortes e baterias47. De Leste para Oeste existiam
quatro grandes docas abertas na frente do arsenal e da cidade: a doca velha; a nova,
também designada de Vouban; a de Castigneau e a de Missiessy48.
Na parte do arsenal chamado de Vauban, estavam localizadas as direcções das
construções navais, dos movimentos do porto, dos trabalhos hidráulicos, a cordoa-
ria, as oicinas de latoeiros e de pintores, de zincagem e de tanoeiros e uma escola
de operários e a direcção de artilharia. Nesta, observou uma extensa oicina com
grandes tornos que transformavam as peças de grande calibre e uma outra para o
fabrico de projécteis e ajustamento das cintas de cobre.
Em Castigneau49 visitou a oicina de caldeiras, um amplo paralelogramo com
ligação ao cais, onde observou todas as máquinas e as tarefas necessárias ao fabrico
completo das caldeiras. Logo a seguir encontrava-se a fundição com oito grandes
fornos e enormes guindastes que levantavam dezenas de toneladas. Havia grandes
fornos capazes de fundir quarenta toneladas de ferro, outros dois de menores di-
mensões e um conjunto para pequenas fundições de cobre.
No edifício seguinte estava instalada a oicina de ajustadores e de moldes com
duas caixas de água alimentadas por bombas a vapor e noutra as forjas e martelos-
pilões. Depois da descrição rápida e sucinta do Arsenal de Toulon que se estendia
desde a muralha da doca velha até para além de Missieny, relectiu sobre o Mou-

45 As oicinas eram amplas, mas não apresentavam maquinaria que as distinguissem das visitadas noutros arsenais,
como as de Toulon. Celestino Soares considerou “A direcção dos trabalhos hydraulicos, a das construcções nava-
es, bem como as oicinas de caldeireiros, serralheiros, carpinteiros, os telheiros de mastros e embarcações […]
muito inferior ás nossas […]”. Nesta visita tivera a oportunidade de visitar o Alger, cruzador de aço que tinha
acabado de ser lançado ao mar. Idem, p. 26.
46 O arsenal de Toulon estende-se ao sul da cidade, excepto a parte designada de Mourillon construída numa
península que correspondia à parte mais moderna do arsenal.
47 Para mais informação sobre a forma como estavam dispostos os fortes e a colocação das baterias consulte-se
Idem, Ibidem, pp. 95-100.
48 A doca velha embora comunique directamente com a seguinte não era uma dependência directa do arsenal. Nela
encostavam navios mercantes, os vapores de carreira e todo o tipo de embarcações particulares. A doca nova,
também chamada de Vouban estava na dependência exclusiva do arsenal e junto dos cais estavam direcções de
construções navais e alguns diques de reparação e planos inclinados. A doca de Castigneau ocupa uma área de
17 hectares oicinas de máquinas, as clareiras, a fundição, e os armazéns logísticos. A doca de Missiessy com 23
hectares de área compreende os diques secos que podem reparar os maiores navios e são obras importantíssimas
do ponto de vista dos acabamentos e dimensões.
49 “o que ha de mais importante e digno de ser visto […], é, sem duvida, a secção das machinas, cujas oicinas são
perfeitamente montadas em edifício apropriado e notaveis pela vastidão, não havendo ahi cousa alguma acanha-
da, e sobrando por toda a parte o ar e a luz”Veja-se, Idem, p. 207.

59
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

rillon situado a sueste da cidade. Nas suas modernas carreiras assentavam as quilhas
dos maiores couraçados e nas oicinas fascinou-se com as máquinas de trabalhar
o ferro movidas hidraulicamente, “[...]sem duvida, a parte mais interessante, não
só do Mourillon, mas de todo o arsenal”50. Uma máquina de vapor instalada fora
da oicina, comprimia a água que depois através de uma canalização conveniente-
mente instalada a distribuía pelas diferentes máquinas fazendo-as movimentar51.
Por im faz um balanço da sua visita, considerando a convivência com os oiciais
franceses muito proveitosa, pois no que respeita à marinha, falavam com franque-
za e não disfarçavam as imperfeições e erros da sua organização tanto do pessoal
como do material. Essa convivência possibilitou aperceberem-se de que nem tudo
era bom, havia coisas que teriam de ser melhoradas. Os oiciais da marinha fran-
cesa eram bem instruídos e conheciam perfeitamente o material com que tinham
de trabalhar.
No âmbito da indústria do ferro, em 1894, a Revista do Exercito e da Armada
divulgou Os ateliers da Sociedade Cockerill em Searing52, do engenheiro militar Ro-
dolpho Ferreira Dias Guimarães como resultado da viagem cientíica realizada à
Bélgica e à França. Os ateliers da Sociedade Cockerill eram dos maiores da Europa
na indústria do ferro e encontravam-se estabelecidos na cidade de Seraing, Bélgica,
nas margens do rio Mosa. Eram formados por onze secções, além dos serviços de
transporte terrestres, marítimos e de administração, constituindo quatro grandes
grupos: minas, metalurgia, ateliers de construção industrial e serviço de armamento.
No primeiro grupo, apresenta as riquezas mineiras da Sociedade (os jazigos e mi-
nério e as minas de hulha) e os valores em toneladas do consumo dos fornos onde
se fabricava o aço e ferro53.
Continuando o plano de viagem, no segundo grupo, visita a metalúrgica, inferior
às célebres fábricas de Creusot e de Essen, mas não menos importantes. É constitu-
ída por quatro secções, altos-fornos, oicinas de produção de aço, ateliers de trabalho
em ferro e fundição, forjas e martelagem. Os cinco altos-fornos a laborar produziam

50 Veja-se Idem, p. 209.


51 Eram “apparelhos possantes que cortam, furam e trabalham mesmo a frio, grossas chapas de ferro, fazendo
silenciosamente este trabalho, sem que haja n’uma tão vasta oicina, e onde funcionam tantas machinas ao seu
mesmo tempo, aquele ruido caracteristico, que existe sempre quando é o vapor que directamente as faz mover.
Não temos de memoria, e mesmo que tivessemos não nos seria facil descrever, todas as machinas que ahi vimos
funccionar, porque ignoramos pelo menos em grande parte a indispensavel technologia, mas podemos dizer
que em nenhum outro arsenal encontrámos uma oicina que mais nos attrahisse a attenção; [...] esta parte do
Mourillon como sendo a mais interessante do seu arsenal, e a que oferecia mais novidade”Veja-se Idem, p. 209.
52 GUIMARãES, Rodolpho Ferreira Dias, “Os ateliers da Sociedade Cockerill em Searing”, Revista do Exercito e da
Armada, n.º 18, 1894, pp. 233-240.
53 O consumo diário de carvão da fábrica ascendia a 1.400 toneladas. O fabrico do coke fazia-se em cinquenta
fornos, sistema Coppé junto à mina Caroline e noutras duas instalações de fornos Appold, sendo a primeira de
270 fornos em Colard e a segunda de 16 em Marie. Veja-se Idem, p. 235.

60
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

o ferro com o minério da Bélgica e do Luxemburgo e os aços com os minérios


provenientes de Espanha e da Argélia54. A fundição Martin-Siemens, em Seraing,
tinha três fornos a funcionar que produziam barras de 45 toneladas de aço destina-
das ao fabrico de canhões e rodas de todos os diâmetros para wagons e locomotivas.
Faziam parte da grande fundição diversos ateliers para a preparação das areias que
entravam na formação dos moldes e uma divisão de forjas55 e martelagens com os
fornos e diversos aparelhos de levantamento de peças de todos os calibres.
Num outro registo, a construção industrial era a que maior área ocupava: com-
preendia os ateliers de fabrico de rodas para wagons e locomotivas, projécteis para
a artilharia, oicinas de caldeireiro, serviços de construção de transportes, de ilumi-
nação eléctrica e instalações de construções navais56. No que toca ao último grupo,
o serviço de armamento, ocupa lugar no seu registo a construção de canhoneiras, as
máquinas para couraçados, as peças de artilharia, os canhões de tiro rápido e muito
outro material de guerra para alguns dos exércitos europeus57.
Em 1903, a Revista de Engenharia Militar, publicou A Exposição de Düsseldorf em
190258 realizada naquela cidade sobre a sua lorescente indústria das províncias do
Reno e de Vestefália. A Exposição foi reservada unicamente à indústria e comércio
e ocupava, na margem direita do rio Reno, uma área de 50 hectares. Dominavam-
na o Palácio da Indústria e a Galeria das Máquinas. Não obstante as suas enor-
mes dimensões, foram construídos mais três grandes pavilhões onde se expuseram
instrumentos cientíicos, eléctricos, industriais, forjas, minas, metalurgia, meios de
transporte, produtos químicos, sendo considerada como a mais importante e inte-
ressante de toda a Exposição59.
A Galeria das Máquinas, outra vasta construção, albergava todos os tipos de
máquinas e aparelhos em funcionamento o que fascinava todos os que lá entras-
sem. Na produção da luz e distribuição de força motriz observavam-se vinte e oito
máquinas motoras a vapor e a gás que moviam dínamos na força de 12.895 cavalos

54 Os quatros fornos produziam por dia uma média de 90 toneladas, enquanto o quinto de construção moderna
produzia 140 toneladas.
55 As pequenas forjas estavam apetrechadas de pequenas máquinas, ventiladores, diversos martelos-pilões e muito
outro maquinismo destinado ao fabrico de pequenas peças.
56 Idem, p. 237.
57 Exemplo disso é o vasto conjunto de material construído do qual destacamos no material bélico: as máquinas
de 160 e 240 cavalos para a marinha de guerra holandesa; as canhoneiras blindadas para o exército russo; as
máquinas para o couraçado russo Tchesma da marinha imperial russa; os canhões de tiro rápido para o exército
belga. Do material para ins civis anotamos: as máquinas a vapor; as locomotivas e rails para caminhos-de-ferro;
os transatlânticos como o Leopoldo I, duque de Brabante; o colossal material para abertura do túnel de Monte
Cenis; o material perfurante utilizado no istmo do Panamá; as turbinas hidráulicas; os motores a vapor e as
locomotivas de todo o tipo para caminhos-de-ferro. Veja-se Idem, pp. 239-240.
58 C.S.M., “A Exposição de Düsseldorf em 1902”, Revista de Engenharia Militar, Tomo 8, n.º 8, 1903, pp. 184-189.
59 Idem, Ibidem, p. 185.

61
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

vapor60. Na criação de vapor presenciavam-se dezasseis geradores a doze atmos-


feras com 3.550m2 de superfície de aquecimento. A Companhia Helios de Colónia
obsequiou os visitantes com o dínamo mais poderoso de 2.000 cavalos vapor com
uma capacidade para acender 70.000 lâmpadas de incandescência. Podia produzir
simultaneamente 2.000kw de corrente monofásica e 1.500kw de corrente polifá-
sica, um verdadeiro progresso cientíico para a época61. No que diz respeito a má-
quinas a vapor, existiam ainda maiores, pois as forjas Gutchofnung-hütte expunham
uma de 3.000 cavalos a 94 revoluções, movimentando directamente um dínamo
Lahmayer de 5.000 cavalos e 200 kw62. Além do Palácio da Indústria e da Galeria
das Máquinas, havia outros que aos olhos dos visitantes eram, sem dúvida, dignos
de menção como o pavilhão Krupp63 que expunha os excelentes canhões de grande
calibre para a fortiicação de costa e navios, peças de obuses de campanha e placas
de blindagem da fábrica de Essen64. Ostentava também a Casa Krupp uma enorme
variedade de produtos avultando aos olhos dos visitantes um eixo feito de uma só
peça com 45m de comprimento com um peso de 50 toneladas e um outro para o
transatlântico Kaiser Willelm II com 71 metros de comprimento e 226.200kg. Ain-
da na Exposição podia ser admirado o excelente material de linhas férreas, exposto
em grande quantidade e uma colecção de modelos de todos os navios construídos
nos estaleiros da Germania.
A técnica de construção em betão também estava presente na grande instalação
da Sociedade Alemã de Betão. No dizer do autor:
“monumental edifício construido pelas casas que compõem aquella sociedade
conjunctamente com as fabricas allemãs de cimento Portland. Esta construcção
cobrindo uma area de 3.500m2 facilmente se reconhecia por duas colunas de
beton de 30m de altura, bem como por uma ponte de um só arco vencendo 30m
de vão”65.

60 Idem, Ibidem, p. 185.


61 Idem, Ibidem, p. 185.
62 Idem, Ibidem, p. 185.
63 Krupp não expunha apenas produtos da sua fábrica de Essen, mas ainda de outros seus estabelecimentos fabris:
a Fundição de Annen; o Grusonwerk, em Buckau; Germaniawerft, em Kiel; os altos-fornos de Rheinhausen,
Duisbourg, Neuwied e Engers; as 3 minas de hulha de Hannover, Hannibal e Salzer & Neuack; um grande
número de minas de ferro na Alemanha e em Bilbau; um comptoir de armamento de navios em Rotterdam e da
carreira de tiro em Meppen. A 1 de Abril de 1902, o número de mulheres e crianças ao serviço dos estabeleci-
mentos Krupp era de 147.645. Idem, p. 186.
64 No material de artilharia de campanha estavam representadas alguns bocas de fogo de 7,5cm c/30 modelos de
1901 e 1902, obuses 11cm c/12 com recuo sobre o reparo e de 10cm e c/14 ou c/13 com ou sem recuo sobre o re-
paro como as peças de campanha. Todo este material estava pronto a ser montado e utilizado com todos os seus
acessórios. A fábrica de Essen estava muito representada através das placas blindadas campound experimentadas
ao tiro, placas de aço nickel temperado ou não em óleo. Era para admirara a maior placa de blindagem que até ai
se tinha fabricado, o seu peso era de 106 toneladas com 13m, 15 de comprimento por 3m,40 de largo e 0,m30 de
espessura.
65 Idem, p. 189.

62
A IMPRENSA CIENTÍFICA MILITAR (1851-1918): TROCAS E CIRCULAÇÃO DE SABERES ENTRE PORTUGAL E A EUROPA

Era difícil a qualquer visitante enumerar os pavilhões de grandes dimensões


e cuidada construção, onde as novidades da ciência e da técnica se arrumavam e
evidenciavam a importância da indústria alemã.
As viagens cientíicas, os congressos e as exposições, revelam-nos momentos por
excelência de aquisição, troca e actualização de conhecimentos. Destinavam-se a
captar os maiores vultos da Ciência e da Técnica europeia o que trazia um enorme
contributo e valorização aos encontros. Neles participava uma elite militar e civil
das diversas áreas da Ciência em plena comunhão de esforços, cujo objectivo era
conseguirem normas gerais que levassem à uniformização de procedimentos entre
as nações do mundo.

CONCLUSÃO

O tema Imprensa Cientíica Militar (1851-1918): Trocas e difusão de saberes


técnico-cientíicos entre Portugal e a Europa mostra-nos o grau de novidade en-
quanto área de investigação e relexão histórica e o papel de difusão cientíica da
imprensa militar desde a Primeira Regeneração até ao inal da 1ª Grande Guerra
Mundial.
O estudo permitiu-nos percepcionar uma diversidade de correntes de pensa-
mento e de actuações ligadas aos diferentes domínios da Ciência. A fonte do pen-
samento cientíico e técnico destes militares está relacionada com a atenção presta-
da à evolução do fenómeno cientíico além fronteiras a partir de 1852 e acentuado
a partir das décadas de sessenta e setenta com o aparecimento do Positivismo.
Através de uma multiplicidade de contactos com a Ciência europeia, alargaram a
esfera do seu conhecimento em áreas tão importantes como a Engenharia, a Me-
dicina, a Mecânica e a Química e procuraram resolver através de uma linguagem
técnica e cientíica os problemas que se colocavam ao Exército e ao País.

63
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

BIBLIOGRAFIA

Fontes
BELLEM, António Manuel da Cunha, “Exposição de Paris – Congresso de Medicina Militar”, Gazeta
dos Hospitaes Militares, 2º Anno, n.º 40, 1878, pp. 184-187.
C.S.M., “A Exposição de Düsseldorf em 1902”, Revista de Engenharia Militar, Tomo 8, n.º 8, 1903, pp.
184-189.
GUIMARãES, Rodolpho Ferreira Dias, “Os ateliers da Sociedade Cockerill em Searing”, Revista do
Exercito e da Armada, n.º 18, 1894, pp. 233-240.
MENDES, João Clemente, “Impressões de uma Viagem Medica”, O Escholiaste Medico, 13.º Anno, 3.ª
Serie, 1856, n.º 26, pp. 17-21; n.º 28, pp. 49-53; n.º 30, pp. 81-84; n.º 31, pp. 97-100; n.º 33, pp. 129-133;
n.º 34, pp. 145-150, n.º 36, pp. 177-182; n.º 37, pp. 193-197; n.º 39, pp. 225-229; n.º 40, pp. 241-245; n.º
42, pp. 273-276; n.º 44, pp. 304-309.
SARMENTO, José Estêvão de Moraes, “Congresso do Serviço Medico dos Exercitos em Campanha”,
Revista Militar, Tomo XXX, n.º 16, 1878, pp. 499-507.
SOARES, J. A. Celestino, “Arsenaes e Portos Militare” Annaes do Club Militar Naval, Anno XX, 1890,
pp. 16-26; pp. 39-42; pp. 95-100; pp. 142-148; pp. 205-210; pp. 249-253.

Bibliografia
BAPTISTA António M., A Primeira idade da Ciência. A Ciência no Século XIX e tempo de D. Carlos I,
(1863-1908), Lisboa, Gradiva, 1996.
BARREIRA, Cecília Barreira, Onde está a felicidade? O Conceito de Progresso Técnico no século XIX, Lisboa
Universitária editora, 1997.
NUNES, Maria de Fátima, (2001), “Leitura e Leitores”, in Imprensa Periódica Cientíica (1772-1852),
Leituras de Sciencia Agrícola em Portugal, Lisboa, pp. 5-25.
REIS, Carlos Vieira, (2004), História da Medicina Militar Portuguesa, vol. II, Lisboa, Estado-maior do
Exército, 2004.

64
Laboratórios universitários – espaços de ciência
na transição da Monarquia para a República
Ângela Salgueiro
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

À data da implantação da República, os estabelecimentos de ensino superior


portugueses possuíam já alguns organismos que procuravam introduzir práticas
cientíicas modernas, visíveis, sobretudo, no estímulo ao ensino experimental. Não
obstante, a realidade destes gabinetes, laboratórios e museus universitários era
ainda caracterizada por uma grande escassez de recursos humanos e materiais e
por alguma incompreensão sobre as potencialidades do trabalho laboratorial, quer
no âmbito especíico da investigação pura, quer no domínio mais lato da investi-
gação aplicada, apesar do esforço de diversos professores e intelectuais que, desde
o último terço do século XIX, procuraram sensibilizar as autoridades políticas e
administrativas para as vantagens da educação cientíica e para a valorização do
estatuto da Ciência. Estes não eram alheios à crescente discussão interna sobre
a missão e o papel da Universidade, nem à inluência dos ideais do Republica-
nismo e da propaganda republicana, nos quais a Educação desempenhava um
papel central na crença do progresso material e mental de Portugal. Assim, em
1894, o professor Júlio Augusto Henriques, na oração de sapiência que pronun-
ciou na Universidade de Coimbra, nas festividades de abertura do ano lectivo de
1894/1895, defendeu publicamente a necessidade de introdução de uma educação
de cariz cientíico no País:
“[…] Para que o ensino seja proveitoso torna-se absolutamente necessário que
possa trabalhar em laboratórios convenientemente organizados. Trabalhando
aí sob a direcção do professor poderão os alunos veriicar o que ouvirem ou
lerem; convencer-se-ão pela observação própria. Para vencer diiculdades de
ocasião terão de pensar, tentar diversos caminhos e obterão, como resultado
inal, amor pela ciência e conhecimentos positivos que diicilmente esquecerão.
O trabalho no laboratório aproveita também ao professor que necessita dum
trabalho contínuo; […] É ainda no laboratório que podem desenvolver-se as

65
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

salutares relações entre mestres e discípulos, destes entre si, abrindo a discus-
são, fonte sempre de luz. […]”1.
No ano de 1904 seria a vez de Bernardino Machado se manifestar em defesa do
progresso cientíico, enquanto instância essencial para a permanência da soberania
nacional:
“[…] Ser instruído é ser livre. Uma nação sem originalidade, que nada cria,
inventa e descobre, e apenas vive de empréstimos materiais ou espirituais, se,
pelo prestígio do nome herdado, ainda conserva a sua autonomia, não está longe
de perdê-la.”2.
Também Sobral Cid se referiu a esta problemática, defendendo as vantagens
do modelo humboldtiano de universidade e a necessidade de subordinar o ensino
português aos princípios da autonomia universitária, da liberdade de ensino e da
promoção da investigação cientíica:
“A verdade é que a Universidade e Escolas Superiores, tal como foram conce-
bidas e organizadas pelo Estado, sem independência corporativa e para ins
meramente proissionais não têm podido desempenhar a função mais elevada e
nobre do ensino: criar e fazer progredir os conhecimentos humanos e educar as
novas gerações no espírito da investigação cientíica.”3
Seria apenas com a I República que se conseguiria dar resposta a muitas destas
aspirações e propostas, aproveitando a conjuntura revolucionária para fazer aprovar
um conjunto de reformas que teriam efeitos estruturantes no ensino superior por-
tuguês. O desenvolvimento cientíico foi então assumido como um dos ins princi-
pais das Universidades e Faculdades, aparecendo, em maior ou menor medida, nos
diplomas regulamentares e orgânicos promulgados pelo Ministério do Interior, a
cargo de António José de Almeida. O primeiro diploma publicado pelo Governo
Provisório que visava directamente a reestruturação do ensino superior foi o de-
creto de 22 de Fevereiro de 1911, no qual se reformavam os estudos médicos, se
criavam três Faculdades de Medicina, com um estatuto similar, e se airmava a ne-
cessidade de acabar com “o velho vício da teorização exagerada e descuramento da
prática proissional”4. Deiniu-se o ensino prático, numa óptica alargada, enquanto
prática que devia decorrer na Universidade, no hospital e nos laboratórios:

1 HENRIQUES, Júlio Augusto, “Oração de Sapiencia recitada na sala dos Actos Grandes da Universidade de
Coimbra no dia 16 de Outubro de 1894” in Annuario da Universidade de Coimbra. Anno lectivo de 1894-1895,
Imprensa da Universidade, Coimbra,1895, pp. XVII-XVIII.
2 MACHADO, Bernardino, “A Universidade e a Nação” in Annuario da Universidade de Coimbra. Anno lectivo de
1904-1905, Imprensa da Universidade, Coimbra, MDCCCCIV, p. XXXII.
3 CID, José de Matos Sobral, “Oração de Sapientia” in Annuario da Universidade de Coimbra. Anno lectivo de 1907-
1908, Imprensa da Universidade, Coimbra, MDCCCCVII, p. LIV.
4 Decreto de 22 de Fevereiro de 1911. Dário do Governo, n.º 45, 24 de Fevereiro de 1911, p. 742.

66
LABORATÓRIOS UNIVERSITÁRIOS – ESPAÇOS DE CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

“Por ensino prático entende-se, para os efeitos da reforma, o que o aluno realiza
nos Laboratórios e Clínicas, em contacto directo com os factos. Trata-se de fa-
cultar ao aluno os meios próprios de investigação, de o adestrar no seu manejo,
de o familiarizar com o seu emprego até que se habilite a servir-se de todos os
meios alcançáveis na descoberta da verdade.”5
Também a reforma dos estudos jurídicos, decretada em 18 de Abril do mesmo
ano, se deteve nesta problemática, considerando essencial a aposta num ensino ba-
seado na lição-diálogo e o desenvolvimento de trabalhos de investigação no âmbito
especíico do Direito, mediante a organização de um Instituto Jurídico, como cen-
tro de trabalho comum para os alunos e os professores6. Não obstante, seria apenas
com a aprovação da Constituição Universitária, em 19 do mesmo mês, que este ob-
jectivo apareceria de forma evidente e destacada nas atribuições das Universidades
da República. Este diploma reconheceu como os grandes ins dos estabelecimentos
universitários portugueses:
“a) Fazer progredir a ciência, pelo trabalho dos seus mestres, e iniciar um escol
de estudantes – nos métodos da descoberta e da invenção cientíica;
b) Ministrar o ensino geral das ciências e das suas aplicações, […]
c) Promover o estudo metódico dos problemas nacionais e difundir a alta cultu-
ra na massa da Nação pelos métodos de extensão universitária.”7
Estes diplomas legislativos, publicados nos primeiros meses de 1911, desempe-
nharam um papel fundamental na regulamentação das restantes áreas cientíicas,
que acabaram por seguir, genericamente, as grandes linhas destes documentos. As-
sim, quando se criaram as Faculdades de Letras em Coimbra e Lisboa, estipulou-
se, desde logo, a organização de estabelecimentos de trabalho cientíico e apoio ao
ensino, nomeadamente através de um Instituto de Estudos Históricos, organizado
em três secções – Filologia, História e Filosoia -, um Instituto de Estudos Geo-
gráicos e um Laboratório de Psicologia8.
A assunção do desenvolvimento cientíico como um dos principais objectivos
do ensino superior implicou a reestruturação dos antigos gabinetes, laboratórios e
museus de apoio ao ensino, bem como a criação de novos estabelecimentos para
dar resposta às crescentes exigências curriculares, resultantes da ampliação dos pro-
gramas escolares e da especialização disciplinar.

5 Ibidem.
6 Decreto de 18 de Abril de 1911. Diário do Governo, n.º 91, 20 de Abril de 1911, p. 1608.
7 Decreto de 19 de Abril de 1911. Diário do Governo, n.º 93, 22 de Abril de 1911, p. 1638.
8 Decreto de 9 de Maio de 1911. Diário do Governo, n.º 109, 11 de Maio de 1911, p. 1906.

67
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

TABELA 1 - ESTABELECIMENTOS ANEXOS À UNIVERSIDADE DE COIMBRA EM 1910 E 1915

1910 1915

Faculdade de Medicina Faculdade de Medicina


Gabinete de Anatomia Normal Lab. de Anatomia descritiva e topográfica
Gab. de Histologia e Fisiologia Experimental Laboratório de Histologia e Embriologia
Gabinete de Anatomia Patológica Laboratório de Fisiologia
Gabinete de Medicina Operatória Instituto de Anatomia Patológica
Lab. de Microbiologia e Química Biológica Laboratório de Farmacologia
Laboratório de Análises Clínicas Instituto de Medicina Legal
Gabinete de Radioscopia e Radiografia Laboratório de Bacteriologia
Museu e Laboratório de Higiene Laboratório de Análises Clínicas
Laboratório de Radioscopia,
Radiografia e Electroterapia
Laboratório de Técnica Cirúrgica
Instituto de Higiene

Faculdade de Matemática Faculdade de Ciências


Observatório Astronómico Observatório Astronómico
Laboratório Químico
Faculdade de Filosofia Laboratório de Física
Laboratório Químico Jardim, Museu e Laboratório Botânicos
Gabinete e Laboratório de Física Museu e laboratório Zoológicos
Jardim Botânico Museu e laboratório Mineralógicos
Museu de História Natural Museu e laboratório Geológicos
Observatório Meteorológico e Magnético Museu e Laboratório Antropológico
Observatório Meteorológico e Magnético

Faculdade de Letras
Laboratório de Psicologia Experimental

Faculdade de Direito
Instituto Jurídico
Fonte: Anuário da Universidade de Coimbra (anos vários).

Este foi um processo complexo pela escassez das verbas para aquisição de mate-
rial e bibliograia e pela exiguidade do espaço disponível na maioria dos estabeleci-
mentos de ensino, com excepção talvez da nova Faculdade de Medicina de Lisboa,
que se transferiu para o edifício inaugurado por ocasião do Congresso de Medicina
de 1906. Implicou ainda a expansão do professorado e do pessoal técnico, permi-
tindo o ingresso no corpo docente universitário de alguns jovens investigadores,

68
LABORATÓRIOS UNIVERSITÁRIOS – ESPAÇOS DE CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

com uma formação cientíica moderna. Foi o caso, em Lisboa, de José Leite de
Vasconcelos, que integrou o corpo docente da Faculdade de Letras, e de Celestino
da Costa, Azevedo Neves e Sílvio Rebelo, na Faculdade de Medicina9. Para além
do evidente signiicado institucional, esta opção implicou também a constituição
de uma nova sociabilidade cientíica no País e uma maior interdependência com a
realidade económica e social. O laboratório universitário apareceu, nesta fase, como
um espaço de frequência mais democratizada, no qual conviviam e trabalhavam
professores, investigadores e alunos. Airmou-se ainda como um organismo mais
abrangente, presente em áreas cientíicas tradicionais, como a das ciências biomé-
dicas e a das ciências naturais, e em domínios novos, nomeadamente das ciências
humanas e sociais e das ciências jurídicas.
O espaço laboratorial passou a assumir-se como um espaço eminentemente
universitário, o que se traduziu num processo de concentração de diversos orga-
nismos autónomos sob a tutela dos estabelecimentos de ensino superior. Assim,
logo em Novembro de 1910, o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, um dos
mais modernos estabelecimentos cientíicos coevos, passaria para a tutela da Es-
cola Médico-Cirúrgica, depois Faculdade de Medicina de Lisboa10, o que impli-
cou a transferência da administração dos serviços de hospitalização do Instituto
para os Hospitais Civis de Lisboa; a entrada do seu director, Aníbal Bettencourt,
no corpo docente da Faculdade; e a elaboração de um novo regulamento privativo,
que deinia como atribuições principais: o ensino da Microbiologia na Faculdade
de Medicina; o estudo das doenças infecciosas e parasitárias do homem e animais,
bem como a sua proilaxia; a realização de análises bacteriológicas; a preparação
de soros e vacinas e a iscalização de produtos importados do mesmo género; o
tratamento anti-rábico; e o estudo da peste murina11. Em Abril de 1911 aconte-
ceria o mesmo com os Institutos de Oftalmologia e Higiene de Lisboa12. No caso
do Instituto Central de Higiene, a nomeação para o cargo de director passava a
recair no professor da cadeira da Higiene e não no Inspector-geral dos Serviços
Sanitários, como acontecia anteriormente, o que na prática permitia que Ricardo
Jorge continuasse na direcção da instituição. A integração pedagógica na Univer-
sidade signiicou também uma ampliação dos serviços, quer ao nível das exigên-
cias cientíicas e educativas, quer no domínio da proilaxia e salubridade públicas,
no controlo e estudo de surtos epidémicos e na análise laboratorial de produtos

9 Anuário da Universidade de Lisboa. Ano lectivo de 1914-1915, Imprensa Lucas, Lisboa, 1915, pp. 15-35.
10 Decreto com força de lei de 12 de Novembro de 1910. Diário do Governo, n.º 34, 14 de Novembro de 1910, p. 898.
11 Artigo 1.º do decreto de 6 de Julho de 1911. Diário do Governo, n.º 156, 7 de Julho de 1911, p. 2838.
12 Por decreto de 6 de Abril. Diário do Governo, n.º 81, 8 de Abril de 1911, p. 1478.

69
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

consumidos e produzidos no País13. Em 1913, um movimento semelhante seria


levado a cabo no Laboratório de Higiene do Porto, no Museu Etnológico Por-
tuguês e no Museu Machado de Castro14, que passariam para a dependência das
Faculdades de Medicina do Porto, de Letras de Lisboa e de Letras de Coimbra
respectivamente. Desta forma, a actividade destas instituições articular-se-ia in-
timamente com os currículos universitários, apoiando e auxiliando a formação de
investigadores e alunos.
Para além das transformações institucionais proporcionadas pela transição para
o regime republicano, veriicou-se também um processo de airmação de uma elite
cientíica internacionalizada, familiarizada com o espaço laboratorial, com as suas
sociabilidades e os seus rituais, que discutiu activamente as reformas levadas a efei-
to pelos governos republicanos e começou a pensar ciência nacional e a organiza-
ção cientíica do País. Fizeram parte deste grupo homens como Augusto Celestino
da Costa, director do Laboratório de Histologia da Faculdade de Medicina de Lis-
boa, que, por diversas vezes, chamou a atenção para a complexidade do problema
em análise, que não podia ser resolvido apenas por decreto mas exigia uma reforma
profunda do entendimento sobre o papel da Ciência, através de um investimento
elevado, que não garantiria um retorno imediato:
“[…] A verdadeira reforma tem de ser orientada sobre bases inteiramente novas,
não sobre simples melhoramentos de leis que no fundo conservam as coisas
como estão. A opinião pública tem de ser chamada a contribuir para a reforma
do ensino superior. A Nação deve compreender a importância primacial que
esse ensino pode ter no seu desenvolvimento. […] O problema do ensino supe-
rior deve ser uma questão nacional visto que interessa à solução da maior parte
dos problemas nacionais. […]”15.
Alfredo Bensaúde, director do Instituto Superior Técnico, centrou-se, por sua
vez, nas relações entre o ensino experimental e cientíico e o tecido económico na-
cional, considerando que a missão do ensino superior não se esgotava na formação
de técnicos, tendo também uma responsabilidade social, presente na necessidade
de resolução dos principais problemas produtivos do país, sobretudo no domínio
industrial:

13 Decreto de 26 de Maio de 1911. Diário do Governo, n.º 124, 29 de Maio de 1911, pp. 2250-2251.
14 De acordo com os decretos 5 de Abril (Diário do Governo, n.º 81, 8 de Abril de 1913, p.1271), de 16 de Agosto
(Diário do Governo, n.º 196, 22 de Agosto de 1913, p. 3139) e pelo decreto n.º 124 (Diário do Governo, n.º 210, 8
de Setembro de 1913, p. 3402).
15 COSTA, A. Celestino da, A Universidade Portuguesa e o problema da sua reforma. Conferências feitas em 19 e 22 de
Abril de 1918 a convite da Federação Académica de Lisboa, Tip. da Renascença Portuguesa, Porto, s.d., p. 9.

70
LABORATÓRIOS UNIVERSITÁRIOS – ESPAÇOS DE CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

Gráfico I – Reuniões da Associação dos Anatomistas nas quais participaram investigadores portugueses

“A colaboração do Instituto Superior Técnico no desenvolvimento da nossa in-


dústria, pode muito bem ir além da missão de fornecer-lhe alunos com uma
preparação escolar cuidada. Devia compreender a de estudar em casos especiais
os problemas de natureza cientíica a que o labor corrente dos estabelecimentos
industriais não permite geralmente prestar toda a atenção.”16.
Esta era uma elite que lutava contra o periferismo nacional, promovendo o in-
tercâmbio cientíico, apostando na realização frequente de viagens e missões de
estudo e assegurando a representação portuguesa nas iniciativas internacionais de
maior relevo, como a Reunião anual da Associação dos Anatomistas, os congressos
internacionais de Geologia, Zoologia, Astronomia, Medicina ou a Conferência
Internacional contra a Tuberculose, entre muitos outros.
As missões cientíicas e as viagens de estudo ao estrangeiro apresentaram-se,
desde a segunda metade do século XIX, como um instrumento fundamental no
processo de internacionalização cientíica, de actualização pedagógica e de forma-
ção de investigadores. Muitos dos organismos cientíicos existentes foram criados
na sequência de missões ao estrangeiro, como foi o caso do Gabinete de Histologia
e Fisiologia Experimental, da Faculdade de Medicina de Coimbra, cuja organi-
zação resultou de uma viagem de António Augusto da Costa Simões, director do
mesmo, por França, Bélgica, Holanda, Suíça e Alemanha, em 1864 e 186517. Seria

16 BENSAÚDE, Alfredo, “O Instituto Superior Técnico e o desenvolvimento da indústria nacional”. A Águia, 61-
63, 1917, pp. 70-71.
17 MIRABEAU, Bernardo António Serra de, Memoria Historica e Commemorativa da Faculdade de Medicina nos cem
annos decorridos desde a reforma da Universidade em 1772 até o presente, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1872.

71
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

também no estrangeiro que muitos dos professores directores destes estabeleci-


mentos cientíicos se especializariam. Foi em França que Câmara Pestana se espe-
cializou em bacteriologia, trabalhando no Laboratório de Patologia Experimental
da Faculdade de Medicina de Paris, sob a orientação de Isidore Straus. Aníbal
Bettencourt, o seu sucessor na direcção do Instituto Bacteriológico, passou uma
temporada no Instituto de Doenças Infecto-Contagiosas de Berlim, dirigido por
Robert Kock18. Outro bom exemplo desta dinâmica encontra-se na constituição,
em 1913, do Laboratório de Psicologia Experimental da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, possível pela deslocação de Augusto Joaquim Alves dos
Santos à Suíça e a França, onde frequentou cursos de especialização na Universi-
dade de Genebra e no Instituto Jean Jacques Rousseau e adquiriu todo o material
necessário19 para a organização do mesmo estabelecimento.
Progressivamente, muitos dos organismos criados no âmbito da actividade re-
formista do Governo Provisório foram evoluindo para tipologias mais comple-
xas, como a dos institutos ou a dos institutos de investigação cientíica, tipologia
consignada pela primeira vez no Estatuto Universitário promulgado em Julho de
191820. Esta transição resultou da complexiicação de tarefas e das necessidades
associadas ao espaço laboratorial, que passaria a englobar, além dos laboratórios
gerais para alunos e investigadores e dos museus de apoio ao ensino, laboratórios
privativos para o pessoal da instituição, gabinetes de trabalho, salas de aula, gabine-
tes de fotograia, instalações para animais e bibliotecas. Eram instituições que as-
sumiam a investigação como um dos seus ins principais e que se interessavam pela
divulgação dessa mesma investigação, apostando na publicação de revistas próprias.
A sua gestão passou a exigir grande disponibilidade por parte dos professores di-
rectores, que tinham de assegurar o ensino geral das suas cadeiras e dos cursos de
especialização, coordenar os trabalhos de investigação, garantir contactos oiciais e
oiciosos com estabelecimentos congéneres e participar nas tarefas administrativas
da própria Faculdade21, o que acabaria para trazer para primeiro plano a questão
do vencimento do pessoal privativo dos institutos e, posteriormente, a do próprio

18 SALGUEIRO, Ângela, “Do Instituto Bacteriológico de Lisboa ao Instituto Bacteriológico Câmara Pestana
– um agente de inovação nas ciências biomédicas portuguesas”, comunicação às Oicinas de Investigação do CIT-
CEM - “Saúde e doença na oicina de Clio: visões multifocais sobre a historiograia das ciências biomédicas (2ª parte)”,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 9 de Novembro de 2012.
19 ABREU, Manuel Viegas, “A criação do primeiro Laboratório de Psicologia Experimental em Portugal: O Labo-
ratório de Psicologia Experimental da Universidade de Coimbra (1912)” in Universidade(s). História. Memória.
Perspectivas, 2, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, Coimbra, 1991, pp. 107-131.
20 Decreto n.º 4554, de 6 de Julho de 1918. Diário do Governo, I Série, n.º 152, 9 de Julho de 1918, pp. 1086-1094.
21 Esta multiplicidade de tarefas está muito bem representada num conjunto de aguarelas sobre Marck Athias
apresentado por Isabel Amaral em “A nova face da medicina portuguesa. A geração de 1911 e a escola de inves-
tigação de Marck Athias” in Acta Médica Portuguesa, 24, 2011, p. 157.

72
LABORATÓRIOS UNIVERSITÁRIOS – ESPAÇOS DE CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

estatuto dos investigadores. De facto, durante muitos anos os professores que inte-
gravam os laboratórios universitários não podiam auferir rendimentos extraordiná-
rios pelos trabalhos cientíicos realizados nestas instituições, situação que se alterou
muito lentamente. Só a partir de 1915 se conseguiria um primeiro avanço neste
domínio, mediante a concessão de um complemento salarial anual de 600$00 aos
directores dos laboratórios de Anatomia, Histologia, Fisiologia e Farmacologia da
Faculdade de Medicina de Lisboa22.
Apesar do progresso conseguido no panorama cientíico nacional, muitos des-
tes laboratórios e institutos universitários continuaram a laborar numa realidade
difícil, enfrentando diversos problemas estruturais. Desde logo, deparavam-se com
um desconhecimento generalizado sobre o signiicado de investigação aplicada,
por parte quer das autoridades oiciais, quer da classe professoral e dos próprios
estudantes, que se mostravam desinteressados, continuando a ter como principal
objectivo a frequência da universidade para a obtenção de um diploma. Como diria
Agostinho de Campos, anos mais tarde, em Portugal não se começou pelo princí-
pio base de tornar a ciência respeitável:
“Confessemos sem hesitar as nossas culpas actuais e máximas: cobiçamos o di-
ploma, e não a ciência; educamos para o Estado, e não para a Grei; criamos em
regra as escolas para os mestres, e não para os alunos; […] o honoríico prevalece
em nós ao prático e a vaidade à sinceridade; […] queremos ter tudo, em sonhos;
na realidade, contentámo-nos com muito pouco ou quase nada.”23.
Intimamente associado a este primeiro factor encontrava-se a exiguidade das ver-
bas destinadas anualmente aos laboratórios, o que limitava a obtenção do material e
da mão-de-obra necessária ao regular funcionamento dos mesmos. Outros estavam
instalados em condições muito precárias, sem o espaço necessário para o trabalho
dos investigadores e dos professores e para o ensino prático semanal de dezenas de
alunos. Era o caso do Laboratório de Química da Faculdade de Ciências de Lisboa,
cujo director, em 1929, airmava: “[…] melhor será acabar com o ensino experimen-
tal, para não o fazer arrastar uma existência tão precária que o torna irrisório.”24.
Em suma, veriica-se que a I República desempenhou um papel bastante im-
portante na renovação e expansão dos laboratórios universitários em Portugal,
através, sobretudo, de uma dinâmica actividade legislativa. Esta não correspondeu

22 Lei n.º 410, de 9 de Setembro. Diário do Governo, I Série, n.º 181, 9 de Setembro de 1915, p. 954.
23 CAMPOS, Agostinho de (Prefácio de), O Homem de Ciência, de Carlos Richet, Arménio Amado editor, Coim-
bra, 1937, p. 26.
24 Ofício do director da Faculdade de Ciências ao Reitor da Universidade de Lisboa, de 22 de Janeiro de 1929.
Arquivo Histórico do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, Fundo
Faculdade de Ciências, Série Processos de correspondência, Pasta Laboratório de Física e Laboratórios.

73
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

a uma ruptura relativamente ao período da Monarquia Constitucional. Na verdade,


a conjuntura revolucionária permitiu que se aplicassem medidas à muito discuti-
das e se aprovassem reformas anteriormente propostas, intensiicando dinâmicas
que se faziam sentir desde o último quartel do século XIX, como a valorização do
ensino experimental, a aposta na investigação cientíica e no internacionalismo da
Ciência. O impacto das novas concepções cientíicas também não cessaria durante
a Ditadura Militar e o Estado Novo, exercendo grande inluência na deinição de
uma política cientíica nacional.

74
O Hospital de Santa Marta no Nascimento
da Psicocirurgia: espaços, ideias e atores
Manuel Correia1 e Célia Pilão2

Quando no inal de 1935 Almeida Lima e Egas Moniz iniciaram a primei-


ra série de neurocirurgias mais tarde batizadas como Leucotomias Préfrontais, o
Hospital de Santa Marta já albergava a Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa há 24 anos, desde a grande reforma republicana de 1911. Antes Santa Mar-
ta fora Convento das Clarissas fundado pelo Cardeal Dom Henrique (1512-1580)
em 1580, no local de recolhimento para viúvas e órfãs dos criados do rei D. Sebas-
tião (1554-1578), vítimas da peste bubónica de 1569, a chamada “peste grande”.
Com a extinção das ordens religiosas e a secularização dos seus bens, em 1834,
o Convento entrou em declínio, serviu como hospital improvisado para o trata-
mento de uma epidemia de gripe (1890) e foi entregue à Irmandade dos Clérigos
Pobres, em 1889.
Em 12 de Outubro de 1903 as instalações do antigo convento foram entregues
ao Enfermeiro-Mor do Hospital Real de S. José, Conselheiro Curry Cabral, para
nelas instalar um hospital de doenças infecto-contagiosas não febris (Síilis e Ve-
néreo), que iria substituir o velho Hospital do Desterro.
Curry Cabral programou e dirigiu as grandes e dispendiosas obras de adaptação
das instalações e Santa Marta e o antigo mosteiro foi transformado num dos bons
hospitais de Lisboa.
A este propósito, o jornal “O Século” de 19 de Abril de 1908, refere: “…O
novo hospital, que é vastíssimo, tendo accomodações para comportar à vontade
500 doentes, compreende 15 enfermarias e 34 quartos particulares, é servido por
elevadores e será iluminado a luz eléctrica. O hospital de Santa Martha (…) vem
dar satisfação a reclamações de há muito insistentemente feitas em nome dos in-
teresses da saúde pública. De facto, as doenças a que ele se destina são aquelas cuja

1 (MC) CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra.


2 (CP) Administradora Hospitalar, Centro Hospitalar de Lisboa Central.

75
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

disseminação e contágio, de funestíssimos efeitos, se torna indispensável combater


por meio de uma iscalização sanitária, tão rigorosa quanto possível, exercida sobre
essas desgraçadas creaturas de vida airada, principaes vehiculos da transmissão de
taes doenças, e pela sequestração immediata de todas aquellas que se encontrem
contaminadas.”
Mas em 1910, o novo hospital recebeu o nome de Hintze Ribeiro, foi cedido
à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e, com a criação, em 1911, das Faculdades
de Medicina, foi entregue à Faculdade de Medicina de Lisboa, para o serviço do
ensino clínico, mantendo-se como Hospital Escolar de Lisboa até à abertura, em
1953, do Hospital de Santa Maria.
Em 1953, o Hospital de Santa Marta foi integrado nos Hospitais Civis de Lis-
boa e a administração destes hospitais procedeu a uma profunda remodelação do já
velho e degradado hospital escolar.
A antiga sala do capítulo do mosteiro, que serviu de sala de aula da Faculdade
de Medicina acolheu, entre 1957 e 1973, o Museu dos HCL, chamado Museu
Mac Bride, em homenagem ao ilustre médico e olisipógrafo (1886-1953), que foi
o grande entusiasta da criação do museu dos Hospitais.
A sala era também utilizada para as cerimónias universitárias e outros atos pú-
blicos. As fotograias da época mostram Egas Moniz nessa mesma sala proferindo
a sua “Última Lição”, em 1944, onde passa em revista a sua carreira de professor
universitário e investigador cientíico, detendo-se especialmente na rememoração
da Angiograia Cerebral e da Leucotomia Préfrontal.
Foi no Hospital de Santa Marta, tornado Hospital Escolar da Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa, que foi instalado o Serviço de Neurologia,
de que Egas Moniz viria a ser Diretor. Nele se sucederam os passos fundamentais
que tornaram a Artereograia em Angiograia, (da pinça de Martins ao Carroussel
Radiológico) e conduziram das primeiras injeções de álcool à confeção do leucóto-
mo e à Leucotomia Préfrontal propriamente dita.
Quer relativamente à Angiograia quer à Leucotomia o espaço do protagonismo
alarga-se a Almeida Lima, neurocirurgião, geralmente apresentado como executor
dos planos elaborados por Mestre Egas, mas evidentemente muito mais do que isso.
Dentro e fora de Santa Marta, António Flores, Diogo Furtado, Barahona Fer-
nandes, Sobral Cid, Romão Lof, Arnaldo de Almeida Dias e Pedro Polónio ocu-
pam também posições de destaque no espaço do protagonismo das invenções de
Egas Moniz. Uns por oposição e crítica, outros pelo esforço da justiicação, (re)
teorização e defesa, assumem um papel destacado na avaliação e replicação do mé-
todo; uns exercendo medicina em Santa Marta, outros no Manicómio Bombarda

76
LABORATÓRIOS UNIVERSITÁRIOS – ESPAÇOS DE CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

(Sobral Cid), na Casa de Saúde do Telhal (Diogo Furtado) ou no Hospital Júlio de


Matos (Pedro Polónio).
O ascendente institucional, o prestígio cientíico, a liderança de um número
signiicativo de pessoal médico explicam em boa parte as razões pelas quais a Leu-
cotomia Préfrontal se impôs, apesar da fragilidade dos fundamentos teóricos, da
incerteza dos resultados e da controvérsia que desde o início se gerou a seu respeito.
Primeiro detentor da Cátedra de Neurologia (desde 1911) e Diretor do Respe-
tivo Serviço, Egas Moniz granjeou o ascendente institucional associado à capaci-
dade de decidir sobre matérias universitárias, clínicas e das políticas de saúde; com
a apresentação dos resultados das primeiras Artereograias cerebrais, em 1927, em
Paris, tornara-se uma referência forte ao fornecer à clínica neurológica um meio de
diagnóstico extraordinário; e ao criar uma rede de colaboradores e correspondentes
interessados, motivados e competentes, estabeleceu um sistema de poder — de
comunicação, divulgação, difusão e inluência — cujo exercício facilitou a aceitação
do método leucotómico apesar das já referidas oposições e contradições.
A plêiade de especialistas que exerceu no Hospital de Santa Marta dá uma nota
de contexto preciosa para a época:
Custódio Cabeça à frente da Clínica Cirúrgica; Francisco Gentil da Patologia
Cirúrgica; Pulido Valente da Clínica Médica; Egas Moniz e António Flores da
Neurologia; Almeida Lima da Neurocirurgia; Lopo de Carvalho da Pneumologia
e Reynaldo dos Santos da Urologia.
Deste conjunto emerge também o corpo de conhecimentos e aplicações que icou
para a História da Medicina com a designação de Escola Portuguesa de Angiograia.
Acrescente-se a importância comunicacional da publicação intitulada “Lisboa
Médica”, órgão oicial do Hospital de Santa Marta e da Faculdade de Medicina de
Lisboa, em cujas páginas se foram vertendo ao longo do tempo artigos acerca das
inovações que se iam sucedendo.
Dois anos depois da divulgação pública da Encefalograia Arterial (uma das de-
signações primitivas do que veio mais tarde a chamar-se a Angiograia Cerebral), a
Arteriograia dos Membros, realizada por Reynaldo dos Santos; a Angiopneumo-
graia, realizada por Lopo de Carvalho a partir de 1931; a Flebograia dos Mem-
bros, feita por Cid dos Santos a partir de 1937, responsável também, quase uma
década depois (1946) pela primeira Endartrectomia; a primeira Coronariograia,
em 1952, de Eduardo Coelho. É neste conjunto de inovações sucessivas que surge
e se desenvolve a partir dos inais de 1935, o que viria a chamar-se Leucotomia
Préfrontal objeto, em 1949 do Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia.

77
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Na geograia da história da ciência em Portugal, o Hospital de Santa Marta ica


pois como o lugar de nascimento de dois notáveis programas de investigação cientíi-
ca na área da saúde: o que deu origem à Escola da Angiograia, que se tornou consen-
sual após a crise do torotraste e os múltiplos aperfeiçoamentos que vieram beneiciar
e mundializar o método; e o que cruzou a fronteira imaginária entre a Psiquiatria e a
Neurologia, visando alterações mentais por via biológica, — a Psicocirurgia.
Com o primeiro, as técnicas imagiológicas de diagnóstico conheceram um desen-
volvimento notável; com o segundo banalizou-se a exploração experimental do cére-
bro humano, abrindo um cortejo de controvérsias, hesitações, abusos e interrogações.

BIBLIOGRAFIA

ALVES, M.V., 1911-1999 (coord.), O ensino médico em Lisboa no início do século. Sete artistas
contemporâneos evocam a geração de 1911. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999
ANTUNES, J. L., Egas Moniz. Uma biograia, Lisboa: Gradiva, 2010.
CORREIA. Manuel, “Egas Moniz. Imagens e representações”. Estudos do Século XX, nº 5, (pp. 65-82),
Coimbra, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, 2005.
CORREIA, Manuel, “Egas Moniz e a leucotomia pré-frontal. Ao largo da polémica”. Análise Social nº
181, (pp. 1197-1213), Vol. XLI, 4º Trimestre de 2006, Lisboa, ICS.
CORREIA, Manuel, Egas Moniz e o Prémio Nobel, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2006.
CORREIA, Manuel, “O carácter histórico-social da violência: o exemplo da psicocirurgia”. Revista de
História das Ideias, Volume 27, (pp. 511-527), 2006.
FLORES, A., “Prof. Arnaldo de Almeida Dias”. Lisboa Médica, 1939, Ano XVI, Vol. XVI.
LACERDA, R., “Técnica da angiograia cerebral, subsídios para a sua globalização”. Lisboa Médica,
1935, Ano XII, Vol.XII.
LEONE, J., Subsídios para a História dos Hospitais Civis de Lisboa e da Medicina Portuguesa (1948-1990),
V Centenário da Fundação do Hospital Real de Todos-os-Santos, 1993.
LIMA, Almeida, “Expansão actual da leucotomia prefrontal”. Lisboa Médica, 1942, Ano XIX, Vol. XIX.
MONIZ, Egas, Conidências de um investigador cientíico, Lisboa: Ática, 1949.
MONIZ, Egas, Les possibilités de la chirurgie dans le traitement de certaines psychoses, Lisboa Médica, 1936,
Ano XIII, Vol. XIII

78
A Casa de Saúde do Telhal na História
da Psicocirurgia: Ideias, Espaços,
Práticas e Protagonistas
Aires Gameiro1, Manuel Correia2 e Augusto Moutinho Borges3

APRESENTAÇÃO GERAL DA CASA

Nesta comunicação realçamos o papel que a Casa de Saúde do Telhal, em Mem-


Martins, concelho de Sintra, desempenhou na História da Psicocirurgia.
O conhecimento das Leucotomias pré-frontais realizadas nesta instituição, com
cerca de 120 anos de serviços de relevo nas áreas da psiquiatria e saúde mental
em Portugal, é imprescindível para a história deste tipo de neurocirurgias e sua
avaliação.
O italiano Bento Menni, Irmão da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus foi
o fundador quer da Casa de Saúde do Telhal, em 1893, quer, no ano seguinte, da
Casa de Saúde da Idanha, para assistir mulheres.
A Casa conheceu várias fases de evolução terapêutica, nelas incluindo, desde a
fase experimental, a psicocirurgia, ali levando a cabo inclusivamente um elevado
número de leucotomias pré-frontais executadas pela equipa do Prémio Nobel Prof.
Egas Moniz.
Apesar de não as desenvolvermos na presente comunicação, merecem referência
as suas características de colónia hospitalar no início do século XX, o sistema de
pavilhões separados, o desenvolvimento das práticas de ergoterapia diversiicada,
o primeiro museu (então chamado Museu da Loucura), a formação e a Escola de
Enfermagem; a construção e a Clínica Cirúrgica onde tiveram lugar as leucotomias
dos anos 1936 a 1951.

1 (AG) Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, CLEPUL, CEIS20 e IPCDVP-FPCE-UC.


2 (MC) CEIS20.
3 (AMB) Instituto Politécnico da Guarda, CLEPUL e CEIS20.

79
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Casa de Saúde do Telhal, 1936. Primeiro grupo de Irmãos Hospitaleiros diplomados em Enfermagem.
O Médico é o Dr. Meira de Carvalho

CONTEXTO NO MUNDO DA ALIENAÇÃO E DEGENERESCÊNCIA


E AS TERAPÊUTICAS PSICOSSOCIAIS, CULTURAIS E RELIGIOSAS

A assistência psiquiátrica nos inícios da Casa era de criatividade e avanços sig-


niicativos de neurologia e empirismo terapêutico, em que predominava ainda o as-
sistencialismo de pobres e indigentes, reforçado pela custódia e isolamento devido
à convicção de que pouco mais se podia fazer. Um certo romantismo das Colónias
de doentes com ambiente higiénico e ocupações úteis era ensombrado pela avas-
saladora corrente da degenerescência durante toda a segunda metade do séc. XIX
e inícios do séc. XX. Contudo a experiência e o pragmatismo das correntes do tra-
tamento moral somavam resultados, até que vieram os novos tratamentos dos anos
30 e 40 do séc. XX. Não faltavam, porém, os tratamentos possíveis para a época.
A ergoterapia4, a alimentação sadia, instalações e roupas higiénicas davam qua-
lidade aos manicómios, melhorada com tratamentos empíricos de banhos de água
fria e quente, tratamento moral (educação) e serviços religiosos acessíveis.
Neste caso, o tratamento moral estava impregnado de valores e práticas religiosas
na dupla dimensão da fé para os crentes e na dimensão de terapêutica psicossocial.
O acesso à capela e aos atos de culto dos Irmãos era facilitado aos pacientes que es-
tivessem em estado de poder participar e quisessem fazê-lo. Respeitava-se o direito

4 Vide, por exemplo: CEBOLA, 1943, pp. 140-146, GAMEIRO, O.H., 1943, pp. 138-146 e Revista Hospitali-
dade, n.º 57, pp. 224-225 Jul.-Dez., 1993, pp. 219-223; BIERENS, 1979; GÊRARD, 1976; TOSQUELLES,
1967; ANTOINE, 1969.

80
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

de praticar, se assim o desejassem. Tinha ainda o valor de ato social e cultural.


O próprio Miguel Bombarda atribuía um certo valor terapêutico aos “exercícios
religiosos”. “Como distração, e portanto como terapêutica, neste momento consi-
dero a utilidade dos exercícios religiosos executados com aquela solenidade que tão
grande elevação lhes presta” 5.

FORMAÇÃO E ESCOLA DE ENFERMAGEM PARA OS RELIGIOSOS (IRMÃOS)


E CLÍNICA CIRÚRGICA

O Telhal sempre foi um centro de formação para os Irmãos de S. João de Deus


com vários patamares: Aspirantado, Postulantado, Noviciado, Neo-professorado/
Escolasticado. Durante este último período os Irmão faziam formação proissional
de enfermagem de doentes mentais e mais tarde enfermagem geral e de auxiliares.
A Revista Hospitalidade (revista editada e distribuída pela Ordem Hospitaleira
desde 1936) ao descrever a sala operatória diz o seguinte: “É pela primeira vez que
brilha na nossa pequena e modesta Revista, intitulada Hospitalidade, uma foto
da Sala Operatória, na qual nos honram com a sua presença, procedendo a uma
apendicectomia, os Exmos. médicos: Dr. Silva Araújo, cirurgião; Dr. Diogo Fur-
tado, psiquiatra; Dr. Meira de Carvalho, clínico geral e seus ajudantes: Irmão José
( Joaquim) Fernandes, Ir. Luís Gonzaga e Ir. Braga” 6.
E o artigo acrescenta: “Não só esta mas também todas as outras intervenções
que se têm feito nesta Casa que são, aproximadamente 24 (sic) leucotomias, 12 ke-
lotomias, 1 laparatomia, 1 tracotomia, 1 gastrotomia, 1 osteo-síntese e 3 apendicec-
tomias. Todas elas correram admiravelmente sem que tivesse havido complicações
de espécie alguma”. Fica assim documentado que, no início de 1938, já se tinham
realizado, pelo menos, 24 leucotomias no Telhal.”
Desejamos anotar que o Irmão José Joaquim Fernandes (ainda vivo no Brasil)
era um dos enfermeiros diplomados em 1936, ver fotos, e era, respetivamente, o
enfermeiro chefe da Enfermaria e clínica cirúrgica.

5 BOMBARDA, 1994, p. 57.


6 Revista Hospitalidade, Jan-Mar de 1938, p. 26.

81
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

CONTEXTO DAS PSICOCIRURGIAS NO TELHAL

Em 1943 a Casa de Saúde do Telhal comemorava os 50 anos de existência e


o Dr. Luís Cebola solicitado pelo Pe. João Gameiro, colaborou com um capítulo
no livro Os Irmãos de S. João de Deus em Portugal, 1606-1834–1893-19437 que se
estava a escrever. O artigo tem como tema “Evolução Terapêutica na Casa de Saúde
do Telhal” a que já izemos referência.
Era também o tempo de muitos ECs semanais os quais, associados à ergotera-
pia, concorreram para centenas de altas de doentes agudos há longos anos interna-
dos, segundo as observações de um dos autores (AG).
A fase inal da direção clínica do Dr. Luís Cebola até 1948 coincidiu com a in-
trodução da insulinoterapia, eletrochoque e demais terapias convulsivantes, como
o sistocardil (cardiozol), que eram as utilizadas em doentes agudos. O médico que
as iniciou foi o Dr. Diogo Furtado e mais tarde, em 1948, também pelo Prof. Pedro
Polónio e seus colaboradores.
Fizeram-se dezenas de leucotomias pelo método do Prof. Egas Moniz. Um dos
autores (AG) assistiu, na sala de operações, em Novembro de 1947, a quatro delas8
e prestou cuidados no pós-operatório aos mesmos pacientes. O Dr. Diogo Furtado,
médico militar, selecionava os enfermos, quase todos militares, e o Dr. Luis Cebola
parecia manter-se um pouco à margem dessas experiências.
O Dr. António Meira de Carvalho clínico geral, desde 1931, considerava o
colega Dr. Luís Cebola “Acérrimo democrata, bom psicólogo, mas um ignorante em
clínica geral” 9.
Convém ter presente ao falar das psicocirurgias em Portugal que a história desta
instituição e da Idanha, e por arrastamento a obra do Dr. Luís Cebola, ou vice-
versa, tem sido parcialmente ignorada e quase ostracizada pelo establishment da
psiquiatria portuguesa10.
O Ministério da Guerra recorreu à Casa de Saúde do Telhal para assistir os pa-
cientes gaseados da Grande Guerra11 a partir de 1917 os quais, até ao ano de 1933
foram tratados pelo Dr. Luís Cebola, e posteriormente pelo Dr. Diogo Furtado.

7 GAMEIRO, 1943.
8 Leucotomias essas que vêm referidas pelo Ir. Diamantino, in Hospitalidade, N.º 53, 5.º do Tomo VII de 1949, p.
222.
9 CARVALHO, 1978, p. 29.
10 Cf. GAMEIRO, “Luíz Cebola: a República e o Estado Novo” comunicação no Congresso “Os Médicos e a Repú-
blica”, realizado na Sociedade de Geograia de Lisboa / Secção de História da Medicina, Lisboa 20 de Maio de
2010, (no prelo); vide também GAMEIRO, 2009, pp. 126-133.
11 CASTELãO, 2006, pp. 687-693.

82
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

Nos anos trinta e quarenta do séc. XX, houve grande incremento e a introdução
dos primeiros psicofármacos, a par dos tratamentos pelas ocupações úteis e artísticas.
O Prof. Pedro Carlos Amaral Polónio sucedeu a Luís Cebola em 1948 e con-
irmou os avanços terapêuticos da Casa de Saúde do Telhal nos tempos anteriores
à sua tomada de posse12. Na data da saída do Dr. Luís Cebola (1948) os doentes
atingiam os 530 aumentando para 550. Dois anos depois a maior parte dos doentes
entrados foram referenciados com sequelas alcoólicas, seguidos de esquizofrénicos,
oligofrénicos, maníaco-depresssivos e paralíticos gerais.

TELHAL E IDANHA E OS TRATAMENTOS DE PSICOCIRURGIA13

Em 1938 os pacientes militares atingiam 117, sendo 69 Soldados, 23 Sargentos


e 25 Oiciais. Nos soldados, segundo Diogo Furtado 14, predominavam as esqui-
zofrenias catatónicas e hebefrénicas e nos oiciais 20%, predominando nestes as
formas paranóides e parafrénicas. Nos soldados ainda 16% estavam afetados de
psicoses alcoólicas.
O Dr. Diogo Furtado expõe os dados dos tratamentos praticados naqueles qua-
tro anos. Dos doentes entrado no Telhal 54,2% tiveram alta dos quais 40,5% cura-
dos e 13,7% com melhoras, com uma taxa de mortalidade de 7,7%.
Na p. 11 (l.c.), refere que 24 esquizofrénicos foram tratados com o método de
Egas Moniz de Leucotomia pré-frontal15, dos quais 18 icaram no mesmo estado, 3
curas à distância, 1 cura com recaída e 2 melhorados; 10 com narcose permanente,
só 1 melhorado e 1 falecido; 6 com insulina sem resultados; 8 com convulsivantes e
1 cura; paralisia geral com malárioterapia 16 dos quais 6 curas, 3 melhorados 4 no
mesmo estado e 3 falecidos.
Acrescenta que “Não é difícil concluir, que no conjunto, os resultados são acen-
tuadamente maus, não compensando o risco e o incómodo que tais métodos [leu-
cotomias] acarretam” mas acrescenta que pelo número de casos não se podem tirar
conclusões.

12 BROCHADO, 1950, p. 195. Existe uma edição fac-similada, 2006, com bibliograia atualizada.
13 GAMEIRO, 2010, pp. 415-433.
14 FURTADO, 1938, p. 5.
15 Este número está de acordo com o que diz a Revista Hospitalidade, Jan-Mar de 1938, p. 26.

83
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

AVALIAÇÃO DAS TERAPÊUTICAS PSICOCIRÚRGIAS

Esta avaliação não foi a primeira, pois já em 1937, em artigo assinado por Egas
Moniz e Diogo furtado, chamando asilo ao Telhal, publicado nos Annales Médico-
psychologiques referem-se às leucotomias como “investigação” e declaram:
“Dispondo de uma série importante de doentes esquizofrénicos, internados num asilo,
ensaiamos uma investigação sistemática com o objetivo de avaliar o valor e as possibi-
lidades da leucotomia neste grupo de psicoses”.
E mais abaixo referem “Operámos no Telhal 19 casos de esquizofrenia, 18 dos quais
verdadeiros processos de esquizofrenia e o 19.º uma catatonia pura com seis meses de
evolução”16.
O artigo termina com esta airmação que denota um desejo de continuar a ex-
periência:
“Só o emprego sistemático da leucotomia num maior número de casos poderia esclarecer
nossas dúvidas” e poder tirar “conclusões dos dados apresentados”17.
Estamos em 1937, um ano apenas após a inauguração da sala de operações da
Casa de Saúde do Telhal. As operações de leucotomia continuaram até a 195118,
ou talvez 1952. Muitos dos doentes eram militares, sendo médico responsável o Dr.
Diogo Furtado, o mesmo que assina o artigo citado.
Uma outra avaliação dos resultados das leucotomias praticadas no Telhal veio
mais tarde do Dr. Luís Cebola, quando já não era diretor clínico no seu livro Estado
Novo e República 19. No Cap. “O cérebro e os políticos”, refere:
“Após enumerar as diversas terapêuticas e em especial a laborterapia, as metodologias
mais recentes: o electrochoque e a neuro-cirurgia, denominada «leucotomia de Egas
Moniz». “Nem um nem outro se baseiam em factos de ordem cientíica – incontestáveis
e conclusivos…”.

16 MONIZ e FURTADO, 1937, pp. 3-4.


17 Idem, p. 7.
18 Ir. Diamantino in Hospitalidade (n.º 53, 5.º do Tomo VII de 1949, p. 222), refere 4 Leucotomias em 1948, pro-
vavelmente as mesmas a que o autor (AG) assistiu e que teve recentemente acesso aos boletins de dois pacientes
operados, um deles desse grupo de 4 e o outro operado em 1951. O primeiro (proc. 2753) com duplo diagnóstico
de esquizofrenia e psicopatia obsessiva, foi operado no quarto internamento após inúmeros tratamentos de
insulina e dezenas de páginas de observações e história clínica anteriores que foram continuadas posteriormente,
tendo acabado por falecer na Casa de Saúde. O segundo (proc. 3762), também esquizofrénico e com vários
internamentos, foi operado no dia 31.X.1951.
19 CEBOLA, 1955.

84
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

E como que se associa às experiências das leucotomias ao continuar:


“Experimentando a leucotomia no Hospital Psiquiátrico do Telhal, não logrei êxito
algum surpreendente, duradoiro. Abatidos os acessos agudos, eles voltavam e, por ve-
zes, com diminuição acentuada da personalidade” 20.
Por im mostra as suas preferências clínicas pelo eletrochoque quando diz: “O eletro-
choque tem sobre a leucotomia de Egas Moniz duas vantagens bem documentadas por
psiquiatras eminentes, reletidos e criteriosos: é mais prático e muito mais económico”21.

OUTROS DADOS HISTÓRICA DAS PSICOCIRURGIAS


O TELHAL E NA IDANHA

Temos conhecimento, porém, que tais operações se realizaram na Casa de Saúde


da Idanha, propriedade das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus22,
onde o Prof. Almeida Lima operou, até 1950, doentes do sexo feminino.
Os Blocos Operatórios da Casa de Saúde da Idanha e do Telhal eram, no seu
tempo, considerados dos mais modernos de Lisboa, estando perfeitamente organi-
zadas para neles se realizarem as referidas operações.
As fontes analisadas, constantes de processos clínicos, acervo fotográico das Ca-
sas de Saúde referidas, documentação avulsa e bibliograia geral e especíica apoiam
os dados referidos. Foram ainda realizadas entrevistas a Irmãos Hospitaleiros de S.
João de Deus, Ir. José Joaquim Fernandes23, tal como a um dos autores deste artigo,
o próprio Pe. Doutor Aires Gameiro24, e às Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração
de Jesus, Ir. Lurdes Reduto Cardoso e Ir. Conceição Rodrigues Antunes25.

20 Idem, pp. 59-63.


21 Ibidem, p. 63.
22 GAMEIRO e BORGES, 2009 (no prelo).
23 Residente no Lar São João de Deus em Itaipava, Petrópolis, no Brasil, e que foi o Diretor de Enfermagem da
Casa de Saúde do Telhal entre 1936 a 1941, altura em que assistiu às primeiras lobotomias realizadas pela equipe
do Prof. Egas Moniz. Em 15.12.2004 foi realizado em Itaipava um vídeo onde o entrevistado por AG fala sobre
o tema em análise.
24 Que assistiu em 1947 à realização de quatro operações.
25 Residentes na Casa de Saúde da Idanha e que assistiram, em 1949 e 1950, a duas operações realizadas pelo Prof.
Almeida Lima.

85
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

CONCLUSÃO

A Casas de Saúde do Telhal e da Idanha, constituíram pois, em paralelo com


o Hospital de Santa Marta e o Hospital Júlio de Matos, os lugares principais em
que a Leucotomia Préfrontal foi signiicativamente praticada. Os principais ato-
res estreitamente vinculados à invenção, teorização, experimentação e difusão do
método, circularam por todos esses espaços, apontando os testemunhos para uma
maior dissimulação e secretismo na Casa de Saúde do Telhal, como por exemplo, o
Irmão José Joaquim Fernandes na entrevista referida antes 26.
A autoridade clínica e cientíica dos protagonistas explica o acatamento dessas
consignas sem discussão ou qualquer pedido de explicações. Tudo indica que, dife-
rentemente da resistência mais ou menos acentuada que Sobral Cid, entre outros,
opôs à Leucotomia, no Telhal a aceitação da prática não levantou problemas.
Registe-se, no entanto, que no inal dos anos 40, além das críticas do Dire-
tor Clínico Luís Cebola, atrás referidas, também o próprio Diogo Furtado veio a
demarcar-se do recurso excessivo à Leucotomia designadamente a propósito da
dor crónica.

BIBLIOGRAFIA

Nota: Sugerimos uma consulta geral e uma leitura circunstanciada de alguns artigos das duas obras
gerais: GAMEIRO, Aires e BORGES, Augusto Moutinho (coord.), “75 anos da Restauração da Província
Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus 1928/2003”, Lisboa, Alacalá, 2006, e, principalmente,
a obra monumental BROCHADO, Idalino da Costa (coord.), S. João de Deus. Homenagem de Portugal
ao seu glorioso Filho, 1550-1950. Lisboa, Bertrand, 1950, também edição fac-similada em 2006, com
atualização bibliográica por Pinharanda GOMES e por nós próprios (AG e AMB).

ANTOINE, Porot – Manuel Alphabétique de psychiatrie. Paris, 1969.


ANTUNES, Maria João e COSTA, Francisco – Miguel Bombarda e as Singularidades de uma época.
Coimbra, 2006.
Arquivo Histórico da Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus – Casa de Saúde
do Telhal. Diversos anos (1887-2012).
BIERENS, Haan Barthold – Dictionnaire critique de psychiatrie. Paris, 1979.
BOMBARDA, Miguel – O Hospital de Rilhafoles e os seus serviços em 1892-1893. Lisboa: Livraria

26 Vide nota 23.

86
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

Rodrigues, 1994.
BROCHADO, Idalino da Costa (coord.) – S. João de Deus. Homenagem de Portugal ao seu glorioso Filho,
1550-1950. Lisboa: Bertrand, 1950.
BORGES, Augusto Moutinho – Estudar, Preservar, Conservar e Animar a Memória da Ordem
Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal. In 75 Anos da Restauração da Província Portuguesa da Ordem
Hospitaleira de S. João de Deus, 1928-2003. Lisboa: Alcalá, 2006, pp. 137-144.
CARRETO, Pe. Augusto – “A nossa Casa do Telhal durante os primeiros 50 anos de existência (1893-1943)
”. In Revista Hospitalidade. Telhal: OHSJD, 1943, pp. 31-37.
CARVALHO, António Meira de – Memórias da minha vida. Telhal: policopiado, 1978.
CASTELãO, José Francisco – “Tratamentos assistenciais aos militares na Casa de Saúde do Telhal”. In
XVI Colóquio de História Militar: O Serviço de Saúde Militar na Comemoração do IV Centenário dos Irmãos
Hospitaleiros de S. João de Deus em Portugal. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 2006, pp.
687-693.
CEBOLA, Luís – História dum louco: analisada sob o aspecto psico-clínico. Lisboa: ed. Gomes de Carvalho,
1926.
CEBOLA, Luís – Psiquiatria social. Lisboa: ed. Gomes de Carvalho,1931.
CEBOLA, Luís – Enfermagem de Alienados. Lisboa: ed. Gomes de Carvalho, 1932.
CEBOLA, Luís – “Evolução Terapêutica na Casa de Saúde do Telhal”. In Os Irmãos de S. João de em
Portugal, 1606-1834 – 1893-1943. Lisboa: Telhal, 1943.
CEBOLA, Luís – A República e o Estado Novo. Lisboa: ed. Gomes de Carvalho, 1955.
CORREIA, Manuel – Egas Moniz e o Prémio Nobel. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
1.ª ed., 2006.
CORREIA, Manuel – Egas Moniz: Representação, Saber e Poder. [Em linha] Tese de Doutoramento.
Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011, p. 260-261. [Consult. 15 de Março de
2012]. Disponível em WWW: <URL: https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/handle/10316/15509>
CORREIA, Manuel – “Egas Moniz: um cientista em viagens. A internacionalização como estratégia”. In
PITA, João Rui; PEREIRA, Ana Leonor (Coords), “Rotas da Natureza: cientistas viagens, expedições e
instituições”, pp. 115-122, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007.
FERNANDES, Barahona – As Primícias da Obra de Pedro Polónio. In Psiquiatria Clínica. Coimbra, vol. 8,
n.º 1, Jan./Mar, 1987.
FILIPE, Pe. Nuno – Irmãos de S. João de Deus 50.º Aniversário da Restauração de Províncias Portuguesa da
Ordem Hospitaleira, 1928-1978. Telhal, 1980.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Rio de Janeiro: GEPB, vol. 6, p. 376.
FURTADO, Diogo, Tenente Médico – “A Assistência aos Alienados Militares”. In Revista Clínica, Higiene
e Hidrologia. Lisboa, 1938.
GAMEIRO, Aires (coord.) – Casa de Saúde do Telhal. 1.º Centenário 1893-1993. Documentos históricos e
clínicos. In Revista Hospitalidade. Lisboa: Hospitalidade, n.º 224-225, 1993.
GAMEIRO, Aires (dir.) – Casa de Saúde do Telhal: 1.º centenário, 1893-1993. Lisboa: Hospitalidade,
1993.
GAMEIRO, Aires – “Evocação de um Médico Esquecido, o Dr. Luís Cebola Pioneiro da Ocupação
Ergoterápica na Casa de Saúde do Telhal, da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus”. In Medicina na Beira
Interior: Da Pré-História ao Século XXI. Castelo Branco, vol. 23, 2009, pp. 126-133.
GAMEIRO, Aires – “Hospitais de Retaguarda na 1.ª Guerra Mundial: Os gaseados e a Casa de Saúde do
Telhal, Ordem Hospitaleira de S. João de Deus”. In XIX Colóquio da Comissão de História Militar: 100 Anos
do Regime Republicano, políticas, rupturas e continuidades. Lisboa: 2010, pp. 415-433.
GAMEIRO, Aires – “Notas à volta da teoria da degenerescência mental e o Dr. Miguel Bombarda. O caso da
cura do Tenente Apparício Rebêllo dos Santos na Casa de Saúde do Telhal”. In Cadernos de Cultura. Castelo
Branco, n.º xxv, 2011, pp. 111-118.
GAMEIRO, Aires, BORGES, Augusto Moutinho, CARDOSO, Ana Mateus e d’OLIVEIRA,
Fernando – “Um republicano no convento, O Dr. Luís Cebola e a ocupação ergoterápica dos doentes mentais na
Casa de Saúde do Telhal, da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus”. Coimbra, UC CEIS20, Caderno n.º 13,
2009, 36 pág.
GAMEIRO, Aires e BORGES, Augusto Moutinho (coord.) – “75 anos da Restauração da Província
Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus 1928/2003”. Lisboa: Alacalá, 2006.

87
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

GAMEIRO, Aires, BORGES, Augusto Moutinho e D’OLIVEIRA, Fernando – “A Casa de Saúde do


Telhal e os gaseados de guerra, 1917-1950”. In Congresso Internacional do Tratado de Versailles. Lisboa: Univ.
Nova de Lisboa, 2009 (no prelo).
GAMEIRO, Aires Gameiro e OLIVEIRA, J. F. Reis de – “Notas sobre o Telhal e a Idanha no panorama
da psiquiatria no dobrar do século XIX-XX. In VI Congresso Internacional de Psiquiatria S. João de Deus,
Desaios actuais da Psiquiatria e Saúde Mental. Lisboa: OHSJD, 1996, pp. 130-138.
GAMEIRO, Pe. João – Os Irmãos Hospitaleiros de S. João de Deus em Portugal. Memória escrita por ocasião
do cinquentenário da Fundação da Casa de Saúde do Telhal, 1606-1834 e 1893-1943. Telhal: OHSJD, 1943.
GÊRARD, Bleanou – Dictionnale de psychiatrie sociale. Paris, 1976.
GUEDES, Natália Correia, Museu S. João de Deus: Psiquiatria e História. Lisboa: Hospitalidade, 2009.
LAVAJO, Joaquim Chorão – Ordem Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal, 1893-2002. Lisboa:
Hospitalidade, 2003.
MONIZ, Egas e FURTADO, Diogo – “Essais de Triatement de la Schizphrenie par la Leucotomie par Egas
Moniz et Diogo Furtado”. In Annales Médico-psychologiques. Paris : Masson et C. Éditeurs, n.º 2, Juillet,
1937.
MONIZ, Egas e FURTADO, Diogo – Sep. de A Medicina Contemporânea. Lisboa, ano 68, n.º 12.,
Psiquiatria / Terapêutica / Psicoterapia.
MONIZ, Egas e FURTADO, Diogo – Sep. de A Medicina Contemporânea, Leucotomia cerebral-técnica
operatória. Lisboa, 1950 [S.l.: s.n.].
PICHOT, P. e BARAHONA FERNANDES – Um século de Psiquiatria e a Psiquiatria em Portugal. In:
pt.wikipedia.org/wiki/António_Egas_Moniz, 1983, p. 166.
Revista Hospitalidade, n.º 1, 2, 3, 4; 1937, n.º 5, 6,7, 8; 1939, n.º 9 e 13, 1936.
TOSQUELLES, F. – Le travail thérapeutique en I’hôpital psychiatrique, Paris, 1967.
VAZ, Francisco – Idanha: cem anos de Evangelho. Braga: ed. Franciscana, 1993.

88
ORGANIZAÇÃO DA CIÊNCIA:
PROMOTORES E ORGANISMOS
Ciencia y modernidad: La Junta para Ampliación
de Estudios y sus protagonistas1
José María López Sánchez
Universidad Complutense de Madrid

Se ha dicho hartas veces que el problema de España es un problema de cultura. Urge,


en efecto, si queremos incorporarnos a los pueblos civilizados, cultivar intensamente los
yermos de nuestra tierra y de nuestro cerebro, salvando para la prosperidad y enalteci-
miento patrios todos los ríos que se pierden en el mar y todos los talentos que se pierden
en la ignorancia.
Santiago Ramón y Cajal, mayo de 1922
Premio Nobel en 1906 y Presidente de la Junta para Ampliación de Estudios entre 1907 y 1934

REGENERARSE O MORIR.
LA ATMÓSFERA CIENTÍFICA E INTELECTUAL ESPAÑOLA DEL CAMBIO DE SIGLO

A lo largo del siglo XIX la ciencia en España se enfrentó a la férrea oposición


de los sectores ultramontanos del catolicismo español, abiertamente contrarios a
las corrientes cientíicas y al pensamiento de la ciencia moderna, a la vez que la
escasez de recursos diicultó extraordinariamente los proyectos de renovación del
sistema universitario. El triunfo de la ciencia moderna en el panorama universita-
rio español a partir del decenio de los años ochenta se materializó en el avance de
la ciencia experimental, cuando una nueva generación de cientíicos accedió a las
cátedras universitarias. A lo largo de las dos últimas décadas del siglo las posiciones
más intransigentes del catolicismo español frente al darwinismo tuvieron que batirse

1 Este trabajo se enmarca en el proyecto I+D, dirigido por Miguel Ángel Puig-Samper, con referencia HAR2010-
21333-C03-02 y titulado Naturalistas y viajeros en el mundo hispánico. Aspectos institucionales, cientíicos y docentes,
integrado en el proyecto coordinado por Alfredo Baratas Naturaleza y laboratorio. La investigación biológica en
la España contemporánea. Asimismo Este texto forma parte de las actividades del Grupo de investigación UCM
Historia de Madrid en la edad contemporánea, nº ref.: 941149, ha sido posible por la concesión de dos proyectos
de investigación del PLAN NACIONAL DE I + D + I: MINISTERIO DE EDUCACIÓN Y CIENCIA,
HUM2007-64847/HIST; MINISTERIO DE ECONOMÍA Y COMPETITIVIDAD, HAR2011-26904,
Investigador principal: Luis Enrique Otero Carvajal.

91
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

en retirada, ante la aceptación generalizada de las tesis evolucionistas entre los natu-
ralistas europeos, en España las posiciones antidarwinistas se encontraron cada vez
con mayores diicultades en la comunidad cientíica con la llegada de nuevas genera-
ciones de cientíicos naturales y médicos a las cátedras universitarias partidarios del
evolucionismo y de la ciencia moderna. No obstante, dicho progreso fue de efectos
limitados por la sempiterna escasez de recursos del Estado español, materializada en
la ausencia de laboratorios o la precariedad de instalaciones y medios de los existentes.
Otro tanto sucedió respecto de la comunidad cientíica española, todavía reducida en
sus dimensiones, en la que las personalidades más relevantes fueron incapaces en el
último tercio del siglo XIX de gestar auténticos grupos de investigación con continui-
dad y proyección en el tiempo. La distancia con los países europeos más desarrollados
era abismal y la penuria de medios continuaba siendo una constante en la Universi-
dad española de inales de siglo.
A la altura de 1900 parecía existir un consenso casi unánime entre los grupos
políticos e intelectuales en la convicción de que España necesitaba regenerarse.
El momento más crítico había sido el conocido como Desastre del 98. Lo más
dramático de la derrota en la guerra con los Estados Unidos no eran ya tanto los
resultados de la misma, es decir, la pérdida de los restos del imperio colonial, lo
que de verdad causó espanto en la conciencia española fue el modo en cómo se
había llegado a aquel punto. Un país joven, los Estados Unidos, un recién llegado,
se podría decir que casi sin historia si la lectura se hacía desde el lado de una Es-
paña de pretendida tradición secular, había humillado y aplastado militarmente en
pocas semanas a una vieja nación. Ahora sí iba a cobrar pleno sentido el llamado
“regeneracionismo”, que alcanzó sus tonos más altos con la denominada literatura
del Desastre. El primero era un conjunto abigarrado de quejas o diagnósticos sobre
los males de la patria, así como de recetarios que buscaban soluciones tendentes a la
mejora no sólo económica, sino también moral del país. La segunda, originada por
la catástrofe colonial, vino a ser la cresta de ola del movimiento regeneracionista,
resultado del pasmo generado por la derrota y convertida, a su vez, en agitadora de
conciencias2.
Las relexiones acerca de la decadencia española y los males de la patria an-
helaban incorporar España a la Modernidad. La principal alternativa crítica al
sistema oicial y estatal había sido la Institución Libre de Enseñanza (ILE) y a

2 LAPORTA SAN MIGUEL, Francisco J.; SOLANA, Javier; RUIZ MIGUEL, Alfonso; ZAPATERO, Virgi-
lio, La Junta para Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientíicas (1907-1936), Trabajo inédito inanciado por
la Fundación Juan March, Madrid, 1980.

92
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

ella correspondería a partir de ahora una responsabilidad considerable en las res-


puestas que se trataron de administrar a la crisis. Los acontecimientos de 1898
ayudaron a que el programa de la ILE calase con moderado éxito. Los orígenes de
la Institución Libre de Enseñanza son de sobra conocidos y han sido estudiados
con detalle. Fueron las enseñanzas de las nuevas teorías darwinistas por parte de
Augusto González Linares en la universidad de Santiago las que llevaron al en-
tonces Ministro de Fomento, el Marqués de Orovio, a emitir un decreto oicial
en 1875 que atacaba la libertad de cátedra, prohibiendo la enseñanza de aquellas
doctrinas que cuestionaban los principios de la fe católica. Tanto González Linares
como, por solidaridad, otros catedráticos de orientación krausista, entre los que se
encontraban Francisco Giner de los Ríos y Gumersindo de Azcárate, se negaron
a someterse a las instrucciones del Ministerio. La respuesta represiva del gobierno
se tradujo en sanciones y algunos casos se saldaron con penas de cárcel. La situa-
ción era insostenible y empujó a los afectados a abandonar de forma voluntaria su
puesto en la Enseñanza Superior y a fundar la Institución Libre de Enseñanza, una
corporación de enseñanza privada que, desde un principio, se contempló a sí misma
como una alternativa al sistema oicial de la escuela pública. La situación de aque-
llos profesores “proscritos” no se normalizó hasta 1881, cuando el gobierno Sagasta
los readmitió en sus plazas universitarias. Es entonces el momento en que se pudo
apreciar el inicio de un acercamiento de los institucionistas al ambiente político y
oicial (prueba de ello fue la creación del Museo Pedagógico Nacional en 1882). El
contexto histórico que dio origen a la JAE estuvo regido por la creciente fuerza del
regeneracionismo y la aproximación de la ILE a la esfera política. Por otro lado, y
esto resultó trascendental, la crisis del 98 contribuyó también a acelerar el proceso
de ampliación de las bases políticas del sistema de la Restauración para evitar que
los sectores más críticos con el decurso de la política española supusieran una seria
amenaza a la estabilidad del régimen canovista y lo desbordasen.
Los institucionistas, en in, formaron parte de un abigarrado conjunto de pole-
mistas que no se cansaron de denunciar los males del país y proponer las medidas
necesarias para sacarlo del atolladero. El diagnóstico era claro y contundente, Es-
paña agonizaba. En un ambiente intelectual marcado por el inlujo del darwinismo
social, el positivismo, la medicina y la psicología social de inales de siglo, España y
la sociedad española constituían el arquetipo del enfermo terminal, la encarnación
de las naciones moribundas a las que lord Salisbury había aludido en su famoso
discurso ante el Parlamento británico. Las razones se multiplicaban por doquier:
pueblo atrasado, inculto, habitante de una tierra yerma, fanático que se había ex-
tasiado en su propia vanidad contemplativa, incapaz de ponerse a la altura de las

93
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

naciones más modernas y adelantadas. Estos y muchos más eran los argumentos
que llenaron los escritos de Lucas Mallada, Joaquín Costa, Manuel Sales Ferré,
Ricardo Macías Picavea y tantos otros protagonistas de aquella literatura regenera-
cionista que no se cansó de denunciar el problema español, que insistió en su crítica
al sistema educativo. El lema de Joaquín Costa, escuela y despensa, sintetizó este
espíritu regeneracionista3.
La derrota de 1898 ante los Estados Unidos se explicaba, a juicio de regenera-
cionistas e institucionistas, por la falta de desarrollo tecnológico del país. Eduardo
Vicentí, airmó en el Parlamento que España había sido derrotada “en el laborato-
rio y en las oicinas, pero no en el mar o en la tierra”4. El planteamiento de Giner
no constituía una novedad, pero el Desastre colocó la situación de la instrucción
pública y la ciencia en el centro del debate público5, al cuestionar “una concepción
del mundo desdeñosa de la ciencia y un sistema educativo débil, que se dirige a
una exigua minoría del país y no es capaz de suministrar los rudimentos de una
información apta para provocar un desenvolvimiento económico”6. La Institución
Libre de Enseñanza había defendido a través de las páginas de su Boletín todo un
programa de reforma de la educación en España, que hasta el cambio de siglo sólo
había logrado inluir circunstancialmente en los gobiernos del partido liberal.
La crisis del 98 contribuyó al acercamiento entre institucionistas y liberales,
que se aceleró a partir de 1900, con la creación del Ministerio de Instrucción Pú-
blica, en el que vieron los institucionistas el primer gran instrumento de reforma
pedagógica que venían buscando. Los contactos con el mundo político liberal se
intensiicaron a través de nombres cercanos a los ambientes de la ILE. El principal
de ellos fue Segismundo Moret, amigo de Giner, accionista de la Institución Libre
de Enseñanza y colaborador de su Boletín. Junto a Moret, otros miembros del par-
tido liberal como Amalio Gimeno, Santiago Alba y Álvaro de Figueroa, conde de
Romanones, se alinearon con las tesis reformistas de la Institución Libre de Ense-
ñanza. A ellos se unieron desde las ilas del republicanismo viejos miembros de la
ILE como Nicolás Salmerón o Gumersindo de Azcárate. Salvar la brecha que nos

3 VALERA, Javier, La novela de España. Los intelectuales y el problema español, Taurus, Madrid, 1999.
4 Extracto del discurso del diputado Eduardo Vicenti, citado en SÁNCHEZ RON, José Manuel, “La Junta para
Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientíicas ochenta años después” en SÁNCHEZ RON, José Manuel
(coord.), 1907-1987, la Junta para Ampliación de Estudios 80 años después: simposio internacional, Madrid, 15-17 de
diciembre de 1987, I, CSIC, Madrid, 1988, p. 3.
5 CACHO VIU, Vicente, “Crisis del positivismo, derrota de 1898 y morales colectivas” en FUSI, Juan Pablo y
NIÑO, Antonio, Vísperas del 98. Orígenes y antecedentes de la crisis del 98, Biblioteca Nueva, Madrid, 1997, pp.
221 a 235. Véase también CACHO VIU, Vicente, Repensar el 98, Biblioteca Nueva, Madrid, 1997.
6 LAPORTA, Francisco J.; RUIZ MIGUEL, Alfonso; ZAPATERO, Virgilio; SOLANA, Javier, “Los orígenes
culturales de la Junta para Ampliación de Estudios” en Arbor, Año CXXVI, nº 493, 1987, p. 33.

94
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

separaba de las más dinámicas naciones europeas pasaba, a ojos de los institucio-
nistas, por renovar el sistema educativo del país, sus estructuras, métodos, objetivos
y contenidos. Dicha convicción fue interiorizada por los sectores reformistas del
partido liberal del sistema político de la Restauración y, más allá del mismo, por
el grueso de la intelectualidad reformista de la España del primer tercio del siglo
XX. La llamada generación del 14, con Ortega y Gasset a la cabeza, sintetizó esta
percepción en su convicción de que la solución al atraso español estaba en Europa,
entendida ésta como la apertura a las nuevas corrientes de pensamiento y cien-
tíicas que recorrían el Viejo Continente, base sobre la que debería asentarse un
amplio programa reformista que modernizara las estructuras sociales, económicas,
políticas y culturales del país.

LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS. TRANSFORMACIÓN DE LA POLÍTICA


CIENTÍFICA ESPAÑOLA

La Junta para Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientíicas –JAE- re-


presentó la culminación de una aspiración largamente deseada por los sectores re-
formistas de la Universidad española, dirigida a impulsar el desarrollo de la Ciencia
mediante el contacto con el extranjero, a través de una política sostenida de becas al
extranjero, y la planiicación de una ambiciosa política cientíica. La JAE constitu-
yó el esfuerzo más importante y también el mayor logro que a comienzos del siglo
XX impulsó un recién creado Ministerio de Instrucción Pública y Bellas Artes con
vistas a modernizar la educación y la investigación cientíica en España.
La JAE fue creada por Real Decreto de 11 de enero de 19077, que estableció
sus funciones y objetivos: “Primero. El servicio de ampliación de estudios dentro y
fuera de España. Segundo. Las Delegaciones en Congresos cientíicos. Tercero. El
servicio de información extranjera y relaciones en materia de enseñanza. Cuarto. El
fomento de los trabajos de investigación cientíica; y Quinto. La protección de las
instituciones educativas en la enseñanza secundaria y superior”. La JAE reunió tras

7 Real Decreto, 11 de enero de 1907, Ministro de Instrucción pública y Bellas Artes, Amalio Gimeno, Gaceta de
Madrid, nº 15, 15 de enero de 1907, pp. 165-167. El Gobierno estaba en manos de los liberales, bajo la presi-
dencia de Antonio Aguilar Correa, marqués de la Vega Armijo, a cargo del Ministerio de Instrucción Pública
se encontraba Amalio Gimeno. En su constitución fueron nombrados vocales Santiago Ramón y Cajal, José
Echegaray, Marcelino Menéndez y Pelayo, Joaquín Costa (que renunció al poco tiempo por razones de salud,
siendo sustituido por Amalio Gimeno, al abandonar el Gobierno), Joaquín Sorolla, Gumersindo de Azcárate,
Luis Simarro, Ignacio Bolívar, Ramón Menéndez Pidal, José Rodríguez Carracido, Leonardo Torres Quevedo,
Julián Calleja, José Casares Gil, Adolfo Álvarez Buylla, Julián Ribera Tarragó, José Marvá, Alejandro San Mar-
tín, José Fernández Jiménez, Vicente Santamaría de Paredes, Eduardo Vincenti y Victoriano Fernández Ascarza,
secretario José Castillejo Duarte.

95
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de sí a algunos de los fundadores de la Institución Libre de Enseñanza, como Fran-


cisco Giner de los Ríos, Gumersindo de Azcárate o Manuel Bartolomé Cossío, y
a los más destacados cientíicos de principios del siglo XX, encabezados por San-
tiago Ramón y Cajal, Rafael Altamira, Ramón Menéndez Pidal, Manuel Gómez-
Moreno, Eduardo de Hinojosa, Ignacio Bolívar, Blas Cabrera o José Castillejo8.
El Real Decreto de creación de la JAE relejaba ya en buena medida el rumbo
que iba a tomar la política cientíica de la Junta, es decir, la puesta en marcha del
programa de pensiones al extranjero y la creación dentro del país de centros de
investigación que fuesen capaces de recoger los frutos que los pensionados estaban
cosechando fuera. El organigrama organizativo de la JAE quedó diseñado en torno
a 21 vocales y cuatro cuerpos de administración: la Presidencia, que recayó en la
persona de Santiago Ramón y Cajal, la Junta Plena, formada por los 21 vocales y el
secretario, la Comisión ejecutiva o directiva, integrada por el presidente, dos vicepre-
sidentes, dos vocales y el secretario, y que eran las responsables últimas del funcio-
namiento efectivo de la Junta y de la toma de decisiones. Finalmente, la Secretaría,
que ocupó José Castillejo, y a la que pertenecieron también un vicesecretario y
personal del ámbito administrativo.
La Junta para Ampliación de Estudios fue concebida como un organismo técnico
deslindado de la capacidad administrativa del Ministerio9, con el in de garantizar
su autonomía10, lo que favoreció “la elección de personas preparadas y de conianza
que fueron capaces de llevar a cabo las misiones encomendadas”11. Ramón y Cajal
defendió “la lealtad, la imparcialidad confesional y el sincero patriotismo con que la
Junta de Pensiones y de Investigaciones Cientíicas ha aplicado los referidos prin-
cipios de elevación cultural han sido reconocidos por la mayoría de los conspicuos
de la política… a la hora de proponer pensiones u otorgar becas de trabajo, no dis-
ciernen otros colores que los gloriosos de la española bandera”12. El sistema de fun-
cionamiento de la Junta estuvo marcado por una escasa burocratización. Se huía de
grandes aparatos gubernativos que complicaban las tareas de administración. Más
signiicativo todavía fue el hecho de que la JAE fuese dotada de una autonomía

8 CASTILLEJO, David (compilador), Los intelectuales reformadores de España. El epistolario de José Castillejo. Un
puente hacia Europa, 1896-1909, I, Castalia, Madrid, 1997, p. 17.
9 J.A.E.I.C., Memoria correspondiente a los años 1907, tomo 1, Madrid, 1908, p. 19.
10 LAPORTA SAN MIGUEL, Francisco J.; SOLANA, Javier; RUIZ MIGUEL, Alfonso; ZAPATERO,
Virgilio, La Junta para Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientíicas (1907-1936), vol. 4, trabajo inédito
inanciado por la Fundación Juan March, Madrid, 1980, p. 3.
11 FORMENTÍN IBÁÑEZ, Justo y VILLEGAS SANZ, María José, Relaciones culturales entre España y América:
la Junta para Ampliación de Estudios (1907-1936), Colección Mapfre 1492, Madrid, 1992, p. 20.
12 RAMÓN y CAJAL, Santiago, Los tónicos de la voluntad. Reglas y consejos sobre investigación cientíica, Gadir,
Madrid, 2005, pp. 236-237.

96
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

considerable a la hora de administrar sus recursos y tomar decisiones. Por supuesto


estaba sometida a las directrices del Ministerio de Instrucción Pública, que era
quien sufragaba su presupuesto, pero la JAE se presenta en el panorama cientíico
español de aquellos años como una entidad realmente única y privilegiada por la
liberalidad con que pudo administrar sus fondos y hacer uso de sus competencias.
Hubo, cierto es, algún momento de angustia, sobre todo cuando el conservador
Faustino Rodríguez San Pedro ocupó la cartera de Instrucción Pública, pero tam-
bién fue evidente que, superados esos meses, la JAE no volvió a encontrar trabas
signiicativas a su labor hasta que la guerra civil abrió su particular caja de Pando-
ra. Esta generosa autonomía hace comprensible parte del celo ultramontano y su
desconianza ante arbitrariedades en el empleo del dinero público. La Junta fue un
organismo privilegiado, teniendo en cuenta la naturaleza crítica y casi anti-sistema
de los círculos institucionistas que la inspiraron.

LAS VICISITUDES DEL CAMINO. LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS


Y SU INSERCIÓN EN LA HISTORIA DE ESPAÑA.

El proyecto de renovación cientíica y educativa representado por la JAE contó


desde su nacimiento con la animadversión de los sectores más conservadores del ca-
tolicismo y la universidad española. Los neocatólicos advirtieron desde el principio
el peligro que la Junta representaba para la supervivencia de sus posiciones acadé-
micas en la universidad. Los candidatos a cubrir las vacantes y nuevas plazas de la
Universidad que habían disfrutado de las pensiones al extranjero y habían estado
vinculados a los centros de investigación de la JAE alcanzaron progresivamente
una clara posición de ventaja, merced a su mayor competencia cientíica, lo que
alimentó las campañas de los sectores neocatólicos contra la Junta en la prensa y en
el Parlamento, a la que tacharon de extranjerizante y antiespañola. A pesar de ello,
la Junta para Ampliación de Estudios supo granjearse el apoyo para su programa
de renovación educativa a numerosos intelectuales conservadores de convicciones
liberales, convencidos de que el camino emprendido por la JAE era el más adecuado
para impulsar la modernización del país13. La neutralidad política de la JAE per-
mitió que no se sintieran incómodos por causa de su adscripción política. Figuras
tan destacadas del liberalismo moderado como Ramón Menéndez Pidal, Claudio

13 CASTILLEJO, David (compilador), Los intelectuales reformadores de España. El epistolario de José Castillejo. Un
puente hacia Europa, 1896-1909, I, Castalia, Madrid, 1997.

97
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Sánchez-Albornoz o Elías Tormo estuvieron entre sus impulsores, y desde posicio-


nes más conservadoras destacaron Julio Palacios, Julián Ribera o Miguel Asín.
Sobre la JAE recaía nada menos que la responsabilidad de la política de pen-
siones al extranjero y la fundación de un moderno tejido cientíico y educativo en
España. Era un proyecto que llevaba la indeleble marca de la ILE por lo que no
es de extrañar que despertase una fuerte hostilidad entre los círculos más conser-
vadores del panorama político e intelectual español. El nuevo Ejecutivo de corte
conservador, el gobierno largo de Maura, que sucedió en el poder a los liberales se
encontró, por tanto, con un organismo nuevo y dotado de una autonomía adminis-
trativa generosa y una partida presupuestaria considerable. Era aquella una institu-
ción que el nuevo ministro de Instrucción Pública, Faustino Rodríguez San Pedro,
estimó se la habían colado14. La JAE se constituía en el más directo competidor de
la poderosa base católica y conservadora que dominaba aún en buena medida el
sistema educativo español. La fundación de la JAE se debía a un gobierno puente,
creado para aprobar los presupuestos tras la enésima crisis de gabinete. El nuevo
gabinete conservador de Antonio Maura se encontró de repente con un cuerpo
nuevo y extraño en el presupuesto estatal. Era además un proyecto de considera-
bles dimensiones, por lo que no es de sorprender que el recién llegado ministro de
Instrucción Pública, Faustino Rodríguez San Pedro, se mostrase hostil y receloso
hacia un organismo al que además le colgaba la etiqueta institucionista por fuera.
Superados los momentos más críticos de la gestión de Rodríguez San Pedro, la
Junta para Ampliación de Estudios no pasó demasiados apuros hasta que el esta-
llido de la guerra civil exacerbó las posiciones y dio rienda suelta a los decretos de
disolución, los procesos de depuración y los ajustes de cuentas. En líneas generales,
ni durante la última etapa de la Restauración, ni con la dictadura de Primo de
Rivera, ni mucho menos con la República hubo la Junta de temer la atroia de sus
actividades. La Junta y sus centros disfrutaron de un estatus difícil de equiparar con
otra institución académica, educativa o cientíica de la España de aquellos años.
Los recortes de autonomía que en verdad vivió la JAE con Primo de Rivera nunca
supusieron una amenaza seria e incluso, muy al contrario, a partir de los años veinte
se registra un intenso crecimiento de su labor, bien relejada por ejemplo en la so-
lidez del Instituto Nacional de Ciencias o del Centro de Estudios Históricos. Con
la llegada de la República la situación no haría sino mejorar notablemente, con es-
pecial relevancia en el terreno económico. En una época donde se estaban llevando

14 LAPORTA, Francisco, “La Junta para Ampliación de Estudios: primeras fatigas” en BILE, nº 14, 1992, pp. 39-
51.

98
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

a cabo recortes presupuestarios en otras materias educativas con vistas a equilibrar


el presupuesto, la Junta no sólo se libró de estos ajustes, sino que además vio crecer
considerablemente (hasta doblar) sus dotaciones económicas. El elemento clave
para garantizar a la Junta semejante tranquilidad durante tanto tiempo y bajo unas
circunstancias políticas que conmovieron más de una vez al país fue la habilidad
de su secretario, José Castillejo, quien rara vez perdió la templanza necesaria para
letar todos los proyectos de la JAE y el prestigio de su presidente, Santiago Ramón
y Cajal, igura indiscutible del panorama cientíico español e internacional. En últi-
ma instancia, el enfrentamiento entre institucionistas y sectores conservadores del
espectro académico español podría también interpretarse como la transposición
al mundo educativo de unas rivalidades ideológicas que se estaban jugando en los
niveles más generales de la sociedad y la política española.

LA CREACIÓN DE UN TEJIDO CIENTÍFICO EN ESPAÑA. POLÍTICA DE PENSIONES AL


EXTRANJERO Y FUNDACIÓN DE CENTROS DE INVESTIGACIÓN

La Junta nació con la diáfana intención de organizar la política cientíica en


España y dotarla de un nuevo rumbo acorde con las nociones más modernas de la
misma en Europa y los Estados Unidos. Dos fueron los instrumentos que la JAE
implementó con el objetivo de crear una estructura cientíica sólida en España: las
pensiones al extranjero y la fundación de centros de investigación que recogiesen
dentro del país los frutos que aquellos pensionados estaban cosechando fuera del
mismo. José Castillejo, secretario de la JAE durante gran parte de su existencia,
expresó en la primera Memoria de la Junta las motivaciones que impulsaron su
creación, fundamentadas en una “inquietud renovadora de una minoría que as-
pira a una formación cientíica sólida sobre la base de una educación humana e
ideal [...] Por otra parte, la corriente universal civilizada no tolera retraimientos,
y, proclamando que el pueblo que se aísla no tiene derecho a vivir, parece ofrecer,
como única alternativa, la de avanzar o ser arrollados. Ese es el origen de esta
Junta, y esos sus poderes”15. Las pensiones por sí solas no bastaban para impulsar
el desarrollo de la Ciencia, por lo que además resultaba imprescindible “iniciar,
como complemento, aquí dentro de España, trabajos de investigación cientíica,
comenzando por aquellas esferas donde el país […] ofrecía la materia primera del

15 J.A.E.I.C., Memoria correspondiente a los años 1907, tomo 1, Madrid, 1908, pp. 4-5.

99
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

estudio”16. A través de las pensiones se había de facilitar a los cientíicos españoles


los medios con los que profundizar en su formación. Los pensionados debían tener,
además, la garantía de que sus carreras no iban a quedar truncadas por la vuelta a
un país que no les garantizase la continuidad de su labor. Es por ello que la Junta
fundó, tan pronto como pudo, dos organismos de investigación que eran impres-
cindibles si se quería obtener el máximo rendimiento de dichas pensiones. Además,
en el futuro, aquello garantizaba también que los propios pensionados formados en
aquellos institutos iban a salir mejor preparados al extranjero y sabrían aprovechar
mejor sus estancias de investigación.
Los centros de investigación eran los que debían dotar a España de una moder-
na infraestructura de trabajo cientíico y los que habrían de formar a los investi-
gadores españoles en condiciones de competir con su homólogos extranjeros. Los
dos grandes institutos en torno a los cuales se vertebró el programa de fundaciones
de la Junta fueron el Centro de Estudios Históricos y el Instituto Nacional de
Ciencias Físico-Naturales. El primero fue creado en marzo de 1910 y tuvo como
director al ilólogo Ramón Menéndez Pidal. En él se concentraron los trabajos de
investigación sobre historia, arte, ilología, lingüística y literatura española17. En el
segundo, creado en mayo de 1910, desde un comienzo iguró Santiago Ramón y
Cajal al frente del mismo como presidente y Blas Cabrera como su secretario. En
torno a él se agruparon una serie de centros docentes y de investigación, dedicados
a las ciencias naturales, que ya existían en España. Estos establecimientos que se
incorporaron al mismo fueron el Museo Nacional de Ciencias Naturales, el Museo
de Antropología, el Real Jardín Botánico de Madrid, la Estación Biológica de San-
tander y el Laboratorio de Investigaciones Biológicas de Cajal, que con posterio-
ridad acabó convirtiéndose en el Instituto Cajal. La JAE fundaría asimismo otros
organismos y laboratorios que se incorporaron también al Instituto Nacional de
Ciencias. Estos fueron el Laboratorio de Investigaciones Físicas, la Estación Alpi-
na de Biología del Guadarrama, la Comisión de Investigaciones Paleontológicas y
Prehistóricas, el Laboratorio y Seminario Matemático y los laboratorios de Quí-
mica, Fisiología, Anatomía Microscópica, Histología, Bacteriología y Serología de
la Residencia de Estudiantes18.

16 J.A.E.I.C., Memoria correspondiente a los años 1907, tomo 1, Madrid, 1908, p. 13.
17 LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, Heterodoxos españoles. El Centro de Estudios Históricos, 1910-1936, Marcial
Pons. CSIC, Madrid, 2006.
18 OTERO CARVAJAL, Luis Enrique y LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, La lucha por la modernidad. Las cien-
cias naturales y la Junta para Ampliación de Estudios, Residencia de Estudiantes. CSIC, Madrid, 2012.

100
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

Desde su creación en 1910 hasta la Guerra Civil, el desarrollo histórico del


Centro de Estudios Históricos resulta en verdad bastante homogéneo. A lo lar-
go de los años veinte tanto la vida intelectual como administrativa del Centro
experimentó un deinitivo ímpetu que contribuyó decisivamente a su consoli-
dación como institución cientíica y vanguardia de la investigación humanística
en España. A los primeros años de ensayo y transformaciones, siguió una fase de
consolidación en que el Centro adquirió una isonomía deinida. Hasta 1922 se
fueron poniendo los sillares de toda una serie de iniciativas que se consolidarían
o no con el tiempo, pero que dotaron de gran personalidad al Centro. Hubo una
serie de secciones que adquirieron fuerza (Filología, Historia del Derecho, Arte y
Arqueología) y otras que se quedaron en el camino, como fue el caso de Metodo-
logía de la Historia de Altamira (1910-1918), Estudios de Filosofía contemporánea
de Ortega (1913-1916), las secciones de temática árabe y musulmana de Julián
Ribera, Miguel Asín Palacios (1910-1916) o Abraham S. Yahuda (1914-1918), y
las no natas de Marcelino Menéndez Pelayo y Joaquín Costa. Desde 1922 hasta
la guerra civil transcurrió un período de consolidación en el que los cambios no
fueron trascendentales. Lo más destacable, sin duda, fue la fundación en 1924 de
la sección dirigida por Claudio Sánchez-Albornoz, Historia del Derecho, a la que
se asoció el muy brillante Instituto de Estudios Medievales. Esta sección recogía
la herencia de Eduardo de Hinojosa, cuya muerte en 1919 privó al Centro de su
colaboración. En los años inmediatamente anteriores a la guerra Julián Bonfante,
Américo Castro y Pedro Salinas fundaron tres secciones, Estudios Clásicos (desde
1933), Estudios Hispanoamericanos (desde 1933) y Archivo de Literatura Española
(desde 1932) respectivamente, cuya consolidación no permitirían los aconteci-
mientos del verano de 193619.
La escuela de Ramón Menéndez Pidal supuso el paso decisivo de la gramática
del siglo XIX y de los estudios históricos de Milá i Fontanals a una deinitiva in-
corporación de las corrientes lingüísticas más modernas. Ramón Menéndez Pidal
puede ser equiparado a los grandes padres de la ilología románica (Diez, Ascoli,
Paris), pero su igura se hace más grande por la formación de una verdadera es-
cuela de ilólogos, que expandió y continuó su obra. Es aquí donde entra en juego
la importante presencia de la JAE y el Centro de Estudios Históricos, pues sin su
apoyo institucional habría sido imposible para Menéndez Pidal reunir a tan gran

19 LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, Las ciencias sociales en la Edad de Plata española. El Centro de Estudios Histó-
ricos, 1910-1936, Tesis doctoral, Facultad de Geografía e Historia de la Universidad Complutense de Madrid,
Madrid, 2004.

101
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

número de discípulos. Los discípulos de Menéndez Pidal se unieron a sus colegas


europeos en el dominio de las técnicas de la geografía lingüística, la etimología, la
fonética, la lexicografía o al idealismo de Vossler. La trascendencia de la escuela
de Menéndez Pidal es de una dimensión incalculable, dado el inlujo ejercido
sobre los estudios lingüísticos de posguerra. Se podría achacar a la escuela de
Menéndez Pidal la ausencia de una relexión más crítica acerca de las bases epis-
temológicas de su disciplina, pues salvo Amado Alonso pocos ilólogos del Centro
se preocuparon en serio por profundizar en los entresijos de la ciencia lingüística
y ilológica. Antes de considerarlo una tara, parece más bien una consecuencia
del nulo interés por participar en discusiones gnoseológicas ya que la prioridad
fue aplicar técnicas y métodos de investigación practicados en Europa y dotados
del suiciente reconocimiento cientíico al campo español, con el objetivo de dar
un barniz de validez cientíica a las conclusiones de sus trabajos. La escuela de
Menéndez Pidal hizo bueno aquello de el movimiento se demuestra andando y fue
a través de su práctica cientíica e investigadora como los discípulos de Menéndez
Pidal adoptaron o desecharon los postulados de las diferentes escuelas europeas.
La historia literaria ofreció las posibilidades más nítidas de encontrar los ele-
mentos deinitorios del ser y la psicología de los españoles. La teoría de la tra-
dicionalidad o el estado latente de Menéndez Pidal, la defensa de la existencia del
Renacimiento en la obra artística española o de la asunción por parte de los au-
tores españoles de las grandes líneas de pensamiento europeo fueron los frutos
más provechosos de las investigaciones. Pero no fueron los únicos, pues el terreno
fonético, lexicográico y etimológico contaron también con brillantes cultivadores.
En la incorporación de temáticas y líneas de investigación europeas, la sección
de Filología jugó también un papel fundamental a través de la fundación de una
Escuela Española para Historia y Arqueología en Roma o con la revista Emérita y la
sección de Estudios Clásicos.
La historia había sido la disciplina protagonista entre las ciencias sociales del
siglo XIX y el Centro se incorporó a la tradición decimonónica. El CEH se carac-
terizó por lo que he deinido como una “amplia práctica historiográica”, es decir,
la historia de España podía y tenía que ser descubierta a través de su lengua, su
arte, su Derecho y cualquier otro tipo de manifestación de su civilización. Fueron
Giner de los Ríos, Joaquín Costa, Miguel de Unamuno o Rafael Altamira los
primeros en vindicar este tipo de gnoseología histórica, a caballo entre el Volksgeist
y la praxis de la Kulturgeschichte. La historia fue urdimbre de la brillante activi-
dad desplegada por el Centro en materia de historia del Derecho. La fundación
del Anuario de Historia del Derecho Español puede considerarse un auténtico hito

102
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

en este sentido. Teniendo como referente a Eduardo de Hinojosa, el Anuario de


Claudio Sánchez-Albornoz fue el marco en el que los investigadores del Centro
rompieron con la praxis de la historiografía española decimonónica, asentada so-
bre un nacionalismo acientíico. La mayor parte de los publicistas de la revista se
adscribieron las nuevas corrientes de investigación socioeconómica e institucional
que dominaban los debates de la Kulturgeschichte y la historia de la civilización. El
hecho de que Georg von Below o Marc Bloch aparezcan entre los articulistas del
Anuario no es mera casualidad, sino que se estaba dando entrada en sus páginas a
los defensores más brillantes de estas nuevas corrientes de epistemología histórica.
El inlujo ejercido por la Vierteljahrzeitschrift für Sozial und Wirtschaftsgeschichte y
la Verfassungsgeschichte es más que evidente y el modelo de trabajo implementado
por esta revista alemana fue bien acogido por la redacción del Anuario20.
En el Instituto Nacional de Ciencias Físico-Naturales, por otra parte, la Junta
puso en marcha un plan sistemático de investigaciones en el terreno de las cien-
cias naturales. Conviene hacer un pequeño desglose de lo que esto representó en
la trayectoria de cada una de las disciplinas. Podemos empezar por el campo de
las Ciencias Físicas, donde la igura indiscutible fue Blas Cabrera, el primer físico
español que se puede caliicar verdaderamente de internacional. Los inicios de su
trayectoria académica coincidieron con la creación en 1903 de la Sociedad Espa-
ñola de Física y Química, que fue acompañada de su revista Anales de la Sociedad
Española de Física y Química, donde publicó varias de sus investigaciones y que le
sirvieron para relanzar su carrera, que pronto pasó por la obtención de una cátedra
en la Universidad de Madrid y un puesto en la Real Academia de Ciencias Exac-
tas, Físicas y Naturales de Madrid. La Junta encargó a Cabrera la dirección de su
Laboratorio de Investigaciones Físicas, aunque era consciente de que necesitaba
reforzar su formación con estancias en el extranjero, lo que hizo también a través
de una pensión de la JAE para estudiar Magnetismo en varios países europeos.
La labor más intensa la llevaría a cabo, no obstante, tras su regreso a España,
donde se convertiría en el principal introductor tanto de la relatividad como de
la teoría cuántica. Los trabajos del Laboratorio de Investigaciones Físicas resul-
taron trascendentales para el progreso de los estudios de física en España. A sus
investigadores se deben la inmensa mayoría de los artículos de investigación que
hasta 1936 vieron la luz en los Anales de la Sociedad Española de Física y Química.

20 LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, Heterodoxos españoles. El Centro de Estudios Históricos, 1910-1936, Marcial
Pons. CSIC, Madrid, 2006.

103
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Las pensiones facilitaron los contactos con el extranjero. Tras la Primera Guerra
Mundial, los viajes de físicos y químicos como Enrique Moles, Miguel Ángel Ca-
talán, Arturo Duperier y Julio Palacios permitieron estrechar los lazos ya iniciados
y crear dentro de España un grupo pequeño, pero muy activo, de físicos y químicos
que constituyeron las iguras egregias de dichas disciplinas en el país. En el La-
boratorio de Investigaciones Físicas trabajaron cinco grupos principales agrupados
en torno a Blas Cabrera (que dirigió dos, el de Física y el de Magneto-química),
Enrique Moles (Químico-física), Julio Guzmán (Electroquímica y Electroanálisis)
y Ángel del Campo (Espectroscopia). En aquel laboratorio también trabajaría Mi-
guel Ángel Catalán, a quien se debe la aportación más signiicativa de la historia de
la física española a la disciplina en general: el descubrimiento de los multipletes, que
contribuyó de manera decisiva al desarrollo de la teoría cuántica y la astrofísica. El
éxito de Catalán sirvió para que Cabrera pudiese justiicar ante la JAE la fortaleza
de su Laboratorio y de hecho la Junta terminó por lograr la colaboración de la Fun-
dación Rockefeller para que solucionase las carencias económicas del Laboratorio
y aportase el dinero suiciente como para transformarlo en el Instituto Nacional de
Física y Química en 1932.
Otra de las ramas cientíicas que experimento considerable desarrollo durante
el primer tercio del siglo XX y de la mano de la Junta para Ampliación de estudios
fue la Matemática. En este terreno, el nombre indiscutible es el de Julio Rey Pastor.
El primer contacto de Rey Pastor con la JAE fue, como no, a través de una pen-
sión, hasta que en 1915 se creó el Laboratorio y Seminario Matemático, al frente
del cual iguró naturalmente Rey Pastor y por el que pasaron los más importantes
matemáticos españoles de aquellos años. Pronto colaboró con la Sociedad Matemá-
tica Española en la publicación de la Revista Matemática Hispano-Americana, que
sustituyó en 1919 a la Revista de la Sociedad Matemática Española. No obstante, Rey
Pastor dejaría esta institución para aincarse en Argentina en 1920, donde había
sido invitado a dar cursos en la cátedra que tenía la Institución Cultura Española y
donde pronto conseguiría un contrato de profesor en la Universidad de Buenos Ai-
res. La relación de Rey Pastor con la JAE y su Laboratorio y Seminario Matemático
se iría diluyendo, muy a pesar de la Junta, por la negativa continuada de Rey Pastor
a asumir las responsabilidades de la escuela matemática en España y por su nueva
vida al otro lado del Atlántico.
En ciencias naturales la igura más destacada fue la de Ignacio Bolívar, director
del Museo de Ciencias Naturales. Él inyectó un impulso considerable a la biolo-
gía española a través del Museo de Ciencias Naturales, que en colaboración con
la JAE, impulsó un amplio programa de reformas y de trabajos de investigación.

104
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

Bolívar alcanzó notable fama como entomólogo a nivel internacional y participó en


las principales fundaciones de instituciones dedicadas a la investigación en ciencias
naturales del primer tercio del siglo XX en España. Desde el Museo de Ciencias
Naturales Bolívar revitalizó los estudios de Zoología, Geología y Botánica. En esta
labor estuvo magníicamente acompañado por toda una serie de naturalistas que
impulsaron deinitivamente el desarrollo de las ciencias naturales en España. Entre
ellos destaca Odón de Buen, que a pesar de sus diferencias con Bolívar, dirigió el
Instituto Español de Oceanografía. Junto a estas nuevas fundaciones, Bolívar trató
de dar nuevo aliento a revistas como Trabajos del Museo Nacional de Ciencias, que
contribuyeron a acabar con la languidez en que vivían las publicaciones del Museo
Nacional de Ciencias desde que en 1804 habían dejado de publicarse los Anales de
Historia Natural. En el campo de la zoología destacaron, además de Bolívar, José
Fernández Nonídez y Antonio de Zulueta, uno de los introductores de la genética
en España y difusor de la obra de Mendel. La zoología encontró asimismo exce-
lentes representantes en Enrique Rioja Lo-Bianco (anélidos), Luis Lozano Rey
(peces), Manuel Martínez de la Escalera (coleópteros), Ricardo García Mercet (en-
tomólogo), Ángel Cabrera Latorre (mamíferos) y Cándido Bolívar Pieltain, hijo de
Ignacio Bolívar, que se especializó en coleópteros.
Las ciencias biomédicas tenían en Santiago Ramón y Cajal a su igura egre-
gia indiscutible. En este campo la JAE consolidó la base cientíica procedente de
inales del siglo XIX, iniciando asimismo toda una estructura en programas de in-
vestigación en neurología, histología y isiología principalmente y con una especial
atención hacia el estudio del sistema nervioso. Cajal dirigía el Laboratorio de In-
vestigaciones Biológicas que con su revista Trabajos del Laboratorio de Investigacio-
nes Biológicas se convirtió en referencia internacional obligada en el campo de la
histología y la neurología. Este laboratorio terminaría convirtiéndose en 1932 en el
Instituto Cajal. Acompañando la labor del gran histólogo español se encontraban
colaboradores de gran prestigio. Nicolás Achúcarro llegó a ser una igura destacada
de la histología y neurología españolas. Formado en estancias de estudios en Alema-
nia, Italia y Francia. Achúcarro llegó a organizar un Laboratorio de Histopatología
del Sistema Nervioso, que más tarde se fundió con el de Investigaciones Biológicas
de Cajal. Su muerte prematura en 1918 privó a la ciencia española de una carrera
brillante en materia de ciencias biomédicas. El otro gran nombre de las investi-
gaciones histopatológicas es Pío del Río Hortega, que comenzó colaborando con
Achúcarro en su laboratorio y pronto se desplazó a Francia, Alemania e Inglaterra
para ampliar estudios. A la muerte de Achúcarro quedó al frente del Laboratorio de
Histopatología. Roces con los discípulos de Cajal y con éste último llevarían a que

105
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

la Junta creara para él un laboratorio de Histología Normal y Patológica, situado en


los sótanos de la Residencia de Estudiantes.
Este somero repaso al panorama de la ciencias biomédicas durante el primer
tercio de siglo XX queda coronado con los laboratorios que la Junta creó en la Re-
sidencia de Estudiantes. Ésta había sido fundada por la misma JAE en 1910, pero
desde 1915 se había trasladado de sede, a unos ediicios más espaciosos y adecua-
dos para las actividades que la Junta había previsto desarrollar en ella. Desde muy
temprano, ya en su primera ubicación, la Residencia contó con un Laboratorio de
Anatomía Microscópica, dirigido por Luis Calandre. En las instalaciones de nueva
construcción se inauguró el Laboratorio de Química Fisiológica, con Antonio Ma-
dinaveitia y José Sacristán al frente de su dirección, pero que funcionó solo hasta
1919. Poco después, en 1916, se unió a ellos el Laboratorio de Fisiología y Anato-
mía de los Centros Nerviosos, cuyo director fue Gonzalo Rodríguez Lafora, aunque
funcionó solamente dos años. Aquel mismo año se creó también un Laboratorio
de Fisiología General, que tuvo a Juan Negrín como director y por el que pasaron
discípulos tan sobresalientes como Severo Ochoa, Francisco Grande Covián, José
María García-Valdecasas y José Puche Álvarez. Finalmente, desde 1920 empezó
a funcionar también en la Residencia el Laboratorio de Serología y Bacteriología,
dirigido por Paulino Suárez, en el que el interés se centró fundamentalmente en el
estudio de los agentes patógenos y bacteriológicos en clínica. En general, se puede
decir que los laboratorios de la Residencia contribuyeron de manera notable al desa-
rrollo de las ciencias biomédicas en España, pero también es cierto que no cubrieron
todas las necesidades de las mismas, pues siempre adolecieron de precariedad en los
medios con que fueron dotados21. Estas carencias fueron paliadas, sólo en parte, por
las pensiones que la JAE otorgó a descollantes iguras de las ciencias biomédicas
españolas: Gonzalo Rodríguez Lafora, Jorge Francisco Tello, Fernando de Castro,
Luis Calandre, José Sacristán, Felipe Jiménez de Asúa o Rafael Lorente de No22.

21 BARONA, Josep L., “Los laboratorios de la Junta para Ampliación de Estudios e Investigaciones Cientíicas
( JAE) y la Residencia de Estudiantes (1912-1939)” en Asclepio, Año LIX, nº 2, 2007, pp. 87-114.
22 OTERO CARVAJAL, Luis Enrique y LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, La lucha por la modernidad. Las
ciencias naturales y la Junta para Ampliación de Estudios, Residencia de Estudiantes. CSIC, Madrid, 2012 y PUIG
SAMPER, Miguel Ángel (coord.), Tiempos de investigación. JAE-CSIC, cien años de ciencia en España, CSIC,
Madrid, 2007.

106
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

LA EDAD DE PLATA DE LA CIENCIA ESPAÑOLA. UN BALANCE DE LA POLÍTICA


CIENTÍFICA DE LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS.

Cuando en 1936 estalló la guerra civil, la ciencia española merced a la labor de


la Junta para Ampliación de Estudios había asistido a una auténtica edad de plata.
Los resultados de las pensiones, la creación de instituciones de investigación y el
establecimiento de estrechas relaciones con instituciones y cientíicos extranjeros
habían sido sus principales logros. Centros de investigación como el Instituto Ca-
jal, el Instituto Nacional de Física y Química, el Centro de Estudios Históricos, el
Museo de Ciencias Naturales o algunos de los laboratorios de la JAE, a pesar de la
precariedad de medios con los que se habían vistos obligados a desenvolverse cons-
tituían instituciones cientíicas que estaban en condiciones de igurar en el panora-
ma de la ciencia internacional. España estaba en condiciones de establecer por vez
primera en su época contemporánea un verdadero sistema de ciencia, compuesto
todavía por una reducida nómina de cientíicos, algunos de ellos con renombre
y alcance internacional, donde Ramón y Cajal había comenzado a dejar de ser
la excepción que conirmaba la regla. Los cientíicos consagrados como Santiago
Ramón y Cajal, Ignacio Bolívar, Pío del Río Hortega, Enrique Moles Ormella,
Claudio Sánchez-Albornoz o Juan Negrín por citar algunos de los más destacados,
habían creado escuela y jóvenes cientíicos como Severo Ochoa, Grande Covián,
Cándido Bolívar o Nicolás Cabrera Sánchez auguraban la continuidad de la labor
iniciada por la JAE.
El desmoronamiento del Estado republicano durante los primeros meses de la
guerra civil y la radicalización de esos días dieron lugar a detenciones de catedráti-
cos y cientíicos considerados desafectos a los aires revolucionarios que impregna-
ron el bando republicano. La Junta para Ampliación de Estudios fue contemplada
por estos sectores como sospechosa, debido a su espíritu liberal, vinculado con los
postulados regeneracionistas e institucionistas de muchos de sus miembros funda-
dores. La progresiva normalización de la zona republicana puso in a los excesos.
De hecho uno de los pilares de la República fueron los hombres que de una u otra
forma estuvieron vinculados a la JAE. Juan Negrín fue ministro del Gobierno de
Largo Caballero, para pasar a dirigir el Gobierno republicano hasta el inal de la
guerra civil, Blas Cabrera Sánchez, hijo de Blas Cabrera Felipe y discípulo de Ne-
grín, fue su secretario durante la guerra y Cándido Bolívar, hijo de Ignacio Bolívar,
fue Secretario General de la Presidencia de la República con Azaña. En cualquier
caso, la actividad de la JAE terminó con el estallido de la guerra civil, las circuns-

107
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

tancias de la misma y su desenlace pusieron in a la existencia de la Junta23.


La guerra civil frenó en seco la consolidación de un sistema cientíico en Es-
paña, cuyas bases se habían sentado a lo largo del primer tercio del siglo XX. Las
bases ideológicas y culturales de la dictadura del general Franco representaron un
retroceso de alcance histórico para el débil y frágil entramado cientíico español. La
depuración emprendida por los vencedores de la guerra civil golpeó con extrema
dureza al sistema educativo y cientíico español. Las depuraciones de maestros,
profesores de bachillerato, profesores universitarios y cientíicos excluyeron de la
práctica profesional a miles de personas capacitadas, condenadas a un duro y amar-
go exilio exterior e interior, cuyo coste no ha sido suicientemente ponderado para
el desarrollo educativo, la formación y la cualiicación de la sociedad española de la
larga posguerra. La continuidad de la actividad cientíica y del espíritu con el que
nació la JAE fue imposible tras la inalización de la guerra civil. El carácter ultra-
montano y reaccionario que alimentaba el llamado bando nacional veía a la JAE, al
ideario que la inspiró y vio nacer, y a sus hombres como enemigos y causantes del
mal que se pretendía extirpar a sangre y fuego.
Por el proceso depurador tuvieron que pasar todos los miembros de la comuni-
dad universitaria, afectos y desafectos, los jueces instructores gozaron de un poder
omnímodo que emplearon a discreción, en ocasiones para vendettas personales
sobre colegas de marcado carácter conservador y temprana adhesión a la rebelión.
Un proceso depuración carente de unas mínimas garantías jurídicas, en las que las
conductas políticas, sociales y morales fueron esgrimidas sin pudor y sin justiica-
ción por los jueces instructores. Un rumor, una acusación sin fundamento, un juicio
de intenciones bastaban para expulsar de la universidad a un colega consagrado o
a un joven prometedor, cuyo único delito había consistido en ser discípulo de un
catedrático perseguido. Sanciones en principio menores se convirtieron en expul-
siones deinitivas de la Universidad, el acusado permanecía atrapado en el laberinto
de la arbitrariedad de las autoridades educativas durante años24.
La separación deinitiva de la Universidad de catedráticos, auxiliares numerarios
y profesores temporales destruyó el tejido cientíico que a lo largo del primer tercio
del siglo XX había permitido el despegue de la ciencia en España25. Se desman-
telaron escuelas cientíicas con la expulsión de numerosos catedráticos, en plena

23 OTERO CARVAJAL, Luis Enrique y LÓPEZ SÁNCHEZ, José María, La lucha por la modernidad. Las cien-
cias naturales y la Junta para Ampliación de Estudios, Residencia de Estudiantes. CSIC, Madrid, 2012.
24 OTERO CARVAJAL, Luis Enrique (dir.), La destrucción de la ciencia en España. Depuración universitaria en el
franquismo, Editorial Complutense, Madrid, 2006.
25 CLARET MIRANDA, Jaume, El atroz desmoche. La destrucción de la Universidad española por el franquismo,
1936-1945, Crítica, Barcelona, 2006.

108
CIENCIA Y MODERNIDAD: LA JUNTA PARA AMPLIACIÓN DE ESTUDIOS Y SUS PROTAGONISTAS

madurez de su obra cientíica e intelectual, de sus discípulos y ayudantes, jóvenes


prometedores, que auguraban la continuación y consolidación de las líneas cientíi-
cas de sus maestros. Se actuó sin piedad y con saña, sin importar el coste que para
la estructura cientíica del país acarrease. Fueron desmanteladas escuelas cientíicas
como la de Histología, fundada por Ramón y Cajal, continuada por Jorge Fran-
cisco Tello, Fernando de Castro y Pío del Río Hortega; la de Fisiología, alentada
por Juan Negrín; la Psiquiatría y Neurología, impulsadas por Gonzalo Rodríguez
Lafora. Las Ciencias Naturales, impulsadas por la ingente labor de Ignacio Bolívar
Urrutia, quedaron tan seriamente dañadas que no lograron recuperarse del daño
sufrido. La Física y la Química que habían despegado bajo la estela de Blas Cabre-
ra y Enrique Moles sufrieron daños similares.
A la separación deinitiva de las cátedras y los puestos docentes de los profesores
numerarios, hay que añadirle la inhabilitación para el ejercicio de la docencia y el
disfrute de becas de los profesores temporales, cuyas carreras profesionales que-
daron brusca y deinitivamente interrumpidas, en la abrumadora mayoría de los
casos, pues tales sanciones, aparentemente menores, supusieron la imposibilidad
material de reanudar posteriormente sus carreras cientíicas y docentes. Las san-
ciones de orden menor, como el traslado a universidades de menor rango, el des-
plazamiento en el escalafón o la prohibición de desempeñar cargos directivos y de
conianza minaron las carreras de aquellos que tuvieron la fortuna de mantener sus
puestos docentes, a costa de quedar señalados de por vida. Los catedráticos depu-
rados asistieron impotentes a la expulsión de sus discípulos y al desmantelamiento
de sus escuelas cientíicas, integrando de una forma u otra el largo exilio interior
al que fueron condenados numerosos profesores de la Universidad española. Las
consecuencias y los costes los pagaron, en primer lugar, los profesores y el personal
de la Universidad y la JAE que sufrió el proceso depurador, pero también la socie-
dad española al quedar abruptamente interrumpida la Edad de Plata de la Ciencia,
cuyas realizaciones habían colocado a nuestro país en la senda que conducía a la
Europa moderna y desarrollada. El coste fue abrumador, se perdió un valioso ca-
pital humano del que España no estaba sobrada en aquellos años. La consecuencia
fue evidente, un retraso de decenios que sólo comenzó a repararse con el restable-
cimiento de la democracia tras la muerte del dictador.

109
Instituto Nacional de Investigação Industrial:
a investigação científica aplicada
ao desenvolvimento industrial
Ana Carina Azevedo
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

O Instituto Nacional de Investigação Industrial - INII - não foi até hoje alvo de
um estudo sistemático. Exceptuando a investigação feita pela Professora Doutora
Maria Fernanda Rollo quanto ao processo que levou à sua criação, as suas reais re-
percussões no sector industrial português não são ainda completamente conhecidas.
No entanto, é notória a sua importância enquanto agente de ciência e inovação para
o sector secundário português no período posterior à Segunda Guerra Mundial.
Criado em 1959, o INII nasceria de uma longa demanda pela formação de um
Centro Nacional de Produtividade que os técnicos responsáveis pela execução do
Plano Marshall desejavam, mas o Estado português pretendia evitar. De facto, o
início da década de 1950 foi marcado pelas tentativas norte-americanas de in-
trodução do conceito de produtividade, bem como das técnicas necessárias à sua
melhoria, nos sectores produtivos nacionais. A missão da ECA - Economic Coope-
ration Administration, justiicava esta necessidade airmando a indispensabilidade
de reforçar o melhoramento das técnicas agrícolas e dos métodos de produção
industrial, de forma a aumentar a produção e diminuir os custos, permitindo assim
reduzir os preços ao nível do consumidor, bem como a dependência de impor-
tações.1 Para que estes objectivos fossem cumpridos, era considerada essencial a
criação do Centro Português de Produtividade, à imagem dos que vinham a ser
formados nos restantes países participantes no Programa de Recuperação Europeu.
Entre 1950 e 1959, a problemática da criação de um Centro de Produtividade
em Portugal é, variadas vezes, colocada sobre a mesa pelos técnicos do Plano Mar-
shall, sendo sempre contornada pelo governo português, mesmo quando, em 1951,

1 Maria Fernanda Rollo, Portugal e a reconstrução económica do pós-guerra. O Plano Marshall e a economia portuguesa
dos anos 50, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Colecção Biblioteca Diplomática, Série D- 13, Lisboa, 2007,
p.437.

111
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

esta questão adquire uma outra visibilidade pela sua integração num ambicioso
Programa de Produtividade concebido pela ECA. Este programa necessitava, de
facto, segundo a missão da ECA, do enquadramento de um organismo que tivesse
como objectivo assumir a promoção do programa de produtividade que havia sido
estabelecido. O Estado português, por seu lado, tinha claras objecções à criação
deste centro, objecções essas que se prendiam sobretudo com o facto de ao Gover-
no ser apenas concedido o papel de simples membro do Conselho de Produtivida-
de e do projecto ser organizado em torno das Associações Industriais, não se arti-
culando com a organização corporativa. Mas outros motivos existiriam para esta
rejeição. Por um lado, os problemas que se colocavam à autorização do trabalho de
estrangeiros em território nacional e os conlitos com a legislação nacional quanto
às relações de trabalho. Por outro, o Estado procurava salvar a organização cor-
porativa e a sua doutrina, apresentando reservas quanto à forma de representação
dos trabalhadores e criticava o papel que as Associações Industriais e Comerciais
tinham no projecto. Assim, apesar do processo conducente à criação do Centro de
Produtividade ter dado grandes passos até 1952, continuaria a faltar a aprovação
do Governo, mais receoso das consequências da sua formação - principalmente
ao nível do perigo de ingerência externa - do que certo em apostar nos resultados
positivos que o mesmo poderia trazer à economia nacional. Tal como podemos
veriicar em muitas das decisões tomadas neste período, a manutenção do regime
era colocada acima de qualquer outro objectivo, sendo certo que este projecto não
se adequava facilmente ao peril do Estado Novo.
Porém, alguns dos objectivos do Centro Nacional de Produtividade seriam
cumpridos pela criação do Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII).
O INII seria instituído pela lei n.º 2089 de 8 de Junho de 1957 da Secretaria
de Estado da Indústria e criado e regulamentado como instituição pública pelo
decreto-lei n.º 42 120, de 23 de Janeiro de 1959, com o objectivo de promover, au-
xiliar, coordenar e aperfeiçoar o desenvolvimento industrial do País, constituindo-
se como um importante instrumento da opção pela industrialização expressa no II
Plano de Fomento, que contrariaria o caminho seguido nos anos 30 e 40. Nas pa-
lavras do seu primeiro director, Eng.º Magalhães Ramalho: “O Instituto é, de facto,
a última tentativa para que o povo português actualize a sua maneira de trabalhar
e de dirigir o trabalho. É a última tentativa no sentido de permitir à indústria na-
cional a supressão do atraso que regista em relação ao que se passa lá fora. E esse
atraso consubstancia-se, em especial, nos métodos de trabalho e no aproveitamento

112
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

integral das indústrias”.2 De facto, como podemos, também, veriicar pela análise
da lei n.º 2089, o INII apresentou, desde o seu início, o objectivo de se constituir
como um agente de inovação no sector secundário português, devendo “promover,
auxiliar e coordenar a investigação e assistência que interess[ass]em ao aperfeiçoa-
mento e desenvolvimento industriais do País”. Para tal deveria, como airma a base
II da mesma lei “assegurar, de um modo geral, a coordenação e o aproveitamento
dos meios, estudos e investigações de interesse para o progresso das indústrias;
[…] acompanhar a evolução e os progressos cientíicos e técnicos das diversas in-
dústrias portuguesas e estrangeiras e os seus processos de expansão económica;
[…] reunir e preparar, para fácil consulta e divulgação, os estudos, relatórios, textos
de patentes, informações e referências, nacionais ou estrangeiras, que possam ser
úteis ao aperfeiçoamento das actividades industriais já existentes ou à instalação
de novas indústrias no País; […] fazer estudos, ensaios e investigações cientíicas
ou técnicas de utilidade para a indústria, bem como promover ou auxiliar activi-
dades semelhantes de outras entidades nacionais, públicas ou privadas; […] criar,
manter ou dirigir museus tecnológicos, laboratórios, instalações de ensaio, estações
experimentais, fábricas-escolas ou centros de estudo ou de investigação de especial
interesse para o aperfeiçoamento ou desenvolvimento industrial, bem como pro-
mover ou auxiliar a criação e manutenção de instalações e actividades semelhan-
tes por outras entidades nacionais, públicas ou privadas; […] prestar assistência
cientíica e técnica aos industriais ou outras entidades públicas ou privadas que a
solicitarem; […] facultar […] a utilização dos seus laboratórios e serviços a cien-
tistas, técnicos, professores e alunos de escolas superiores e proissionais ou outras
entidades idóneas interessadas em estudos e pesquisas relacionados com a indús-
tria; […] promover […] a especialização, no País ou no estrangeiro, de cientistas,
técnicos ou pessoas de qualquer natureza, para a formação e aperfeiçoamento de
dirigentes, técnicos ou operários indispensáveis ao progresso da indústria nacional
ou aos serviços de assistência cientíica e técnica dependentes do próprio instituto;
[…] manter intercâmbio de estudos, pesquisas e informações com Universidades,
escolas técnicas, institutos de investigação, centros de estudo, laboratórios e ou-
tras entidades, públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, que desempenhem
actividades de interesse para o progresso das indústrias; […] promover, por meio
de cursos, conferências, congressos, demonstrações, exposições, documentários ci-

2 Diário da Manhã, 14 de Dezembro de 1959. Carlos Gonçalves, “A construção social dos quadros nos anos 60:
algumas perspectivas de análise”, Sociologia: Revista da Faculdade de Letras, Série 1, Volume 01, Faculdade de
Letras, Porto, 1991, p.107.

113
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

nematográicos, publicações e outros processos adequados, a divulgação dos co-


nhecimentos ou resultados obtidos em estudos e trabalhos cientíicos ou técnicos,
próprios ou alheios, especialmente entre as entidades de carácter cultural, econó-
mico, associativo ou proissional, ligadas aos problemas e actividades industriais;
[…] fazer-se representar em organizações, congressos, conferências ou reuniões
internacionais respeitantes a matérias compreendidas nas suas atribuições; […] dar
parecer ou sugerir providências sobre problemas de regulamentação tecnológica,
produtividade e normalização”.3
Para atingir os seus propósitos, o INII tinha ainda a possibilidade de “insti-
tuir prémios ou outras formas de recompensa ou distinção a conceder a entidades
singulares ou colectivas que contribuam, por forma digna de especial relevo, para
a investigação ou para o progresso cientíico ou técnico da indústria” e dispunha
ainda de uma série de facilidades e direitos, quer na importação dos materiais de
que necessitasse para o cumprimento das suas funções, tal como refere a base V do
mesmo decreto, quer na possibilidade de criação de delegações e serviços, privados
ou em colaboração com outras entidades, como airma a base VI. Também em ter-
mos de pessoal este decreto concedia ao Instituto a autorização para recorrer a fun-
cionários habilitados de qualquer organismo público, corporativo ou de cooperação
económica para completar o seu próprio quadro (base IX), bem como a técnicos
nacionais ou estrangeiros, a título próprio ou em colaboração com outras entidades
nacionais, considerados indispensáveis à boa execução dos serviços (base X). O
INII poderia ainda encarregar técnicos, organismos ou instituições, nacionais ou
estrangeiras, da execução de estudos, investigações ou tarefas cientíicas e técnicas
especíicas (base XI), sendo que o Ministério das Finanças icava, igualmente, en-
carregue de aplicar um regime de isenções tributárias sobre as importâncias “des-
tinadas a trabalhos de investigação de interesse para o desenvolvimento industrial
do País” (base XIII).
Por seu lado, o decreto-lei n.º 42 120, que cria efectivamente o INII, além de
desenvolver alguns aspectos que não haviam sido expostos na lei anterior, explica
ainda a necessidade de criação do Instituto, enfatizando o seu papel como agente
dinamizador do desenvolvimento e inovação industrial. Refere assim o decreto-lei:
“A carência cada vez mais acentuada de técnicos das várias especialidades; o de-
senvolvimento crescente da indústria nacional sob o impulso dos sucessivos planos
de valorização económica; as perspectivas resultantes das políticas de liberalização

3 Lei n.º 2089 - Promulga as bases para a criação, no Ministério da Economia, do Instituto Nacional de Investiga-
ção Industrial. Diário do Governo, I Série, n.º 133, 8 de Junho de 1957, pp.595-596.

114
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

de trocas e uniicação de mercados, com a consequente premência na obtenção de


condições competitivas e de expansão internacional do maior número de activida-
des nacionais, e, inalmente a aceleração que necessariamente terá de imprimir-se
aos sectores das técnicas e da investigação são de molde a justiicar uma inter-
venção rigorosa no sentido de dar solução adequada ao conjunto de problemas
assim criado. Concluídos os trabalhos e estudos relativos ao II Plano de Fomento,
julga-se oportuno criar um órgão de investigação e assistência técnica apto a co-
laborar com as actividades particulares na resolução das diiculdades tecnológicas
que hão-de surgir com o aperfeiçoamento da produção industrial”.4 Como pode-
mos veriicar, é notório um reconhecimento por parte da Secretaria de Estado da
Indústria, das transformações que, nestes inais dos anos 50, tinham lugar ao nível
nacional. Mais se reconhecia que, na esteira do II Plano de Fomento, a resolução
dos problemas criados por esta mesma transformação dependeria da existência
de um organismo que, em nome próprio ou em colaboração com entidades parti-
culares, surgisse como um pólo de investigação cientíica capaz de impulsionar o
desenvolvimento tecnológico necessário ao aperfeiçoamento da produção nacional.
Como tal, é previsto que o INII não só colabore activamente com outras entidades
nacionais como as indústrias e os organismos corporativos ou de coordenação eco-
nómica, mas também que os mesmos tomem parte integrante na acção do institu-
to. Esta situação é estipulada pelo artigo 3.º que refere que o conselho técnico do
INII, órgão consultivo a operar junto da Direcção e sob a presidência do Director,
seria constituído por “secções especializadas” nas quais deveriam estar representa-
das “as principais indústrias e actividades técnico-cientíicas” que interessassem aos
objectivos do Instituto. O artigo seguinte estipulava quais os organismos que nele
deveriam estar representados, todos eles tidos como importantes intervenientes no
sector industrial português: a Corporação da Indústria, escolas superiores e insti-
tuições cientíicas, “instituições ou entidades privadas que contribuam por forma
relevante para as actividades do instituto, bem como quaisquer individualidades
especialmente qualiicadas”.
São atribuídas, assim, ao INII algumas facilidades que tinham como objectivo
proporcionar-lhe os meios materiais e humanos necessários ao bom cumprimento
das suas funções. A nível material, podemos referir a tutela da Fábrica-Escola Ir-
mãos Stephens que, tal como é airmado no artigo 7.º, passa a ser considerada como

4 Decreto-Lei n.º 42120 - Cria, na Secretaria de Estado da Indústria, o Instituto Nacional de Investigação Indus-
trial, com sede em Lisboa e com a inalidade, competência e organização estabelecidas na Lei n.º 2089. Diário do
Governo, I Série, n.º 19, 23 de Janeiro de 1959, p.69.

115
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

um serviço externo do INII icando a competir a este Instituto todas as atribuições


anteriormente conferidas à Direcção-Geral dos Serviços Industriais. A nível do
pessoal são também conferidos alguns privilégios aos quadros do INII que tinham
como objectivo facilitar e impulsionar a utilização, no âmbito do Instituto, dos
quadros mais qualiicados, sem prejuízo dos seus cargos de origem. Tal encontra-
se airmado no artigo 12, parágrafo 1.º, ao referir que os funcionários requisitados
pelo INII poderiam regressar aos seus cargos de origem indo o período de requi-
sição e, caso estes não se encontrassem disponíveis, os seus vencimentos seriam
garantidos até ao reingresso ser possível. No seu conjunto, este diploma prevê que
o INII pudesse dispor de cento e vinte e dois funcionários entre pessoal dirigente,
técnico (como investigadores, analistas, preparadores e montadores, desenhadores
e técnicos auxiliares), pessoal administrativo e pessoal menor, como condutores,
contínuos, telefonistas e serventes. No que ao pessoal técnico diz respeito, este
constituía a maior fatia dos funcionários do Instituto, com setenta e sete pessoas,
das quais destacamos cinco chefes de divisão de estudos, doze investigadores, seis
analistas, seis preparadores ou montadores e seis desenhadores.5
Apesar de não corresponder inteiramente ao que era pretendido em relação ao
Centro Nacional de Produtividade, é notório, como referimos anteriormente, que
se pretendia que o INII se constituísse como um pólo de investigação e desenvol-
vimento aplicado à inovação da indústria. De facto, o INII é criado no mesmo pe-
ríodo em que entra em vigor o II Plano de Fomento, sendo um dos seus objectivos
a prossecução de uma política industrial mais activa. Ao atentarmos nos propósitos
do Plano para o sector secundário, veriicamos que estes se cruzam, em parte, com
as atribuições do INII, se tivermos em conta a aposta na investigação e nos no-
vos métodos de trabalho, bem como a necessidade de ser fornecida às empresas
cooperação técnica, bem como estudos e projectos organizados pelos serviços ou
custeados pelo Estado, como refere a base V da Lei n.º 2094.6 No fundo, tal como
airma Torres Campos, a criação do INII representa uma tentativa ténue de me-
lhorar o desempenho industrial através de uma alteração da forma de actuação dos
departamentos públicos responsáveis pela sua supervisão.7

5 Quadro de pessoal do Instituto Nacional de Investigação Industrial (anexo ao decreto-lei n.º 42 120). Diário do
Governo, I Série, n.º 19, 23 de Janeiro de 1959, p.70.
6 Lei n.º 2094 - Promulga as bases da organização do Plano de Fomento da metrópole e das províncias ultrama-
rinas para o período compreendido entre 1 de Janeiro de 1959 e 31 de Dezembro de 1964. Diário do Governo, I
Série, n.º 256, 25 de Novembro de 1958, p.1320.
7 José Torres Campos, “Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII)”, Dicionário de História do Estado
Novo, direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, volume I, Círculo de Leitores, Lisboa, 1996, p.485.

116
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

Apesar de, durante o período de vigência do II Plano de Fomento, o INII ter


centrado a sua acção no apoio à aplicação da lei de reorganização das indústrias e
no incremento à produção de novos bens e introdução de processos de fabrico mais
inovadores nas indústrias existentes, é notório que este foi, igualmente, responsá-
vel por um conjunto de iniciativas que tendiam dar a conhecer novos métodos de
trabalho e de gestão, entre as quais destacamos a realização de cursos e a publica-
ção de estudos. Além disso, o INII desenvolveu ainda relações próximas com os
organismos internacionais ligados ao processo de recuperação económica, como
a CTCEE - Comissão Técnica de Cooperação Económica Europeia e a AEP -
Agência Europeia de Produtividade, expressas principalmente no apoio recebido
pelo Serviço de Produtividade do INII, na colaboração com as suas iniciativas e na
participação do Instituto nos projectos da AEP.8 De facto, a criação do INII insere-
se na conjuntura de integração da economia portuguesa num espaço económico
mais amplo e nos desaios lançados por esta nova realidade a um sector industrial
caracterizado por um fraco nível tecnológico e organizativo. Era necessário mudar
a indústria nacional e é nesse sentido que o INII desenvolve a sua actividade, ba-
seando-se em dois pontos principais: por um lado, o apoio directo às indústrias no
sentido da melhoria de técnicas e métodos de trabalho e, por outro, a formação de
quadros técnicos especializados que pudessem ser garante desta mesma inovação.
De facto, o patronato oriundo do sector industrial mais moderno vinha já demons-
trando a necessidade de formação de quadros técnicos para o desenvolvimento
industrial, necessidade que, segundo eles, deveria ser suprida pelo Estado através
do sistema de ensino. No entanto, o sistema de ensino português não se encontrava
preparado para desempenhar tal função, tendo o INII tentado colmatar essa falha
através das suas iniciativas de formação, surgindo, assim, como um dos meios para
ultrapassar estas diiculdades e impulsionar o processo de industrialização.9
De facto, desde o inal de 1959, o INII foi responsável por um conjunto de
iniciativas bastante interessante, tendo como principal motor as questões da pro-
dutividade, do qual tentaremos evidenciar os principais contributos e inovações.
As acções de formação organizadas pelo INII são, talvez, uma das suas inicia-
tivas mais importantes, distinguindo-se pelo facto de se direccionarem aos qua-
dros e dirigentes dos organismos estatais, de forma a incutir-lhes a necessidade

8 Maria Fernanda Rollo, Portugal e a reconstrução económica do pós-guerra. O Plano Marshall e a economia portuguesa
dos anos 50, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Colecção Biblioteca Diplomática, Série D- 13, Lisboa, 2007,
p.494.
9 Carlos Gonçalves, “A construção social dos quadros nos anos 60: algumas perspectivas de análise”, Sociologia:
Revista da Faculdade de Letras, Série 1, Volume 01, Faculdade de Letras, Porto, 1991, p.125.

117
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de aplicação de novas técnicas de gestão e organização.10 Na realidade, a aposta


nos quadros superiores das empresas prende-se com a evidência de que qualquer
campanha em prol da inovação industrial estaria seriamente comprometida se não
fosse previamente formada uma base de apoio constituída por responsáveis es-
clarecidos que cooperassem com as acções que se impunham levar a cabo. Como
forma de atingir tal objectivo, foram organizados, a partir de 1960, os Ciclos de
Conferências sobre Produtividade, sendo que o primeiro, realizado na Faculdade
de Engenharia do Porto, no Instituto Superior Técnico, no Instituto Superior de
Ciências Económicas e Financeiras e nas Associações Industriais Portuguesa e
Portuense, contou com a presença de conferencistas franceses e belgas, que abor-
daram temáticas relacionadas com os novos métodos de organização de empresas
e gestão de pessoal, apresentando, igualmente, alguns resultados concretos da sua
aplicação em contexto internacional. Na sequência deste primeiro ciclo de confe-
rências passaram a realizar-se cursos breves para dirigentes e quadros superiores
que contaram, inicialmente, com o apoio da AEP e de organismos franceses e bel-
gas cujos técnicos orientaram as formações até 1965, sendo que, a partir desse ano,
os especialistas portugueses passaram a ter uma importância crescente como moni-
tores.11 No entanto, o papel atribuído aos técnicos estrangeiros nos primeiros anos
de funcionamento destes cursos deu origem a uma importante transferência de
conhecimentos, não só no que diz respeito aos temas tratados - principalmente nas
áreas da organização de empresas, gestão de pessoal, gestão comercial, marketing,
formação, pesquisa, planeamento e controlo -, mas também às técnicas pedagógi-
cas usadas que escapavam ao método expositivo mais comum, apostando no estudo
de casos concretos com participação activa dos instruendos, de forma a transmitir
não só conhecimentos, mas também outras formas de comunicação e de trabalho
em grupo. Até 1965, época de preponderância dos monitores estrangeiros, a maior
preocupação prendia-se com a transmissão de técnicas de organização cientíica
do trabalho e de gestão de quadros e de mão-de-obra na empresa. Como exemplo,
podemos referir a conferência orientada por Louis Salleron, professor de Econo-
mia Política da Faculdade Livre de Direito de Paris e director de Estudos e Forma-
ção do CEO, em Versalhes que, no inal de 1959, apresenta no Instituto Superior
Técnico uma comunicação intitulada A evolução da organização nas relações com a
evolução económica, a primeira de uma série que tinha em vista a “divulgação dos
conhecimentos e técnicas que estão na base do desenvolvimento económico indus-

10 Idem, Ibidem, p.127.


11 Idem, Ibidem, p. 129.

118
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

trial moderno”, como é referido na Indústria Portuguesa.12 A partir de 1962/1963,


o INII passou, também, a apostar cada vez mais em acções direccionadas para cada
sector industrial em particular e para a Administração Pública.
No fundo, as acções de formação do INII tinham a mais-valia de surgir como
um complemento do currículo das escolas de ensino superior e médio que não
eram ainda organismos difusores das novas técnicas em voga nos países indus-
trializados, além de propiciarem importantes fontes de actualização cientíica em
vários domínios. Neste âmbito surgem os dois cursos pós-universitários em gestão
e organização de empresas organizados em 1963 e 1964 em Lisboa e no Porto,
destinados a recém-formados e a dirigentes e quadros com experiência proissional
e dirigidos por técnicos nacionais do INII, da Universidade e de várias indústrias13,
bem como os estágios de administração de empresas e os estágios práticos de or-
ganização, os primeiros iniciados em 1962 com o apoio da Embaixada de França
e da Association pour l’Organisation des Stages en France e os segundos, destinados
a quadros de empresas e alunos universitários nos últimos anos curriculares que,
na Fábrica-Escola Irmãos Stephens, na Marinha Grande, observavam a aplicação
concreta das novas técnicas de organização.
Além das conferências, seminários e cursos, a acção do INII em prol da inovação
industrial do País passava, em grande medida, pela publicação de estudos contendo
notas sobre os conceitos e as técnicas mais recentes respeitantes ao desenvolvimen-
to económico ou sobre os resultados das investigações feitas a nível do Instituto e
pela publicação de artigos nas revistas patronais que, de facto, apesar de mais conci-
sos, tinham a mais-valia de atingir um maior número de industriais do que aqueles
que efectivamente participavam nas actividades de formação desenvolvidas pelo
INII. Estes artigos, da responsabilidade dos técnicos dos vários serviços e divisões
do Instituto, tinham um importante papel na divulgação das inovações técnicas
que o mesmo recebia das suas congéneres estrangeiras e das conclusões resultantes
das investigações por ele desenvolvidas. É na década de 1960 que esta tendência
mais se acentua, com uma presença constante de artigos da responsabilidade do
INII nas edições da Indústria Portuguesa, como são exemplo as contribuições de
Santos Loureiro, chefe da divisão de Estudos de Economia Industrial que, em
Abril de 1962 publica um artigo sobre a programação como instrumento de gestão
da empresa ou de José Torres Campos, engenheiro assistente do Serviço de Pro-

12 “Uma interessante iniciativa do INII”, Indústria Portuguesa, Revista da Associação Industrial Portuguesa, Ano
XXXII, n.º 382, Dezembro de 1959, p.459.
13 Carlos Gonçalves, “A construção social dos quadros nos anos 60: algumas perspectivas de análise”, Sociologia:
Revista da Faculdade de Letras, Série 1, Volume 01, Faculdade de Letras, Porto, 1991, p.140.

119
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

dutividade que, em 1965, escreve sobre o signiicado e utilidade de um serviço de


planeamento e controle de produção numa empresa industrial.14 Nesta publicação
surgem, igualmente, indicações sobre as acções combinadas do INII, da COPRAI
- Comissão de Produtividade da Associação Industrial Portuguesa e do CEGOC -
Centro de Estudos de Gestão e de Organização Cientíica da Associação Comer-
cial de Lisboa no âmbito da difusão de técnicas e princípios de organização. Como
exemplo, em Março de 1965, António Malta, assistente do Serviço de Produtivi-
dade do INII, publica na Indústria Portuguesa, em parceria com a COPRAI, um
artigo no qual refere a importância da existência de boas relações humanas para a
implementação de métodos tendentes à melhoria da produtividade.15 Também Sil-
va Serra, técnico responsável do Centro de Documentação e Informação do INII,
publica no mesmo órgão, na rubrica dedicada à COPRAI, um texto no qual refere
as vantagens das unidades itinerantes de assistência técnica à indústria usadas na
Grã-Bretanha pelo Production Engineering Advisory Service - PERA.16
Mas talvez o mais importante contributo do INII para a inovação e desenvol-
vimento industrial do País se prenda com os estudos feitos pelos seus técnicos, nos
quais eram diagnosticados os principais problemas e limitações que assolavam o
sector secundário nacional e através dos quais eram procuradas respostas e soluções
para ultrapassar as diiculdades sentidas e obter os resultados desejados em termos
de produção e produtividade, permitindo-nos, igualmente, compreender actual-
mente parte da actividade do Instituto.
De uma forma geral, podemos airmar que a acção do INII se desenvolvia em
torno de três pólos principais: a divulgação, a investigação e o diagnóstico da situação
industrial portuguesa, apostando em análises gerais ou sectoriais e apresentando um
grande interesse sobre as questões da produtividade. No que diz respeito ao objecti-
vo de divulgação de novas técnicas, este era maioritariamente dirigido aos métodos
que pudessem conduzir a melhorias na produtividade, quer fossem novas formas de
organizar e gerir as empresas industriais ou novos métodos de trabalho. De facto,
durante a década de 1960, o INII foi responsável pela edição de vários textos que se
centravam sobre as questões da reorganização interna das indústrias e da sua organi-

14 Santos Loureiro, “A programação como instrumento de gestão da empresa”, Indústria Portuguesa, Revista da
Associação Industrial Portuguesa, Ano XXXV, n.º 410, Abril de 1962, p.31; José de Melo Torres Campos, “Sig-
niicado e utilidade de um serviço de planeamento e controle de produção numa empresa industrial”, Indústria
Portuguesa, Revista da Associação Industrial Portuguesa, Ano XXVIII, n.º 444, Fevereiro de 1965, pp.87-91.
15 António Malta, “As relações humanas e as políticas de produtividade”, Indústria Portuguesa, Revista da Associa-
ção Industrial Portuguesa, Ano XXVIII, n.º 445, Março de 1965, pp.157-159.
16 H. Silva Serra, “COPRAI. Comissão de Produtividade da AIP. Unidades itinerantes – um exemplo concreto de
assistência técnica à indústria”, Indústria Portuguesa, Revista da Associação Industrial Portuguesa, Ano XL, n.º
470, Abril de 1967, pp.190-192.

120
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

zação e gestão comercial e administrativa, fornecendo pistas para que cada empresa
pudesse fazer o diagnóstico da sua situação e escolher o caminho mais adequado para
melhorar a sua prestação económica.17 Quanto aos estudos realizados pelos técnicos
do INII, estes versavam tanto sobre diagnósticos gerais ou sectoriais da situação da
indústria como sobre as potencialidades de novas técnicas para o seu desenvolvimen-
to. A produtividade do trabalho e da mão-de-obra foi, talvez, a temática que mais
interessou ao INII, sendo alvo de vários estudos diagnósticos ao longo da década de
1960. Quer no que diz respeito à produtividade da população activa portuguesa, quer
no que concerne à produtividade de sectores industriais especíicos, como é o caso
dos têxteis, os técnicos do INII dedicaram-se ao acompanhamento constante deste
fenómeno procurando compreender as causas dos resultados obtidos e as formas de
os melhorar.18 Ainda no que diz respeito à produtividade do trabalho, o INII apostou
na difusão das novas técnicas de organização criando a série intitulada Técnicas de
Produtividade, na qual era divulgada a metodologia de base para o estudo dos tempos
e métodos de trabalho, bem como dos movimentos mais indicados para a execução
de cada tarefa ou debatida a problemática da adaptação dos trabalhadores rurais aos
métodos do trabalho industrial, uma realidade importante em contexto de êxodo
rural como o que se vivia nos anos 60.19
O auxílio à indústria passava ainda por acções mais concretas como a divulgação
de informação técnica especializada necessária para um melhor desempenho de cada
ramo industrial, que compreendia não só a difusão de métodos de organização espe-
cíicos, mas também de novas técnicas de manuseamento e aplicação de materiais já
conhecidos ou a apresentação de novos materiais cuja utilização era mais rentável.20

17 António Malta, Estruturas e organização de empresas, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1960;
Formação e aperfeiçoamento em administração de empresas, (trad.) F. Magalhães de Sousa e J. Pinto dos San-
tos, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Industrial - Serviço de Produtividade, 1960; A. Pereira Magro,
Organização e gestão comercial das empresas industriais: produtividade, Instituto Nacional de Investigação Indus-
trial, Lisboa, 1965; Organização do trabalho administrativo no sector público, Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Lisboa, 1965 e Mário Cardoso dos Santos, Reorganização Interna de Empresas Industriais: Metodologia
de Diagnóstico, Ministério da Economia. Secretaria de Estado da Industria. Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Serviço de Produtividade, Lisboa, 1967.
18 Produtividade da Mão-de-obra na Indústria Têxtil de Fiação de Algodão, Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Lisboa, 1968; Luís Pereira Júnior, Produtividade da mão-de-obra na indústria têxtil de iação de algodão,
estudos de produtividade n.º 3, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1965; José de Melo Torres
Campos, A produtividade da população activa do continente português de 1950 a 1960, Instituto Nacional de Inves-
tigação Industrial, Lisboa, 1964.
19 Artur Cabral Sampaio, Medidas Directas de Produtividade na Indústria de Calçado Mecânico, Instituto Nacional
de Investigação Industrial, Lisboa, 1969; Mário Cardoso dos Santos, Jorge Guerra e José Silva, Evolução da
produtividade do trabalho, do emprego e da remuneração em quinze sectores da indústria transformadora (1953-1965),
Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1969; Mário Cardoso dos Santos, Evolução da Produtivi-
dade do Trabalho, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1969; Fernando José da Costa (coord.),
Medidas de produtividade na indústria da borracha: secção de preparação de pastas, Instituto Nacional de Investiga-
ção Industrial, Lisboa, 1964.
20 M. Elisabete Almeida Padinha, Processos de aplicação de tintas, 1.ª edição, Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Lisboa, 1977; Estudo das possibilidades de desenvolvimento das indústrias alimentares portuguesas: trans-

121
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

É notório que a divulgação destes estudos deva ter contribuído para o interesse
de alguns industriais num auxílio mais próximo por parte do INII. De facto, o
Instituto realizou uma série de análises, ensaios e estudos às empresas que o solici-
taram que, de certa forma, preenchiam uma lacuna sentida a nível nacional e que,
por norma, era colmatada com o recurso a técnicos estrangeiros, cuja entrada em
Portugal seguiu um processo de diminuição ao longo dos anos 60.21 Por último, é
importante referir o apoio que o INII prestou à indústria colonial, num processo
que se acentua e alarga no inal da mesma década. A parceria com a Associa-
ção Industrial de Moçambique leva o INII a desenvolver vários estudos tendentes
ao desenvolvimento industrial na então província ultramarina, numa conjuntura
de Guerra Colonial que é importante não esquecer. Na realidade, várias foram as
parcerias desenvolvidas ao longo do tempo com vários organismos. Além da CO-
PRAI, do CEGOC e da Associação Industrial de Moçambique, anteriormente re-
feridos, também o LNEC - Laboratório Nacional de Engenharia Civil, ou alguns
grémios de industriais operaram em parceria com o Instituto que, mais do que mo-
nopolizar, articulou as contribuições conjuntas dos restantes, prestando-lhes apoio
e desenvolvendo iniciativas e, principalmente, investigações que, de outra forma,
não se encontravam à sua disposição.
É possível, assim, airmar que o INII se constituiu como um espaço de in-
vestigação cientíica dedicado à indústria. Porém, quanto às consequências reais
dos seus esforços, estas parecem ter icado aquém do esperado por motivos que,
muitas vezes, escapam ao próprio Instituto. Por um lado, segundo é defendido
pelo estudo de Carlos Gonçalves, apenas um conjunto limitado de grandes em-
presas industriais e de serviços levou a cabo mudanças concretas nos seus modos
de organização e gestão, decerto inluenciadas pelas acções de formação do INII,
mas também como resposta às transformações económicas da época e aos desaios
por elas lançados. As próprias acções de formação seriam somente frequentadas
por quadros de grandes e médias empresas situadas nas zonas de Lisboa e Porto
e detentores de graus universitários.22 Também a investigação aplicada e a assis-
tência técnica à indústria foram limitadas, tímidas e lentas. Por outro lado, como
também refere Torres Campos23, não existia um ambiente envolvente adequado ao

formação de frutas e legumes, Instituto Nacional de Investigação Industrial. Grupo de laboratórios de Química e
Biologia, Lisboa, 1966.
21 Instituto Nacional de investigação Industrial, Tabela de preços de análises, ensaios e estudos, Ministério da Econo-
mia. Imprensa Nacional, Lisboa, 1970.
22 Carlos Gonçalves, “A construção social dos quadros nos anos 60: algumas perspectivas de análise”, Sociologia:
Revista da Faculdade de Letras, Série 1, Volume 01, Faculdade de Letras, Porto, 1991, p.151.
23 José Torres Campos, “Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII)”, Dicionário de História do Estado
Novo, direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, volume I, Círculo de Leitores, 1996, p.485.

122
A CASA DE SAÚDE DO TELHAL NA HISTÓRIA DA PSICOCIRURGIA: IDEIAS, ESPAÇOS, PRÁTICAS E PROTAGONISTAS

desenvolvimento destas iniciativas, com a maioria das empresas industriais a de-


monstrarem pouca receptividade aos novos métodos, principalmente na primeira
metade da década de 1960, quando as mesmas não sentiam necessidade de alterar
os seus processos organizativos e as suas técnicas. Uma situação que será agravada
com o início das Guerras Coloniais quando deixa de haver disponibilidade para
investimentos estatais na área do desenvolvimento das indústrias.
Porém, o carácter que o INII apresentou como agente de ciência durante todo
o período em que esteve em funcionamento não pode ser descurado nem obscure-
cido pela conjuntura em que o mesmo operou. Tal como fomos referindo, o INII
teve um papel de extrema importância na transmissão de conhecimentos técnicos
à indústria de acordo com o que ia sendo difundido e aplicado pelos organismos
europeus, bem como na elaboração de diagnósticos sobre a realidade industrial e na
realização de investigações aplicadas e destinadas ao apoio técnico que lhe estava
incumbido. Além disso, teve um papel importante na formação de um conjunto de
recém-licenciados e de quadros técnicos que viriam, mais tarde, a exercer funções
de responsabilidade nos cargos políticos, na administração pública e na indústria,
até à sua junção com a Junta de Energia Nuclear no processo de formação do
LNETI - Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial, já no pe-
ríodo posterior à revolução de 1974.

FONTES
Decreto-Lei n.º 42120 - Cria, na Secretaria de Estado da Indústria, o Instituto Nacional de Investigação
Industrial, com sede em Lisboa e com a inalidade, competência e organização estabelecidas na Lei n.º
2089. Diário do Governo, I Série, n.º 19, 23 de Janeiro de 1959, pp.69-70.
Lei n.º 2094 - Promulga as bases da organização do Plano de Fomento da metrópole e das províncias
ultramarinas para o período compreendido entre 1 de Janeiro de 1959 e 31 de Dezembro de 1964. Diário
do Governo, I Série, n.º 256, 25 de Novembro de 1958, pp.1319-1322.

BIBLIOGRAFIA
COSTA, Fernando José da (coord.), Medidas de produtividade na indústria da borracha: secção de preparação
de pastas, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1964.
Estudo das possibilidades de desenvolvimento das indústrias alimentares portuguesas: transformação de frutas
e legumes, Instituto Nacional de Investigação Industrial. Grupo de laboratórios de Química e Biologia,
Lisboa, 1966.
Formação e aperfeiçoamento em administração de empresas, (trad.) F. Magalhães de Sousa e J. Pinto dos
Santos, Instituto Nacional de Investigação Industrial - Serviço de Produtividade, Lisboa, 1960.

123
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

GONÇALVES, “A construção social dos quadros nos anos 60: algumas perspectivas de análise”,
Sociologia: Revista da Faculdade de Letras, Série 1, Volume 01, Faculdade de Letras, Porto, 1991.
Instituto Nacional de investigação Industrial, Tabela de preços de análises, ensaios e estudos, Ministério da
Economia. Imprensa Nacional, Lisboa, 1970.
JÚNIOR, Luís Pereira, Produtividade da mão-de-obra na indústria têxtil de iação de algodão, estudos de
produtividade n.º 3, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1965.
LOUREIRO, Santos, “A programação como instrumento de gestão da empresa”, Indústria Portuguesa,
Revista da Associação Industrial Portuguesa, Ano XXXV, n.º 410, Abril de 1962, p.31.
MAGRO, A. Pereira, Organização e gestão comercial das empresas industriais: produtividade, Instituto
Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1965.
MALTA, António, “As relações humanas e as políticas de produtividade”, Indústria Portuguesa, Revista
da Associação Industrial Portuguesa, Ano XXVIII, n.º 445, Março de 1965, pp.157-159.
MALTA, António, Estruturas e organização de empresas, Instituto Nacional de Investigação Industrial,
Lisboa, 1960.
Organização do trabalho administrativo no sector público, Instituto Nacional de Investigação Industrial,
Lisboa, 1965.
PADINHA, M. Elisabete Almeida, Processos de aplicação de tintas, 1.ª edição, Instituto Nacional de
Investigação Industrial, Lisboa, 1977.
Produtividade da Mão-de-obra na Indústria Têxtil de Fiação de Algodão, Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Lisboa, 1968.
ROLLO, Maria Fernanda, Portugal e a reconstrução económica do pós-guerra. O Plano Marshall e a economia
portuguesa dos anos 50, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Colecção Biblioteca Diplomática, Série
D- 13, Lisboa, 2007.
TORRES CAMPOS, José de Melo, A produtividade da população activa do continente português de 1950 a
1960, Instituto Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1964.
TORRES CAMPOS, “Instituto Nacional de Investigação Industrial”, Dicionário de História do Estado
Novo, direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, volume I, Círculo de Leitores, 1996, pp.485-
486.
TORRES CAMPOS, José de Melo, “Signiicado e utilidade de um serviço de planeamento e controle de
produção numa empresa industrial”, Indústria Portuguesa, Revista da Associação Industrial Portuguesa,
Ano XXVIII, n.º 444, Fevereiro de 1965, pp.87-91.
SAMPAIO, Artur Cabral, Medidas Directas de Produtividade na Indústria de Calçado Mecânico, Instituto
Nacional de Investigação Industrial, Lisboa, 1969.
Mário Cardoso dos Santos, Evolução da Produtividade do Trabalho, Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Lisboa, 1969.
SANTOS, Mário Cardoso dos, GUERRA, Jorge e SILVA, José, Evolução da produtividade do trabalho, do
emprego e da remuneração em quinze sectores da indústria transformadora (1953-1965), Instituto Nacional
de Investigação Industrial, Lisboa, 1969.
SANTOS, Mário Cardoso dos, Reorganização Interna de Empresas Industriais: Metodologia de Diagnóstico,
Ministério da Economia. Secretaria de Estado da Industria. Instituto Nacional de Investigação
Industrial, Serviço de Produtividade, Lisboa, 1967.
SERRA, H. Silva, “COPRAI. Comissão de Produtividade da AIP. Unidades itinerantes – um exemplo
concreto de assistência técnica à indústria”, Indústria Portuguesa, Revista da Associação Industrial
Portuguesa, Ano XL, n.º 470, Abril de 1967, pp.190-192.
“Uma interessante iniciativa do INII”, Indústria Portuguesa, Revista da Associação Industrial Portuguesa,
Ano XXXII, n.º 382, Dezembro de 1959, p.459.

Agradecimento
À Fundação para a Ciência e Tecnologia, sem o apoio da qual esta investigação
não teria sido possível.

124
A Junta Nacional de Investigação
Científica e Tecnológica (JNICT, 1967-1974).
Numa ‘esquina da história’... 1

Tiago Brandão2
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

“O dia de hoje parece revelar-se (a nós Ocidentais) como o render da guarda entre
o homem clássico, oriundo da Grécia e de Roma, e um novo homem, nascido
à sombra de fábricas e de laboratórios, gigantescos e automatizados.No dia de
hoje parece-nos poder airmar-se que amanhã a economia política dará o passo à
política económica...” 3
Leite Pinto, Uma esquina da história, 1962

JNICT 1967: UM MARCO FUNDACIONAL PARA O “SISTEMA CIENTÍFICO


PORTUGUÊS”?

A história das instituições cientíicas é um capítulo importante da história da


ciência e, julgamos, merece ser cuidado, simultaneamente enquanto domínio de
produção historiográica como igualmente um sector para a muito necessária pre-
servação arquivística.4

1 Este artigo decorre de um ‘paper’ intitulado exactamente «A Junta Nacional de Investigação Cientíica e
Tecnológica ( JNICT), 1967-1974. Numa “esquina da história”...», apresentado no dia 24 de Fevereiro de 2012
num Encontro Internacional organizado pelo HetSci | Grupo de Estudos sobre História e Ciência, intitulado
“Espaços e Actores da Ciência em Portugal (XVIII-XX)”, realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), nos dias 24 e 25 de Fevereiro de 2012. Este artigo, como o
‘paper’ então apresentado, fez parte de um trajecto que conduziu à elaboração de uma Tese de Doutoramento
sobre a história da organização da Ciência e da política cientíica em Portugal, tendo como eixo gravitacional uma
monograia sobre a JNICT. O principal objectivo na altura era elaborar simultaneamente uma síntese descritiva e
testar um conjunto de problemáticas que se consideraram centrais para estruturar a investigação e a redacção inal.
2 Doutor e investigador integrado do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC, FCSH-UNL). Tem vindo a estudar a história da organização
da ciência em Portugal, diversas instituições cientíicas, trabalhando sobre a temática da construção e deinição
da política cientíica em Portugal. Formado em História, depois de um Mestrado em História Contemporânea,
desenvolveu tese de Doutoramento intitulada A Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica (1967-
1974). Organização da Ciência e política cientíica em Portugal. Encontra-se presentemente a desenvolver projecto
de pós-doutoramento intitulado A Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica (1974-1997). Política
Cientíica em Democracia.
3 Francisco de Paula Leite Pinto, Uma esquina da história, Conferência realizada no Círculo Almeida Garrett, do
Porto no dia 23 de Novembro de 1962, p. 35 e 36.
4 Sem nos alargarmos demasiado, importa sem dúvida também acautelar a conservação do património documental

125
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Interessará sem dúvida o conhecimento empírico das realidades da administra-


ção da ciência. Neste aspecto, é a história institucional o pavio de uma história da
organização da Ciência e respectivas políticas cientíicas. Há, portanto, interesse
em delimitar a utilidade e o espaço de uma abordagem político-institucional, não
apenas no quadro da história da ciência, e sobretudo em Portugal, onde esta permite
reforçar o conhecimento sobre o próprio desenvolvimento cientíico português, mas
igualmente vindo inseri-la no quadro mais abrangente da história contemporânea
e contribuindo directamente para a compreensão da política cientíica portuguesa.5
Como já tivemos oportunidade de referir 6, a individualização de uma “aproxi-
mação político-institucional” ao fenómeno da ciência não teve uma origem disci-
plinar clara7 e, aliás, no âmbito da história, essa aproximação institucional assumiu
sempre um peril acentuadamente descritivo. O segundo pós-guerra e sobretudo
os anos 60 viram progressivamente tomar forma uma série de ensaios e estudos de
política cientíica, que se desenvolveram então, ao longo do crescimento desse novo
campo de responsabilidade governamental, ainda que sem autonomia e identidade
própria, e sobretudo sob o estímulo de organismos internacionais ou agências go-
vernamentais norte-americanas, emergentes do segundo pós-guerra.
É neste contexto histórico, e nesta ideia que se enquadrou a proposta de estu-
dar a JNICT e as origens do ‘sistema cientíico’ português. Com efeito, seja qual
valor que se pretenda atribuir à organização da Ciência durante o Estado Novo, no

tão necessário ao estudos das instituições portuguesas, nomeadamente no âmbito do desenvolvimento cientíico
português. Veja-se a criação do Arquivo de Ciência e Tecnologia, inaugurado em Dezembro de 2011 – http://
newsletter.fct.pt/h/n0/arquivo-ciencia-tecnologia. Para melhor conhecer este Arquivo veja-se o seguinte artigo:
Maria Fernanda Rollo; Paula Meireles; Madalena Ribeiro & Tiago Brandão, «História e Memória da Ciência
e da Tecnologia em Portugal. O Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia»,
Boletim do Arquivo da Universidade de Évora, XXV, 2012, pp. 233-261.
5 Atendemos, especialmente, à ideia de que a chamada “aproximação político-institucional” pode reforçar tanto o
conhecimento sobre o desenvolvimento cientíico português, como iluminar aspectos do processo político inter-
no do Estado português, capítulo importante das políticas públicas nacionais, mormente da política cientíica e
da economia política, nomeadamente no que se refere ao campo das políticas públicas e à compreensão do papel
do Estado e dos seus agentes.
6 Com efeito, tivemos oportunidade no âmbito de uma breve comunicação no I Encontro Nacional de História da
Ciência, realizado em 21 e 22 de Julho de 2009, propor pela primeira vez «A “aproximação político-institucional”
no quadro da história da ciência», na sessão sobre “Vias e Prioridades de Investigação”, decorrida a 22 de Julho
de 2009; o mesmo se fez no Brasil, na comunicação intitulada «Instituições e políticas cientíicas no século XX
português. Uma aproximação político-institucional à história da ciência» no âmbito do 2.º Congresso Luso-
Brasileiro de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia realizado na Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Centro de Ciências da Matemática e da Natureza CCMN – Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, Brasil,
entre 27 e 29 de Outubro de 2009; a adaptação da proposta foi feita para o quadro genérico da história contem-
porânea, mais recentemente, com a exposição intitulada «Uma aproximação “político-institucional” no quadro
da história contemporânea», no âmbito da Conferência “As Ciências Sociais – Novas Abordagens”, realizada no
Instituto de Ciências Sociais em 1 e 2 de Fevereiro de 2011.
7 Para seguir com maior pormenor onde se situa a “aproximação político-institucional” no âmbito da história da
ciência, compreender o processo de alargamento das temáticas historiográicas relativamente à ciência, nomea-
damente no sentido de se passar a valorizar os contextos cultural e político-social da ciência, e os vários embates
epistemológicos em causa, veja-se Tiago Brandão, A Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica (1967-
1974). Organização da Ciência e política cientíica em Portugal, Dissertação de Mestrado realizada sob a orientação
cientíica da Prof.ª Doutora Maria Fernanda Rollo, IHC, FCSH-UNL, Lisboa, 2008, pp. 7-19.

126
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

meio de tantas instituições criadas, há uma que importará sempre destacar: a Junta
Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica ( JNICT) – Decreto-Lei n.º
47 791, 11 de Julho de 1967. Criada, portanto, num período particular do Estado
Novo, num período em que o regime ensaiaria um último fôlego de adaptação às
circunstâncias económicas e políticas do mundo contemporâneo, tendo vivido a
JNICT numa constante tensão entre surdos interesses (durante um período de
transição silenciosa – falhada, no inal de contas), tenha-se particularmente pre-
sente que a JNICT foi criada numa encruzilhada – em 1967 –, numa encruzilhada8
simultaneamente doméstica, do regime português do Estado Novo, e geopolítica,
da Big Science e da Guerra Fria.
Este organismo foi criado com a incumbência de ‘planear, coordenar e fomen-
tar’ o esforço de investigação, tanto cientíica como tecnológica em todo o ‘espaço
português’ e sempre tendo presente a ‘máxima produtividade’ – preocupações com a
‘coordenação’ e a ‘duplicação’ dos esforços inanceiros. No seguimento das recomen-
dações de organismos internacionais – a ideia estava em marcha, mas as recomen-
dações e a experiência adquirida no plano da colaboração internacional veio reforçar
a legitimidade política da ideia –, a criação da JNICT veio assim assinalar, sem dú-
vida, uma nova fase no processo de ‘emergência’ ou construção da política cientíica
em Portugal, um processo longo e sinuoso já então com algumas décadas de história.
A JNICT emergiu assim, no seio do que modernamente chamamos como “siste-
ma nacional de ciência e tecnologia”, com uma missão bem deinida e, claramente,
distinta da dos restantes organismos e instituições de ciência existentes. A JNICT
foi, sem dúvida, antes de mais, um corpo encarregue da coordenação horizontal, ex-
plicitamente reconhecida, articulando os mundos da investigação cientíica e in-
clusive com outros sectores da vida nacional. À JNICT cumpria, nesse sentido,
orquestrar ou inluenciar um conjunto de instituições, entidades ou personalidades
no desempenho de diferentes funções tendo em vista o interesse nacional. Para
esse im, contava a JNICT, inicialmente, apenas com o poder de inluência do seu
primeiro presidente, o Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto9, que dispunha

8 Vasco Rato, «Marcelismo» in Dicionário de História de Portugal – Suplemento 8, coord. por António Barreto &
Maria Filomena Mónica, 1999, pp. 421-427.
9 Francisco de Paula Leite Pinto (1902-2000) – Pelo seu pensamento e acção, deve ser visto como uma igura
central na promoção de uma política cientíica em Portugal. Possuía vários diplomas universitários, nomeada-
mente a licenciatura em Matemática, o curso de engenheiro-geógrafo (Faculdade de Ciências de Lisboa) e o
curso da Escola Normal Superior de Lisboa. Enquanto bolseiro da Junta de Educação Nacional no início dos
anos trinta (1929-1934), em Paris, tirou ainda um diploma superior de Astronomia (Faculdade de Ciências de
Paris) e formou-se como Ingénieur des Ponts e Chaussées pela famosa Escola de Paris. Durante esse período foi
primeiro leitor de português da Sorbonne, entre 1931 e 1933. Em 1934 foi convidado para secretário-geral da
Junta de Educação Nacional, substituindo o entretanto falecido Luís R. Simões Raposo. Em 1936 assumiu a
mesma função no Instituto para a Alta Cultura (IAC). Ficará associado à Direcção do IAC, para além das suas

127
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de uma prestigiada carreira na administração pública, em que acumulou vários


contactos e sobretudo a experiência de um curriculum no campo da administração
da ciência em Portugal.

DISCURSO DE TOMADA DE POSSE DO PROF. ENG.º FRANCISCO DE PAULA LEITE


PINTO ENQUANTO PRESIDENTE DA JNICT, A 22

A JNICT foi, antes de mais, o antepassado da actual Fundação para a Ciên-


cia e a Tecnologia (FCT), resultado do desdobramento da JNICT em 1997, em
três entidades: a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que passava a ter
funções de avaliação e inanciamento, o Instituto para a Cooperação em C&T Inter-
nacional (ICCTI) e o Observatório das Ciências e Tecnologias (OCT), com funções
de observação, inquirição e análise10; isto no seguimento da criação, em 1995, do
Ministério da Ciência e Tecnologia, momento em que se anunciavam novas alte-
rações ao que entretanto se viria a designar como ‘sistema de ciência e tecnologia
português’. Também por isto alguns autores têm já olhado para a JNICT11, essen-
cialmente valorizando a sua criação. A JNICT foi percepcionada pela literatura
especializada como uma instituição central de todo o ‘sistema de C&T’, simul-
taneamente um marco para onde convergiu toda a narrativa sobre as instituições

funções como secretário-geral, adquirindo sucessivamente inluência nos circuitos da administração pública do
Estado Novo. Foi o primeiro presidente da Comissão de Estudos de Energia Nuclear do IAC (1954), de que já
fora impulsionador antes da oicialização e legalização da dita comissão. Entre 1955 e 1961 assumiu a pasta da
Educação Nacional, sendo considerado que exerceu uma acção reformista. Em 1962, ocupou o cargo de presi-
dente da Junta de Energia Nuclear de que fora promotor e vice-presidente. Exerceu mandatos de governador na
Agência Internacional de Energia Atómica, foi Reitor da Universidade Técnica (1963-1966) e também admi-
nistrador com o pelouro da Ciência na Fundação Calouste Gulbenkian (1967-1969). Devido à sua acção acabou
por ser criada, na Presidência do Conselho, em Julho de 1967, a Junta Nacional de Investigação Cientíica e
Tecnológica ( JNICT), organismo que se propunha coordenar a investigação cientíica nacional. Foi nomeado
primeiro presidente desta Junta coordenadora, abandonando a presidência da Junta de Energia Nuclear e depois
a Fundação Gulbenkian. Depois de 25 de Abril de 1974 retira-se para França e para o Brasil.
10 Aprova a Lei Orgânica da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Decreto-Lei n.º 188/97, Ministério da Ciência
e da Tecnologia, Diário da República, I-A Série, n.º 172/97, 28 de Julho de 1997. Manuel V Heitor. & Hugo
Horta, «Engenharia e desenvolvimento cientíico: o atraso estrutural português explicado no contexto histórico»
in Momentos de Inovação e Engenharia em Portugal no século XX, coord. por Manuel Heitor, José Maria Brandão de
Brito & Maria Fernanda Rollo Dom Quixote, Lisboa, 2004, pp. 1-51.2004, p. 19.
11 Beatriz Ruivo, «As Instituições de Investigação e a Políticas Cientíicas em Portugal» in Ciência em Portugal,
coord. de José Mariano Gago, 1991, p. 44; Maria Eduarda Gonçalves, «Mitos e realidades da política cientíica
portuguesa», Revista Crítica de Ciências Sociais, N.º 46, Outubro, 1996, p. 49 e s.; Idem, «Ciência II - A constru-
ção da política cientíica em Portugal 1967-1997» in Portugal nas artes, nas letras e nas ideias. 45-95, Centro
Nacional de Cultura, 1998, p. 248; Manuel V. Heitor & Hugo Horta, «Engenharia e desenvolvimento cientíico:
o atraso estrutural português explicado no contexto histórico» in Momentos de Inovação e Engenharia em
Portugal no século XX, coord. por Manuel Heitor, José Maria Brandão de Brito & Maria Fernanda Rollo, Dom
Quixote, Lisboa, 2004, p. 10; João Caraça, Do Saber ao Fazer: Porquê Organizar a Ciência, Colecção “Trajectos
Portugueses”, Gradiva, Lisboa, 1993, p. 130 e s.; Idem, «Ciência e investigação em Portugal no século XX» in
Panorama da Cultura Portuguesa no Século XX, Vol. 1 – As Ciências e as Problemáticas Sociais, coord. por Fernando
Peres, 2002, p. 219.

128
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

129
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

e políticas cientíicas e um ponto de partida de uma nova fase na história das


políticas de ciência em Portugal.
Todavia, nesta lógica de ponto de chegada e ponto de partida, o ponto de vista
histórico mostra bem que a JNICT não foi um acto isolado. Há todo um trajecto
histórico a ter presente. Todo um acervo do ponto de vista das ideias (do pensa-
mento), com nomes como Celestino da Costa, Simões Raposo, António Sérgio,
João Camoesas, etc., etc.. Toda uma experiência histórica acumulada, do ponto de
vista institucional, da Junta de Educação Nacional, e seus episódios preliminares,
até à JNICT, passando pela Junta de Energia Nuclear (1954) e outros laboratórios
do Estado (EAN-1936, JMGIC-1936, LNEC-1946, INII-1957) há todo um
percurso que mereceu já ser sublinhado.12 Ou seja, de uma forma ou de outra, a
criação da JNICT é, portanto, vista como um marco na história das instituições e
políticas cientíicas

PRINCIPAIS MARCOS DA ACTUAÇÃO DA JUNTA NACIONAL


DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (1967-1974)

A instalação da JNICT aconteceu por aproximações sucessivas, criando-se mes-


mo a ideia, inclusive na própria literatura, de que não teria verdadeiramente funcio-
nado antes de 1969 – há quem, informalmente, diga que apenas a partir de 1972,
aquando da assunção da função de planeamento para a área da ciência, a JNICT
mostraria serviço, o que faria coincidir o verdadeiro arranque da JNICT apenas com
o período do segundo presidente ( João Salgueiro13), que de facto apostou numa cer-

12 Este incremento recente da história das instituições cientíicas no âmbito da história da ciência mereceu,
inclusive, um projecto inanciado pela FCT: POCTI/HC/0077/2009, A Investigação cientíica em Portugal no
período entre as duas guerras mundiais e a JEN (he Scientiic Research in Portugal between two world wars and the
organization of a National Board of Education (SIRNEdu)). O próprio Instituto Camões, descendente da Junta
de Educação Nacional, interessou-se há uns anos pela sua própria história, promovendo um projecto de inves-
tigação, que arrancou em 2008 sob a coordenação da Prof. Doutora Maria Fernanda Rollo, nos termos de um
protocolo assinado entre o IHC e o IC. Projecto que teve recentemente desfecho com a publicação da obra de
Rollo, Maria Fernanda; Queiroz, Maria Inês; Brandão, Tiago & Salgueiro, Ângela, Ciência, Cultura e Língua em
Portugal no Século XX. Da Junta de Educação Nacional ao Instituto Camões, Instituto Camões, Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, Lisboa, 2012.
13 João Maurício Fernandes Salgueiro (1934-) – Economista. É tido como um dos chamados “tecnocratas” que
Marcelo Caetano incluiu no Governo. Licenciou-se em Economia pela ISCEF e especializou-se em planeamen-
to económico pelo Instituto de Haia, nos Países Baixos. Começou a sua carreira no Banco de Fomento Nacional
(1953-1963). Entre 1961 e 1969 assumiu os lugares de assistente e regente das cadeiras de Teoria Económica e
Desenvolvimento Económico no ISCEF. A partir de 1965 acumulou também as funções de director do Depar-
tamento Central de Planeamento e de secretário técnico da Presidência do Conselho, até ao ano de 1969. Foi
Subsecretário de Estado do Planeamento (Março de 1969 e Agosto de 1971). Em Janeiro/ Fevereiro de 1972
passou a presidir à JNICT, onde se manteve até Agosto/ Setembro de 1974. Enquanto Presidente da JNICT,
recorreu particularmente a técnicas de planeamento económico na programação da investigação e desenvolvi-
mento tecnológico (I&D), levada a cabo com os trabalhos preparatórios do IV Plano de Fomento. Participou
activamente na criação da SEDES (Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social – 25

130
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

Figura I: Organograma – Modelo de tutela plural (até aos inais dos anos 60)

131
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Figura II: Organograma – Tentativa de centralização (de inais dos anos 60 até 1974)

132
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

ta inlexão.14 Para esse im, de instalação, contou a JNICT, inicialmente, sobretudo


com o poder de inluência do seu primeiro presidente. Foi sem dúvida, na primeira
fase da JNICT (Abril de 1968-Outubro de 1971), decisivo o voluntarismo de uma
personalidade, Leite Pinto, que, como vimos, se assumiu “como igura de uma tran-
sacção entre o período salazarista e o período marcelista” – não obstante vir a ser
evidente certo distanciamento em relação ao novo Presidente do Conselho.15

TABELA I: PROCESSO DE INSTALAÇÃO DA JNICT E PRINCIPAIS MARCOS DA SUA EXISTÊNCIA ATÉ 1974

É criada, em Espanha, a Comisión Asesora de Investigación Científica y Técnica


Fevereiro de 1958
(CAICYT).
26 a 28 de Março de 1958 1.ª Reunião do Comité Científico da NATO.

O Decreto-lei n.º 42 120 cria, na Secretaria de Estado da Indústria, o Instituto


23 de Janeiro de 1959 Nacional de Investigação Industrial, com sede em Lisboa e com a finalidade,
competência e organização estabelecidas na Lei n.º 2089.

4 de Agosto de 1959 Criação da Comissão Coordenadora de Investigação para a INVOTAN.


1958/1960 Projecto Regional do Mediterrâneo – OCDE.

Maio de 1962 Nasce o Projecto das Equipas-Piloto em Ciência e Tecnologia – OCDE.

Colóquio da OCDE realizado em Frascati, Itália, para revisão e aprovação


do trabalho que viria a ser publicado com o título La Mesure des Activités
Scientifiques et Techniques. Méthode Type Proposée pour les Enquêtes sur
17 a 21 de Junho de 1963
la Recherche et le Développement, manual de estatística para a área da
Investigação & Desenvolvimento, e que viria a ficar conhecido como Manual de
Frascati.
Cria uma comissão interministerial para orientar superiormente a elaboração
de um estudo de conjunto sobre as necessidades da investigação científica
e técnica em função do desenvolvimento económico-social. A Comissão
14 de Outubro de 1965
promoverá, em colaboração com a Organização de Cooperação e
Desenvolvimento Económico (OCDE), a constituição de um grupo de trabalho
(equipa-piloto).
É celebrado um acordo entre o governo português e a OCDE para a constituição
Novembro de 1965 de um grupo português no âmbito das Equipas-Piloto do Projecto em Ciência e
Tecnologia – OCDE.

de Fevereiro de 1970). Em Agosto de 1974 tornar-se-ia vice-governador do Banco de Portugal (até Março de
1975). Foi presidente do Instituto de Investimento Estrangeiro (1981) e do Banco de Fomento e Exterior (1983
e 1992). Foi ainda professor convidado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica
(1985-1986) e da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (1986-2003). Fora também deputa-
do à Assembleia da República (1983-1985), tendo nesse mandato sido presidente da Comissão Parlamentar de
Economia e Finanças. Foi também vice-presidente do Conselho Económico e Social e presidente da Associação
de Bancos Portugueses. Mantém docência na Faculdade de Economia da UNL.
14 Beatriz Ruivo fala em quatro períodos, «um a partir de 1969, quando a JNICT se tornou operacional, a 1971; de
1972 a 1974; de 1978 a 1985, e de 1986 a 1989.». Assinala que «esta periodizagem é reconhecida por estudiosos da
temática da política cientíica em Portugal.» Beatriz Ruivo, op. cit., 1998, p. 208; Arquivo Histórico da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, Relatório JNICT, JNICT: 21 anos de actividade, JNICT, “Série documentos de
trabalho”, Lisboa, 1988, Biblioteca Cota B05, 7631, p. 4.
15 Tiago Moreira, «Pinto, Francisco de Paula Leite» in Dicionário de Educadores Portugueses, dir. por António
Nóvoa, Edições Asa, Porto, 2003, pp. 1099-1104.

133
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Cria, na Junta de Investigações do Ultramar, a comissão de planeamento


da investigação científica e tecnológica com incumbência de habilitar o
20 de Junho de 1967
Ministério do Ultramar a planear as correspondentes actividades em função do
desenvolvimento económico-social.
Cria-se na Presidência do Conselho a Junta Nacional de Investigação Científica
11 de Julho de 1967
e Tecnológica (JNICT).
Discurso de tomada de posse de Francisco de Paula Leite Pinto enquanto
22 de Julho de 1967
presidente da JNICT.
Fevereiro de 1968 Relatório da Equipa-Piloto sobre Portugal.
8 de Abril de 1968 Primeira reunião do Conselho Geral da JNICT.
27 de Setembro de 1968 Marcelo Caetano é nomeado Presidente do Conselho
Criação das Comissões Permanentes da JNICT (para áreas consideradas
1970-1971
estratégicas, como Oceanografia, Espaço Exterior e Poluição e Meio Ambiente).
Envolvimento da JNICT nos trabalhos preparatórios do IV Plano de Fomento
1972
(1974-1979).
Publicados os primeiros dados dos inquéritos ao Potencial Científico e
Junho de 1973
Tecnológico Nacional, relativos a 1971.
25 de Abril de 1974 Revolução dos Cravos e fim do regime do Estado Novo.

Depois de alguns impasses iniciais, nomeadamente devido a um longo processo


de instalação, foram progressivamente lançadas algumas iniciativas, como, desde
logo, a criação de grupos de trabalho voltados para áreas de interesse. Por exemplo:
i) a inventariação e coordenação da investigação na área das madeiras, resultan-
te da iniciativa de industriais do sector, através da Corporação da Indústria; ii)
a inventariação da investigação em biologia, sendo mesmo que os inventários ao
Potencial Cientíico e Técnico do País, directamente conduzidos pela JNICT, co-
meçariam por aqui; iii) promoção e coordenação da investigação em oceanograia,
com várias diiculdades aliás, entre as quais tensões com o Ministério da Marinha
e o Instituto Hidrográico, representando os militares, que detinham os meios,
mas que alegadamente não possuíam capital humano com “nível cientíico”; iv) os
estudos de poluição do estuário do Tejo, de colaboração com a ‘OTAN cientíica’16;
v) o projecto de uma Rede Nacional de Informação Cientíica e Técnica, em que
colaborou o INII17, entre outros laboratórios e entidades do Estado – esta Rede
teria um papel supletivo, das políticas de desenvolvimento, considerando-se que a
informação desempenhava, “junto dos órgãos do Governo, um papel primordial, na
medida em que lhe [daria] o apoio necessário na preparação das suas decisões.”18;

16 Tiago Brandão, «Portugal e o Programa de Ciência da OTAN (1958-1974). Episódios de história da ‘política
cientíica nacional’», Relações Internacionais, Setembro, n.º 35, 2012, pp. 81-101.
17 Vide organogramas.
18 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/778/07, Relatório da Junta nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica intitulado Política
Portuguesa de Informação Cientíica e Técnica. Contribuição para o estabelecimento da Rede Nacional, datado de

134
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

vi) o projecto de reforma da legislação de propriedade industrial, também mereceu


alguma manobras de ‘coordenação’ promovidas a partir da JNICT.19 Elencámos
apenas algumas, entre muitas outras iniciativas, envolvendo inúmeros grupos de
trabalho ad hoc.
Simultaneamente, à JNICT coube ainda a participação, ou coordenação da par-
ticipação, em reuniões internacionais (OTAN, OCDE, CEE e até UNESCO).
Havia sido este, aliás, o argumento que convencera Oliveira Salazar a anuir na
criação da JNICT, seguindo aquela lógica de não “icar de fora” – Salazar aceitara
que “Portugal se não podia atrasar no desenvolvimento da investigação cientíica e
tecnológica e que devia colaborar nos projectos de âmbito internacional.”20 E não
tanto, portanto, como Leite Pinto tinha em mente, “a interligação entre planos
de Fomento Cultural, Planos de Formação de Mão-de-Obra qualiicada e Pla-
nos de Fomento Económico, levando estes em conta uma Política Industrial.”21
– articulando-se as políticas cientíica, tecnológica e industrial, um dos objectivos
da ‘coordenação’... Em termos daquilo que esteve na base da criação da JNICT, a
necessidade da governação poder vir a contar com os “indispensáveis conselheiros
cientíicos”22, apesar das intenções de Leite Pinto, não pareceu igualmente ter con-
tado com a sensibilidade da elite política... O facto é que a atribuição da JNICT
de coordenar as relações externas no plano cientíico cedo avançou mais do que
as outras prerrogativas, assistindo-se a um crescimento exponencial deste serviço
(levando mesmo à ruptura da sua incipiente “estrutura administrativa”), tanto mais
que, na transição dos anos 60 para a década de 70, se assistiu a uma profusão de
iniciativas internacionais carregadas de dimensões técnico-cientíicas ou estrita-
mente cientíicas – é lembrar, por exemplo, as iniciativas no âmbito do Ambiente,
inclusive antes da Conferência das Nações Unidas (Estocolmo, Junho de 1972).
Importa, ainda, referir o estabelecimento de estruturas permanentes, sobretudo
com a criação de várias comissões. O signiicado das comissões permanentes é
particularmente interessante. Previstas pela lei orgânica da Junta, foram criadas

Março de 1970, p 3.
19 Arquivo Histórico da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Relatório JNICT, JNICT: 21 anos de actividade;
JNICT: “Série documentos de trabalho”, Lisboa, Biblioteca Cota B05, 7631, 1988, pp. 2-3.
20 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/G-370/3, Nota sobre a instalação da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica,
com dupla datação de 7 e 9 de Fevereiro de 1970, assinada por Francisco de Paula Leite Pinto, seu Presidente,
em que se relata algumas etapas da instalação da JNICT, bem como alguns aspectos do seu funcionamento.
21 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/G-367/06, Ofício n.º 2412, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica e
Tecnológica, Francisco de Paula Leite Pinto, ao Subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João
Salgueiro, datado de 17 de Junho de 1970.
22 Francisco de Paula Leite Pinto, Uma esquina da história, Conferência realizada no Círculo Almeida Garrett, do
Porto no dia 23 de Novembro de 1962, p. 40.

135
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

para “acelerar” o passo nalgumas áreas cientíicas consideradas estratégicas e assim


“não perdermos o contacto com o pelotão internacional”... tinham ainda “como im
principal a elucidação dos ‘órgãos colegiais’ da Junta para as propostas a apresentar
ao Presidente do Conselho”. De facto, Leite Pinto defendia que os dirigentes só
teriam possibilidade de elaborar propostas e formular medidas de política a nível
governamental se tivessem na base os estudos dos especialistas.23

TABELA II: COMISSÕES PERMANENTES JNICT

Comissão Data de Diploma Objectivos


Permanente criação

No sentido de o País não ficar ausente do movimento


internacional de cooperação e intercâmbio, a comissão devia
Comissão
14 de monitorizar as potenciais vantagens práticas da exploração do
Permanente Portaria
Janeiro espaço extra-atmosférico, promover a actualização dos nossos
de Estudos do n.º 29/70
de 1970 especialistas de astronáutica, bem como reunir a documenta-
Espaço Exterior
ção e a informação para a divulgação de conhecimentos indis-
pensáveis ao aproveitamento dos nossos recursos naturais.

Colaborar nos projectos científicos e tecnológicos aprovados


Comissão 12 de ou recomendados pelo Comité Científico e pelo Comité dos
Portaria
Permanente Março Desafios à Sociedade Moderna da OTAN, bem como gerir
n.º 141/70
INVOTAN de 1970 os planos de bolsas de estudo, cursos de especialização e
subsídios a projectos de investigação da OTAN.

Intensificar a investigação científica e tecnológica e a consci-


Comissão 19 de
Portaria ência política e social em relação aos problemas da preserva-
Nacional do Junho
n.º 316/71 ção e melhoria do ambiente, a conservação da Natureza e a
Ambiente (CNA) de 1971
protecção e valorização dos recursos naturais.

Comissão Coordenar a colaboração com as comunidades europeias


Permanente para (C.E.C.A., C.E.E., Euratom) e com a O.C.D.E., em particular as
a Cooperação centradas em torno de actividades científicas e tecnológicas
3 de
Científica e Portaria que respeitassem ao progresso económico, bem como colocar
Julho
Técnica com as n.º 357/71 à disposição da Comissão Interministerial de Cooperação
de 1971
Comunidades Económica Externa cientistas e técnicos que pudessem cola-
Europeias e com borar em empreendimentos de cooperação internacional em
a OCDE (COCEDE) matérias de ciência e tecnologia.

Fonte: Diário do Governo, I.ª Série.

23 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/361/8, Ofício n.º 457, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnoló-
gica, Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, datado de 20 de
Fevereiro de 1970.

136
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

Assim, além de serem encaradas como forma complementar de dar “estrutura


administrativa” à JNICT, os “planos elaborados pelas Comissões [eram encara-
dos como] achegas à deinição das bases de uma política cientíica nacional, uma
das atribuições desta Junta”24, pois os grupos de trabalho tendiam a funcionar à
margem das lógicas burocráticas de uma repartição e, assim, menos propensos a
enquistarem-se numa mentalidade de expediente. Uma outra vantagem deste es-
quema das comissões permanentes residia no facto de a partir da implementação
prática e diária de hábitos de reunião, dos diversos representantes sectoriais inte-
ressados nos tópicos especíicos desses grupos, se conigurarem assim autênticas
“células da coordenação”25.
No que refere a esta dinâmica de estudos e coordenação de actores e interesses,
já no inal do período, em 1972, a JNICT aproximou-se ainda da óptica do pla-
neamento, assumindo a função de gabinete sectorial de planeamento para a área
horizontal da ciência e tecnologia, área que nos planos anteriores de fomento não
aparecia autonomizada, envolvendo-se a JNICT, doravante, nos trabalhos prepara-
tórios do IV Plano de Fomento.
Como principais iniciativas levadas a cabo pela JNICT é, por im, de referir a
sistematização das actividades de inventariação dos recursos em Ciência e Tecno-
logia – de facto, foi dada prioridade à inventariação contínua dos recursos cientíi-
cos nacionais, retomando os trabalhos da Equipa-Piloto e do Instituto Nacional de
Estatística (1964 e 1967) e assim, em Junho de 1973, foram publicados os dados,
relativos a 1971, sobre despesa, pessoal e bibliograia no campo cientíico e técnico
em Portugal.26

24 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Presidência do Conselho, Gabinete do Subsecretário de


Estado do Planeamento Económico, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/SGPCM/
AOS/361/8, Ofício n.º 449, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, Prof.
Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, datado de 17 de Fevereiro
de 1970.
25 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica,
PT/SGPCM/AOS/G-370/3, Nota informativa, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica
e Tecnológica, Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Subsecretário de Estado [sem mais indicação],
datada de 7 e 9 de Fevereiro de 1970. Idem, PT/SGPCM/AOS/361/8, Ofício n.º 457, pelo Presidente da Junta
Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Presidente do
Conselho, Marcelo Caetano, datado de 20 de Fevereiro de 1970.
26 JNICT: 21 anos de actividade; JNICT: “Série documentos de trabalho”, Lisboa, Biblioteca Cota B05, 7631, 1988,
pp. 3-4. Serviços de Inventário e Análise de Recursos da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnoló-
gica, Anuário de Ciência e Tecnologia 1975, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, Serviços de
Inventário e Análise de Recursos, Lisboa, 1975.

137
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

TABELA III: DESPESA NACIONAL BRUTA EM I&D POR SECTORES DE EXECUÇÃO (1964, 1967 E 1971)

Sectores 1964 1967 1971* 1971

(A preços correntes, em Contos)

Estado 176.232 222.230 334.928 384.451

Ensino Superior 16.715 23.762 126.420 138.724

Empresas 58.815 51.701 156.500 185.945

Instituições privadas sem fins lucrativos 14.018 22.695 25.786 42.069

Total 265.780 320.388 643.634 751.189

% do PNB 0,28 0,24 0,32 0,38

(A preços constantes, em Contos)

1964 1967 1971* 1971

Estado 172.707 189.784 244.497 280.649

Ensino Superior 16.381 20.293 92.267 101.269

Empresas 57.639 44.153 114.245 135.740

Instituições privadas sem fins lucrativos 13.737 19.381 18.824 30.710

Total 200.464 273.611 469.853 548.363

(*)
ajustado ao âmbito de 1964 e 1967 (exclui as ciências sociais e humanas e as empresas dos sectores “comércio”,
“armazenagem” e “serviços”
Fonte: Recursos em Ciência e Tecnologia Inventário 1971, JNICT, 1973, p. 18 e s..

138
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

TABELA V: DISTRIBUIÇÃO DAS DESPESAS COM I&D EM PAÍSES DA OCDE, EM 1971

Distribuição % por Sectores


País
Instituições privadas
Empresas Ensino Superior Estado
sem fins lucrativos
Alemanha 67,4 19,1 3,1 10,4
Suécia 64,4 23,0 0,1 12,2
Japão 66,5 18,6 1,4 13,5
Estados Unidos 66,5 13,8 3,9 15,9
Holanda 60,3 20,4 1,7 17,6
Noruega* 49,8 29,4 0,5 20,3
Inglaterra* 64,5 8,4 2,8 24,3
Dinamarca* 47,7 22,7 5,0 24,6
Canadá 37,6 27,3 <= 35,2
Irlanda 40,8 13,8 0,7 44,7
Espanha* 42,7 3,3 _ 54,0
Portugal** 25,1 14,6 5,1 55,2
Grécia 25,9 15,0 2,2 56,9

* 1970 ** 1972
Fonte: Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Boletim Investigação & Desenvolvimento, Boletim
Informativo da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, Ano II, n.º 19, Março, 1974, cota PT/
SGPCM/AOS/GE-826/10.

Para que se possa ter uma noção conveniente destes indicadores, é preciso ter
presente que, nos Estados Unidos, já nos anos 1920 se registava um valor que equi-
valia a 0,1% ou 0,2% do respectivo Produto Interno Bruto (PIB), 0,5% do PIB em
1945, valor que passaria para cerca de 3% nos anos 6027, em pleno apogeu da Big
Science. A OCDE vinha defendendo uma meta de 1% já desde os anos 60, valor
deinido como fronteira para os países desenvolvidos e que até há bem pouco tem-
po era um grande objectivo de política cientíica em Portugal; entretanto, porém, a
Comissão Europeia em 2002 adoptou a meta dos 3%. Portugal atingiu 1,02% do
PIB apenas em 2006 – em 1986 ainda andava nos 0,36% do PIB e, em 1997, estava
nos 0,59... Os Estados Unidos, por seu lado, desde os anos 80 que estabilizaram
nos 2,5 / 2,7% – passadas portanto as euforias tecnológicas da Guerra Fria...28

27 Caraça, João, «Ciência e investigação em Portugal no século XX» in Panorama da Cultura Portuguesa no Século
XX, Vol. 1 – As Ciências e as Problemáticas Sociais, coord. por Fernando Peres, Edições Afrontamento & Fundação
Serralves, Porto, 2002, p. 217.
28 OECD Factbook 2010: Economic, Environmental and Social Statistics, OECD, 2010 & Main Science and Technology
indicators, 1982-1988, n.º 2, OCDE, 1988.

139
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

TABELA VI: DESPESA NACIONAL BRUTA PARA A I&D (DNBID) EM COMPARAÇÃO COM O PNB NOS PAÍSES MEMBROS
DA OCDE

Despesas nacionais brutas para a I&D


Ano a que
Por comparação com o PNB
Países se referem Em moeda nacional
a preços do mercado
os valores
Milhões %
Estados Unidos 1967 23.613,0 3,0
Grandes Países industrializados

França 1967 12.375,8 2,3


Alemanha 1967 8.337,3 1,7
Itália 1967 279.453,0 0,7
Japão 1967 606.293,0 1,5
Reino Unido 1967 941,8 2,3

Países industrializados de dimensões mais reduzidas

Áustria 1967 1.616,3 0,6


Bélgica 1967 8.800,4 0,9
Canadá 1967 895,5 1,5
Países Baixos 1967 1.860,0 2,3
Noruega 1967 576,5 1,0
Suécia 1967 1.738,6 1,4

Países em vias de desenvolvimento

Grécia 1967 338,7 0,2


Irlanda 1967 6,2 0,5
Portugal 1967 320,4 0,2
Espanha 1967 x x
Turquia 1967 x x

Origem: Inquérito Internacional sobre os recursos consagrados a I&D em 1967 nos países membros da OCDE
Fonte: Instituto Nacional de Estatística, Inquérito sobre os Meios Nacionais de Investigação e Desenvolvimento,
Editado por Maria Helena Caramona, Colecção “Estudos 43”, [s. d.].

Temos então que, nesta dinâmica quantitativa, o quantitativo português era


“praticamente nulo”, com o indicador da despesa total em actividades de I&D a atin-
gir em 1972 cerca de 0,3% a 0,4% do PIB (representando o sector industrial 25% deste
total), valor este que colocava Portugal no conjunto dos países mais atrasados da Europa.

140
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

Conforme disse João Caraça, numa frase com alcance interessante, nomeadamente
quanto ao propósito que na origem legitimara a criação da JNICT, “a ciência e
a investigação portuguesas continuavam funcionalmente isoladas da comunidade
nacional”29...
Apesar das força dos números, porém, importa dizê-lo que nem tudo se resume
a números, muito menos no plano da medição e avaliação das políticas cientíicas;
e num estudo de natureza histórica, cuja compreensão tem de se basear noutras
variáveis, é já tempo de irmos mais além na compreensão das questões da política
cientíica...

CONSIDERAÇÕES FINAIS EM TORNO DE PROBLEMÁTICAS ESTRUTURANTES

A JNICT, de gabinete obscuro da administração do Estado, como vimos, air-


mou-se paulatinamente, pela persistência dos seus protagonistas – não obstante as
circunstâncias, e as limitações, a JNICT logrou airmar-se, no curto espaço tempo-
ral de 1967 a 1974, enquanto espaço de coordenação das políticas cientíicas, um
espaço de conciliação de actores. Parece-nos então porventura algo surpreendente
este trajecto da Junta, sobretudo para quem pensou que nada se havia feito antes
da Revolução de 1974 – não quer dizer que não se registe um desequilíbrio entre o
que se fez, como se fez e aquilo que se pretendeu fazer, em teoria como na prática.
A título de balanço, um aspecto que nesta história da JNICT convém não per-
der de vista – em particular em termos das suas problemáticas de fundo – é que a
política cientíica vai além da mera alocação de recursos inanceiros; para além da
contabilidade das bolsas, dos subsídios, etc., importa ter presente que existem dinâ-
micas qualitativas na aplicação e condução de políticas cientíicas; e isto foi tanto
mais visível quanto de facto a JNICT, neste período pelo menos, não se conigurou
como uma agência de inanciamento cientíico, mas sim como um órgão subsidiá-
rio na formulação e na decisão política.
Este aspecto remete mesmo para uma outra questão central da história da
JNICT, isto é, a existência de estilos de equacionar, de formular e de conduzir a
política cientíica. Lembremos pois que o espaço de uma política pública nunca é
racional, nomeadamente tanto quanto as racionalidades da gestão pretendem fazer

29 João Caraça, «Ciência e investigação em Portugal no século XX» in Panorama da Cultura Portuguesa no Século
XX, Vol. 1 – As Ciências e as Problemáticas Sociais, coord. por Fernando Peres, Edições Afrontamento & Fundação
Serralves, Porto, 2002, p. 219.

141
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

parecer. Foram aliás evidente dois estilos, nesta curta descrição sobre as primeiras
iniciativas da JNICT: por um lado, um estilo em que se aliava cultura cientíica e
cultura histórica na formulação de uma política de alcance e visão estratégica, e
tendencialmente integrando-se a outros sectores das políticas públicas, enquadra-
das ora na questão genérica do desenvolvimento, ora na questão política da inde-
pendência e viabilidade do Estado-Nação, e sobretudo assente na compreensão
das dinâmicas qualitativas da sociedade; por outro lado, um outro estilo, ou – se
preferirem – uma outra linha dentro do mesmo processo de construção da políti-
ca cientíica, de estilo tecnocrático, anónimo, assente na produção de indicadores
quantitativos, instrumentalizados num discurso hermético e opaco (eg os inúmeros
relatórios sincréticos – confusos, contraditórios... – produzidos neste sector da ad-
ministração pública), tendencialmente isolando-se dos interesses sociais em geral
(em nome da suposta neutralidade e imparcialidade), o que apontava já, numa
perspectiva histórica, para os modelos de decisão política contemporâneos, funda-
mentalmente legitimados em grelhas de natureza quantitativa.
Nos nossos dias, a política cientíica continua, pelo menos no plano das políticas
explícitas, a ser colocada no centro do modelo de desenvolvimento dos países oci-
dentais. O paradigma democrático de política cientíica, sob pressão de justiicar os
fundos do contribuinte, aparenta mesmo ter tido essa repercussão viciosa de acabar
por reduzir as possibilidades de decisão política contemporâneos, legitimando-os
fundamentalmente em grelhas de natureza quantitativa, perdendo-se vista das di-
mensões históricas e políticas (ie as problemáticas estruturantes, de natureza quali-
tativas) da política cientíica. No entanto, e se há coisa que a história mostra, é que
a política cientíica não se resume a problemas de inanciamento; existiram (e exis-
tem) aspectos qualitativos, à margem das preocupações quantitativas, precedendo
mesmo, num plano estratégico, a alocação dos meios inanceiros. O pensamento
estratégico em política cientíica é absolutamente central, precedendo e / ou acom-
panhando a formulação e implementação de mecanismos.
São diversas as inalidades da política cientíica: desde logo, o apoio à comuni-
dade de pesquisadores e o fortalecimento da infraestrutura cientíica. Mas igual-
mente, num tom mais moderno e iminentemente tecnocrata, partindo de uma óp-
tica de política cientíica que no contexto de criação da JNICT (anos 60) já vinha
sendo difundido pelos organismos internacionais, a inalidade da política cientíica
tornar-se-ia deinitivamente associada ao desenvolvimento e ao progresso tanto
económico e como social. Esta formulação de síntese colocava então, em termos
da problemática central da política cientíica, e que no fundo foi o pressuposto
da criação de um organismo da natureza da JNICT, esta ideia de que a política

142
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

cientíica deveria, então, debruçar-se e solucionar dois problemas correlatos: isto é,


a conciliação de dois actores fundamentais no processo tecnocientíico, a Universi-
dade / ensino superior e a Indústria / sector empresarial.30
E assim, com efeito – a título de exemplo do que deve ser essa compreensão
sobre o alcance qualitativo da “política cientíica nacional” –, pode-se então ques-
tionar quais seriam então os problemas da Universidade, por um lado, e, por outro,
quais as preocupações e necessidades da Indústria. Na Universidade, no essencial,
a questão tinha que ver, no fundo, com a dos ‘ins da Universidade’, com a sua
função social. E como não será de estranhar, subjacente ao debate dos conceitos e
das inalidades, por detrás das diferentes concepções, existiam igualmente, sem dú-
vida, lógicas corporativas, que ora se sobrepunham ora se afastavam do mundo dos
princípios e dos ideais – resistências de um paradigma pedagógico, problemas de
coabitação de igurinos, dissociação de papéis (o ‘ensinar’ e o ‘investigar’), conlitos
entre diferentes lógicas de conhecimento (o ‘saber’ e o ‘fazer’), etc., etc..
Lembremos António da Silveira31, presidente do IAC nos anos 60, que dizia
(em depoimento nos anos 80) que a Universidade “não cumpria” 32 e que a autono-
mia da investigação “não [agradava] aos universitários de espírito aristocrático, que
defendem hipocritamente interesses pessoais inconfessáveis...”33– nesse aspecto,
para Silveira a universidade humboldtiana era já uma utopia, e mais valia ser prag-
mático dadas as “contradições existentes entre o ensino universitário e a investiga-
ção cientíica autêntica” 34. Entretanto, acusando sem peias a casta dos catedráticos
de obstruir as iniciativas de Ciência, Silveira, em carta a Veiga Simão, datada de
1973, dizia mesmo o seguinte, que cito a título ilustrativo desta tensão entre o ‘en-
sinar’ e o ‘investigar’ – tenham presente que isto vem a propósito das controvérsias

30 Contemporaneamente, é claro, já não se fala tanto em tecido industrial mas antes em tecido empresarial, pois
uma empresa tanto pode operar no sector primário, secundário ou mesmo terciário. Não é isto porém ingénuo
e relaciona-se evidente com a ‘evolução’ da economia contemporânea de sociedades industriais para sociedades
pós-industriais, sobretudo nas regiões mais desenvolvidas, resultando inclusive (embora não só) de um fenóme-
nos de desindustrialização que acompanhou o presente momento da globalização – e afectando em particular as
periferias europeias.
31 António da Silveira (1904-1985) - Formado em Engenharia Química pelo IST, em 1929, foi aí professor. Entre
1949 e 1956 permaneceu na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, continuando a dedicar-se à
investigação cientíica, tendo dirigido também o Seminário de Teorias Física e Física Nuclear. Foi presidente do
Conselho Superior do Instituto de Alta Cultura entre 1964 e 1967, altura em que passou a ocupar a presidência
do Instituto de Física e Matemática.
32 António da Silveira, «Comentários Imperfeitos com elementos para uma história dos Estabelecimentos Cientíi-
cos em Portugal», Separata das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciência, Tomo XXVI,
Lisboa, 1984/85, p. 149.
33 António da Silveira, «Comentários Imperfeitos com elementos para uma história dos Estabelecimentos Cientíi-
cos em Portugal», Separata das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciência, Tomo XXVI,
Lisboa, 1984/85, p. 167.
34 António da Silveira, «Comentários Imperfeitos com elementos para uma história dos Estabelecimentos Cientíi-
cos em Portugal», Separata das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciência, Tomo XXVI,
Lisboa, 1984/85, p. 176.

143
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

que estiveram em torno da criação e instalação do Instituto de Física e Matemática


(criado em 1966):
“Mas, será na verdade a criação e o estabelecimento de uma autêntica inves-
tigação cientíica que se tem pretendido com toda esta intriga, de código já tão
sebento? Ai de nós! A minha experiência, o meu conhecimento das pessoas diz-me
categoricamente: não é! E, que dizem os meus colaboradores, dos mais velhos aos
mais novos? Dizem todos à uma: não é!
O que os meus colaboradores pretendem é continuar a produzir num ambien-
te saudável, ensinar outros a produzir, constituir um corpo de investigadores que
trabalhem nas fronteiras da Ciência, onde há competição, onde a concorrência não
lhes consente perdas de tempo com intrigas. Não querem cair na desgraça de ver
a emulação, que é uma virtude, substituída pela inveja, que é um vício, um vício
que conduz à estagnação, àquela promiscuidade da investigação e do ensino, de tipo
“clássico”, a qual degenera inelutavelmente numa investigação de “little tricks” para
uso caseiro e num ensino de nível inferior ao 2.º ciclo francês: refúgio inevitável dos
que não nasceram para a investigação cientíica, mas acham muito ino de se fazer
passar por investigadores.”35
Noutras palavras, de um momento em que o desaio foi a conciliação do ‘ensi-
nar’ e do ‘investigar’, passou-se para um período de tensa coabitação... De facto, a
experiência da Grande Guerra tinha contribuído grandemente, através da mobili-
zação excepcional dos recursos civis, com vários impulsos à lógica da organização
da Ciência, recrutando-se numerosos cientistas e académicos para operações rela-
cionadas com o esforço de guerra; com a Segunda Guerra, a assunção do papel do
Estado na promoção da ciência já não sofreria a desmobilização dos recursos da
nação durante o pós-guerra; pelo contrário, a Guerra Fria legitimou, em nome da
segurança nacional (e do posicionamento pelo prestígio no concerto das nações,
pela preservação estratégica da soberania, discutida doravante também no plano
cientíico e tecnológico), a continuidade dos grandes complexos militar-indus-
triais que envolveram o meio académico, consagrando a própria universidade de
investigação, os laboratórios e toda a infraestrutura que os contratos especiais do
período bélico haviam montado e inanciado. Ou seja, a Guerra Fria legitimou
a consolidação do papel do Estado no inanciamento das pesquisas cientíicas,
apoiou os contratos de investigação aplicada e proporcionou que o paradigma da

35 Transcrição de uma carta de António da Silveira a Veiga Simão, datada de Setembro de 1973. António da
Silveira, «Comentários Imperfeitos com elementos para uma história dos Estabelecimentos Cientíicos em
Portugal», Separata das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciência, Tomo XXVI, Lisboa,
1984/85, p. 201.

144
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

vida cientíica se transformasse permanentemente. Esta evolução, porém, na peri-


feria e semiperiferia é tímida, mas agitou diversas cliques que se digladiarem num
meio endemicamente subinanciado, o que só contribuiu para se exacerbarem os
desentendimentos.
Doravante então, na esfera da Universidade, no essencial, o problema era a
coabitação entre o ‘ensinar’ e o ‘investigar’; entre a formação da elite e a proissio-
nalização e especialização dos quadros intermédios, dos tão necessários técnicos
para uma indústria cada vez mais complexa e especializada na sua base técnica.
Nos países que não acompanharam plenamente este processo, as diiculdades e
tensões ainda foram maiores, cada actor alimentando uma perspectiva sobre o
problema genérico do desenvolvimento português. Por exemplo, lembremos as
palavras de Fernando Rosas, quando airmou que a Universidade «icava igual-
mente fora de qualquer ligação a uma política de mobilização do saber cientíico numa
estratégia de desenvolvimento económico»36. Noutro registo, José Manuel Rolo lem-
brou também que os maiores obstáculos a uma “política de inovação” , «mormente
nos países dependentes que dispõem de uma enraizada tradição académica, têm origem
na universidade, cujas estruturas têm diiculdade em se adaptar às exigências de desen-
volvimento do aparelho produtivo»37. Dois pontos de vista, de quadrantes distintos
da academia portuguesa, mas que no fundo revelam bem a prolongada pressão que
a Universidade sofreu, quer no sentido da sua reforma interna, para se transformar
numa instituição verdadeiramente de investigação, quer no sentido de uma maior
abertura, não só à sociedade mas também à própria economia, ora no sentido de
orientar os seus curricula para uma formação proissionalizante, ora no sentido
de ‘produzir’ ciência orientada ‘socialmente’ para os problemas das indústrias /
empresas e do mercado.
Já na esfera das empresas, o problema de facto, e no essencial, era a fraca in-
tensidade técnico-cientíica, decorrente das prioridades das elites dirigentes – e
acrescente-se que em Portugal a formação das elites para estes aspectos era escassa
– , cujos interesses e até as idiossincrasias de regime e de um catolicismo arrei-
gado tendiam a recusar o papel da técnica. Na Indústria, no essencial, o problema
residia nessa fraca intensidade técnico-cientíica do tecido nacional. Tal insuici-
ência resultava, como assinalou Leite Pinto, primeiro presidente JNICT, do facto

36 Rosas, Fernando, «Estado Novo, Universidade e depuração política do corpo docente» in Maio de 1968 trinta
anos depois. Os movimentos estudantis em Portugal, coord. por Maria Cândida Proença, Edições Colibri, Instituto
de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1999, p. 80.
37 José Manuel Rolo, «Política cientíica e técnica, especialização tecnológica e inovação: fundamentos e linhas de
acção», Análise Social, vol. XV, 58, 1979, pp. 262.

145
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

da nossa “a INDÚSTRIA [ter] tendência para a rotina...”38, o que só se agravava


ainda mais porque, dizia:
“[...] aos dirigentes da nossa indústria não tem interessado qualquer I.C.T. [In-
vestigação Cientíica e Tecnológica] nacional, pois julgam disporem dos dados
suicientes para os seus fabricos e para a sua I&D (quando a têm...) por simples
leitura de receitas da especialidade, de catálogos de fabricantes de material ou de
boletins de Associações Industriais criadas ‘lá fora’ ao nível das especialidades.”
E se ‘Lá fora’ a Indústria e as Universidades mantinham grandes centros de in-
formação cientíica e tecnológica, em Portugal era, dizia ainda Leite Pinto, “muito
difícil conseguirem-se por essa via os fundos bastantes para a criação e funciona-
mento de um ‘banco de dados’ nacional”39 – e porque, queixaram-se muitos40, era
muito difícil captar o interesse da elite empresarial para os assuntos da ciência e
da tecnologia. Naturalmente, estamos também a falar das implicações da política
de transferência de tecnologia (modelo que também orientou o desenvolvimento
espanhol, diga-se, copiando o sucesso japonês), e que retirava então urgência ao
investimento das empresas em investigação; igualmente, temos ainda a questão da
propriedade industrial, ou do registo de patentes, que era claramente inadequado
por basear-se ainda numa receita jurídica do século XIX. Entende-se ainda que, se
os mecanismos existentes eram inadequados e as vantagens de endogeneização de
uma ‘ICT’ empresarial não eram favoráveis, a realidade inexorável era ainda o facto
do sector produtivo nacional, em boa verdade, conseguir outras formas de gerar
mais-valia relativa (implicando-se aqui outros factores de produção) que, no inal
de conta, prescindiam da própria inovação...
Ou seja, daqui resultava que, entre as duas esferas, a Universidade e a Indústria,
o problema residia em que a cultura do ‘saber’ e a cultura do ‘fazer’ subsistiam
de costas voltadas41, antagonizando-se, cultivando idiossincrasias próprias que não

38 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/361/8, Ofício n.º 743, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnoló-
gica, Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João
Salgueiro, datado de 4 de Abril de 1970.
39 Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros, Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/
SGPCM/AOS/361/8, Ofício n.º 743, pelo Presidente da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnoló-
gica, Prof. Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, ao Subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João
Salgueiro, datado de 4 de Abril de 1970.
40 No seio do Conselho Geral da JNICT, o Eng.º Manuel Rocha também refere-se a um certo desinteresse dos in-
dustriais, em geral, argumentando mesmo que, dada a “carência de dotações atribuídas aos órgãos de investigação
do sector público” e a necessidade de “intensiicação dos estudos” com interesse para as indústrias, seria lógico
apostar num maior apoio da comparticipação dos industriais. Arquivo da Presidência do Conselho de Ministros,
Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, PT/SGPCM/AOS/G-370/10, Junta Nacional de Inves-
tigação Cientíica e Tecnológica, Conselho Geral, Reunião do dia 8 de Abril de 1968, difusão restrita, Acta n.º 1 (Texto
deinitivo), Exemplar n.º 16, p. 20 e s..
41 José Pedro Martins Barata, «Cultura, ciência e técnica» in Momentos de Inovação e da Engenharia em Portugal no
século XX, coord. por José Maria Brandão de Brito, Manuel Heitor & Maria Fernanda Rollo, 2004, pp. 35-39.

146
A JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA (JNICT, 1967-1974).
NUMA ‘ESQUINA DA HISTÓRIA’...

poucas vezes eram suicientes para deitar por terra ou diicultar algumas iniciativas
que ciclicamente os poderes públicos e / ou algumas vontades mais energéticas
tentaram conduzir. O resultado é uma série de atitudes e ressentimentos42 que,
inclusive segundo recomendação desta JNICT, podiam ser ultrapassados por via
da implantação dos modernos princípios de gestão, nomeadamente por via de uma to-
mada de decisões participada e alargada, diluindo-se assim os preconceitos a partir
de uma prática de diálogo e de colaboração.43
Em suma, pessoalmente, parece-nos evidente que o emaranhado destes con-
tornos qualitativos, verdadeiramente estruturantes, só poderá ser verdadeiramente
entendido e até solucionado numa perspectiva de interacções e interdependências
– entre os vértices do triângulo44 de actores que compõem a formulação e imple-
mentação da política cientíica – governo, comunidade cientíica e sector empresa-
rial) –, de estudo empírico e contínuo das realidades, presentes como passadas, no
que no restrito plano da acção só um entendimento político e uma abordagem in-
tegrada que não deixe de contemplar a história das instituições e política cientíica.

42 «Aos olhos dos investigadores da universidade os directores da investigação privada são muitas vezes tidos como “cien-
tiicamente incompetentes” e “autoritários”. Os últimos classiicam os primeiros de “arrogantes”.» Arquivo Histórico da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Relatório JNICT, Incentivos e Orientações à Investigação nas Empresas.
Trabalhos Preparatórios do IV Plano de Fomento, JNICT, [s. d.], Biblioteca Cota C00 JNI, 9946, p. p. 14.
43 Idem, p. 14.
44 Jorge Sabato & Natálio Botana, «La ciencia y la tecnología en el desarrollo futuro de América Latina», Revista
de la Integración, n.º 3, 1968, pp. 1-11.

147
148
Escolas médicas e tuberculose:
um olhar sobre as dissertações médicas
de tisiologia em Portugal (Sécs. XIX-XX)
Ismael Cerqueira Vieira
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM)/FLUP

INTRODUÇÃO
A PRODUÇÃO ACADÉMICA SOBRE TUBERCULOSE EM PORTUGAL

A tuberculose enquanto doença ubíqua na sociedade portuguesa contemporâ-


nea despertou desde meados do século XIX uma atenção especial dos médicos e
instituições de ensino médico. As escolas médicas portuguesas enquanto centros
de produção de conhecimento e transmissores de ideias e teorias tiveram um pa-
pel importante na produção e reprodução do conhecimento tisiológico. O estudo
da tuberculose por médicos a título particular ou sob a tutela de agremiações
cientíicas não esgotou de modo algum a produção ou transmissão de novidades
médicas e cientíicas referentes à tuberculose em Portugal. Os centros de ensino
médico em Portugal, localizados nas cidades do Porto, Coimbra e Lisboa, tiveram
um papel muito relevante na veiculação dos saberes médicos, clínicos, cirúrgicos
e cientíicos em torno desta doença. Não podemos ignorar o facto de estas insti-
tuições exigirem aos seus alunos a apresentação duma dissertação para inalizar
os cursos médicos, para ascender ao grau de Doutor em Medicina ou ainda para
aceder a cargos de docência. Ao longo dos anos as faculdades de Medicina do
Porto, Coimbra e Lisboa reuniram nos seus espólios um corpus documental único
constituído pelas teses inaugurais/licenciatura, teses de doutoramento e teses de
concurso que são fundamentais para a reconstrução da história da Medicina em
todos os seus campos, incluindo a tuberculose.
Estudar a produção de trabalhos académicos centrados no tema da tubercu-
lose torna-se imprescindível para conhecer a dimensão quantitativa e qualitativa
dos trabalhos produzidos nesta área, bem como, conhecer o ângulo de enfoque
e as principais temáticas abordadas pelos médicos portugueses. A existência de

149
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

diferentes modalidades de teses, designadamente as teses inaugurais, as teses de


licenciatura, as teses de doutoramento e as teses de concurso pressupõem desde
logo uma análise diferenciada e devidamente contextualizada em termos quanti-
tativos e qualitativos.
As teses inaugurais eram trabalhos monográicos destinados a encerrar o ciclo
formativo que habilitava o proissional com o título de médico-cirurgião. Estes
trabalhos eram exclusivos das Escolas Médico-cirúrgicas do Porto e Lisboa, uma
vez que a Faculdade de Medicina de Coimbra tinha estatutos distintos e o curso
era reconhecido como Licenciatura em Medicina. Depois de terem sido apro-
vados em todas as disciplinas do curso médico-cirúrgico, os inalistas do quinto
ano submetiam-se ao «Acto Grande», uma prova pública para a qual era forçoso
entregar uma Dissertação Inaugural sobre uma matéria de Medicina ou Cirurgia,
escolhida pelo candidato, e seis proposições médicas e cirúrgicas1. Quando abri-
mos ao acaso uma destas teses quase que invariavelmente podemos ler nos prefá-
cios as palavras de revolta contras as disposições regulamentares que forçavam os
alunos a redigirem uma tese inaugural. Por obrigação escolar ou por simpatia com
determinado tema os alunos das Escolas Médico-cirúrgicas improvisavam uma
dissertação sobre assuntos recorrentes de que a tuberculose era uma justa repre-
sentante, desculpando-se muitas vezes da falta de tempo ou de génio para concluir
o seu trabalho. Podia ler-se numa tese de 1874 o seguinte introito:
“Escolhendo para assumpto da minha these a tuberculose nem por sombras
me prespassou no espírito a idéa de fazer um trabalho útil, embora incom-
pleto.Decidi escrever a este respeito unicamente porque sempre me horro-
risou a morte de um phtisico. E esse interesse, que causa o terrível, desper-
tou em mim o desejo de estudar e comprehender uma doença, que tantas
vidas nos rouba (…) Ferido por esta curiosidade, vã talvez, talvez pueril, eu
não pude mais, querendo escrever uma these, do que fazer uma lição, dei-
cientissima decerto, sobre a génese do tubérculo e da sua natureza intima.
Nem a minha intelligencia, nem os meus conhecimentos nem o tempo de que
pude dispor me permitiram mais.”2
Como consequência disso muitas destas teses tinham uma qualidade medío-
cre, sendo, como dizia Ricardo Jorge, na maior parte das vezes «uma farrapagem

1 REGULAMENTO para as escholas medico-cirurgicas de Lisboa e Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, [1836?],
p. 20.
2 MASCARENHAS, Abilio Pinto, Algumas palavras sobre Tuberculose, Dissertação Inaugural. Lisboa, Typ. Lisboa,
1874, p. 20.

150
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

simplesmente copiada ou comprada a mercado vergonhoso»3. No entanto, um


número signiicativo destas teses são bons trabalhos, muitos deles cientiicamente
bem construídos sobre dados inéditos recolhidos pelos candidatos e com temas
inovadores emergidos quando uma determinada temática despoletava interesse na
comunidade médica, como é o caso de investigações nos domínios da climatotera-
pia, da bacteriologia ou da higiene pública.
Com a elevação das Escolas Médico-cirúrgicas a Faculdades de Medicina em
1911, passou-se a designar as teses inaugurais de teses de licenciatura, equiparáveis
às de Coimbra. Porto, Lisboa e Coimbra passaram então a ter equivalência destes
documentos e os cursos tornaram-se reconhecidos da mesma forma. No entanto,
o processo permaneceu semelhante às velhas Escolas, sendo o «Acto Grande»
renomeado de «Acto de Licenciatura», cuja aprovação era indispensável para o
acesso ao exercício da proissão, conferindo ao licenciado o título proissional de
doutor de medicina4. O «Acto de Licenciatura» consistia na apreciação pública
da dissertação, mas sem discussão, por parte dum júri composto pelos professores
catedráticos e presidido pelo Director da Faculdade. A diferença relativa às dis-
sertações inaugurais residia na exigência da originalidade do trabalho devendo ser
fundamentado com base na observação, experimentação ou crítica pessoal5.
Num patamar diferente encontramos as teses de doutoramento que eram tra-
balhos que deviam ser pautados pela originalidade e pela qualidade do teor cientí-
ico para a obtenção do grau académico de Doutor em Medicina. A dissertação de
doutoramento versava sobre um qualquer assunto de ciências médicas ou cirúrgi-
cas, mas evidentemente os candidatos eram inluenciados por assuntos prementes
da época em que se encontravam. Por exemplo, um número signiicativo de teses
de doutoramento sobre a tuberculose foi produzida entre 1911 e 1930, uma época
bastante crítica em termos de disseminação da doença e multiplicação de casos

3 Ricardo Jorge criticou severamente estes trabalhos por considerá-los plágio e de má qualidade dizendo: “Des-
venturadamente para nós a grande massa das dissertações reduz-se a papel estragado no prelo e que não pode
senão a baixa serventia. São coisas indignas de ler-se, que desdouram não só o neóito como o estabelecimento
de que o deixa habilitar à posição médica. O júbilo de contar mais uma tese de merecimento não é muito vulgar
para a escola do Porto. […] O ideal do fazedor da tese reduz-se a engendrar uma mayonnaise esfarrapada dos
ripanços que pode haver à mão; a audácia e o menosprezo chegam a tal ponto de traduzir barbaramente qual-
quer dissertação francesa, a ver se logram, como tantas vezes conseguem, presidente e júri. Destas infandas farsas
podia eu oferecer picarescos exemplos”. Cf. LIMA, J. A. Pires de, “Catálogo das heses Defendidas na Escola
Médico-Cirurgica do Porto desde 6 d`Outubro de 1827 até ao im de Julho de 1908” in Annuario da Escola
Médico-Cirúrgica do Porto (1907-1908). Porto, Typ. Industrial Portugueza, 1908, p. 184 e JORGE, Ricardo, A
Escola Médico-Cirúrgica do Porto in ALVES, Jorge Fernandes (coord.), O Signo de Hipócrates. O Ensino Médico
no Porto segundo Ricardo Jorge em 1885. [s.l.], Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, 2003, pp. 112-114.
4 Não se confunda aqui título proissional com o grau académico de Doutor. Cf. REGULAMENTO da Facul-
dade de Medicina do Porto in Legislação Vigente III (1928 a Março de 1931). Porto, Faculdade de Medicina do
Porto, 1931, p. 11, Art. 42.º e § único.
5 Cf. Art.º 44 do REGULAMENTO da Faculdade …, p. 11.

151
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

pelos problemas decorrentes da guerra, da carestia alimentar, da gripe pneumónica


e da desarticulação das estruturas de assistência durante a 1.ª República. Devemos
também ter em conta que a maior exigência cientíica, por um lado, e os custos
inerentes à candidatura e produção da tese, por outro, funcionavam como iltros,
limitando o número de candidatos6. Só desenvolvia este tipo de trabalhos quem
efectivamente tivesse capacidade cientíica e inanceira para o fazer.
Existe ainda uma outra tipologia de teses que serviam para concorrer aos lu-
gares de docente nas escolas médicas. As dissertações de concurso são a tipologia
de teses que existe em menor número, desde logo porque o provimento de lugares
de docente eram em menor número e mais demorados quando comparados com
a frequência e conclusão de cursos dos alunos. Uma das características mais sa-
lientes é o facto de estas teses serem na maior parte dos casos impulsionadoras de
outros trabalhos, isto é, realizada por futuros professores acabavam por se reper-
cutirem na escolha do tema “tuberculose” pelos seus alunos. Na nossa investigação
deparamo-nos ainda com um caso isolado duma tese de Agregação em Lisboa,
que decidimos considerar para as estatísticas que iremos apresentar.

BIBLIOMETRIA E EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO

A produção de teses no período compreendido entre 1857 e 1968, datas para


as quais foi possível obter dados efectivamente existentes e iáveis, não teve uma
distribuição numérica igual nas três escolas médicas nem igualdade na tipologia de
teses produzidas. A partir dos arquivos e catálogos das bibliotecas das Faculdades
de Medicina foi possível construir o seguinte quadro e gráico:

6 O facto de este tipo de dissertação não ser obrigatória para terminar um curso fazia com que fosse menor o seu
número. Primeiro os requerentes apresentavam a candidatura a provas de doutoramento e entregavam uma tese,
que só depois de avaliada era ou não admitida para efeito de provas públicas, o que desde logo limitava o número
de candidatos. Depois existia a questão monetária que também era limitadora pois os candidatos tinham de entre-
gar cem cópias impressas da tese para serem distribuídas pelos professores, pelas bibliotecas do país e faculdades
nacionais e estrangeiras com as quais existiam permuta de publicações, o que exigia capacidade inanceira dos
candidatados. Cf. REGULAMENTO da Faculdade …, pp. 12-13, Art. 48.º.

152
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

GRÁFICO 1 - DISTRIBUIÇÃO EM NÚMEROS ABSOLUTOS DA TIPOLOGIA DE TESES POR ESCOLA MÉDICA (1857-1968)

QUADRO 1 - PRODUÇÃO DE TESES SOBRE TUBERCULOSE POR ESCOLA E TIPOLOGIA

Porto Lisboa Coimbra Total %

Inaugurais 90 45 0 135 491

Licenciatura 17 17 27 61 222

Doutoramento 30 17 19 66 240

Concurso 7 3 2 12 44

Agregação 0 1 0 1 4

Total 144 83 48 275 100

% 524 302 175 100

A distribuição gráica apresentada no Quadro 1 e Gráico1 permite desde logo


constatar um predomínio do Porto na produção de dissertações de todas as tipologias
consideradas, com mais de metade do total percentual e absoluto da produção, 52,4
% respeitante ao total de 145 teses. Em segundo lugar surge a escola de Lisboa com
30,2% referente a 83 teses e em último lugar Coimbra com 17,5% correspondentes
ao total de 48 dissertações.
A predominância do Porto e Lisboa pode-se justiicar pelo maior pendor clínico
e cirúrgico da própria escola. Ambas eram escolas médico-cirúrgicas o que signii-
ca que tratavam de assuntos médicos, compreenda-se assuntos teoréticos ou dou-
trinários, mas igualmente de assuntos cirúrgicos ligado a práticas de intervenção

153
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

corporal e anatomopatológicas o que determinou sem dúvida uma inclinação para


assuntos de anatomia patológica, de etiopatologia e de tratamento cirúrgico que a
escola de Coimbra tardou em seguir. A natureza das teses produzidas nas escolas
médico-cirúrgicas é reveladora da predilecção por assuntos clínicos e cirúrgicos e
não somente de assuntos médico-ilosóicos, tratando-se de temas como os tumo-
res brancos, o tubérculo sobre o ponto de vista anatomopatológico ou cirúrgico, a
questão da contagiosidade e da curabilidade da tísica, o tratamento da doença e dos
seus sintomas, etc.
A produção coimbrã sobre tuberculose foi tardia em relação ao Porto e Lisboa.
No Porto e Lisboa as primeiras dissertações remontam a 1857 e 18707 respectiva-
mente, enquanto em Coimbra a primeira de que há registo no Catálogo da Faculda-
de de Medicina é uma tese de licenciatura de 1896 versando sobre a tuberculose na
gravidez8. O impulso para esta tese esteve ligado ao primeiro Congresso Nacional
da Tuberculose realizado um ano antes em Coimbra, para o qual muito contribu-
íram os professores Augusto António da Rocha e Daniel Ferreira de Matos Jú-
nior cujo autor menciona na introdução da sua monograia. Até ao inal da centúria
produziram-se apenas mais duas, para a produção ser retomada apenas em 1917.
Este vazio demonstra o alheamento dos alunos e professores do tema da tuberculose
nas suas mais amplas facetas e só décadas mais tarde este tema é focado com maior
incidência.
Entre as várias dissertações, as teses inaugurais das Escolas Médico-cirúrgicas
constituem 49,1% do total das teses. Como veremos mais à frente a precocidade
da produção deste tipo de documentos pelas Escolas Médico-cirúrgicas e a sua
obrigatoriedade durante quase sete décadas, de 1857 a 1923, permitiu coligir um
corpus documental bastante volumoso e lato em termos temporais. As teses de dou-
toramento, representando quase um quarto, e as de licenciatura, quase outro quarto,
são percentualmente idênticas com 24% para os doutoramentos e 22,2% para as
licenciaturas. Mas se quisermos considerar em conjunto as teses inaugurais e as
de licenciatura, como monograias obrigatórias para terminar o ciclo de estudos
que dava acesso ao exercício proissão de médico, temos então uma predominância
total sobre as outras tipologias com uns 71,3% da produção. Em número reduzido

7 A primeira de que há registo é do Porto, uma tese manuscrita de 1857 versando sobre a anatomopatologia e
diagnóstico dos tumores brancos, designação comum para as tuberculose articular, e a de Lisboa, de 1870, falava
igualmente sobre a anatomia patológica e tratamento dos tumores brancos. Cf. PINTO, Albino Ribeiro, Algumas
considerações sobre tumores brancos, Dissertação Inaugural. Porto, [s.n.], 1857 e TRIGO, António Manuel, Nos tumo-
res brancos não se deve empregar medicação exclusiva, Dissertação Inaugural. Lisboa, Typographia Lisbonense, 1870.
8 CARVALHO, A. V. Campos de, Tuberculose e gestação, Dissertação de Licenciatura. Coimbra, Typ. França
Amado, 1896.

154
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

encontramos as teses de concurso e uma única de agregação num total conjunto


de cerca de 4,8%, o que se justiica pela sua natureza, uma vez existiam um menor
número de candidatos a professores em relação à quantidade de alunos, e porque
esses candidatos podiam dissertar sobre um qualquer assunto sendo a tuberculose
apenas um dos temas possíveis.
O Gráico1 elucida-nos acerca da produção por tipologia de teses em cada uma
das escolas. O Porto lidera, como dissemos, a produção destes documentos com
um total de 145 teses, na sua maioria teses inaugurais. O segundo grupo é o das
teses de doutoramento (31) seguido das de licenciatura (17) e de concurso (7). Em
Lisboa o cenário era comparativamente semelhante pelo maior número de disser-
tações inaugurais (45) seguido das de doutoramento e licenciatura, ambas com 17
exemplares, as de concurso com 3 e 1 de agregação. Em Coimbra, são as teses de
licenciatura que têm prevalência (27) seguidas de doutoramento (19) e de concurso
(2). No cômputo geral o Porto liderou a produção de teses em todas as tipologias,
à excepção das teses de licenciatura produzidas em maior número pelos alunos da
Faculdade de Medicina de Coimbra. Foi o avultado número de teses inaugurais e
de doutoramento que valeram ao Porto o destaque na produção em quantidade
mas também em qualidade no campo da tisiologia portuguesa.
A representatividade das teses sobre a tuberculose em relação à produção glo-
bal é outra questão. Não sendo possível indicar dados seguros para as três escolas
pelo estado actual da catalogação das bibliotecas das respectivas faculdades de
medicina, apresentamos apenas os dados relativos à Faculdade de Medicina do
Porto, sem dúvida a mais organizada e completa base de dados de teses médicas,
e à Faculdade de Medicina de Coimbra. Segundo os serviços da biblioteca da
FMUP existem catalogadas 2839 dissertações para o período de 1840 até 1968 e
destas 145 versam sobre a tuberculose, o que dá uma percentagem de 5,1% sobre
o global. Por tipologia os valores são diferentes, existindo para as teses inaugurais
90 sobre um total de 1404 (6,4%), para as de doutoramento são 31 de tuberculose
sobre 269 registos (11,5%), as dissertações de licenciatura são 17 sobre 1105 re-
gistos (1,5%) e para as de concurso são 7 sobre 61 registos (11,5%). Embora a re-
presentatividade as teses de doutoramento e de concurso sejam percentualmente
maiores, no global o tema da tuberculose não está mal representado. Se tivermos
em conta que entre temas de medicina e cirurgia existem milhentas patologias,
problemas e assuntos, a cifra de 5,1% num período de quase cento e trinta anos é
sintomático do alcance que a questão da tuberculose suscitou da sociedade por-
tuense e do norte de Portugal. Para Coimbra só dispomos do número global de

155
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

teses de medicina existentes, que é de 3185 teses9 sendo que destas só 48 versam
sobre tuberculose, o que representa 1,5% da produção total.
Podemos avançar com algumas hipóteses explicativas para o destaque do Porto.
É crível que as más condição sanitária da cidade, a formação dum escol de repu-
tados higienistas e a inluência de vários tisiologistas que trabalharam na escola
médica do Porto tenha contribuído para que este tema se tenha salientado. Em
matéria de higiene pública, o Porto cedo se destacou pelos numerosos problemas
sanitários e sociais. Foram vários os autores que nos inais de Oitocentos se preocu-
param com a mortalidade da «Invicta», onde se destacam a apresentação de várias
teses à Escola Médico-cirúrgica, bem como a monumental obra de Ricardo Jorge
«Demograia e Hygiene na cidade do Porto: Clima, População, Mortalidade». Nes-
ta obra, o eminente higienista apontava o Porto, juntamente com Ruão, Bucareste
e Moscovo, como uma das cidades europeias com maior taxa bruta de mortalidade
na ordem dos 30%010, com maior incidência no Inverno, devido às doenças respi-
ratórias e pneumonias, e Verão devido às doenças contagiosas, gastrointestinais e
diarreias. Analisando a distribuição de óbitos anuais em função da idade é sobretu-
do no primeiro ano de vida que se registam mais óbitos quando comparados com
cada um dos intervalos etários11. Esta elevada mortalidade icavam-se a dever em
parte às débeis estruturas de saneamento e habitação mas igualmente às práticas,
usos e costumes da população citadina, como frisou Ricardo Jorge:
“Há aqui os vícios da má educação e da ignorância; há as mais revoltantes práti-
cas de trato de creanças n’uma trucidação perenne; há as habitações lôbregas e a
insalubérrimas onde se amesendra mais d’um terço da população; há o desbaste
das moléstias iniciosas pela licença do contágio; há emim uma rede de incapa-
císsimos esgotos, rastilhando o solo e a água d’immundicie.
[…] O Porto precisa sahir d’este poço de insalubridade, há mais de dez annos,
deinido e denunciado; vai n’isso o seu interesse e o seu brio.
Quem diria que a morte nos dizima bem mais do que na capital? E tanta gente
no Porto nutre ainda a beata crença da superioridade saudável do nosso torrão,
em relação á empestada Lisboa! Pois tal não há; e, descontada no cotejo das
taxas brutas a inluencia da composição sexuo-etaria, ainda sobra diferença
contra nós. Ora entre as varias inluencias que podem occasionar este resultado,
não terá temeridade contar entre ellas a superioridade da canalisação da capital,

9 Cf. FARIA, Isabel (coord.), Catálogo das teses de licenciatura e doutoramento existentes na biblioteca central da Facul-
dade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, BCFMC, 1991.
10 Cf. JORGE, Ricardo – Demograia e Hygiene …, p. 313.
11 Vide JORGE, Ricardo, Demograia e Hygiene da cidade do Porto. Clima, População, Mortalidade. Porto, Repartição
de Saúde Hygiene da Câmara do Porto, 1899, p. 348, tabela LXIX.

156
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

já muito sofrivelmente delineada e construída pelos notáveis engenheiros pom-


balinos, modernamente corrigida e continuamente melhorada.”12

Nesta altura, a população tornou-se alvo da preocupação das autoridades pú-


blicas porque ela mesma se tornou um objecto político, enquadrável no conceito
de biopoder defendido por Michel Foucault13. Como consequência desenvolveu-se
um interesse e estratégia ao nível médico na formação de serviços municipais re-
guladores da saúde e higiene nas cidades, com intervenção nos diversos campos da
saúde pública, incluindo a luta contra as doenças infecto-contagiosas e “sociais”.
No campo da tuberculose só lentamente se foi formando a consciência da im-
portância da tuberculose e estruturando um saber tisiológico. Mas não há dúvida
que se formou no Porto um verdadeiro escol ligado a esta doença, com muitos
nomes conhecidos a dissertarem e mesmo a especializarem-se no ramo médico da
tisiologia, como foi Tiago de Almeida, António de Almeida Garrett, Maximiano
Lemos, António de Sousa Júnior entre outros. Veriicamos assim que a temática
da tuberculose, ou das tuberculoses, uma vez que estas teses abarcavam numerosas
formas da doença (pulmonar, adenites tuberculosas, óssea, articular, renal, etc.), era
recorrente nos trabalhos médicos de inal de curso. Os problemas urbanísticos, sa-
nitários e socioeconómicos da população eram por si só um estímulo, mas juntou-
se também as acções e estímulos dos higienistas e tisiologistas da escola portuense.
Em Lisboa, a produção foi numericamente inferior14, embora se destaquem pelo
número as teses inaugurais. Mas encontramos ainda 17 exemplares de dissertações
de licenciatura, 17 de doutoramento, 3 de concurso e 1 de agregação. São números
inferiores aos do Porto, embora em Lisboa também houvesse uma enorme preo-
cupação com a higiene pública e a tuberculose, testemunhados pelos escritos de
nomes sonantes como Miguel Bombarda, Luís da Câmara Pestana, António de
Azevedo, Sabido Coelho e o próprio Ricardo Jorge15. O facto de na viragem do
século XIX para o XX se terem estabelecido em Lisboa duas instituições importan-
tes no domínio da luta contra a tuberculose, a Liga Nacional contra a Tuberculose
e a Assistência Nacional aos Tuberculosos, canalizou de certo modo os interesses

12 JORGE, Ricardo, Demograia e Hygiene…, pp. 322-323.


13 Veja-se FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder. São Paulo, Edições Graal, 2009.
14 Apesar de a produção ser superior, a Faculdade de Medicina de Lisboa era a única onde funcionava uma cadeira
de Doenças Pulmonares, embora não houvesse oicialmente ensino de Tisiologia. Cf. SERRA, Augusto Vaz, “A
proilaxia da Tuberculose em Portugal” in Boletim da Assistência Social, N. º 8-9, 1943, p. 337.
15 Ricardo Jorge ao discutir a mortalidade por tuberculose em Portugal, chamou à atenção para os problemas
sanitários do Porto e inversamente elogiava Lisboa pela tenacidade empreendida contra a tuberculose devido à
acção de beneméritos que apoiavam a propaganda e as instituições curativas e preventivas. Cf. JORGE, Ricardo,
“A luta contra a tuberculose” in Arquivos do Instituto Central de Higiene: Secção de Higiene, Vol. 1, Fasc. 3, 1914,
pp. 203-212.

157
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

dos médicos de Lisboa para assuntos como a proilaxia individual e colectiva, a


educação popular no sentido higiénico e escolar, as redes de propaganda e assistên-
cia pública aos doentes, descentrando-se de temas ligados à anatomia patológica,
isiologia, diagnóstico e tratamento, preferenciais em termos académicos.
Coimbra icou, em termos gerais, no último lugar. Para tal concorreram sem dú-
vida o atraso relativo às demais instituições em termos de tuberculose. É aceitável
considerar que existia uma falta de interesse dos alunos por este tema ou a predi-
lecção por outros. No entanto, estamos mais inclinados para outra justiicação, que
se prende com a falta de conceituação cientíica16 do tema no contexto da produção
cientíica da FMUC. Coimbra foi uma cidade bastante dinâmica na luta contra
a tuberculose, organizando Congresso Nacional contra a Tuberculose em 1895,
o Congresso da Liga Nacional contra a Tuberculose em 1904 e vários médicos/
universitários escreveram artigos em periódicos conceituados sobre a tuberculose.
De resto, o grande impulsionado da Medicina Social e da luta antituberculose em
Coimbra, o Prof. Bissaya Barreto, dizia que entrou nas questões da luta contra a
tuberculose como reacção à inactividade da comunidade médica e civil perante
o lagelo da tuberculose17, o que nos leva a crer que a questão da tuberculose no
campo médico, assistêncial e social era secundária, explicando-se assim o distan-
ciamento deste tema.

16 Para o caso brasileiro Dilene Raimundo do Nascimento considera que a falta de iniciativas e de estudos sobre a
tuberculose no Brasil nos inícios do século passado prendiam-se por vezes com questões de conceituação cien-
tíica, digamos de relevância cientíica e social, porque as instituições de poder tinham uma preocupação maior
com as epidemias do que com as doenças constantes e consideradas incuráveis. Cf. NASCIMENTO, Dilene
Raimundo do, As Pestes do século XX: tuberculose e Aids no Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro, Editora
Fiocruz, 2005, p. 22.
17 Cf. ROSA, Fernando Baeta Bissaya Barreto, Uma Obra Social realizada em Coimbra. Coimbra, Coimbra Editora,
1970, pp. 8-10.

158
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

GRÁFICO 2 – EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO DE TESES POR DÉCADA E ESCOLA MÉDICA

GRÁFICO 3 – EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO TOTAL DE TESES POR DÉCADA E TIPOLOGIA

O gráico 2 mostra-nos a evolução da produção global e por escola médica nas


doze décadas para o qual foi possível recolher informação. Da análise global po-
demos concluir que a produção de teses não foi linear existindo quatro períodos
distintos. O primeiro período considerado vai da primeira tese em 1857 até à dé-
cada de 90, sendo um momento de aumento progressivo de interesse pelo tema. O
segundo período, que vai da década de 1891-1900 até 1911-1920, é o período áu-
reo desta temática registando-se uma produção acentuada. O terceiro momento, de
1921-31 até 1941-50, é marcado pelo decréscimo da produção documental que de
quatro centenas passaram a dois e três exemplares nas décadas consideradas, para
voltar a aumentar a produção na casa das quatro dezenas entre 1951-60 e decrescer
novamente. Se compararmos os totais parciais para cada escola em separado temos
uma realidade muito semelhante à apreciação global, coincidindo os momentos de
arranque, queda e maior produção entre as três escolas.

159
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Globalmente veriica-se que o momento de descolagem teve início na década de


1881-90, quando a tuberculose se tornou um problema social e de higiene pública
pelo crescente número de vítimas e de incapacitados que produzia anualmente.
Apesar de vários alertas para o facto foi Sousa Martins que deu visibilidade ao
problema com as suas célebres expedições de 1881 e 1883 à Serra da Estrela para
estudar o clima da Serra da Estrela, para aí ediicar um sanatório de montanha
para o tratamento dos tísicos. O relatório da expedição apresentado ao governo por
Sousa Martins motivou uma série de estudos, relatórios e artigos de luta contra a
tuberculose no campo da proilaxia individual e colectiva e estudos variados sobre a
climatologia portuguesa que pretendiam aconselhar os poderes públicos acerca do
melhor local para construção de sanatórios de montanha (para tuberculoses pul-
monares) e sanatórios marítimos (para tuberculoses cirúrgicas). Por outro lado, no
último vinténio de Oitocentos veriicaram-se avanços consideráveis na tisiologia
com a identiicação do agente bacteriano responsável pela doença, com o apare-
cimento de métodos diagnósticos alternativos à já antiga percussão e auscultação,
como foram a prova tuberculina e as radiograias.
Nos primeiros vinte anos do século XX, a tendência continuava a ser para o cres-
cimento do número de documentos. Alguns temas como a higiene e prevenção da
tuberculose, os novos tratamentos (medicamentosos e cirúrgicos) e caracterização
anatomopatológica, isiológica e terapêutica de outras tuberculoses (osteoarticular,
renal, genital, etc.) dominaram este período, repercutindo-se numericamente nas
teses com um pico máximo a acontecer entre 1911-1920.
A partir da década de 1920 veriicou-se um declínio gradual da produção de
teses, registando-se um mínimo nos dois decénios seguintes com apenas 5 teses.
Na origem deste decréscimo acentuado esteve um decreto do Governo de 192618
que suprimiu a dissertação obrigatória para a obtenção do grau de licenciatura,
devendo apenas os licenciados fazer prova oral e escrita às cadeiras precedida duma
prova prática ou observação clínica. Apenas para a obtenção do grau académico de
doutor se manteve a obrigatoriedade de apresentação duma dissertação de dou-
toramento e outros documentos requisitados. Por isso se constata um aumento
considerável das teses de doutoramento entre 1921-30 e um número francamente
reduzido ao nível das teses de licenciatura. Mas com o Decreto n.º 18310/1930 e
os regulamentos das Faculdades de Medicina de 193119 foi restabelecida obrigato-

18 Cf. DECRETO n.º 12697/1926. D. do G. 259 (17-11-1926) pp.1083-1087 in Colecção oicial de legislação portugue-
sa: segundo semestre. Lisboa, Imprensa Nacional, 1931 e DECRETO n.º 18310/1930. D. do G. 107 (10-05-1930)
pp. 656-666 in Colecção oicial de legislação portuguesa: primeiro semestre. Lisboa, Imprensa Nacional, 1937.
19 Veja-se DECRETO n.º 19337/1931. D. do G. 35 (19-01-1931) pp. 208-217 in Colecção oicial de legislação por-

160
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

riedade de entrega da tese para efeitos do acto de licenciatura e de doutoramento.


Contudo, parece que o efeito não foi imediato já que só no início da década de 50
a produção voltou a aumentar. As teses escritas neste período deveram muito à
descoberta dos antibióticos e químicos contra o bacilo de Koch. Surgiram disserta-
ções ligadas ao tratamento das diversas formas de tuberculose pela quimioterapia,
não sendo a tuberculose pulmonar de modo algum o tema dominante. Contudo,
existem teses cuja temática se ilia num período anterior nomeadamente sobre a
vacinação pelo BCG, a utilização do pneumotórax artiicial e várias teses centradas
na tuberculose genital da mulher.
A observação do Gráico4 permite-nos constatar por escola uma ideia seme-
lhante à produzida pelo gráico representativo da produção global. A produção
por escola, salvaguardando a diferença numérica entre cada uma, evoluiu de forma
semelhante, arrancando Porto e Lisboa mais cedo, com uma ascensão progressiva a
partir de 1881-90 e atingindo o pico em 1901-10 no caso do Porto e 1911-20 no
caso de Lisboa. Coimbra começa mais tarde, interrompendo a produção de disser-
tações sobre tuberculose na década seguinte e recomeçando dum modo contínuo
a partir de 1917, com uma tendência para aumentar e atingir um pico entre 1921-
30, voltando a decrescer entre 1931 e 1951 como o Porto e Lisboa para retomar a
produção da década de 1951-60 onde ultrapassou Porto e Lisboa.
No que diz respeito à produção de teses por década e tipologia podemos en-
contrar três grandes momentos. O primeiro é dominado pela produção de disser-
tações inaugurais que abarca um período lato de cerca de setenta anos, entre 1851
e 1920, que corresponde ao período lorescente das Escolas Médico-cirúrgicas
do Porto e Lisboa. Apesar do domínio das teses inaugurais temos de destacar a
produção de teses de concurso que estão presentes desde 1881 até 1920 de forma
contínua, atingindo o maior volume entre 1891-1900, altura em que alguns tisio-
logistas, sobretudo do Porto, se tornaram professores.
O segundo momento é o da proliferação das teses de doutoramento. Embora
surgissem alguns exemplares no período de 1891-1900 só na década de 1911-20
o seu número se torna considerável, com 23 teses, e na década posterior é mesmo
dominante relativamente a todos os outros tipos. Com a passagem das Escolas
Médico-cirúrgicas a Faculdades de Medicina, a partir de 1911, vemos o número
de teses inaugurais a diminuir progressivamente e a aumentarem o número de

tuguesa: primeiro semestre. Lisboa, Imprensa Nacional, 1939; DECRETO n.º 19678/1931. D. do G. 101 (01-05-
1931) pp. 551-572 in Colecção oicial de legislação portuguesa: primeiro semestre. Lisboa: Imprensa Nacional, 1939 e
DECRETO n.º 19691/1931. D. do G. 103 (18-03-1931) pp. 578-600 in Colecção oicial de legislação portuguesa:
primeiro semestre. Lisboa, Imprensa Nacional, 1939.

161
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

doutoramentos em torno de questões prementes da época como o tratamento, a


proilaxia ou a vacinação. O terceiro momento, nas décadas de 50 e 60, é um re-
torno às dissertações de inal de curso, de licenciatura, onde os temas privilegiados
foram as questões etiopatológicas e terapêuticas de tuberculoses extrapulmonares.
Veriica-se deste modo que a produção de dissertações nas escolas médicas
do país veriicou altos e baixos ao longo do período considerado. Os períodos de
maior lavra ocorreram em anos subsequentes a grandes descobertas no campo da
tuberculogia ou a épocas de maior discussão em torno da proilaxia e assistência
social. É curioso veriicarmos que o número máximo de teses é produzido numa
altura particularmente sensível do ponto de vista da mortalidade com uma média
de treze mil mortes anuais segundo os números calculados na altura20. Quanto à
tipologia predominaram as teses inaugurais das Escolas Médico-cirúrgicas que
se esbatem à medida que estas instituições passam a Faculdades de Medicina,
sobressaindo a partir daí teses de doutoramento e de licenciatura, que vieram
catapultar novas temáticas.

ANÁLISE TEMÁTICA DAS DISSERTAÇÕES

A análise quantitativa e evolutiva das dissertações produzidas em Portugal no


período convencionado permitiu observar os momentos de maior fôlego na pro-
dução de dissertações académicas em torno da tuberculose e contextualizar o inte-
resse ou desinteresse manifestado de acordo com o período em questão. Todavia,
uma observação exclusivamente quantitativa equivalia a perder uma quantidade
assinalável de informação, designadamente informação relativa aos temas e assun-
tos tratados nas teses, que servem para caracterizar a evolução genérica da tisiologia
entre o século XIX e XX.
Para perceber a evolução e variação temática izemos uma categorização te-
mática das diversas dissertações académicas21. Consideramos para esta análise te-
mática todos os títulos que conseguimos ter acesso ou referência quer das Escolas
Médico-cirúrgicas/Faculdade de Medicina do Porto e Lisboa quer da Faculdade
de Medicina de Coimbra, em todas as tipologias existentes, designadamente dis-
sertações inaugurais, de licenciatura, de doutoramento, de concurso e de agregação.

20 Cf. CORREIA, Fernando da Silva, Portugal Sanitário: subsídios para o seu estudo. Lisboa, Ministério do Interior/
Direcção Geral de Saúde Pública, 1938, p. 264.
21 Seguimos aqui a proposta de categorização de Laurence Bardin. Vide BARDIN, Laurence, Análise de Conteúdo.
Lisboa, Edições 70, 1979.

162
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

Não descartamos a hipótese de nos faltar algum título, que por falta de organização
de algumas bibliotecas não pudemos ter acesso. É de referir que a única biblioteca
com todas as suas teses catalogadas e disponíveis é a da Faculdade de Medicina do
Porto. A Biblioteca das Ciências da Saúde em Coimbra disponibilizou-nos um ca-
tálogo já desactualizado onde por vezes as cotas não correspondem aos títulos. Na
Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa, à data da nossa recolha, encontra-
va-se ainda num processo de reorganização e catalogação das obras antigas (entre
as quais teses de medicina) pelo que tivemos de recorrer ao catálogo manual de
ichas já desactualizado. Fizemos uso não só das dissertações cujo título se reporta-
va directamente à tuberculose, mas também a algumas em número muito reduzido
mas que discutiam no seu interior algum assunto relacionado com a tuberculose.
A categorização das teses passou pela arrumação temática dos documentos dis-
tribuídos por seis categorias, três das quais com subdivisões:
Generalidades
Patologia
Anatomia patológica
Patologia clínica
Diagnóstico e técnicas de diagnóstico
Tratamento
Tratamento medicamentoso/farmacêutico
Tratamento cirúrgico
Tratamento higieno-dietético/sanatorial
Higiene, saúde pública e assistência
Especialidades
Tuberculose genital
Tuberculose osteoarticular
Tuberculose renal
Outras formas

Na categoria das “Generalidades” incluímos os temas relacionados com descri-


ções generalistas das diversas formas da doença onde os autores fazem uma síntese
(“estado da arte”) sobre os mais diversos aspectos em simultâneo, como diagnósti-
co, patologia, anatomia patológica, tratamento, prognóstico, etc. Englobamos aqui
também outros temas avulsos que abordam genericamente assuntos como tubercu-
lose na gravidez, teorias dominantes acerca da etiologia hereditária ou contagiosa,
unidade ou dualismo e observações clínicas.
Na categoria de “Patologia” criamos duas subdivisões, a “Anatomia Patológica” e
a “Patologia Clínica”. Na subcategoria “Anatomia Patológica” englobamos os casos
de estudo anatómico da doença e análise de questões que se prendem com locali-
zações anatómicas especíicas como a análise dos tubérculos, a análise de cavernas

163
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

pulmonares, de tumores brancos, etc., enquanto na subcategoria de “Patologia Clí-


nica” conglomeramos teses cujo tema se prendia com etiologia, causas, sintomas e
evolução da doença.
Consagramos a terceira e quarta categoria ao diagnóstico e ao tratamento res-
pectivamente. No que concerne ao “Diagnóstico e técnicas de diagnóstico” consi-
deramos as teses que diziam respeito às apreciações teóricas e práticas do diagnós-
tico, bem como às diferentes técnicas nomeadamente a auscultação, medição do
perímetro torácico, a análise bacteriológica à expectoração, análises laboratoriais ao
sangue, radiograia, testes de tuberculina, etc. Para categorizar as teses versadas sobre
o tratamento estabelecemos três subcategorias. A primeira refere-se ao tratamento
medicamentoso/farmacêutico, isto é, tratamento através de substâncias químicas,
compostos e orgânicas, por exemplo cianeto de ouro, guaiacol, soros, quimioterá-
picos e antibióticos. A segunda subcategoria diz respeito ao tratamento cirúrgico,
isto é, que envolve intervenção manual ou instrumental como eram exemplo as
toracoplastias, ressecções pulmonares ou o pneumotórax artiicial. Por tratamento
higieno-dietético e sanatorial compreendemos um tratamento cuja fórmula consis-
tia na utilização conjunta ou parcial de ar puro (aeroterapia e climatoterapia), repou-
so e superalimentação, que era simultaneamente a base do tratamento sanatorial.
Na categoria de “Higiene, Saúde Pública e Assistência” incluímos trabalhos que
versavam sobre os meios individuais ou colectivos, princípios e práticas destinados
a preservar ou promover a saúde, ligados à proilaxia da tuberculose, assim como te-
ses que incidem sobre o estudo de políticas e meios de prestação de cuidados assis-
tenciais aos tuberculosos. Reservamos a categoria de “Especialidades” para classii-
car dissertações cujos objectos eram formas extrapulmonares da doença. Uma vez
que a tuberculose genital, a tuberculose osteoarticular e a tuberculose renal foram
bastante focadas pelos tisiologistas, justiicando por si a criação de subcategorias,
reservando uma quarta subdivisão para “Outras formas”, incluindo aí manifesta-
ções como as escrófulas, meningite tuberculosa, coxalgia, tuberculose cutânea, etc.

164
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

QUADRO 2 – DISTRIBUIÇÃO DE TESES POR TEMAS


Patologia Tratamento Especialidades

Higiene, Saúde Pública, Assistência


Diagnóstico e téc. diagnóstico

Medicamentoso/farmacêutico

Higieno-dietético/Sanatorial
Anatomia patológica

TB osteoarticular
Patologia clínica

Outras formas
Generalidades

TB genital
Cirúrgico

TB renal
Inaugural 10 10 13 8 5 16 21 2 15 6 9
Licenciatura 6 2 3 10 2 8 0 5 8 4 4 10
Doutoramento 11 8 6 12 2 3 4 7 1 2 2 9
Concurso 0 0 3 1 0 0 0 2 0 3 0 1
Agregação 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0
Subtotal 37 20 22 36 12 16 20 36 11 24 12 29
Total 37 42 36 48 36 76

Se atentarmos ao total de teses produzidas pelas três escolas patentes no Quadro


2 veriicamos que dum modo geral todos os temas foram cobertos de forma unifor-
me. No entanto, destacamos as especialidades que pela diversidade de formas no-
sológicas que compreende superam numericamente os outros temas categorizados.
De resto as questões de patologia e tratamento no seu conjunto contam com mais
de quatro dezenas de exemplares cada, o que prova que houve uma grande preocu-
pação com o estudo e especiicação da natureza, origem e evolução da tuberculose,
a par das formas de tratamento consideradas, com uma frequência maior ao nível
do tratamento higieno-dietético pelas vastas campanhas e acções práticas destina-
das à implementação do regímen sanatorial, e logo depois surgem os tratamentos
cirúrgicos (realizados sobretudo nos sanatórios) e o medicamentoso/farmacêutico.
As restantes categorias repartem equitativamente o número de teses entre si,
todos na casa das três dezenas. Existem 37 teses que abordam o tema tuberculose
na sua generalidade, fazendo “estados da arte” acerca do tema ou temas avulsos.
O diagnóstico e as técnicas de diagnóstico, com 36 exemplares, são uma parte
importante destes trabalhos, correspondendo a um esforço sempre presente para
aprimorar as formas de detecção da doença. Quanto ao tema sobre higiene, saú-
de pública e assistência, igualmente com 36 exemplares, parece ter uma presença
constante desde inais do século XIX, quando houve uma airmação social do hi-

165
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

gienismo, que também se repercutiu nas questões ligadas à tuberculose. No que


refere à assistência, existem algumas teses que são estudos que pretendem mostrar
as vantagens da abertura de dispensários e sanatórios para o enquadramento higi-
énico dos tuberculosos.
Atendendo aos critérios da frequência de determinada categoria temática e à
sua evolução temporal podemos veriicar em primeiro lugar que determinados te-
mas são mais explorados em determinado período e em segundo lugar que existem
temas transversais a quase todas as décadas consideradas. No global, os temas mais
focados pelos médicos foram o da higiene, saúde e assistência, o das generalidades,
o do tratamento higieno-dietético/sanatorial a par das tuberculoses osteoarticula-
res. Nos inais do século houve uma preponderância relativa às questões higiénicas
e sanitárias em geral e à tuberculose em particular, pelo agravamento das condi-
ções de vida, de trabalho e de habitação da população. Por outro lado, nos inais
do século XIX e inícios do XX surgiram as primeiras organizações de assistência
aos tuberculosos, nomeadamente os preventórios para crianças, os dispensários, os
hospitais de isolamento e os sanatórios. Uma vez que as teses inaugurais represen-
tavam um culminar do curso, preparada no último ano e quase sempre apressada-
mente, é frequente encontramos trabalhos que fazem uma síntese, muitas vezes
cópias de trabalhos estrangeiros, sobre vários assuntos em simultâneo da doença,
que engrossam o número das teses categorizadas como “Generalidades”.
A prevalência de trabalhos em torno do tratamento higieno-dietético, segundo
a fórmula sanatorial de ar puro, repouso e boa alimentação tem a ver com o des-
pertar do movimento sanatorial em Portugal que incitou os médicos a realizarem
trabalhos sobre climatoterapia de altitude ou marítima e a opinarem sobre o me-
lhor modo de aplicar esse regímen terapêutico. Deve-se dizer também que existe
um número considerável de teses sobre tuberculoses dos ossos e articulações quase
todas versando sobre observações clínicas de crianças internadas nos hospitais.
Outras questões relevantes são as de patologia, diagnóstico e suas técnicas assim
como tratamentos medicamentosos. As questões ligadas à anatomia patológica e
patologia clínica são sobretudo aloradas no período anterior e imediatamente após
a descoberta do bacilo de Koch. Antes da descoberta do bacilo realizavam-se traba-
lhos sobre anatomia do tubérculo e sobre semiologia sendo posteriormente substitu-
ído por este novo tema. O desenvolvimento da bacteriologia e da tecnologia médica
e cientíica permitiu avanços consideráveis ao nível das técnicas de diagnóstico nos
inais do século XIX e nas primeiras décadas do XX o que se repercutiu ao nível da
produção escrita. O tratamento baseado em medicamentos e outras substâncias foi
sempre um quebra-cabeças para a medicina, havendo um esforço dos médicos por

166
ESCOLAS MÉDICAS E TUBERCULOSE:
UM OLHAR SOBRE AS DISSERTAÇÕES MÉDICAS DE TISIOLOGIA EM PORTUGAL (SÉCS. XIX-XX)

desenvolver tratamentos eicazes, embora muitos só funcionassem como paliativos.


Os outros assuntos são sintomáticos das preocupações dos médicos-cirurgiões,
designadamente os estudos sobre anatomia patológica, patologia clínica, diagnós-
tico e tratamento farmacológico. Para os dois primeiros decénios de que há registo
os trabalhos existentes são sobretudo de anatomia patológica, variando nos séculos
seguintes entre patologia clínica, generalidades, diagnóstico e tratamentos. A partir
da década de 1880 até à de 1920 temos uma maior diversiicação de temáticas,
sendo que é no vinténio de 1891-1910 que se constatou essa diversiicação, to-
cando mesmo todos os temas. A partir dos anos 80 do século XIX, o problema da
tuberculose começou a ser encarado mais seriamente pela medicina e saúde pública
do tempo, tornando-se visível pela quantidade e diversiicação temática. Assuntos
como o diagnóstico, tratamentos e higiene são transversais à maioria das décadas
consideradas, exactamente por serem problemas recorrentes, como o da concepção
de técnicas cada vez mais precisas e iáveis de diagnose. O tratamento também
se revelou uma das maiores diiculdades, a par do respeito e emprego das normas
higiénicas como forma de proilaxia individual e colectiva. O tratamento cirúrgico
e as especialidades de tuberculose genital e renal parecem ser as áreas de menor
produção em termos globais.

CONCLUSÕES

A produção de dissertações académicas de tisiologia em Portugal ao longo dos


séculos XIX e XX reletiu em certa medida a crescente preocupação médica e so-
cial com a tuberculose. Doença ubíqua na sociedade portuguesa contemporânea,
estimulou a classe médica a (re)produzir o conhecimento acerca dela. No entanto,
o peso da tuberculose no campo académico não foi igual nas três escolas médicas
do país. Porto e Lisboa lideraram com um avanço considerável a escrita sobre este
tema. A isto não foi alheio o facto de existirem desde cedo preocupações sanitárias,
médicas e cirúrgicas das Escolas Médico-cirúrgicas do Porto e Lisboa, que em
Coimbra não tinham tanto peso.
O momento de maior produção documental teve o seu apogeu entre 1880 e
1920, um período marcado não só por problemas político-militares e socioeco-
nómicos mas pela airmação plena das doutrinas higienistas em Portugal, que
obviamente espelharam a preocupação com a tuberculose, considerada o inimigo
público número um. Depois duma interrupção o interesse por este tema voltou a
recuperar o seu lugar nos anos 50 do século passado muito devido às questões do

167
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

tratamento quimioterápico que então emergiu.


Apesar de a pulmotuberculose ser a mais conhecida forma das doenças produzi-
das pelo bacilo de Koch, um volume considerável de teses académicas versaram so-
bre outras formas da doença, chamadas de tuberculoses cirúrgicas, e que ajudaram
a conferir um peso signiicativo ao corpus documental. Outros temas genéricos e
as questões do tratamento para uma doença considerada incurável até meados do
século XX foram os mais recorrentes nos trabalhos de inal de curso dos alunos. A
tuberculose, sendo uma patologia entre milhares, não se encontra mal representada,
provando que apesar das diiculdades de luta contra esta doença nunca foi esqueci-
da e constituiu uma preocupação sempre presente da classe médica.

168
O internacionalismo científico
no âmbito das origens da INVOTAN
Paulo Vicente
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

INTRODUÇÃO

O presente texto insere-se num estudo mais alargado de Dissertação de Mes-


trado sobre a Comissão Coordenadora de Investigação para a OTAN (INVO-
TAN). Todavia, não se trata de um trabalho centrado na sua constituição apesar
de pretender contribuir para a compreensão da mesma. Pretende-se com este es-
tudo, obter uma síntese histórica daquilo que foi a década de 1950 no âmbito do
internacionalismo cientíico, um dos principais factores conjunturais que impul-
sionou a criação do Comité Cientíico (SCOM) e da Comissão INVOTAN, en-
tre os meandros pantanosos da Guerra Fria e dos contornos que o poderio nuclear
conferiu nas novas deinições estratégicas geopolíticas e diplomáticas.
O interesse historiográico pela conjuntura da Guerra Fria é imenso e exausti-
vo, sobretudo a partir da década de 1990 com a abertura dos arquivos da URSS1.
Tal exaustão historiográica tem levado vários autores a apelarem e tentarem no-
vas reconceptualizações historiográicas em seu torno, com o propósito de abrirem
novos caminhos interpretativos de um tema que não carece complexidade. O his-
toriador Odd Arne Westad2, por exemplo, aponta três paradigmas promissores a
seguir para estudar tal conjuntura, a Ideologia, a Tecnologia e o Terceiro Mundo3,
entre os quais interessa sobretudo e obviamente, no âmbito deste texto, o paradig-

1 Entre os historiadores envolvidos no estudo da Guerra Fria, devemos de destacar John Lewis Gaddis, David
Reynolds, Odd Westad ou Michael Hogan. O primeiro, sobretudo, é um dos autores da tentativa revitalizadora
de escrita de uma Nova História da Guerra Fria. Já o segundo, autor de One World Divisible: A Global History
since 1945 (New York, 2000), tem explicado as tendências do desenvolvimento cientíico e tecnológico no segun-
do pós-guerra.
2 WESTAD, Odd Arne,, Reviewing the Cold War: Approaches, Interpretations, heory (London, 2000).
3 WESTAD, Odd Arne, «BERNATH LECTURE he New International History of the ColdWar: hree
(Possible) Paradigms», Diplomatic History 24, n 4 (2000): pp.551–565.

169
ma “Tecnologia”4 que abrange as problemáticas das Ciências Puras e Aplicadas.
Relativamente a este paradigma, o estudo do desenvolvimento das Ciências
Puras e Aplicadas no contexto do Internacionalismo Cientíico providenciado
pela Guerra Fria tem vindo a ter expressões historiográicas de enorme relevância
em autores como John Krige5 e contribuições de outros de áreas mais especíicas
como por exemplo Bruno Strasser6, cuja especialidade de História da Medicina
cruza tal temática.
Já em Portugal, existem algumas obras pioneiras que contribuem para a per-
cepção da complexidade da temática da cooperação e internacionalismo cientíi-
cos na inluência do próprio percurso histórico do Estado Novo7. À semelhança
dos apelos de Odd Westad a uma narrativa histórica, também José Telo8 e Ma-
riano Gago9 o izeram no campo nacional, todavia as expressões historiográicas
nacionais neste domínio ainda são algo tímidas – embora crescentes.
Partindo do próprio título proposto, interessa desde já ter em conta a deinição
da INVOTAN para a podermos inserir na mais vasta conjuntura do internaciona-
lismo cientíico. Trata-se de uma comissão oiciosa de coordenação cientíica com
representações interministeriais10, designadamente associada à OTAN11. A sua
camulagem nos radares dos historiadores deve-se sobretudo ao caracter oicioso
da sua criação que remonta ao verão de 1959 quando Pedro Teotónio Pereira a
constitui por simples despacho a 4 de Agosto12, icando desde logo a funcionar na

4 Ibid., pp.556–561. Por Tecnologia, entender todos os processos que levam à sua concepção, incluindo as proble-
máticas das Ciências Puras e Aplicadas
5 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe (Cambridge: MIT Press,
2006). A obra de Krige é vasta e sobretudo concentrada no internacionalismo cientíico no âmbito da Guerra
Fria, da NATO e da NASA.
6 No especíico caso de Bruno Strasser, os seus estudos da História da Medicina têm contribuído para a temática
do Internacionalismo Cientíico do segundo pós-Guerra.
7 Especial destaque para a Dissertação de Doutoramento de Maria Fernanda Rollo, Portugal e a Reconstrução
Económica do Pós-Guerra. O Plano Marshall e a economia portuguesa dos anos 50 (Lisboa: Instituto Diplomático,
2007). como uma aproximação pioneira para uma narrativa centrada na cooperação internacional que, apesar de
centrada no domínio da cooperação económica, realça a importância de tímida visibilidade de outras iniciativas
de cooperação civil, no âmbito das ciências.
8 TELO, António José, «Portugal e a OTAN: 1949/61 e 1961/76», em Portugal e os 50 Anos da Aliança Atlântica,
1949-1999 (Lisboa: Ministério da Defesa, 1999), 71–102.
9 GAGO, José Mariano et al., «A Ciência e a Defesa em Portugal - Elementos para uma Agenda de Estudos Fu-
turos», em Nova História Militar de Portugal, vol V (Lisboa: Círculo de Leitores, 2004), 481–533. O ex-ministro
da Ciência e Tecnologia José Mariano Gago aborda num dos últimos capítulos do volume a oiciosa Comissão
INVOTAN, mencionando igualmente a necessidade de se elaborar um estudo mais amplo da mesma.
10 Participam representantes dos Ministros que tenham interesse nos assuntos abordados pela Comissão. Inicial-
mente contou-se com os representantes dos Ministros da Presidência ( José Frederico Ulrich), da Defesa (Carlos
da Silva Freire), da Economia (Magalhães Ramalho), da Educação (Carlos Alves Martins), das Finanças ( José
Joaquim Jesus), da Saúde e Assistência (Soeiro de Brito) e ainda com um funcionário da Inspecção Superior da
Mobilização Civil com funções de Secretaria (Baptista Cunha e Sá).
11 Inicialmente proposta pela NATO que intensiicou as insistências para a criação de um organismo como a INVO-
TAN para dialogar com o recém criado Comité Cientíico da NATO que viriam a ser ouvidas pelo então Ministro
da Defesa, Júlio Botelho Moniz. ADN, SGDN, cx. 6089, Informação nº351/59. Lisboa, 17 de Agosto de 1959
12 Tal foi possível pela Lei nº 2084 de 16 de Agosto de 1956, sobretudo pela Base IX que refere que “serão dele-

170
Secretaria-Geral da Presidência do Conselho13.
Interessa ressalvar que a INVOTAN (Agosto de 1959) está intimamente li-
gada ao SCOM da NATO (Março de 1958) pelo que a criação de ambas é um
resultado das forças conjunturais que se sentiram ao longo da década de 1950,
que conferiram atrasos e avanços no campo da internacionalização da cooperação
cientíica, num momento em que a NATO e os EUA desempenharam o papel de
Deus Ex Machina para todas estas iniciativas.
A importância que os EUA conferiram à cooperação cientíica intensiica-
se sobretudo nos inais dos anos de 194014. Há, todavia, preocupações no uso
do termo “cooperação” quando uma das partes é uma potência assimetricamen-
te superior relativamente a países europeus como Portugal. O termo “relações
cientíicas” parece ser mais justo quando há o risco das mesmas resultarem antes
numa “transferência” ou “difusão” de conhecimento cientíico por imposição de
um modelo – neste caso, o norte-americano – ao invés da “cooperação”. Não se
estranha que os EUA consigam operar uma lógica de imperialismo que abandona
o modelo de “domínio sobre os outros” em prole de uma organização consentida
de outros através de uma liderança tecno-cientíica e intelectual15. Reconhecendo
o deicit cientíico e tecnológico dos aliados, os EUA puderam jogar com o seu
poder cientíico e tecnológico, quer através da sua partilha, quer da sua negação16
contribuindo para a construção de uma hegemonia consensual – e não coerciva17.
A situação e os discursos em torno do internacionalismo e cooperação cientí-
ica entre aliados estarão em constante mutabilidade. De facto, a própria bipola-
ridade da Guerra Fria vir-se-á a acentuar neste contexto num confronto entre a

gados no Ministro da Presidência os poderes de coordenação e de direcção relativos à preparação e execução da


mobilização civil (…) nos domínios (…) cientíico, económico, administrativo (…)”. Insere-se numa conjuntura
de necessidade de acrescida agilidade de resposta aos vários Comités civis que iam surgindo no seio da NATO.
13 FCT, INVOTAN, Ofício nº. 432/MC/59: De Secretário-geral da Presidência do Conselho para [este documen-
to teve como destino os chefes dos gabinetes dos Ministérios: Educação Nacional, Obras Públicas e Economia
com exactamente o mesmo texto nos três envios] de 11 de Agosto de 1959. O mesmo despacho pode ser
encontrado igualmente na caixa 6068 da Secretaria Geral da Defesa Nacional no ADN.
14 De facto, o poder da Aliança e do seu líder, os EUA, assentava na imagem do poderio nuclear, legitimando-o
desde logo tanto para o cargo de liderança e de contra-peso contra a gigante URSS, cujo fundamento e modelo
ideológico aterrorizava grande parte do Mundo Ocidental, não obstante dos regimes serem democratas ou de
regime autoritário fascista. Porém, era necessário legitimar essa liderança e imagem não apenas com o medo mas
também com uma imagem de benevolência e sagacidade.
15 BRIGHT, C. e GEYER, M., «Regimes of World Order. Global Integration and the Production of Diference in
Twentieth-Century World History», em Interactions. Transregional Perspective on World History, by BENTLEY,
J.H. (Honolulu: University of Hawai’i Press, 2005), p.228. A autora deine este imperialismo como uma adopção
“beyond the extension of power over others toward a direct and sustained organization of others, simultaneously,
and in many parts of the world”
16 KRIGE, John, «Maintaining America’s Competititve Technological Advantage: Cold War Leadership and the
Transnational Co-production of Knowledge», Humana.Mente. Journal of Philosophical Studies 16 (2011): p.35.
17 BRIGHT, C. e GEYER, M., «Regimes of World Order. Global Integration and the Production of Diference in
Twentieth-Century World History», p.228.

171
ciência “comunista e controlada” do bloco da URSS e uma ciência de uma relativa
laissez-faire com mais autonomia e uma cooperação menos restritiva18.
Este período inicial da Guerra Fria é, por um lado, marcado por uma dualidade
de perspectivas nas relações internacionais entre os conservadores e os emergentes
tecnocráticos com importantes vultos da comunidade cientíica norte-americana
a envolverem-se nesta luta, adoptando um pragmatismo real nas relações inter-
nacionais, insistindo que o isolacionismo cientíico e tecnológico defendido pelos
conservadores seria a médio/longo prazo prejudicial para a competitividade dos
EUA. Por outro lado, é caracterizado pela novidade da bomba Nuclear e das an-
siedades que esta conferiu nas relações internacionais, representativo da impor-
tância dos avanços cientíicos que só podem ser tão notáveis quanto as capacida-
des técnicas do capital humano de cada potência. É neste contexto que começa
a surgir a própria noção de «política cientíica»19 e um despertar do interesse das
Nações para a mesma – nos duplos aspectos de política para a ciência e ciência
para a política - havendo então, um “reconhecimento institucional através de or-
ganismos, mecanismos, procedimentos e um corpo burocrático e político”20. A
década de 1950 revela-se uma época chave para este despertar devido sobretudo
ao push dos EUA e de várias organizações internacionais contemporâneas21.
Vários países vão aproveitar estas novidades e oportunidades conjunturais de
Science push22 que criaram o SCOM. No caso português, tirando as tímidas experi-
ências do IAC, não existia uma política cientíica coesa. Todavia, é o jogo de forças
conjunturais de tremenda pressão exercida pelos EUA e a NATO que fará com
que até países como Portugal se venham a envolver em matérias como a política
cientíica e a construção de uma força de capital humano no Bloco Ocidental,
culminando na criação da INVOTAN e numa primeira tentativa séria de estabe-

18 MANZIONE, Joseph, «“Amusing and Amazing and Practical and Military”: he Legacy of Scientiic Interna-
tionalism in American Foreign Policy, 1945-1963», Diplomatic History 24, n 1 (2000): p.52.
19 O termo terá sido utilizado pela primeira vez em 1945 no Reino Unido, a respeito do Comité sobre a Política
Cientíica Futura, apesar de “uma política especíica relativa à organização da ciência a nível nacional e a atribuição
de recursos para a investigação não estava ainda muito difundida” RUIVO, Beatriz, As Políticas de Ciência e Tecnolo-
gia e o Sistema de Investigação (Lisboa: Casa da Moeda, 1998), p.63. Sublinhe-se igualmente a deinição de «política
cientíica internacional» de Galey que considera ser «uma política para a ciência pura ou aplicada, aceite internacio-
nalmente por notáveis que se tenham distinguido na área e que participem em congressos cientíicos ou associações
internacionais». GALEY, Margaret, «Trends and dimensions in international science policy and organisation», em
Science and technology policy, ed HABERER, Joseph (Lexington Ma.: Lexington Books, 1977), 109–127.
20 RUIVO, Beatriz, As Políticas de Ciência e Tecnologia e o Sistema de Investigação, p.64.
21 É através destas organizações que são montadas redes de contactos a nível internacional que de um modo geral,
difundem experiências, resultados e conhecimentos a níveis técnicos, logísticos e burocráticos. Contribuem desta
maneira para introduzir países nos conceitos e importância das políticas de C&T e nos processos de I&D surgin-
do uma «política cientíica internacional». Neste caso, o Plano Marshall e os diversos programas do seu Programa
de Assistência Técnica serviram como ponto de partida para esta tendência no alvorecer da década de 1950.
22 Autores como Blume (1983) defendem o conceito de “oportunidades” que está relacionado com a importância
do science push para os avanços cientíicos e tecnológicos inserindo-se de igual forma no conceito de “ciência
como uma oportunidade estatégica”.

172
lecimento de uma “política cientíica” nacional. Estas forças conjunturais podem
ser notadas nos seguintes momentos: a criação da AGARD (1952), a Conferência
de Genebra (1955), a Criação do Comité dos Três Sábios (1956), o lançamento
do Sputnik (1957) e a criação do SCOM na NATO (1958).

AGARD OU A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO CIENTÍFICA NA NATO

A década de 1950 é desde logo marcada pela novidade NATO como produto
da nova conjuntura Guerra Fria e das ansiedades do segundo pós-guerra. Dentro
desta novidade, devemos de destacar – ainda antes do “relatório dos Três Sábios”
– o protagonismo de heodore van Kármàn23 na constituição da AGARD24 para
percebermos as eventuais origens do SCOM. De facto, o mesmo escrevia:
«hen one day in April 1949, I read in the paper of the birth of NATO. Here
was a small and simply administered group of nations bound together by the
needs of defense. For my purpose it looked ideal. Why not use NATO as a pilot
plant to test ou the feasibility of scientiic cooperation? I had concluded back in
Volkenrode in 1945 that progress in technology was so swift that only a pool
of nations could properly utlize scientiic advances for mutual protection. With
such an efort, it seemd to me, the international character of science could grow.
After that, my ideas began to irm up. Why not set up for NATO a scientiic
advisory board similar to the Scientiic Advisory Board of the US Air Force?
Such a board could ensure the NATO countries that they would always have
the best technology at their command».25
Kármàn tinha plena percepção das vantagens desta novidade pelo que viria a
estabelecer os contactos necessários entre as autoridades civis e militares norte-
americanas com o propósito de concretizar o seu projecto de criação de um grupo
consultivo para a cooperação cientíica vendo a NATO como – segundo as suas pró-
prias palavras – um ‘pilot plan’ ou um embrião para o estabelecimento da AGARD
(efectivamente estabelecido em 1952) ou/e de um Scientiic Advisory Board.

23 Nasceu a 11 de Maio de 1881 e faleceu a 7 de Maio de 1963. Filho do professor Maurice von Kármán e Helene
Kármán. Naturalizou-se nos EUA em 1936. Graduou-se em 1902 na Royal Technical Universirty em Budapeste
e doutorou-se na Universidade de Göttingen em 1908, na Alemanha. Fez carreira como investigador de enge-
nharia na Ganz and Company (Alemanha) entre 1903 e 1906. Deu aulas na Royal Technical University (1903-
1906) e na Universidade de Göttingen (1909-1912). Foi Director da “he Aachen Aeronautical Institute”, na
Alemanha entre 1912-1929, oicial da Austro-Hungarian Air Corps entre 1914-1918, consultor da Junkers
Airplane Works (1912-1928) e da Luftschifbau Zeppelin (1924-1928) na Alemanha. ver a partir da p.16
24 Advisory Group for Aerospace Research and Development
25 BLIEK, Jan van der, AGARD. he History. 1952-1997 (Essex: SPS Communications, 1999), 2–1.

173
Foi no mês de Maio de 1945 numa sessão de ‘brain-storming’ com Hugh Dry-
den, Donald Putt, George Schairer e Frank Wattendorf em Volkenrode que se
conceptualizou a ideia – prematura, porém – de um tal grupo consultor e de estí-
mulo de investigação cientíica para um grupo de Nações de interesse semelhan-
te, sem noção que tal oportunidade surgiria mais tarde com a NATO26. Sequen-
cialmente, realiza-se uma reunião no verão de 1950 na Europa com o propósito
de estudar o estado das ciências aeronáuticas nas nações. Kármàn conclui numa
carta ao Major General Donald Putt, então Deputy Chief of Staf for Research and
Development da US Air Force que tal mobilização cientíica para propósitos de
melhoria do potencial militar é ainda muito rudimentar na maioria dos países
e que tal esforço só é viável com uma colaboração próxima entre os mesmos,
recomendando igualmente que se convide directores de estabelecimentos de pes-
quisa aeronáutica para uma conferência nos EUA27 que viria a realizar-se em
Fevereiro de 195128. Se esta conferência foi de particular importância por resultar
na proposta de criação de um grupo consultivo para pesquisa e desenvolvimento
Aeronáutica dentro da ‘framework’ da NATO – proposta aceite e materializada a
24 de Janeiro de 1952 com o estabelecimento da AGARD – a sua importância
revela-se substancialmente mais curiosa por propor, quatro anos antes do Co-
mité dos Três Sábios, o estabelecimento de um Scientiic Advisory Board – ou um
Comité Cientíico - dentro da NATO para assuntos cientíicos mais diversos.
Apesar de recusada e menosprezada numa conjuntura de avanço do conservado-
rismo norte-americano que se concentrava no complexo militar-industrial, no-
tável em medidas como o Mutual Defence Assistance Control Act e mais tarde no
abandono da própria ERP em 195229, parece verossímil suspeitar que as linhas
de pensamento que formulam um comité ou painel do calibre do SCOM não se
encaixavam nos moldes estratégicos assumidos então pelas autoridades norte-
americanas – seria necessário esperar pelos ventos conjunturais proporcionados

26 Ibid., 1–2. No dito “brain-storming” o grupo discutiu a criação de um grupo consultivo cientíico, um grupo para
estímulo de investigação cientíica, projectos de cooperação cientíica com ins militares, a criação de um centro
internacional de pesquisa aeronáutica e a criação de sociedades internacionais de aeronáutica. Entre outras ideias
pensadas, destaque para as que se viriam a materializar mais tarde na European Oice of Air Research, na Mutual
Weapons Development Programme, no Training Centre for Experimental Aerodynamics (eventual Instituto Von
Kármàn) e nas sociedades internacionais de aeronáutica he International Council of the Aeronautical Sciences e
International Academy of Aeronautics.
27 Ibid., 2–1.
28 Contou-se com a participação do Canada, Dinamarca, França, Itália, Países Baixos, Reino Unido e Estados
Unidos da América, 7 das 12 nações da NATO
29 MCGLADE, Jaqueline, «From business reform programme to production drive. he transformationsof US
technical assistance to Western Europe», em he Marshall Plan and the Transfer of US Management Models, ed
KIPPING, Mathias e BJARMER, Ove (London: Routledge editions, 1998), p.28. Também Maria Fernanda
Rollo acusa a existência da facção conservadora americana que defendia esforços ainda mais sentidos numa
politica de defesa e rearmamento nas relações internacionais e que inluenciou o destino da ERP. op.cit., p.148

174
pelo evento Sputnik para que estas linhas viessem a ser compatíveis com os novos
moldes, reformulados abruptamente.
Na sua essência, a importância da AGARD para a História da cooperação
tecno-cientíica dentro da NATO está patente num dos seus principais objecti-
vos: reunir as mais importantes personalidades da ciência aeronáutica dos países
NATO com o propósito de “maximizar” o fomento de investigação e emprego de
cientistas para a Defesa comum da NATO, fomentando actividades de I&D que
estimulassem inovação tecnológica e intercâmbio de conhecimento30.
O primeiro encontro do AGARD entre 19 e 21 de Maio de 1952 já teve uma
maior participação de representantes de países da Aliança, participando oicial-
mente 11 dos 12 países aliados estando apenas Portugal de fora31. Esta curiosa
ausência de Portugal é notada e mais tarde insistida para ser colmatada pelo pró-
prio Kármàn num encontro com o Chefe de Estado Maior da Força Aérea, Costa
Macedo em Abril de 1958.32 Apesar desta insistência oicial, Portugal não esteve
completamente desligado deste fenómeno internacional pois até então, os contac-
tos entre o Estado Maior da Força Aérea português e o AGARD eram realizados
por um tenente-coronel e engenheiro, José Ferreira do Nascimento a título oicio-
so. Com a insistência de Kármàn “para que Portugal se faça representar no Comi-
té do AGARD, onde estão representados todos os países NATO à excepção de
Portugal, Islândia e Luxemburgo”33, numa conjuntura de contestação internacional
do regime, Portugal vai nomear como representante o Brigadeiro da Força Aérea
Bernardo Tiago de Mira Delgado.

30 BURIGANA, David, «he European Search for Aeronautical Technologies and Technological Survival by Co-
operation in the 1960s-1970s... with or without the Americans? Steps, ways, and Hypothesis in International
History», Humana.Mente. Journal of Philosophical Studies 16 (2011): p.104.
31 BLIEK, Jan van der, AGARD. he History. 1952-1997, 3–1.
32 ADN/SGDN, cx.6068, Ofício nº. 172. De 26.5.58 do E.M.F.A “Representante Português no AGARD”
33 Idem

175
CONGRESSO DE GENEBRA OU O PRIMEIRO CONTACTO CIENTÍFICO
ENTRE OS BLOCOS

Ainda nos inais de 1940, os EUA distribuem radioisótopos34 pelas Nações ami-
gas numa política de conquista de “corações e mentes” 35, imediatamente antes de
um famoso discurso de Eisenhower de Dezembro de 1953 onde anuncia a medida
Atoms for Peace onde, apelando a um consenso com a União Soviética36. O propósito
deinido no discurso era simples: uma cooperação entre os EUA e a União Sovi-
ética com a inalidade de aperfeiçoar o uso nuclear para ins pacíicos. Enquanto
eram desviadas as atenções do aperfeiçoamento do armamento nucleares, os EUA
desaiavam directamente os soviéticos para um confronto de propaganda pacíica
promovendo uma intensiicação da corrida a inovações e desenvolvimentos tecno-
cientíicos37.
Para todos os efeitos, mesmo que escondendo uma segunda Agenda, o pro-
grama Atoms for Peace contribuiu para encontros cientíicos relevantes como o
de Genebra em Agosto de 1955, revelando-se uma oportunidade única para que
“centenas de cientistas, engenheiros, técnicos fossem expostos e aprendessem so-
bre reactores nucleares e possíveis aplicações em campos não-militares”38, havendo
contactos entre cientistas americanos e europeus com a elite cientíica e nuclear
russa, tratando-se de uma oportunidade única para se percepcionar minimamente
os imensos avanços neste campo da URSS que, por motivos óbvios, permaneciam
constantemente nas sombras do segredo. Tal se provou possível considerando o
facto dos participantes russos na dita Conferência serem cientistas - e não solda-

34 Do termo “isótopos” que refere dois elementos que têm as mesmas propriedades químicas mas pesos atómicos
diferentes. Os radioisótopos destinguem-se por emitirem radiações. São obtidos por transmutação da matéria
dos átomos quando submetida a uma intensa radiação no seio dos reactores nucleares ou através do uso de acele-
radores de partículas. Usados para ins medicinais mas também com aplicações na agricultura, pecuária, indústria
e engenharia civil. O LNEC, por exemplo, elaborou um estudo do movimento dos aluviões nas costas marítimas
e nas fozes dos rios, utilizando areias marcadas com radioisótopos mas também outros estudos referindo-se à
apreciação de materiais de revestimento usados na construção de laboratórios de radioisótopos. Já o estudo dos
radioisótopos para ins medicinais foi elaborado no Centro de Estudos Egas Moniz. A política de conquista de
“corações e mentes”foi uma estratégia de promoção de uma imagem benevolente e legitimadora da liderança
americana na Aliança, que servia o propósito de conirmar que o poder dominador da tecnologia Atómica
americana poderia ser utilizado para o bem da Sociedade, combatendo as críticas dos partidos comunistas e o
“possível alastramento” do comunismo pela Europa. A distribuição desta tecnologia teve enormes complicações
burocráticas quando distribuída para nações europeias havendo um controlo e iscalização apertada no seu uso,
com receio que a partir dos mesmos, fosse possível desenvolver tecnologia nuclear para ins bélicos.
35 KRIGE, John, «Atoms for Peace, Scientiic Internationalism, and Scientiic Intelligence», Osiris, 2006, p.2.
36 É de referir que faziam apenas 10 meses desde a morte de Stalin e pouco mais de 5 desde o inal da Guerra da
Coreia, pelo que os EUA decidiram abrir novos diálogos com a Rússia, partindo do pressuposto que esta já não
seria tão implacável como previamente sob a liderança de Estaline, sobretudo pelo facto desta ter concordado
num encontro dos 4 Poderes (EUA, URSS, Reino Unido e França) sem as pré-condições de desarmamento dos
EUA
37 KRIGE, John, «Atoms for Peace, Scientiic Internationalism, and Scientiic Intelligence», p.5.
38 Ibid., p.7.

176
dos ou políticos - bastante entusiasmados com as interacções com os seus colegas
internacionais39.
O ex-ministro das Obras Públicas, José Frederico do Casal Ribeiro Ulrich lem-
brava que depois da Conferência de Genebra, “tudo mudou radicalmente” prolife-
rando “por esse Mundo de Cristo um sem im de «acordos bilaterais» e de associa-
ções internacionais, todas à compita a ver qual promove mais colaboração entre os
povos, a nomeação de mais comissões de estudo, o estabelecimento de mais normas
e regras universais”.40 Todavia, esta espiral de mudanças – que nem Portugal con-
seguiu icar alheio – já se vinha a veriicar com maior intensidade a partir do Plano
Marshall e do bilateralismo com os EUA, pelo que é de notar o exemplo da criação
da Junta de Energia Nuclear41 após poucos meses do discurso Atoms for Peace.
A JEN veio a ser fundamental para a prospecção de minérios radiactivos no
Continente e nas Colónias, na construção do Laboratório de Física e Engenharia
Nucleares, do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e no Centro de Estudos
Egas Moniz, com o objectivo de estudar a tecnologia importada dos radioisótopos42.
Assim, o Presidente da Junta de Energia Nuclear vê-se – não obstante da agenda
política sui generis do Estado Novo – envolvido no forum cientíico internacional
pelo que a sua passagem na Presidência JEN da e toda a sua relação com a proble-
mática da Energia Nuclear é transversal à história da própria iniciativa «Átomos
para a Paz», com uma estreita e inseparável relação. Por esta mesma razão, será a
autoridade contemporânea nacional no assunto, mantendo-se actualizado com as
suas participações nos palcos cientíicos internacionais, usando os conhecimentos
e a informação adquiridos para proferir conferências sobre o assunto, assim como
mantendo correspondência oicial e particular com o próprio Oliveira Salazar, dan-
do-lhe conta não apenas da conjuntura, mas oferecendo inclusivamente opiniões

39 STRASSER, Bruno J., Les Sciences de la Vie a l’Age Atomique: Identités, pratiques, et alliances dans la construction
de la biologie moléculaire á Genève (1945-1970), Dissertação de Doutoramento da Universidade de Geneva, 2002,
cap. 1, n.92
40 ULRICH, José Frederico, «A Energia Nuclear em Portugal», Separata da Técnica. Revista de Engenharia dos
Alunos do I.S.T., 1958, p.3.
41 A importância da Junta de Energia Nuclear, para além da sua íntima relação conjuntural internacional, prende-
se sobretudo com a consciencialização da necessidade de preparar pessoal técnico especializado em escolas
nacionais ou, na maioria dos casos, estrangeiras. Seguindo inclusivamente as linhas gerais de pensamento
cooperativo previamente iniciadas no âmbito do Plano Marshall e da USTA&P, a JEN serviu para desenvolver
as relações de Portugal com o forum internacional no sector nuclear - e inevitavelmente, cientíico. Serviu sobre-
tudo para estabelecer contactos e acordos – bilaterais ou mais vastos como as convenções da Agência Europeia
de Energia Atómica, no seio da Organização Europeia de Cooperação Económica ou da própria Agência Inter-
nacional de Energia Atómica – o principal motor para o despertar de interesse dos assuntos nucleares para ins
não-militares – mas de igual forma com a Sociedade Europeia de Energia Atómica, de carácter mais cientíico
do que oicial.
42 Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (Lisboa: Presidência do Conselho. Junta de Energia Nuclear, 1961).

177
sobre os assuntos e o estado da questão.43 e 44
Ulrich relembra o passado ainda próximo do início da medida «Átomos para
a Paz» de Dezembro de 1953. A mesma deu origem à Agência Internacional de
Energia Atómica e levou, a Abril de 1954, o Presidente da Comissão Americana
da Energia Atómica, o Almirante Strauss45 a anunciar uma reunião de cientistas e
técnicos num “congresso cientíico monstro” com o propósito de se comunicarem
os avanços nas “aplicações pacíicas da energia atómica” que veio a ser programada
por uma Comissão de cientistas dos “cinco grandes atómicos”46 mais os iniciados
na questão Índia e Brasil, da Assemblea Geral da O.N.U.47 Esta seria a célebre
primeira Conferência de Genebra de Agosto de 1955 que se revelou uma opor-
tunidade única para que “centenas de cientistas, engenheiros e técnicos fossem
expostos e aprendessem sobre reactores nucleares e possíveis aplicações em campos
não-militares”48. Surpreendentemente, veriicou-se entre os cientistas uma enorme
abertura e franqueza, inclusive dos próprios cientistas russos. Não apenas a co-
munidade cientíica mas também as próprias autoridades políticas e militares da
Aliança esperavam encontrar na Conferência homens sigilosos dos seus trabalhos.
Tal surpresa deveu-se por terem encontrado no Congresso cientistas dispostos a
trocarem as informações e conhecimentos adquiridos nas suas investigações, com
um grande entusiasmo cientíico, ao invés de militares49.
O próprio Frederico Ulrich, que só assistiu apenas uma semana à Conferên-
cia – voltando com mais um técnico para Portugal no dia 14 de Agosto50 – notou
que “se gerou em torno da ideia da Conferência um tal ambiente de franqueza e
aberto espírito de cooperação que foram “desclassiicadas” muitas questões até en-
tão secretas” icando inclusive com a impressão que os americanos teriam acabado
por apresentar todos os seus projectos51. Esta semana foi, todavia, o suiciente para
Ulrich notar que muitas descobertas tidas como secretas, tinham sido conseguidas
simultaneamente em diversos países, concluindo-se em consenso, que a ediicação
de uma ponte que coordenasse “esforços de investigação cientíica, de maneira a
evitar duplicações” seria útil e económico” pelo que, no quadro geral, qualquer país

43 ANTT, AOS/CP-271/Correspondência privada José Frederico Ulrich, “Lisboa, 17 de Agosto de 1955”


44 ANTT, AOS/CP-271/Correspondência privada José Frederico Ulrich “Lisboa, 24 de Outubro de 1955”
45 Engenheiro naval graduado para Almirante por distinção na linha de fabrico dos barcos Liberty
46 E.U.A, Rússia, Grã-Bretanha, Canadá e França
47 ANTT, AOS/CO/PC-52, pt.17 «Situação Internacional da Investigação Nuclear em Portugal”, f.505
48 KRIGE, John, «Atoms for Peace, Scientiic Internationalism, and Scientiic Intelligence», p.7.
49 STRASSER, Bruno J., Les Sciences de la Vie a l’Age Atomique: Identités, pratiques, et alliances dans la construction de
la biologie moléculaire á Genève (1945-1870), Dissertação de Doutoramento da Uni-versidade de Geneva, 2002,
cap. 1, n. 92.
50 ANTT, AOS/CP-271/Correspondência privada José Frederico Ulrich, “Lisboa, 17 de Agosto de 1955”
51 ANTT, AOS/CO/PC-52, pt.16, f.473

178
– grande ou pequeno – pode “investigar e descobrir”52. Ficou aberta mais uma
janela para a consciencialização da importância da coordenação cientíica como
mecanismo contributivo para a estabilidade económica.
A Conferência foi desde logo um passo importante na política mundial da ener-
gia nuclear – ao dissipar algumas sombras do secretismo – mas também na percep-
ção da problemática da duplicação de esforços. Foi, igualmente, o primeiro passo
tanto para a internacionalização da ciência como para a percepção da necessidade
de se realizarem esforços que coordenassem as investigações cientíicas, com o pro-
pósito de duplamente reduzir os seus custos e aumentar a sua eicácia em resulta-
dos e novidades.53 Se por um lado a Conferência de Genebra inaugura a segunda
metade da década de 1950, um período de acalmação das ansiedades atómicas após
o auge da Guerra da Coreia, por outro lado contribui para a consciencialização da
qualidade do capital humano cientíico e tecnológico da rival URSS.

NA GRANDE SOMBRA DO PEQUENO SPUTNIK

‘Oh little Sputnik, lying high


With made-in-Moscow beep,
You tell the world it’s a Commie sky
and Uncle Sam’s asleep’
Poema composto por Mennen Williams, Governador democrático de Michigan.

Se o evento do Congresso de Genebra contribuiu ainda mais para o desper-


tar do interesse para a necessidade de se promoverem esforços para a cooperação
cientíica entre os aliados, é o evento Sputnik que leva os aliados a chegarem à con-
clusão que a qualidade técnica dos cientistas soviéticos é bem superior ao julgado
até então, havendo até mesmo uma percepção que tal capacidade poderia superar a
dos próprios aliados. A sucessão de eventos iniciada pelo lançamento dos sputniks
tratou-se, no fundo, de um jogo de percepções, extrapoladas pela opinião pública,
que será interessante ter em conta para percebermos o impulso da internacionali-
zação cientíica da segunda metade da década de 1950.

52 ANTT, AOS/CO/PC-52, pt.17, f.505


53 De um modo geral, surgiram nesta década a Agência Internacional de Energia Atómica (com a sede em Viena
de Austria), o Comité de Direcção de Energia Nuclear (constituída pela Organização Europeia de Coordenação
Económica, em Paris) e, sugerido pelos «Três Sábios», o Comité Cientíico da NATO de 1957, para além de
diversos acordos bi e multilaterais.

179
De lembrar que no contexto do estabelecimento de contactos diplomáticos en-
tre os EUA e a URSS no âmbito dos diálogos iniciados na conferência de Genebra,
resultou num intercâmbio de visitas cientíicas - cientistas russos visitam o Labora-
tório Nacional de Brookhaven em 1955, enquanto cientistas americanos visitam o
Laboratório de Energia Atómica da URSS, alguns meses depois – havendo dupla-
mente os objectivos de troca de conhecimento cientíico assim como de aquisição
de informação estratégica54.
Desta forma, oiciais da administração Eisenhower continuaram a usar o inter-
nacionalismo cientíico para promoverem a agenda da Guerra Fria e, para evita-
rem uma crise internacional relativamente a futuros satélites de reconhecimento
a sobrevoarem o espaço aéreo soviético, os EUA estabeleceram parâmetros legais
no âmbito do International Geophysical Year55. Nelson Rockefeller, entre outros
conselheiros de Eisenhower, eram da opinião que tal ambiente de cooperação
cientíica seria ideal para que os aspectos militares americanos e de aquisição de
inteligência fossem mais resistentes a possíveis críticas externas e internas56.
Foi a 4 de Outubro de 1957 que o pequeno satélite soviético de 80 kgs desig-
nado de Sputnik I foi lançado para o espaço. Seguiu-se o lançamento do Sputnik
II a Novembro de 1957, que celebrou o 40º aniversário da Revolução de Outubro,
com uma dimensão já bastante superior, pesando 500 kgs e colocado em órbita a
uma altitude duas vezes superior à do seu predecessor. Ambos lançamentos são
coincidentes com o contexto do International Geophysical Year inserindo-se dentro
dos moldes dos diálogos de cooperação cientíica que tinham vindo a ser estabele-
cidos desde meados da década. A própria administração Eisenhower não se revelou
particularmente preocupada com o lançamento do primeiro Sputnik com o próprio
National Security Council a relatar ao presidente, ainda a 10 de Outubro de 1957,
que o satélite soviético terá já sobrevoado praticamente cada nação do planeta e
que não houve qualquer protesto57.

54VMANZIONE, Joseph, «“Amusing and Amazing and Practical and Military”: he Legacy of Scientiic Interna-
tionalism in American Foreign Policy, 1945-1963», p.50.
55 Projecto internacional de cooperação cientíica organizado pelo International Council of Scientiic Unions e apoia-
do ao todo por 66 nações. O projecto teve inicio a 31 de Julho de 1957 e terminou apenas a 31 de Dezembro
de 1958 e teve como objectivo a aquisição de informação sobre fenómenos que vinham a ocorrer na atmosfera
durante o período de maior actividade solar. Este projecto foi inicialmente proposto por cientistas americanos e
apoiado inanceiramente pelos EUA. Portugal participa pelo SMN (Serviço Meteorológico Nacional), após um
trabalho de modernização e centralização dos vários serviços meteorológicos em Portugal por Manuel Rocha
(futuro representante do Ministério das Comunicações na INVOTAN).
56 MANZIONE, Joseph, «“Amusing and Amazing and Practical and Military”: he Legacy of Scientiic Interna-
tionalism in American Foreign Policy, 1945-1963», p.50.
57 Ibid.

180
Todavia, as ondas de choque do lançamento do pequeno satélite izeram-se
sentir sobretudo no Congresso, nos media e no público americano em geral que,
infundadamente, concluíram que os EUA tinham sido ultrapassados cientiica e
tecnologicamente – dois paradigmas que se estabeleceram como fundamentais na
segurança nacional58. Foram vítimas da ignorância extrapolada pela propaganda
sobre a incompatibilidade entre o comunismo e a ciência e que tais conquistas se
deveram a resultados de espionagem59. De facto, a opinião pública como a militar
– e sobretudo de cariz mais conservador – viviam no preconceito que os Russos
seriam um “povo atrasado que dependia sobretudo nos poucos cientistas alemães
capturados para obterem as suas poucas conquistas cientíicas” (pelo que não ha-
via nada que suscitasse preocupação pois a maioria do elenco cientíico alemão
encontrava-se ou em território da Aliança ou até mesmo em território Norte-
Americano60).
O ano de 1958 viu tais ilusões serem estilhaçadas, criando um sentimento de
invulnerabilidade entre os norte-americanos, reminiscente de Pearl Harbour como
lembrava Edward Teller61. De lembrar que tal invulnerabilidade assentava-se na ló-
gica que o lançamento do Sputnik implicava que a URSS tinha de facto tecnologia
capaz de bombardear atomicamente os EUA com mísseis de longo alcance causan-
do ansiosas reacções exempliicadas com a airmação do Senador Johnson Lyndon:
«Our survival is at stake (…) soon [the soviets will] be dropping bombs on us
from space like kids dropping rocks onto cars from freeway overpasses».62
Se por um lado houve quem tivesse sido apanhado desprevenido pelo evento,
aqueles que tiveram a oportunidade de “espreitar” para além da “cortina de ferro”
durante a conferência de Genebra perceberam que, mais tarde ou mais cedo, uma
“surpresa” destas seria inevitável. Lewis Strauss, por exemplo, quando regressado da
dita conferência em 1955, destacou desde logo que tudo o que aprendeu relativa-
mente ao capital humano soviético foi suiciente para quebrar todas as noções dos
Norte-americanos relativamente à sua imaginação e capacidade”63.

58 Ibid. Entre os críticos, incluem-se vozes de alguns cientistas como Vannevar Bush (um dos principais orga-
nizadores do Projecto Manhattan) que acusa a administração Eisenhower de ser complacente nos esforços de
promoção de ciência nacional e internacional pelo que deveria de canalizar ainda mais fundos para pesquisa,
educação, cooperação cientíica entre os EUA e os seus aliados – medidas que a seu entendimento, fortalecem
a segurança nacional. Já o “pai da bomba de hidrogéneo” Edward Teller é o primeiro a sugerir a ideia de enviar
homens para a Lua como resposta
59 O próprio Edward Teller estava convencido que os avanços anteriormente registados no campo das bombas
nucleares pela URSS se deveram a intelligence leaks de Klaus Fuch.
60 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.192.
61 GREENE, Benjamin P, Eisenhower, Science Advice, and the Nuclear Test-ban Debate, 1945-1963 (Stanford Uni-
versity Press, 2007), p.137.
62 NORRIS, Pat, Spies in the Sky: Surveillance Satellites in War and Peace (Springer, 2008), p.4.
63 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.196.

181
Não obstante da importância que a administração Eisenhower conferiu inicial-
mente aos Sputniks, esta viu-se obrigada a responder com medidas como a criação
de novas agências cientíicas como a célebre National Aeronautics and Space Ad-
ministration (NASA) e legislações de apoio à pesquisa e à educação como Defen-
se Education bill. Consequentemente, muitos cientistas vão adquirindo prestígio
como vozes políticas de grande inluência, ascendendo a poderosas posições polí-
ticas como por exemplo na President’s Scientiic Advisory Committee64“ servindo a
máxima de “catching up with the Russians”65

OS TRÊS SÁBIOS E O PROBLEMA DO CAPITAL TECNO-CIENTÍFICO NA ALIANÇA

Com a intensiicação do internacionalismo cientíico da Guerra Fria, é de enor-


me relevância ter em conta o surgimento do Comité dos Três Sábios na pequena
janela de intervalo entre a Conferência de Genebra e o lançamento dos Sputniks
como motivação adicional para a criação do SCOM da NATO.
É o próprio Conselho da NATO que irá sugerir aos ministros dos negócios
estrangeiros de Itália, Noruega e do Canada – Gaetano Martino, Halvard Lange
e Lester Pearson, respectivamente – que encontrem meios de melhorar a coopera-
ção não-militar e constituir um maior sentimento de unidade dentro da Aliança.
Este será o futuro Comité dos Três Sábios que concluíria o seu relatório a 13 de
Dezembro de 195666.
Este é sem dúvida um ponto de viragem na História da NATO e fundamental
do seu SCOM. A introdução problematizante do relatório é clara na percepção
da pouca probabilidade de um cenário de “agressão militar em grande escala” à
Aliança (ou a cada um dos seus membros) considerando que tal agressão seria res-
pondido de maneira “rápida e devastadora”, não havendo vitória em nenhum dos
lados67 pelo que o conlito deveria de ser travado em frentes sobretudo “não-mi-

64 No elenco deste comité consultivo, é possível destacar nomes célebres como I.I. Rabi, Jerome Wiesner, George
Kistiakowski ou James R. Killian
65 MARIA, Michelangelo De, «he inception of the European space efort: Edoardo Amaldi and the Euroluna
dream», Cinquant’anni di Física al CERN: un laboratorio per l’Europa (2004): p.2.
66 «NATO - Report of the Committee of hree on Non-Military Cooperation in NATO», NATO, Dezembro
1956, http://www.nato.int/cps/en/natolive/oicial_texts_17481.htm. [consultado em Janeiro de 2011] O Comi-
té dos Três pode também ser inserido no contexto da entrada da República Federal da Alemanha em Maio de
1955 e na resposta de Khrushchev no estabelecimento do Pacto de Varsóvia (e a inclusão da Alemanha do Leste
no mesmo) que levou o North Atlantic Council a tomar medidas para avaliar efectivamente a natureza da ameaça
comunista.
67 McNamara era, entre muitos outros cold warriors defensores da ideia que, mesmo em caso de agressão, o uso do
poderio nuclear deveria ser calculado conservadoramente para “daniicar o agressor ao ponto da sua sociedade
deixar de ser viável nos termos do século XX”

182
litares” ou “paramilitares” limitando-se ao exercício de “conlito sem catástrofe”68.
O panorama de então já não igurava uma separação entre a segurança civil e a
militar mas antes uma intrínseca relação entre as duas na qual a negligência de
uma prejudicaria seriamente a outra69.
Outro aspecto importante a promover no seio da NATO era o sentimento de
pertença e comunidade entre países com enormes semelhanças culturais com o
propósito de fortalecer a aliança para além do propósito comum da Defesa70. Tal
exercício esteve presente nos primeiros anos de actividade da ERP e no pensa-
mento ideológico de Kármán, havendo algum esforço na sua promoção.
No relatório conclui-se que o desenvolvimento cientíico e tecnológico é essen-
cial para este processo promovendo duplamente a “segurança civil” e o “sentimen-
to de pertença” ao contribuir-se para um desenvolvimento útil para a vida civil dos
países NATO mais desfavorecidos. De lembrar que, entre as “semelhanças cultu-
rais” observáveis nos aliados do «Velho Continente» encontra-se um passado de
instituição de Universidades e produção de conhecimento cientíico, ilosóico e
intelectual que contribuíam para uma desconiança de uma entidade militar como
a NATO – liderada ela própria por uma das maiores potências militares mundiais
- alimentada pelas vozes dos partidos comunistas dentro dos ditos países. Era de
facto necessário trabalhar a NATO para proporcionar maior coniança aos seus
aliados e, desta forma, manter a coesão essencial para a sua defesa. Para contribuir
para o desenvolvimento cientíico e tecnológico e, à luz do documento compara-
tivo do poderio do capital cientíico entre a URSS e a NATO, o relatório conclui
que existe uma “necessidade urgente” em melhorar a qualidade e a quantidade de
“cientistas, engenheiros e técnicos nos países NATO”71
É sobretudo nesta conjuntura e enquadramento estratégico, geopolítico e ideo-
lógico de “alcançar os russos” que devemos inserir outra consequência de enorme
relevo da “euforia Sputnik”: a criação do Comité Cientíico da NATO.

68 «NATO - Report of the Committee of hree on Non-Military Cooperation in NATO».


69 De lembrar que a atenção dada ao critério civil da NATO não signiica um afastamento das opiniões dos cold
warriors conservadores – apenas uma mudança nos discursos dos mesmos com o mesmo objectivo fundamental
– o da segurança nacional.
70 O documento fundador da NATO expressava desde logo esta necessidade como fundamental e justiicadora do
próprio propósito da NATO: os valores das tradições culturais em comum presentes nas instituições livres e nos
próprios conceitos democráticos deverão aproximar as nações da NATO, não apenas na sua defesa, mas também
no seu desenvolvimento.
71 «NATO - Report of the Committee of hree on Non-Military Cooperation in NATO». Para o tratamento
desta recomendação serão constituidos uma task force presidida por Koepli para planear uma conferência sobre
cooperação cientíica e tecnológica no território da NATO e um comité especial referente ao capital humano
cientíico e tecnológico, presidido pelo próprio Senador Jackson.

183
De facto, a questão de “alcançar os russos” prende-se essencialmente no aper-
feiçoamento do capital humano dentro da Aliança. Tais medidas já haviam tido
expressão no contexto do clima ideológico proporcionado pela Conferência de
Genebra porém, foi sem dúvida o lançamento dos Sputniks para o espaço que ele-
vou a sua prioridade. É adoptado um novo discurso estratégico ao perceberem que
a Ciência entre os Aliados precisava de ser ainda mais sistemática e consciente
dos seus objectivos que nos países comunistas pelo que as relações entre a ciência
e a sociedade são demasiado importantes para serem deixadas ao acaso como nos
sistemas laissez-faire72, pelo que para este enquadramento político e diplomático
dos Estados Unidos na segunda metade da década de 1950, a posição do capital
humano era clara:
“he economic and utilitary strength of industrialized actions depends to-day
on their scientiic and technical capacity. he force of this generalisation has
been demonstrated by events in NATO countries during the post-war years. It
has also been dramatically underlined by the over increasing technical achieve-
ments of the USSR and by the knowledge that she is devoting relatively greater
resources to scientiic and technical education”73
No âmbito destas certezas, os dados foram apresentados ao Comité dos Três
pelo consultor Robert Major, após elaborado trabalho do Manpower Committee da
OEEC74 de acumulação de dados, referentes à formação de cientistas em território
norte-americano, europeu e soviético que concluí que os últimos estavam a treinar
muito mais cientistas que os europeus, desequilibrando a média da NATO e arris-
cando o próprio equilíbrio bipolar75. Tais dados levam o senador Henry Jackson76 a
elaborar o conhecido Jackson Report ou Trained Manpower for Freedom77.

72 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.196.
73 ADN/SGDN, cx. 6068 “Further Action by NATO in the ield of scientiic and technical co-operation report
29th April 1957”, part I. General Statement. he Problem, p.2
74 Organization for European Economic Cooperation
75 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.199. O documento citado
por Krige é “Recruitment and Training of Scientists, Engineers and Technicians in NATO Countries and the
Soviet Union,” Report by Robert Major, Consultant to the Committee of hree, NATO, Document C-, (56)
128, November 1.
76 Colaboraram na task force para além de individualidades dos EUA (Senador Kuchel, os Deputados Corbett e
Smith e o Senador Jackson), personalidades políticas e cientíicas internacionais da Bélgica (P. de Smet, Arthur
Gilson), do Canadá (Dr. R.P Vivian), da Dinamarca (Willy Helsing, Adolf Sorensen), da França (Armengaud,
Deixanne, Longchambon, Viatte), Alemanha (Dr. George Kleising, Graf Adelmann), da Grécia (Panos Yekas),
da Itália (Giacomini), do Luxemburgo (Eugene Schaus), dos Países Baixos (C.L. Patijn), da Noruega (Bernt
Ingveldsön, Sverre Rostoft), da Túrquia (N. Inanc) e do Reino Unido (Richard Fort, Martin Madden e Charles
Pannell).
77 «Trained Manpower for Freedom. Report by the Committee on the Provision of Scientiic and Technical
Personnel in the NATO Countries», NATO, Novembro 1957, http://www.nato.int/history/doc/3-Fifty-years-
of-Science-Programme/RDC%2857%29408-E.pdf. [consultado em Janeiro de 2011]

184
Por coincidência, o Jackson Report é submetido à NATO um mês após o lan-
çamento do primeiro Sputnik, aproveitando a euforia que entretanto se instalara e
contribuindo para a sua intensiicação. O próprio relatório referia que a NATO se
encontrava numa “genuína crise” no âmbito da existência de uma quantidade in-
suiciente de capital humano cientíico dentro da aliança78. Instalava-se entretanto,
o paradigma de associação da qualidade da ciência e tecnologia – e o seu capital
cientíico – ao próprio progresso da civilização – no âmbito da estabilidade econó-
mica, segurança civil e manutenção da paz79, expandindo a retórica de “conquista
de corações e mentes” às “regiões subdesenvolvidas”80.
De lembrar que tal avaliação da suposta insuiciência do capital humano na
Aliança só pode ser inserida num contexto comparativo ao mesmo capital da
União Soviética, seguindo a mesma retórica na avaliação da quantidade e qualida-
de de misséis no arsenal americano. Se este segundo caso é amplamente reconheci-
do como uma extrapolação da realidade pelos “patriotas emocionalmente guiados”
do Pentagono, como os veio a chamar McNamara81, já a primeira realidade – a da
excepcional qualidade e quantidade do capital humano soviético – é de um modo
geral reconhecido nos episódios da Conferência de Genebra e do Sputnik.
É neste enquadramento problemático que Jackson recomenda que a NATO
inancie um programa que resulte em 500 doutoramentos anuais nos sectores eco-
nómicos e militares, entre outras medidas de dinamização do ensino das ciências82
e que promova uma expansão da cooperação cientíica internacional no âmbito
quer no treino de cientistas, quer em subvenções de investigação cientíica de im-
portância internacional83.

78 Ibid., 3.
79 MILLER, Clark A., «“An Efective Instrument of Peace”: Scientiic Cooperation as an Instrument of U.S.
Foreign Policy, 1938-1950», Osiris, n 21 (2006): pps. 137 e 148.
80 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.202. Considerar os países
subdesenvolvido aqueles de passado colonial, no qual a URSS estava um passo à frente, correndo-se o efectivo
risco que a mesma ultrapasse a NATO na conquista dos seus “corações e mentes” e comprometendo o próprio
equilíbrio bipolar da Guerra Fria.
81 COLEMAN, David, «Camelot’s Nuclear Conscience.», Bulletin of the Atomic Scientists, Junho 2006, p.5. Na
transcrição da conversa entre McNamara e Kennedy, o primeiro admite que no Pentágono se criou um mito
do potencial missílistico soviético “com alguns zeros a mais”, mito este, que sem dúvida alimentou o próprio
complexo militar-industrial durante a administração de Eisenhower, que só se apercebeu do engano no inal do
seu mandato. Perante esta airmação de McNamara, Kennedy entre alguns risos ironiza-o, lembrando-lhe que
o próprio McNamara estava entre o grupo de homens que deiniu como “emotionally guided but nonetheless
patriotic individuals in the Pentagon”.
82 «Trained Manpower for Freedom. Report by the Committee on the Provision of Scientiic and Technical
Personnel in the NATO Countries», pp.6-8.
83 Ibid., pp. 10–11.

185
Simultaneamente, concluía-se o relatório da task force da NAC liderado por Ko-
epli84 a Novembro de 195785. Este relatório vai ao encontro das recomendações de
Jackson relativamente à necessidade de se treinar pessoal cientíico, considerando
inclusive uma especial atenção ao imenso potencial mal aproveitado da popula-
ção feminina86. Para além desta adicional recomendação relativamente ao capital
humano, a task force de Koepli vai ainda mais além que a task force de Jackson ao
recomendar a criação de um comité cientíico pela NATO com um consultor “de
alto calibre e prestígio cientíicos” que supervisione diariamente as implementações
das recomendações do dito comité, sendo este o relatório que mais directamente se
associa à criação do SCOM da NATO. Tal como o relatório de Jackson, o relatório
de Koepli usufruiu da coincidente conjuntura da euforia Sputnik. Tal conjuntura
intensiicou o carácter de urgência dos trabalhos desta task force e contribuiu para
que o seu relatório fosse, a título excepcional, apresentado numa Reunião de Che-
fes de Estado –ela própria realizada também a título excepcional - do Conselho da
NATO entre 16 e 17 de Dezembro de 195787 que aprovou com total unanimidade
todas as suas recomendações88. As recomendações de Von Kármàn foram ouvidas,
após quase oito anos.

COMITÉ CIENTÍFICO DA NATO (SCOM)

A premissa do SCOM é para todos os efeitos, uma continuação do já previa-


mente estabelecido nas ideias da ERP e do seu programa USTA&P num planea-
mento sistemático com vista a resultados a longo-prazo pelo que a sua promoção
deve ser tida como um investimento para o futuro89. Tem como objectivo essencial
a promoção de cooperação cientíico a nível internacional com a ideia de que, es-

84 Entre outras personalidades na task force, destacamos R. Gass da OEEC, o Professor Willems da Bélgica, o Dr.
Mallock do Canadá, o Professor Longchambon de França, o Professor Longchambon da Alemanha, o Professor
Giordani da Itália e Sir Solly Zuckerman de Inglaterra.
85 ADN/SGDN, cx. 6089 “Further Action by NATO in the ield of Scientiic and Technical Co-operation. Report
to the Council by the Task Force. (Submitted to the NATO Council, November 1957
86 Encontrar pps. O relatório refere que a URSS inclue no seu arsenal de capital humano cientíico quase 50% de
cientistas mulheres em formação ao nível de Bacharelato.
87 Como referido, esta reunião foi realizada a título excepcional após o choque do lançamento dos Sputniks. Justi-
icava assim, o próprio Eisenhower «We are here to re-dedicate ourselves to the task of dispelling the shadows
that are being cast upon the free world. We are here to take store of our assets—in men, in minds, in materials.
We are here to ind the ways and means to apply our undoubted strengths to the building of an ample and safer
home for mankind here on earth. his is a time for greatness.” Todas as condições estavam estabelecidas para
que o Comité Cientíico fosse inalmente constítuido.
88 Andreas Rannestad (comp.), ed, NATO and SCIENCE. An Account of the Activities of the NATO Science Commit-
tee 1958-1972 (Brussels: Nato-Scientiic Afairs Division, 1973), p.15.
89 Ibid., p.17.

186
tabelecido um parâmetro de coniança entre as nações e os seus cientistas, todas as
descobertas realizadas numa parte da Aliança, serão partilhadas com as restantes
Nações da mesma maneira que se estabelecesse o sentido da coordenação cientí-
ica – para evitar a sobreposição de esforços. Não obstante, o SCOM é tido como
uma frente de resistência para a manutenção da pesquisa cientíica pura “guiada
pela ingenuidade e curiosidade individual”90. De facto, o propósito do SCOM no
quadro geral da estratégia da NATO parece ser fundamentalmente relativo à pro-
moção de coesão interna, aumentando a eiciência da Ciência Ocidental através
do estímulo da cooperação entre cientistas de países da NATO e usar o prestígio
e universalidade da ciência como meio de fortalecer e vigorizar os laços entre os
membros da Aliança91.
A criação do SCOM foi de facto, da primeira iniciativa séria de separação da ver-
tente civil da militar a ser feita em prole da Ciência básica e desclassiicada. Muitos
cientistas como por exemplo Amaldi92, consideravam que a ciência pura promovia
uma maior atracção de cooperação tanto dentro como fora das Nações, libertando
a investigação de obrigações para com os “mestres militares”. A médio ou longo
prazo, tal libertação da inluência directa do sector militar acabaria por o enaltecer93
e 94
. A criação do SCOM é, portanto, mais uma medida para legitimar o papel da
NATO e dos EUA como líder do Bloco Ocidental, contribuindo para a coniança
do sector civil, conquistando sobretudo a comunidade cientíica europeia que não
estaria disposta a aceitar inanciamento para projectos relacionados com a Defesa.
A primeira reunião do Comité realizou-se entre 26 e 28 de Março de 195895 e
teve a representação de todos os 14 membros designados96. Estes membros repre-

90 Ibid.
91 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.207.
92 Edoardo Amaldi da Universidade “La Sapienza” de Roma.. Foi um importante Físico italiano e um dos princi-
pais promotores da participação da Europa na Corrida ao Espaço.
93 John Krige e Arturo Russo, A History of the European Space Agency: he Story of ESRO and ELDO, 1958 - 1973 /
by J. Krige and A. Russo (ESA Publ. Div., 2000), p.15.
94 No âmbito da cooperação cientíica internacional, havia uma consciencialização dos meandros e desconiança
que organizações com ligações militares podiam causar. Nem a própria cooperação cientíica para a corrida
para o Espaço se conseguiu livrar. Áquando das projecções de Amaldi para aquilo que viria a ser a Euroluna,
o professor Rabi chegou a aconselhar usar o Comité Cientíico da NATO para avaliar o projecto ao nível dos
governos europeus – papel semelhante desempenhado pela UNESCO relativamente ao CERN. Amaldi recusou
relembrando que era “absolutamente essencial” que tal fosse feito por uma (futura) organização sem qualquer
ligação militar.
95 ADN/SGDN, cx. 6068 “Report on the First Meeting of the NATO Science Committee”, 3 de Abril de 1958
96 Contou-se com a participação do presidente do Comité, o Professor N. Ramsay, o Secretário-Geral da NATO
Paul-Henri Spaak assim como as representações dos EUA, pelo professor I.I. Rabi; do Canadá - Dr. E.W.R
Steacie; Inglaterra – Sir Solly Zuckerman; Itália - Professor F. Giordani; Grécia - Professor K.D. Alexopoulos;
Noruega - Professor S. Rosseland; Luxemburgo - Professor A. Willems; Países Baixos – Professor G.J Sizoo;
República Federal da Alemanha – Professor A. Rucker; Bélgica - Professor P. Bourgeois; França – Professor
A.L. Danjon; Dinamarca – Professor R.B. Rehberg; Túrquia – Dr. C. Erginsoy; e, por último, contou-se também
com a participação de Portugal através da igura do Professor Engenheiro Agrónomo Ruy Mayer.

187
sentavam os seus governos e foram escolhidos sobretudo pelo seu passado cientí-
ico97 (a representação de Portugal foi feita pelo Professor Doutor Ruy Mayer, en-
genheiro agrónomo Ruy Mayer98). As preocupações nesta primeira reunião caíram
sobretudo no âmbito da urgência da promoção e melhoraria do capital humano
técnico-cientíico, na já referida conjuntura do despertar abrupto causado pelos
Sputniks. O SCOM procedeu desde logo a incentivar que o Conselho da NATO
estimulasse os governos a tomarem efectivas e urgentes medidas para melhorar o
ensino da Ciência, o treino de investigadores e técnicos e que se aumente a quan-
tidade e qualidade de estabelecimentos de pesquisa no campo da Ciência pura.
É neste contexto que o SCOM considera o estabelecimento de um programa de
bolsas de regime meritocrático e a constituição de um Summer Study Institute99, que
Isidor Rabi considerava um acréscimo à da “dignidade da NATO”100.
Inserindo-se na problemática da “dignidade da NATO”, a última e mais crucial
temática debatida relacionou-se com a investigação cientíica para a Defesa. Numa
breve conclusão, concordou-se que a investigação para a Defesa não deveria de
ser totalmente descartada pelo que a melhor maneira do Comité funcionar neste
campo seria conferir ao Presidente do Comité total responsabilidade sobre que
assuntos relacionados com a Defesa poderiam vir a ser considerados pelo SCOM.
Todavia, o Presidente deveria consultar os demais delegados nacionais do SCOM
com o propósito de se decidir, em caso de aprovação, que instituições dentro ou
fora da NATO consultar101.
A questão da Investigação para a Defesa é sem dúvida uma das problemáticas
mais espinhosas na história do SCOM, tanto por razões históricas e ilosóicas
mas sobretudo nos meandros da raison d’être do próprio Comité. Trata-se de, uma
vez mais, de uma medição de forças de agendas conjunturais, uma batalha que o
SCOM sempre travou na sua essência – uma batalha pela alma da NATO que
sobreviveu a todas as décadas da Guerra Fria. Se por um lado as preocupações
levantadas pelo Sputnik recaíam no aspecto da Defesa, devemos lembrar que desde
a segunda metade da década de 1950 que as preocupações recaíram sobretudo na

97 Tendo em conta que todas estas representações foram feitas por civis, nenhum membro teve acesso a docu-
mentação NATO classiicada de cariz estratégico-militar ou a informação conidencial de Segurança (Security
Clearance).
98 Ruy Mayer adoeceria e acabaria por falecer em Setembro 1959 vindo a ser substituído por Carlos Alves Martins
e mais tarde por Frederico Ulrich.
99 ADN/SGDN, cx. 6068 “Report on the First Meeting of the NATO Science Committee”, 3 de Abril de 1958,
p.2
100 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.207.
101 ADN/SGDN, cx. 6068 “Report on the First Meeting of the NATO Science Committee”, 3 de Abril de 1958,
pp.2-3

188
questão do ensino102. todavia, será a delegação francesa liderada por André Dan-
jon, director do Observatório de Paris a sugerir em 1958 que, tendo em conta a
integração do SCOM na NATO, se devesse privilegiar investigação cientíica em
campos importantes para a Defesa do Bloco Ocidental, sugerindo um inancia-
mento inicial da NATO para uma fundação de cooperação e investigação tecno-
cientíica militar no seio da NATO e separada do SCOM para fazer frente aos
(supostos) avanços da URSS no mesmo campo103. Se por um lado, tal centralização
tinha resistências desde logo nos fundamentos da criação do SCOM (concentrado
no sector civil dentro da NATO), também será preciso ter em conta as agendas
e ambições próprias das diferentes nações europeias como França e Inglaterra –
também potências militares históricas – não havendo assim, qualquer interesse do
governo britânico em entregar controlo das suas pesquisas prioritárias da Defesa
ao Comité Cientíico.104

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O inal da Segunda Guerra Mundial trouxe novidades a acompanhar as ansieda-


des, sendo a NATO, para todos os efeitos, uma expressão dessas ansiedades inicia-
das pela Era Atómica e pela conirmação da posse da tecnologia pela URSS. Se cedo
se percebeu que a posse de tal tecnologia tinha o propósito essencialmente dissuasor
da sua utilização, também se percebeu que as portas para a cooperação e competição
tecno-cientíica internacional tinham sido abertas, para não mais fecharem.
É a AGARD uma das pioneiras tentativas e expressões dessa cooperação mas
é o Congresso de Genebra e o lançamento dos Sputniks que intensiicam a chama
e a necessidade de trazer a cooperação para a Defesa da Aliança para além dos

102 Essencialmente, o Comité auto-deiniu-se com um papel educacional dentro da NATO


103 KRIGE, John, American hegemony and the postwar reconstruction of science in Europe, p.205.
104 Todavia e recusada esta centralização coordenadora, as temáticas sugeridas por Danjon não foram completa-
mente ignoradas. De facto, é possível notar que na história do SCOM e sobretudo nos programas de subvenção
a Investigações Cientíicas (RGP) e os Programas Especiais, os campos cientíicos escolhidos tinham uma
ténue linha de separação entre a utilidade civil e militar. Entre os projectos destacamos ao longo da década de
1960 (o RGP só é iniciado em 1960) sobretudo dentro das áreas da astronomia e meteorologia – estudos da
radiação ionizante em Sistemas Biológicos; do dicroísmo magnético circular; da variação latitudinal nas emissões
ópticas da Aurora (Auroral Optical Emission); de previsão de percursos migratórios das aves; e a criação de um
Observatório Astronómico na vila grega de Stephanion – assim como nas áreas da biologia e medicina – estudos
da determinação de limites de Metabolismo e adaptação; e estudo do crescimento e desenvolvimento da criança.
Nas áreas mais urgentes ou importantes para a Aliança, o SCOM foi mais longe e chegou a realizar Programas
Especiais de investigação cientíica de carácter mais duradouro. Estas áreas foram sobretudo: a) Oceanograia –
com a criação de um subcomité Oceanográico presidido pelo Professor Håkon Mosby do Instituto Geofísico
da Universidade de Bergen; b) Meteorologia; c) um grupo consultivo de Factores Humanos; d) Operational
Research com um painel consultivo liderado por Philip Morse; e) Radiometeorologia; f ) Eco-ciências e g)
Interacção entre Ar e Mar.

189
critérios militares e para os civis. Há uma clara noção que a manutenção do equi-
librio de forças e do jogo de “conlito sem catástrofe” assenta-se na necessidade de
equipar convenientemente a Aliança não apenas com armamento, mas com boas
e sustentáveis estruturas económicas e de treino de capital humano de qualidade.
Para este im cria-se na NATO um Comité Cientíico em 1958 que, ao atrair para
a discussão dos seus assuntos países como Portugal através da sua INVOTAN,
lança a Aliança e os seus membros nas iniciativas de criação ou aperfeiçoamento
das suas «políticas cientíicas» à luz dos critérios das acrescidas exigências da com-
petitividade internacional na conjuntura da Guerra Fria.

190
ESPAÇOS E ACTORES:
PROTAGONISTAS DA CIÊNCIA
A ciência e a criação de um «homem novo»
português. O pensamento de Barahona Fernandes
e a influência das teorias eugénicas alemãs
Cláudia Ninhos
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

O DEBATE EUGÉNICO

Desde o século XIX que, em disciplinas como a Medicina e a Biologia, mas


também no domínio político, se assiste a um incremento do debate sobre a questão
da eugenia, associada ao desejo de melhoramento da espécie humana. A nível po-
lítico discutia-se, sobretudo, a maneira de o estado intervir na esfera privada, com
vista a controlar doenças e comportamentos considerados associais, através de di-
versos mecanismos, como a proibição de casar, a esterilização ou o aborto. Para esta
discussão foram cruciais algumas obras que facultaram, de certa forma, um fun-
damento cientíico aqueles que eram favoráveis à adopção de medidas eugénicas.
Charles Darwin, na sua obra seminal A Origem das Espécies, defendera que as es-
pécies evoluem de acordo com uma selecção natural. Mais tarde, com base nas teorias
darwinistas sobre a evolução e selecção natural, depois aplicadas pelas Ciências Na-
turais e pelas próprias Ciências Sociais, vários autores vêm defender que os factores
biológicos hereditários poderiam conduzir à decadência. Esta questão não se rela-
cionou apenas com preocupações higienistas, estando também associada a questões
nacionalistas, inluindo em muitos autores e em muitas obras ao longo das décadas
seguintes. Em 1883, no seu livro Inquiry into Human Faculty, o médico e matemático
Francis Galton deine eugenia como:
“a ciência do melhoramento de uma raça que não se limita às questões das uni-
ões judiciosas, mas que, particularmente no caso dos homens, se ocupa de todas
as inluências susceptíveis de dar às raças mais dotadas, um maior número de
hipóteses de prevalecer sobre as raças consideradas menos boas”.1

1 apud MELO, Helena Pereira de, Manual de biodireito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.24-25.

193
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Em 1904, o mesmo autor deine-a como o “estudo dos factores socialmente


controláveis que podem elevar ou baixar as qualidades raciais das gerações futuras,
tanto física como mentalmente”.2 Nos anos 80 do século XIX Galton entendia
Eugenia como a ciência capaz de promover o melhoramento da raça, para que
a superior prevalecesse sobre a inferior. No século XX associava já às qualidades
raciais os factores sociais, que poderiam ser controlados. Em 1852, Arthur de
Gobineau no seu Essai sur L’Inegalité des Races Humaines, defende existirem dife-
renças entre as raças, no seio da Humanidade. A diferenciação situar-se-ia a um
nível biológico e, hierarquizando-as, coloca no topo a raça ariana, à qual associa a
civilização, e na base a negra, associada à barbárie. Para Gobineau, a mestiçagem
conduziria à degenerescência da raça e o seu trabalho, como o de outros, veio
ajudar a fundamentar, cientiicamente, ao racismo. O seu pensamento teve uma
ampla difusão no ocidente, promovendo ideias e conceitos que serão assimilados
por vários autores.
Estas teorias vão ser amplamente difundidas, surgindo também inúmeras asso-
ciações formadas por médicos e biólogos, como a Sociedade Eugénica Britânica,
a Sociedade Eugénica Americana ou a Sociedade Alemã de Higiene Racial, que
procurarão que as suas teorias sejam incorporadas, pelos governos, na legislação,
de forma a garantir a saúde racial da população. Nos EUA e na Escandinávia
adoptaram-se, inclusivamente, leis de pendor eugénico. O Estado de Indiana, nos
EUA, adopta a esterilização forçada de forma a impedir a propagação de doen-
ças hereditárias e de comportamentos associais (doenças mentais, síilis, epilepsia,
alcoolismo, delinquentes, etc), sendo seguido, posteriormente, por outros estados.
Para além da esterilização, vários estados interditam o casamento a muitos destes
indivíduos, exigindo-se até um atestado pré-nupcial, passado por médicos, que
asseverasse a saúde mental e física dos noivos. Por outro lado, instituíram-se leis
que restringiam a imigração para os EUA e, consequentemente, a miscigenação e
a degeneração da raça.
Estas concepções tiveram um forte impacto, repercutindo-se, e muito, nas ide-
ologias fascistas e totalitárias do pós guerra, que procuravam gerar, no seu seio,
um “homem novo” e a própria “regeneração” nacional. Estes estados vão apoiar
esta ideologia e tomar medidas no sentido de enaltecer e revigorar a raça, e, con-
sequentemente, a nação. As ideias eugénicas alcançaram uma ampla difusão em
vários países, sobretudo na Alemanha, ainda antes de os nacionais-socialistas che-

2 apud ibid., 25.

194
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

garem ao poder. No entanto, é a partir de 1933 que, de braço dado com a política
racista alemã, surge um projecto de aperfeiçoamento racial, que procurará “limpar”
e “reforçar” a nação, enquanto entidade biológica. Este programa passará, numa
primeira fase, pela esterilização forçada, pelo o aborto eugénico, e, posteriormente,
pela eutanásia.

A DISCUSSÃO EM TORNO DA EUGENIA EM PORTUGAL 3

Também em Portugal estas ideias tiveram algum eco, remontando mesmo ao


século XIX. Numa conferência que viria a ser publicada na Gazeta Médica, em
1849, Câmara Sinval, professor da Escola Médica, propõe que o Estado interve-
nha na “união dos esposos” e, pouco depois, que interviesse mesmo no sentido de
proibir o casamento a jovens com menos de 18 anos, a quem sofresse de doenças
hereditárias, crónicas, venéreas, neurológicas e cardíacas. Mais tarde, Júlio Dantas
propõe que os indivíduos considerados perigosos para a raça sejam isolados, que se
proíba o casamento entre doentes e o exame médico pré-nupcial. Em sua opinião,
hão havia “razões de carácter religioso ou de carácter moral que (valessem) a razão
suprema da protecção, da salvação das humanidades futuras”.
Ainda que a discussão remonte ao século XIX, é sobretudo depois da queda da
I República que estas ideias vão ganhando terreno. Em 1927 Mendes Correia pro-
fere uma conferência no Congresso Nacional de Medicina no Porto, levantando
algumas questões sobre a hereditariedade e raça. Em 1929 é a vez de J. Andrade
Saraiva publicar o texto “Perigos que ameaçam a Europa e a Raça Branca”. Em
1931 o mesmo Mendes Correia dava o alerta:
“Governar não é só povoar, é também seleccionar”.4
Nesse ano, Barahona Fernandes propõe a criação de um icheiro com a história
genealógica dos doentes, que haverá de ser fundado pelo Prof. Sobral Cid, em
1936, na Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Lisboa.5

3 Sobre o assunto vide o artigo precursor de PIMENTEL, Irene Flunser, «O aperfeiçoamento da raça. A eugenia
na primeira metade do século XX», História, n 3, Nova série, Junho de 1998, pp. 18-27; o capítulo «O Euge-
nismo e o Direito» de MELO, Helena Pereira de, Manual de biodireito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.15-91; e
o volume 3 da dissertação de LOFF, Manuel, As duas ditaduras ibéricas na Nova Ordem Eurofascista (1936-
1945): autodeinição, mundivisão e Holocausto no Salazarismo e no Franquismo, Dissertação de doutoramento em
História e Civilizaçao, 3.º Volume, Instituto Universitário Europeu de Florença, Florença, 2004.
4 CORREIA, Mendes, A Nova Antropologia Criminal, Porto, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto,
1931, p. 204.
5 Tratava-se do Arquivo Genealógico. Sobre o assunto Barahona Fernandes escreve: «Na Clínica Psiquiátrica da
Faculdade de Medicina de Lisboa, sob a sábia direcção do Prof. Sobral Cid, organizou-se, após a nossa estadia
de estudo na secção de Genealogia e Demograia no Instituto de Investigação Psiquiátrica de Munique, um

195
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

No inicio dos anos 30 realiza-se em Coimbra, sob a batuta de Eusébio Tamag-


nini, que dirigia o Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, uma
reunião com vista à criação da Sociedade Portuguesa de Estudos Eugénicos. A
comissão integrava os professores José Alberto dos Reis, director da Faculdade de
Direito de Coimbra e futuro presidente da Assembleia Nacional, e os professores
da Faculdade de Medicina de Coimbra, Alberto Pessoa, Alberto da Rocha Brito,
director de serviços de dermatologia do Hospital, e Álvaro de Matos, fundador
da Maternidade de Coimbra. Para organizar as secções de Lisboa e do Porto da
SPEE, foram convidados o médico Henrique de Vilhena e Mendes Correia, res-
pectivamente.6 O Governo português, através do Ministério da Instrução Pública,
à frente do qual estava Eusébio Tamagnini, aprova os estatutos da Sociedade, em
Dezembro de 19347. De acordo com os Estatutos, a SPEE propunha:
- promover o estudo sobre hereditariedade e eugenia, com vista ao aperfeiço-
amento físico, intelectual e moral dos portugueses;
- difundir os conhecimentos desenvolvidos noutros países sobre hereditarie-
dade e eugenia.
- conseguir o suporte da opinião pública portuguesa para a adopção de me-
didas desta natureza;
- sugerir e apoiar medidas, entre a sociedade portuguesa em geral, e en-
tre as famílias, em particular, que garantissem a sua defesa eugénica;
- incentivar o ensino eugénico na família, escolas, corporações, associações;
- a criação do Instituto de Eugenia;
Por outro lado, sublinhava-se que a Sociedade iria abster-se de qualquer “ac-
tividade política ou religiosa”, numa clara alusão à posição antagónica da Igreja
católica portuguesa sobre o assunto.
No entanto, as instalações da Sociedade Portuguesa de Estudos Eugénicos ape-
nas foram inauguradas a 9 de Dezembro de 1937, no Instituto de Antropologia,
na presença do reitor da Universidade de Coimbra, Governador Civil, de Eugen
Fischer (director do Instituto Kaiser Wilhelm de Antropologia, Hereditariedade

Arquivo Genealógico, que utilizando o vasto material clínico do Manicómio Bombarda, embora não permitindo
uma apreciação estatística inatacável, nos fornece valiosos e interessantes dados sobre a hereditariedade das
três grandes psicoses endógenas (esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva e epilepsia) e das psicopatias»
(Fernandes, Barahona, Fernandes, Barahona, «Hereditariedade e Proxilaxia Eugénica das Doenças mentais». In
COMISSãO EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS. COMEMORAÇÕES PORTUGUESAS DE 1940,
Congresso Nacional de Ciências da População. Resumo das Memórias e Comunicações, Porto, Imprensa Portuguesa,
1940, p.16.
6 Barahona Fernandes era também membro desta Sociedade.
7 Ministério da Educação, Portaria n.º 7: 948 de 14/12/1934

196
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

Humana e Eugenia do Kaiser Wilhelm8), de Sobral Cid (delegado da Faculda-


de de Medicina de Lisboa), Pires de Lima (delegado da Faculdade de Medicina
do Porto), Anselmo Ferraz de Carvalho (director da Faculdade de Ciências de
Coimbra) e de Rocha Brito (delegado da Faculdade de Medicina de Coimbra),
presidente da assembleia Geral da Sociedade de Coimbra. A sessão foi aberta por
Rocha Brito que expôs os objectivos da Sociedade Portuguesa de Estudos Eugé-
nicos, sublinhando a necessidade de criar uma geração mais forte.9 No discurso de
abertura, Rocha Brito elogiou a ocasião escolhida para a inauguração, fazendo-a
coincidir com as festas do centenário da Universidade, nas quais marcaram pre-
sença “algumas das maiores notabilidades cientiicas do Mundo”, às quais se pode
dar a conhecer os progressos da ciência em Portugal. Sobre a eugenia, Rocha Brito
salientou o seu valor e beneicio para a humanidade, apelando aos portugueses para
terem em atenção a saúde dos ilhos, de forma a torná-los “homens vigorosos”. Em
sua opinião deveria criar-se, em Portugal, uma geração forte, propagando-se no
país “uma verdadeira consciência eugénica”, como relatava o Diário de Noticias.
Já o presidente da SPEE, Eusébio Tamagnini, proferiu uma conferência sobre
a importância da eugenia para o desenvolvimento da raça. Tamagnini fez questão
de sublinhar que as medidas com vista a “favorecer a reprodução dos indivíduos
superiores e a diicultar a dos deicientes e inferiores” tendem a “elevar o nível
geral da massa”. Numa alusão aos que se opunham à adopção de tais medidas,
Tamagnini considerava que, apesar de ser um processo lento, os seus resultados
constituíam um “benefício indiscutível”, pelo que deveriam gozar da “aprovação de
todas as pessoas bem intencionadas”. Em sua opinião, os conhecimentos sobre as
medidas eugénicas, naquele momento, apenas permitiriam “libertar-nos duma pe-
quena percentagem de indivíduos deicientes”. Tinha fé, no entanto, nos resultados
dos futuros estudos a desenvolver, objectivo esse que, confessa, esteve por trás da
criação da Sociedade.
Depois de Eusébio Tamagnini seguiu-se a intervenção de Eugen Fischer, que
elogiou a conferência proferida pelo Presidente da SPEE, expressando uma grande
admiração pelo desenvolvimento que as ciências eugénicas alcançaram no país. O
alemão alertou, no entanto, para a necessidade de incrementar a eugenia, uma vez
que o homem precisava ser cada vez mais saudável e forte.10

8 Kaiser-Wilhelm-Institut für Anthropologie, menschliche Erblehre und Eugenik


9 Diário de Coimbra (10.12.1937), p.1
10 Diário de Notícias (10.12.1937), p.5

197
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Em 1934 realiza-se um importante congresso, o I Congresso Nacional de An-


tropologia Colonial, que decorreu no Porto, por iniciativa da Sociedade Portuguesa
de antropologia e Etnologia. Logo na 1.ª circular, datada de Março de 1934, aler-
tava-se para a necessidade premente de, naquele momento, “evidenciar perante as
outras nações o labor que o nosso país tem desenvolvido e está desenvolvendo em
matéria de investigação cientíica colonial”. Para além de marcar posição, a nível
internacional, o próprio gizar de um plano com vista à organização e ao “aprovei-
tamento” das colónias exigia um amplo conhecimento das suas populações, a nível
biológico, étnico e social.11 Aires Kopke, director da Escola de Medicina Tropical
e representando o sub-secretário das colónias e o Ministério das Colónias, fazia
questão de sublinhar, na sessão solene de inauguração, o valor de Portugal “como
Nação colonizadora”12 e os próprios congressistas deixaram-se fotografar, em gru-
po, na Exposição Colonial, “acompanhados de alguns indígenas das colónias”. O
congresso contou com a presença de delegações da Liga Colonial Alemã e do Mu-
seu de Etnograia de Colónia que, foram, curiosamente, os únicos representantes
estrangeiros. Eusébio Tamagnini intervém, em sessão planaria, alertando para os
riscos da mestiçagem.13 Anos mais tarde, no âmbito das comemorações do duplo
centenário, um novo congresso volta a reunir os académicos portugueses e estran-
geiros, discutindo-se novamente a questão da selecção da raça e da pureza do povo
português.14 Na memória apresentada ao Congresso, Tamagnini e Serra chamam
logo a atenção para um aspecto das ciências antropológicas, ou seja, “o do estudo
dos movimentos populacionais e da Eugenética”, que consideram “de muito valor
e de incontestável actualidade”. Estes estudos seriam, ainal “a base das reformas
sociais indispensáveis à melhor vida futura da humanidade”.15 O mesmo Mendes
Corrêa, discursando na sessão inaugural, airmava:
“Cruzar os braços é um crime, quer essa atitude passiva seja inspirada pela con-
vicção de que se trata de males irremediáveis, quer a inspire a errónea doutrina
de que um processo espontâneo de selecção natural se incumbe, impiedoso
e inexorável, da eliminação dos detritos sociais (…) O mais humanitário e
racional é procurar evitar tanto quanto possível a aparição destes, mas sem
cair nos absurdos e reprováveis excessos neo-maltusianistas e nos radicalismos

11 Trabalhos do 1.o Congresso de Antropologia Colonial, vol I, Porto, Edições da 1.a Exposição Colonial Portuguesa,
1934, p. 5.
12 Ibid., I:19.
13 Ibid., I:40-63.
14 COMISSãO EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS. COMEMORAÇÕES PORTUGUESAS DE 1940,
Congresso Nacional de Ciências da População. Resumo das Memórias e Comunicações.
15 Ibid., 13-14.

198
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

eugénicos, condenados a um tempo pela sua precária base cientiica – dada a


nossa ignorância de muitas questões da hereditariedade – e pelo respeito que se
deve à personalidade humana e à moral”.16
Em sua opinião, um povo cujos dirigentes políticos e os intelectuais s e empe-
nhavam no “robustecimento físico e moral” das futuras gerações não poderia estar
decadente.17 Para si, os principais dogmas, numa altura em que o mundo procurava
“a trajectória do seu destino”, eram “o vigor e a pureza germinal da Raça, a conti-
nuidade histórica da Nação, os valores eternos do Espírito”.18
Na secção de Demograia e Higiene José Aires de Azevedo apresenta uma co-
municação intitulada “População e Império” e João Avelar M. de Loureiro, da Fa-
culdade de Medicina de Lisboa, um texto com o titulo “Natalidade, Mortalidade e
selecção da Raça”. Em sua opinião, o conceito de eugénica exigia uma deinição do
que era a saúde da raça e, como airmando mesmo perante os congressistas:
“Queremos a saúde da raça”.
Para si, essa saúde deinia-se pela ausência ou raridade de doenças e anomalias e
pela capacidade de lhes resistir e de não gerar ilhos portadores de anomalias. Mais
à frente airma mesmo haver quem considerasse pernicioso o combate às doenças
e à mortalidade infantil, pois poderia originar a produção de uma “raça de adultos
mais fraca”.19
Na secção dedicada à Antropologia é a vez de José Aires de Azevedo se debru-
çar sobre “A pureza bioquímica do povo português”. Na sua comunicação, Aires de
Azevedo, que estudara na Alemanha20, analisa as percentagens de distribuição dos
portugueses de acordo com os grupos sanguíneos e estabelece o índice bioquímico
dos portugueses.21 A partir destes dados, veriica que, apesar de intensa actividade
colonizadora, o povo português manteve um “estado de grande pureza, maior que
a da quase totalidade dos povos da Europa”.22 Acredita mesmo ser “praticamente
nula” a “inluência das raças coloniais”.23 Apesar de a “pureza” diminuir de norte

16 Ibid., 9.
17 Ibid., 11.
18 Ibid., 20.
19 LOUREIRO, João Avelar M. de, “Natalidade, Mortalidade e selecção da Raça”, in Actas do Congresso Nacional de
Ciências da População, Porto, Imprensa Portuguesa, 1940, pp.4-5
20 José Ayres de Azevedo, enquanto bolseiro do Instituto para a Alta Cultura estudou na Universidade de Frank-
furt e em Berlim, no Kaiser Wilhelm Institut, onde desenvolveu algumas investigações na área da eugenia, junto
de cientistas que auxiliaram a política racial nacional-socialista. Deu também pareceres sobre matérias como a
esterilização de deicientes a pedido de tribunais nazis. Vide CASTANHEIRA, José Pedro, Um cientista portu-
guês no coração da Alemanha nazi, Coimbra: Tenacitas, 2010.
21 AZEVEDO, José Aires de, «A Pureza Bioquímica do Povo Português», in Actas do Congresso Nacional de Ciências
da População, Porto, Imprensa Portuguesa, 1940.
22 Ibid., 12.
23 Ibid., 15.

199
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

para Sul”, devido à “iniltração” das “raças invasoras” (sobretudo a árabe), considera
ser “muito grande a pureza bioquímica da população portuguesa”, elevando-a ao
“mais alto lugar da lista das raças de tipo europeu”. De acordo com as informações
dadas no congresso, as classiicações atribuídas pelos ingleses colocavam “os portu-
gueses na situação de povo mais europeu”.24
Enquanto José Antunes Serra relectiu sobre os “Novos métodos de estudo da
pigmentação e sua importância racial”, relacionando os dados da determinação
quantitativa da pigmentação, que considerava “a base da classiicação das grandes
raças”25, com os estudos da hereditariedade e a interpretação das diferenças raciais,
Mendes Correia apresentou algumas conclusões sobre os “Factores degenerativos
na população portuguesa: seu combate”. Para Mendes Correia, a degenerescência
englobava “todas as manifestações de decadência relativamente ao tipo de espécie,
que se traduzem num processo intensivo hereditário, cujo termo é a incapacidade,
a esterilidade, a morte daquela estirpe”.26 Para a degenerescência e decadência con-
tribuíam, também, os comportamentos sociais e morais da população, que o mé-
dico enumera: “os progressos do jogo de azar, de bars e dancings, da prostituições”
ou até a preferência “por certos espectáculos e por certa literatura têm idêntico
signiicado”.27 Outro factor degenerativo da raça eram os “mestiçamentos”. Em sua
opinião, “a pureza do sangue português metropolitano” constituía “uma condição
essencial da continuidade histórica e moral da Nação”. Era importante, por isso,
adoptar “medidas de revigoramento físico e melhoramento sanitário”, como uma
boa alimentação, o melhoramento da situação económica ou “medidas de higiene
psíquica e de moralização intensa”.28
Na mesmo secção António Fanzeres e Ernesto de Morais relectem sobre os
“Grupos sanguíneos nos portugueses do norte” e Barahona Fernandes sobre a “He-
reditariedade e proilaxia eugénica das doenças mentais”. E, na 3.ª secção, dedicada
à Etnograia, J.A.Pires de Lima, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto,
analisa as inluências dos Mouros, Judeus e Negros na Etnograia Portuguesa. Se
situa as origens étnicas do povo português entre os Celtiberos, os Romanos e os
germânicos, considera que os árabes, os Judeus e os Negros como “povos intrusos”.

24 Ibid., 1.
25 SERRA, José Antunes, «Novos métodos de estudo da pigmentação e sua importância racial», in Congresso Nacio-
nal de Ciências da População, Porto, Imprensa Portuguesa, 1940.
26 CORREIA, Mendes, «Factores Degenerativos na População Portuguesa e o seu Combate», in Congresso Nacio-
nal de Ciências da População, Porto, Imprensa Portuguesa, 1940, p.8.
27 Ibid., 12-13.
28 Ibid., 13-14.

200
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

O Congresso de Ciências da População assumiu-se, ainal, como um palco pri-


vilegiado para a discussão da própria higiene do povo português. O assunto estava
na ordem do dia e era discutido pelos académicos portugueses, que procuravam
fundamentar essa com os estudos que iam desenvolvendo. Os textos que produzem
estavam imbuídos de termos como “selecção natural”, “detritos sociais”, “heredita-
riedade” e até “eugenia”, provando estarem perfeitamente inseridos nas discussões
que se desenvolviam nas arenas cientíicas internacionais. Procuravam demonstrar
a pureza do povo português, enquanto condição sine qua non para a sua sobrevivên-
cia, aliando os factores físicos aos factores morais e, até, ideológicos. Consideravam
mesmo que os seus trabalhos deveriam constituir o fundamento para as reformas
sociais que o estado encetaria, de forma a garantir o futuro da nação e evitar, assim,
a sua decadência.
Não se defendem, no entanto, medidas radicais como as que vingavam na Ale-
manha nacional-socialista, como o aborto ou a própria eutanásia. A maioria estava,
por isso, longe dos excessos neo-maltusianos e dos radicalismos eugénicos, como
lhes chama Mendes Correia. Mesmo assim, os sentimentos racistas atravessam
todos estes académicos, sobretudo quando se referem aos povos colonizados, como
os africanos e os indianos, ou até aos judeus e mouros, considerados povos “invaso-
res”, que contrapõem aos romanos e germanos, esses sim entendidos como a “nata”
da pureza biológica. Além disso, a exaltação da nação e da raça portuguesa estão
também sempre presentes. A questão da eutanásia e do aborto eram, sem dúvida,
assuntos melindrosos, sobretudo numa sociedade conservadora e católica como a
portuguesa. Note-se que, na imprensa católica, os “excessos” praticados na Alema-
nha eram denunciados e criticados.

BARAHONA FERNANDES, UM BOLSEIRO PORTUGUÊS


NO “PARAÍSO DE MINERVA”

Henrique João Barahona Fernandes nasceu em 1907, ilho do médico da Mari-


nha, António Augusto Fernandes. Realizou os estudos preparatórios de Medicina
na Faculdade de Lisboa e licenciou-se pela Faculdade de Medicina em 1930. Entre
1934 e 1936 foi bolseiro da Junta de Educação Nacional na Alemanha. Resta saber
como se situava Barahona Fernandes no meio deste debate. Numa conferência
realizada na Faculdade de Direito e depois publicada no número 15 de A Medi-
cina Contemporânea de Abril de 1930, Barahona Fernandes deine Eutanásia da
seguinte forma:

201
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

“Dar a morte doce e suavemente, sem torturas do corpo ou da alma, transpondo


de mansinho os umbrais que levam para além da vida – tal é a deinição e o
desígnio máximo da eutanásia”.
Esta deinição, quase poética, do autor, apenas menciona a forma como se-
ria aplicada, ou seja, uma morte assistida, sem sofrimento. Não deine, contudo, a
quem aplicá-la. Pouco se coaduna, no entanto, com a forma como virá a ser utili-
zada na Alemanha nacional-socialista, país onde Barahona Fernandes decide ir es-
tudar psiquiatria, em meados dos anos trinta, como bolseiro da Junta de Educação
Nacional ( JEN). No mesmo texto, o autor refere-se, mais à frente, à eugenia que
distingue, por isso, de eutanásia, enquanto meio de promover o “aperfeiçoamento
da espécie humana”, para a eliminação “das vidas inúteis” e dispendiosas pelos cui-
dados que exigiam. A eutanásia, resume o antigo bolseiro, propunha “acabar com
os monstros, as crianças sem vitalidade, os doentes incuráveis e crónicos, os delin-
quentes graves e os loucos, e ainda aqueles, que por ferimentos vierem a ser inúteis
para a sociedade, com o ito de evitar a sua reprodução com transmissão hereditária
dos seus caracteres mórbidos e degenerativos, aliviando os homens sãos de corpo
e espírito, dum fardo inútil e oneroso”. Para o autor, fazer renascer essas práticas,
naquele momento, no seio de civilizações modernas, com todos os seus “requintes
de barbarismo”, era “uma ousadia sem limites, que a concepção universalista da
vida humana não pode justiicar”. Apesar de as suas bases cientíicas, progressistas,
acreditava que a eugenia não tinha ainda um valor que permitisse levar a cabo “ac-
tos de carácter destruidor”. Para além disso, considerava que “a hereditariedade dos
caracteres da delinquência e outros é muito duvidosa”.29
A partir deste texto podemos, obviamente, inferir o relativo conhecimento que
o jovem diplomado tinha, acerca das discussões eugénicas, que se faziam sentir,
acaloradamente, na Europa e nos EUA. Não é, por isso, por acaso que escolhe a
Alemanha para estudar. No Verão de 1932, Barahona Fernandes solicita uma bolsa,
à JEN, para “estudar psiquiatria do ponto de vista clínico, laboratorial, com espe-
cial consideração das matérias e técnicas concernantes aos problemas histológicos
relacionados com as doenças mentais”, propondo-se ainda trabalhar nas clínicas
neuro-psiquiatricas de Krankfurt-am-Main (junto do Professor Kleist30), na clíni-
ca psiquiátrica de Breslau (com o Professor Lange31) e, posteriormente, na clínica

29 AHIC, 1365/27– Henrique João de Barahona Fernandes


30 Karl Kleist (1879–1960) Neurologista e psiquiatra alemão. Desenvolve os seus estudos na área da psicopatologia
e neuropsicologia. Professor de Neurologia e Psiquiatria da Universidade de Frankfurt e director da Clínica
Neuropsiquiatrica da mesma universidade.
31 Johannes Lange (1891-1938) Psiquiatra alemão. Investigador na área da biologia criminal.

202
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

do Professor Kretschuer32, em Marbug, no Instituto de Investigação Psiquiátricas


e na clínica psiquiátrica de Munique.33
A bolsa acaba por ser concedida, no ano seguinte e, em 1934, Henrique João Ba-
rahona Fernandes ruma ao Reich, já então governado por Hitler e pelos nacionais-
socialistas.34 O bolseiro transmite à JEN, desde logo, o seu desejo de uma “longa
permanência” na Alemanha. No entanto, exigiam-lhe que provasse, documental-
mente, a sua “pura origem ariana”, “de acordo com as leis nacional-socialistas em
vigor”. Em carta à JEN, airmava que devido à diiculdade de conseguir um tal
atestado em Portugal, conseguiu ser dispensado, tendo mesmo alegado que tal “não
teria em Portugal qualquer sentido e seria mesmo uma questão absolutamente
ridícula”.35
De Março a Abril de 1934 o bolseiro português frequentou a Clínica Neuro-Psi-
quiátrica da Charité, trabalhando nas secções de neurologia e de psiquiatria, frequen-
tando ainda o curso sobre Biologia Constitucional e Hereditariedade, coordenado
por W.Jaensch, e contando com a colaboração de “outros especialistas na matéria”.
O curso Constituições e Heredo-biologia na Praxis da Medicina (Konstitutions und
Erbbiologie in der Praxis der Medizin), é frequentado na Academia de Berlim para
a Formação Médica Avançada de Berlim (Berliner Akademie Für Ärztliche Fortbil-
dung), e englobava, entre outras, as seguintes disciplinas36:
- A importância da Higiene Racial para o Povo Alemão;
- Constituição e Biologia Hereditária, leccionada por Verschuer;
- Origens e signiicado da higiene racial das debilidades congénitas;
- Função e trabalho do Departamento para a Política Populacional e Higiene
Racial (Aufklärungsamtes für Bevölkerungspolitik und Rassenplege);
De acordo com o bolseiro, neste curso, “os modernos problemas da Heredo-
biologia e constituição foram tratados tanto no seu aspecto teórico como prático,
em particular a esterilização dos alienados portadores de doenças hereditárias e
outros problemas de Eugenética”. Para além disso, visitou ainda alguns centros de
assistência clínica e social e de investigação cientiica: Clínica Neurológica e Insti-

32 Ernst Kretschmer (1888-1964)


Estuda teologia, medicina e ilosoia em várias universidades alemãs. Conhecido Psiquiatra alemão, sendo
mesmo nomeado, 1929, para receber o prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina. Foi director da Clínica Psi-
quiátrica da Universidade de Marburg. Apoiou a SS e foi um dos académicos que assinou o “Voto de idelidade
dos professores das universidades alemãs a Adolfo Hitler e ao Estado Nacional Socialista”, não se opondo às leis
eugénicas.
33 AHIC, 1256/18 – Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 1
34 Ibid., Documento15
35 Ibid., Documento 23
36 Ibid., Documento 33

203
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

tuto de Patologia de Moabit, o Kaiser Wilhelm Institut für Hirnforschung37 (di-


rigido pelo Professor Vogt) e o seu NeuroPhysiologische Abteilung (dirigida por
Max Heinrich Fischer), assim como o Kaiser Wilhelm Institut für Antropologie,
em Dahlem ou o Ambulatorium für Konstitutionsmedizin der Charité.
No inicio de Maio passa a frequentar a Städt.u.Universitäts Klinik für Gemuts
und Nervenkranken em Frankfurt, dirigida pelo Professor K.Kleist, na qualidade
de assistente voluntário, “onde comparticipa do conjunto dos trabalhos ali realiza-
dos, serviço clínico nas enfermarias ena policlínica, visita diária do Prof., assiste as
suas lições e demonstrações praticas de doentes, bem como a parte de outros cursos
que têm lugar no Serviço (Heredo-biologia de Dr. Gerum, Psicologia clínica de
Privat Doz.Beck e Psiquiatria Forense de Prof.Funfgeld)”. Frequenta ainda as con-
ferências privadas da Clínica, e “no Laboratório de Histologia Patológica pratica as
técnicas histológicas especiais para o estudo do sistema nervoso”.
Para o bolseiro, a “modelar” Clínica de Frankfurt e o êxito da sua estadia naquele
país eram garantidos pelo contacto directo com a investigações e o trabalho clí-
nico, bem como pelo contacto, modelador da sua própria experiência, com “várias
escolas e orientações” e com “métodos terapêuticos”, com a organização de serviços
hospitalares, a “assistência social aos alienados”, as “investigações familiares sobre
hereditariedade” que, lamentava Barahona Fernandes, “quase não são praticados
entre nós”.38 Para além da “excelência das suas instalações”, recorda a “organização
da assistência clínica, ensino e investigação cientiica”, que teve oportunidade de
vivenciar.39 Esta era, em suma, o exemplo do que deveria ser “uma clínica neuro-
psiquiatrica moderna e das suas relações com a assistência social, sem a qual não se
pode obter qualquer trabalho produtivo”. Barahona Fernandes sabia, no entanto,
que a clínica organiva também “processos de esterilização eugénica”, colaborando
ainda com o “Instituto de Higiene da Raça e Heredobiologia (Prof.v.Verschuer)
no estudo do importante problema da hereditariedade das neuro e psicopatias”. 40
Na Alemanha pode ainda recorrer a bibliotecas da especialidade e conhecer o
seu “meio cultural”, através do “trato com investigadores e assistência aos congres-
sos cientíicos: Reunião Anual da associação Alemã de Psiquiatria, em Münster;
Reunião dos Neurologistas e Psiquiatras do Sudeste, em Baden-Baden”.41 Naquele
momento, o seu trabalho era modulado pela clínica de Frankfurt, sob a direcção do

37 Sobre o assunto vide http://www.mpiwg-berlin.mpg.de/KWG/Ergebnisse/Ergebnisse1.pdf


38 AHIC, 1256/18 – Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 29
39 FERNANDES, Barahona, «A Clínica Neuro-Psiquiatrica de Francfort», Separata da Imprensa Médica, n.º 15,
1936, p.3.
40 Ibid., 11.
41 AHIC, 1256/18 – Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 29

204
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

Prof.Kleist, que, para o bolseiro, “representa uma escola dentro da ciência neuro-
psiquiatrica de tendências muito especiais”. Na sua opinião a psiquiatria era “uma
ciência jovem, e infelizmente, apesar do enorme esforço que para o seu progresso
lhe é tributado, não logrou ainda alcançar um desenvolvimento paralelo ao dos
outros ramos da medicina”. Para além disso, visitou o “Kaiser Wilhelm Institut
für Anthropologie, em Dahlem (Prof. Fischer)42 “onde pude observar a metódica e
organização dos trabalhos ali organizados nas secções de antropometria, Higiene
e Hereditariedade; a actividade principal é actualmente o estudo dos gémeos, que
pela sua grande importância para o estudo da hereditariedade (...) são procurados
nas escolas e hospitais, e sujeitos a exames morfológicos, biológicos, psicológicos”.43
Visita também o Universitäts Institut für Rassenhigiene und Erbbiologie, sob
a direcção do Prof.von Verschuer, “onde já tinha estado várias vezes com um cola-
borador da casa”.44 Em sua opinião, naquela instituição pretendia-se investigar, de
forma sistemática, os casos de doenças hereditárias diagnosticadas e tratadas em
Frankfurt, para elaborarem um arquivo sobre “a patologia heredo-constitutcional
da região”, de forma a aprofundar os conhecimentos sobre a transmissão hereditá-
ria das doenças e, assim, “obter dados rigoroso que justiiquem a execução de novas
medidas eugénicas”, “para completar (…) a atrevida lei da esterilização”.45
Nos vários relatórios que envia para Lisboa, Barahona Fernandes sublinha sem-
pre a importância dos trabalhos sobre biologia hereditária para o aprofundamento
dos seus conhecimentos. Era, no entanto, difícil organizar trabalhos deste género
em Portugal. Por um lado, devido à falta de assistência, só os casos mais graves
eram tratados clinicamente e hospitalizados no manicómio, o que explicava a au-
sência de informações cientíicas sobre as psicoses menos agudas. Por outro lado,
considerava que a investigação da genealogia, ou seja a recolha de informação sobre
todos os membros da uma família no que dizia respeito ao seu comportamento
social, ao carácter e às doenças psíquicas ou físicas, era algo que se restringia, prati-
camente, à Alemanha, estando muito conotado com a organização social existente
naquele país.46
Em 1936, a bolsa de Barahona Fernandes é prorrogada.47 Nesse ano o bolseiro
esteve no Deutsche Forschungsanstalt für Psychiatrie (do Kaiser Wilhelm Institut)

42 SCHMUHL, Hans-Walter, he Kaiser Wilhelm Institute for Anthropology, Human Heredity and Eugenics, 1927-
1945: Crossing Boundaries, Dordrecht, Springer, 2010.
43 AHIC, 1256/18 – Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 34
44 Refere-se ao Universitäts-Institut für Erbbiologie und Rassenhygiene.
45 AHIC, 1261/15– Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 26
46 AHIC, 1261/15– Henrique João de Barahona Fernandes, Documento 11
47 AHIC, 0486/4 – Henrique João de Barahona Fernandes, documento 9

205
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

em Munique48, onde observou doentes de psiquiatria e neurologia. Assistiu às lições


de psicopatologia do Prof.K.Schneider, um critico da fenomenologia psiquiátrica, e
às aulas sobre Biologia hereditária e higiene psíquica. Frequenta também um curso
sobre psicologia do Prof.H.Luxemburger. No Instituto de Genealogia e Demogra-
ia (Prof.Rüdin)49 estuda ainda a hereditariedade humana “normal e patológica”,
através de livros e contactando com investigadores e “material estatístico e de ob-
servações clínicas existentes nos vastos arquivos do Instituto”. Fora do Reich, visita
o Instituto de Antropologia de Viena, onde observou os métodos de investigação
antropológica em relação com os estudos de hereditariedade e constituição, que,
em sua opinião, “tanto interessam à psiquiatria”. Sobre esta estadia o bolseiro refere
ainda que o Professor Weninger, que contactou em Viena, se mostrou muito inte-
ressado no “problema da raça das populações portuguesas, sobre o qual – segundo
nos comunicou – faltam ainda quase por completo estudos sistemáticos segundo
os métodos e a orientação da nova antropologia heredo-biologica”. Weniger terá
também manifestado “o desejo de se pôr em contacto com os antropologistas por-
tugueses para trabalhos em colaboração e para se poder completar a carta racial da
Europa, que mostra ainda uma grande lacuna em Portugal”. No entanto, Barahona
considerava que aquele assunto estava para além das suas “atribuições” e “competên-
cia”, por apenas se interessar “pela questão das raças por curiosidade e na medida
em que está em relação com os problemas de constituição morfologia psíquica”.50
Durante o período em que permanece na Alemanha, Barahona Fernandes visita
uma série de instituições que são cerne da investigação cientiica sobre as questões
eugénicas e que vão dar o fundamento cientiico às doutrinas racistas alemãs que
conduzirão à esterilização e morte de milhares de doentes, de indivíduos conside-
rados “associais”, de judeus e ciganos. Resta, por isso, compreender de que forma
o seu percurso no III Reich, enquanto bolseiro, inluenciou as ideias que viria a
desenvolver sobre a questão da eugenia.
Num dos relatórios trimestrais que envia à JEN, Barahona airmava que a con-
cessão de uma bolsa, no estrangeiro, permitia “comungar em climas espirituais tão
diversos e proporciona-lhe ensinamentos de tal arte notáveis”, que se relectiria

48 Matthias M. Weber, «Psychiatric Research and Science Policy in Germany. he History of the Deutsche
Forschungsanstalt Für Psychiatrie (German Institute for Psychiatric Research) in Munich from 1917 to 1945»,
History of Psychiatry 11, n 43 ( Janeiro 8, 2000): 235-258.
49 GERSHON, Elliot S., «Ernst Rüdin, a Nazi Psychiatrist and Geneticist», in American Journal of Medical Gene-
tics 74, n.º 4, Dezembro de 1998, pp.457-458; WEBER, Matthias M., «Ernst Rüdin, 1874–1952: A German
Psychiatrist and Geneticist», in American Journal of Medical Genetics, 67, n.º 4, Dezembro de 1998, pp. 323-331.
50 Matthias M. Weber, «Ernst Rüdin, 1874–1952: A German Psychiatrist and Geneticist», American Journal of
Medical Genetics 67, n 4 (Dezembro 6, 1998): 323-331. AHIC, 0486/4 – Henrique João de Barahona Fernandes,
documento 13/2

206
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

na “modelação espiritual em função da inluência das Escolas que frequenta e as


impressões de ordem geral relativas tanto ao assunto a que em especial se dedicou,
como à ciência médica em geral e mesmo às actividades culturais e sociais que de
tantos modos o inluenciaram”. Para Barahona, o trabalho de um bolseiro que se
propusesse estudar psiquiatria no estrangeiro passava pela assimilação de conhe-
cimentos, doutrinas e técnicas, através da participação em cursos, da frequência de
bibliotecas e do trabalho em clínicas, mas passava também, e principalmente, pela
“comunhão dos luxos criadores, a aquisição do método cientiico e da noção
do estado real dos problemas e rumos da sua solução, que nos permitam uma
vez regressados à Pátria, não só uma mera reprodução das instituições, organi-
zações, métodos e sistemas, observados e experimentados, (que dado o baixo
nível que a esse respeito nos encontramos muito seria de desejar e representaria
já um real proveito), mas também e em particular no ponto de vista cientiico,
as possibilidades, de nos não nos deixarmos depois estagnar na situação adqui-
rida, e de por nós próprios, e pela parte da experiencia que aos outros possamos
transmitir, acompanharmos a devota dos progressos e mesmo tomar neles uma
participação activa, pela nossa própria contribuição”.
Vimos já o “clima espiritual” que se vivia na Alemanha e os “ensinamentos” que
Barahona Fernandes pode adquirir. Resta saber de que forma é que o modelaram
espiritualmente e que inluência tiveram as escolas frequentadas e as impressões
colhidas no seu trabalho. Uma vez regressado a Portugal, terá reproduzido os mé-
todos e sistemas que observou e experimentou? Terá conseguido transmitir, acom-
panhar e participar activamente nos progressos cientíicos?
Naquele país entra em contacto com instituições e com cientistas que estive-
ram estreitamente ligados ao programa eugénico nacional-socialista. Todas estas
instituições e estes cientistas vão ter um papel muito importante. São eles que
vão fundamentar, cientiicamente, as leis de esterilização, trabalhando também nos
tribunais de Saúde Hereditária. Como sublinha Sheila Weiss51, os seus êxitos são
mesmo colocados ao serviço da propaganda do regime, funcionando como elemen-
tos preponderantes para a internacionalização cientíica do Reich e, até mesmo,
como propagandistas. Por meio das suas obras, das conferências que proferem no
estrangeiro e do próprio intercâmbio académico, legitimam a política racial do
regime, iniciando estudantes e académicos estrangeiros nas ciências raciais e gené-
ticas. Ao criarem verdadeiros “discípulos”, garantem a difusão dos conhecimentos

51 WEISS, Sheila, «he sword of our science» as a foreign policy weapon: the political function of German genticists in the
international arena during the hird Reich, Berlin, Max-Planck-Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften,
2005.

207
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

e da ideologia transmitida. Funcionando como embaixadores da política cultural


e cientíica alemã, inluenciam, directa (através de relações pessoais) e indirecta-
mente (através das sua sobras, por exemplo), os cientistas estrangeiros numa direc-
ção pró-alemã, demonstrando a superioridade da ciência praticada na Alemanha
nacional-socialista.
Em 1940, na comunicação que apresenta à 2.ª secção do Congresso Nacional de
Ciências da População, sobre “hereditariedade e proilaxia das doenças mentais”,
Barahona considera que as doenças mentais e as “anomalias psicopáticas da perso-
nalidade” constituíam um grave problema para qualquer país, por alterar a vida e o
próprio equilíbrio psíquico, mas sobretudo porque se repercutem nas actividades da
sociedade. Dito isto, considera que o seu tratamento é de suma importância, a nível
médico e higiénico, mas também do “ponto de vista demográico e das ciências da
população”. Para o psiquiatra português, os doentes mentais estavam sujeitos a uma
selecção natural (através da diminuta natalidade e de uma taxa de mortalidade mais
elevada), que evitava a existência de uma prole numerosa, reduzindo a propagação
das doenças hereditárias que têm, “em favor dos elementos sãos e valiosos da popu-
lação”. Para além das “condições biológicas”, considerava que intervinham também,
neste processo de selecção, as “condições sociais”.52
De acordo com Barahona, as medidas eugénicas deveriam estar adaptadas “à
tradição e costumes sociais do país”. Defende, por exemplo, a “selecção matrimonial”,
por ser “o preceito eugénico, mais fácil e imediatamente aceitável e intraduzível
entre nós”. Propõe, por isso:
1.º) a proibição do casamento aos portadores de doenças mentais, psicopa-
tas e grandes anomalias e enfermidades físicas de natureza conirmadamente
hereditária;
2.º) a prática dos conselhos pré-matrimoniais eugénicos, evitando alianças de
famílias hereditariamente sãs com famílias doentes” .53
De Maio a Junho de 1938 sugiram vários artigos de Barahona Fernandes em A
Medicina Contemporânea, que constituem o desenvolvimento de uma conferência,
presidida por Celestino da Costa, proferida naquele ano, na Faculdade de Medi-
cina de Lisboa, sob a égide do Grupo Lisbonense da Sociedade Portuguesa de
Estudos Eugénicos, da qual também era membro. Para Barahona, a Proilaxia e a
Higiene constituíam a forma e lutar contra “os agentes morbigenos e todos os ele-

52 FERNANDES, Barahona, «Hereditariedade e Proxilaxia Eugénica das Doenças mentais», in Congresso Nacional
de Ciências da População, Porto, Imprensa Portuguesa, 1940, p.17.
53 Ibid., 19.

208
A CIÊNCIA E A CRIAÇÃO DE UM «HOMEM NOVO» PORTUGUÊS.
O PENSAMENTO DE BARAHONA FERNANDES E A INFLUÊNCIA DAS TEORIAS EUGÉNICAS ALEMÃS

mentos nocivos à saúde”, sendo amplamente praticadas. Em sua opinião, a Higie-


ne procurava actuar contra os factores externos, o ambiente. No fundo, “a semente
icava a mesma, cuidava-se só do terreno”, revelando-se “irrealizáveis e utópicos”. A
par disto desenvolveu-se outro movimento, com os mesmos objectivos, mas com
princípios e formas de actuar muito diferentes: “a ortogenésia, a eugénica, a higiene da
raça; numa palavra: a selecção do material humano”, actuando sobretudo ao nível da
hereditariedade, ou seja, todos os elementos que nascem com o individuo: “todos
os caracteres da espécie e da raça, os atributos da família, mas também as suas taras
e degenerações”.
A “saúde dos povos” apenas poderia ser garantida de forma eicaz e duradoura
se se impedisse a transmissão, às gerações futuras, dos “defeitos e enfermidades”,
favorecendo-se a propagação “das qualidades de resistência e vigor físico, dos dotes
intelectuais e das disposições de carácter de valor moral e social”. Desta forma,
ao impedir-se a reprodução “dos fracos, doentes e anormais” e ao seleccionar-se
os mais “aptos e talentosos”, estava a assegurar-se o “melhoramento da espécie” .54
Os progressos da própria medicina poderiam constituir uma ameaça, uma vez
que a “contra-selecção” poderia ser negativa para a “saúde e felicidade dos homens”.
Lembra que, no passado, a difusão das doenças era limitada de forma espontânea,
por uma “singela eugénica das aldeias”. As doenças mentais estavam, assim, sujeitas
à “selecção natural” e à “auto-exterminação”, uma vez que os doentes eram colo-
cados de lado, morrendo “à mingua” ou suicidando-se. E mesmo os casos menos
graves tinham fracas possibilidades de “vingar na sociedade e de se reproduzir”. Até
os próprios familiares, portadores desses genes, “sofriam também as consequên-
cias das taras que pesavam sobre a família”, sendo “pouco desejados nas alianças
matrimoniais”. Era por isso insuiciente uma política de higiene e assistência que
visasse apenas o aumento numérico da população e o combate aos “agentes nocivos
ambientais”, não tendo em conta a hereditariedade a selecção e a eugénica.
Defende, por isso, o recurso a medidas eugénicas que, a par da higiene e da pro-
ilaxia, pudessem melhorar e aperfeiçoar o homem ou, pelo menos, actuar contra
as causas da sua decadência. Barahona sabia que este era um problema complexo
e que, por isso, não poderia ser solucionado de forma “unilateral no ponto de vista
da selecção”, como queriam os “eugenistas ortodoxos”. Garante que a sua posição
perante a questão tinha por fundamento qualquer “simpatias de doutrinas”, base-
ando-se apenas seu estudo que teve oportunidade de realizar, enquanto bolseiro,

54 FERNANDES, Barahona, O Problema da Eugénica. Sep. de A Medicina Contemporânea, Lisboa, Centro Tipo-
gráico Colonial, 1938, pp. 1-2.

209
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

em Munique, na secção de Genealogia e Demograia do Instituto de Investigação


Psiquiátrica, dirigido por Rüdin.
Aí, e nas outras clínicas e institutos que frequentou, Barahona confessa que
teve oportunidade de “tomar longo contacto com a investigação heredobiológica
e a aplicação prática das medidas eugénicas na Alemanha”. Garante, por isso, que
não conhece apenas a “sua fachada de reclame político”, conhece também os seus
fundamentos cientíicos e o próprio debate critico existente na própria Alemanha.
Em sua opinião, Luxemburguer era “o mais sensato e profundo dos higienistas
da raça” e garante que é aos seus ensinamentos e à sua “atitude moderada” que o
português deve “o melhor do nosso saber sobre o assunto”. Por estes motivos Ba-
rahona Fernandes “atreve-se” a incitar os seus ouvintes “à propaganda e à prática da
eugénica”. Sobre a Alemanha, Barahona Fernandes considerava que o pensamento
eugénio estava já amadurecido quando se propagou o que designa de “movimento
da higiene mental”. Para o antigo bolseiro português, as questões em torno da
higiene racial alcançaram a sua “plena realização” nas medidas de proilaxia heredi-
tária adoptadas pela Alemanha. Não deixa, contudo, de criticar a “atitude extrema
e certamente excessiva que preside aos cuidados hereditários da Alemanha”55, como
a imposição da esterilização eugénica e “todas as outras severas intervenções sobre
os indivíduos com os mesmos ins”. Em sua opinião, constituíam uma “experiencia
chocante”56. A esterilização de doentes mentais e “outros anormais” eram “medidas
dizimadoras”, medidas “chocantes para com a nossa personalidade e formação”.
Em oposição às medidas adoptadas na Alemanha, propõe a introdução dos acon-
selhamento matrimonial, da proibição do casamento a quem sofresse de doenças
hereditárias, exigindo-se um atestado de sanidade pré-nupcial no qual se tivessem
em consideração as doenças contagiosas e também “as taras dos conjugues”. 57

55 Ibid., 22.
56 Ibid., 34.
57 Ibid., 42.

210
Agustín Pascual (1818-1884). El modelo alemán
y la primera enseñanza forestal en España
Ignacio García-Pereda, Inés González-Doncel, Luis Gil
Universidad Politécnica de Madrid

JUSTIFICACIÓN Y ANTECEDENTES

En el segundo tercio del siglo XIX, la llegada y la consolidación de la ciencia


de montes en España permitió abrirse paso a la idea de que un desarrollo forestal
sostenido era posible, para lo cual era suiciente aplicar los principios y métodos
adecuados. Como la historiografía sobre la difusión del cambio técnico ha puesto
de maniiesto, las iniciativas relacionadas con la innovación técnica pueden gene-
rarse desde el propio mundo rural, como ocurrió durante parte del siglo XIX en
Inglaterra, Sajonia o el norte de Italia a través de la gran propiedad, pero también
pueden ser inducidas como parte de la política agraria y forestal, es decir, de la
acción institucional desplegada por el Estado para fomentar la agricultura y los
montes (Luque, 2006, 119). En ese sentido, las instituciones públicas conectadas
con los intereses de las elites del mundo rural y los sectores más organizados del
mismo, pueden impulsar la creación de un entramado institucional que difunda el
cambio técnico (Fernández, 1998).
Por tanto, entre las estrategias para difundir la innovación se planteó desde muy
temprano el fomento de la instrucción, actitud que habría que relacionar con la
“obsesión pedagógica” que caracterizó a parte de las elites de la ilustración espa-
ñola y a sus epígonos de la etapa liberal. Un énfasis debido en parte a que elites
así mantienen el control sobre la intervención transformadora y sobre el cambio
(Martykanova, 2010). La enseñanza profesional forestal fue, por tanto, una de las
vías por las que circuló el cambio técnico en los montes españoles del siglo XIX.
En el presente artículo analizamos, a través del estudio de la escuela de montes de
Villaviciosa de Odón (1848-1869) la política educativa forestal en el tercer cuarto
del XIX. Para ello nos apoyaremos en los estudios de redes sociales (“Social net-
work studies”), que examinan la variedad de elementos que intervienen en procesos

211
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

como las transferencias pedagógicas y en sus múltiples direcciones (Civera, 2011).


Este artículo seguirá ese tipo de investigación, estudiando tanto las formas de dise-
minación así como la manera en que las ideas y prácticas educativas se cruzan y se
separan, provocando (o no) la formación de nuevas ideas y prácticas. Esto implica
observar los procesos de apropiación, que son creativos, y analizar cómo lo que
reciben lo transforman, reformulan y sobrepasan, sin hacer del proceso una mera
repetición de ideas (Chartier, 1992).
Investigaciones con un enfoque del ámbito de redes han señalado la importan-
cia de las diferentes maneras de diseminar ideas y modelos educativos, con ele-
mentos como viajes de estudio, conferencias y ferias internacionales, revistas, libros
y manuales, o traducciones (Fuchs, 2007; Roldán & Schupp, 2005, Cardoso &
Diogo, 2007). Aunque los amplios procesos sociales son signiicativos, se merecen
un especial reconocimiento las relaciones personales. En este artículo estudiaremos
un canal concreto, el de varios viajes de estudio a Sajonia, realizados en el segundo
tercio del siglo XIX desde la Península Ibérica. En esta etapa, que coincide con los
años más importantes del romanticismo europeo y español, la relación con Ale-
mania fue muy importante, superando en ciertos momentos a la que se tenía con
países como Francia en campos como la ingeniería de caminos. Fueron viajes que
nos ayudan a entender mejor el origen de la orientación técnica y económica que
guió la actividad de los forestales decimonónicos en España.
En este artículo se detallará, a su vez, el caso del primer ingeniero de montes
de España, que se formó en la escuela forestal de Sajonia, la de harandt, Agustín
Pascual (1818-1884). Nuestro interés es ver cómo las nuevas ideas y prácticas edu-
cativas alemanas desarrollaron una nueva comunidad profesional, una vez aterriza-
da en España. Nuestra premisa es que las maneras en que una cultura pedagógica
se mantiene o se transforma cuando entra en diálogo con otras, es algo que sucede
no sólo en el campo de las ideas, sino en la interrelación entre ideas y prácticas,
según las particularidades de cada sistema educativo, las posibilidades de empleo
o los problemas políticos o económicos. Esto es evidente porque las realidades de
zonas como Sajonia o España eran muy diferentes, tanto entonces como ahora. La
metodología del estudio será la de seguir algunos pasos de las trayectorias de estos
nuevos ingenieros de montes, destacando varios momentos de su desarrollo profe-
sional e intelectual. Analizaremos también brevemente el ideario de los primeros
ingenieros de montes españoles, a través de varios textos de los dos creadores de la
nueva escuela de montes, el mismo Pascual y Bernardo de la Torre Rojas (1792-
1875). Trataremos de determinar algunos conceptos claves del discurso de los dos
fundadores de esta escuela.

212
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

MATERIAL Y MÉTODOS

Se han consultado los manuscritos relativos a la gestión de la escuela de montes,


algunos de ellos conservados en el Archivo General de la Administración en Alcalá
de Henares (AGA), y algunos informes sobre incas del condado de Chinchón, de-
positados en el Archivo General del Palacio Real (AGP) o en el archivo regional de
Madrid (ARM). Finalmente, algunos detalles han sido aclarados en el Archivo de
Protocolos de Madrid (APM), en el archivo de la sociedad económica de amigos
del país de Madrid (ARSEM) y con algunos libros del siglo XIX, disponibles en la
escuela de montes de la Universidad Politécnica de Madrid.1

LA TENTACIÓN ALEMANA

Agustín Pascual González, hijo de un profesor de la Escuela de Veterinaria de


Madrid, Agustín Pascual García (1786-1821), formó parte, desde su fundación
en 1840, de una nueva corporación: la “Academia alemana-española”, cuyo objeto
era “dar a conocer en las dos naciones el estado de las ciencias y de la literatura.”2 En
este grupo es evidente la huella de la “tentación alemana.”(Lluch, 2000) Era desde
el espacio geográico de la Unión Aduanera germánica que estaban llegando las
primeras noticias a España de ciencias tan dispares como la Filosofía del Derecho
o la Arqueología. Las publicaciones del grupo tenían una intención “comparati-
vista”, mostrando los sistemas educativos de los otros países, sin dejar de explicar
las relaciones de la educación con las necesidades sociales y económicas o con la
idiosincrasia de los pueblos.3
Todo este colectivo podría ser considerado hoy como los primeros introductores
de una nueva corriente de pensamiento en España: el krausismo. En 1841, con una
traducción del ilósofo Ahrens, “se iniciaría maniiestamente la estela del krausismo es-
pañol” (Andrino, 1986, 5). Un intelectual que anteriormente había dado señales de
conocer esa corriente había sido Ramón de la Sagra (1798-1871), cuando al hablar
de las miserias del pueblo en la inauguración de las lecciones del Ateneo, en 1838,
había tratado sobre el “pauperismo horroroso” de la clase agrícola, mencionando las
nuevas funciones que se debía atribuir al Estado. “La reforma material y moral de las

1 Un especial agradecimiento a Darina Martykánová por la última relectura del texto.


2 Eco del Comercio, 9 de febrero de 1841, p. 3
3 Llama la atención que Sajonia era líder en la educación en Europa, con 1 alumno por cada 5.5 habitantes, mien-
tas España 1 cada 17 (Sagra, 1840, 323)

213
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

masas debería preceder a la reforma política de las instituciones” (Sagra, 1840), lo que,
según él, solo estaba sucediendo en Austria, Prusia, y los pequeños estados de los
príncipes de Alemania.
Desde esos años, la admiración de Pascual por la cultura alemana rozaría el
fanatismo (Olazábal, 1885, 40). Otros miembros de la academia, como Sanz del
Río, compartirían esta profunda pasión, como se puede ver en textos de 1843:
“en nuestra época los más distinguidos ilósofos franceses se han formado en Alemania, y
el Gobierno francés ha llamado a sus universidades profesores alemanes para educar su
juventud. [...] La Inglaterra envía todos los años gran número de sus hijos a recibir la
educación secundaria en los gimnasios de Alemania” (Orden, 2001, 157). Pascual seguía
esa línea de pensamiento, y siempre la mantuvo, como se puede ver en un texto de
1871:“Consagrado a un ramo del saber, para cuyo cultivo es indispensable el conocimiento
de esta lengua y en la inexcusable necesidad de haber tenido que acomodar a las sonoras
expresiones del español el tecnicismo de una ciencia que se dirige a la práctica, y desecha
por tanto las palabras tomadas del griego o del latín, me empeñé en el estudio de ambos
idiomas, aplicando al asunto por caso de honra la debilidad de mis fuerzas. No presumo
de germanista, conozco lo mucho que ignoro, dedico únicamente mis ocios a labrar el ma-
terial germánico de la lexicografía patria” (Pascual, 1871).
En 1842, Eusebio María del Valle, uno de los germanóilos, emprendió la pu-
blicación de una “Revista económica de Madrid.” En ella, Pascual participó con un
artículo sobre “Escuelas de Agricultura”, en donde ya menciona un pedido de ayuda
de la Intendencia de la Casa Real a la Sociedad Económica de Amigos del País, co-
nocida como la Matritense, y la necesidad en España de nuevos cuerpos facultati-
vos “como los ingenieros de montes (Pascual, 1842b).” Que Pascual supiera que la Casa
Real estaba pensando en recurrir a Sajonia para encontrar especialistas de montes
es indicador de las buenas fuentes de información con que contaba. De hecho, fue
en febrero de 1842 que el Intendente de Palacio, Martín de los Heros, comenzó a
moverse activamente en el sentido de buscar profesionales para gestionar los mon-
tes reales, y la Matritense fue uno de los órganos de consulta a los que acudió. Ésta
nombró enseguida una comisión de tres personas donde destacaba el director del
jardín botánico.4 El 12 de abril entró en esta comisión Agustín Pascual.5
Heros consideraba que los recursos con que contaban los montes y jardines reales
eran insuicientes. Él mismo, en su etapa como ministro en 1835, había aprobado

4 ARSEM, Actas Junta de Sección de Agricultura, 16 de marzo y 5 de abril de 1842; ARSEM, 357/1.
5 ARSEM, Actas Junta de Sección de Agricultura, 12 de abril, “el socio que más trabajó en aquel informe fue
comisionado a instruirse en Alemania… lo demuestra con artículos que ha publicado en otros periódicos.”

214
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

la creación de una Escuela de Aguas y Bosques, que no había ido más allá del pa-
pel de la RO (García-Pereda et. al, 2012, 229). En 1841, ya como Intendente de
la Casa Real, encargó a Ramón de la Sagra, compañero suyo de varias comisiones
gobernativas, para la compra de semillas y plantas aprovechando un viaje de éste por
Europa.6 Según Heros, “el miserable estado en que se encuentra el arbolado, hubiera exci-
tado nuestro celo el deseo de mejorarlo hasta el punto de que compitiera por su frondosidad
como compite por su situación con los mejores jardines y paseos de Europa” (Heros, 1842).
Concretamente sobre la Casa de Campo decía que, “con el in de hacerla con el tiempo
más productiva para SM y de aumentar el combustible y madera de construcción en esta
corte, haciendo desaparecer al mismo tiempo la aridez de aquel terreno, se ha aprobado
un presupuesto de 54.840 reales, para sembrar 500 fanegas, en el cuartel denominado de
Batán, con bellotas de encina de Extremadura, el Pardo y otras partes, de roble del país y
de la costa de Cantabria, de castañas, de almendras, pinos, etc.”. Desde la Intendencia, a
La Sagra “se le encargó el acopiar en ellos con el mismo útil objeto las semillas de árboles de
adorno y construcción, arbustos, plantas y lores desconocidas en nuestro suelo… han llega-
do ya de París por la vía de Marsella y Valencia diez cajones de plantas, árboles y bulbos
perfectamente conservados.” En su memoria, La Sagra, en otro tiempo profesor de
botánica agrícola al tanto de las más innovadoras ideas de la botánica internacional,
comentaba que “si se quería poblar los bosques peninsulares con árboles de construcción, los
viveros de Francia, Bélgica, Holanda y Alemania no podrían suministrar ni los pies ni las
semillas, … pocas especies del norte de Europa se pueden introducir en nuestro suelo meri-
dional” (Sagra, 1841, 3). Por Marsella, envió 2400 plantas, “aclimatadas y viviendo al
aire libre bajo el cielo de la Francia y de la Alemania meridional. Vienen entre ellas pinos,
cedros, enebros, magnolias, sauces y moreras de las variedades elata e intermedia, que se
van preiriendo en Francia para la crianza del gusano de seda”. En viajes posteriores,
llegó a tomar contacto con la escuela forestal de harand.7
Además de plantas que se podían comprar en el extranjero, según el Intenden-
te, se debatía el tema de la formación de los responsables técnicos: “el estado de
atraso en que respecto a los de otros países se encuentran los bosques y jardines de SM,
me convenció de la necesidad de darles una dirección cientíica que aumentase su belleza
y productos, hasta con beneicio de esta capital en que tanto escasean el combustible y la
madera de construcción. Propuse con este motivo que en uno de los Reales Sitios, el más

6 De ese viaje hay cartas en AGA, Educación, 6247.


7 La Gaceta, 28 de junio de 1843, comentaba sobre un viaje que había hecho la Sagra a la ciudad alemana de Ma-
guncia, por motivo de una exposición de los productos de la industria alemana. El viaje se produjo en septiembre
de 1842 y en el texto ya comenta que la Unión Aduanera contaba con dos academias de Bosques, en Neustadt-
Ebers-Wald y en harand.

215
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

acomodado al intento, se estableciera una escuela en la que se instruyeran competente-


mente cuantos en adelante hubieran de encargarse de la dirección y principal cuidado
de los arbolados y jardines de SM” (Heros, 1843, 139). La Matritense propondría
la Casa de Campo como local para la Escuela,8 pero que “siendo una ciencia nueva
en nuestra patria, era muy difícil y arriesgado plantearla sin conocerse profesores que ya
con anterioridad la hubiesen cultivado” (Heros, 1843, 140). Así, para conseguir la
ayuda de los ingenieros que en el ramo de bosques contaba Alemania, se solici-
tó la ayuda de Joaquín Francisco Campuzano, compañero del partido progresista
muy cercano al círculo de Espartero,9 quien por su carrera diplomática y personal
conocía bien los institutos de enseñanza germánicos. Durante varios años Cam-
puzano, candidato a senador con Martín de los Heros en enero de 1841 (Vitar,
2007, 109), había ejercido el puesto de embajador en Sajonia, y más tarde en Viena
(Ovilo, 1859, 119). Heros conocía las “relaciones de familia” que Campuzano seguía
teniendo en Dresde, y que tan útiles le podían entonces resultar.10 El 11 de febrero
de 1842 el Intendente encargó a Campuzano, si “querría encargarse de averiguar
si en el muy acreditado Instituto Real arbolar y agrícola de harand habría uno o dos
profesores, o bien empleados entendidos en los bosques de aquel reino, que quisieren pasar
a examinar los del Reino de España para proponer las mejoras que convenga introducir
en su administración y aumento.”11 Campuzano solicitó a Dresde que le remitiesen
el reglamento del establecimiento de harand y también el de la misma clase que
había en Austria. El 9 de abril de 1842, Campuzano comunicó la respuesta que le
había llegado desde Sajonia, por la cual tres hijos de Enrique Cotta ( Johann Hein-
rich Cotta, 1763-1844) se mostraban disponibles. Los profesores se ofrecieron a
venir por un máximo de tres meses, ese mismo verano. Heros consideró que sería
suiciente el viaje de dos de los tres hermanos, y Campuzano remitió enseguida la
respuesta positiva. Sin embargo, a inales de junio llegó una respuesta negativa de
Dresde. El Gobierno no había concedido el permiso a los Cotta, alegando razones
como la situación de riesgo que se vivía en España, y la falta de relaciones del go-
bierno de Sajonia con en español.

8 ARSEM Junta extraordinaria de 12 de mayo de 1842, 16 asistentes, entre Guerra, Vallejo, Ballesteros, Casas,
Pascual y Boutelou.
9 El genio de la libertad, 3 de noviembre de 1840, p. 1, Espartero le concede a Campuzano, “ministro plenipotencia-
rio cesante”, el cargo de secretario de las órdenes de Carlos III y de Isabel la Católica.
10 Campuzano se había casado en segundas nupcias, tras un trienio liberal en que posiblemente fue cesado, con
Emma Emmanuela Brochowska, dama de la princesa Teresa de Sajonia e hija de un general de la armada sajona.
Antes de esta boda, en 1820, había nacido su hijo Carlos Campuzano Watkins, quien ya había entrado por aquel
entonces en la escuela de ingenieros de caminos.
11 AGP, AG, 7/10, “Expediente de d Agustín Pascual y don Esteban Boutelou, pensionados para estudiar en la
Academia rural de harand”

216
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

A inales de verano se toma la decisión en la Casa Real de optar por enviar algún
joven español a formarse a Sajonia. Y el 6 de noviembre de 1842, Campuzano in-
forma de las condiciones de admisión de los alumnos de la Academia de harand,
donde estaba claro que había que tener más de 16 años, “escribir correctamente el
idioma alemán, y expresar bien sus pensamientos: y además contar hasta la regla de tres
por lo menos.” Tales condiciones todavía no se cumplían con uno de los candidatos,
Antonio Campuzano Brochowski, hijo del senador, demasiado joven por haber
nacido en 1827, en la misma Sajonia.12 El 16 de noviembre de 1842 fueron co-
municados los dos seleccionados para ir a harand; se trataba de Agustín Pascual
y Esteban Boutelou, nacidos en 1818 y 1823. Si Pascual era socio de la Academia
Española-Alemana, Esteban Boutelou Soldevilla tenía la ventaja de ser hermano
pequeño del director de los jardines reales. De hecho, antes incluso de la llegada de
Heros a la intendencia, Fernando Boutelou ya había insistido al anterior intenden-
te sobre la necesidad de formar a nuevos jardineros y capataces, “habiendo llegado a
tocar el extremo de no encontrar una persona que pueda desempeñar debidamente la pla-
za de Capataz Principal de los Reales Jardines del Buen Retiro”. Fernando Boutelou
ya sugería la posibilidad de formar “escuelas prácticas de jardinería en algunos de los
Reales Sitios” (Ariza, 1988, 278).
Las peripecias de Pascual y Boutelou fuera de España ya han sido, en parte,
comentadas en otros trabajos.13 Un punto que merecería un poco de atención se-
ría algunos detalles del sistema educativo alemán, sobre todo en lo referente a la
historia natural. Humboldt, gran conocedor de las colonias españolas en América,
había pasado a ser uno de los diseñadores del sistema educativo de Prusia, donde
se había optado por el “bildung,” conocido en Inglaterra como el “self formation.”
El énfasis no se debía dar tanto a los profesores o a los textos, como al individuo,
que debía absorber los materiales ofrecidos a él por el mundo. El Bildung no se
alcanzaría en una reclusión académica, sino en su incorporación en la vida y en la
sociedad. Era necesaria una nueva universidad, como la de Bonn, una comunidad
de aprendizaje bastante particular (Nybom, 2007; Fabre, 2011).

12 AGA, (01)010.005ca19639 top 12/52, expediente (1900), de los huérfanos de Campuzano, Armando José e Inés
Campuzano y González.
13 Bauer, 2003, 246; AGP, Adm, 6.

217
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

PASCUAL, DISCÍPULO DE COTTA,


FUNDADOR DEL SISTEMA EDUCATIVO FORESTAL ESPAÑOL

Regresado a España después de la etapa alemana, menos se sabe sobre el día


a día de Pascual hasta la inauguración de la escuela de montes de Villaviciosa de
Odón. A inales de 1845 se incorporó como inspector interino de montes a la
plantilla de la Casa Real. La idea de crear una escuela de montes en Villaviciosa
de Odón había surgido desde el primer encuentro entre Pascual y Bernardo de la
Torre Rojas, en enero de 1846.14 Rojas, como apoderado de la Condesa de Chin-
chón (García-Pereda et al, 2013), sentía una fuerte necesidad de asistencia técnica
a la hora de gestionar los montes de la condesa.15 Poco después, Pascual aprovechó
también la llegada de Pedro de Egaña a la Intendencia de palacio, tras la salida de
éste del gobierno. En junio de 1846, Pascual preparó unos “apuntes sobre el esta-
blecimiento de la Escuela de Ingenieros de Montes”, que hizo llegar a su Intendente.
Egaña, el 9 de noviembre de 1846, escribió al ministro de la Gobernación, Pidal,
adjuntando las notas de Pascual, y mencionando que el ministerio era la insti-
tución adecuada para “promover y llevar a cabo” la formación de una escuela de
montes. En sus notas Pascual recordaba el Decreto de marzo de 1843 que creaba
la Escuela, y que no había más que llevar a efecto.16 Sin embargo criticaba el afran-
cesado reglamento de esa Escuela; “Los franceses se contentan con enseñar a decir lo
que debe hacerse; los Alemanes, enseñan las materias de Montes practicando sobre el
terreno por la tarde las lecciones, pues, optar francamente entre estos dos sistemas y si se
adopta el alemán es menester tomar por modelo la Escuela Real de Ingenieros de Mon-
tes, de harand.” Así Pascual colocaba toda una serie de bases, donde las consignas
eran claras: “Los detalles de los cursos y de las asignaturas pueden tomarse de la Escuela

14 En Villaviciosa vivía uno de los socios de la Matritense, agricultor, que desde año antes hacía negocios con
Joaquín Campuzano, arrendando lagares y bodegas para la fabricación de vino. APM, 30741, escribano Basilio
María de Arauna, 1843, folio 208. Juan González de Valdés, socio de la matritense, había irmado con Pascual,
en junio de 1842, un informe sobre Escuelas de Agricultura. Campuzano también era propietario de viñas en La
Rioja (APM, 30742, febrero de 1845).
15 La Condesa de Chinchón aprovechó la oportunidad de las ventas de los bienes eclesiásticos de la desamortiza-
ción de Mendizábal para aumentar legalmente su patrimonio. Sabemos que en febrero de 1844, cuando Rojas ya
llevaba cuatro años como apoderado de los Condes tras la muerte de José Martínez de San Martín, compraron
una seria de incas en Zamora, Segovia y Cáceres por un valor de casi cuatro millones de reales. APM, 25210,
fol. 39, Testimonio de Poder (a José Martínez de San Martín), Torre Rojas. Escribano Martín Santín y Vázquez,
1844, fol. 34; Aparecen incas de Zamora, (una Hacienda en término de Fuente de Santa Cruz, del cabildo de
curas de Olmedo, 102.100 reales) Segovia y Cáceres (dos partes en la dehesa de Valtrabieso, en el término de la
Oliva, procedente del cabildo y catedral de Plasencia, por 60.100 reales; la dehesa Salgadilla en término de To-
rrejoncillo, del cabildo y catedral de Coria, por 172.000 reales; la dehesa de Santi Spiritus, término de Plasencia,
que perteneció al cabildo de curas de ella, 160.000 reales; 354 en le dehesa de la Burra, en Torrejón, procedente
del cabildo de Plasencia, 70.000 reales; la dehesa Travacuartos en Torrejoncillo, de la Fábrica catedral de Coria,
521.000 reales. Importan todos los remates 3.829.200 reales.
16 Reglamento de la escuela especial de ingenieros de montes y plantíos. Marzo de 1843. Legislación de Montes,
Imprenta Nacional, Madrid, 1859, p. 444.

218
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

de harand, procurando inventar lo menos posible.”17 Pidal comisionó verbalmente a


Pascual para que le ayudara con sus consejos en este asunto.18
Rojas, en sus entrevistas con el ministro, había conseguido eliminar en los bor-
radores del RD el artículo que prescribía que se llenasen las plazas de número con
individuos elegidos y pagados por las Diputaciones Provinciales. Según él, sería
demasiado complicado que éstos se mezclasen con los jóvenes acomodados que de-
bían llenar las otras plazas (García, 1948, 33). Notamos en este detalle del discurso
de Rojas un punto de “icción meritocrática” (Martykánová, 2007, 206). Eras reales
los obstáculos legales y materiales que impedía a la mayor parte de la población el
acceso a la profesión de ingeniero de montes. Aun así, el mito del privilegio basado
en el mérito profesional y colectivo se apoyaría en tres pilares: los procedimientos
meritocráticos en el acceso a la formación especializada y a lo largo del proceso
educativo; la promoción de forma impersonal (por antigüedad) alejada del favo-
ritismo y el “ethos” profesional del honor, el trabajo y la disciplina. Esta icción
meritocrática permitiría concluir una metáfora familiar del poder; los ingenieros
formaban parte de una hermandad de profesionales. Según Carlos Castel (1845-
1903) así “un Cuerpo sin espíritu es un cadáver galvanizado. Un individuo aislado no
es nada; dos son algo, y tres pueden serlo todo cuando forman Cuerpo” (Castel, 1877,
32).19 Rojas se había valido de “muchos artiicios” para lograr este espíritu de Cuerpo:
“1, Fundar una familia en vez de un Cuerpo, tomando carácter y nombres familiares; 2,
Aprovechar la casualidad de ocupar un palacio-castillo de los tiempos feudales, para ins-
pirar a esos jóvenes ese espíritu de pureza que impide a los verdaderos caballeros pensar
en las malas y vergonzosas acciones; 3, Hacer comprender a los alumnos que, si en medio
de la corrupción de su tiempo lograban ellos distinguirse de los demás por su conducta de
caballeros, habían de lograr al in una gran consideración (así se ve en el trato particular
que se proporcionaba a los alumnos con las familias más distinguidas del pueblo, las comi-
das y los bailes en la Casa del Arroyo y en la de la señora Emma Campuzano, las iestas
de las excursiones, los tés del castillo y tantas otras cosas semejantes); 4, Hacer comprender
a los alumnos cuanto debía importarles, el distinguirse de los demás cuerpos por el respeto
a sus superiores; No revelar las faltas interiores del Establecimiento ni del cuerpo, ni aun
a las personas de más conianza, dejando la vindicación de las querellas que ocurran en-
tre sus individuos, al juicio íntimo de ellos mismos, y al criterio discreto de sus superiores

17 AGA 5/16/32/16333, escuela de Montes de Villaviciosa.


18 AGP, Personal, 793/42, AP, Carta de Pascual al Gobernador de Palacio, de 22 de enero de 1848.
19 Castel había estudiado en Villaviciosa, hasta septiembre de 1868, con una beca de la diputación de Teruel (Mor-
cillo, 1999, 11). Fue Director General de Obras Públicas, director de la revista Montes, presidente de la Real
Sociedad Española de Historia Natural, diputado durante varias legislaturas.

219
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

(He aquí porqué durante la fundación no se vieron expulsiones de alumnos, ni castigos


públicos, ni aun salir del establecimiento los dependientes y criados que entraban en él);
6, Formar en los individuos el hábito de auxiliarse y favorecerse entre si; 7, Familiarizar
a los alumnos con la idea de que los ingenieros de Montes obran como administradores de
los bienes del Estado, y que bajo este concepto no deben permitirse la falta más leve.” Todo
para no crear una academia teórica, sino un “noviciado de prueba” (Torre, 1866, 20).
Tras la creación oicial de la Escuela, por RD, el 18 de noviembre de 1846,20
el día siguiente Pidal comisionó a Pascual para que reconociese las cercanías de
Madrid e indicase el lugar más apropiado para la futura Escuela. Para el ingeniero,
la decisión ya estaba tomada desde meses antes, y respondería al ministro desta-
cando por encima de los Reales Sitios, el Palacio de Villaviciosa de Odón.21 De
los trabajos de adaptación del ediicio se ocuparía un arquitecto: Peyronnet.22 Fue
aceptada la propuesta, y rápidamente, en diciembre de 1846, ya se había irmado el
arrendamiento del castillo. Pero hubo cambio de gobierno y con los puritanos en
el poder, cesaron en palacio personajes pertenecientes al círculo de María Cristina,
madre de Isabel II. El intendente de palacio, Egaña, estuvo entre ellos,23 aunque
ya no se alejaría del todo de los temas forestales. Crearía una sociedad llamada
“Resinera de Ontoria del Pinar”, en 1846, y otra llamada “Meceta y compañía”, en
1854.24 La fábrica creada, “con máquinas traídas del extranjero conforme a los últimos
adelantos”, fabricó toda clase de materias resinosas, aguarrás, brea seca gorda, resina
colofonia, resinas comunes, alquitrán, pez, “y todos cuantos artículos pueden extraerse
de los pinos.”25 Los productos de Meceta estuvieron presentes en la Exposición de
París de 1855 (Ochoa, 1861, 61).
En octubre de 1847, Pascual anuncia en la Matritense que ha sido “encargado
por SM de la cátedra de cuarto año” de la nueva escuela de montes de Villaviciosa
de Odón, proyecto que él mismo había liderado, y decide por lo tanto abandonar
otros cargos como su puesto de redactor del periódico “El Amigo del País.”26 El
reglamento de la nueva escuela había sido aprobado en el mes de agosto.27 Antes de

20 Español, 24 de noviembre de 1846, p. 3.


21 AGA 5/16/32/16333, Oicio de Pascual al ministro Pidal, 24 de noviembre de 1846.
22 Pocos meses antes, Rojas había sido nombrado Académico de Honor de la Academia de Bellas Artes, donde era
académico de número el arquitecto. Archivo Academia Bellas Artes (AABA). Relación general de académicos,
2010.
23 Eco del Comercio, 6 de marzo de 1847, p. 1.
24 Sentencias del Consejo de Estado, 1863, p. 937. En 20 de octubre de 1846 otorgaron escritura, tras negociar precios
por los pinos y maderas en diferentes pueblos de Soria y Burgos, creando una primera sociedad llamada “Resinera
de Ontoria del Pinar”, que duraría hasta julio de 1852 cuando fue creada la de Meceta en junio de 1854.
25 Revista Barcelonesa, 1847, tomo I, p. 37.
26 El Amigo del País, 5 de octubre de 1847.
27 Reglamento orgánico para la escuela especial de ingenieros de montes. 17 de agosto de 1847. Legislación de
Montes, Imprenta Nacional, Madrid, 1859, pp. 156-170. Los aspirantes a alumnos debían tener entre 15 y 22

220
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

concluir el año de 1847, se nombró el personal de la Escuela y se hizo el arriendo


del arbolado y de la huerta de Juan Valdés. Como profesores, a Pascual le acom-
pañarían Indalecio Mateo, Pedro Bravo, y Luis Gaitán de Ayala. Entre el primer
personal también estaba, como vicedirector, el comandante de Caballería Carlos
Taxier, de la Escuela de Caballería de Alcalá; Aniceto de la Parra como conserje
mayordomo; Peyronnet como profesor, que tuvo que renunciar por incompatibili-
dad con su cátedra de la Escuela de Arquitectura de la Academia de Bellas Artes
(García, 1948, 41). Valdés, un “militar aicionado a la arboricultura”, el dueño de la
huerta arrendada, acabaría entrando como alumno, y contratado como “ayudante de
cultivos” del nuevo campo forestal, en 1850.28
El 20 de octubre de 1847 se habían iniciado los exámenes donde se escogerían
los primeros alumnos, y de los elegidos saldría la primera promoción de la escuela,
generación importante pues sus miembros acabarían siendo los jefes de un nuevo
cuerpo del estado, todavía por crear.29 Unos jóvenes ingenieros que “a fuerza de
abnegación, saber y patriotismo, hubieron de plantear en España el problema forestal y
procurar su solución cientíica, casi siempre luchando con la ignorancia, la mala fe y la
codicia de los propietarios y explotadores de los montes públicos.”30 Sería la creación de
un nuevo cuerpo, cuya identidad se basaba en el conocimiento adquirido a través
de una educación formalizada. Son los años de la consagración social de un nuevo
grupo de profesionales de elite, un círculo caracterizado por el servicio al Estado
como funcionarios y por el dominio de una nueva ciencia aplicada.
Los exámenes llegaron a ser noticia en la prensa, donde se comentaba la presen-
cia de “algunos jóvenes muy adelantados en los estudios que se requieren para preferencia,
y que en la admisión se procederá con toda justicia, sin lo cual empezaría a desacreditarse
en su origen la nueva instrucción.”31 Realizados el 20 de octubre de 1847,32 en los
exámenes se aprobó a 38 candidatos de los 103 examinados (García, 1948, 43).
Si las diferentes universidades se caracterizaban en la primera mitad del XIX por

años. Este reglamento estaría en vigor hasta el siguiente, Reglamento para la escuela especial de ingenieros de
montes, 18 de mayo de 1862. Legislación de Montes, tomo segundo, Imprenta Nacional, Madrid, 1866, pp.
107-130. Desde este momento ya no podrían ingresar en el cuerpo de montes los ingenieros formados en otras
escuelas europeas.
28 Revista Forestal, Económica y Agrícola, 1871, p. 26.
29 El Amigo del País, 29 de octubre de 1847, p. 406.
30 Revista Forestal, Económica y Agrícola, 1870, p. 379.
31 El Español, 29 de octubre de 1847, p. 4.
32 En el siguiente año escolar, los exámenes fueron celebrados el 11 de septiembre de 1848, lo que permitiría co-
menzar el curso el 1 de octubre; “se comprendan el álgebra, geometría, secciones cónicas y dibujo lineal, probándose con
certiicaciones competentes el estudio de los elementos de física y química. El examen de álgebra comprenderá la primera
y segunda parte con la teoría general de ecuaciones, el de geometría la parte elemental; la trigonometría rectilínea; la
aplicación del álgebra a la geometría y las secciones cónicas con la extensión que tienen estos tratados en la obra grande de
Vallejo o en la traducida de Lacroix. El examen de dibujo lineal se extenderá hasta delinear las órdenes de arquitectura.”
(El Heraldo, 19 de julio de 1848, 4)

221
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

mostrar escaso interés con respecto a las ciencias prácticas, la situación de las escue-
las especiales era por completo diferente. La urgencia y la rentabilidad de las tareas
encargadas a los futuros ingenieros aconsejaron otorgar un trato privilegiado a sus
centros de enseñanza, los cuales gozaron de cierta autonomía dentro del sistema
de enseñanza superior. Si observamos las otras escuelas especiales, como caminos
o minas, podemos ver que sus alumnos salían marcados con cierta impronta. El
ingreso implicaba superar pruebas matemáticas “cuya preparación exigía al menos un
año” (Fornieles, 1989, 33). Pruebas matemáticas que Pascual consideraba esencia-
les, pues el estar “familiarizados con el espíritu matemático” era sinónimo de “ga-
rantía que por riguroso examen se exigía a los que aspiraban a merecer en su día la
plenitud de la conianza pública” (Pascual, 1879, 453). Finalmente, se produciría la
apertura de los estudios de montes discretamente, el domingo 2 de enero de 1848.33
Sin embargo, sobre el proyecto de la nueva escuela, surgieron algunas críticas
en la prensa en las semanas previas al comienzo de las primeras lecciones. Un
periódico satírico, El Tío Camorra, tras los exámenes, comentó que los examina-
dores Peyronnet y Mateo “no servirían de discípulos en otra parte,” que Rojas, era un
“ignorante,” atacando también el hecho de que todos los colegiales tuvieran que
ser internos, acusando “al apoderado de la dueña del castillo… Mon de Villaviciosa…
desde que empezó a sacar 1000 reales a cada estudiante por habitarles la habitación con
cuatro sillas como las del Prado.”34 De hecho, la condición de internado fue eliminada
apenas dos años más tarde (Castel, 1877, 23). La condición del pago de 1000 re-
ales anuales seguiría en vigor en 1854, lo que se puede conocer a través de un acta
notarial, cuando Joaquín Campuzano le irmó una escritura de obligación a uno de
los estudiantes de la escuela, Pablo Preber.35
El 19 de enero 1848, una RO le conirmaba el permiso a Pascual “para que de sus
consejos en la plantiicación de la nueva Escuela especial de Ingenieros de Montes siempre
que este cargo no retrase el del Real Patrimonio.”36 Con esta nueva escuela llegaría
el complemento necesario a las leyes y ordenanzas, “porque sin hombre de oicio no
hay práctica, sin práctica no hay obediencia y sin obediencia no hay ordenanzas posibles
(Pascual, 1847b, 18).” Pascual podría tener así más ingenieros que le ayudasen, “el
ingeniero saca la mayor renta posible y no esquilma el suelo, el empírico no consigue ni
la mitad de la renta y esteriliza el terreno” (Pascual, 1847b, 19). Si bien quien fue

33 El clamor público, 4 de enero de 1848, p. 4.


34 El Tío Camorra, periódico político y de trueno, paliza 13, 24 de noviembre de 1847, p. 199.
35 APM, 30737, notario Victoriano Draga, Folio 3, escritura de obligación para ingresar en la Escuela de Ingenie-
ros de Montes, Pablo Preber, otorgada por Campuzano, 20 de enero de 1854.
36 AGP, Personal, 793/42.

222
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

nombrado como primer director de la primera escuela de montes de España fue


Bernardo de la Torre Rojas, Pascual tuvo una presencia muy importante durante
los primeros años. Podemos ver (tabla 2) la ocupación de Pascual en la principal
cátedra de la Escuela hasta 1855, primero bajo el nombre de Montes, después bajo
el de Dasonomía. La asignatura de Montes, en principio sólo para los alumnos de
cuarto año, constituía la culminación inal de la formación de todos los alumnos de
la Escuela, siendo la más forestal y germánica de todas, comparada con otras como
Topografía, de línea muy francesa. Desde 1852 habría un profesor de alemán, Ma-
nuel Llord.37 El primer año los alumnos sólo cursaron las asignaturas del primer
curso, teóricamente a cargo de Indalecio Mateo. Esto comprendía “Topografía y
Geodesia Forestal, Geometría Descriptiva, Xylometría y Dibujo geométrico.”38 Aunque
Pascual sólo estuvo presente oicialmente en la escuela hasta 1855, esto supondría
que las cuatro primeras promociones se habrían formado con él. Lo que quiere
decir que muchos de los principales nombres de la ingeniería de montes española
del siglo XIX, como Laguna, García Martino, Roque León del Rivero o Lucas
Olazábal tuvieron a Pascual como maestro directo de la Ciencia de Montes. Pas-
cual les habría modelado antes de su incorporación a las tareas propias del Cuerpo
de Ingenieros de Montes, materializado en 1854. Bernardo de la Torre y Pascual
conseguirían que el Cuerpo fuese oicialmente creado por RO de 18 de octubre de
1853 y de 17 de marzo de 1854 (cuando se especiica que contaría con 45 plazas).
TABLA 2: RELACIÓN DE PROFESORES (Y MATERIAS IMPARTIDAS)
DURANTE LOS PRIMEROS AÑOS DE LA ESCUELA DE VILLAVICIOSA DE ODÓN
1848 1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857
LGA(HN) LGA(HN) MB (HN) MB (SV) MB (SV) MB(SV) MB(SV) MB(SV) LO(SV) ML (HN)
PB (T2) PB (T2) PB (T2) PB (T2) IM (DB) IM (DB) IM (DB) IM (DB) IM (DB) IM(DBC)
AP (M) AP (M) AP (M) AP (M) AP (M) AP (M) AP (M) AP (D) GM (D) JMM (D)
IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT (T) IMT(TX)
ML (A) ML (A) ML (A) ML (A) ML (A) ML(A)

Fuente: Guía de Forasteros de Madrid, desde 1849 hasta 1857.


Luis Gaitán de Ayala: LGA; Miguel Bosch: MB; Pedro Bravo: PB; Agustín Pascual: AP; Indalecio Mateo:
IMT; Lucas Olazábal: LO; Francisco García Martino: GM; Manuel Llord: ML; Ignacio Macías: IM; Joaquín
María Madariaga: JMM; Máximo Laguna: ML; A: Alemán; D: Dasonomía; DB: Dibujo; DBC: Dibujo y
Construcción; HN: Historia Natural; M: Montes; SV: Selvicultura; T: Topografía y Matemáticas; TX: Topografía
Forestal y Xilometría

37 Pocos eran los lugares donde era posible aprender alemán en Madrid. El naturalista suizo Juan Mieg había dado
lecciones gratuitas de alemán en el ateneo, en la década de 1840. (Reig, 2009, 11).
38 Guía del Estudiante, Imprenta de Martínez, Madrid, 1851, p. 151. Para sus discípulos Mateo recomendaba las
obras de Regnaut, Goulard, Henrionet y Breton (en topografía y geodesia); las de LeRoy, Olivier y Adhemar (en
Descriptiva) y los Anales Franceses en Xylometría.

223
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Pascual nunca escribió un texto forestal, pero en el Diccionario de Agricultura


Práctica, aprovechando la voz montes, presenta un completo compendio sobre la
ciencia de montes (González-Doncel & Gil, 2013, 562). Años después aprovecha-
ría la ocasión de colaborar en la Revista Forestal, Económica y Agrícola (1868-
1875), fundada por su discípulo García Martino. Una revista que serviría, como
la Revista de Obras Públicas creada en 1853, “como plataforma de divulgación, de
intercambio de información y de airmación de la identidad profesional común: el espíritu
del Cuerpo” (Martykánová, 2007, 197).
En ese texto del Diccionario, siguiendo ielmente a Cotta, Pascual divide la
dasonomía en tres partes: dasótica, selvicultura y dasocracia. Pero quizás era en sus
crónicas de viajes que Pascual escribía de una manera más sencilla y accesible, y
donde podemos entender más claramente a qué se referían sus innovadoras ideas.
En 1863 pudo volver a visitar harand, “antigua metrópoli del mundo forestal”
(Pascual, 1863, 410) casi 20 años después de su etapa de estudiante con Enrique
Cotta. En 1869, cuando la Escuela de Villaviciosa de Odón estaba a punto de
trasladarse al Escorial, y en Italia se estaba inaugurando la Escuela de Vallombrosa,
Pascual tuvo la oportunidad de representar a España en este acto fundacional de
la ciencia de montes italiana (Pascual, 1869). Dos viajes de los que Pascual haría
crónicas en la prensa más general y en la más forestal.
Agustín Pascual no tuvo nunca reparos en considerarse discípulo e intérprete de
Enrique Cotta, al que había conocido en los primeros meses en harandt y del que
diría “reguló las rentas con arreglo al principio del crecimiento medio; propagó las cortas a
mata rasa, y de consiguiente las siembras y los viveros en cada monte; acortó los intervalos
en los clareos sucesivos y en las claras, y perfeccionó el método del monte medio; nada se
escapó a su examen” (Pascual, 1861, 219). La comunidad internacional de antiguos
alumnos de harand, que en 1863 se contabilizaban en “1.233 discípulos”, había
propagado “la doctrina, creando escuelas y ordenando montes dieron a la ciencia carácter
universal, fuerza de vida y aquella correspondencia con la cultura de los pueblos que
es fuente riquísima de adelantamiento y fundamento irme de la sociedad dasonómica”
(Pascual, 1863, 410). Para el primer ingeniero de montes español, su profesión era
“la más natural, la más sencilla, la más útil de todas las ocupaciones.” Su colectivo debía
“desterrar de los montes la arbitrariedad del capricho, entronizar la idea de plan, probar
que no se infringen impunemente las leyes de la naturaleza” (Pascual, 1863, 410). A
la hora de gestionar un monte, la ciencia de montes aportaba una herramienta
innovadora al gestor bien formado, aparecía el “trascendental progreso de llevar los
libros de aprovechamiento, base de la contabilidad, fotografía de lo pasado y guía de lo
porvenir.” Una herramienta que era elemento de un método nuevo, el pragmático,

224
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

que “divide el turno en periodos y destina a cada uno de ellos la corta, previamente cal-
culada, ora de árboles ora de rodales, fundado en esta determinación no solo el producto
futuro sino también el estado futuro del monte.” Herramientas y métodos útiles para
alcanzar el objetivo de conseguir “rodales uniformes”, hazaña posible únicamente
“estableciendo conversiones e ideando el plan de ordenación”, como se había hecho en
el bosque de harand. Puesta en el “horizonte la doctrina dasonómica”, se habría
obtenido “en cada periodo del turno una nueva clase de edad […] creando la escala
gradual y completa para alcanzar al in la realidad del monte normal” (Pascual, 1869,
613). Pascual había sido profesor de matemáticas y este hecho se haría evidente
en sus tareas como ingeniero. No sólo para dibujar los mapas forestales, que serían
documentos básicos en el que poder basar las posteriores acciones técnicas (Casals,
2008, 362; González, 1992), sino para hacer “muchísimos cálculos para determinar
las existencias y crecimiento” (Pascual 1863, 410), intentando que los resultados
originasen tablas experimentales. El objetivo de sacar mayor renta a los montes se
podía conseguir “por medio de reinamientos en el cálculo de crecimientos” (Pas-
cual, 1856, 270). Determinar la tasa anual de corta era para Pascual núcleo funda-
mental de la ordenación, ijando “con exactitud lo que cada año se debe sacar de un
monte” (Pascual, 1861, 259). Las tablas de producción,39 utilizadas en el momento
de hacer el apeo, se mencionaban ya en el Reglamento de Bosques Reales de 1847:
“Cuando los rodales sean iguales en especie y edad se separarán con arreglo a la calidad
según las tablas de producción.”40 En 1847 no había todavía tablas hechas por los in-
genieros españoles, y la tasación se haría “por ahora, con arreglo a las tablas de pro-
ductos de Enrique Cotta.” Las tablas servían al in y al cabo para medir el volumen
de los rodales a partir de la medida de los troncos de los árboles (Pascual, 1852b).
Para hacer los cálculos con buena deinición, se habían traído desde Alemania
instrumentos como una “plancheta de Lehmann” y un “theodolito de Breithaupt”,
útiles en asignaturas como Topografía (Pascual, 1852, 4). Había a disposición de
los estudiantes una especie de museo forestal donde destacaba la colección de ins-
trumentos dasonómicos comprados en Inglaterra (Deslandes, 1858, 79).
Pero la ingeniería de montes no debía estar sólo hecha de matemáticas y de
trabajo de gabinete; “hay quien mira la dasonomía como ciencia de gabinete, quietud
y entretenimiento y hay quien la mira como lo que es, de mucho trabajo, observaciones

39 Eran tablas que por especie o calidad, daban las existencias por hectárea a diferentes edades del rodal. Apenas
desarrolladas en Europa, en España no se desarrollarían hasta bien entrado el siglo XX.
40 AGP, Expediente AP: Personal 793/42, Reglamento Orgánico de Bosques Reales (irmado por Egaña en
Palacio el 19 de enero de 1847). Este reglamento, redactado por Pascual, fue la primera norma forestal no
coercitiva y de naturaleza técnica. Por primera vez en España unos pocos y privilegiados bosques se comenzaron
a aprovechar con criterios técnicos bajos los principios de conservación y mejora.

225
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

penosas y profundo estudio” (Pascual, 1863, 410). El trabajo de campo, las excursio-
nes, tendrían un lugar privilegiado dentro del programa escolar: “los discípulos de
primer y segundo año hacen las operaciones de cultivo y plantaciones en la cercanía de la
Escuela y estudian los métodos de beneicio, la localización y medición de las cortas en los
montes de Villaviciosa, Boadilla y Villafranca. Los de tercer año hacen una excursión
anual a los de San Lorenzo, donde estudian los métodos de aprovechamiento de monte
bajo y medio, tanto en robles como en encinas, y los de cuarto van también anualmente
a los pinares de Valsaín a estudiar los sistemas de ordenación en monte alto y el modo de
ejecutar esta clase de operaciones. Los discípulos de historia natural hacen casi diaria-
mente herborizaciones en las cercanías de la Escuela y una excursión anual a las sierras
vecinas… Los alumnos del segundo año levantan durante el mes de octubre un plano de
reglamento que es el de un monte tanto en su totalidad como en detalle… Los alumnos
de la clase de construcción forestal se ocupan en las prácticas relativas a las fábricas del
ramo, como sequerías, sierras de agua, depósitos de semillas, de leñas, de carbones, etc.;
trazan y construyen pequeñas comunicaciones forestales, calculan los volúmenes de des-
montes y rellenos… se les hace construir a título de experiencia algunas pequeñas obras
de las cuales hemos visto dos en este último año: una es un puente de 120 pies de largo y
otra es una casa para el guarda del campo forestal” (Pascual, 1852). Enseguida se vio el
espíritu práctico que le impregnarían Pascual y Torre Rojas a la escuela, adoptan-
do como lema “Saber es hacer. El que no sabe no hace.”41 La teoría como compañera
y no maestra exclusiva de la enseñanza. Las cátedras al aire libre cuando fuera
posible. Las excursiones eran una “necesidad imprescindible,” ejecutadas en largas
jornadas a pie, que contribuirían para dar a los ingenieros de montes “esa robustez y
agilidad que tanto debe distinguirlos de los demás Cuerpos.” Para Rojas, militar de ca-
rrera, la disciplina, “a la antigua, con Espíritu de Cuerpo a la moderna,” también era
importante, sin dejar, quizás, de dispensar los tratos jerárquicos, de tal manera que
“donde haya Capitán en pie, según dice la Ordenanza Militar, no podrá haber sentando
ningún subalterno”(García, 1948, 43). La parte práctica de la formación era funda-
mental: “Los ejercicios de guardería, de peguería y los demás oicios de los montes todos se
practicaban sobre el terreno haciendo, a pie, las excursiones necesarias bien al Escorial y
a La Granja, ya a Coca en Castilla la Vieja, bien a cualquier otro punto que se juzgaba
conveniente. La jornada penosa del Escorial a La Granja la andaban los alumnos en un
día a instancia y contento de ellos. […] Las prácticas de botánica, de mineralogía y de

41 Torre, 1866, 1 (La copia de este manuscrito, conservado en la biblioteca de la escuela de montes de Madrid, ha
pertenecido anteriormente a los ingenieros de montes Jorge Torner y Luis Velaz de Medrano. Muchas de las
ideas relatadas por Pío García Escudero en 1948 fueron copiadas de un texto de Torner de 1926)

226
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

Figura 1. Mapa de los alrededores de Madrid, copia de otro realizado durante la invasión napoleónica (detalle).
Cartoteca del Ejército, Madrid, 144. Se aprecia el mal estado de la Casa de Campo, y las masas forestales
cercanas a Villaviciosa de Odón: los montes de Boadilla, Romanillos o Villafranca.

geología se hacían sobre el camino y en puntos designados en las mismas excursiones, ve-
riicándolas directamente a Aranjuez, cuando se trataba de estudiar los árboles y plan-
taciones exóticas que no se encontraban en los montes… La subida al pico de Peñalara,
en las excursiones de mayo de 1850 estando aun cubiertas de nieve aquellas sierras, es un
hecho tan notable, así por las diicultades que ofrece su ejecución, como por el arrojo que
supone en los individuos que la acometen… Las vacaciones de Pascua se empleaban en
examinar los viveros y museos de Madrid, y en las de verano llevaba cada uno trazado
el trabajo que, debía ejecutar en las inmediaciones del pueblo en que iba a disfrutarlas.
Estos trabajos se presentaban en la Escuela, al abrirse en el mes de octubre los cursos…
Los objetos y plantas que se recogían en las excursiones, también se presentaban, donde
se celebraba una especie de certamen público en que, cada individuo daba razón de los
objetos que había recolectado. Estos alardes (que así se llamaban) fueron precisamente los
que más llamaron la atención del General Zarco del Valle, director general de entonces
“ (Torre, 1866, 9). Rojas lamentaba el hecho de no haber conseguido implantar
la disposición sajona en virtud de la cual iban “los alumnos de montes a los distritos
forestales antes de entrar en las clases teóricas porque los hombres de nuestra raza no
conciben que, pueda preceder la práctica a la teoría en ninguna clase de enseñanza. Este
error lamentable, al menos en la carrera del Cuerpo de Montes, priva al Gobierno de co-
nocer anticipadamente las condiciones físicas de los jóvenes que, se dedican a un servicio
tan penoso y a los individuos los priva igualmente de medir sus fuerzas y conocer su vo-
cación para abrazar con conianza la vida trabajosa que les espera.” A pesar de lo cual,
se trató que la parte práctica dominase la enseñanza, “así se veriicaba, por ejemplo,
cuando hallándose invadeable el Guadarrama, en las avenidas del invierno, había que

227
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

pasar el río por el puente de Brunete para venir a trabajar en el plano del monte, casi
en frente de Villaviciosa, regresando al pueblo bien entrada la noche.” (Torre, 1866, 6)
Con el pasar de los años, la excursiones se irían alejando de la sierra madrileña,
y aventurándose a puntos más apartados de la península. Estas salidas serían re-
cordadas por antiguos alumnos, como Castel. “Tan solo faltaba un punto de prácticas
para los trabajos de ordenación; y a remediar esto tendieron siempre las excursiones veri-
icadas generalmente en la época de primavera y verano, visitando unas veces los pinares
de la Sierra del Guadarrama; recorriendo otras los hayedos y robledales de Liébana; ya
los abundante pinares de Coca, donde a la vez podía estudiarse la resinación; bien los
magníicos montes de Valsaín y del Espinar, o los que forman la gran masa de las Serra-
nías de Cuenca, y de Segura en la provincia de Jaén.42 En estas excursiones acompañaba
siempre a los alumnos algún profesor, que [...] siempre al llegar al punto convenido hacía
ejercitar a los alumnos en la ijación de rodales, determinación de las clases de edad y de
las existencias, cálculo de la posibilidad y tantos otros problemas como encierra la compleja
cuestión comprendida en la Ordenación de un monte” (Castel, 1877, 38).
La ingeniería de montes, como otras como la agronomía (Pan-Montojo, 2007,
79) habían sido concebidas también como una elite de técnicos iltrados por cri-
terios como la buena presencia física o la forma de expresarse, indicativos de su
correcto origen social. Por eso, “el vestuario de campo que usaban los alumnos, el capote
de monte, el coleto de cuero, las botas hasta medio muslo, las carteras de campaña que
llevaban a la espalda, la bandolera de guardabosques que distinguía a los brigadieres
de los cursos y que será al in la divisa del cuerpo, todo revelaba el espíritu práctico de la
institución [...] Mucho valieron estos hábitos de fuerza a nuestros primeros ingenieros,
pues cuando esperaban ver en los distritos unos niños lojos, endebles, criados en Madrid,
se encontraban con unos jóvenes tan fuertes que no podían seguirles en sus marchas, a pié,
por los montes, ni aun los guardas más robustos y andadores […] La ciencia sin aptitud
física en los trabajos de campo, es una letra muerta que embaraza bastante las operaciones
y que lastima, más de los que se cree, la reputación de las personas que las dirigen” (Torre,
1866, 9). Los alumnos que ingresaron en 1848, debían llegar a Villaviciosa con al-
gunas prendas hechas por su cuenta, pero siguiendo modelos muy deinidos; estaba
la ropa de montes pero también “un pequeño uniforme compuesto de piquesa o casaca
corta de paño verde, con pantalón, corbatín negro, guantes de cabritilla, cuchillo de monte
con tirantes y gorra con escarapela nacional y los signos de la profesión.”43 En 1858 es

42 El profesor Navarro Reverter narró una de esas excursiones a Jaén, en el primer volumen de la revista forestal en
1868 (páginas 342-345, 423-430). El grupo solo llegó a la Sierra después de “interminables jornadas, grandes
fatigas, ardientes calores, importantes aguaceros.”
43 Instrucción para los pretendientes de plazas de alumnos internos y externos en la escuela de ingenieros de montes,

228
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

Figura 2. Plantación de árboles en la Dehesa de Amaniel, Madrid. La Ilustración Española y Americana. 30 de junio
de 1890. El uso de tiendas de campaña se seguía manteniendo, si bien el arbolado de Madrid estaba dirigido por un
agrónomo, Celedonio Rodrigáñez (1860-1913).

aprobado el uniforme del cuerpo de ingenieros de montes, que incluía “una corbata
blanca o negra, según los casos.”44
Los alumnos de la primera promoción no dejarían de recordar los primeros exá-
menes de julio de 1848, en el Monte de las Huelgas.45 Un examen en el que que-
daron los primeros Madariaga, García Martino, Laguna, Antonio Zecchini y Juan
Antón Villacampa,46 que no habían sido los mismos que habían destacado en el
examen de apertura, meses antes. Así lo recordaba Castel, quien cantaría las mis-
mas canciones años más tarde: “Se levantó al efecto en el lugar indicado una bonita y
apropiada tienda, adornada con el escudo nacional y los emblemas del Cuerpo [...] allí,
bajo las copas de los árboles, se hizo la primera caliicación, que fue expuesta - curioso
detalle - en el tablero de una plancheta [...] Para mantener la jovialidad, avivando a
la vez el deseo y el entusiasmo, se entonaba por los jóvenes alumnos el llamado “Himno
forestal,”47 compuesto por uno de ellos... Dieciocho años más tarde cantábamos, los discí-
pulos de aquellos, el mismo “Himno” al despertar en los pinares de la cordillera de Gua-
darrama” (Castel 1877, 34).

aprobada por RO de 11 de septiembre de 1847. Legislación de Montes, Imprenta Nacional, Madrid, 1859, p. 117.
44 Legislación de Montes, Imprenta Nacional, Madrid, 1859, p. 444.
45 En la prensa madrileña se mencionaban subastas de leñas de los montes de la condesa de Villaviciosa, concreta-
mente del “rancho de las Huelgas”. Diario oicial de avisos de Madrid, 11 de septiembre de 1848.
46 El Heraldo, 26 de julio de 1848, p. 4.
47 “Mirad de los pinos / las copas gigantes / Sabio Cotta, tus hijos de España / invocando tu nombre inmortal / a
su patria los frutos prometen / que tu genio produjo en harandt / Compañeros, sigamos la senda / que la mano
de Cotta trazó / nuestra ciencia dirá nuestros hechos / nuestra fuerza será nuestra unión” (Brown, 1886, 150)

229
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

En Villaviciosa no debió acudir ninguna autoridad destacada a la inauguración


de las clases si bien, meses más tarde, el ministro de Comercio realizó una visita
sorpresa, lo que también había hecho a instituciones como el Jardín Botánico de
Madrid.48 Una diligencia diaria unía el pueblo (con 912 almas) con Madrid, y el
correo se recibía tres días por semana, a través de una persona que lo recogía en
Móstoles (Madoz, 1850, 303). Otro de los visitantes ilustres fue el botánico Miguel
Colmeiro, quien envió a Portugal una descripción de la Escuela en 1858. Colmeiro
destacaba las prácticas en los montes antes citados, o los trabajos de construcciones
forestales; “como está, a Escola de Villaviciosa tem direito a aspirações de rivalidade com
outras escolas de muito anterior fundação”(Deslandes, 1858, 181).
Por lo menos desde enero de 1848 hasta inales de 1855, Pascual mantendría
una estrecha relación con la escuela de Villaviciosa de Odón. Pero su posición
como profesor llegaría a su in cuando fue creada en Madrid, en el ministerio,
una Junta Facultativa de Montes. Una RO de 14 de noviembre de 1855 organi-
zaba esta Junta, con independencia de la Junta Consultiva de la Escuela Especial.
Su presidente sería el ministro de Fomento (en su ausencia el director general de
agricultura, industria y comercio). Sus miembros serían los más altos grados del
escalafón del cuerpo de montes.49 Desde el primer momento, Pascual sería el vi-
cepresidente, Indalecio Mateo y Bosch los vocales, y Bravo el secretario.50 Si bien
Mateo pudo seguir ocupando la cátedra de Topografía, no fue así para Pascual,
Bosch o Bravo quienes serían trasladados permanentemente a Madrid (Pascual
nunca había dejado de estarlo, por su cargo en la Casa Real), y propondrían entre
los ingenieros del Cuerpo, “los más a propósito para el desempeño interino de las cáte-
dras de Dasonomía e Historia Natural.” Los sucesores no dejarían de ser ingenieros
con una formación completada en harand, lo que debió dejar fuera a un personaje
como Lucas Olazábal.

48 Boletín del Ministerio de Comercio, 1848, tomo IV, p. 501.


49 El escalafón de los ingenieros ofrece información sobre la plantilla del Cuerpo, sobre el número de los ingenieros
en activo en cada año, sobre las bajas y las jubilaciones y sobre la pirámide jerárquica de este cuerpo de funcio-
narios. Para los de montes, el que hemos encontrado más antiguo es de 1859. Boletín oicial del ministerio de
fomento, Imprenta nacional, Madrid, 1859, pp. 205-206. La Revista Forestal publicaría algunos desde 1871. El
de este último año supone una fuente excelente para tener un listado de casi todos los alumnos de la escuela de
Villaviciosa.
50 Guía de Forasteros, 1857, 474.

230
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

Figura 3 - Plano del Campo Forestal de la Escuela de Montes (Pascual, 1861, 217)
Figura 4 - Plano del Campo Forestal de la Escuela de Montes (Pascual, 1861, 217). Detalle donde se aprecia el
castillo donde se impartían las clases teóricas, el rodal de plátanos (1) y el rodal de arce negundo (2). Se reconoce
la fuente de los caños (30).

EL ARBORETO DEL CAMPO FORESTAL,


UNA HERRAMIENTA PEDAGÓGICA DE TOQUE FRANCÉS

Precisamente, ese espíritu tan práctico hizo enseguida evidente que serían nece-
sarios más terrenos donde realizar los ejercicios, cercanos al ediicio de la escuela.
Sobre el viaje de Pascual comenzado en 1842, habría que estudiar con más detalle,
por ejemplo, su paso por el establecimiento agronómico de Grignon, cerca de París,
donde pudo ver por primera vez “un arboreto, clasiicado cientíicamente” (Pascual,
1847a, 365). Pascual se haría con los planos del arboreto de Grignon, del Bois de
Boulogne en París y del arboreto de la escuela de montes de Nancy, que serían
claves en el momento de la concepción del arboreto de la escuela de Villaviciosa de
Odón, el primero con ese nombre en España (Figura 3).
Tomaba contacto así con una herramienta innovadora de instrucción botánica,
con la ventaja de que “viendo agrupados los vegetales por sus ainidades naturales, se
adquiere el espíritu de comparación, se entienden las ideas y se ija la instrucción sólida
y positiva en lugar de vaguedades, que conducen al hombre a discernir sin consciencia”
(Pascual, 1847a, 1). Dividido el arboreto en familias, se tendría “un libro vivo de bo-
tánica, mucho más exacto que todas las descripciones gráicas.” A diferencia de un jardín
botánico clásico, los árboles de diferentes edades permitirían “hacer observaciones
relativas al crecimiento.” Dividiendo el espacio en “rodales de estudio,” era posi-
ble conocer la marcha de la “vegetación en masas” (Figura 4). La determinación
del turno técnico implicaba conocer la ley de los crecimientos de la masa forestal
(González-Doncel & Gil, 2013, 578), ya que su valor coincidía con el momento

231
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

en que el crecimiento medio en volumen de madera era máximo. En el estudio del


crecimiento en volumen de la madera era necesario conocer elementos como la
inluencia que la calidad del suelo ejercían sobre la vegetación o el nivel más ade-
cuado de espesura de los rodales. Hay que recordar a Máximo Laguna como uno de
los primeros botánicos españoles en subrayar la importancia del “temperamento”
de las especies, el modo de reaccionar, a condiciones climáticas como la luz solar
o el frío en que se desarrollan; consideraciones que son requisito importante a la
hora de aplicar las cortas para lograr la regeneración natural. Hablando sobre unos
pinsapos plantados en el arboreto del campo forestal,51 Laguna comentaba que
ya habían soportado temperaturas de menos de 16 grados bajo cero, y más de 48
(Laguna, 1870, 118). Para poder hacer esas observaciones la escuela contaba con
el segundo observatorio meteorológico de la provincia de Madrid, bien surtido de
instrumentos como el del Observatorio de Madrid (Prado, 1864, 28).
La huerta arrendada a Valdés en septiembre de 1847, que sirvió de semillero y
almáciga, con las semillas que recogían los alumnos en las excursiones,52 se mostró
enseguida insuiciente. En agosto de 1849, Rojas hizo los contactos para arrendar
algunas tierras que rodeaban al castillo, unas de particulares (entre ellas algunas
fanegas del Condado) y otras del ayuntamiento (conocidas como Prado Redondo,
con una olmeda), donde se formaría un “campo forestal.”53 El campo serviría para los
“viveros y depósito, cuanto para siembras de asiento, plantaciones, rodales de observación,
arboreto, práctica de riego y ejercicio de terraplenes y desmontes. ”54
En mayo de 1850, se realizaron las escrituras del arrendamiento del Prado Re-
dondo entre la escuela especial (representada por Bernardo de la Torre) y el ayun-
tamiento de Villaviciosa (representada por el que, en aquel entonces, era el alcalde
corregidor, Joaquín Francisco Campuzano, y quien había necesitado la autoriza-

51 Laguna había visitado el pinsapar de Ronda en marzo de 1868 (Laguna, 1868).


52 Revista Forestal, Económica y Agrícola 1871, p. 26.
53 AGA 5/16/32/16333, Oicio de 20 de julio de 1849, el Director de la Escuela pide autorización para “comprar a
censo reservativo o arrendar a largo plazo varias tierras que se hallan en las inmediaciones del Ediicio que ocupa
la Escuela y que dice son necesarias para la enseñanza práctica de la parte técnica y principal de la Selvicultura”;
oicio de 4 de noviembre de 1849, Director remite el pliego de condiciones formado por el Ayuntamiento, para
el terreno “en que se ha de formar el campo forestal del establecimiento”. El director maniiesta que del plano
que se ha levantado para redondear el campo, se ha necesitado incluir 13.5 fanegas de tierra del Condado de
Chinchón, que él puede arrendar como apoderado… El precio total del Campo asciende a la suma de 4900
reales anuales incluido el arbolado. Las indemnizaciones a los colonos que ocupaban las tierras no asciende a
1000 reales. El pliego indica 45 reales la fanega, y las del Condado a 30.
54 AGA, 5/16/32/16333; Carta de Bernardo de la Torre al Director General de Agricultura, 10 de julio de 1855,
Madrid, Huerta arrendada por 10 años en 11 de septiembre de 1847, destinada para el cultivo de los semilleros,
por dos años “sirvió de almáciga a la mayor parte de las especies leñosas que posee le escuela”, pero se vio que era
necesario un terreno más extenso para “viveros y depósito, cuanto para siembras de asiento, plantaciones, rodales
de observación, arboreto, práctica de riego y ejercicio de terraplenes y desmontes”. Por fortuna el ayuntamiento se
prestó a facilitar el Prado Redondo, autorizando SM a la Dirección que me está coniada a su arrendamiento…

232
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

ción del jefe político de la provincia).55 Unas semanas más tarde se irmaron las
escrituras de arrendamiento con la Casa de Chinchón. Como Bernardo de la Torre
representaba a las dos partes, en este caso representó a la escuela y por la Condesa
irmó su administrador de los bienes en la villa, Celestino García. Los dos arrenda-
mientos fueron irmados por 12 años.56 En junio el ministerio aprobó los contratos,
resultando tras la realización de la tasación y del plano un terreno de 52 fanegas,
donde había un total de 5.330 árboles. Según Rojas, hubo que debatir la elección
del título de Campo Forestal: “se le dio el indicado nombre, previo algunos debates
sobre la propiedad de la palabra, porque habiendo de comprender el arboreto y el jardín
de ensayos y otras dependencias semejantes, no se encontró ninguna otra denominación
más comprensiva ni adecuada al destino que iba a dárselo… Siendo el terreno bastan-
te accidentado, hubo que hacer desmontes y rellenos considerables, a cuyas obras no solo
concurrieron personal y materialmente los alumnos, sino también los profesores, y aun
yo mismo participé en ellas, a pesar de mis años y de mis achaques. Todo quedó concluido
durante el verano y en el otoño principiaron las plantaciones y viveros de las especies más
notables” (García, 1948, 48). La Escuela, en los primeros cinco años, mejoró nota-
blemente los terrenos del Campo: “Se cercó con setos vivos, se cursó de caminos y puen-
tes forestales, se regularizó el riego, asegurando las aguas con minas, estanques y caceras, se
alumbraron nuevos manantiales y se distribuyó el terreno, poblando sus cuadros y tramos,
con un vivero, un arboreto y numerosos y variados rodales, construyendo también una
casa para habitación del Guarda y depósito de las herramientas más precisas de campo.”57
Como hemos visto, el vivero estuvo situado primero en la huerta alquilada en 1847,
donde se cultivaban árboles procedentes de los bosques reales o se sembraban se-
millas compradas en los mercados extranjeros. Se traían semillas de los cultivos del
Campo Experimental de Estepas del Real Sitio de Aranjuez (Pascual, 1856, 275).
El arboreto era el espacio donde los alumnos observaban los procesos de me-
jora del suelo, o de plantación de especies españolas o de otras introducidas desde
otros países. La ingeniería de montes española mantuvo desde sus inicios un gran
interés por esta última cuestión. Recordando los esfuerzos de innovación biológica,
este arboreto debió ser uno de los primeros lugares en España donde se plantaron

55 Tres años antes se habían vendido cien álamos del mismo Prado Redondo. Archivo de Protocolos de Madrid,
30742, Escrituras de 1847, Mariano Ramos Fernández, Folio 139, 29 de septiembre de 1847, venta de 100
álamos en el Prado Redondo de los propios, alcalde Manuel Menéndez y Vicente Flores regidor.
56 AGA, 5/16/32/16333, Escritura del arrendamiento.
57 AGA 5/16/32/16333, Carta de Bernardo al Director General de Agricultura, 10 de julio de 1855.

233
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

especies como los cedros,58 o los eucaliptos.59 Algunos historiadores del jardín ro-
mántico en España ya han señalado un fenómeno propio de estos años, “la moda
de las coníferas”, fomentada en parte “por el concepto sanitario de la vegetación
que prescribía, para la mejora de la higiene pública, la preferencia por las especies
de hoja perenne, por que su función oxigenadora se prolonga durante todo el año.”
(Rodriguez, 2002, 36). No nos parece ese el argumento que hubiera fomentado este
tipo de plantaciones en el arboreto de Villaviciosa, pero sí es cierto que en estos
años se plantaron coníferas extranjeras como los cedros, y nacionales como los
pinsapos. El arboreto estaba en contacto con otros viveros que Pascual y Fernando
Boutelou habían instalado en las Huertas de San Jerónimo de Madrid, donde se
plantaban coníferas compradas en Escocia, como Abies excelsa, Larix europeae,
Pinus sylvestris o Pinus caramaniaca.
No hay que olvidar que profesores como Miguel Bosch, en sus visitas a las Ex-
posiciones Universales, no dejaban de admirarse con las posibilidades del género
eucalyptus. Los expositores australianos llegaban a mostrar piezas colosales de 61
metros de longitud, como una que se enseñó en Londres en 1862 (Bosch, 1863,
314). La misma impresión vivirían los siguientes ingenieros españoles que asis-
tieron a estos eventos internacionales como representantes del gobierno español.
Jordana, al pasar por la de Filadelia en 1878, no dejaba de estar impresionado
por el rápido grado de civilización que colonias inglesas como Nueva Zelanda y
Australia habían alcanzado, poseedores de árboles y bosques que ya rivalizaban con
las secuoyas de California ( Jordana, 1878, 7). Los eucaliptos, también conocidos
entonces como los “gomeros de Australia”, pasaron a ser una posibilidad evidente
en la “regeneración forestal” española: era nada más y nada menos que un “árbol
providencial” (Ventalló, 1877, 4). Un fraile español emigrado fue de los primeros
españoles a enviar semillas de eucalipto, a Galicia, en 1846. En uno de sus libros
lo trataba de majestuoso, en ese país “el árbol más útil y ventajoso para el hombre”
(Salvado, 1853, 58). Exposiciones regionales como la de Santander de 1866, sirvie-
ron de palco de las experiencias que personalidades conocidas como Marcelino de

58 Dos árboles singulares clasiicados del municipio de Villaviciosa de Odón, actualmente, son dos cedros del
Himalaya (Cedrus deodara), muy posiblemente plantados durante la vida de la escuela de montes. También
hay un ciprés de Monterrey (Cupressus macrocarpa). El mapa del Campo Forestal de 1861 menciona un rodal
de ciprés. En la voz Cedro, del Diccionario de Agricultura Práctica, Pascual comenta que fue su compañero de
la Casa Real, el jardinero real de origen francés Francisco Viet, el que introdujo el Cedrus deodara en España
(Pascual, 1852a, 184).
59 La fecha de establecimiento deinitivo de los eucaliptos en España con la información existente, se podría situar
en la década de 1850 y en Cataluña. Gracias a la Memoria de la Exposición de la Agricultura Española que se
celebró en Madrid en 1857 tenemos un dato a resaltar. Un propietario rural de San Juan Despí en Barcelona,
Ventura de Vidal, fundador de un establecimiento de Agricultura en 1853, presentó gran cantidad de plantas vivas
procedentes de todos los continentes y, entre ellas, incluía Eucalyptus capitellata Smith.

234
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

Santuola estaban realizando en sus incas, con este “notabilísimo árbol” (Ezquerra
& Gil, 2004, 121). Un ingeniero civil francés, Stanislás Malingre, miembro de la
“Societé Imperiale Zoologique d’acclimatation”, fue otro de los grandes divulgadores
de esta especie en España. Estuvo en la Exposición de París de 1867, y destacó de
Australia “la analogía de las condiciones físicas y climatológicas”60 de sus provincias
meridionales. Este francés residente en España se puso en contacto con el ministro
de Fomento español para que plantara este árbol, aprovechando los dineros de las
cortas de los pueblos que no se habían gastado.61 Pequeños municipios, como Ver-
gara u Horta, ya lo habían empezado a plantar por su cuenta.62 Siguiendo los pasos
de Argelia, ciudades como Madrid o Barcelona ya podían contemplar eucaliptos,
“que balancean en el aire con gracia su elegante y frondoso ramaje.”63 Además, si las
características de esa nueva madera eran prometedoras, la industria farmacéutica
también había fomentado sus plantaciones en Barcelona o en La Mancha,64 por lo
menos desde 1862.
Hubo un momento en que el arrendamiento del Campo Forestal corrió peligro.
En mayo de 1855, con la Ley de Desamortización General de Madoz, comenzaron
a ser desamortizados muchos montes municipales, lo que incluía el propio monte
de la escuela de Villaviciosa, que seguía siendo propiedad del ayuntamiento.65 Ber-
nardino Núñez de Arenas,66 quien fue director en lugar de Rojas durante nueve
meses, sería el autor de un texto arremetiendo contra la venta incontrolada de los
montes municipales (Núñez, 1854), lo que estaba siendo debatido en ese mismo

60 La España, 10 de septiembre de 1867, Estanislao Malingre, en un artículo sobre las maderas que Australia.
61 La Época, 7 de febrero de 1867, p. 2.
62 La Iberia, 9 de mayo de 1866, p. 3, “en Barcelona, a pesar del fabuloso precio al que se paga la semilla, Mr.
Barlan ha empezado el cultivo a grande escala en el criadero situado al lado del ferrocarril de Sarriá, y en de la
torre de la señora viuda Codolá, en el término de Horta, en donde tiene más de cincuenta mil plantones”; La
Correspondencia de España, 7 de abril de 1868, p2, alcalde de Vergara había plantado un Eucaliptus globulus,
“para perpetuar la memoria del convenio y del abrazo de Espartero”.
63 La Época, 26 de febrero de 1868. Fomento estaba repartiendo una gran cantidad de semilla de globulus, que en
parte recibió de Malingre. Antes de 1856 el cultivo en Francia e Inglaterra se había perdido por completo, y el
señor Ramel, desde Melbourne, empezó a remitirlo a Europa desde ese año en gran cantidad… En Argelia ya
había millones de pies, de los plantados desde 1862. En España ya se podían contemplar algunos en Madrid,
Barcelona y Andalucía.
64 La nueva Iberia, 6 de agosto de 1868, p. 4, menciona experiencias de 1865 en la Granja Experimental de Barce-
lona, por el director José Tristany. El artículo menciona otras plantas introducidas desde 1862 en La Mancha, en
Navalpino, en la Dehesa de Santa Catalina, en un jardín que ya contaba con más de 1000 pies para suministrar
una Farmacia en Madrid.
65 El Gobierno pretendía vender la totalidad de los bienes propios y comunes de los pueblos. Un artículo aclaraba
que se exceptuarían los que por causas que allí no se especiican, se considerara inoportuno enajenar (citando ya
a las dehesas boyales).
66 Arenas fue elegido diputado a cortes en seis ocasiones, por las circunscripciones de Ciudad Real (1940), Madrid
(1844) y Toledo (1857-65). Parece ser que gracias a a su inluencia, el trazado de la línea de ferrocarril de Ma-
drid a El Escorial se desvió varios kilómetros respecto al originalmente proyectado (más corto y menos costoso
que el inalmente realizado), evitando que se aproximara a Villaviciosa de Odón. Así, complacía a su familia y a
otros prohombres aincados en esa localidad, que veían temerosos la avalancha de veraneantes de la clase media
que hubiera supuesto la llegada del ferrocarril (Puell, 1997).

235
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

momento en las cortes liberales.67 Para evitar la venta del campo forestal, Rojas,
en ese momento senador y nuevamente incorporado a la dirección de la Escuela,
escribió en julio de 1855 al director general de agricultura pidiendo que se suspen-
diera la venta de esos terrenos, proponiendo que el ministerio los comprase. Los
terrenos no llegaron a ser enajenados y el expediente fue anulado en octubre de
1856,68 cuando los moderados regresaron al poder. Los montes exceptuados, que en
un principio se limitaban a terrenos de aprovechamiento común, en julio de 1856
se habían ampliado a dehesa boyales “o terrenos destinados al pasto del ganado de
labor de la población” ( Jiménez, 1996, 207; Linares, 2001, 28; López, 1992).69 Se
debía estudiar la especie principal del monte, lo que permitía la arbitrariedad a la
hora de deinir el comportamiento de los ingenieros encargados de hacer los reco-
nocimientos cientíicos.70 En febrero de 1862 se reactivaron las ventas, en particu-
lar las de las incas de menos de 100 hectáreas, lo que era el caso del arboreto. Un
nuevo catálogo de montes exceptuados se publicaría en 1862. El entonces director
interino de la escuela, Indalecio Mateo, volvió a dirigirse al director de agricultura
proponiendo su adquisición por cuenta del estado, “para las lecciones de Historia
Natural, Selvicultura y Ordenación.”
En el año de 1862 se procedió a la tasación de la inca, con la preparación de un
nuevo plano (que no hemos encontrado), lo que permitió medir y valorar el arbola-
do plantado por los profesores, y comparar esos valores con los de las incas que la
escuela había arrendado en 1850 a la Condesa y al Ayuntamiento. La valorización
de los terrenos resultaba espectacular: “los valores en su primitivo estado para el Prado
Redondo y para los terrenos del Condado eran de 74.423,99 reales y 15.914,23; en ese
momento eran de 317.440,83 y 80.827,92.”71 Si en Prado Redondo apenas se podían
encontrar al principio poco más de 5.000 olmos, el arbolado de 1862 mostraba una
variedad destacable, divididos entre los árboles plantados en los rodales de regadío
(castaños, acacias, robles, plátanos, nogales, avellanos, cedros de Virginia, cedros

67 El texto comienza con una carta de agradecimiento de Indalecio Mateo y Lucas Olazábal, profesores de la
Escuela en ese momento. La obra es de hecho una serie de cartas que Arenas le escribe al ministro de fomento
desde octubre de 1854 a noviembre del mismo año. Arenas aprovecha las cartas para pedir algunas mejoras en la
escuela: dos nuevas cátedras (derecho administrativo y química orgánica); más formación práctica en los distri-
tos; la creación de una Junta Superior Facultativa del Cuerpo. La polémica creada llegaría a provocar la dimisión
de Arenas.
68 AGA 5/16/32/16333, Carta de Rojas al Director General de Agricultura, 10 de julio de 1855, Madrid,
69 En el caso de las dehesas boyales, los pueblos no tenían que presentar los títulos de propiedad; sólo debían de-
mostrar, a través de los recuentos ganaderos, la necesidad de los espacios solicitados. Ahí empezaría el conlicto
con las delegaciones iscales sobre la talla de los espacios necesitados.
70 Según Laguna (1870, 14), la presencia de robles quejigos en los alcornocales de Cádiz había permitido salvar
a éstos de su venta, como había sucedido en el resto de España; “bien puede decirse que este pigmeo salvó del
hacha a aquellos gigantes.”
71 AGA 5/16/32/16333, Oicio de 12 de septiembre de 1862

236
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

de Méjico, tuyas, etc.), los árboles en los barrancos (chopos lombardos y plátanos),
los árboles del arboreto clasiicados por familias botánicas, los árboles del vivero
(acacias blancas, olmos piramidales, olmos de Canadá, castaños de Indias, chopos
balsamíferos…), los setos vivos (con acacias de púas) y las plantaciones lineales
(con chopos carolinos, chopos berrugosos, sauces…). La tasación incluía algunas
de las obras acometidas por el Estado para la mejora de la enseñanza como la
casa del guarda, cuatro estanques, un invernadero de madera, un puente sobre el
arroyo de San Juan, etc. Todas las plantaciones y obras pasaban a ser propiedad de
los arrendadores, y si el estado quería adquirir el conjunto, debía colocar más de
600.000 reales de vellón.72
Durante los años de formación del Campo Forestal, sabemos por lo menos de
cinco ingenieros de montes (tabla 2), formados en Sajonia, que serían profesores
de la nueva escuela de Villaviciosa de Odón. Después de Agustín Pascual viajarían
también Máximo Laguna (1822-1902), Joaquín María de Madariaga y Ugarte
(1823-1885), Francisco García Martino (1828-1890) y Luis Bengoechea. Laguna
sería el único que dedicaría la mayor parte de su carrera a la enseñanza. Los otros
discípulos de harand se fueron integrando poco a poco en el servicio forestal de
la Casa Real, en el cuerpo de montes del ministerio, o en servicios particulares
para grandes propietarios forestales españoles. La relación de todos los becados en
Alemania es una de las mejores evidencias del valor que se le dio a la formación
alemana. Se les envió incluso formados ya en España (Villaviciosa de Odón) o en
Francia (Nancy), como Antonio María Segovia.

72 La escuela de montes abandonaría Villaviciosa de Odón en 1869, y el campo forestal fue devuelto automáti-
camente a sus legítimos dueños, al ayuntamiento y al condado de Chinchón. Sobre el arbolado de la zona del
condado, tenemos algunos datos de los años siguientes. En 1874, sin los riegos que aseguraba la escuela, la mayor
parte del rodal de fresnos se estaba secando y el administrador del condado en Villaviciosa le proponía al apode-
rado que se cortarse la madera, antes de que la gente del pueblo se la llevase. En cuanto al resto del arbolado, que
“sin gastos de guardería, pueda conservarse el mayor número posible del arbolado de secano que dejó la escuela
de montes en las tierras de la casa, para que sirva de estímulo a la ocupación del ediicio a la vez que producen
alguna renta para ayuda de su entretenimiento y conservación.” Oicio del administrador Celestino García al
apoderado en Madrid 5.12.1874, ARM, 21503.

237
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

TABLA 2. RELACIÓN DE LOS ESTUDIANTES IBÉRICOS EN LA ESCUELA DE THARANDT.


Incluimos dos estudiantes portugueses como pequeña muestra de la evolución, muy paralela aunque
levemente posterior, del país vecino respecto a la transferencia de la ciencia de montes alemana.

Año llegada Tharandt Financiación Beca Primer Empleo

Agustín Pascual 1843 Casa Real (CR) CR


Esteban Boutelou 1843 CR CR
Antonio Campuzano 1847 CR CR
Antonio M Segovia 1853 (tras Nancy) CR CR
Luis Bengoechea 1854 (tras VdO) Ministerio Fomento (MF)
Máximo Laguna 1854 (tras VdO) MF Escuela (1857)
Joaquín M de Madariaga 1854 (tras VdO) MF Escuela (1857)
Óscar de Olavaría 1856 (tras VdO) MF
Adolfo Frederico Moller 1857 Governo Portugal (GP) Administraçao Matas
Francisco G Martino 1858 (tras VdO) MF Escuela (1856)
Ramón de Xérica 1858 (tras VdO) MF
Ignacio López de Ayllón 1860 CR CR
Antonio de Villamor 1860 CR CR
Bernardino Barros Gomes 1862 GP Administraçao Matas
Tomás López de Arroyave 1864 Diputación Álava
Eleano de Ugarte 1865 (tras VdO) MF
1866 (tras VdO) MF

Fuente: Soto, 2006; Devy-Vareta, 1999.

ENTRE EL MOVIMIENTO EDUCATIVO ALEMÁN Y EL SISTEMA ADMINISTRATIVO


ESPAÑOL: ALGUNAS CONSIDERACIONES

La manera en que las carreras profesionales y el proyecto educativo de estos


ingenieros de montes formados en Alemania evolucionaron dependió de varios
factores. A su regreso a España, Pascual encontró el suiciente apoyo de varios
responsables de la intendencia de la Casa Real, así como de varios ministros. Las
pensiones en Sajonia fueron profesional y políticamente selectivas. Si bien algunos
de los pensionados acabaron sus días trabajando para grandes casas de la nobleza, la
gran mayoría de los formados en harand y en Villaviciosa de Odón fueron, antes
o después, funcionarios de Estado.
En la escuela de Villaviciosa, aunque el contexto no dejaba de ser bastante con-
trolado, se adoptaron muchas de las nuevas ideas germánicas, si bien algunas, como

238
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

el que un periodo de prácticas precediese a la educación teórica, no se llegaron a


aceptar. Se crearía una nueva escuela de ingenieros diferente de la de caminos, de
inluencia francesa más marcada, pero con bastantes puntos en común con la de
minas, donde la inluencia sajona se dejaba sentir con fuerza también con más
fuerza que la francesa. Aun así, podemos considerar Villaviciosa de Odón, más que
la escuela de minas de Madrid, uno de los primeros puntos de España donde la
corriente educativa del krausismo, que Pascual conocía bien a través de su amistad
con Sanz del Río, fue impulsada. De hecho serían las excursiones forestales que
los alumnos hicieron desde el primer curso, 1848, lo que coloca a este centro de
estudios como precursor, con años de adelanto, de las excursiones al Guadarrama
fomentadas desde la década de 1870, por Francisco Giner de los Ríos (Zulueta,
1999). Antes del Instituto Libre de Enseñanza, no era el ingeniero de minas Ca-
siano del Prado (1797-1866) el único conocedor de la sierra madrileña (Prado,
1864).73 Al igual que Giner, Pascual y Bernardo de la Torre Rojas también consi-
deraban al excursionismo “un espíritu que iba más allá del simple placer por el disfrute
de la naturaleza, para concederle un valor moral y de regeneración” (Mollá, 2009).
En el nuevo centro educativo de Villaviciosa, la vida escolar fue construida alre-
dedor de la inluencia sajona, y la igura de Cotta no dejaría de ser constantemente
recordada, por lo menos hasta la muerte de Pascual en 1884. Pascual argumentaba
que para la nueva escuela especial, se adoptó el plan de la academia de harand “al
genio, al carácter, a las necesidades, al gusto de la nación” (Pascual, 1861, 221). Sólo sería
a partir del traslado al Escorial, que la escuela de española se empaparía más y más de
las corrientes francesas, proceso favorecido en parte por la similitud de especies y pro-
ducciones forestales, o quizás por el contacto ya de varias décadas con otras escuelas
españolas como la de caminos de Madrid. Las nuevas posibilidades industriales para
la resina o el corcho serían buen ejemplo de ello. Con la entrada en la escuela del Es-
corial de profesores como Primitivo Artigas (1846-1910), que no formaron ya parte
del grupo de pensionados de harand, muchas de las ideas sobre subericultura, por
ejemplo, llegaron a España desde el sur de Francia o desde colonias francesas como
Argelia, lo que también fomentaron ingenieros como José Jordana (1836-1906). En
el contexto de una España cada vez más enfocada a la inluencia de Londres o París,
a través por ejemplo de sus exposiciones universales, el grupo de ingenieros de mon-
tes formado en harand introdujo ideas y obras hasta entonces desconocidas en la
península ibérica, fortaleciendo el ámbito de una nueva “ciencia de montes.”

73 En su texto de 1864, el ingeniero de minas menciona que en la provincia de Madrid hay apenas dos observato-
rios meteorológicos: uno en la capital y otro en la escuela de montes de Villaviciosa de Odón.

239
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

BIBLIOGRAFÍA
ANDRINO HERNÁNDEZ, Manuel, “Navarro Zamorano y los orígenes del krausismo en España”, in
Revista de Estudios Políticos, n. 53, 1986, pp. 71-100.
ARIZA, Carmen, “Jardines de recreo de Madrid: los llamados Campos Elíseos”, in Goya: Revista de
arte, n. 204, 1988, pp. 342-351.
BAUER, Erich, Los montes de España en la Historia, Fundación Conde del Valle Salazar, Madrid, 2003.
BOSCH, Miguel, Memoria sobre la parte forestal de la exposición de Londres de 1862, Imprenta Nacional,
Madrid, 1863.
BROWN, John Croumbie, School of Forest Engineers in Spain, Indicative of a Type for a British National
School of Geography, Oliver & Boyd, Edinburgh, 1886.
CARDOSO DE MATOS, Ana & DIOGO, Maria Paula, “Bringing it all back home: Portuguese
engineers and their travels of learning (1850-1900)”, HoST - Journal of History of Science and
Technology, n. 1, 2007, pp. 155-182.
CASALS COSTA, Vicenç, “Los primeros trabajos cartográicos de la Comisión del Mapa Forestal de
España (1867-1887). El caso de los mapas de las provincias de Barcelona y Huesca”, in Treballs de la
Societat Catalana de Geografía, n. 65, 2008, pp. 361-371.
CASTEL, Carlos, Fundación y desarrollo de la escuela especial, Tipografía Perojo, Madrid, 1877.
CHARTIER, Roger, El mundo como representación. Historia cultural: entre práctica y representación, Gedisa,
Barcelona, 1992.
CIVERA, Alicia, “Exile as a means for the meeting and construction of pedagogies: he exiled Spanish
Republican teachers in Mexico in 1939”, Paedagogica Historica, vol. XLVII, n. 2, 2011.
CUERPO DE INGENIEROS DE MONTES, Clasiicación general de los montes públicos, Imprenta
Nacional, Madrid, 1859.
DARDÉ, Carlos, 2000, Sagasta o el liberalismo transigente, Sagasta y el liberalismo español, Ministerio de
Educación, Madrid, 2000.
DEVY-VARETA, Nicole, “Investigación sobre la Historia Forestal portuguesa en los siglos XIX y XX:
Orientaciones y lagunas”, Historia Agraria, n. 18, 1999, pp. 57-94.
DESLANDES, Venâncio Augusto, Ensino e administração lorestal. Relatorio apresentado a S. Ex o
Ministro das Obras Publicas, Commercio e Industria, etc., Ministerio das Obras Públicas, Lisboa, 1858.
FABRE, Michel, “Experiencia y formación: la Bildung”, Revista Educación y Pedagogía, n. 59, 2011, pp.
215-225.
FERNÁNDEZ PRIETO, Lourenzo, “La política agraria del Estado español contemporáneo hasta
1936. Del propietario innovador al fomento de la innovación en la pequeña explotación,” Historia
Contemporánea, n. 17, 1998, pp. 237-286.
FORNIELES ALCARAZ, Javier, Trayectoria de un intelectual de la Restauración: José Echegaray, Caja de
Ahorros de Almería, Almería, 1989.
FUCHS, ECKART, “Networks and the History of Education,” in Paedagogica Historica 43, n. 2, 2007,
pp. 185–97.
GARCÍA ESCUDERO, Pío, La Escuela Especial y el Cuerpo de Ingenieros de Montes. Los cien primeros
años de su existencia (1848-1936), Diana Artes Gráicas, Madrid, 1948.
GARCÍA-PEREDA, Ignacio, GONZÁLEZ-DONCEL, Inés & GIL, Luis, “La primera Dirección
General de Montes (1833-1842),” Quaderns d’Història del’Enginyeria, n. 13, 2012, pp. 209-253.
GARCÍA-PEREDA, Ignacio, GONZÁLEZ-DONCEL, Inés & GIL, Luis, “La Casa de Chinchón
y la Ciencia de Montes,” Cuadernos Sociedad Española de Ciencias Forestales (Actas del IV Encuentro de
Historia Forestal: gestión forestal y sostenibilidad : experiencias históricas), n. 38, 2013, pp. 79-86.
GONZÁLEZ-DONCEL, Inés & GIL, Luis, “Dasonomía y práctica forestal”, in Técnica e ingeniería
en España. VII. Conceptos, Métodos y Patrimonio en el Ochocientos (II), Real Academia de Ingeniería /
Institución Fernando el Católico / Prensas Universitarias de Zaragoza, Zaragoza, 2013.
GONZÁLEZ PELLEJERO, Raquel, “Los primeros mapas modernos de vegetación en España:
bosquejos dasográicos de Asturias y Santander (1862)”, in Ería: Revista cuatrimestral de geografía, n. 27,
1992, pp. 5-20.
EZQUERRA, Francisco Javier & GIL, Luis, “La transformación histórica del paisaje forestal” in

240
AGUSTÍN PASCUAL (1818-1884). EL MODELO ALEMÁN Y LA PRIMERA ENSEÑANZA FORESTAL EN ESPAÑA

Cantabria. Tercer Inventario Forestal Nacional, Ministerio de Medio Ambiente, Madrid, 2004.
HEROS, Martín de los, Memoria que acerca del estado de la Real Casa y Patrimonio, y su Administración en
los últimos cinco meses de 1841, Aguado, Madrid, 1842.
HEROS, Martín de los, Memoria que acerca de la administración de la Real Casa y Patrimonio de S.M. en el
año de 1842, Aguado, Madrid, 1843.
JIMÉNEZ BLANCO, José Ignacio, Ayuntamiento de jerez, privatización y apropiación de tierras
municipales en la baja Andalucía. Jerez de la frontera 1750-1995, Ayuntamiento, Jerez de la Frontera, 1996.
JORDANA, José, Los montes y la colonización en Australia, Tasmania, y Nueva Zelanda, Tipografía de los
señores JC Conde, Madrid, 1878.
JORDANA, José, Notas sobre los alcornocales y la industria corchera de la Argelia, Ministerio de Fomento,
Madrid, 1884.
LÁGUNA, Máximo, “El pinsapar de Ronda”, Revista Forestal, Económica y Agrícola, n. 1, 1868, pp. 96-
106.
LÁGUNA, Máximo (Comisión de la Flora Forestal Española), Resumen de los trabajos veriicados por
la misma durante los años de 1867 y 1868, Imprenta del Colegio Nacional de Sordo-mudos y de ciegos,
Madrid, 1870.
LINARES LUJÁN, Antonio, “Estado, comunidad y mercado en los montes municipales
extremeños (1855-1924)”, in Revista de Historia Económica, n. 1, 2001, pp. 17-52.
LLUCH, Ernest, “El krausismo económico sin institución libre. La inluencia germánica en España
(1800-1860)”, in Sistema: Revista de Ciencias Sociales, nº 157, Madrid, 2000, pp. 3-18.
LÓPEZ ESTUDILLO, Antonio, “Los montes públicos y las diversas vías de su privatización en el siglo
XIX “, in Agricultura y Sociedad, n. 65, 1992, pp. 65-100.
LUQUE BALLESTEROS, Antonio, “Divulgación agronómica y enseñanza agrícola. Las cátedras de
agricultura de los institutos de segunda enseñanza en la década de 1860”, in Historia Agraria, n. 38, 2006,
pp. 119-142.
MADOZ, Pascual, Diccionario Geográico-Estadístico-Histórico de España y sus posesiones de ultramar, tomo
16, Imprenta del Diccionario, Madrid, 1850.
MARTYKÁNOVÁ, Darina, “Por los caminos del progreso: el universo ideológico de los ingenieros de
caminos españoles a través de la Revista de Obras Públicas”, Ayer, n. 68(4), 2007, pp. 193-219.
MARTYKÁNOVÁ, Darina, Reconstructing Ottoman Engineers. Archaeology of a Profession (1789-1914),
Plus-Pisa University Press, Pisa, 2010.
MOLLÁ RUIZ-GÓMEZ, Manuel, “El grupo de los alemanes y el paisaje de la Sierra de Guadarrama”,
in Boletín A.G.E., n. 51, 2009, pp. 51-64.
MORCILLO SAN JUAN, Antonio, “Carlos Castel: ingeniero y político decimonónico,” Cuadernos
Sociedad Española de Ciencias Forestales (Actas del I Reunión de Historia Forestal), n. 8, 1999, pp. 11-17.
NYBOM, horsten, “A rule-governed community of scholars: he Humboldt vision in the history of
the European University”, in Dynamics and European Integration, Springer, Dordrecht, 2007, pp. 55-79.
NÚÑEZ DE ARENAS, Bernardino, Cartas sobre la existencia y conservación de los montes, Tipografía de
Mellado, Madrid, 1854.
OCHOA, Eugenio de, París, Londres y Madrid, Baudry, París, 1861.
OLAZABAL, Lucas, “Don Agustín Pascual”, Revista de Montes, n. 192, 1885, pp. 33-50.
ORDEN, Rafael, Sanz del Río en la Universidad Central: los años de formación (1837-1854), Facultad de
Filosofía de la Universidad Complutense de Madrid, Madrid, 2001.
OVILO, Manuel, Manual de Biografía y de Bibliografía, Imprenta de Roblot, Besançon, 1859.
PAN-MONTOJO, Juan, “De la agronomía a la ingeniería agronómica: la reforma de la agricultura y la
sociedad rural españolas, 1855-1931,” Áreas, n. 26, 2007, pp. 75-93.
PASCUAL, Agustín, “Escuelas de agricultura”, in Revista Económica de Madrid, n. 1, 1842, pp. 81-101.
PASCUAL, Agustín, “Arboretos”, in El Amigo del País, n. 39, 1847, pp. 1-3.
PASCUAL, Agustín, “Escuelas Especiales”, in El Amigo del País, n. 32, 1847b, pp. 1-4.
PASCUAL, Agustín, Estudios Forestales, Imprenta de Díaz, Madrid, 1852.
PASCUAL, Agustín, “Cedro”, in Diccionario de Agricultura Práctica y Economía Rural, Tomo II, Imprenta
de Antonio Pérez Dubrull, Madrid, 1852a, pp. 184-185.

241
PASCUAL, Agustín, “Abedul”, in Diccionario de Agricultura Práctica y Economía Rural, Tomo I,
Imprenta de Antonio Pérez Dubrull, Madrid, 1852b, pp. 68-80.
PASCUAL, Agustín, “Ciencia de Montes”, in Diccionario de Agricultura Práctica y Economía Rural,
Tomo IV, Imprenta de Antonio Pérez Dubrull, Madrid, 1853, pp. 485-567.
PASCUAL, Agustín, “Revista forestal”, in Boletín oicial del Ministerio de Fomento, tomo XVIII,
1856, pp. 270-275.
PASCUAL, Agustín, Memoria sobre los productos de la agricultura española reunidos en la exposición
general de 1857, Imprenta Nacional, Madrid, 1861.
PASCUAL, Agustín, “El Bosque de harand”, in La Concordia, n. 26, 1863, pp. 410-414.
PASCUAL, Agustín, “Escuela forestal de Vallombrosa,” Revista Forestal, Económica y Agrícola, n. 2,
1869, pp. 608-613.
PASCUAL, Agustín, “Palabras españolas de índole germánica,” Revista de España, 1871, pp. 380-
390.
PASCUAL, Agustín, Discursos leídos ante la Real Academia Española en la recepción pública del Excmo.
Sr. D. Agustín Pascual y González, Tello, Madrid, 1876.
PASCUAL, Agustín, “Necrológica de don Miguel Bosch”, Revista de Montes, n. 64, 1879, pp. 441-
467.
PRADO, Casiano de, Descripción física y geológica de la provincia de Madrid, Imprenta Nacional,
Madrid, 1864.
PUELL DE LA VILLA, Fernando, Gutiérrez Mellado: un militar del siglo XX (1912-1995),
Biblioteca Nueva, Madrid, 1997.
REIG FERRER, Abilio, “El profesor y naturalista Don Juan Mieg (1780-1859): en el 150
aniversario de su fallecimiento (I)”, in Argutorio: revista de la Asociación Cultural “Monte Irago”, n. 23,
2009, pp. 9-17.
RODRÍGUEZ ROMERO, Eva, “Botánica, naturaleza y composición en el jardín del
romanticismo”, Revista Museo Romántico, n. 4, 2002 , pp. 11-36
ROLDÁN, Eugenia & SCHUPP, homas, “Bridges over the Atlantic: a Network analysis of the
introduction of the Monitorial system of education in early-independent Spanish America,” in
Comparativ 15, n. 1, 2005, pp. 58–93.
SAGRA, Ramón de la, Lecciones de Economía Social, Imprenta de Ferrer, Madrid, 1840.
SAGRA, Ramón de la, Investigaciones para enriquecer las incas del Real Patrimonio con nuevos plantíos
arbolados y razas útiles de animales domésticos hechas en el estrangero, Imprenta del Colegio Nacional de
Sordo-Mudos, Madrid, 1841.
SALVADO, Rosendo, Memorias Históricas sobre la Australia, Imprenta de los herederos de la viuda
Pla, Barcelona, 1853.
SOTO DE PRADO, Catalina, El nacimiento de la ingeniería de montes en la época de Goethe, Tesis de
doctorado, Universidad Politécnica de Madrid, Madrid, 2006.
TORNER DE LA FUENTE, Jorge, Nota comunicación sobre la historia de la creación del Servicio
Forestal en España, Talles tipográicos Velasco, Cuenca, 1926.
TORRE ROJAS, Bernardo de la, Ingenieros de Montes: recuerdos de la fundación, manuscrito, 1866.
VENTALLÓ VINTRÓ, Pedro Antonio, Los Gomeros de Australia en la regeneración forestal de
España, Tratado teórico-práctico del eucalypto, Cusó, Terrasa, 1877.
ZULUETA, Julián de, “Don Francisco Giner, precursor del ecologismo en España”, in Boletín de la
Institución Libre de Enseñanza. IIª Época, n. 34/35, 1999.
Apontamentos para a compreensão
da polémica António Sérgio (1883-1969)
vs. Abel Salazar (1889-1946)
António Mota Aguiar
Instituto de História Contemporânea – FCSH/UNL

António Sérgio foi um pensador polemista por natureza e avesso a sistemati-


zações, tendo ao longo da vida mantido polémicas com vários intelectuais do seu
tempo. Vejamos algumas das suas polémicas: na década de 1910 polemiza com
Jaime Cortesão e Teixeira Pascoaes a respeito de matérias de identidade nacional;
na década de 1920 polemiza com António Sardinha do Integralismo Lusitano
em torno da interpretação da História de Portugal e com Cabral de Moncada a
respeito do pensamento político português; na década de 1930 será com Casais
Monteiro e João Gaspar Simões do grupo literário “Presença”. Ainda na década
de 1930 com Abel Salazar sobre divulgação da ciência e com Leonardo Coimbra
sobre educação. As suas últimas polémicas foram com Bento Jesus Caraça e An-
tónio José Saraiva.
António Sérgio tinha da polémica uma concepção elevada no debate das ideias,
dizia ele que: “A polémica é necessária ao progredir cientíico, ao avançar da cultu-
ra.” Contudo, na defesa das suas teses, Sérgio não teve sempre razão, sobretudo em
matérias de ciência, uma vez que a sua formação cientíica não era muito profunda,
por isso se discorda tanto das suas teses, e se compreende algum apagamento a que
chegou hoje o seu nome.
Isso não impede que Sérgio tenha sido um dos grandes animadores culturais da
primeira metade do século XX, de pensamento insubmisso e livre, lutou contra as
ideias totalitárias do Estado Novo, sendo várias vezes preso.
António Sérgio nasceu em Damão em 1883, tinha origem indiana por parte da
mãe, além de uma ascendência nobiliárquica por parte do avô, o almirante Sérgio
de Sousa, ajudante-de-campo do rei D. Luís e governador-geral do Estado da
Índia. Seu pai fora vice-almirante e Governador do Distrito de Damão. O jovem
António Sérgio é, portanto, oriundo de uma família idalga do liberalismo portu-

243
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

guês quando ainda com 2 meses de idade o trazem para Lisboa. Com a idade de
6 anos acompanha o pai para Angola onde este ocupará o lugar de governador do
distrito do Congo.
Com 11 anos ingressa no Real Colégio Militar e, aos 18 anos, entra para a ar-
mada, onde terminou o curso da Escola Naval. Em 1905 parte para Macau, no ano
seguinte está em Newcastle. Em 1907 é promovido a segundo-tenente e colocado
na Estação Naval de Cabo Verde.
António Sérgio não foi afecto à Monarquia, mas tão pouco via na República a
solução dos problemas de Portugal, porém, quando em 1910 se implanta a Repúbli-
ca, dá um giro à sua vida e liga-se às correntes republicanas intelectuais do seu tem-
po, pondo em evidência o seu peril de pedagogo, que manterá até ao im da vida.
Até ao princípio da década de 1930 participará nas principais revistas literárias
de então: Serões, Águia, Seara Nova, e participa no movimento Renascença Portu-
guesa, ao lado de intelectuais do seu tempo, airmando-se “aristocrata” e “socialista”.
Nestes 20 anos seguintes à implantação da República Sérgio viajará muito: vive-
rá no Brasil, visita várias cidades da Europa, faz estadias prolongadas por razões de
saúde na Suíça e em Nice e constrói o seu sistema de análise crítica da História de
Portugal e da Europa. Ligado aos movimentos culturais da capital, fortalece nesses
20 anos os seus principais ideais ilosóicos.
É principalmente neste período que construirá o seu sistema ilosóico-cientíico
e as suas teses económicas, ao qual o seu nome icou associado como cooperativista.
Quando começa a década de 1930 António Sérgio tem 47 anos, sendo seis anos
mais velho que Abel Salazar. Porém, o seu percurso humano, existencial, é comple-
tamente distinto daquele efectuado por Abel Salazar.
Ao contrário de António Sérgio, ilho de monárquicos, o pai de Abel Salazar foi
um homem afecto aos problemas da ‘res-publica’. No ano lectivo de 1881-1882, foi,
por razões proissionais, enviado para o Porto, tendo deixado Abel Salazar e seu ir-
mão Camilo em Guimarães, entregues aos cuidados da avó e da tia. No ano lectivo
de 1899-1900, com dez anos de idade, ingressou no Seminário-liceu de Guimarães
de onde guardou deste tempo amargas e perduráveis recordações, pela obscura e
intransigente educação religiosa ministrada neste estabelecimento.
Provavelmente, a sua infância e adolescência foram inluenciadas por estes anos
de seminário e concorreram para a sua posterior “instabilidade emocional”. Acres-
cente-se ainda uma união conjugal infeliz, que o terá atormentado ao longo da vida.
Ao contrário de Sérgio, que como já dissemos, não fora afecto à Monarquia,
mas que também não via na República a solução milagrosa dos problemas nacio-
nais, e que na correspondência com Raul Proença escreveu várias vezes que “para

244
APONTAMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÉMICA
ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969) VS. ABEL SALAZAR (1889-1946)

mim a Monarquia vale a República”, e que colocava os seus ideias de progresso


para Portugal numa solução que estaria para lá dos dois sistemas jurídico-políticos,
Abel Salazar ainda jovem aderiu ao ideal republicano e via na República o passo
necessário para o progresso de Portugal. Nas primeiras décadas do século XX, são
duas concepções diferentes de ver a História de Portugal.
Em 1915, quando terminou o curso universitário, Abel Salazar enveredou pela
carreira de investigador cientíico na área de histologia e, no ano seguinte, é no-
meado pela Faculdade de Medicina do Porto para reger esta cadeira. Pouco tempo
depois, com 30 anos, é nomeado Professor Catedrático de Histologia e Embriolo-
gia da mesma Faculdade, fundando algum tempo depois o mesmo Instituto. Co-
meçaria por estes anos a sua carreira de investigador cientíico que o tornariam
internacionalmente conhecido.
Em 1927 Abel Salazar sofreu um esgotamento, motivado por várias causas: ex-
cesso de trabalho, conlitos com os colegas na universidade, pela doença grave que
sofria a mãe, e por excesso de tabaco, esgotamento também facilitado pela sua “ins-
tabilidade emocional”. Retira-se então para uma casa de repouso (no fundo, uma
casa para alienados mentais), durante cerca de 4 anos.
Em 1931, quando regressa, encontra o seu gabinete desmantelado. É por essa
altura que começa a sua intervenção como ilósofo neo-positivista, através de con-
ferências de divulgação cientíica e, a partir de 1935, escrevendo em vários peri-
ódicos: O Trabalho, A Voz da Justiça, O Diabo, O Sol Nascente, a Seara Nova,
Pensamento, etc., e em muitos jornais da província, como A Ideia Livre de Anadia.
Neste último, iniciou uma série de artigos sobre A Falência da Metafísica, cuja
síntese iniciei neste blogue em Maio de 2011.
Nestes artigos Abel Salazar defendia, por um lado, a irredutível incompatibili-
dade entre a ciência e a metafísica, a irreversível decadência histórica da metafísica
e sua carência de sentido e, por outro lado, a visão do mundo e da vida que o em-
pirismo lógico da Escola de Viena veiculava.
É também por esta altura que começa a ser seriamente perseguido pela dita-
dura fascista que, nos anos 1930 redobrava de vigor, quer pela implementação da
Constituição de 1933, quer pela força que o fascismo e o estalinismo ganhavam e
exerciam tragicamente no mundo inteiro.
Neste sentido, também António Sérgio fora (e seria) perseguido pela ditadura, e
algumas vezes preso. Como opositores da ditadura, ambos contribuíram, cada um
à sua maneira, para o seu posterior derrube. Ambos pertenceram a movimentos de
esquerda opositores ao regime político de então, ambos cobriam o espaço político
não comunista, embora certamente fossem de famílias políticas diferentes. Não foi,

245
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

portanto, por razões políticas que se desentenderam.


As breves biograias que acima tracei destes dois homens, mostram bem que
tiveram percursos de vida bem diferentes um do outro, o que ajuda a compreender
as posições que tomaram quando da polémica que viriam a ter sobre a divulgação
da ciência. Diga-se, contudo, que, se não fosse pelo tom exaltado que esta polémica
suscitou, seria apenas uma polémica mais para a História da cultura portuguesa.
O que distingue as posições destes dois homens na sociedade portuguesa de
então é que António Sérgio se posiciona como ilósofo criacionista e Abel Salazar
como agnóstico, neo-positivista, defensor da ciência contra a metafísica.
Escrevemos acima que António Sérgio foi um homem insubmisso e livre, mas
Abel Salazar não o foi menos. Abel Salazar defendeu sempre com irmeza férrea
as suas teorias, estruturando o seu ideário “em princípios abertos, em airmações
condicionais, em obstáculos epistemológicos que o revelam como um intelectual de
acentuado pendor crítico…” (Norberto Ferreira da Cunha, Génese e Evolução do
Ideário de Abel Salazar, Imprensa Nacional Casa da Moeda).
António Sérgio privilegiou o ensaio como forma de comunicação o que, como
aqui já escrevi, diiculta a sistematização do seu pensamento. Daí que a obra de
António Sérgio, em matérias ilosóicas e cientíicas, ofereça grande discordância.
Magalhães Vilhena, que estudou a obra de Sérgio, atribui um carácter “ideal”
à génese do ideário ilosóico de António Sérgio, salientando que “o misticismo
presente no idealismo sergiano aponta para fontes distintas das cientíicas”.
De resto, várias vezes António Sérgio airmou que as “ideias-relações-formas-
estruturas” existiam fora do espaço e do tempo, o que revela o aspecto criacionista
no seu pensamento.
Transcrevo a seguir este pequeno trecho das Cartas de Problemática, § 2, 5.ª
Carta (a meio) que António Sérgio nos legou como seu pensamento:
“… o pensamento unitivo do verdadeiro místico (o que airma a Unidade e a
adesão à Unidade, ou aquele íntimo «amor intelectual de Deus», à feição de um
Espinosa)…O essencial da ilosoia, como a tenho eu entendido, é uma relexão
sobre as actividades espirituais do homem, designando por «espiritual» o pensar
des-subjectivado, o pensar des-individualizado, o que tende pois para o absoluto,
- tomando consciência de uma des-egocentrização da física que me parece acom-
panhar uma des-sensibilização da matemática.” (…)
Num outro trabalho seu (Considerações sobre o Problema da Cultura), Sérgio
diz-nos que:
“O mundo externo, tal como é dado pelas sensações, (…) não existe fora do
sujeito pensante”.

246
APONTAMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÉMICA
ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969) VS. ABEL SALAZAR (1889-1946)

Carlos Leone (in O Essencial sobre António Sérgio) sintetizou a ilosoia de


Sérgio em quatro pontos. Saliento aqui o segundo:
“O conhecimento que temos do mundo exterior e, por maioria da razão, do
próprio domínio da consciência é uma construção ou representação mental, isto
é, todo o conhecimento é actividade mental, ainda que nem toda essa actividade
seja consciente ao sujeito.”
Nascidos em berços distintos, percorreram caminhos na vida diferentes um do
outro, optando por ilosoias também diferentes. Enquanto Sérgio se airmou como
criacionista, rebuscando no seu cérebro esquemas intelectuais que postulou como
teorias ilosóicas, Abel Salazar aderiu ao neo-positivismo, ultrapassando-o mes-
mo, ao veicular a falência da metafísica. Esta falência constituiria um golpe mortal
no pensamento ilosóico de Sérgio, um golpe que este não podia aceitar, já que
toda a sua ilosoia icaria em causa.
Na década de 40 do século XIX Auguste Comte propôs o positivismo, doutri-
na ilosóica marcada pelo optimismo de que o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia iria desembocar numa sociedade de bem-estar generalizada. A dou-
trina positivista combateu as concepções idealistas e espiritualistas da Natureza,
airmando-se anti-teológica e anti-metafísica. Foi durante estas décadas que se
assistiu em Portugal à implantação progressiva da corrente republicana que, adop-
tando em larga medida com o positivismo, se tornou na corrente ilosóica mais
inluente no seio da intelectualidade portuguesa. Diga-se contudo, que António
Sérgio não pertenceu a este movimento, nem tão pouco era afecto à República.
“Para mim a Monarquia vale a Republica”, escreveu ele a Raul Proença. Até ao im
da década de 1910 Sérgio manteve uma vida republicana apagada.
No século XX, o positivismo evoluiu para o neo-positivismo fundado pelo Cír-
culo de Viena. Como pilares de importância capital nas relexões desta corrente ilo-
sóica, destacam-se a Teoria da Relatividade, a Mecânica Quântica e a Lógica Ma-
temática. Não é pelo fato de Abel Salazar defender o neo-positivismo que os dois
homens estiveram em desacordo, uma vez que o criacionista Leonardo Coimbra foi
um importante relativista, defensor portanto de um dos pilares do neo-positivismo.
Tiro como ilação que o que profundamente separa os dois homens não é a pro-
blemática da divulgação da ciência, nem tão pouco o neo-positivismo, mas a crença
ou não na metafísica. Para Sérgio havia a esperança do advir de um Deus redentor,
para Abel Salazar havia… o desconhecido. É claro que, nas primeiras décadas do
século XX, estas duas maneiras de ver a existência humana – tão extremadas como
eram – implicavam posições sócio-políticas bem acentuadas e bem diferentes, que
se alicerçaram nos berços tão diferenciados em que cada um deles nasceu.

247
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Tenho vindo a abordar a contenda que António Sérgio e Abel Salazar tiveram
nas páginas de vários jornais e revistas no segundo lustre da década de 1930. Dei
como causa principal para o dito diferendo o descontentamento de Sérgio (já o
tinha tido também Casais Monteiro) pela forma como Salazar tratou a metafísica,
isto é, pelo anúncio da sua falência. Não tivessem havido as críticas à metafísica e,
provavelmente, não teria havido o rastilho para toda a polémica.
Faço a seguinte síntese: tanto Casais Monteiro como Sérgio sentiram-se melin-
drados ou mesmo ofendidos nas suas convicções religiosas pela forma, seca e fria,
como Salazar tratou esta temática.
Abel Salazar era visto com estima no campo republicano e junto de certas cama-
das da juventude. Os seus artigos fortiicavam a sua posição junto destes grupos, o
que certamente Sérgio não via de bons olhos, ele que também procurava simpatias
junto dos “jovens leitores” (Ensaios, vol. II, pp. 10 e seguintes). As investidas dele
contra a metafísica parecem, porém, desproporcionadas no país religioso de então,
feitas como eram através de jornais, muitos da província, de reduzido público. Po-
demos por isso perguntar se seria rentável um ataque tão directo à religiosidade das
pessoas. Daria isso alguns louros políticos ou culturais? Atingiriam esses ataques
algum alvo sensível da ditadura? Penso que não. Abel Salazar caiu na armadilha
que lhe estendeu a ditadura, uma ditadura que não permitia discussões sobre temas
sociais e políticos, mas apenas sobre temas eruditos e especulativos, discussões que
a população na sua totalidade (cerca de 75% eram analfabetos) não compreendia.
Salazar pensou que aquela era a única via para se exteriorizar contra a ditadura: ata-
cou a metafísica, e, por este meio, a Igreja, um dos pilares da ditadura. Pensou bem,
mas fê-lo, a meu ver, mal, de uma forma desajustada, ofendendo os crentes que não
apoiavam a ditadura, como era o caso de Casais Monteiro e Sérgio.
Se Abel Salazar tivesse feito uma divulgação da ilosoia das ciências da Escola
de Viena sem recorrer à falência da metafísica, Sérgio, provavelmente, não teria cri-
ticado o modo, mas a ilosoia das ciências tout court. Isso sim seria uma “trapalha-
da” (uma expressão que ele próprio usa) porque não dispunha de bases cientíicas
para fazer incursões nesse domínio. Nas Cartas de Problemática, em particular na
C1, Sérgio deixa a ideia de que a ilosoia só se pode abordar quando se tem uma
sólida formação cientíica, mas, como veremos à frente, Sérgio não a tem. Por isso,
embora possa não se estar de acordo com a forma pouco elegante empregue por
Abel Salazar ao “ir divulgar ao público o bluf António Sérgio”, compreende-se a
sua irritação ao dar-se conta do fraco saber cientíico do seu adversário. Discordo
dos que dizem que, se Sérgio tivesse nascido num outro país, por exemplo, na In-
glaterra ou na Suíça, teria sido um grande homem. Um grande homem em quê?

248
APONTAMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÉMICA
ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969) VS. ABEL SALAZAR (1889-1946)

Foi um homem do seu tempo, com uma obra sincrónica. Passadas essas décadas a
sua obra não tem mais ressonância.
Voltando de novo ao tema principal, foi em torno da divulgação da ciência que
os dois homens elaboraram as suas acusações recíprocas. Resumirei a seguir os
pontos em que há, de uma forma geral, concordância de opiniões entre Sérgio e
Salazar. Pretendo ver se, do diferendo ocorrido, podemos colher algum enriqueci-
mento para os dias que correm.
Sérgio e Salazar estavam de acordo em perguntar como se devia vulgarizar a cul-
tura de modo a fazer dela uma força de transformação efectiva da realidade, quer
individual quer colectiva. Ambos concordavam que a cultura, quando reduzida a uma
soma de conhecimentos, representava muito pouco, como acontecia com certa “gente
culta”, dizia Abel Salazar, sempre pronta a discorrer sobre tudo, com supericialidade
e sobranceria. Como vulgarizar a cultura? O que signiica ser culto, perguntavam?
Signiicava, para Salazar “lograrmos desfazer-nos das limitações de espírito,
para alcançarmos a objectividade e o universal”, em última instância, ser culto sig-
niica a conquista da liberdade. Sobre este ponto - conquista da liberdade - escreve
Bento de Jesus Caraça em Cultura Integral do Indivíduo:
“ (…) A aquisição da cultura signiica uma elevação constante, servida por
um lorescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento
sempre crescente de todas as qualidades potenciais, consideradas do quádruplo
ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; signiica, numa palavra, a
«conquista da liberdade».”
Este ideal de cultura, de um homem com sólida formação moral e intelectual,
a par de um desenvolvimento sempre crescente de todas as qualidades potenciais,
era partilhado por Sérgio e Salazar. Ambos defendiam que o mais importante na
formação cultural de um cidadão era a ginástica mental, o espírito crítico e cien-
tíico. Ser culto era ter um método mais que um ideário, era passar da credulidade
ingénua e do dogmatismo espontâneo para o nível mental da disciplina crítica. A
verdadeira cultura era um esforço de auto-direcção intelectual, de relexão e assi-
milação dos assuntos, de justo equilíbrio de raciocínio, de apreensão clara dos con-
ceitos, dos processos e métodos de pensar. Os conhecimentos eram um meio e não
um im, um meio ao serviço da disciplina e do serviço intelectuais, da autocrítica e
da relexão, de um método de pensar e não de uma doutrina.
Dizia Salazar que a verdadeira cultura atira o indivíduo para um mundo onde
tudo lui, para um reino de dúvida e de hipóteses, para a renúncia aos princípios
absolutos e deinitivos, para uma ilosoia relativista e fenomenalista (em contraste
com as metafísicas apriorísticas), embora neste último ponto não tivesse a anuência

249
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de Sérgio. Sérgio, por seu lado, defendia que na vulgarização cultural se deveria
privilegiar a aprendizagem de problemas, de uma maneira de pensar, sendo os co-
nhecimentos um mero pretexto para adestrar ou exercitar essa ginástica mental.
Salazar, sem rejeitar esta ideia, defendia, porém, que ela devia ser precedida por um
certo grau de informação.
Ambos partilhavam a ideia do papel determinante das ideias, especialmente
das ideias cientíicas e ilosóicas, na transformação da realidade político-social, a
importância do debate de ideias para dirimir conlitos.
Para Salazar devia-se vulgarizar as conclusões e os resultados das ciências. Dava
como exemplo uma obra de arte: não é necessário saber como foi criada mas sim
apresentá-la bem de modo que o público se interessasse por ela. A vulgarização
cientíica deveria levar o público a uma maior consciencialização da sua relação
com o cosmos, com a vida e com o próprio.
Estes são os temas, grosso modo, em que havia concordância entre os dois; o
diferendo estava, portanto, no modo como Salazar efectuava a divulgação cultural.
Foi essa a base a toda esta polémica.
Uma nota inal para sublinhar que, para Salazar, a vulgarização cientíica podia
muito bem ser efectuada por um não especialista, sem que isso implicasse defor-
mação e simplismo; foi precisamente o que aconteceu com Sérgio que, não sendo
cientista, polemizou com Salazar sobre temas cientíicos.
O histologista Salazar ocupa na história da ciência portuguesa do século XX
um lugar incontestável. Foi um investigador com provas dadas em trabalhos sobre
a estrutura e evolução do ovário, tendo criado o método de coloração tano-férrico,
que tem o seu nome. Para além de médico e investigador, notabilizou-se ainda
como artista plástico (desenho, pintura e escultura).
A análise sobre Sérgio é mais complexa. Escreveu ele nas Notas de Esclareci-
mento:
“as minhas hipóteses não se formaram em mim pela dócil leitura de qualquer
autor ilosóico (…) desenvolveram-se a partir de uma relexão pessoal sobre a
geometria analítica e sobre a física matemática (…) foram a matemática e a física
matemática que impeliram o meu espírito para o Platão da caverna.”
Com certa ironia António da Silveira observa:
“A matemática e a física matemática dos preparatórios de um ano para a Escola
Naval? Ah!!... mas Sérgio o diz.. A cada um o seu mistério, a cada um o seu
mito, a cada um a sua quimera!” (Recordando António Sérgio, p. 27).
Silveira, referindo-se ainda ao pensamento do seu amigo Sérgio, escreve o se-
guinte:

250
APONTAMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÉMICA
ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969) VS. ABEL SALAZAR (1889-1946)

“(…) Mas a experiência de laboratório tornou céptico os físicos em face das


ideias dos ilósofos. Estes não são proissionais da investigação cientíica, não
foram levados às suas teorias por uma actividade própria de cientistas” (idem,
pp. 28/29).
Sérgio não é um cientista, não foi levado às suas teorias por uma actividade de
cientista, foi um ilósofo idealista (António José Saraiva considera-o um «idealista
moderno»), comunicando, sobretudo, através de ensaios e polémicas. Em geral, o
que mais se conhece de Sérgio é a sua faceta polemista. Mas a sua acção na socieda-
de portuguesa destas décadas foi bastante maior. Ele teve inluência nos intelectu-
ais destas décadas, em particular no grupo da Seara Nova, do qual foi director, além
de manter uma certa inluência sobre uma parte da juventude desta época, como
já escrevi atrás. Sérgio foi também pedagogo, perito em assuntos de educação - foi
ministro por três meses - ilósofo e um intelectual empenhado na reforma cultural
do país, crendo-se com a missão de protagonizar uma alternativa positiva.
A sua personalidade – a sua faceta multicultural - foi a sua principal arma. Ho-
mem muito inteligente, de sólida formação moral e de vasta cultura, não pôde
todavia aprofundar nenhum tema, como fez Salazar. Talvez seja esta a razão do
apagamento da obra de Sérgio nos nossos dias. Contudo, não foi um adversário
fácil: o seu vasto saber obrigou os seus adversários a estudarem melhor as suas po-
sições para polemizar com ele, contribuindo para o enriquecimento cultural desta
época. A sua presença na cultura portuguesa destas décadas como agente cultural
foi notável. Pegou-se com todos, a todos moveu polémicas usando o género epis-
tolar. Para avaliarmos a sua contribuição para as ideias do seu tempo temos que
ter em conta o cenário. Quão difícil devia ser a vida que os Portugueses tinham na
década de 1930, sobretudo no segundo lustre, com uma ditadura férrea dentro das
fronteiras, e, para onde quer que olhassem, ferozes ditaduras em volta, com uma
guerra civil calamitosa ao lado, e em vésperas de uma catástrofe mundial. Que fazer
numa época destas? As ideias não podiam morrer!
Sérgio com os seus Ensaios, as suas polémicas, as suas Cartas de Problemática,
etc., enriqueceu culturalmente a sociedade portuguesa do seu tempo. Contribuiu
– «Se não se peca contra a razão, não se chega em geral a nada», escreveu Einstein
- para nos manter agitados, críticos, nesses tempos asixiantes. E fê-lo, porque,
como recorda Silveira, “as conversas de Sérgio tinham sempre um efeito, libertador,
vivicante, estimulante e tónico”.

251
Dr. Costa Sacadura (1872-1966) e a sua obra
científica: os seus contributos para a higiene
e construção escolar em Portugal
na transição do século XIX para o séc. XX
Soia Fernandes, Arqt.ª
Faculdade de Arquitectura-UTL / Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design

“Ab love principium (comecemos por Júpiter), isto é, comecemos pelo princípio”1

INTRODUÇÃO

O presente estudo surge no âmbito da minha tese de doutoramento2, tendo-se


este constituído numa linha de investigação pertinente no processo de compreensão
da construção escolar em Portugal e em particular da evolução dos princípios e
ideias que presidiram à sua conceção no arco temporal considerado.
A leitura dos escritos do Dr. Costa Sacadura, principalmente daqueles elabo-
rados no início do século XX, rapidamente deixa perceber a importância e o papel
que estes desempenharam na divulgação em solo nacional, dos novos progressos
cientíicos que iam sendo amplamente difundidos na Europa e nos Estados Unidos.
A qualidade e quantidade dos artigos e conferências proferidas por este médico,
homem das ciências devoto às questões sociais mais prementes, é especialmente ex-
pressiva no campo da Higiene Social e Escolar, para si assuntos fulcrais na proteção
à infância e por conseguinte das gerações futuras.
Justo será dizer que existiam outros autores em Portugal, especialmente médi-
cos, que se debruçavam sobre estes assuntos, porém não tão insistente e eicazmen-
te como Costa Sacadura. Essa será uma das razões pela qual foi prontamente reco-

1 Frase proferida pelo Dr. Costa Sacadura na Conferência de 28 de Janeiro de 1960 no Centro de Estudos de
Higiene escolar Universitária a convite do Doutor Vasco Bruto da Costa (1919-?), onde falar sobre a Higiene
escolar em Portugal e o seu contributo para a mesma. Cf. (SACADURA, 1960)
2 Tese de Doutoramento em Arquitetura, na especialidade de Teoria e História, desenvolvida na Faculdade de
Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, iniciada sobre a direção da prof.ª Dr.ª Marieta Dá Mesquita, e
com atual orientação cientíica do prof.º Dr. José Manuel Fernandes, que se debruça sobre o estudo da arquitetu-
ra escolar do ensino particular em Lisboa na primeira metade do século XX.

253
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

nhecido pelos seus contemporâneos como um verdadeiro cruzado dessas matérias.


Quer a comunidade cientíica, quer o Governo, embora este mais lentamente e a
maior custo, se mobilizaram aos poucos para as causas defendidas pelo incansável
clinico. Dos seus esforços e visão houve frutos muito signiicativos que estabele-
ceram estruturas no sistema do país que nunca tinham existido e que marcaram
positivamente o que dai para a frente se foi fazendo na área dos cuidados de saúde
primários às crianças e na defesa da sua dignidade e estatuto individual.
Com o tempo, o eco destes acontecimentos, que acreditando não estarem esqueci-
dos, icaram talvez presos nos redutos da memória. O ‘Encontro Internacional sobre
Espaços e Atores da Ciência em Portugal (séculos XVIII-XX) ‘ surgiu como uma
oportunidade de tirar doestado latente a igura de tão distinto médico. Não apenas
como forma de homenagem, mas como ato de justa reposição de factos, trazer ao
lume dos dias de hoje o percurso e testemunho de um homem que nas ciências não
se limitou a desempenhar a sua proissão, ambicionou com ela promover mudanças,
de tudo fazendo para que os mais recentes conhecimento chegassem aos demais.
Aliou-se aos seus pares e às mais ilustres iguras do panorama cultural do país
(Pedagogos, Arquitetos e outros intelectuais), sempre em prol da comunidade que
servia. Embora não faltem textos escritos por si ao alcance de qualquer um que
os queira ler, ou obras em sua homenagem organizadas por quem o conheceu e
admirou, e não obstante hoje o seu nome ser referido em trabalhos académicos e
estar incluso no Dicionário de Educadores Portugueses3, o seu vulto e obra mereciam
nos tempos que correm uma revisão mais atenta e pormenorizada, que de resto o
presente artigo só pretende ser uma breve incursão. Para o efeito foram principal-
mente analisados os seus artigos sobre a Higiene Escolar e a Educação Física assim
como as obras/peças escritas sobre a sua pessoa.

ALGUNS ASPETOS DA SUA BIOGRAFIA

Sebastião Cabral da Costa Sacadura nasceu a 9 de Setembro de 1872, no seio de


uma família de modestos recursos, num ambiente rural, na aldeia de Abrunhosa-
a-Velha no conselho de Mangualde. Filho mais novo, único rapaz entre quatro
raparigas, o seu pai, José da Costa Gomes, era um humilde negociante, de quem
muito se orgulhava, e a sua mãe, D. Maria da Glória Cabral de Sacadura, uma

3 Cf. CORREIA, António Carlos, “Sebastião Cabral da Costa Sacadura”, in NÓVOA, António (Dir.), Dicionário
de Educadores Portugueses. Asa, Porto, 2003.

254
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

‘senhora de boa linhagem beiroa’ da aldeia da Mesquitela4. Educado dentro dos


princípios católicos, é ‘anjinho’ nas procissões religiosas, integra a banda da aldeia e
frequenta a modesta escola primária oicial da terra tendo como professor António
da Costa Pais, que nunca esquecerá durante toda a sua vida. A prova-lo estão as ve-
zes incontáveis em que o referia e a grande homenagem que lhe prestou em 19335,
assim como a proximidade que manteve com a sua família6. Tendo organizado
toda a sua vida proissional e pessoal em Lisboa o seu coração permaneceu com os
seus conterrâneos da Beira Alta, a sua infância passada naquelas paisagens junto da
margem direita do Mondego defronte para a Serra da Estrela e em contacto com
aquelas gentes humildes7 marcaram-no de tal forma que foi para estes o maior
benfeitor de que se tem noticia. Tal como atestou e registou o jornalista Oldemiro
César (1884-1953), redator do Diário de Noticias, no livro de homenagem que
organizou conjuntamente com outros amigos do Dr. Costa Sacadura aquando do
seu jubilamento, altura em que este atingiu os setenta anos, idade limite que a lei
impunha para o abandono dos cargos públicos:
“Louvado deus!... o esforço pertinaz e civilizador dum homem ilustre e bom,
amando estranhamente a sua terra e os seus paisanos, velhos e novos, dando-
lhes ruas airosas e limpas, água potável, escolas arejadas e salubres, bibliotecas
escolares, a assistência médico-social dum dispensário, a alegria duma ilarmó-
nica, o orgulho e a lição duma corporação de bombeiros […] casa de repouso
[…] O Alegrete é, nem mais nem menos, que uma escola maternal […] a expen-
sas do seu fundador.” (CÉSAR, 1942:pp.98-99)
Feito o exame de instrução primária, e com o intento de o preparar para herdar
o negócio de família, aos nove anos o seu pai leva-o para o Porto, a im deste tra-
balhar no estabelecimento de panos do Sr. João Pinto Nogueira, que pouco tempo
depois escreve aos pais a recomendar que estes izessem tudo o que estivesse ao
seu alcance para o ilho prosseguir os estudos uma vez que era muito inteligente e
‘ino de mais para marçano’. É assim que aos dez anos é inscrito no Liceu de Viseu,

4 Sobre os seus pais dizia Costa Sacadura: “ A minha costela mais conhecida era a da minha mãe, mas eu não ad-
mirava menos o meu pai. Era um modesto negociante de aldeia, mas era um homem de princípios estabelecidos,
que sabia o que queria.” (MACHADO, 1966:708)
5 “Cabe-me a honra de ter sido eu o primeiro professor universitário que em Portugal, prestou homenagem ao seu
professor de primeiras letras, em sessão solene no edifício das escolas ‘Dr. Costa Sacadura’ em Abrunhosa- Velha,
em 1 de Agosto de 1933, presidida pelo diretor-geral da Instrução Primária, Dr. Paixão […] ” (SACADURA,
1960)
6 Até ao dia da sua morte teve como leal secretária a Sr.ª D. Aurora Cabral da Costa Pais neta do seu estimado
professor da primária.
7 “Assistiu, naturalmente, às desgraças que, por vezes, põem em perigo a vida daqueles homens rudes. Assistiu à
pobreza que qualquer coisa faz alegrar […] deve ter brincado com outros cujo pão minguava, cuja doença não
tinha assistência.” (GAMA, 1966)

255
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

estudos que a partir dos catorze anos sustenta parcialmente com as explicações que
começa a dar a outros estudantes8. Termina o curso em 1889, com dezasseis anos e
obtém um prémio de dez mil reis9 por ter sido o melhor estudante.
Decidido a ser médico é com o auxilio de uma tia materna, D. Joaquina Cabral
Sacadura e do seu marido, José Duarte do Amaral, inspetor dos caminhos-de-
ferro, que se instala na casa destes na Travessa do Sacramento10, n.º16-4º andar,
ao Carmo em Lisboa, onde tem ‘cama, mesa e roupa lavada’, durante os dois anos
em que frequenta as cadeiras preparatórias na Escola Politécnica necessárias para
entrar na Escola Médico-Cirúrgica que frequenta até 1898.
Um curso que contou com grandes iguras do panorama cientíico português,
que foram mestres das gerações de médicos formados no im do século XIX, no-
meadamente: Eduardo Mota (1837-1912); Sousa Martins (1843-1897); Cur-
ry Cabral (1844-1920); José António Serrano (1851-1904); Miguel Bombarda
(1859-1910); Silva Amado (1840-1925); e Alfredo da Costa (1859-1910), pro-
fessor da cadeira de Obstetrícia que inluenciou decisivamente a carreira de Costa
Sacadura. Aquando do ‘Acto Grande’, a 20 de Julho de 1898, é aprovado com
louvor, sem sombra de dúvidas sobre a sua ‘inteligência maleável e fecunda’. Não
será de admirar, uma vez que nunca perdeu um ano e viu sempre os seus trabalhos
distinguidos, tendo mesmo começado a exercer cargo de externo da Enfermaria
n.º6, apelidada de Santo Alberto, do Hospital do Desterro, quando frequentava o
4ºano de Medicina, e nomeado interno no ano seguinte por mérito assinalado pelo
Diretor da unidade o seu caríssimo professor Alfredo da Costa. Simultaneamente
é ajuda assídua nas operações e serviços do Hospital de S. Luís ou dos Franceses
no Bairro Alto, a convite do Diretor clinico do mesmo, Dr. Henrique Mouton,
colaboração que se estendeu por 70 anos11.
Após receber a sua carta de médico-cirurgião, o jovem recém-formado, não pos-
suindo ainda a capacidade económica para se manter na capital, vê mais uma vez
a solução na oferta que lhe é feita por um abastado parente de sua mãe, o Conse-
lheiro Francisco de Almeida Cardoso e Albuquerque, que possuía um palacete na
Calçada de Santana, que ter-lhe-á dito:

8 Auxiliado pelo cunhado Alfredo Ferreira de Carvalho professor do ensino particular.


9 Prémio Instituído pela igura do Engenheiro, General, professor no Colégio Militar e Comendador José Maria
da Costa (1830-1911), benemérito do Liceu de Viseu, que distinguia o aluno que tivesse melhores notas em
Aritmética e Geometria, a que não era alheio o facto dele próprio ter escrito um Tratado de geometria elementar
e de trigonometria retilinea.
10 Atual Rua Almirante Pessanha.
11 Mais tarde recorda com gratidão e saudade esses tempos: “Bem vê, foi por aqui que eu comecei há mais de 60
anos! Vinha aqui ajudar às operações do Dr. Mouton e ganhava umas coroas, que efetivamente me faziam muita
falta. Não posso esquecer!” (MACHADO, 1966:738)

256
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

“E não julgues que te faço grande favor, porque, se tu passas a ter cama e mesa,
também eu passo a ter médico em casa, de dia e de noite, luxo que nem o Rei
pode gozar.” (MACHADO, 1966:713)
Dá-lhe estadia e apresenta-o à alta sociedade, onde com afabilidade conquista
amizades e clientes inluentes
A partir daqui inicia uma carreira de ascensão continua. Em Outubro de 1899
é nomeado Diretor do Hospital de Viseu. Seis meses depois, já em 1900, é aberto
o tão aguardado concurso para o Banco do Hospital de S. José a que concorre.
Sacadura é nomeado como cirurgião, regressando a Lisboa onde assenta raízes
deinitivamente. Dois anos depois tem permissão da direção para criar a primeira
consulta pré-natal em Portugal. No verão de 1904 casa com Elisa de Sousa e
Barros, proveniente do Porto com quem tem duas ilhas. Em 1907 especializa-
se em obstetrícia e ica encarregue da clinica dessa unidade na Escola Cirúrgica
de Lisboa, e só será transferido para o quadro de obstetrícia em 1927. Em 1913,
conjuntamente com o prof.º Augusto Monjardino (1871-1941), o Arq.º Miguel
Ventura Terra (1866-1919), colabora nos estudos de localização e conceção do
que viria a ser a Maternidade Alfredo da Costa12, sendo nomeado seu subdiretor
quando esta abre portas a 31 de Maio de 1932. Até a abertura de tão distinto
edifício, e porque a necessidade assim o ditava, em 1927, instala-se num edifício
já existente na Rua de S. Lázaro, a Maternidade Magalhães Coutinho13, em que
Costa Sacadura assume a direção. Fica responsável pelo serviço clinico de obste-
trícia, onde ira realizar em 1935 cursos de puericultura e enfermagem caseira com
o auxílio de duas médicas e uma enfermeira inglesa. Nesse mesmo ano, apoiado
pela família Bensaúde, estabelece sob a sua direção a ‘maternidade secreta’ Abraão
Bensaúde, no intento de combater o aborto e a morte dos recém-nascidos, sendo
ai a assistência anónima, sem obrigação de dar um nome. Paralelamente às suas
funções nos hospitais públicos foi também médico-chefe no Hospital de S. Luís
e médico da Misericórdia de Lisboa. Dirá um dia a propósito da sua dedicação à
especialidade da obstetrícia:

12 Assim designada em homenagem à igura do médico, que fora diretor da Maternidade de Santa Bárbara inclusa
no Hospital de S. José, tendo sempre lutado pela melhoria das inadequadas condições das instalações e pela
supressão das carências de material indispensável, apelando vezes sem conta às autoridades e ao seu colega,
Enfermeiro-Mor dos Hospitais, o médico Curry Cabral. Morre a 2 de Abril de 1910 sem ver sanados os seus
anseios e o sonho que acalentava de criar uma moderna maternidade em Lisboa. A 15 de Maio do ano em que
faleceu, amigos, colegas e admiradores, entre eles o seu discípulo Costa Sacadura, formaram uma Comissão de
homenagem à sua pessoa no intento de levar avante tal projeto idealizado.
13 Esta maternidade, atualmente conhecida por Hospital Dona Estefânia, foi primeiramente designada Magalhães
Coutinho, em homenagem à memória e trabalho do prestigiado médico-cirurgião e parteiro do século XIX que
viveu entre 1815-1895.

257
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

“Creio ter patenteado a culminância atingida pela obstetrícia, que deixou de ser
aquela arte apenas cultivada por matronas, para ocupar um lugar proeminente
na medicina e para cujo exercício não basta un peu de savoir et beaucoup de savoir
faire, como se dizia, mas sim muita ciência, e muita consciência.” (CORTE-
SãO, 1966:216)
A sua carreira docente começa cedo, assim que se especializa em 1907 é encarre-
gue da clinica de obstetrícia na antiga Escola Cirúrgica de Lisboa. Com a reforma
do ensino superior14 em 1911levada a cabo pelo Governo Provisório da República,
nesse mesmo ano é indicado para 2º assistente de Obstetrícia e passados três anos
para 1º assistente. Em 1923 torna-se professor livre, em 1930 é nomeado auxiliar
e sete anos depois encarregado da regência do curso. Chega à cátedra aos sessenta
e seis anos, no ano de 1939 na Faculdade de Medicina de Lisboa. Lecionou si-
multaneamente na Escola Proissional de Enfermagem e na Escola Artur Ravara
onde acumulou a função de diretor. Foi também professor e pedagogo na Escola
Francesa e na Escola Normal Primária de Lisboa, onde ministrou as cadeiras de
higiene geral e pedologia. Em 1942, ao celebrar o seu 70º aniversário, é por im-
posição da lei vigente obrigado a abandonar os cargos públicos que ocupava. Em
Maio desse ano, na última lição que deu aos seus alunos na Faculdade retrata o seu
caracter de professor:
“ […] não vinha dar aulas, vinha receber e estudar lições com os meus alunos,
acompanhando com eles, a par e passo, os avanços da Ciência […] (CORTE-
SãO, 1966:216)
Recebe inúmeras e sentidas homenagens em todos os serviços onde trabalhou,
sendo-lhe prestados tributos e descerradas placas comemorativas15 nos locais. Estes
eventos são amplamente divulgados e registados pela imprensa nacional e regional,
assim como por mensagens e reações amistosas de ilustres iguras internacionais.
De destacar as palavras de apreço do Ministro da Bélgica Lichtervelde:
“ […] je connaissais déjà, maints dátails nouveaux qui ne peuvent que me faire
apprècier davantage cet excellent médecin, grand citoyen portugais et homme
de bien dans tout les domains.” (CÉSAR, 1943:87)

14 Com esta reforma são colocadas em pé de igualdade as três Faculdades de Medicina existentes em Portugal,
icando a de Lisboa e a do Porto com igual estatuto que a de Coimbra, que até à data detinha supremacia e direitos
sobre as outras, o que signiicava desfavorecimento dos alunos de medicina não formados nesta.
15 Por iniciativa dos seus alunos foi descerrada uma placa de mármore na sala de curso onde deu a sua última aula,
com a inscrição: “Ao nosso querido Mestre Costa Sacadura, homenagem do seu último curso. 11.5.1942.”. A 16
de Julho foi descerrada outra placa de mármore na sessão solene na Maternidade Alfredo da Costa, designando
como ‘Costa Sacadura’ dai em diante a unidade dos serviços clínicos. Um dia depois na sessão solene realizada na
escola de Enfermagem Artur Ravara é descerrado um busto de bronze em baixo relevo do insigne professor. Por
determinação oicial uma das enfermarias da Maternidade Magalhães Coutinho passa a ter o seu nome.

258
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

A 14 de Julho desse mesmo ano é publicada uma portaria de louvor, fazendo


constar o reconhecimento dos governantes portugueses pelo trabalho e carreira do
Doutor Costa Sacadura:
“Devendo […] Dr. Sebastião Cabral da Costa Sacadura, abandonar os seus
cargos oiciais por haver atingido o limite de idade, manda o Governo da Re-
pública Portuguesa, pelo Ministro do Interior, que àquele clínico seja dado pú-
blico louvor pelos assinalados serviços que prestou durante cerca de 45 anos
nos Hospitais Civis de Lisboa, sobretudo na assistência à maternidade, […].”
(CORTESãO, 1966:220)
Estes magnânimos atos por parte da comunidade que serviu, e continuara a
servir até ao im das suas forças, são apenas o culminar de uma vida repleta de
distinções, medalhas e louvores, muitos deles vindos do estrangeiro, que guardava
com grande estima16. Das vinte e duas condecorações17, em que apenas oito eram
portuguesas, destaca-se a comenda de Sant’Iago da Espada, os grandes-oicialatos
de Cristo e da Benemerência, em que foi chanceler, e a comenda da Ordem da
Espiga de Ouro da República Chinesa.
Devotados cerca de quarenta e cinco anos da sua vida enquanto clinico aos Hos-
pitais Civis de Lisboa e às Maternidades, que ajudou a criar e gerir, e enquanto pro-
fessor e diretor às Escolas de Medicina e Enfermagem, sendo ainda que vinte e um
destes anos desempenhou o cargo de inspetor e médico escolar, quando reformado
em vez de descansar, continuo a laborar, a escrever artigos cientíicos e a fazer-se
assiduamente presente em congressos, conferencias e sessões das sociedades doutas
em que era sócio.
Nos últimos anos da sua vida sentiu a dor da perda da sua esposa e da sua ilha
Maria de Barros Lima, passou por alguns momentos críticos de saúde, porém a 17
de Julho de 1966 no dia em que completava 94 anos esteve presente na cerimónia
de homenagem que lhe prestaram na sua terra natal, onde um busto seu foi descer-
rado, em frente as escolas que mandou construir, por um neto seu. Na assistência
estavam outros familiares, nomeadamente a sua ilha Maria Teresa, a neta Maria da
Conceição, o seu genro, os seus bisnetos, muitos amigos e uma vila inteira que se
engalanou para o receber e celebrar, a quem dirigiu as singelas palavras: ‘Bem-haja
a todos’. Vem a falecer pouco depois, dia 9 de Setembro do mesmo ano na sua casa

16 “Uma vez, na sua casa de Lisboa, mostrou-me dois álbuns que guardava religiosamente. Num deles, enorme,
bem ordenados, todos os diplomas e honras que lhe foram dados e digo que levei bastante tempo a folheá-lo.”
(GAMA, 1966:9)
17 Para além das mencionadas no texto de referir a condecoração da Ordem Militar de Cristo, da Sociedade
Portuguesa da Cruz vermelha e da Ordem da instrução Pública, assim como as numerosas distinções vindas de
Espanha, França, Bélgica, Roménia, etc.

259
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de Lisboa, no Campo de Sant’Ana. O seu corpo icou em camara ardente na Igreja


da Pena, e posteriormente transportado para o Cemitério de Agramonte para o
jazigo da família.

A SUA OBRA CIENTÍFICA

A sua produção cientíica conta com cerca de 18618 artigos de sua autoria, aos
quais se acrescenta um número signiicativo de títulos escritos em co-autoria.
Pertenceu a várias Sociedades médico-cientiicas e participou em inúmeras con-
ferências e diversos Congressos nacionais e internacionais, onde se ia instruir e
representar Portugal, sendo muitos deles organizados ou presididos por si próprio.
Estes eventos apresentavam-se como oportunidades para trocar conhecimentos,
partilhar realidades e lançar alertas para situações que careciam um olhar atento
e urgente. Muitos dos textos publicados eram preleções que preparava, em tom
coloquial, acessíveis aos ouvintes e leitores, escritos com uma franqueza que não
atendia às idiossincrasias alheias. Não obstante a sua acutilância, era um homem
de trato elegante que não omitindo aquilo que pensava e que achava dever dizer,
fazia-o com a máxima educação e objetividade.
Segundo consta, fora sócio de pelo menos trinta e duas agremiações19 cientí-
icas, portuguesas e estrangeiras, sendo em muitas delas membro honorário. Nos
artigos escritos nas duas primeiras décadas do século XX, entre outras atribuições,
na folha de rosto é sempre feita a referência ao facto de ser membro titular da So-
ciedade Suissa de Hygiene Escolar e membro da Sociedade das Ciências Médicas
de Lisboa. Esta última frequentava desde estudante20, e é precisamente ai que o
seu empenho em congregar e dinamizar a sociedade médica portuguesa mais se
evidenciou, tomando maior enfase quando se torna presidente da mesma em 1923,
sucedendo assim ao Dr. Nicolau Bettencourt (1815-?). Mantém o cargo por dois
mandatos e posteriormente é proclamado sócio benemérito e seguidamente secre-

18 Informação que se baseia na lista descritiva das suas obras inclusa no artigo de Montalvão Machado publicado
no n.º3/4 do Boletim Clinico dos Hospitais Civis de Lisboa de 1966, em que acrescenta que o Dr. Costa Saca-
dura terá escrito em co-autoria 199 artigos.
19 Para além daquelas referidas no texto acrescentem-se mais algumas: Sociedade Médica dos Hospitais Civis
de Lisboa; Sociedade Portuguesa de Cirurgia; Associação Médica Lusitana (Porto); Sociedade Farmacêutica
Lusitana; Instituto de Coimbra; Associação dos Médicos do Centro de Portugal; Associação Portuguesa de
Urologia; Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, etc. Foi também admitido em agremiações de Obstetrícia,
Ginecologia e Medicina Geral de outros países como a Espanha, França, Inglaterra, Bélgica, Suíça e Brasil.
20 Segundo consta para assistir aos duelos cientíicos de Manuel Bento e Sousa Martins (1843-1897), Miguel
Bombarda (1859-1910) e Curry Cabral (1844-1920), Eduardo Mota (1837-1912) e Sabino Coelho, que à
exceção deste último, todos eles foram presidentes da Sociedade.

260
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

tário perpétuo. Um trabalho coroado com a Grã Cruz de Santiago, que ao longo
dos anos não foi esquecido, tendo a sua capacidade mobilizadora e de dedicação
às causas, sido lembrado pelo Dr. Lopo de Carvalho (1890-1970) em 1958 nos
seguintes termos:
“ O que o prof. Costa Sacadura fez na Sociedade de Ciências Médicas foi de-
veras notável, Sociedade cientiica havia muito adormecida, conseguiu o nosso
ilustre confrade transformá-la num centro prestigioso de cultura médica nacio-
nal. A Sociedade atravessava então um período de triste declínio […] Sobre a
presidência do Dr. […] tudo mudou: o jornal passou a publicar-se com maior
regularidade; as sessões […] passaram a ser semanais; realizaram-se atos sole-
nes, celebrando centenários de Pasteur, Laennec, Jenner, Lister; izeram con-
ferências na sua sede professores estrangeiros; […] criaram-se, além da secção
de Medicina Legal e de higiene, que já existia, as secções de Pediatria, Otorri-
nolaringologia, Estomatologia, oftalmologia, medicina Castrense e História da
medicina.” (CORTESãO, 1966:218)
Igualmente notável foi a sua presença na Academia das Ciências de Lisboa,
para onde entrou como sócio correspondente em 1907, sendo eleito como efetivo
em 1955, sucedendo na cadeira n.º10 ao prof. Azevedo Neves (1877-1955). Ai fez
muitas comunicações, em que a mais lembrada é aquela que decorreu na sessão
solene de 24 de Maio de 1963 em comemoração do 4.º Centenário da publicação
dos Colóquios dos Simples, de 1563 ocorridos em Goa, obra do médico Garcia da
Orta, evento este realizado por sugestão de Costa Sacadura na sessão da Classe das
Ciências a 20 de Abril de 1961.
Com o seu impulso e entusiasmo concorreu para o aparecimento de várias asso-
ciações e sociedades tais como a Sociedade Médica dos Hospitais Civis de Lisboa,
a Liga Nacional de Educação, a Associação do Enxoval do Recém-Nascido, a So-
ciedade Portuguesa da Alergia e a Sociedade de Hidrologia Médica. Nesta última
foi fundador e presidente, numa altura em que as ciências hidrológicas não eram
alvo de grande estudo. Costa Sacadura embrenha-se na pesquisa dos benefícios que
as águas termais poderiam ter na cura de doenças e na revitalização do organismo
humano. Para tal em 1900 inicia uma série de visitas às estações termais francesas
e suíças, observando as instalações, analisando as condições climatéricas e hidro-
lógicas, experimentando pessoalmente os tratamentos e serviços disponibilizados
e acompanhando casos clínicos que se encontrassem a receber tratamento. Todos
estes e outros conhecimentos os trouxe para Portugal, partilhando-os em confe-
rência e artigos cientíicos, e em ações culturais de divulgação, como exposições, e
instigando à constituição de museus temáticos.

261
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Importante foi também a Sociedade de Estudos Pedagógicos21, de que foi fun-


dador em 1910, conjuntamente com os principais nomes da pedagogia portuguesa
daquele período22. Foi secretário nos quatro primeiros anos e vice-presidente em
1916-1917, e sendo ele um inspetor sanitário e um médico escolar, tinha como
missão ocupar-se do estudo dos aspetos higiénicos e pedagógicos do ensino e da
construção das novas escolas. Embora a sociedade só se tenha mantido por cinco
anos, foram intensas as atividades e largamente reconhecido o seu valor, como
atesta o convite feito pelo governo para o envolvimento dos seus membros no
Questionário Geral sobre o ensino primário, elaborado pela Comissão parlamentar de
inquérito ao ensino público.
Os temas sobre os quais escrevia eram fruto das suas preocupações clinicas e
sociais. Debruçava-se sobre temas relacionados com a hidrologia, a higiene escolar,
a ginecologia e a obstetrícia, abordando questões sobre: a pedologia, a puericultura,
a proteção à primeira infância, a higiene e saúde no casamento, a tuberculose in-
fantil, as grávidas, a mortalidade das mulheres grávidas e dos seus bebés, o aborto
criminoso, a necessidade de maternidades com condições, as maternidades secretas
como mecanismo de preservação social, etc.
Os colóquios eram momentos espácio-temporais ideais para a exposição de tais
estudos e indagações. Atendendo a eles trocavam-se conhecimentos, organizan-
do-os e presidindo-os promoviam-se as temáticas mais prementes. Muitos foram
aqueles a que atendeu, e com tanta frequência e militância que entre o período de
1920 a 1940, obteve anualmente uma autorização que lhe permitia ausentar-se
das suas funções em Agosto e Setembro para poder estar presente em Congressos
de obstetrícia, Ginecologia e Higiene Escolar, em ‘comissão gratuita de serviço’.
São especialmente relevantes os congressos ocorridos nas duas primeiras décadas
do século XX a que foi. Em Abril de 1907, no Porto, toma parte do ‘Congresso da
Liga Nacional contra a Tuberculose’, onde por sua sugestão e insistência se criou
uma secção especial, dedicada ao tema ‘A Tuberculose e a Escola’, que contou com
relatórios e comunicações num total de trinta títulos23. No mesmo ano participa

21 Para além de ter como im a investigação do desenvolvimento físico e psíquico das crianças, fazendo a veriicação
experimental dos métodos de ensino, tinha também como objetivos estudar os métodos e processos pedagógicos
em uso nos países mais avançado. Pretendiam igualmente chamar à atenção e apelar ao interesse dos poderes
públicos para os estudos e aplicações da pedagogia.
22 A Sociedade contava com cerca de cem membros, entre os quais iguravam: José de Magalhães, Almeida Lima,
Luiz Shwalbach, Cirilo Soares, Reis Santos, Adolfo Sena, Adolfo Lima, António Sérgio, Ferreira Simas, João de
Deus Ramos, João de Barros, Sá Oliveira, entre muitos outros.
23 “ […] trabalhos da autoria de verdadeiras autoridades, entre os quais se destacava Pacheco Miranda, o professor
universitário Alves dos Santos, Alberto Gonçalves, Henrique Mouton, Almeida Dias, Guilherme José Enes, Jorge
Cid, Aurélio da Costa ferreira, Quartin Graça, Sacadura Falcão, Almeida Rocha e outros.” (SACADURA, 1960)

262
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

no ‘II Congresso Internacional de Higiene Escolar’ em Londres, onde apresenta


um documento intitulado ‘A higiene escolar em Portugal’, que consiste num re-
sumo sobre a evolução do ensino e das condições sanitárias dos edifícios escolares
no nosso pais, que inaliza com a apresentação do projeto de uma das escolas-tipo
concebidas pelo arquiteto Adães Bermudes. Salienta-se que foi ai eleito membro
do Comité permanente, revestindo-se de pertinência as palavas que um ano antes
escrevera num artigo seu a propósito deste mesmo evento:
“No primeiro d’estes congressos que se realizou em Nuremberg em 1904, Por-
tugal foi o único paiz civilizado da Europa que não se fez representar oicial-
mente. Lamentável será que Portugal não se faça representar d’esta vez […]
enviando alli um delegado e que os hygienistas escolares não vão alli tomar
parte nas discussões e não apresentem alguns trabalhos […] quasi todos os pa-
íses europeus annunciaram já a sua representação, notando-se até agora a falta
da de Portugal […]” (SACADURA, 1906:9-10)
No ano seguinte está presente como delegado oicial no ‘Congresso de Educa-
ção Popular’ em Paris, volta a ser representante oicial do governo português em
1910 no ‘III Congresso Internacional de Higiene Escolar’ em Paris e em 1911
no Congresso Internacional para a protecção da Infância’ em Berlim. Em 1913 é
nomeado para fazer parte da comissão organizadora do ‘Congresso Internacional
para a Protecção da Infância’ em Bruxelas e em 1919 é presidente de honra da
VIII secção do ‘Congresso Inter-Aliados de Higiene Social’ em Paris.
Nunca afastado da prática clinica e do ensino universitário, é desta forma, que
no âmbito das Sociedades a que pertence e dos congressos e conferências em que
toma parte, que vai produzindo textos cientíicos. Sendo assim observado pelo seu
amigo e colega Montalvão Machado:
“Praticando e ensinando a arte da Obstetrícia durante cerca de meio século,
Costa Sacadura foi principalmente e essencialmente um homem prático, sem
tempo disponível para a confecção de grandes tratados.” (MONTALVãO,
1966:718)
Isso é claramente observável nas referências bibliográicas que compõem a lista
de obras da sua autoria, em que a esmagadora maioria são artigos. De resto essa
relação dos trabalhos publicados merece uma análise mais atenta, ou não fosse
impressionante o número de títulos que a compõem e a diversidade dos mesmos.

263
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

No gráico da igura 124, a linha média que se move sobre as barras que represen-
tam a produção cientíica da autoria de Costa Sacadura por décadas, atinge a sua
maior distância na década de 40, contando com 54 obras publicadas.

FIGURA1 - OBRAS DO DR. COSTA SACADURA ANALISADAS POR DÉCADAS

FIGURA 2 - OBRAS DO DR. COSTA SACADURA ANALISADAS POR ANO

24 Os gráicos apresentados na igura 1 e 2 foram concebidos com base na lista de publicações da autoria de Costa
Sacadura, elaborada por Montalvão Machado em 1966, que não inclui textos em co-autoria. Não entra nesta
análise gráica os Rapports sur l’Hôpital de St. Louis de Français correspondentes ao período 1916-1934.

264
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

Este número perfaz cerca de 29% dos textos assinados apenas por si, correspon-
dendo ao período em que o prof. Dr. cessa as suas funções oiciais passando a dispor
de mais tempo para se dedicar com alto grau de exclusividade à investigação.
Talvez curioso será constatar após a visualização do gráico da igura 2, que só o
ano de 1942 conta com dezassete publicações, altura em que se dá o seu jubilamento.
Todos os outros anos têm inferiores taxas de publicação, registando-se uma constan-
te de produção cientíica na década de 10 e 20 na ordem dos 12%, com um aumento
na década de 30 para os 18%. O ano de 1906 é profícuo muito por conta da grande
jornada que lança para chamar a atenção dos seus contemporâneos para as questões
da Higiene escolar25. As duas primeiras décadas do século XX pontuam por serem
períodos muito focadas em escritos sobre a necessidade da sanidade em espaço esco-
lar, aspetos da construção escolar, educação física infantil, ação de proteção à infância
e à gravida, natalidade, assistência social e de puericultura, cuidados e progressos no
campo da obstetrícia, higiene do estudante e da família ou o combate à tuberculose26.
Tendências decorrentes da especialidade e das funções de médico e inspetor escolar
que Costa Sacadura desempenhava em pleno por esses dias, que inevitavelmente
continuarão presentes nas décadas seguintes. A média de publicações por ano varia
muito ao longo da linha temporal, sendo que anualmente tende a ser publicado no
mínimo um artigo e no máximo sete, com exceção dos anos 1942 e 1916.
Naquilo que podemos designar por “anos de aposentadoria”, o seu investimento
na escrita é intenso, continua a escrever sobre os temas que sempre o inquietaram,
porém surgem outros trabalhos de cariz mais histórico e monográico, que incidem
sobre a história das ciências médicas27 e que versam sobre iguras médicas, especiali-
dades médicas, costumes da proissão, centenários, etc.
Os números e a análise da sua obra escrita seriam certamente ainda mais ex-
pressivos com a inclusão dos artigos que escreveu em co-autoria.

25 São disso exemplo os títulos: Des ouvrages d’hygiéne scolaire parus au Portugal, Breves considerações sobre a Higiene
das novas escolas, Atitudes viciosas nas escolas, Questões de higiene escolar, A tuberculose e a escola.
26 São disso exemplo os títulos: A escrita direita e a escrita inclinada – Sua inluência na função respiratória, 1907;
Parecer sobre o anteprojecto do liceu da 1.ª zona escolar de Lisboa, 1907; Puericultura ante-natal, 1910, Questions
d’enseignement au Portugal, 1911; Protecção à primeira infância, 1911; Necessidade da cultura física, 1913; Colecção de
Legislação sobre Higiene Escolar e Ginástica, 1916, Lições de higiene professadas na Escola Normal Primária de Lisboa,
1922; A despopulação em Portugal, 1923; Mobiliário escolar, 1924; A medicina e a Sociologia, 1924; Assistência e pue-
ricultura em Portugal, 1926; A importância social da saúde e o casamento, 1927; Importância das consultas municipais
para grávidas e recém-nascidos, 1928; Aborto criminoso em Portugal, 1929;
27 São disso exemplo os títulos: Exposição de jornais portugueses e brasileiros de medicina e ciências médicas ains, 1944;
A propósito de nomenclaturas em obstetrícia, 1954; Facetas do jornalismo médico português, 1945; Uma obra social que
se impõem. O valor espiritual de um Museu da história da medicina, 1945; No centenário da anestesia pelo éter (1846-
1906), 1947; A Anestesia na antiguidade, 1947; Subsídios para a história da Enfermagem em Portugal, 1950; Para a
história da Hidrologia em Portugal, 1951; A sociedade das Ciências Médicas de Lisboa e os médicos da India Portuguesa,
1954; Sistema de identiicação dos recém-nascidos nas maternidades, 1957; Nobreza e utilidade da Medicina, 1957;
Elogio histórico ao prof. Azevedo Neves, 1958; Trajos oicias e sociais dos médicos, 1958; Achegas para a história da
Higiene Escolar em Portugal, 1960; A propósito do IV Centenário dos Colóquios dos Simples, de Garcia de Orta, 1961.

265
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

O SEU CONTRIBUTO PARA A HIGIENE E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL

No que concerne à dedicação de Costa Sacadura às matérias da higiene e cons-


trução escolar, esta está bem patente nas suas ações de divulgação das questões que
lhes estavam relacionadas, e no notável trabalho que desenvolveu enquanto inspe-
tor e médico escolar. A este respeito em 1960, numa conferência que proferiu no
Centro de Estudos de Higiene Escolar Universitária, disse estas sentidas palavras:
“[…]’on revient toujour à ses premiers amours’. E em boa verdade foram para a
Higiene Escolar os meus primeiros amores, verdadeira paixão, ao entrar na vida
oicial, como médico escolar em Dezembro de 1901. […] Grandes problemas
se encararam então aos meus olhos, num vasto campo em que até ai não ouvira
falar, porque dele se não falava em Portugal, e que despertara em mim o entu-
siasmo da juventude.” (SACADURA, 1960)
É com a reforma do ensino primário de 190128, que se cria a Inspecção Sanitária
Escolar, que em 1905, com a reforma do ensino secundário29, vê alargada a sua ju-
risdição a este grau de instrução. Àquela época a Direcção Geral da Instrução Pú-
blica tinha como diretor o professor Universitário Abel de Andrade (1866-1958),
que escolhe Costa Sacadura para ser Inspetor Sanitário Escolar, nomeando-o oi-
cialmente o primeiro médico escolar30 entre nós. De notar que neste mesmo ano é
também criada a Direcção Técnica das Construções Escolares, que terá orientação
do distintíssimo Arquiteto Adães Bermudes (1864-1947), que em 1898 obteve
o 1º prémio no concurso destinado a conceber um projecto-tipo para as novas
construções escolares destinadas ao ensino primário promovido pelo Ministério do
Reino. Este mesmo projeto é agraciado, em 1900, na Exposição Universal de Paris
com Medalha de Ouro da Secção de Arquitetura Escolar31.
Desde logo Costa Sacadura procurou despertar a consciência dos professores pri-
mários, sendo um dos seus primeiros atos enquanto autoridade escolar, a realização,
em 1903, de uma conferência na Escola Primária n.º1. Deparado com as míseras
condições do dito espaço, às suas expensas, fez substituir bancos vulgares sem encos-
to por cadeiras e levou de casa cadeeiros de petróleo para iluminação da sala. Mais
tarde em 1907, e tendo nessa escola encontrado dois motivados colaboradores, os
professores Castro Rodrigues e José Luís Ribeiro, instalou ai, por iniciativa própria,

28 Cf. Decreto n.º8 de 24 de dezembro de 1901 e Decreto n.º1 de 19 de Setembro de 1902


29 Cf. Decreto de 29 de Agosto de 1905.
30 Cf. Diário do Governo, Série I, n.º294, de 28 de Dezembro de 1901.
31 Foi oicialmente nomeado delegado por Lisboa à Exposição Universal de Paris, a 23 de Novembro de 1898, e
convidado por Ressano Garcia (1847-1911) a apresentar o seu projeto de edifícios escolares como concorrente a
esse mesmo certame.

266
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

um gabinete de pedologia32, onde frequentemente promovia colóquios sobre higie-


ne escolar aos docentes. Tudo isto em prol de uma luta, que nesses primeiros anos
apelidou de ‘surda’, cujo objetivo era a aceitação por parte dos professores da entrada
e auxilio do médico nas salas de aulas onde ‘se julgavam soberanos’.
Outro momento para si importante foi o Congresso da Liga Nacional Contra a
Tuberculose, em 190733, onde sentiu terem-se congregado as atenções da comuni-
dade médica e docente para os assuntos da higiene escolar, que anos mais tarde de-
fende como um ‘documento autêntico’ da história da sanidade escolar em Portugal.
Antecipando este encontro nacional, em Dezembro de 1906 faz publicar no
Boletim da Assistência Nacional aos Tuberculosos, breves considerações sobre a Tuber-
culose e a Escola, onde relata o que tem observado durante as suas inspeções aos
estabelecimentos de ensino, dizendo acerca do Liceu de s. Domingos em Lisboa:
“São velhos casarões anti-hygienicos, sendo os alunos obrigados, por falta de
jardins ou pateos, a passar os intervalos em ruas poeirentas e sujas, em contacto
com elementos contrários à instrucção que devem receber n’esses estabeleci-
mentos.” (SACADURA, 1906:9)
Sublinha que o combate às doenças terá de ser feita através da existência de
boas condições sanitárias nas escolas, da implementação de proilaxias adequadas
assim como do provimento de mobiliário escolar adaptado34 aos alunos. Para que
as crianças possam crescer saudáveis e se tornem os homens e mulheres válidos
do amanhã, livrando o país de deformados, raquíticos, tuberculosos, dispépticos,
e poupando aos cofres do Estado dispensas onerosas na assistência pública. Re-
força a necessidade da construção de escolas sob a orientação dos novos preceitos
higiénicos e pedagógicos, que incluam espaços apropriados para o recreio e exer-
cício físico35. Em situações que não seja possível a construção de ginásios, onde se
possa praticar a ginástica sueca, que existam nas escolas pátios ou jardins onde se
brinquem os jogos tradicionais/populares, que obriguem o corpo a movimentar-
se. Costa Sacadura era ainda defensor da desinfeção de livros usados para evitar
contágios e da elaboração de horários equilibrados que não levassem ao esgota-

32 “Criei nessa escola um gabinete de Pedologia, com quadros, gravuras, catálogos e instrumentos de antropo-
metria, adquiridos à minha custa nas minhas viagens ao estrangeiro, viagens igualmente à minha custa, sem
subsídio algum. Colaborei intensamente.” (SACADURA, 1960) - Em 1909, o governo envia-o a Bruxelas para
frequentar um curso de Pedologia.
33 A este congresso apresenta os trabalhos sobre A escrita direita e a escrita inclinada. Sua inluência na função respira-
tória e as Bibliotecas escolares e doenças contagiosas.
34 Aproposito diz: “A’ miséria dos edifícios escolares junta-se a pobreza do mobiliário. […] é urgente banir das nos-
sas escolas o banco sem encosto, instrumento de tortura e de deformação das creanças.” (SACADURA, 1906:9)
35 […] é manifesta a má vontade de uma grande parte das famílias e ainda de muitos aluno contra a obrigação da
gimnástica e dos jogos nas escolas, vendo apenas um pretexto para os alunos brincarem, quando as famílias aí os
mandam para de lá saírem uns sábios.” (SACADURA, 1913:8)

267
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

mento físico e mental o aluno, devendo ser organizados com base na relação do
grau de diiculdade da matéria com a hora do dia. Enfatiza ainda a importância
do ‘livrete sanitário individual’ onde se registe os resultados dos exames médicos
de cada criança, devendo a veriicação ao aluno ser a mais completa possível. Se-
gundo este, o exame médico não pode resumir-se a atestar ou não a capacidade/
condição para a prática da ginástica, deve também fazer a despistagem de proble-
mas visuais e auditivos que tantas vezes são a causa do mau rendimento escolar,
e que uma vez identiicados e devidamente assinalados, podem constituir um
critério de justa distribuição dos alunos pela sala de aula que não o infame favo-
ritismo. Termina o texto com uma visão perspicaz do muito que terá de ser feito e
das condições que terão de ser reunidas, que de resto sumariza a sua luta pessoal:
“Entre nós […] tudo há a fazer. Construção de edifícios, aquisição de mobiliá-
rio e material escolar, organização do ensino da hygiene nas escolas primárias,
secundárias e superiores, organização productiva da inspecção médica […] é
preciso preparar o espirito público para subemetter a medidas de hygiene social
e as famílias para compreenderem a benéica inluência da hygiene escolar, co-
laborando com os professores e com os médicos na educação integral dos seus
ilhos. A lucta é grande, pois que é preciso vencer a inercia de uns, a má vontade
de outros e a ignorância do maior numero.” (SACADURA, 1906:15)
Parte das suas funções passava pela presença em comissões nomeadas pelo go-
verno, que eram encarregues, entre outras missões, de emitir pareceres ou elabo-
rar estudos sobre localização e projetos de liceus, estabelecer os horários e regula-
mentos internos dos estabelecimentos de ensino, proceder à seleção e aquisição de
mobiliários e material escolar adequado, recolher legislação e propor planos para
a sua atualização ou ser júri em concursos. Compostas por ilustres iguras, que
seriam autoridades nos campos para os quais eram chamados a opinar, no campo
da higiene e construção escolar, eram indigitados sobretudo médicos, arquitetos,
engenheiros e pedagogos. Como médico e inspetor escolar, o Dr. Costa Sacadura
esteve presente em inúmeras comissões, com relevância para a sua participação:
em 1902, na revisão do projeto do primeiro Liceu de Lisboa, mais tarde designa-
do Passos Manuel, juntamente com Abel de Andrade e Ricardo Jorge; em 1907,
na avaliação do anteprojeto do edifício para instalar o Liceu Central da 1ª Zona
de Lisboa, conhecido hoje como Liceu Camões, da autoria do arquiteto Ventura
Terra; em 1910, na elaboração de bases da educação física escolar; em 1914, na es-
colha e preparação das bases dos projetos para os edifícios do Liceu de Viseu e do
Liceu Alexandre Herculano no Porto, em conjunto com Oliveira Simões e o Arq.
Ventura Terra; Nesse mesmo ano, reúne com o Arq. Adães Bermudes, João Barros

268
DR. COSTA SACADURA (1872-1966) E A SUA OBRA CIENTÍFICA: OS SEUS CONTRIBUTOS PARA A HIGIENE
E CONSTRUÇÃO ESCOLAR EM PORTUGAL NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O SÉC. XX

e Oliveira Simões para aquisição do terreno onde será construída a Escola Normal
de Lisboa; Em 1917, na escolha do mobiliário para as futuras escolas normais de
Lisboa, Porto e Coimbra, em concordância com João de Deus Ramos e o Arq. Raul
Lino; Nesse mesmo ano, conjuntamente com o Arq. Raul Lino, Augusto Vieira da
Silva e Pereira Machado, na escolha do terreno para os edifícios das Faculdades
de Letras e de Direito da Universidade; em 1920 no estabelecimento de normas
técnicas, higiénicas e pedagógicas reguladoras do mobiliário escolar, com a presen-
ça do Arq. da repartição de construções escolares e Adolfo Lima; e em 1921, na
elaboração das bases para a reforma do ensino secundário.
De destacar o trabalho resultante da Comissão encarregue de estabelecer as nor-
mas técnicas, higiénicas e pedagógicas a que devem satisfazer os novos edifícios es-
colares, nomeada pela Portaria de 13 de Julho de 1912, do Ministério do Fomento
(Direcção Geral de Obras Públicas e Minas)36, formada pelo Dr. Costa Sacadura,
pelo Arq. Adães Bermudes e pelo professor Arlindo Varela, vogal do Conselho
Superior de Instrução Pública. Deste labor, que durou aproximadamente dois anos,
e que beneiciou do conhecimento e experiencia da equipa reunida, resultou um
documento extremamente detalhado, orientado pelos mais recentes preceitos higi-
énico, que estabelece com clareza um conjunto de aspetos que passam a regular a
construção e manutenção das novas escolas. Fica conhecido por decreto n.º2:947,
e embora só tenha sido publicado a 20 de Janeiro de 1917, o seu conteúdo era já
amplamente conhecido por ter sido divulgado em algumas publicações periódicas.
Na altura veio colmatar uma lacuna na legislação, e ao longo dos anos manteve-se
como referência.
No ano de 1909 é designado como médico escolar do Liceu Camões onde pos-
sui um gabinete, entretanto com a extinção dos serviços em 1910, e com o restabe-
lecimento dos mesmos em 1911, passa a sê-lo em todos os Liceus de Lisboa. Exer-
ceu o cargo de Inspector-Geral da Sanidade Escolar em 1912 e depois em 1919 até
1929. Foi também diretor da Repartição de Sanidade Escolar. De assinalar ainda as
compilações de legislação que executou sobre a Higiene Escolar e a Ginástica em
1915, e sobre a Construção Escolar em 1919, a im de elaborar propostas/sugestões
nesses âmbitos, bem como o seu papel determinante na Remodelação do Regula-
mento dos Serviços de Sanidade Escolar em 1918.

36 Cf. FERNANDES, Soia, “Os equipamentos escolares n’a Construção Moderna”, in MESQUITA, Marieta Dá
(Coord.), Revistas de Arquitectura: Arquivos(s) da Modernidade. Caleidoscópio/CIAUD, Casal de Cambra, 2011,
pp.334-351.

269
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

NOTAS FINAIS

Médico, cirurgião, pedagogo, sociólogo, jornalista e investigador. Costa Sacadu-


ra é descrito por aqueles que o conheceram como um homem de ordem, católico,
conservador porém avesso à política. Tendo vivido sob vários regimes, desde a Mo-
narquia Liberal, passando pela República Democrática até ao estado Novo, nun-
ca tomou partido em nenhum panorama politico, talvez por isso nunca se tenha
coibido de apontar o dedo37 quando a situação assim o exigia. Amigo do próximo,
acessível a quem acorresse a ele, recebia com simplicidade e solicitude. Tinha ad-
miradores e detratores, uns que entendiam e apoiavam os seus intentos, outro que
mesquinhamente apenas o invejavam. Nada prova melhor a sua faceta de investi-
gador, sempre sedento de adquirir e partilhar novos saberes, que a biblioteca que
deixou composta por 10 mil obras, muitas delas raridades. Pouco tempo antes da
sua morte conidencia ao seu amigo Armando Cortesão:
“Sempre procurei fazer quanto me foi possível pelos que precisam, e sobretudo
pela infância, de quem tudo virá a depender, e pena tenho de que mais e melhor
não tivesse podido fazer, tanto por minha culpa como por culpa dos outros.”
(CORTESãO, 1966:215)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORTESãO, Armando, “Elogio histórico de Sebastião C. de Costa Sacadura, por Armando Cortesão, e
resposta ao recipiendário, por Maximino Correia”, in Separata do Boletim da Academia das Ciências de
Lisboa, n.º38, 1966.
GAMA, Anna-Maria Pereira da, “Evocando o passado do professor Costa Sacadura”, in Separata da
Junta Distrital de Lisboa, N.º 65/66, III Série, 1966, p.4.
MACHADO, J. T. Montalvão, “Prof. Dr. Sebastião Cabral da costa Sacadura”, in Separata do Boletim
Clinico dos Hospitais Civis de Lisboa, Vol. 30, N.º 3/4, 1966.
CÉSAR, Oldemiro (Coord.)
- O professor Doutor Costa-Sacadura e a sua obra cientíica e pedagógica – Homenagem dos seus amigos
admiradores e discípulos. Tip. Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1942.
- O professor Doutor Costa Sacadura no seu Jubilamento: ecos de lindas festas. Tip. Minerva, Vila Nova de
Famalicão, 1943.
SACADURA, Sebastião Cabral da Costa:
- “Breves considerações sobre a hygiene das nossas escolas”, in Polytechnia, n.º3, 1906.
- “Hygiene escolar – A tuberculose e a Escola”, in Boletim da Assistência Nacional aos Tuberculosos, n.º3, 1906.
- Necessidade da cultura física. Tip. de Cristóvão Rodrigues, Lisboa, 1914.
- “Achegas para a história da higiene escolar em Portugal”, in Separata da Semana Médica, n.º42, de 14 de
Fevereiro de 1960.

37 A título de exemplo: “ O maior culpado na morte da grande maioria das crianças é o Estado […] Por que moti-
vo? Por desleixo e por incúria apenas.” (CÉSAR, 1942:104)

270
Mulheres cientistas e os Trópicos:
(in)visibilidades da primeira metade
do novecentos português 1

2
Ana Cristina Martins
IICT – Instituto de Investigação Científica Tropical

“Esta produção [feminist science studies] tem procurado articular


dimensões teóricas da crítica ao conhecimento cientíico
com teorias da linguagem, ilosoia, sociologia
e história das ciências em suas mais diferentes vertentes. [...]
um campo disciplinar tão amplo e complexo”
(Lopes, 1998, p. 347)

ESTUDOS DE GÉNERO E ESTUDOS DE MULHERES:


UMA PEQUENA INTRODUÇÃO

De um modo geral, os denominados estudos de género escrutinam interligações


mantidas ao longo dos tempos e em diversos contextos, entre pertença étnica, ge-
ográica, social, económica, política, cultural, religiosa, idade e sexualidade. Posição
sustida no pressuposto sociológico de que não nascemos como somos, fazem-nos
e fazemo-nos como somos, de acordo com os respetivos meios socioculturais, por
serem estes a ditarem-nos o ser, estar e fazer. Mas não é uma relação unidirecional.
Ao contrário, os estudos de género reclamam uma visão bidirecional, pois a nossa
condição, ao nascer, inlui reiterada e complexamente nas estruturações supernas.

1 Trabalho executado no âmbito do projeto FCT HC/0046/2009, MAERUA – Motivações e resultados da 1.ª
Missão Botânica a Moçambique (1942).
2 Investigadora Auxiliar do Instituto de Investigação Cientíica Tropical, no âmbito do programa Compromisso com
a Ciência, onde incrementa projetos na área da História da Ciência, em geral, e da História da Arqueologia, em
particular. É Doutora em História, Mestre em Arte, Património e Restauro e Licenciada em História-variante de
Arqueologia pela Universidade de Lisboa, em cujo Centro de Arqueologia – Uniarq –, é investigadora principal
da linha “History of Archaeology in Portugal. heoretical Issues”. Possui várias publicações na área da História da
evolução do pensamento arqueológico, museológico e patrimonial, a maioria das quais resultante de comunicações
apresentadas em encontros nacionais e internacionais. Lecciona na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, na qualidade de Professora Auxiliar Convidada, coordenando a Secção de História do Património
e da Ciência, do Grupo História, Memória e Sociedade, do CPES – Centro de Pesquisa e Estudos Sociais, da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. E-mail: ana.c.martins@netcabo.pt / ana.martins@iict.pt

271
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Estas considerações assomaram em inais de 50, princípios de 60, por mão da so-
ciologia do género, por ocasião da segunda vaga feminista suscitada por ativismos
académicos herdeiros de mobilizações em períodos críticos. Tratou-se, ademais,
de uma oportunidade para alguém, como Jacques Lacan (1901-1981), consolidar
teorias. Para o conhecido psicanalista francês, o universo feminino era suplemen-
tar a toda a existência humana. Enquanto isso, a ilósofa pós-estruturalista norte-
americana Judith Butler (1956-) aprofundava a interpretação do género e da sexu-
alidade enquanto estruturas culturais (Sheield, 2006). Lentamente, os estudos de
género ramiicavam-se por vários saberes, com realce para os humanos e sociais, a
par dos artísticos e performativos, enriquecendo, com os seus olhares divergentes,
uma abordagem desejada totalizante.
Rasgava-se, por conseguinte, caminho à airmação e autonomia dos estudos de
mulheres ancorados nos de género. Multiplicaram-se, doravante, ensaios conse-
quentes da lupa feminista, entrecruzando agendas políticas, sociabilidades e parti-
cularidades próprias do domínio da saúde, da educação e da escolaridade.

MULHERES NA CIÊNCIA: ALGUMAS REFLEXÕES

Não sendo abstrato, não existente ou supra identitário, o historiador comprome-


te-se, mesmo que oiciosa e inconscientemente, com o meio onde nasce, se forma e
vive. Mais do que isso, a sua relação com o passado é bidirecional ao estudar tudo à
luz do presente e a partir do presente. Nada a fazer. O passado não pode ser olhado
pelo prisma do próprio passado, a não ser por intermédio de registos carecidos de
crítica, como críticas devem ser nossas visões sobre informes obtidos na atualidade.
Como supramencionado, a década de 60 foi crucial para os estudos de género.
Desdobraram-se esforços, detalhando-se aspetos menos conhecidos e realçando-se
o papel feminino no devir quotidiano. Em particular, dos atribuídos tradicional-
mente aos homens. Em concreto, atividades cientíicas e tecnológicas. Restabele-
ceram-se, então, nomes, recolocando-os no lugar primevo. Os social studies of science
foram intensiicados, rompendo com a visão ainda muito presente na historiograia
da ciência, sobretudo, desde os anos 30. Aos poucos, sobrepujou-se a dicotomia
persistente na observação dos processos de produção cientíica, derrubando o mito
da ciência como entidade epistémica supra estatutária e estrutural, donde univer-
sal, universalizante e incontestável. Assistia-se, pois, à primeira grande brecha no
murado de uma das maiores panaceias contemporâneas.
Por entre este conjunto de debates mais abrangentes sobre ciência, cientistas e

272
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

o papel de ambos na sociedade da segunda metade de novecentos, fortaleceram-se


estudos acerca da mulher no desenvolvimento cientíico-tecnológico. Mormen-
te do século XX. Transformara-se, na verdade, num assunto de grande relevância
para o movimento feminista. Até porque a ciência e a tecnologia eram esteios da
existência humana. Sem elas, o homem não teria trilhado os caminhos percorri-
dos. Mas, era como se não existisse conexão entre mulheres e produção cientíica.
Por que razão? Provavelmente, porque, redigida por homens, essa nunca fora uma
preocupação da historiograia da especialidade. A ciência era e continuava a ser
protagonizada por homens. Quando surgiam no processo, as mulheres eram limi-
tadas à condição de colaboradores, na sombra dos grandes vultos masculinos, sem
interferência de substância na criação e no saber cientíico. Haveria exceções, é
certo, mas não mais do que isso: exceções. Nem seria de outro modo, considerando
a época. A ciência relacionava-se intimamente com a ilosoia, presumidamente
inatingível pela mulher, como evidenciava a educação que lhe era imposta desde
tenra idade (Nelson and Nelson,1996).
O passo seguinte para a emancipação dos estudos de género ocorreu nos anos
80. Avolumaram-se títulos, da autoria de historiadores, ilósofos, sociólogos e cien-
tistas. Essencialmente, norte-americanos. O que não surpreende, pese embora o
ascendente da historiograia europeia, mormente francesa. Compreende-se melhor
esta novel historiograia perante um movimento mais amplo irmado em 60. A ele
devemos a recuperação de prestações ignoradas ou minimizadas pelos estudos tra-
dicionais. Devolveu-se, por isso, o lugar a protagonistas desconhecidos. Entre eles,
mulheres. Ignotas até então, revelaram-se indispensáveis à plena compreensão do
devir histórico. Principiou-se, pois, uma nova linha historiográica: a das mulheres.
Chegava, por im, o tempo dos atores esquecidos ou secundarizados. Assim se
suplantava a grande narrativa histórica, na esteira da École des Annales, na disse-
cação da pequena história, como a privada e a individual. Historiador e ilósofo
notável da ciência, o físico norte-americano homas Kuhn (1922-1996), aprofun-
dou esta tendência. Sobretudo, ao criticar um conceito ainda prevalecente à época,
segundo o qual a produção cientíica se despia de elementos extra cognitivos. Ao
invés, realçou tensões entre ciência reconhecida e vontade de inovar, num confron-
to entendível nos respetivos contextos históricos. Assim se demonstrava quanto o
desenvolvimento cientíico dependia de sociabilidades e políticas contemporâneas.
Apenas deste modo se evidenciava como a visão mecanicista impedira a análise or-
gânica e holística da natureza, favorecendo uma certa ordem económica. Tudo, sem
equacionar a mulher e suas sensibilidades, transportando para a um cenário predito
pela escritora britânica Mary Shelley (1797-1951) na novela neogótica Frankestein

273
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

ou o Moderno Prometeu (1818).


Com h. Kuhn, evoluiu-se epistemologicamente, entendendo-se o mundo de
outro modo, retimbrando corredores cientíicos. Mormente, o sistema de ensino,
absorvido até então por linguagem e assunções deinidas por homens e destina-
das a homens. O crescimento cientíico-tecnológico principiou a ser tratado com
menos amarras, preconceitos e diatribes. Interiorizou-se enquanto cumulação ori-
ginada e orientada por grupos dominantes, masculinos. Era, pois, imperativo (re)
descobrir mulheres na ciência, recuperando-as para obter um quadro mais próximo
da realidade passada. Por isso, surgiram biograias, género fundamental para justi-
icar a relevância de alguém ou de algo, escorando-a em documentação insuspeita
para muralhar defesas. Em rigor, as biograias preenchem lacunas, devolvendo ao
conhecimento nomes injustamente olvidados pela voragem implacável do tempo e
da memória. Através delas, extirpam-se mulheres cientistas de densos sombreados,
permitindo reconhecê-las e apreciá-las.

MULHERES NA BOTÂNICA E A COMPLEXA AFIRMAÇÃO FEMININA


NOS MEANDROS CIENTÍFICOS

Vários têm sido os aspetos e as áreas do saber a merecerem atenção de historia-


doras da ciência, na sua ânsia de justiçar o labor de mulheres cientistas.
De entre a multiplicidade de conhecimentos escalpelizados sob este ponto de
vista, realça-se a botânica. Até porque, conjuntamente a outras atividades de cam-
po, como a geologia, a paleontologia e a própria arqueologia (Cohen, 2004), foi
sempre socialmente mais aceite no feminino. O seu acentuado carácter prospetivo
e de recolha o justiicariam. Mais do que aquelas três outras ciências. Mesmo que
continuasse a ser domínio masculino (Burek and Higgs, 2007, p. 131). A razão
seria a essência da própria disciplina. Centrada na colheita de plantas para ulterior
pesquisa em gabinete, a botânica coadunar-se-ia melhor ao papel atribuído tradi-
cionalmente à mulher. Neste caso, à mulher das elites rurais e urbanas, aristocráti-
cas e burguesas. Numa palavra, harmonizava-se a mulheres dedicadas, por inteiro,
ao lar e à educação dos ilhos. Mas também ao lazer (e prazer) do cuidar de jardins,
numa disposição (algo) passiva, recatada e cândida (Pearson, 1999, p. 67), como
inocente devia ser a mulher. Delas se exigia rigor e minúcia nos procedimentos.
Duas qualidades vertidas no modo como coligiam informação sobre cada planta
e a ilustravam e transpunham para as artes decorativas. Ilustração e decoração,
enquanto dois outros atributos considerados femininos. Mas era na educação das

274
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

novas gerações que a botânica podia exercer papel relevante, por ser uma oportuni-
dade de transferir para o ar livre parte do ensino conduzido entre paredes. No cam-
po, observavam, ao vivo, matérias ensinadas a partir de compêndios. Mais do que
isso, era uma oportunidade ímpar de momentânea alforria feminina, num sinal de
absoluta modernidade. Entre plantas e trilhos, soltavam a imaginação, conduziam
conversas, percorriam veredas, asseguravam audiências. Por mais restritas que estas
fossem. Em palcos e cenários verdejantes, conseguiam imperar, longe de atavismos
e normativas, tantas vezes contrários a seus quereres mais profundos. Ali, onde bro-
tava a vida em permanência, onde a seiva da lorescência irrompia com toda a força
natural, a mulher desamarrava-se e mergulhava em seus anseios mais recônditos
e vontades menos expressas, como se de um verdadeiro gineceu se tratasse, numa
osmose entre lora e espaço clássico consagrado ao feminino.
Foram várias as mulheres, sobretudo da elite erudita e liberal, que, ainda em
oitocentos, dedicaram parte de seus dias à divulgação da botânica, conquanto
elencada à teologia natural. Especialmente no que mais importava à sua condição
familiar. Por isso, elaboravam ensaios farmacopeicos, ao concorrerem para o bem-
estar de seus lares. Seus ilhos eram educados no mesmo espírito: identiicavam
espécimes (alguns, pela primeira vez), inventariavam - mormente em contextos
coloniais (Norton, 2009, p. 1-9) -, acondicionavam e montavam herbários. Ati-
vidades coadunáveis à tradicional esfera feminina (Harris e MacNamara, 1984, p.
69-72), revigorando-lhes a mente com o sistema linneense (Sheield, 2006, p. 64).
Ademais, esperava-se que jovens mulheres de esmerada educação desenvolvessem
capacidades artísticas, associadas ao sentido estético e à delicadeza que lhes era de-
mandada desde, pelo menos, o século XVIII (Burns, 2003, p. 296-299). Sobretudo,
numa sociedade ainda envolta no paradigma romântico, tão do agrado do vitoria-
nismo, no qual as deambulações por campos, lorestas e cursos de água estimulavam
a busca do divino e do eu, mediante exercícios introspetivos. Mas, além da escrita,
votavam-se à ilustração de suas edições e de seus maridos, nas quais apunham a
sua marca pessoal, quantas vezes ignota, como se fossem técnicos invisíveis. Nestes
casos, a produção imagética ultrapassava as fronteiras botânicas, ingressando ou-
tros domínios cientíicos (Rossiter, 1982, p. 393). Também por isso, eram olhadas,
menos como criadoras e mais como professoras, tradutoras e ilustradoras. Mesmo
quando contribuíam, desse modo, para a airmação e desenvolvimento do conhe-
cimento cientíico (Martin, 2011, p. 12). Mas a regra silenciava-as, remanescendo
o pioneirismo de algumas destas produções nas restritas esferas masculinas. Não
obstante, o seu labor transpôs decénios de sonegação, até que alguém – quase sem-
pre um historiador da ciência – recupere sua autoria e (re)descubra a importância

275
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

do seu contributo para uma ciência produzida no plural de género.


A botânica exempliica bem como as mulheres se envolveram no processo cien-
tíico. Mas os sucessos alcançados a título individual sobrevinham principalmente
quando abraçavam quadrantes pouco considerados e competitivos. Ainda assim,
eram ignoradas. Na sua maioria, pelo menos. Até por se consagrarem a atividades
entendidas menos relevantes, como a ilustração e a tradução, num momento em
que a ciência aplicada era ainda desvalorizada quando comparada à teórica, onde
as mulheres se moviam menos.
Havia um longo e obstativo caminho a percorrer até serem reconhecidas como
cientistas de pleno direito. Consegui-lo, exigia ingressarem em redes especíicas de
investigação, quantas vezes tecidas pelas próprias para se desembaraçarem de von-
tades alheias. Urgia, pois, construir um mundo (quase) paralelo para, em conjunto,
imporem seus nomes e estudos. Mas, sempre tendo o geral por horizonte, porquan-
to ancestral, prestigiado, abonado e autenticado socialmente. Mesmo transitando
por caminhos paralelos, o anseio primeiro insistia no enquadramento em orga-
nismos preexistentes, pensados, esculpidos e norteados por homens. Dura prova,
porém, pois tudo lhes é exigido tudo, negando-se-lhe o erro. Até que a evidência do
saber, a capacidade e idoneidade lhes permite aceder a círculos mais exigentes. Mas,
quantas vezes, aceites em sociedades e academias, eram forçadas oiciosamente a
publicar e a comunicar mais do que seus colegas homens.
Aos poucos, rompia-se o estereótipo da mulher enquanto companheira, ilustra-
dora e tradutora da obra do homem dedicado à ciência. Até por se considerar que
toda a produção cientíica feminina germinava mercê da benevolência de pais, ir-
mãos, maridos e ilhos. Por isso se entende que a condição de solteiras e sem ilhos
era muitas vezes essencial para serem cientistas. Mas, mesmo quando a produção,
em coautoria, era mais feminina, os créditos recaiam, quase invariavelmente, no
lado masculino. Raramente se publicitavam seus êxitos. Na maioria, eram obs-
curecidos ou, simplesmente, omitidos. O casamento era, ainda, o garante da sua
perseverança e liberdade (= atividade) na ciência. Mas era, também, sinónimo de
abandono proissional, para assegurar obrigações familiares. Quanto ao ensino, a
docência universitária continuava-lhes vedada, quedando-se pela liceal. Situação
entendível quando os programas escolares as direcionavam para áreas despojadas
de perspetivas cientíicas, num contexto de analfabetismo quase integral das mu-
lheres. Em termos gerais, o ensino era ritmado por agendamentos monárquicos,
republicanos e despóticos, entrecortados por (re)airmações patrióticas em con-
junturas de ferimento nacional. Ainda assim, mercê de uma economia precisada
de ensino tecnológico alicerçado mais na prática do que na teoria, prosseguindo

276
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

o ideário iluminista alimentado pelo Positivismo enredado nas teias industriais


e comerciais. Justiicava-se, também assim, o número de mulheres admitidas em
escolas de medicina assomadas com o crescimento hospitalar.
Enquanto isto, a vontade férrea de muitas validava o princípio da sobrevivência
do mais forte na sociedade. Inesperadamente, uma das teorias mais polémicas de
oitocentos auxiliou-as nesta demanda. Ainda que indiretamente, o evolucionis-
mo reforçou suas exigências intelectuais, motivando-as a prosseguir. Não obstan-
te, persistia-se a negar-lhes capacidade para vingarem em determinados saberes,
porquanto inacessíveis ao seu raciocínio. A física e a química (Rayner-Canham,
2008) eram dois exemplos desse preconceito ultrapassado apenas com Marie Curie
(1867-1934) (Ogilvie, 2004). Além do mais, os estudos eugenistas (sustentadores
da seleção artiicial) conirmariam a sua inferioridade intelectual, desconsiderando,
por conseguinte, os respetivos meios socioeconómicos. Por outro lado, as eferves-
centes teorias freudianas libertavam, ao mesmo tempo que limitavam, a vontade
e a ação feminina (Fausto-Sterling, 1985). Pois, se descerravam as portas à sua
expressividade, analisavam-na à luz de paradigmas masculinos.
A presença das mulheres na ciência não era fácil. Não apenas por serem mulhe-
res. O desenvolvimento cientíico-tecnológico na viragem para o século XX não
correspondeu ao aumento da consideração social pelo mesmo. Nem pelos seus
fazedores. O mesmo sucedeu às reputadas relexões de seus principais cultores e
representantes. Se dúvidas houvesse quanto a esta evidência, bastaria confrontar
o apreço inissecular pelo labor cientiico-tecnológico com o expresso por outras
áreas, como as artes e as letras, sumamente valorizadas e estimuladas com prémios
e inanciamentos especíicos.

BREVIÁRIO DA JUNTA DAS MISSÕES GEOGRÁFICAS


E DE INVESTIGAÇÕES COLONIAIS

Decretada a 1936, no quadro da reorganização do Ministério das Colónias, a


Junta das Missões Geográicas e de Investigações Coloniais ( JMGIC) culminava
um longo período de trabalhos e discussões iniciado em 1875, com a fundação da
Sociedade de Geograia de Lisboa. Perante o contexto europeu adverso à adminis-
tração portuguesa de territórios ultramarinos, em especial de Angola e Moçambi-
que, cobiçados pelos principais impérios industriais e comerciais da época, ateou-
se uma política colonial regeneradora. Sucederam-se, nesse sentido, as comissões
Central Permanente de Geograia (1876), adstrita ao Ministério dos Negócios da

277
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Marinha e Ultramar; Central de Geograia (1880) e de Cartograia (CC) (1883).


Destinadas, as três, a (re)conhecer geograicamente (em termos holísticos) essas
longínquas possessões, (re)adaptaram-se às diferentes agendas deinidas em cada
momento, de acordo com as prioridades estabelecidas. Mais do que isso, reforça-
ram, ao longo dos anos, a missão principal de (re)deinir fronteiras. Foi, contudo,
prorrogada sucessivamente por diiculdades inanceiras e contrariedades políticas,
realizando-se, embora, o Atlas Geral das Colónias, com base nos dados coligidos
por missões cientíicas enviadas especiicamente para o efeito, dado que urgia car-
tografar para ocupar, e ocupar para explorar (Martins, 2010).
Abrangida pela agenda republicana, a CC passou a órgão consultivo da 6.ª Re-
partição da Secretaria das Colónias, até ser transferida para a Direção dos Serviços
Diplomáticos, Geográicos e de Marinha, pela reforma do Ministério das Colónias
(MC) (1919), numa consolidação do processo de demarcação das fronteiras colo-
niais. Assumia-se, assim, o interesse político da investigação cientíica associada.
Em concreto, num contexto internacional adverso à República portuguesa. A rees-
truturação da administração central ultramarina (1920) inscreveu-a na repartição
dos Estudos Geográicos (EG) da Direção Técnica do Fomento, pertencente à
Direção-geral dos Serviços Centrais da Secretaria do MC, mantendo, no entanto,
a composição e atribuições anteriores (1893 e 1902), acrescidas (1924) dos recursos
dos EG e saberes universitários. Na realidade, estes últimos revestiam-se de uma
importância aditada, à medida que os anos transcorriam e outros países tomavam
a dianteira ocupacional de territórios subsaarianos e de outras distantes paragens.
Resolvendo-se politicamente, argumentava-se, apreciava-se e formava-se a inves-
tigação cientíica nas colónias como inextricável do crescimento e asseveração do
país. Por isso, se agendavam conferências e se imprimiam opúsculos reprovando a
letargia governamental. Entre seus autores, contavam eminências nas suas espe-
cialidades, como o geólogo coimbrão Anselmo Ferraz de Carvalho (1878-1955),
o engenheiro silvicultor Raul Guardado, o veterinário Cristiano Sheppard Cruz
(1892-1951) e o botânico, também de Coimbra, Luís W. Carrisso (1886-1937).
Todos alertando, em uníssono, para o imperativo de conhecer, em profundidade,
as colónias através de missões constituídas por especialistas e equipamento insu-
icientes entre nós, nomeadamente em termos universitários. Havia, porém, que
prosseguir, ampliando resultados económicos, cientíicos e paisagísticos, orientan-
do cientiicamente a valorização desses territórios para cimentar, agora, o projeto
político do Estado Novo.
As vozes lançadas de cátedras e gravadas em vários periódicos; as exposições
organizadas e participadas sobre temário colonial; os exemplos de ocupação cien-

278
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

tíica de territórios de além-mar por outras potências europeias; a necessidade de


autonomizar e rentabilizar económica e inanceiramente geograias tão apartadas
de Lisboa, persuadiram o Governo a fundar a JMGIC, institucionalizando, em
deinitivo, um projeto desta natureza e grandiosidade. Os dados estavam lança-
dos. O seu historial não foi, contudo, facilitado como devia ou se presumia, antes
absorvendo problemáticas gerais do país que não deixaram de a inluir. Soube, no
entanto, adaptar-se a circunstâncias, reformando-se sempre que a estadística inter-
nacional pressionava o país a modiicar o seu relacionamento com as colónias. Foi
e um caso de sucesso de sobrevivência e, mais do que isso, de gestão sensata (mas
nem sempre tão lúcida quanto desejável) dos seus recursos, tanto humanos, quanto
materiais. Além disso, percorrer as páginas da sua história, equivale a penetrar em
capítulos menos conhecidos, mas não menos relevantes, da história, não apenas
colonial, como da ciência e da tecnologia portuguesa, assim como da colocação do
saber ao serviço – quantas vezes, mas nem sempre, a contragosto -, de um progra-
ma político bem deinido.

MULHERES NA JMGIC: TESTEMUNHOS PRIMORDIAIS DA BOTÂNICA TROPICAL.


O CASO DE ESTER PEREIRA DE SOUSA

Assim que decretada, a JMGIC dispôs de colaborações que, pelas competências,


cientíica e técnica, acumuladas, empenho e experiência colhidos no terreno e no
laboratório, se revelaram preciosas na montagem e condução de vários trabalhos
de investigação. Entre as cooperações assomadas, várias foram protagonizadas por
mulheres, apesar do silêncio a que eram tendencialmente reduzidas em regimes to-
talitários, como o vigente à época, conigurando uma maioria minoritária, acentu-
ada pelo desígnio maternal. Mulheres de investigadores, coletores e preparadores,
habituadas a acompanhar e apoiar seus maridos em diferentes circunstâncias pro-
issionais. Algumas delas, ainda sombreadas pelo nome e prestígio dos cientistas
com quem partilhavam seus dias, à semelhança do que sucedera com tantas outras
predecessoras, enquadradas no romantismo de uma sociedade de ascendência vi-
toriana modeladora do papel feminino enquanto ilha, irmã, esposa, mãe. Outras,
motivadas por atividades intelectualmente estimulantes e esperançosas de nelas
encontrarem refúgios interiores, iluminavam o seu quotidiano ao coadjuvarem no
labor de seus companheiros.
A par e passo, porém, e de modo quase silente e invisível, outras houve que,
quantas vezes incentivadas por seus maridos, ingressaram na produção cientíica,

279
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Fig1 - Ester de Sousa Pereira


Fig2 -

enquanto adjuntas ou autoras de pleno direito dos procedimentos abraçados com


autorização superior. Mais do que isso, despontaram nomes dotados de formação
académica especíica obtida na Universidade de Coimbra, em primeiro lugar, e, já
numa fase ulterior, nos estabelecimentos de ensino superior lisboeta e portuense.
Facto indicador algo transmudado também entre nós, embora reportando a parte
ínima da população, em geral, e do universo feminino, em particular, considerando
a percentualidade de quem aspirava ingressar no ensino. Mas, algo diferenciava
neste domínio. Possivelmente, o republicanismo fervilhado desde inais de oito-
centos, franqueando premências femininas. O mesmo a esclarecer homens dili-
genciados a elevar cultural e cientiicamente as mulheres, cotejando, também neste
contorno, o país a outros diligenciados em incrementar suas forças.
Não surpreende, por conseguinte, que, aos poucos, a JMGIC acolhesse o lado
feminino da investigação, independentemente da sua essência e patamar de atua-
ção. Mas, se algo unia estes primeiros exemplos, outros aspetos os diferenciavam,
como o matrimónio, ao permitir-lhes, quantas vezes, comungar trabalhos e expe-
riências. Casadas, fruíam de outro estatuto social conferido pelos maridos, embora
ainda cumprissem atividades cientíicas entendidas mais próximas da sua sensi-
bilidade, especiicidade e capacidade: o inventário e a catalogação. Também nisto
se entrecruzavam. Integrando, porém, projetos delineados de início por seus res-
ponsáveis (= consortes), autonomizaram-se gradativamente até alcançarem temas
e missões especíicas. Sempre com o aval de seus diretores, o mesmo era dizer, de
seus cônjuges. Houve exceções, é claro. Mas, muitíssimo escassas, como expectável
de uma sociedade como a portuguesa dos primeiros decénios novecentistas.

280
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

Entre as primeiras colaboradoras (in)diretas de estudos sobre a áfrica portu-


guesa, contavam, precisamente, amadoras e especialistas em botânica. Nada menos
inesperado. Com efeito, a botânica servia discretamente de plataforma airmativa
de mulheres na ciência, por ser socialmente mais aceitável. Por isso também ingres-
savam, pela primeira vez, nesta área universitária, fruto do desenvolvimento cultu-
ral e mental, com repercussões positivas em círculos ilustrados do país. Algumas
destas (ainda muito poucas) pioneiras singraram cientiicamente. Mas, no início de
suas carreiras, conseguiam-no sobretudo graças ao nome e apoio de seus maridos,
especialmente ao partilharem a mesma área do conhecimento. Foi o caso de Ester
da Conceição Pereira de Sousa (1907-?).
Ester Pereira de Sousa, como assinava seus trabalhos, licenciou-se em Ciências
Biológicas pela Universidade de Coimbra. Era Julho de 1932. Nesse momento,
Luiz W. Carrisso (1886-1937) era, ainda, a igura da botânica, não apenas coimbrã,
como nacional.
Continuador sólido, categórico e merecedor do grande esteio do ensino e do
estudo botânico em Portugal, Júlio Augusto Henriques (1838-1928), L. Carrisso
evidenciou muito cedo a notoriedade da sua investigação. Diligenciado, irme e ino-
vador, cingiu um desígnio maior da sua existência: erguer a botânica em Portugal
a níveis internacionais. Transformou-se esta na sua missão principal. Por isso, ex-
pandiu atividades do Instituto de Botânica da Universidade de Coimbra (IBUC),
deinindo objetivos cientíicos e traçando programas de trabalho, associando, ainda
mais, ciência e política. Por esta mesma razão, presidiu à municipalidade coimbrã
(1935) e assumiu a representação dos municípios na Câmara Corporativa e o lu-
gar no Conselho do Império Colonial (1934-1937), favorecedor, por excelência, da
investigação cientíica em África. Neste sentido, realizou, em 1927 (Carrisso, 1928;
Carrisso, 1932), uma expedição de reconhecimento botânico a Angola (Cabinda,
Lunda, Benguela, Huila e Moçâmedes), cujo êxito justiicou uma excursão académica
a este território (1929) composta de colaboradores do IBUC, professores e alunos
de universidades e escolas superiores portuguesas (Carrisso, 1934, p. 6), suscitando
um Congresso-excursão de Geograia Botânica (ou de Fitogeograia) em Angola (1931),
que não chegou a concretizar. Era, por conseguinte, alguém que entendia não bastar
ocupar os territórios ultramarinos, urgindo desenvolvê-los a partir do profundo co-
nhecimento cientíico aduzido sobre os mesmos (Martins, 2011).
Assim sendo, Ester Pereira de Sousa inalizou os estudos na capital mondegana,
precisamente quanto seu mestre, L. Carrisso se encontrava no auge da sua deman-
da africana. Mais do que isso, importa referir que se casara, entrementes, com a
única pessoa que o acompanhara na primeira missão a Angola (vide supra) e seu

281
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

continuador dileto, Francisco de Ascenção Mendonça (1889-1992), à época, 1.º


Assistente do IBUC. Aliado a uma sólida formação académica e proiciência técni-
ca, este facto terá ditado a fortuna de Ester Pereira de Sousa no quadrante cientíi-
co. Por isso, se dedicou, a partir de determinado momento da sua carreira, ao estudo
da lora subsaariana. Enquanto tal não sucedia, cumpriu estágio de licenciatura em
sistemática de plantas superiores, no IBUC, até que, entre maio de 1934 e fevereiro
de 1935, foi contratada como 2.ª Assistente de Botânica do IBUC. Certamente
pela qualidade do trabalho desenvolvido, foi subsidiada pelo mesmo instituto, a
im de prosseguir na elaboração do Conspectus Florae Angolensis, evitando, assim, a
sua descontinuidade. Fê-lo, em contínuo, desde fevereiro de 1935 a março de 1938,
trabalhando no Herbário do Museu, no Laboratório e no Jardim Botânico (IICT/
AAdm.3, Proc. 235/1. Doc. 235. 02.06.1970).
Entretanto, L. W. Carrisso falecia em pleno deserto do Namibe (Moçâmedes),
durante a 1.ª Missão Botânica a Angola (MBA) da JMGIC. Estava-se em 6 de
Junho 1937. Deixava, deste modo abruto, a paixão de uma vida: o estudo da lora
africana, na sua vertente de Geograia Botânica, como elucida o Conspectus Flora
Angolensis ((1.º vol., de 1937, em edição conjunta do IBUC e do Museu Britânico),
cuja publicação iniciou.
A morte inesperada de L. W. Carrisso precipitou os acontecimentos. De facto,
havia que preencher o vazio deixado pelo professor de Coimbra. A escolha não
podia ser mais lógica, ao recair sobre F. de Ascenção Mendonça, seu colaborador
próximo, de maior proiciência e coniança.
Compreende-se, assim, que Ester Pereira de Sousa, que fora assistente de L.
Carrisso, com quem se iniciara no conhecimento da lora africana, fosse contratada,
sob proposta do próprio chefe da MBA (agora, F. de Ascenção Mendonça) (IICT/
AAdm., Proc. 236/1. Doc. 491. 12.071938), dirigida à Repartição dos Serviços
Geográicos, Geológicos e Cadastrais, da Direção Geral de Fomento Colonial,
pertencente ao Ministério das Colónias. Iniciou, pois, o trabalho logo em junho de
1938, como auxiliar da MBA (IICT/AAdm., Proc. 236/1. Doc. 3528, 15.06.1938),
por um primeiro período de seis meses, para “cuidar da vigilância, conservação e
defesa do material colhido pela Missão.” (IICT/AAdm., Proc. 236/2. Doc. s/n.
15.06.1938). Material que se encontrava depositado no IBUC. Reconheceu-se,
contudo, e desde logo, “a necessidade da prospeção e pesquisas botânicas dos dis-
tritos longínquos do interior, vagamente conhecidos apenas de informações inci-

3 Arquivo Administrativo do IICT.

282
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

pientes e escassas amostras de herbário de esforçados pioneiros do último quartel


do século passado.” (IICT/AAdm., Proc. 236/2. Doc. s/n. 15.06.1938); numa cla-
rividência do muito e do como havia ainda a fazer. Mas, antes de ser contratada,
Ester Pereira de Sousa teve de conirmar, como era prática ao tempo, não exercer
“cargo algum do Estado, corpos ou corporações administrativas, nem ic[ar] abran-
gida por quaisquer disposições relativas a incompatibilidades.” (IICT/AAdm.,
Proc.236/1. Doc. s/n. 21.05.1938).
Entretanto, o delagrar da 2.ª Guerra Mundial obrigou a adiar o trabalho do
Conspectus, recomeçado apenas em 1950, procedendo-se embora a recolhas no ter-
reno, sobretudo em Moçambique, resultando, mesmo no auge do conlito, num
herbário de dezenas de milhares de números a exigir meticulosas veriicações mo-
nográicas dos grupos taxonómicos (Mendonça e Sousa, 1968, p. 117-191).
A revisão taxonómica das espécies que documentam a Carta Fitogeográica de
Angola; a coordenação do respetivo índice nomenclatural botânico das espécies
(dominando o vocabulário latino, taxativamente usado na descrição original dos
taxa botânicos), e a revisão de Compositae de Angola (1943), da autoria de F. de
Ascenção Mendonça, publicada pela JMGIC, não impediram que fosse remunera-
da por subsídios eventuais, numa conirmação da precaridade da sua situação, assim
como, na realidade, da maioria dos colaboradores de trabalhos de natureza simi-
lar levados a efeito no mesmo contexto. Entretanto, a publicação da monograia
resultante deste exercício foi assumida pela Província de Angola, ao constituir a
parte mais interessada em todo este processo e aquela que dela deveria retirar os
dividendos primaciais.
Volvidos três anos, foi contratada, por quatro meses, com a anuência do pró-
prio presidente da JMGIC, José Bacellar Bebiano (1894-1967). Estudou, então, o
material botânico colhido na Guiné, pelo Regente Agrícola da Colónia, Espírito
Santo (IICT/AAdm., Proc. 236/1. Doc. 1. 05.04.1941). Material destinado à ela-
boração da carta itogeográica da mesma colónia, a inscrever no Atlas do Império
Colonial Português. O contrato foi renovado nos três anos subsequentes, nos ter-
mos do disposto no art.º 128 da Carta Orgânica do Império Colonial Português e
na Reforma Administrativa Ultramarina (1933), num total de 4 anos consecutivos
de labor, com subsídio retirado do orçamento da Colónia da Guiné, previsto para
1941. Desta feita, a investigação decorria em Lisboa, numa altura em que a JMGIC
se consolidava na sua missão. O interessante, todavia, será o facto de o trabalho ter
sido executado em mais larga escala na Escola Politécnica do que, propriamente, no
Jardim Colonial ( JC), onde o respetivo herbário tinha sido entregue, “em virtude
da necessidade da consulta bibliográica e do Herbário Nacional e porque a Escola

283
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

fecha nas férias grandes” (IICT/AAdm., Proc. 236/1. Doc. s/n. 04.05.1941). Mais
do que isso, inteiramo-nos, de diiculdades com as quais Ester Pereira de Sousa se
deparou no JC:
o local onde o material botânico está guardado e que é o de trabalho de estudo,
é tão isento de condições para aquele im, dada a natureza especial do mesmo,
que é impossível trabalhar ali em dias chuvosos ou nublados porque:
1.º - Tem deiciência de luz natural para as delicadas observações à “lupa”
2.º - Não tem luz artiicial,
3.º - O lugar de trabalho é uma casa enorme de pavimento térreo cimentado, onde
entra o vento e a chuva, sem meios de aquecimento na presente época de frio.
4.º - Não tem, enim, as condições de conforto exigidas pela natureza do serviço
(Proc. 236/1. Doc. 698. 24.11.1941)
Perante tal situação, descrita, ademais, pelo próprio presidente da JMGIC, su-
geriu-se a sua instalação, no antigo pavilhão da Direção da Exposição do Mundo
Português, assim que este fosse entregue à Direção do JC, como icara decidido en-
tretanto. Reconhecia-se, pois, a justa contratação de Ester Pereira de Sousa, como
assistente-investigadora, para serviço no Centro de Botânica (CB) da JMGIC.
Conirmava-se, ademais, representar uma vantagem considerável para o CB, “quer
pelo alargamento do campo da investigação, ao estudo simultâneo das espécies
comuns às nossas províncias ultramarinas quer pela possibilidade de especialização
em grupos limitados de famílias, método de maior rendimento de trabalho e que se
procura alcançar naquele Centro de investigação cientíica.” (IICT/AAdm., Proc.
236/1. Doc. 85. 09.09.1952). Ainda antes do inal deste decénio, Ester Pereira de
Sousa dava à estampa Contribuições para o conhecimento da lora da Guiné portuguesa
(1949), como produto do labor cumulado e baseado na análise dos herbários do
IBUC, CB, Jardim e Museu Agrícola do Ultramar ( JMAU) e MEAU – Missão
de Estudos Agronómicos do Ultramar. Tal sucedeu cinco anos depois de ser con-
tratada para o quadro de pessoal técnico da Guiné, para continuar, em Lisboa, os
estudos da lora desta província ultramarina, com a mesma designação de cargo
e vencimento, acrescido do correspondente suplemento colonial (= 50%) (IICT/
AAdm., Proc. 236/1. Doc. 76.01.10.1951).
Entrementes, a reorganização da JMGIC, ocorrida entre dezembro de 1945 e
janeiro de 1946, permitiu-lhe trabalhar no CB, já na qualidade de naturalista espe-
cializado (= ciências naturais) ou investigadora, embora ainda como colaboradora
de seu marido e diretor do CB (como referenciada já em 1941 – IICT/AAdm.,
Proc. 236, doc. 426. 05.06.1944). Alguns anos transcorreram e, entre 1953 e 1958,
foi contratada como naturalista da Repartição Técnica dos Serviços Agrícola e

284
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

Florestal da Guiné, para avançar, na metrópole, com o estudo da lora desta Provín-
cia, publicando, na sua sequência, Observações acerca da distribuição e área das espécies
consideradas mais signiicativas da Flora da Guiné Portuguesa (1953). Não, sem antes
declarar, como exigido a qualquer colaborador de funções públicas, “ativo repúdio
do comunismo e de todas as ideias subversivas” (IICT/AAdm., Proc. 236/1. Doc.
s/n. 18.03.1953).
A solidez da investigação concretizada ao longo de duas décadas terá justiicado a
permanência de Ester Pereira de Sousa no CB. Esta terá sido a razão pela qual passou
a ser contratada como sua Investigadora (e não apenas Assistente-Investigadora), de
1953 a 1969, até por se ter “distinguido no estudo taxonómico da lora da Guiné
Portuguesa, inteiramente a seu cargo, publicando regularmente a matéria inédita, e
colaborando oportunamente em tarefas de particular responsabilidade, tais como a
revisão dos textos do Conspectus Florae Angolensis e outras.” (IICT/AAdm., Proc.
326/1. Doc. s/n. 30.01.1958). O trabalho aduzido era complementado por consultas
bibliográicas e viagens a jardins botânicos europeus relevantes no seu ramo, facilita-
das pelo conhecimento que tinha dos idiomas francês, inglês e alemão. Assim adveio
em 1950. Como diretor do CB, F. de Ascenção Mendonça propôs superiormente a
deslocação, sem encargos para o orçamento público, da naturalista da Guiné, Ester
de Sousa Pereira, a herbários londrinos, para concluir trabalhos em mãos (IICT/
AAdm., Proc. 236/1. Doc. 156. 11.09.1950), esclarecendo-se tal necessidade:
Este trabalho de veriicação de legitimidade das espécies por comparação com o
tipo ou espécimes ti[pi]icados por autoridade idónea é necessário e indispensável,
para tornar efetiva e deinitiva a publicação, e só pode ser efetuada em herbários
onde se encontram os respetivos tipos, como se veriica pela publicação do Cons-
pectus Florae Angolensis, e com os trabalhos em curso da lora de Moçambique,
concluídos nos herbários de Londres, do Museu Britânico e de Kew Gardens.
Isto resulta de não possuirmos herbários coloniais tipiicados, visto que tanto
o Herbário da Guiné como o de Moçambique são de criação atual, ab initio. À
medida que formos tipiicando as espécies dos nossos domínios, torna-se indis-
pensável o recurso ao estrangeiro.
Como o trabalho efetuado sobre a lora da Guiné é já volumoso, as deiciências,
incertezas e por ventura os erros, vão-se acumulando e tornam o serviço pro-
gressivamente embaraçoso.
Convindo eliminar estes inconvenientes, e levantar as dúvidas sobre um elevado
número de espécies que no herbário e nas publicações estão precedidas de cf.
(conira) ou seguidas de esp. (espécie?), além de que todas as outras devem ser
conferidas com o tipo ou espécimes tipiicados, e ouvida a naturalista da Guiné,

285
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Ester Pereira de Sousa, que de bom grado se prontiica e, sem encargos para
a fazenda, de ajudas de custo e viagens, ir trabalhar nos herbários do Museu
Britânico de Kew na tipiicação das espécies da Guiné, acompanhando os seus
colegas deste Centro de Botânica que ali vão realizar trabalhos idênticos sobre a
lora de Moçambique, durante um período de três meses até ao im do corrente
ano (IICT/AAdm. Proc. 236/1. Doc. 156. 11.09.1950)
Sete e oito anos depois, regressou aos herbários do Museu Britânico e de Kew.
Desta feita, para, num mês e meio e em três meses e meio, continuar a estudar a
lora da Guiné e inalizar os trabalhos relativos ao Conspectus Florae Angolensis e à
Flora Zambesíaca, principalmente no tocante a certo número de géneros de Papi-
lionoideae (IICT/AAdm., Proc. 236/1. 3.º vol. Doc. 5. 25.03.1974), ultimando-os
com deslocações aos de Espanha, França e Bélgica (IICT/AAdm., Proc. 236/1.
Doc. 131. 08.08.1958). Situação repetida na década seguinte. Viajou, então, e mais
uma vez, até Inglaterra, para estudar nos herbários e bibliotecas especializadas do
Museu Britânico e de Kew, assim como do Departamento de Florestação da Uni-
versidade de Oxford, acrescentando visitas ao Jardim Botânico de Bruxelas e ao
Museu Nacional de História Natural de Paris (IICT/AAdm., Proc. 236/1. Doc.
179. 26.03.1965).
Enquanto isto, Ester Pereira de Sousa contribuía, também, para o desenvolvi-
mento de projetos no JMAU (onde esteve pouco mais de um ano), assim como
de outros elaborados no âmbito da Missão de Estudos Agronómicos do Ultramar
(Sousa, 1969, p 421-429). Missão que ganhava relevância acrescida desde os anos
50, pelo auxílio estimável carreado às economias provinciais mediante o progresso
agrícola. Inicialmente diligenciada pelo engenheiro-agrónomo Hélder José Lains
(1921-1984), a MEAU (1960-1965) brotava das Brigadas de Estudos Agronómi-
cos do Ultramar (1958-1960), ambas pertencentes ao quadro da Junta de Investi-
gações do Ultramar, de acordo, mais ou menos formal, com os Planos de Fomento
(1953-1958 e 1959-1964) da agricultura, energia hidráulica e indústrias de base. A
ligação entre ciência e economia era cada vez mais evidente e assumida.
Ombreando, contudo, em qualidade e quantidade, com a investigação condu-
zida por muitos dos seus pares, a remuneração mensal de Ester Pereira de Sousa
nunca lhe foi cotejada, apesar de pedidos reiterados do próprio diretor do CB, F.
de Ascenção Mendonça, para que fosse equiparada a 1.ª Assistente de Investiga-
ção (Ester Pereira de Sousa Proc. 236/1. Doc. s/n. 30.01.1958). Esta, era apenas
uma face visível do diferencial entre mulheres e homens prevalecente entre nós.
Reconhecia-se, assim, e de novo, indesejável realidade das mulheres da segunda
metade do século XX: a de que a almejada igualdade era, ainal, um embuste. Ape-

286
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

sar das competências reconhecidas e dos trabalhos desenvolvidos, continuavam a


ser desvalorizadas, por serem mulheres.

REFLEXÕES FINAIS

Procurar escalpelizar a história da ciência no feminino, ou das mulheres na ciên-


cia, equivale a escrutinar o seu papel na história, de um modo mais amplo, abrindo-
se uma janela no complexo edifício do lugar da mulher na sociedade, entendida
aqui enquanto aglutinadora de toda uma forma de estar, ser e fazer, desde tempos
imorredouros até à atualidade. Realidade inscrita numa estrutura perpetuadora de
desigualdades avultadas entre mulheres e homens, com efeitos compreensíveis em
termos epistémicos, mas também no quadrante das decisões políticas. Consequên-
cias observáveis, por exemplo, numa visão sectária entre ambos os protagonistas
da produção cientíica. De facto, sempre se considerou existir uma clivagem na
forma de ver e fazer ciência. Expressando maior senso e racionalidade, os homens
deparavam-se com a emoção e o instinto femininos, numa reairmação do pensa-
mento baconiano quanto ao expectável controlo masculino da natureza (= conhe-
cer é poder) e à natureza (= intuição) da mulher. Reiterava-se, deste modo, uma
forma de olhar a ciência e seus atores, independentemente de a própria história
cientíica comprovar como era (e é) beneiciada ao acolher o elemento feminino,
precisamente por deter visões, por vezes, dissemelhantes, é certo, mas tão ou mais
válidas para o progresso humano (Fox Keller, 1985).
Enquanto os homens cingiam as mulheres às malhas cientíicas que teciam para
seus gáudios, algumas vozes femininas procuravam apoio junto de outras mulheres,
recorrendo a um dos expedientes mais ancestrais do sucesso masculino na ciência, e
não só, para garantirem o controlo de suas ideias, seus dizeres e afazeres. Referimo-
nos às redes de conhecimento. Quando mergulhamos no seu interior, guiando-nos
por lupas de diferente capacidade, veriicamos como sonorizam silêncios e visuali-
zam faces ocultas de processos (entre)vistos por deduções imateriais. Mais do que
isso, desvendam como insulam campos especíicos do saber, (re)direcionando-os
em determinados contextos de produção cientíica. Mais do que isso, demonstram
como a noção de objetividade é ela própria histórica. A mesma negada durante
tanto tempo às mulheres. Recusada, porque entendida como prerrogativa primeira
da ciência. As investigações, todavia, vêm demonstrando o seu caráter desconexo e
contextualizado (interna e externamente), como sucede, aliás, com qualquer outro
tipo de conhecimento.

287
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Para o historiador, em geral, e para o da ciência, em particular, interiorizou-se


há muito que todo o tipo de interesse (social, politico, económico, pessoal, etc.)
inlui no modus vivendi e faciendi dos mais diversos protagonistas. No que à ciência
respeita, eles determinam instituições de acolhimento selecionadas; áreas e temas
de investigação; objeto de estudo; paradigmas e procedimentos; validação de re-
sultados; interpretação de dados e respetivas conclusões; perspetivas para análises
futuras. Neste sentido, a história das mulheres na ciência corresponde a parte da
história da ciência, não podendo dissociar-se dela, sob pena de se icar com uma
imagem coartada e distante da realidade primeva. Mais. A historiograia cientíica
desvenda como o ingresso paulatino das mulheres no universo da obra cientíica
abriu novos caminhos ou lançou novos horizontes. Mormente, no tocante a estu-
dos médicos e geneticistas em especialidades mais próximas do seu sentir e vivên-
cias. Temas nunca ou vagamente explorados por homens, tornaram-se prioridades
em determinadas áreas cientíicas, justamente por mão de mulheres, porquanto
mais sabedoras da sua premência, feita de vivências diárias, quantas vezes distintas
de seus pares masculinos. O mesmo tem sucedido na historiograia, de um modo
geral. Com efeito, a multiplicação de historiadoras tem potenciado novos rumos de
investigação desmerecidos até há pouco, porquanto não arreigados, na totalidade,
a assuntos entendidos mais centrais, como as grandes questões económicas, sociais
e políticas. A diversidade dos ensaios originados sobre aspetos variáveis dos quo-
tidianos de tempos idos evidencia, porém, quanto aqueles inluenciam, ao mesmo
tempo que dependem, (d)estes. E o papel das mulheres cientistas tem conquistado
terreno, ampliado à medida que os estudos se sucedem e são transportados para a
comunidade cientíica e leitores genéricos.
A primeira grande iniciativa portuguesa nesta área, de estabelecer um primeiro
ponto da situação e de lançar pistas de trabalho, ocorreu em inais de Junho de
2008, por mão da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta. Recebi-
das na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e na Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa, as sessões procuraram responder a múltiplos interesses,
vertentes e abordagens, incluindo uma sessão dedicada, na íntegra, às “Mulheres e
Ciência”, preenchida com intervenções procedentes de várias áreas do saber, numa
demonstração interdisciplinar assaz salutar. Não obstante, foi convidado a moderar
a sessão o físico português Alexandre Quintanilha (1945-). Indiscutivelmente, um
dos nomes de maior projeção internacional da ciência feita em português e em
Portugal, não deixa de estranhar a escolha efetuada. Num congresso feminista,
organizado pela entidade mais representativa dos estudos no feminino, sobre o
feminino, parece ter havido a necessidade de procurar legitimação junto de nomes

288
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

que não os seus, para mais masculinos. Situação tanto mais interessante quando o
encontro pressupunha uma airmação natural de análises desta essência entre nós.
Como se fosse indispensável invocar um nome, como o de A. Quintanilha, para
certiicar algo sustido em investigações válidas, evitando, assim, possíveis diatribes
desferidas por círculos menos expansivos a estes novos olhares cruzados entre nós.
Foi, em todo o caso, uma sessão bastante profícua em participações ativas e passi-
vas, conigurando um primeiro ensaio para posteriores fóruns alargados de debate
especíicos sobre mulheres e ciência em Portugal, o que, em verdade, não voltou a
suceder. Razões? Varias, com certeza, conquanto o desconhecimento da sua rele-
vância não seja a menor. Ou talvez seja.
Na realidade, a intermitência destas ações pode relacionar-se com um afasta-
mento das próprias mulheres deste tipo de encontros, cuja particularidade poderá
ter o efeito contrário ao pretendido, suscitando comentários menos abonatórios e
etiquetando suas participantes de algo que não almejam. Pressuposição que, a ser
real, justiicará a intermitência de eventos especíicos entre nós nesta área. Existem,
é ceto, especializações pós-graduadas em estudos sobre mulheres. Também não é
menos verdade que emergem, no tecido universitário, cursos dedicados a aspetos
concretos das mulheres ao longo da história. Além disso, nada mais. Porquê? Possi-
velmente por não haver carência disso; para evitar guetos; para diluir estes estudos
noutros mais abrangentes. O que fará algum sentido. Mas, antes de se diluírem,
mesclarem ou, melhor, complementarem, torna-se essencial consolidarem-se pe-
rante e na comunidade cientíica portuguesa. Para isso, requer-se muito mais do
que cursos, de curta, média ou longa duração. Para isso, urge desdobrar esforços,
multiplicando projetos na área, abraçando iniciativas destinadas a promover o co-
nhecimento sistemático e profundo da realidade das mulheres em múltiplas áreas,
das quais a cientíica, sendo apenas uma, é assaz complexa, porquanto agregadora de
variadas formas de olhar, desde a ilosóica, até à sociológica, passando pela cultural.
A verdade é que, dois anos antes, a AMONET – Associação Portuguesa de
Mulheres Cientistas concretizara um simpósio internacional temático, intitulado
“Mulheres na ciência”, seguido de “Autonomização das mulheres na ciência” (2009)
e “Mulheres, ciência e globalização” (2011). Todos, acolhidos na FCG. Todos, rele-
tindo também o apoio crescente à comunidade cientíica portuguesa no feminino,
fruto de resultados francamente positivos e de nível internacional, alcançados com
investigações conduzidas por muitos dos seus nomes. Disso mesmo nos dão con-
ta os sucessivos prémios L’Óreal atribuídos, ano após ano, a nomes nacionais em
diferentes ramos das ciências naturais. Curiosamente, aqueles encontros não têm
ecoado o necessário – direi – na comunidade cientíica, mesmo daquela que esta-

289
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

ria mais interessada nos assuntos debatidos nestes fóruns. A começar por quem se
consagra à História da Ciência. Com efeito, não deixa de estranhar a ausência, neste
organismo, de especialistas nesta área, quando, em Portugal, já os temos em relativa
abundância e crescimento. Facto que se deverá, mais a uma coincidência, do que a
quaisquer outros aspetos invocáveis numa leitura mais supericial e desatenta.
É, pois, tempo de começar a desbravar, entre nós, um campo de atuação há
muito rasgado além-fronteiras, em especial no mundo anglo-saxónico, o primeiro
a atender a estas questões, porquanto ilhas de um riquíssimo historial sufragista
(= nacionalismo) que em muito alimentou interesses e curiosidades neste sentido.
Há, no entanto, que matizar o discurso, diversiicando, em simultâneo, os assun-
tos estudados. Dever-se-á esbater uma entendível inclinação para aspetos mais
próximos da natureza feminina, desde a sexualidade à maternidade; ultrapassar
o discurso sobre opressões e repressões, contextualizando-o na longue durée dos
factos analisados; transpor a verbalidade centrada na infelicidade das protagonistas,
entrelaçando-a com a história mais totalizante. Mais do que isso, é fundamental
reletir metodologias, que em pouco ou nada divergirão das aplicadas a outros as-
suntos, teorizando processos de (re)descoberta e (re)colocação das protagonistas
extirpadas ao anonimato, olvido ou malquerença. Estamos, por conseguinte, pe-
rante um longo caminho, mas não mais extenso do que qualquer outro trilhado
por historiadores na sua demanda pelo conhecimento e compreensão do passado,
enquadrando a “cultura feminina” na história das representações sociais, culturais
e políticas, germinadas, talhadas e airmadas em malhas que lhe foram adversas,
porquanto estranhas e contrárias.
Cumprir este desiderato, signiica esquadrinhar estantes, armários, escrevani-
nhas, baús, arquivos e bibliotecas, para deles retirar nomes ocultos pela poeira dos
tempos, indiferença e letargo dos homens. Somente assim a história, a história
da cultura e das mentalidades, e a história da ciência e da tecnologia, poderão ser
preenchidas em pleno. Haverá, por isso, que continuar nesta demanda, procurando
recompor redes familiares; formações académicas; atividades e redes proissionais;
outputs cientíicos e legados intelectuais.
Ester Pereira de Sousa é um entre muitos exemplos de quem, irme no seu saber,
experiência e vontade, prosseguiu em demanda da ciência, colaborando com nomes
destacados da botânica - entre os quais, o inglês Arthur Wallis Exell (1901-1993) -,
ao mesmo tempo que revia bibliograia e descobria, mesmo em colaboração, novas
espécies da lora subsaariana. O tempo encarregou-se de a esquecer. É tempo, agora,
de a rememorar, como a tantas outras que permanecem na penumbra do nosso saber.
Lisboa, Primavera de 2012

290
MULHERES CIENTISTAS E OS TRÓPICOS:(IN)VISIBILIDADES DA PRIMEIRA METADE DO NOVECENTOS PORTUGUÊS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUREK, C. V. & HIGGS, B. (eds.), he role of women in the history of geology, London, he Geological
Society, 2007.
BURNS, William E., Science in the enlightenment: an encyclopedia, Santa Barbara, ABC-CLIO, 2003.
CARRISSO, Luiz Wittnich, A missão Botânica da Universidade de Coimbra à Colónia de Angola, em
1927, Boletim da Sociedade Broteriana, v. 6, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1928.
CARRISSO, Luiz Wittnich, A missão botânica da Universidade de Coimbra à colónia de Angola, em 1927,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.
CARRISSO, Luiz Wittnich, Ocupação cientíica das colónias portuguesas. O que há feito. O que há a fazer,
Porto, Tipograia Leitão, 1934.
CARRISSO, Luiz Wittnich, A história natural e o Ultramar Português. A lora e a protecção da
natureza, Alta Cultura Colonial. Discurso Inaugural e Conferência, Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1936,
pp. 375-40.
CLAASSEN, Cheryl (ed), Women in archaeology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.
COHEN, Getzel M., Breaking ground: pioneering women archaeologists, Michigan, he University of
Michigan Press, 2004.
Da Comissão de Cartograia (1883) ao Instituto de Investigação Cientíica Tropical (1983). 100 anos de
História, Lisboa, IICT, 1983.
DIAZ-ANDREU, Margarita & Sorensen, Marie Louise S. (eds), Excavating women: A history of women
in European archaeology, London, Routledge, 1998.
EXELL, A. W. & SOUSA, Ester Pereira de, Sapindaceae, Col. Flora de Moçambique, 51, Lisboa, Junta
de Investigações do Ultramar, 1973, 48 p.
FAUSTO-STERLING, Anne, Myths of Gender: Biological heories about Women and Men, New York,
Basic Books, 1985.
FLOTOW, Luise von (ed.), Translating women, Ottawa, University of Ottawa Press, 2011.
FOX KELLER, Evelyn, Relections on Gender and Science, New Haven and London, Yale University
Press, 1985.
FOX KELLER, Evelyn and LONGINO, Helen. (eds.), Feminism and Science, Oxford, New York,
Oxford University Press, 1996.
GOSDEN, R., he Vocabulary of the Egg, Nature, 283, 1996, pp. 485-486.
HARAWAY, Donna, Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science, New York,
Routledge & Kegan Paul, 1989.
HARRIS, Barbara J & MAcNAMARA, Jo Ann, Women and the structure of society: selected research from
the Fifth Berkshire Conference on the History of Women, Duke, Duke University Press, 1984.
HOLLWAY, W., Subjectivity and method in psychology: Gender, meaning, and science, London, Sage
Publications, 1989.
KELLER, Evelyn Fox, Relections on gender and science, New Heaven, Yale University Press, 1985.
KELLER, Evelyn Fox, Reiguring life: Metaphors of twentieth century biology, New York, Columbia
University Press, 1995.
KELLER, Evelyn Fox, Qual foi o impacto do feminismo na ciência?, Cadernos Pagu. 27, 2006, pp. 13-34.
KOHLSTEDT, Sally Gregory, Women in the History of Science: An Ambiguous Place, Osiris, 10,
1995, pp.39-58.
LASLETT, Barbara, Gender and Scientiic Authority, Chicago, he University of Chicago Press, 1996.
LOPES, Maria Margaret, “Aventureiras” nas ciências: reletindo sobre gênero e história das ciências
naturais no Brasil, Cadernos Pagu, 10, 1998, p p. 345-368.
MARTIN, Alison E., he voice of nature: british women translating botany in the early nineteenth
century, Translating women.- ed. Luise von Flotow, Ottawa, University of Ottawa Press, 2011, pp. 11-35.
MARTINS, Ana Cristina, Re)Conhecer para ocupar. Ocupar para (re)conhecer. A colonização cientíica
do além-mar, Viagens e missões cientíicas aos Trópicos. 1883-2010, Coord. Ana Cristina Martins & Teresa
Albino, Lisboa, IICT, 2010, pp. 26-33.
MARTINS, Ana Cristina, Colher plantas. Semear ideias. Luiz W. Carrisso (1886-1937) e a Ocupação

291
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

cientíica das colónias portuguesas (1934), Atas do Congresso Luso-Brasileiro de História das Ciências, coord.
Carlos Fiolhais, Carlota Simões e Décio Martins, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
2011, pp. 372-389.
MENDONÇA, F. A, SOUSA, E. P., Revisão das Celastraceae de Angola, Garcia de Orta, Vol. 16: 2, 1968,
pp. 117-191.
MERCHANT, Carolyn, he Death of Nature: Women, Ecology, and the Scientiic Revolution, New York,
Harper & Row, 1980.
NELSON, L. H. and NELSON, J. (eds.), Feminism and philosophy of science, Dordrecht, Kluwer, 1996.
NORTON, Leonie, Women of lowers. Botanic art in Australia from the 1830s to the 1960s, Camberra,
National Library of Australia, 2009.
OGILVIE, Marilyn Bailey, Marie Curie: a biography, Westport, Greenwood Press, 2004.
ORESKES, Naomi, Objectivity or Heroism? On the Invisibility of Women in Science,. Osiris, Science in
the Field 11, 1996, pp.87-113.
PEARSON, Jacqueline, Women’s reading in Britain: 1750-1835. A dangerous recreation, Cambridge,
Cambridge University Press, 1999.
RAYNER-CANHAM, Marelene & RAYNER-CANHAM, Geof, Chemistry was their life. Pioneer
British women chemists, 1880-1949, London, Imperial College Press, 2008.
ROSSITER, Margaret W., Women scientists in America. V. I. Struggles and strategies to 1940, Baltimore,
Johns Hopkins University Press, 1984.
SCHIEBINGER, Londa, Nature’s Body. Gender in the Making of Modern Science, Boston, Beacon Press,
1993.
SHEFFIELD, Suzanne L.-M., Women and science: social impact and interaction, Santa Barbara, Rutgers
University Press, 2006.
SOUSA, Ester Pereira de, Contribuições para o conhecimento da lora da Guiné portuguesa, Anais.
Estudos de Botânica, Junta das Missões Geográicas e de Investigações Coloniais, Vol. IV: III (I), 1949,
63 p.
SOUSA, Ester Pereira de, Observações acerca da distribuição e área das espécies consideradas mais
signiicativas da lora da Guiné Portuguesa, Sep. 6.ª Conferência Internacional Africanistas Ocidentais,
1958, pp. 139-153.
SOUSA, Ester Pereira de, Novos taxa da lora de Angola, Boletim Sociedade Broteriana, 37, 1963, pp.
143-145.
SOUSA, Ester Pereira d, Revisão das celastraceae de Angola, Sep. Garcia de Orta, vol. 16, 1968, 15 p.
SOUSA, Ester Pereira de, Revisão das Sapindaceae da Guiné Portuguesa, Garcia de Orta, Vol. 17: 4, 1969,
pp. 421-429.
SOUSA, Ester Pereira de, Revisão das sapindaceae da Guiné Portuguesa, Sep. Garcia de Orta, 17, 1969, 9 p.
SOUSA, Ester Pereira de, Contribuição para o conhecimento das Rutaceae de Moçambique, Sep. Garcia
de Orta, Série Botânica, 1, 1974, pp. 95-96.
SOUSA, Ester Pereira de, Contribuição para o conhecimento das Sapindaceae de Moçambique, Sep.
Garcia de Orta, Série Botânica, 1,1974, pp. 99-100.
Um século de ensino da história, Coord. Maria Cândida Proença, Lisboa, Edições Colibri, 2000.
Viagens e missões cientíicas nos Trópicos. 1883-2010, Coord. Ana Cristina Martins & Teresa Albino,
Lisboa, IICT, 2010.
WATTS, Ruth, Women in science. A social and cultural history, London, Routledge, 2007.

292
António Oliveira Pinto SJ e as primeiras experiências
com Radioactividade em Portugal
Francisco Malta Romeiras1
Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia- CIUHCT-UL

O ENSINO CIENTÍFICO DA COMPANHIA DE JESUS (SÉCULOS XVI-XVIII)

A Companhia de Jesus foi essencial para o desenvolvimento do ensino cientíico


na Europa entre os séculos XVI e XVIII.2 8 anos após a fundação da Companhia,
em 1548, foi fundado o primeiro colégio em Messina, ao qual se seguiu a fundação
de importantes instituições de ensino em Portugal, como o Colégio de Santo An-
tão (Lisboa, 1553), o Colégio das Artes (Coimbra, 1555) e a Universidade (Évora,
1559). A expansão da rede de colégios jesuítas foi de tal forma signiicativa que em
1580 a Companhia dirigia 144 colégios e, à data da supressão, em 1773, mais de
800 estabelecimentos de ensino, tendo a seu cargo dezenas de milhares de estudan-
tes, em todo o mundo.3 Em 1554, depois do aparecimento dos primeiros colégios,
foram adoptadas as Constituições da Companhia de Jesus onde se estabeleciam as
matérias que se deveriam ensinar nos colégios e nas universidades.4 A educação
consolidava, desta forma, um lugar de destaque na agenda da Companhia, o que
seria mantido até aos dias de hoje. Nestas constituições fundacionais, o ensino era
apresentado como uma ferramenta essencial para a salvação e era estabelecido que
os estudos realizados nos colégios da Companhia deveriam ter como im ajudar o

1 Bolseiro de Doutoramento da FCT - SFRH/BD/61883/2009


2 A literatura sobre este tema é vastíssima. Alguns trabalhos de referência sobre Jesuítas e Ciência:
BALDINI,Ugo, Legem impone subactis. Studi su ilosoia e scienza dei Gesuiti in Italia. 1540-1632. Bulzoni, Roma,
1992; FEINGOLD, Mordechai (ed.), Jesuit Science and the Republic of Letters, he MIT Press, Cambridge MA,
2003; FEINGOLD, Mordechai (ed.), he New Science and Jesuit Science: Seventeenth Century Perspectives, Kluwer
Academic Publishers, Dordrecht, 2003; HELLYER, Marcus, Catholic Physics: Jesuit Natural Phylosophy in Early
Modern Germany, University of Notre Dame Press, Notre Dame, Indiana, 2005.
3 O’MALLEY SJ, John he First Jesuits. Harvard University Press, Cambdrige MA, 1993, p. 239.
4 Monumenta Ignatiana. Sancti Ignatii de Loyola Constitutiones Societatis Iesu, Rome, Institutum Historicum Socie-
tatis Iesu, 1948. Versão portuguesa traduzida e anotada por ABRANCHES, Joaquim Mendes - Constituições da
Companhia de Jesus, Imprimatur, Braga, 1975.

293
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

próximo “a conhecer e amar a Deus, e a salvar a sua alma.”5 Para adquirir uma boa
formação teológica, doutrinal e prática, era ainda determinado que nas universi-
dades se devia estudar literatura (latina, grega e hebraica) e ciências naturais.6 As
ciências naturais eram importantes, uma vez que “dispõem os espíritos para a teo-
logia, e servem para se ter dela perfeito conhecimento e prática, ao mesmo tempo
que são já por si próprias, um auxílio para o mesmo im.”7 Apesar do núcleo central
da formação ser constituído pelas humanidades, entre as quais se destacavam a
ilosoia e a teologia, as ciências naturais e a matemática ocuparam um lugar com
algum destaque, pelo menos em comparação com as outras ordens religiosas.8
Desde 1553, data da fundação da Academia de Matemática do Colégio Ro-
mano, que os jesuítas, a par das observações astronómicas que realizavam, se pre-
ocupavam com o ensino de matérias cientíicas, entre as quais se destacaram a
matemática e a astronomia, incluindo-as nos currículos pedagógicos dos seus co-
légios. Cristóvão Clávio SJ (1538-1612), que cheiou a Academia de Matemática
do Colégio Romano desde 1581 e que foi um dos mais destacados astrónomos
que participou na reforma do calendário em 1582, promovida pelo Papa Gregório
XIII, foi um defensor activo da inserção da matemática no currículo dos colégios
jesuítas, como acabou por icar estabelecido na Ratio Studiorum em 1599.9 Este
interesse dos jesuítas pela matemática e pela astronomia, que se manifestava desde
meados do século XVI, acabou por levar à criação de observatórios astronómicos
nos seus colégios, nos séculos XVII e XVIII.10 Para além do apoio às tarefas lec-
tivas e de corresponder a um genuíno interesse pelo estudo da natureza, o notável
trabalho astronómico que desenvolveram activamente ao longo destes séculos, terá
representado, também, uma forma prática de mostrar que não existia verdadeira
oposição entre ciência e religião, mas antes um concílio harmonioso. Este empenho
em redor da astronomia nos séculos XVII e XVIII foi ainda renovado nos séculos

5 Constituições da Companhia de Jesus, [446].


6 Constituições da Companhia de Jesus, [447].
7 Constituições da Companhia de Jesus, [450].
8 Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. V: Ratio atque Institutio Studiorum So-
cietatis Iesu (1586, 1591, 1599), Institutum Historicum Societatis Iesu, Roma,
1986. Versão portuguesa traduzida e anotada por MIRANDA, Margarida -
Código Pedagógico dos Jesuítas, Ratio Studiorum da Companhia de Jesus, Regime
escolar e curriculum de estudos, Esfera do Caos, Lisboa, 2009.
9 BALDINI, Ugo, “he Academy of Mathematics of the Collegio Romano from 1553 to 1612” in FEINGOLD,
Mordechai (ed.). Jesuit Science and the Republic of Letters. MIT Press, Cambridge, 2003, pp. 47-98; SMOR-
LASKI, S.J., Dennis C., “he Jesuit Ratio Studiorum, Christopher Clavius, and the Study of Mathematical
Sciences in Universities.” Science in Context, 15(3), 2002, pp. 447-457; GATTO, Romano, “Christoph Clavius’
‘Ordo Servandus in Addiscendis Disciplinis Mathematicis’ and the Teaching of Mathematics in Jesuit Colleges
at the Beginning of the Modern Era.” Science and Education, 15, 2006, pp. 235-258.
10 UDÍAS, Augustin, Searching the Heavens and the Earth: he History of Jesuit Observatoires. Kluwer Academic
Publishers, Dordrecht, 2003, p.9.

294
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

XIX e XX, após a restauração da Companhia de Jesus, como ica bem patente pelo
facto de 31 astrónomos jesuítas terem sido sócios da Royal Astronomical Society de
Londres, fundada em 1820.11
No caso português, o interesse dos jesuítas pela matemática e, pela astronomia
em particular, teve as suas origens no inal do século XVI e deveu-se sobretudo
à Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão-o-Novo. Sabe-se, por exemplo, que
para a divulgação das novidades astronómicas de Galileu e para a construção dos
primeiros telescópios em Portugal, a chegada de Giovanni Paolo Lembo SJ (ca.
1570-1618) a Lisboa em 1614 foi essencial. O colégio jesuíta de Lisboa ocupou
um lugar de destaque especial nestas actividades, uma vez que foi a primeira escola
onde os próprios alunos eram instruídos na construção de telescópios.12 Porém, o
momento mais signiicativo na institucionalização da astronomia de observações
em Portugal seria o estabelecimento de dois observatórios na década de vinte do
século XVIII, no colégio de Santo-Antão e no Paço, devido à iniciativa do jesuíta
Giovanni Battista Carbone SJ (1694-1750). Equipados com os melhores instru-
mentos cientíicos e cumprindo um programa de observações rigorosas, estes dois
observatórios marcaram o início da astronomia moderna no nosso país.13

AS CONSEQUÊNCIAS DA CAMPANHA POMBALINA

Com uma história peculiarmente acidentada, a Companhia de Jesus foi expulsa


dos territórios portugueses por três vezes, em 1759, em 1834 e em 1910. Nestes
três momentos, porém, encontra-se um denominador comum que se relaciona com
as razões destas expulsões. Um dos eixos centrais das campanhas e da abundan-
te propaganda levada a cabo pelo Marquês de Pombal contra a Companhia de
Jesus, em meados do século XVIII, consistiu em apresentar os jesuítas como os
principais responsáveis pelo atraso educativo e cientíico português em contexto
europeu.14 Este conceito de que os jesuítas eram incultos e contrários ao progresso

11 IDEM, Ibid., p. 6.
12 LEITãO, Henrique, “Longemira: Os primeiros telescópios em Portugal”, Gazeta de Física, 33, 2010, pp. 17-21.
13 UDÍAS, Augustin, op. cit., p. 64; CARVALHO, Rómulo de, A astronomia em Portugal no século XVIII, Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1985; TIRAPICOS, Luís, O telescópio astronó-
mico em Portugal no século XVIII, Tese de Mestrado em História e Filosoia das Ciências, Universidade de Lisboa,
2010.
14 FRANCO, Eduardo Franco & VOGEL, Christine, “Um acontecimento mediático na Europa das Luzes: A
propaganda antijesuítica pombalina em Portugal e na Europa”, Brotéria - Cristianismo e Cultura, 169, 2009, pp.
349-506; FRANCO, José Eduardo, O Mito dos Jesuítas. Em Portugal, Brasil e Oriente. (Séc. XVI a XX), Gradiva,
Lisboa, 2006. Os principais livros contra a Companhia de Jesus publicados durante este período foram: Relação
abreviada (1757), Erros ímpios e sediciosos (1759), Dedução cronológica e analítica (1767-68) e Compêndio Histórico

295
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

cientíico foi apropriado, com grande competência, pela sociedade portuguesa no


período pós-Pombalino e manteve-se praticamente inalterado até à implantação
da República..Num Portugal positivista, o argumento utilizado pelo Partido Repu-
blicano Português (PRP) para a expulsão das ordens religiosas a 8 de Outubro de
1910 foi ainda o de que os jesuítas eram o maior obstáculo ao progresso cientíico
em Portugal.15
Nos debates parlamentares das diferentes Câmaras da Monarquia Constitu-
cional entre 1821 e 1910, vários deputados, entre os quais se destacaram Afonso
Costa (1871-1937), Miguel Bombarda (1851-1910), Tomás Ribeiro (1831-1901)
e António José de Almeida (1886-1929) pronunciavam-se contra a presença da
Companhia de Jesus em Portugal- uma clara violação das leis de Pombal e das leis
anti-congreganistas de 1834. António José de Almeida, por exemplo, airmava que
a educação pública começara apenas com a expulsão dos jesuítas, enquanto que na
visão do médico português, Miguel Bombarda, era essencial proteger as crianças
da iniquidade da Companhia de Jesus.16 Apesar de Afonso Costa ter proposto uma
lei que extinguia a Companhia de Jesus e os seus colégios em Julho de 1908, os je-
suítas permaneceram em Portugal, num clima de inospitalidade política, até 1910,
quando foi publicado o decreto de 8 de Outubro restabelecendo as leis de Pombal e
as leis anti-congreganistas de Joaquim António de Aguiar.17 Os inimigos da Com-
panhia retomavam, sem grande imaginação, mas com bastante ênfase, um dos eixos
centrais do ataque pombalino à Companhia, a acusação de que os jesuítas tinham
sido um obstáculo à prática das ciências e à entrada das novidades cientíicas no
nosso país. Esta contínua acusação foi certamente uma da razões que levou os je-
suítas, como resposta, a fazer neste período um investimento no ensino das ciências
verdadeiramente admirável e que teria como consequência o reconhecimento de
notabilidade cientíico entre os seus pares na Monarquia Constitucional.18

do Estado da Universidade de Coimbra (1771).


15 Decreto de 8 de Outubro de 1910 da República Portuguesa.
16 ALMEIDA, António José de, 52.ª Sessão da Câmara dos Senhores Deputados, 6 de Abril de 1907; BOMBAR-
DA, Miguel, 78.ª Sessão da Câmara dos Senhores Deputados, 25 de Agosto de 1908.
17 COSTA, Afonso, 50.ª Sessão da Câmara dos Senhores Deputados, 27 de Julho de 1908. Sobre a importância da
relação entre Ciência e Poder ver: PESTRE, Dominique, “Science, Political Power and the State.” in: KRIGE,
John & PESTRE, Dominique, Science in the Twentieth Century, Harwood Academic Publishers, Amsterdam,
1997, pp. 61-75; FOUCAULT, Michel, Surveiller et punir : naissance de la prison. Gallimard, Paris, 1975; FOU-
CAULT, Michel, L’ordre du discours; leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970. Gallimard,
Paris, 1971; FOUCAULT, Michel, Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings. Ed. GORDON,
Colin, Pantheon, New York, 1980.
18 Vários cientistas portugueses defenderam os jesuítas durante a expulsão e apoiaram o pedido de restituição das
colecções e equipamentos expropriados pela República Portuguesa. Entre os defensores dos Jesuítas encontram-
se cientistas notáveis como Veríssimo de Almeida, António Ferreira da Silva e Egas Moniz. Vide: TAVARES
SJ, Joaquim da Silva Tavares, “José Veríssimo de Almeida”, Brotéria - Botânica, XIII, 1915, pp. 57 - 60; SILVA,
António Ferreira da, “Director e redatores da “Broteria”. Um appello aos homens de boa vontade”, Revista de
Chimica Pura e Applicada, Tomo VI, 1910, pp. 362-363; MONIZ, António Egas, A nossa casa. Paulino Ferreira

296
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

O argumento que relaciona os jesuítas com o atraso cientíico foi de tal modo
signiicativo na cultura portuguesa que se tornou e uma premissa universalmente
aceite (com raras excepções) até meados do século XX.19 Esta tese está já hoje
praticamente superada entre os especialistas, no que se refere ao período entre os
séculos XVI e XVIII. Contudo, mantém-se ainda para a história da Companhia
nos séculos XIX e XX: a evidência documental que conirma a ligação entre o
ensino e a prática cientíicos, a partir de meados do século XIX, nos Colégios de
Campolide e de São Fiel, é abundante mas praticamente desconhecida. Embora já
existam alguns estudos preliminares sobre os Colégios dos jesuítas neste período,
as questões relacionadas com a prática e a pedagogia cientíicas só têm sido explo-
radas recentemente.20

O ENSINO CIENTÍFICO DOS JESUÍTAS EM PORTUGAL (1858-1910)

A Companhia de Jesus, expulsa dos territórios portugueses em 1759, sob as


ordens do Marquês de Pombal e suprimida pelo Papa Clemente XIV em 1773,
foi restaurada no nosso país, pelo P. Carlos João Rademaker SJ (1828-1885) com
a designação de Missão Portuguesa, em 1858, e oicialmente restabelecida como
Província Portuguesa em 25 de Julho de 1880.21 No período entre 1858 e 1910, os
jesuítas fundaram e mantiveram em funcionamento instituições de ensino como o
Colégio de Campolide (1858, Lisboa) e o Colégio de São Fiel (1863, Louriçal do
Campo) e casas de formação religiosa como o Noviciado do Barro (1860, Torres
Vedras) e a Casa de Setúbal (1878, Setúbal) no antigo Convento de S. Francisco,
onde os jesuítas em formação estudavam Filosoia e Ciências Naturais.22 Em 1910,

Filhos Lda, Lisboa, 1950.


19 Sobre as actividades cientíicas dos Colégios de Campolide e de São Fiel ver ROMEIRAS, Francisco Malta e
LEITãO, Henrique, “Jesuítas e Ciência em Portugal. I - António Oliveira Pinto S.J. e as primeiras experiências
com Radioactividade em Portugal”, Brotéria,174, 2012, pp. 9-20; ROMEIRAS, Francisco Malta e LEITãO,
Henrique, “Jesuítas e Ciência em Portugal. II - Carlos Zimmermann S.J. e o ensino da Microscopia Vegetal”,
Brotéria, 174, 2012, pp. 113-125; ROMEIRAS, Francisco Malta e LEITãO, Henrique, “Jesuítas e Ciência em
Portugal. III - As expedições cientíicas e as observações dos eclipses solares de 1900 e 1905 “, Brotéria, 174,
2012, pp. 227-237.
20 Sobre o Colégio de Campolide ver: CUSTÓDIO, Jorge, O Colégio de Campolide, Universidade Nova de Lisboa,
Faculdade de Economia, Lisboa, 1988. Sobre o Colégio de São Fiel ver: MARTINS, Ernesto Candeias, “Do
Colégio de S.Fiel a Reformatório (séculos XIX-XX). Contributos à Re(educação) em Portugal”, Anais do VI
Congresso Luso-Brasileiro da História da Educação, 2006, pp. 826-851; ROSA, João Mendes, Colégio de S. Fiel,
GAAC - Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, Coimbra, 2004; SALVADO, Maria Adelaide Neto, O Colé-
gio de São Fiel: centro difusor da ciência no interior da Beira. Semedo - Soc. Tipográica, Castelo Branco, 2001.
21 RODRIGUES SJ, Francisco Rodrigues, A Formação Intellectual do Jesuíta. Leis e factos. Livraria Magalhães e
Moniz, Porto, 1917, pp. 552-554; LOPES SJ, António & ARAÚJO, António, “Jesuítas.” in: FRANCO, José
Eduardo, Dicionário Histórico das Ordens. Institutos Religiosos e Outras Formas de Vida Consagrada Católica em
Portugal. Gradiva, Lisboa, 2010, pp. 195-206.
22 RODRIGUES SJ, Francisco, A Formação Intellectual do Jesuíta. Leis e factos, Livraria Magalhães e Moniz, Porto,

297
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

à data da expulsão das Ordens Religiosas, a Província Portuguesa da Companhia


de Jesus tinha à sua responsabilidade 807 alunos em Portugal Continental, divi-
didos pelos Colégios de Campolide e de São Fiel, e pelas casas de Guimarães,
Setúbal e Barro, e 3365 alunos disseminados pela Índia, África Oriental, Macau e
Timor, perfazendo um total de 4172 estudantes.23
Entre 1858 e 1910, os Jesuítas portugueses dedicaram-se ao ensino da Física,
da Química, da Zoologia e da Botânica, nos Colégios de Campolide e de São Fiel,
com o objectivo de incentivar os seus alunos a interessarem-se pelo estudo das Ci-
ências, num sentido mais lato. Para além das aulas, também as expedições, as aca-
demias cientíicas e a execução de experiências laboratoriais foram uma prioridade
para os professores de Campolide e de São Fiel. Este investimento da Companhia
de Jesus no ensino e na investigação cientíicas, para além de traduzir o interesse
de alguns jesuítas portugueses por temas cientíicos, foi uma resposta directa às
acusações de obscurantismo de que os jesuítas eram alvo desde os tempos do Con-
de de Oeiras e permitiu-lhe alcançar uma grande notabilidade cientíica entre os
seus pares, de que são exemplo a fundação da Sociedade Portuguesa de Ciências
Naturais e o acolhimento da revista Brotéria pela comunidade cientíica portuguesa
e internacional.24
O Colégio de Maria Santíssima Imaculada foi fundado em 1858 por Carlos
Rademaker na Quinta da Torre, em Campolide, onde actualmente se encontra a
Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa.25 Este colégio teve um
grande impacto na cultura portuguesa, a partir de meados do século XIX, parti-
cularmente por ter sido a instituição de ensino pré-universitário responsável pela

1917, p. 553. Os estudos de Filosoia mudaram para o Colégio de S. Fiel em 1893 e aí permaneceram durante 5
anos. Entre 1898 e 1908 o curso de Filosoia foi ministrado novamente em Setúbal.
23 RODRIGUES SJ, Francisco, A Formação Intellectual do Jesuíta. Leis e factos. Livraria Magalhães e Moniz, Porto,
1917, p. 596. Entre os alunos dos Colégios dos Jesuítas, Francisco Rodrigues SJ salienta alguns nomes que se
tinham destacado na História Cultural Portuguesa, referindo-se em primeiro lugar “aos sete Prelados da Igreja
Portuguesa” - D. António de Medeiros, Bispo de Macau, D. Augusto Eduardo Nunes, Arcebispo de Évora, D.
Sebastião Leite de Vasconcelos, Bispo de Beja, D. João Gomes Ferreira e D. José Bento Martins Ribeiro, Bispos
de Cochim, D. António Pereira Ribeiro, Bispo do Funchal e D. Manuel da Costa Damasceno, Bispo de Angra.
Francisco Rodrigues destaca ainda os nomes de portugueses que se distinguiram nas Ciências, Artes ou Letras,
indicando nomes como Egas Moniz, D. João da Câmara, José de Sousa Monteiro e D. Francisco de Sousa Couti-
nho (Redondo), mais conhecido por Chico Redondo. A lista, apesar de não ser exaustiva, refere ainda diplomatas
e distintos oiciais do exército como Francisco e Luís Quintella (Charruada), Luís d’Albuquerque do Amaral
Cardoso, Manuel Ferrão de Castello Branco (Conde da Ponte), D Miguel António de Mello e D. José d’Almeida
Correia de Sá (Marquês de Lavradio) - “que se assignalou na Campanha de Gaza”.
24 ROMEIRAS, Francisco Malta e LEITãO, Henrique, “Jesuítas e Ciência em Portugal. I - António Oliveira
Pinto S.J. e as primeiras experiências com Radioactividade em Portugal”, Brotéria,174, 2012, pp. 9-20; ROMEI-
RAS, Francisco Malta e LEITãO, Henrique, “Jesuítas e Ciência em Portugal. II - Carlos Zimmermann S.J. e
o ensino da Microscopia Vegetal”, Brotéria, 174, 2012, pp. 113-125; ROMEIRAS, Francisco Malta e LEITãO,
Henrique, “Jesuítas e Ciência em Portugal. III - As expedições cientíicas e as observações dos eclipses solares de
1900 e 1905 “, Brotéria, 174, 2012, pp. 227-237.
25 ALMEIDA SJ, Luís Maria de, “O Nosso Collegio.”, O Nosso Collegio, I, 1904-1905, pp. 5 – 44.

298
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

educação dos jovens pertencentes às camadas mais altas da sociedade portuguesa. O


Colégio de Campolide foi, essencialmente, um colégio de élites. Aliás, este foi um
dos argumentos utilizado pelos opositores da Companhia de Jesus em 1910. Era es-
sencial que se encerrassem os colégios dirigidos pelos jesuítas e que fossem expulsas
as ordens religiosas dos territórios portugueses. Só desta forma é que era possível,
na visão de Manuel Borges Grainha (1826-1925), um dos principais adversários da
Companhia de Jesus no início do século XX, impedir que os jesuítas continuassem a
exercer a sua inluência na educação da nobreza e burguesia lisboetas.26
O Colégio de São Fiel foi criado, em 1852, pelo padre franciscano Frei Agosti-
nho da Anunciação (1802-1874), com o objectivo acolher crianças órfãs e pobres
da região. Natural de Louriçal do Campo, Frei Agostinho tinha sido confessor da
Infanta D. Isabel Maria de Bragança, grande benfeitora do colégio. O instituto,
que era gratuito, esteve a cargo das Irmãs da Caridade entre 1852 e 1862, altura
em que esta Congregação foi expulsa do país na sequência da Questão das Irmãs
da Caridade.27 Foi então que, em 1862, Frei Agostinho se deslocou a Roma, com
a Infanta D. Isabel, com o intuito de entregar o colégio à tutela da Companhia
de Jesus. Desta forma, o colégio passou a estar sob a alçada dos jesuítas a partir
de 1863, adoptando-se desde logo o Regulamento do Colégio de Campolide. No
entanto, devido ao ambiente anticlerical que se instalara no país desde 1759, foi
necessário simular a venda do edifício, por 2000 réis, em 1873 a 3 ingleses, Georges
Lambert, Ignácio Cory Soles e Henri Foley que, apesar de serem jesuítas, não se
tinham identiicado como tal.28
Entre os alunos de São Fiel que mais se destacaram na vida pública portugue-
sa, encontram-se Luís Cabral de Moncada (1888-1974) e António Egas Moniz
(1874-1955). O célebre jurista conimbricense recorda-se da época em que estudou
no Colégio de São Fiel como “uma das mais felizes da minha vida”.29 Cabral de
Moncada, procurou expor, de forma imparcial a forma como via o ensino das hu-
manidades em São Fiel:

26 GRAINHA, Manuel Borges, História do Colégio de Campolide da Companhia de Jesus, Imprensa da Universidade,
Coimbra, 1913.
27 GOMES, J. Pinharanda, “Nas origens da revista Brotéria (Louriçal do Campo, 1902-1910).” in: Hermínio Rico
SJ & José Eduardo, 2003 p. 195.
28 MARTINS, Ernesto Candeias, “Do Colégio de S.Fiel a Reformatório (séculos XIX-XX). Contributos à
Re(educação) em Portugal”, Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro da História da Educação, 2006, p. 829; RE-
FÓIOS, Joaquim Augusto de Sousa, O Collegio de S. Fiel no Louriçal do Campo e o de Nossa Senhora da Conceição
na Covilhã: Apontamentos sobre o Jesuitismo no Districto de Castello-Branco. Coimbra, 1883, p. 69: “Dois contos de
réis, preço da venda, é uma quantia tão pequena, que por si só denuncia quanto se quiz encobrir com a escriptura
de venda, feita a tres padres inglezes.”
29 MONCADA, Luís Cabral de, Memórias ao longo de uma Vida. Editorial Verbo, Lisboa, 1992, p. 24.

299
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Menos discutível era a sua pedagogia escolar em matéria de instrução. O Colégio


de S. Fiel, bem como o de Campolide, gozavam de justiicada fama de serem os
melhores colégios particulares do ensino secundário em Portugal. Os inimigos
dos Jesuítas, liberais, anticlericais e outros eram os primeiros a mandar para lá
os ilhos. Sem dúvida, os seus métodos pedagógicos, se comparados com os de
épocas posteriores, sofriam de graves defeitos. Mas esses defeitos não lhes eram
peculiares; eram os defeitos gerais, comuns a todos os colégios e liceus daque-
le tempo, em toda a parte. No ensino das humanidades, quanto me recordo,
abusava-se muito da memória e da ixação de ideias abstractas eniadas umas nas
outras e depois desenroladas segundo uma lógica muito formal e aristotélica.30
Além do ensino das humanidades, sabe-se também pelo testemunho de Cabral
de Moncada que o ensino artístico não era descurado em São Fiel, sendo que a
educação musical (lauta e solfejo), a banda e o canto coral estavam a cargo do leigo
Jesus Urbano Escoto, havendo ainda a representação ocasional de algumas peças de
teatro.31 Em relação ao ensino cientíico, o jurista apresentava-o em oposição ao
ensino das humanidades, tecendo largos elogios:
Não era assim, porém, no ensino das Ciências. Aqui o ensino era do melhor no
curso secundário. Fora o matemático, em que ele era regular e correcto em todas
as escolas, sem eu ter qualquer competência para o apreciar, dada a minha fraca
vocação para toda a ciência de números e quantidades abstractas, nas restantes
ciências, como as físicas e naturais, esse ensino era modelar. Alem de os Jesuítas
contarem entre eles vários naturalistas distintos, como o Padre Luisier e o Padre
Silva Tavares, o meu director espiritual, a quem já me referi, e fundador da Bro-
téria, o colégio dispunha de laboratório, gabinete de física e museu zoológico, de
borboletas e outros insectos e bichos, que eram, segundo voz geral, do melhor
que no género havia no País. Eram notáveis as suas colecções de zoocecídias e
lepidópteros que a Revolução da República, em 1910, lhes roubou.”32
Também o prémio Nobel da Medicina se referiu à sua passagem por Louriçal
do Campo, mencionando a importância da educação humanista e cientíica que
adquira enquanto aluno dos jesuítas:
No colégio, ao lado da exagerada vida religiosa que nos levava tempo e roubava
actividade, havia uma boa educação humanista e cientíica que, só por estar
sujeita a programas liceais, alguns deles pouco recomendáveis, não era mais per-

30 MONCADA, Luís Cabral de, Memórias ao longo de uma Vida. Editorial Verbo, Lisboa, 1992, pp. 34-35.
31 MONCADA, Luís Cabral de, Memórias ao longo de uma Vida. Editorial Verbo, Lisboa, 1992, pp. 36-37.
32 MONCADA, Luís Cabral de, Memórias ao longo de uma Vida. Editorial Verbo, Lisboa, 1992, p. 35.

300
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

feita. Devo a esse orientação muito do meu aproveitamento na carreira universi-


tária. A disciplina mental a que obrigavam os alunos em ciências exactas e ains,
era bem orientada. Aos exercícios físicos já dava o Colégio a sua atenção nesses
remotos tempos. O equilíbrio entre orações, exercícios físicos e estudo, merecia
ser melhor estabelecido; mas eu aproveitei com o ensino que me ministraram na
matemática, física, química e ciências biológicas. Davam certo desenvolvimento
à parte experimental, o que contrastava com a maior parte do ensino liceal desse
tempo. O laboratório de química e o gabinete de física estavam suicientemente
apetrechados e o ensino baseava-se em experiências sempre que isso era possí-
vel. Apraz-me deixar aqui exarado o meu depoimento imparcial.”33
Tal como no Colégio de São Fiel, em Campolide existia um Museu de História
Natural e um Gabinete de Física equipado com instrumentos de Raios-X, um
telégrafo sem ios e outros equipamentos electromagnéticos.34 Sabe-se, ainda, que
existiu em São Fiel um Observatório Meteorológico, que funcionou entre 1901
a 1910.35 O Observatório (40º 22’ N 7º 31’ W) situado a 2 Km da Serra da Gar-
dunha e a uma altitude de 516 m, estava apetrechado com todos os instrumentos
cientíicos necessários, como barógrafos, psicómetros, termómetros, termógrafos,
anemómetros e evaporímetros. No entanto, apesar do carácter local que este ob-
servatório pudesse ter, as observações meteorológicas, a cargo do P. Carlos Zim-
mermann SJ (1871-1950), eram relatadas ao Observatório do Infante D. Luis e
constavam do seu relatório anual, a par dos registos dos observatórios dissemina-
dos em Portugal em regiões como Montalegre, Moncorvo, Porto, Guarda, Serra
da Estrela, Campo Maior, Évora, Beja, Faro, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo,
Funchal e S. Vicente de Cabo Verde, indicando a importância que teriam estas
observações no contexto meterológico nacional.36 Existia ainda em São Fiel um
valioso herbário, começado no ano lectivo de 1897-1898 por iniciativa de Carlos
Zimmermann.37 Este herbário, em 1910, era constituído por 5121 espécies, con-
tendo diferentes espécies de líquenes, musgos, fungos, diatomáceas (cerca de 3000
espécies) e fanerogâmicas.
Em 1902, Joaquim da Silva Tavares (1866-1932), Cândido Mendes (1874-
1943) e Carlos Zimmermann, professores do Colégio de São Fiel, fundaram a

33 MONIZ, António Egas, A nossa casa. Paulino Ferreira Filhos Lda, Lisboa, 1950, p. 254.
34 Luís Maria de Almeida SJ, 1904-1905, p. 16.
35 ZIMMERMANN SJ, Carlos, “Observatorio Metereologico do Collegio de S. Fiel.” Brotéria, I, 1902, pp. 185-
188.
36 Observatorio do Infante D. Luis, Observações dos Postos Meterologicos no anno de 1902, Imprensa Nacional,
Lisboa, 1906.
37 TAVARES SJ, Joaquim da Silva, “O Herbário do Colégio de S. Fiel.”, Brotéria - Série Botânica, 1924, 21, pp. 82-87.

301
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Brotéria - Revista de Sciencias Naturaes em homenagem ao naturalista português


Felix de Avelar Brotero. Na Brotéria publicaram-se, no período de 100 anos, mais
de 1300 artigos de investigação cientíica e foram descobertas e descritas mais de
2000 novas espécies, sub-espécies, géneros ou variantes nas áreas da Botânica e da
Zoologia. Para além de artigos cientíicos originais, foram publicados mais de 400
artigos de vulgarização cientíica, em áreas tão distintas como a Química, a Física,
a Biologia e a Medicina.38
Como nos restantes colégios jesuítas, os Colégios de Campolide e de São Fiel
fomentavam a criação de “academias” cientíicas, indo de encontro às disposições
da Ratio Studiorum. Estas academias, constituídas pelos melhores alunos de diver-
sos anos, ofereciam aulas especiais aos seus membros, onde se discutiam assuntos
cientíicos actuais e de particular importância. Por vezes, estas academias organiza-
vam sessões solenes e eram apresentadas várias comunicações cientíicas para todos
os alunos do colégio e suas famílias. Privilegiava-se nestas sessões uma abordagem
experimental dos assuntos, em detrimento de um estudo meramente teórico. A
primeira sessão cientíica em Campolide deu-se em 1873 e foram escolhidos 4
alunos para apresentar algumas experiências sobre as propriedades da luz.39 Nas
sessões solenes, que decorreram até 1910, os alunos de Campolide apresentaram
palestras sobre temas tão diversos como electricidade, magnetismo e propriedades
dos líquidos e dos gases.40 As experiências que os alunos de Campolide e São Fiel
realizavam eram sempre acompanhadas por “projecções no alvo”, um facto único
no nosso país, e que espelha a preocupação dos jesuítas portugueses em abraçar
práticas pedagógicas de vanguarda.41
Oicialmente, a Academia Scientiica e Litterária de Maria Santíssima Imaccula-
da foi fundada em 1904, em Campolide, com objectivo de promover uma sólida
instrução cientíica e o bom-gosto literário.42 A Academia era presidida por Luís
Gonzaga Cabral SJ (1866-1939), reitor do Colégio, enquanto que António Oli-
veira Pinto SJ era o responsável pela Secção de Sciencias. Para além dos 18 membros
efectivos, escolhidos entre os melhores alunos, a Academia de Campolide contava
com dois membros honorários, o Príncipe D. Luís Filipe (1887-1908) e o Infante

38 Indíces Gerais da Brotéria Cientíica [1902-2002], Brotéria Genética, Braga, 2002; As estatísticas encontram-se
disponíveis no website: http://webpages.fc.ul.pt/~fmromeiras/Broteria_/
39 GRAINHA, Manuel Borges Grainha, História do Colégio de Campolide da Companhia de Jesus, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 1913 p. 32.
40 “Visita de Suas Altezas”, O Nosso Collegio, I, 1904-1905, pp. 90-94.
41 Collegio de Maria SS. Immaculada em Campolide, O Ar. Sessão de Chimica Experimental oferecida na conclusão do
mês de Maria do anno jubilar da Immaculada Conceição á Padroeira do Collegio, pelos alumnos da 4.ª classe, Typ. La
Bécarre, Lisboa, 2 de Junho de 1904.
42 “Academia de Maria Sanctissima Immaculada”, O Nosso Collegio, I, 1904-1905, p. 81.

302
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

D. Manuel de Bragança (1889-1932), desde 14 de Março de 1905, data em que


presidiram à sessão em Campolide.43
A existência destas academias cientíicas tem sido ignorada nos estudos sobre
o ensino cientíico no nosso país, a par de outras instituições cientíicas também
relevantes, mas ainda pouco estudadas, como as escolas militares e os observatórios
astronómicos. No entanto, estas academias dos colégios jesuítas tiveram um papel
de relevo no ensino das ciências e, por isso, também no desenvolvimento cientíico
português. O enfoque marcadamente experimentalista que caracterizava as activi-
dades das academias distinguem-nas por completo do que era a prática mais usual
no nosso país nesse período.
O ensino e a investigação cientíica foram uma prioridade para os jesuítas por-
tugueses, a partir de meados do século XIX. Para os professores dos Colégios de
Campolide e de São Fiel, o ensino cientíico, com uma forte componente experi-
mental, deveria estimular o interesse dos alunos pelos ciência e demonstrar a pos-
sibilidade de concílio entre ciência e religião. Desta forma os jesuítas de São Fiel
e de Campolide poderiam inverter a lógica do discurso positivista, não só no que
dizia respeito à impossibilidade de um concílio entre ciência e religião mas também
no que se referia à “inabilidade dos religiosos para produzirem conhecimento cien-
tíico avançado e pertinente”.44 Assim, para além de traduzir o interesse cientíico
dos seus protagonistas, actividades cientíicas e pedagógicas dos jesuítas poderiam
também contribuir para o restabelecimento da reputação cientíica dos naturalistas
da Companhia de Jesus, posta em causa deste meados do século XVIII.

ANTÓNIO DE OLIVEIRA PINTO E AS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE

António da Costa e Oliveira Pinto, nasceu a 30 de Janeiro de 1868, na Covilhã


e faleceu a 17 de Março de 1933, nas Caldas da Saúde (Santo Tirso). Entrou no
Noviciado do Barro (Torres Vedras) em 12 de Agosto de 1882 e foi ordenado
em 1898 em Vals-près-Le-Puy (Haute-Loire). Sabe-se que esteve no Colégio de
Campolide como regente a partir de 1890, onde desempenhou o papel de professor
de matemática e de ciências naturais, fazendo apenas uma interrupção para estudar
Filosoia em Setúbal (1892-1895) e Teologia em Oña (1895-1897). Professou os

43 “Academias”, O Nosso Collegio, 3, 1906-1907, pp. 105-108.


44 FRANCO, José Eduardo, “História da Brotéria (1902 – 2002)”, in RICO SJ, Hermínio & FRANCO, José
Eduardo (ed.), Fé, Ciência, Cultura: Brotéria - 100 anos. Gradiva, Lisboa, 2003, p. 96.

303
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

últimos votos a 2 de Fevereiro de 1901, em Lisboa, e manteve-se no Colégio de


Campolide até 1910. Como Provincial da Companhia de Jesus, entre 1912 e 1918,
estabeleceu a casa de escritores em Alsemberg (Bélgica), posteriormente trasladada
para Pontevedra (Espanha) e para Lisboa, onde hoje se encontram as instalações
da revista Brotéria.45 Para além de ser responsável pelo ensino de matemática e de
ciências naturais, Oliveira Pinto foi um incansável promotor da abordagem experi-
mentalista no ensino das ciências e um entusiasmado divulgador das mais recentes
novidades cientíicas. Sócio de diversas sociedades cientíicas, dirigiu a Secção de
Sciencias da Academia Scientiica e Litterária de Maria Santíssima Imacculada entre
1904 e 1910 e escreveu variados artigos para a revista cientíica Brotéria.46
Um facto de especial importância na vida de António Oliveira Pinto foi a sua
participação no 1º Congresso Internacional de Radiologia e Ionização, em Liège,
em Setembro de 1905.47 Neste Congresso, entre os 300 participantes, estiveram
presentes cientistas de renome internacional como Arrhenius, Becquerel, Pierre
Curie, Lord Kelvin, Lord Rayleigh, Rutherford e J.J homson. O que não deixa
de ser interessante é que apesar de 15 Governos terem enviado delegações oiciais
para este Congresso, o Governo Português não enviou nenhum representante. Na
verdade, a presença de portugueses neste importante Congresso icou a dever-se
exclusivamente à Companhia de Jesus pois apenas dois portugueses estiveram ins-
critos - Oliveira Pinto e um outro jesuíta, não identiicado, que se encontrava a
estudar Teologia em Londres. Oliveira Pinto refere que na Secção de Física foram
apresentadas 40 comunicações e que, no im do Congresso, Becquerel propôs a
criação de uma Comissão Internacional vocacionada para o estudo de todas as
questões relacionadas com a radioactividade que foi aprovada por unanimidade.48
Oliveira Pinto fez uma viagem de estudos pela Europa onde se familiarizou
com as técnicas de radiologia no Laboratório de Pierre e Marie Curie - maté-
ria sobre a qual publicou um estudo 1910 numa separata da Revista de Química
Pura e Applicada.49 Estes resultados foram também apresentados no 2º Congresso

45 CARVALHO, J. Vaz de, “António da Costa e Oliveira Pinto.” Diccionario Histórico de la Compañia de Jesús,
Universidade Pontiicia Comillas, Institutum Historicum Societatis Iesu, Madrid-Roma, 2001, p. 3141.
46 Oliveira Pinto era membro de Sociedade de Física e Química de Madrid e da Sociedade Astronómica de Fran-
ça, co-fundador e 1º Vice-Secretário da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais.
47 PINTO SJ, António Oliveira Pinto, “Primeiro Congresso internacional de Radiologia e Ionização.” Brotéria, V,
1906. pp. 129-134; “Scientiic Notes and News” Science, Vol. 22, No. 564, 1905, pp. 510-512; “Scientiic Notes
and News” Science, Vol. 21, No. 543, 1905, pp. 837-839.
48 Entre os membros da comissão encontraram-se cientistas como: S.A. Arrhenius (Estocolomo), H. Becquerel
(Paris), L. Boltzmann (Vienna), William Crookes (Londres), P. Curie (Paris), Lord Kelvin (Glasgow), Olivier
Lodge (Birmingham), H. A. Lorentz (Leydsen), J. Munoz del Castillo (Madrid), W. Nernst (Berlim), H. Poin-
caré (Paris), Lord Rayleigh, W. C. Röntgen (Munich), E. Rutherford (Montreal) e J. J. homson (Cambridge).
49 PINTO SJ, António Oliveira, Primeira Contribuição para o Estudo da Radioactividade das aguas mineraes de
Portugal. Typographia Occidental, Porto, 1910.

304
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

Internacional de Radiologia e Ionização que se realizou em Bruxelas em 1910 e


representam, tanto quanto se sabe, as primeiras experiências sobre radioactividade
realizadas em Portugal.
Da comissão de honra deste congresso faziam parte cientistas como Marie
Curie, Lord Rayleigh, Ramsay, homson, Lodge, Crookes, Lorentz, Arrhenius,
Poincaré e Planck.50 Dividido em três secções distintas, Terminology and Radio-
metry, Physical Sciences e Biological Sciences, o congresso contou com cerca de 500
participantes, entre os quais se incluiu Oliveira Pinto. Nesta reunião, foram for-
malmente adoptadas as recomendações da Comissão Internacional, constituída
em Liège em 1905, e a unidade Curie (Ci) foi oicialmente recomendada: “he
committee recommends that the name “ Curie “ be given to the quantity or mass
of emanation in equilibrium with one gram of radium (element).” 51
Na comunicação que apresentou em Bruxelas, Oliveira Pinto salientou a impor-
tância terapêutica da Radioactividade, advertindo, no entanto, para o facto de que
o estudo metódico da Radioactividade se encontrava numa fase inicial. No início
da sua comunicação, descreveu detalhadamente a técnica utilizada para medir a ra-
dioactividade das águas minerais portuguesas. Através do uso de um electroscópio
foi possível determinar as quantidades de Rádio presentes no vapor das amostras
de água analisadas, utilizando dois aparelhos diferentes (de M.J. Danne e de M.W.
Wulf ). Para a re-calibração de ambos os aparelhos, utilizou uma solução de Bro-
meto de Rádio (RaBr2) que obteve no laboratório de Marie Curie:
“Je fais un devoir d’adresser l’hommage de ma plus vive reconnaissance à Mme
Curie, qui a bien voulu me permettre de travailler dans sons laboratoire et à
Mme Gieditsch, qui m’a gracieusement procuré la solution dont je me suis ser-
vi. Je ne puis passer sous silence l’obligeance de M. Laborde qui m’a donné
toutes les indications nécessaires pour la technique des mesures radioactives.”52
No inal da sua comunicação, o professor do Colégio de Campolide, apresentou
um quadro com os resultados obtidos. A radioactividade das águas minerais foi
expressa em miligramas de Rádio emanados por minuto, numa amostra de 10 litros
de água - mg Ra/min. Oliveira Pinto concluiu que os resultados obtidos pelos dois
aparelhos não eram signiicativamente diferentes e constatou ainda que os valores

50 HULL, G.F., “he International Congress of Radiology and Electricity”, Science, Vol. 30, No. 774, 1909, pp.
586-587.
51 BOLTWOOD, Bertram B., “he International Congress of Radiology and Electricity, Brussels, September 13-
15”, Science, Vol. 32, No. 831, 1910, pp. 788-791.
52 PINTO, António Oliveira, «Première Contribution a l’Étude de la Radioactivité des Eaux Minérales du Portu-
gal.» II Congrès International de Radiologie et d’Electricité, 1911 Bruxelles. Imprimerie Médicale et Scientiique L.
Severeyns, pp. 3-8.

305
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

obtidos permitiam airmar que as águas minerais analisadas não eram radioactivas.
Para se compreender a novidade e a importância destas actividades é necessário
pô-las em contexto com o que se passava em Portugal no início do século passa-
do. As contribuições de Oliveira Pinto, professor de um colégio pré-universitário,
não icam atrás das actividades dos professores da Universidade de Coimbra. Em
Coimbra terá surgido um interesse sobre os Raios X a partir de 1897, mas tudo
indica que o tema era abordado de forma exclusivamente teórica. João Emílio Ra-
poso de Magalhães (1884-1961), por exemplo, escreveu a sua tese de licenciatura
sobre O Rádio e a Radioactividade, num quadro puramente teórico, por não ter sido
possível adquirir uma fonte radioactiva para o Gabinete de Física da Universidade
de Coimbra em 1906. Ora, como vimos, no ano anterior António Oliveira Pinto
frequentava o 1º Congresso de Radiologia e Ionização, acompanhando directa-
mente as maiores contribuições cientíicas internacionais nesta área. Este interesse
do professor de Campolide converteu-se na primeira comunicação internacional
portuguesa com resultados originais de experiências com radioactividade realizadas
em Portugal, apresentada 4 anos depois, em Bruxelas. Na Universidade de Coim-
bra, o primeiro trabalho experimental sobre radioactividade terá sido realizado em
1915 por Francisco de Sousa Nazareth, após uma breve incursão no laboratório de
Marie Curie no ano anterior.53
As actividades cientíicas de Oliveira Pinto não se destacaram apenas no campo
da radioactividade. Realizou ainda experiências de telegraia sem ios (TSF) em Por-
tugal em 1902, provavelmente no Colégio de Campolide, isto é, apenas um ano após
as primeiras experiências com TSF em Portugal, em 1901.54 Foi um dos fundadores
da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais (SPCN) em 1907 que contou entre os
22 fundadores 7 jesuítas, uma clara indicação do empenho com que, por esses anos,
os membros da Companhia de Jesus acompanhavam as investigações cientíicas em
Portugal.55 A SPCN nasceu de um repto lançado por alguns cientistas portugueses
como Marck Athias (1875-1946) e Celestino da Costa (1884-1956) que desaiava
os naturalistas portugueses a formar uma sociedade para desenvolver a investigação

53 LEONARDO, ANtónio José, MARTINS, Décio & FIOLHAIS, Carlos. “A Física na Universidade de Coim-
bra de 1900 a 1960.” Gazeta de Física, Vol. 34 - N. 2, 2011, pp. 9-15.
54 FONSECA, Moura, As comunicações navais e a TSF na Armada: subsídios para a sua história (1900-1985), Edições
culturais da Marinha, Lisboa, 1988, pp. 77-81.
55 Fundadores da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais: Mattoso dos Santos, Miguel Bombarda, Alfredo
Bensaude, Carlos Bello Moraes, Joaquim da Silva Tavares S.J., Augusto Nobre, Ayres José Kopke Correia Pinto,
Aníbal Bethencourt, Julio Guilherme Bethencourt Ferreira, João Augusto Pereira d’Azevedo Neves, Carlos
França, Manuel Rebimbas S.J., Cândido Azevedo Mendes S.J., Gonçalo Sampaio, José Maximiano Corrêa
de Barros, Carlos Zimmermann S.J., Afonso Luisier S.J., Camillo Torrend S.J., Celestino da Costa, António
Oliveira Pinto S.J. e Marck Athias. Vide: TAVARES SJ, Joaquim da Silva, “A Sociedade Portuguesa de Sciencias
Naturais”, Brotéria - Vulgarização Cientíica, VI, 1907, pp. 127 - 134.

306
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

na área das Ciências Naturais, ao qual responderam positivamente cientistas portu-


gueses notáveis como Miguel Bombarda, Alfredo Bensaúde (1856-1941) e Gonçalo
Sampaio (1865-1937), e os mais destacados naturalistas da Companhia de Jesus.

CONCLUSÃO

Episódios signiicativos para a história do ensino e prática das ciências no nosso


país, as actividades dos naturalistas jesuítas permitem também uma caracterização
correcta do papel que os Colégios de Campolide e de São Fiel desempenharam no
ensino e na prática cientíicas em Portugal, entre 1858 e 1910. Os naturalistas je-
suítas, enquanto pedagogos, incentivaram o ensino experimental da Física, da Quí-
mica, da Botânica, da Zoologia e da Astronomia nos seus colégios em Portugal,
a partir do século XIX, uma abordagem pouco usual neste período no nosso país.
António Oliveira Pinto SJ é uma igura incontornável para o estudo da História
da Física em Portugal no início do século XX. O jesuíta não só promoveu o ensino
experimental da Física, em Campolide, como foi, ele próprio, um experimentalista
internacional. Terá sido dos primeiros cientistas portugueses a fazer experiências
com TSF, no Colégio de Campolide, e o primeiro a apresentar uma comunicação,
contendo resultados originais, no segundo Congresso de Radiologia e Ionização
em Bruxelas, no ano de 1910, depois de ter trabalhado no laboratório de Marie
Curie. Neste ano, porém, terminava também o terceiro período de permanência
da Companhia de Jesus em Portugal. Com a implantação da República, os jesuítas
foram exilados, os seus colégios fechados e as colecções, livros e instrumentos cien-
tíicos coniscados, em nome da modernidade do nosso país.

Agradecimentos
Gostava de agradecer ao Prof. Henrique Leitão pelos valiosos conselhos, indis-
pensáveis à escrita deste artigo, e ao P. Carlos Vasconcelos SJ pelo acesso ao Ar-
quivo Português da Companhia de Jesus e pelas conversas muito esclarecedoras
sobre os jesuítas portugueses no período estudado.

307
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Figura 1a - Folheto da Sessão Solene de Química Experimental do Colégio de Campolide em 1904. Collegio de
Maria SS. Immaculada em Campolide, O Ar. Sessão de Chimica Experimental oferecida na conclusão do mês
de Maria do anno jubilar da Immaculada Conceição á Padroeira do Collegio, pelos alumnos da 4.ª classe, Typ.
La Bécarre, Lisboa, 2 de Junho de 1904. Arquivo Português da Companhia de Jesus, Lisboa (APSI).

Figura 1b - Folheto da Sessão Solene de Química Experimental do Colégio de Campolide em 1904. Collegio de
Maria SS. Immaculada em Campolide, O Ar. Sessão de Chimica Experimental oferecida na conclusão do mês
de Maria do anno jubilar da Immaculada Conceição á Padroeira do Collegio, pelos alumnos da 4.ª classe, Typ.
La Bécarre, Lisboa, 2 de Junho de 1904. APSI.

308
ANTÓNIO OLIVEIRA PINTO SJ E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM RADIOACTIVIDADE EM PORTUGAL

Figura 2 - Postal do Colégio de Campolide, ilustrando o aparelho de projecção de Zeiss, utilizado nas sessões
solenes das academias cientíicas. Collegio de Campolide. XVIII. Gabinete de Physica. Secção de optica.
Apparelho de projecção Zeiss e diferentes accessórios, postal. APSI

Figura 3 - António de Oliveira Pinto SJ (1868 - 1933). APSI.


Figura 4 - Capa do estudo sobre a radioactividade das águas minerais de Portugal apresentado por António de
Oliveira Pinto no 2º Congresso Internacional de Radiologia e Ionização em Bruxelas em 1910. De PINTO
SJ., António Oliveira, “Première Contribution a l’Étude de la Radioactivité des Eaux Minérales du Portugal.”
II Congrès International de Radiologie et d’Electricité, Imprimerie Médicale et Scientiique L. Severeyns,
Bruxelles, 1911. APSI.

309
Figura 5 - Tabela inal que apresenta os valores de radioactividade das águas de Portugal analisadas. Adaptada
de: PINTO SJ., António Oliveira, “Première Contribution a l’Étude de la Radioactivité des Eaux Minérales
du Portugal.” II Congrès International de Radiologie et d’Electricité, Imprimerie Médicale et Scientiique L.
Severeyns, Bruxelles, 1911, p. 8. APSI.

310
Combatendo epidemias:
Bernardino António Gomes, Sousa Martins,
Ricardo Jorge, Câmara Pestana,
Almeida Garrett, Fernando da Silva Correia
Maria Antónia Pires de Almeida
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, ISCTE, IUL

INTRODUÇÃO

Com as biograias dos principais médicos responsáveis pela transição sanitária


em Portugal descrevem-se os percursos dos agentes que colocaram em prática as
medidas mais importantes de controlo das doenças endémicas e epidémicas que
assolaram o mundo ocidental e mais particularmente a cidade do Porto entre os
meados do século XIX e início do XX. A sua formação e atuação proissional,
académica e cientíica revelam-nos o valor destes protagonistas da ciência em
Portugal, que demonstraram o seu valor em períodos de graves crises epidémicas.
A emergência das situações sanitárias com que foram confrontados e a responsa-
bilização, por parte das autoridades, de todo o processo de controlo e eliminação
da doença são a prova da coniança que foi depositada nas suas capacidades. Foi
nos períodos mais críticos que os cientistas portugueses foram confrontados com
o estado da arte dos conhecimentos internacionais e provaram que a ciência médi-
ca em Portugal estava ao nível do das maiores potências da sua época, com os seus
protagonistas a dialogarem em pé de igualdade com os interlocutores estrangeiros,
tanto os que se deslocaram a Portugal para estudar as epidemias e publicaram
obras cientíicas elogiosas dos proissionais portugueses e das medidas tomadas,
como os maiores especialistas mundiais, representantes dos seus países nas confe-
rências sanitárias internacionais realizadas ao longo do século XIX para discutir
as medidas para combate às mesmas.
Tal como airmou Rosenberg, os períodos de epidemia declarada constituem
oportunidades únicas para a observação das sociedades e dos momentos históri-

311
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

cos. E o retrato que se faz da cidade do Porto nesses momentos é, nas palavras
dramáticas de Ricardo Jorge, o de uma “cidade cemiterial”, onde as “ilhas” eram
factor de proliferação de doenças, com especial destaque para a tuberculose1 e
as epidemias tinham especial predileção pelas “classes ínimas, mal alojadas, mal
tratadas e mal mantidas”2.
Destaca-se a quantidade de artigos que estes médicos escreveram para revistas
cientíicas portuguesas e estrangeiras, a participação em conferências internacio-
nais, os estudos e as viagens cientíicas ao estrangeiro, elementos comuns em todos
estes médicos que conirmam a internacionalização da ciência no século XIX. Não
só voltavam do estrangeiro com experiência e materiais novos, mas participavam
nas conferências cientíicas e sanitárias internacionais a nível de igualdade com
os representantes dos outros países. Isto conirma que Portugal, no século XIX e
início do XX, não era um país periférico a nível da ciência, mas antes estava perfei-
tamente integrado nas correntes mais avançadas.
No entanto, têm de se destacar as diferenças entre os centros urbanos de Lis-
boa, Porto e Coimbra, onde se reuniam as melhores condições hospitalares e de
especialistas que existiam na época, e as zonas rurais e do interior em geral onde
as condições médicas e sanitárias eram consideravelmente insuicientes em pessoal
médicos e acesso a recursos. Tal como no presente, o acesso aos melhores cuidados
de saúde era garantido nos hospitais centrais, ao mesmo tempo que os médicos
não queriam ir para a província, onde havia carências escandalosas, preferindo icar
nas grandes cidades, onde as condições eram mais favoráveis para o desenvolvi-
mento das respetivas carreiras e para salários mais altos, o que até deu origem a
um debate interessante nos jornais. Por exemplo em 1855 foi defendido que se
formassem proissionais médicos de nível médio para irem para a província (“um
curso médico-cirúrgico onde se ensinem as disciplinas indispensáveis a formar
bons práticos”), diminuindo o custo da formação (“a arte torna-se cada vez mais
cara, mais aristocrata que popular, que deveria ser”) e incentivando a colocação nas
zonas mais carenciadas. Foi até sugerido que talvez estes cursos médios fossem
mais aconselháveis para as mulheres, que tinham mais apetência para os cuidados
médicos: “e em verdade, em geral lhe achamos mais jeito do que aos homens...”3.

1 Ricardo Jorge, Demographia e hygiene da cidade do Porto: clima-população-mortalidade, Repartição de Saúde e


Hygiene da Câmara, Porto, 1899.
2 Ricardo Jorge, relatório sobre o tifo exantemático apresentado ao Conselho Superior de Higiene, Diário de Notí-
cias, nº 18775, 21/02/1918.
3 O Comércio, nº 180, 07/08/1855.

312
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

Todos estes médicos foram atores da ciência em Portugal que demonstraram


o seu valor em períodos de graves crises epidémicas. Revelaram que o estado da
ciência médica em Portugal estava ao nível do das maiores potências cientíicas
da sua época, com os seus protagonistas a dialogarem em pé de igualdade com os
interlocutores estrangeiros que se deslocaram a Portugal para estudar as epidemias
e nas conferências sanitárias internacionais realizadas ao longo do século XIX para
discutir as medidas para combate às mesmas.
Na sua maioria tiveram formação cientíica nas instituições universitárias por-
tuguesas da sua época, dirigiram institutos e foram promotores de uma política
sanitária que deu frutos para o futuro. E, pelo seu valor e percurso cientíico, foram
nomeados para os mais altos cargos de combate às epidemias e às doenças endé-
micas em geral.

BERNARDINO ANTÓNIO GOMES


(Lisboa, 22 de Setembro 1806 – Lisboa, 8 de Abril 1877)

Filho do médico com o mesmo nome. O seu pai foi des-


crito como um dos mais importantes cientistas mundiais, ao
nível de Pasteur e Koch4. Foi também um promotor da vaci-
nação anti-varíola em Portugal, ao fundar, junto com outros
médicos, a Instituição Vacínica em 1812, do qual foi director.
Bernardino António Gomes, o ilho, estudou Medicina em Paris e Matemática
em Coimbra. Foi lente de Medicina, de Matéria Médica e Farmácia. Foi o primei-
ro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um aparelho de inalação de éter,
como forma de anestesia. As suas especialidades foram epidemiologia e medicina
geral, mas também áreas como higiene, farmácia, patologia, psiquiatria, termalis-
mo, vacinas. Foi o fundador e colaborador da Gazeta Médica de Lisboa e do Jornal da
Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Participou em 1876 na Farmacopeia Portu-
guesa. Realizou viagens de estudo ao estrangeiro, nas quais adquiriu conhecimentos
e as mais recentes novidades em instrumentos e aparelhos cirúrgicos da sua época,
que trouxe para Portugal5.

4 Luís Reis Torgal, João Lourenço Roque (coords.), “O Liberalismo (1807-1890)”, José Mattoso (dir.), História de
Portugal, Vol. V, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p. 662.
5 Como se pode ler, por exemplo, na seguinte notícia, retirado da Gazeta Médica de Lisboa, após a sua chegada de
viagem: “O sr. dr. Gomes indicou à comissão as redacções médicas estrangeiras, com as quais entabulou estreitas
relações, a im de facilmente se efectuar a troca dos jornais; mostrou alguns instrumentos de cirurgia, ultima-
mente aperfeiçoados pelo sr. Charrière; um aparelho para injecções inas, as diferentes peças que compõem o

313
QUADRO I - RESUMO BIOGRÁFICO

Nascimento
Médicos Especialidades Cargos desempenhados Principais obras
e morte

Bernardino Lisboa, Cholera morbus, Médico da família real, acompanhou as doenças e Farmacopeia Portuguesa, 1876; fundador e colaborador
António Gomes 22-09-1806/ conferências realizou as autópsias de D. Pedro V e seus irmãos. da Gazeta Médica de Lisboa e do Jornal da Sociedade de
Lisboa, internacionais (onde Presidente da Sociedade das Ciências Médicas Ciências Médicas de Lisboa. Memoria sobre a epidemia
08-04-1877 defendeu a teoria do de Lisboa. da cholera-morbus que grassou na cidade do Porto desde
contágio), epidemiologia 1832 a 1833, 1842. Noticia da doença de que falleceu
e medicina geral, mas sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro V e das que na

ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)


incluindo também áreas mesma occasião atacaram Suas Altezas os Senhores
como higiene, farmácia, Infantes D. Fernando, D. Augusto e D. João no anno de
patologia, psiquiatria, 1861, 1862.
termalismo, vacinas.

José Tomás de Alhandra, O problema endémico da Membro da Sociedade Farmacêutica Lusitana, da Publicou artigos no Jornal da Sociedade Farmacêutica
Sousa Martins 07-03-1843/ tuberculose. Conferências Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, da Lusitana, Gazeta Médica de Lisboa, Jornal da Sociedade
Alhandra, internacionais. Farmácia. qual foi vice-presidente, presidente da Comissão das Ciências Médicas de Lisboa, Revista Médica
18-08-1897 Medicina geral. Filantropia. de Higiene, sócio fundador da Sociedade de Portuguesa, Revista Ocidental, Revista Contemporânea,
314

Geografia de Lisboa. Professor da Escola Médico- Diario Ilustrado, Ocidente, Enciclopédia Popular e
Cirúrgica de Lisboa. Médico do Hospital de S. Revista de Nevrologia e Psychiatria, entre outras. O
José. Médico honorário da Real Câmara de Suas pneumogástrico preside à tonicidade da fibra muscular do
Majestades e Altezas. coração, dissertação de licenciatura em Medicina, 1866.
A tuberculose pulmonar e o clima de altitude da Serra da
Estrela, 1890.

Ricardo de Porto, Epidemiologia. Higienismo. Professor da Escola Médico-Cirúrgica do Um ensaio sobre o nervosismo: dissertação inaugural
Almeida Jorge 09-05-1858/ Diagnóstico e tratamento Porto. Fundador do Instituto Hidroterápico e apresentada e defendida perante a Escola Medico-
Lisboa, das doenças do sistema Electroterápico e do Laboratório de Microscopia Cirurgica do Porto, 1879. Hygiene social applicada à
29-07-1939 nervoso pela hidroterapia, e Fisiologia do Porto. Médico Municipal do Porto. Nação Portuguesa, 1885. O Gerez thermal: historia,
electricidade e ginástica. Diretor dos Serviços Municipais de Saúde e Higiene hydrologia, medicina, 1888). A epidemia de Lisboa de
Medicina geral. da Cidade do Porto e do Laboratório Municipal 1894, 1895. Demographia e hygiene da cidade do Porto:
Termalismo. Malária. de Bacteriologia. Inspector-Geral dos Serviços clima-população-mortalidade, 1899. A peste bubónica
Gripe. Tifo. Leishmaniose. Sanitários do Reino e lente de Higiene na Escola no Porto, 1899. Seu descobrimento. Primeiros trabalhos.
Vacinas. Conferências Médico-Cirúrgica de Lisboa. Membro do Conselho Epidemiologia. Sobre o estudo e o combate do sezonismo
Internacionais. Superior de Higiene e Saúde. Diretor do Instituto em Portugal, 1903. Também escreveu obras literárias e
Superior de Higiene, mais tarde Instituto Ricardo biografias. Artigos nas revistas Clínica, higiene e hidrologia;
Jorge. Presidente da Sociedade das Ciências Revista Científica; A Medicina Contemporânea; Lisboa
Médicas. Diretor Geral da Saúde. Presidente do Médica, entre outras. Revistas internacionais: ex. Bulletin
Conselho Técnico Superior de Higiene. Mensuel de l’Office International d’Hygiène Publique.
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
Luís da Câmara Funchal, Bacteriologia. Cirurgião do Hospital de S. José. Professor da O microbio do carcinoma, 1889. Contribuição para o
Pestana 28-10-1863/ Epidemiologia. Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Enviado estudo bacteriológico da epidemia de Lisboa, 1894. O
Lisboa, pelo Ministro do Reino a Paris para aprofundar tratamento da raiva em Portugal pelo methodo Pasteur,
15-11-1899 os estudos de bacteriologia. Estagiou no 1894. A sôrotherapia, 1898. Publicou artigos nas revistas
Instituto Pasteur. Membro da Sociedade das Medicina Contemporânea e Revista de Medicina e
Ciências Médicas de Lisboa. Diretor do Instituto Cirurgia. Diretor da revista Archivos de Medicina.
Bacteriológico de Lisboa, mais tarde Instituto
Câmara Pestana.

ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA


António de Porto, Pediatria. Higienismo. Professor de Pediatria e de Higiene na Faculdade Fundador e diretor da revista mensal Portugal Médico:
Almeida Garrett 22-09-1884/ Saúde Pública e medicina de Medicina da Universidade do Porto, da qual arquivos portugueses de medicina. Publicou artigos em
Porto, geral. Alimentação e foi diretor. Subdelegado, delegado e inspector revistas científicas, incluindo a revista Clínica, higiene
19-11-1961 demografia. Tifo e gripe, dos serviços de saúde do Porto. Comissário e hidrologia. Sobre a mortalidade infantil (até aos 5
1918. do governo na cidade do Porto para combate à anos) na cidade do Porto e os meios de a evitar, 1909.
epidemia de tifo exantemático e depois de gripe Epidemiologia e profilaxia do tabardilho, 1918. Como
pneumónica. Vereador na Câmara do Porto e organisar a luta contra a mortalidade infantil, 1928.
Deputado na Câmara dos Deputados. Diretor Tendências demográficas de Portugal Metropolitano,
315

do Instituto de Puericultura do Porto. Vogal do 1940. Costumes alimentares dos portugueses, 1940.
Conselho Superior de Higiene, presidente da
Associação dos Médicos do Norte de Portugal
e presidente do Centro Nacional de Estudos
Demográficos.

Fernando da Sabugal, Medicina Sanitária e Médico municipal e delegado de saúde. Inspector Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo), 1938.
Silva Correia 20-05-1893/ Hidrologia. Higiene. da 3ª Área da Saúde Escolar. Professor e diretor Guia prático das águas minero-medicinais portuguesas,
Lisboa, Medicina social. do Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge. 1922. A medicina e a higiene escolar em Portugal, 1934.
19-12-1966 Professor do Instituto Superior de Serviço Social A educação física e a medicina em Portugal, 1935.
de Lisboa. Publicou artigos nas revistas O Médico e Clínica, Higiene
e Hidrologia.
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Foi um dos médicos que acompanhou a doença do Rei D. Pedro V e dos irmãos,
os Infantes D. Fernando, D. João e D. Augusto, e depois participou nas respetivas
autópsias (ao rei e aos Infantes D. Fernando e D. João), declarando como causa de
morte a febre tifóide, doença muito comum na época, provocada por uma bacté-
ria intestinal da família das salmonelas, habitualmente ingerida em águas ou ali-
mentos contaminados, e assim negando a hipótese de envenenamento, que gerara
controvérsia.
Estudou a fundo as epidemias que assolaram o mundo no seu século e em par-
ticular as que afectaram Portugal desde 1833 com a chegada do cólera-mórbus ao
Porto nos navios de soldados belgas que ajudaram os Liberais na Guerra Civil. A
partir de 1851 as potências europeias começaram a enviar os seus melhores espe-
cialistas a Conferências Sanitárias Internacionais, onde eram discutidas as doenças
e as medidas para as combater6. Bernardino António Gomes representou Portugal
em Constantinopla em 1866, publicando nesse mesmo ano o seu importante rela-
tório sobre as epidemias de cólera e febre-amarela em Portugal7.
Recebeu as seguintes condecorações: Ordem de Santiago e de Torre e espada,
grã-cruz da Ordem de Isabel a Católica e oicial da Legião de Honra de França.

JOSÉ TOMÁS DE SOUSA MARTINS


(Alhandra, 7 de Março 1843 – Alhandra, 18 de AgosTO 1897)

Filho de Caetano Martins, carpinteiro, e de Maria das


Dores de Sousa Pereira. Completou o ensino primário em
Alhandra. Com doze anos foi para Lisboa, para casa do seu
tio materno, Lázaro Joaquim de Sousa Pereira, farmacêuti-
co e proprietário da Farmácia Ultramarina. Foi praticante
na farmácia do seu tio, ao mesmo tempo que frequentava o Liceu Nacional de Lis-
boa, completando-o na área de Humanidades. Matriculou-se então na Escola Poli-
técnica de Lisboa, onde completou em 1861 os estudos preparatórios em Ciências
Naturais com excelente aproveitamento. Ingressou nesse ano no curso de Medicina
da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. A prática de oito anos de Farmácia e o

aparelho engessado...”, O Século, nº 122, 31/08/1855.


6 Maria Rita Lino Garnel, “Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oito-
centistas de cholera-morbus)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9 (2009), pp. 229-251.
7 Já antes publicado na Gazetta Médica de Lisboa em 16/02/1858, sob o título “Sur la transmissibilité et
l’importation de la ièvre jaune, du choléra, et de la peste. État actual de la question. 1858”.

316
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

facto de ter completado os 21 anos de idade permitiram-lhe propor-se a exame na


mesma Escola e no dia 11 de Julho de 1864 foi aprovado e icou habilitado como
Farmacêutico. Foi membro da Sociedade Farmacêutica Lusitana e publicou vários
artigos no periódico Jornal da Sociedade Farmacêutica.
No dia 16 de Julho de 1866 concluiu o curso de Medicina e Cirurgia com a
dissertação intitulada O Pneumogástrico Preside à Tonicidade da Fibra Muscular do
Coração, iniciando uma carreira ligada ao ensino e investigação sobre a vertente
clínica da medicina. Em 1867 tornou-se sócio da Academia Real das Ciências de
Lisboa. Mais tarde foi também membro efectivo da Sociedade das Ciências Médi-
cas de Lisboa, da qual foi vice-presidente em 1875, vogal da Comissão de Higiene
em 1890 e seu presidente em 1897.
Em 1868 obteve o lugar de demonstrador da Secção Médica da Escola Médico-
Cirúrgica de Lisboa, com a dissertação A Patogenia Vista à Luz dos Actos Relexos,
sendo nomeado para o respectivo lugar por decreto de 27 do mesmo mês, e depois
promovido a lente substituto por decreto de 9 de Fevereiro de 1872. A partir de
1874 exerceu a carreira de médico do Hospital de São José, onde a sua actividade,
e em particular a importante acção ilantrópica que exercia a favor dos doentes
mais pobres, o consagrou como um dos médicos mais prestigiados de Portugal.
Como médico e professor, dava grande importância à componente psicológica e de
relação humana na sua acção médica, além de praticar actos de caridade que foram
reconhecidos no seu tempo e permanecem até ao presente como uma das compo-
nentes mais destacadas da sua personalidade. Estas suas características, a que se
soma o facto de ter sido adepto do espiritismo, tão em voga na sua época, criaram
uma associação entre Sousa Martins e algumas curas milagrosas que se realizaram
em seu nome após a sua morte.
Sousa Martins realizou trabalhos de especial importância na luta contra a tu-
berculose, que então atingia proporções epidémicas em Lisboa e no Porto, e no
estudo da prevenção e tratamento dos surtos epidémicos. Foi nomeado delegado
às Conferências Sanitárias Internacionais realizadas em Viena em 1874 e Veneza
em 1897. Em 1876 foi nomeado Professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa
e em 1881 Presidiu à Comissão Executiva e à Secção de Medicina da expedição
cientíica à Serra da Estrela. Esta expedição foi organizada sob a égide da Socie-
dade de Geograia de Lisboa. Reuniu um grupo de cientistas e intelectuais que
estudaram aquela região portuguesa nas suas vertentes geográica, meteorológica e
antropológica num esforço sem precedentes de exploração sistemática do território
português. O interesse de Sousa Martins na realização da expedição prendia-se
com a necessidade de conhecer a meteorologia e as condições sanitárias da re-

317
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

gião dado a importância então atribuída ao clima no tratamento da tuberculose


pulmonar, e por isso defendeu a implantação de Casas de Saúde nessa região. O
seu principal objetivo era a construção de um sanatório na Serra da Estrela que
pudesse acolher de forma permanente e tratar doentes com tuberculose pulmonar.
Em 1888 Sousa Martins tinha o cargo de médico honorário da Real Câmara de
Suas Majestades e Altezas. Três anos depois deu-se início à construção do Hospital
Príncipe da Beira. No entanto, foi apenas após a sua morte que este hospital foi
concluído, sendo inaugurado com o nome de Sanatório Dr. Sousa Martins apenas
em 18 de Maio de 1907 pelo Rei D. Carlos e a mulher, no âmbito da actividade da
Assistência Nacional aos Tuberculosos.
Foi diagnosticado com tuberculose quando regressou da conferência sanitária
de Veneza. Partiu para a Serra da Estrela à procura tratamento, acabando por fale-
cer em Alhandra em poucos meses.
Pertenceu a grande variedade de associações e sociedades cientíicas: sócio fun-
dador da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, vogal da primeira
direcção do Jardim Zoológico em 1883, membro do Instituto de Coimbra, da
Associação dos Enfermeiros do Corpo de Saúde Civil de Lisboa, da Sociedade
da Cruz Vermelha, do Centro Farmacêutico Português (do Porto), da Associação
Camoniana José Vitorino Damásio, director do Instituto Industrial e Comercial
de Lisboa em 1887-88 e médico honorário da Real Casa Pia de Lisboa em 1894.
No que diz respeito a instituições estrangeiras, foi membro da Sociedade Far-
macêutica da Grã-Bretanha (sedeada em Londres), da Sociedade Farmacêutica
Mexicana, da Sociedade Real de Medicina Pública da Bélgica, da Real Academia
de Medicina e Cirurgia de Madrid, da Sociedade Antropológica Espanhola, da
Sociedade Ginecológica Espanhola, da Academia Nacional de Medicina e Cirurgia
de Cádis, da Academia Provincial de Ciências Médicas de Badajoz, da Sociedade
Real de Medicina Pública e da Sociedade de Ciências Médicas do Luxemburgo, da
Sociedade Real de Medicina Pública da Bélgica, do Instituto de Vasco da Gama, de
Nova Goa, da Sociedade Francesa de Higiene e da Associação Internacional para
o Progesso da Higiene, em Bruxelas. Foi comendador da ordem de S. Tiago, e da
Ordem Real do Salvador da Grécia. Sousa Martins publicou obras de referência nas
especialidades de epidemiologia, patologia, e ainda sobre medicina geral e tubercu-
lose. Escreveu também biograias e aventurou-se na literatura, sob um pseudónimo.
Colaborou na Gazeta Médica de Lisboa, no Jornal da Sociedade Farmacêutica Lusitana,
Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Revista Médica Portuguesa, Revista
Ocidental, Revista Contemporânea, Diario Ilustrado, Ocidente, Enciclopédia Popular e
da Revista de Nevrologia e Psychiatria, entre outras.

318
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

RICARDO DE ALMEIDA JORGE


(Porto, 9 de Maio 1858 – Lisboa, 29 de Julho 1939)

Frequentou o Liceu de Santa Catarina, onde se tornou


amigo de Júlio de Matos. Com 16 anos matriculou-se no
curso de Medicina da Escola Médico-Cirúrgica do Porto,
onde foi um foi um aluno brilhante e conquistou vários
prémios académicos. Em 1880 competiu pelo lugar de
substituto da Secção Cirúrgica da mesma Escola, com a apresentação do trabalho
Localizações Motrizes no Cérebro. Depois de aprovado, iniciou a sua carreira de Pro-
fessor, leccionando as cadeiras de Anatomia, Histologia e Fisiologia Experimental,
ao mesmo tempo que se dedicava à prática clínica.
Desenvolveu também estudos sobre o diagnóstico e tratamento das doenças do
sistema nervoso pela hidroterapia, eletricidade e ginástica, os quais aplicou na prá-
tica com a fundação do Instituto Hidroterápico e Eletroterápico no Porto. Fundou
também o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto.
Ao longo da sua carreira participou em vários congressos internacionais e reali-
zou diversas viagens de estudo ao estrangeiro. Por exemplo, em 1883 passou uma
temporada em Estrasburgo, nos laboratórios de Anatomia Patológica, e em Paris,
onde conheceu o neurologista Charcot e assistiu às suas lições.
Na sequência das polémicas levantadas com a instalação dos cemitérios no Por-
to, em 1884 Ricardo Jorge promoveu quatro conferências que foram reunidas no
livro Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa, publicado no ano seguinte e am-
plamente divulgado, no qual o seu autor concluiu, depois de estudar as condições
de sanidade locais, que era absolutamente necessária a intervenção do Estado para
a criação de um sistema de saneamento. A seriedade do seu estudo e o nível das
propostas apresentadas izeram de Ricardo Jorge um dos mais prestigiados higie-
nistas portugueses, com larga inluência nas políticas de saúde em Portugal.
A sua vasta obra, que abrange toda a sua carreira e tem até algumas publica-
ções póstumas, demonstra a variedade dos interesses de Ricardo Jorge. Incidindo
maioritariamente sobre as especialidades da Higiene e Epidemiologia, e também
sobre Medicina Geral, a lista de mais de sessenta títulos inclui obras literárias, de
História e biograias de iguras ilustres da medicina e mesmo das artes e da litera-
tura. Escreveu ainda sobre Demograia, sobre as termas do Gerês e colaborou re-
gularmente nas revistas Clínica, higiene e hidrologia, dirigida por Armando Narciso
e publicada entre 1935 e 1957, Revista Cientíica, dirigida por Teóilo Braga e Júlio
de Matos, publicada mensalmente no Porto entre 1882 e 1982, A Medicina Con-

319
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

temporânea (1882-1974), Lisboa Médica, entre outras. Publicou também no estran-


geiro em revistas internacionais, como o Bulletin Mensuel de l’Oice International
d’Hygiène Publique.
Ricardo Jorge foi convidado pela Câmara Municipal do Porto para tomar parte
de uma comissão de estudo sobre as condições sanitárias da cidade, no âmbito da
qual produziu um inquérito sobre as condições de salubridade urbana. O respectivo
relatório inal, intitulado O Saneamento do Porto, foi publicado em 1888. Em 1891
foi nomeado médico municipal e em 1892 foi convidado os cargos de Director dos
Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e do Laboratório
Municipal de Bacteriologia. Em 1895 foi nomeado Professor Titular da cadeira de
Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
Em 1899 publicou uma das obras fundamentais para a compreensão dos proble-
mas sanitários da cidade: Demograia e Higiene da Cidade do Porto: clima, população,
mortalidade. Nesta, o autor descreveu a história da cidade e aprofundou a questão
das ilhas como causa para a proliferação de doenças e epidemias, com especial
destaque para a tuberculose. O levantamento das condições de vida e higiene das
populações que residiam nestes bairros levaram-no a apelidar o Porto de “cidade
cemiterial”, devido às péssimas condições sanitárias que ele encontrou. Este seu
trabalho, juntamente com os de Arantes Pereira e do Conde de Samodães, prove-
dor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, ajudaram a inluenciar a Rainha D.
Amélia na criação, nesse mesmo ano, da Assistência Nacional aos Tuberculosos e à
construção de sanatórios para os doentes.
Em Junho de 1899 manifestaram-se vários casos de peste bubónica no Porto,
diagnosticada pelo médico municipal e director do posto de desinfecção pública
do Porto, o Dr. Ricardo Jorge. A resposta foi a mais moderna da época, com a
aplicação do soro Yersin. No entanto, Ricardo Jorge coniou mais nas medidas
preventivas e no isolamento e desinfecção dos pacientes e das áreas afetadas, o que
levou à circunscrição da doença a uma área muito limitada, mas provocou uma
reação popular violentíssima contra os médicos em geral e contra ele em particular.
Foram imediatamente postas em práticas medidas sanitárias rigorosas obrigando
à higiene pessoal (com a construção de balneários públicos) e para o combate aos
agentes transmissores da doença: os ratos e as pulgas. Ao mesmo tempo criou-se
um cordão sanitário à volta do Porto, defendido pelo exército, e suprimiram-se
todos os comboios de recreio, todas as “feiras, romarias e outros ajuntamentos”, e
obrigou-se a inspecção médica todos os passageiros e empregados dos comboios,

320
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

que tinham de cumprir uma quarentena de nove dias8. Sem dúvida, a grande aposta
de Ricardo Jorge foi na prevenção da disseminação da doença, isolando os doentes
e a própria cidade.
De facto, com as medidas radicais postas em prática por Ricardo Jorge logo nos
primeiros dias do surto epidémico, a doença não se espalhou e teve uma mortalida-
de reduzida (326 casos, dos quais 111 óbitos). No entanto, os banhos obrigatórios,
as casas e roupas queimadas quando os médicos e os subdelegados de saúde reali-
zavam visitas domiciliárias, acompanhados pela polícia, e encontrava um doente de
peste, e o isolamento forçados dos doentes e de todos os seus familiares e vizinhos
em hospitais especiais, todas estas acções eram motivo de grande revolta popular,
que provocaram cenas de autêntica guerra civil. Houve apedrejamento das casas
dos médicos, forças de cavalaria e infantaria da guarda municipal em cargas a cava-
lo que punham tudo em debandada... e até bombas explodiram.
Ricardo Jorge recebeu a solidariedade dos médicos do Porto, mas acabou por se
demitir e mudou-se para Lisboa, onde foi nomeado Inspector-Geral dos Serviços
Sanitários do Reino e lente de Higiene na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa,
além de membro do Conselho Superior de Higiene e Saúde. Começou imedia-
tamente a trabalhar na organização geral dos Serviços de Saúde Pública e no Re-
gulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneicência Pública. Por sua causa o
país tinha desde 1901 uma legislação actualizada, burocracia e redes de controlo e
iscalização da higiene e da saúde pública; e dispunha de especialistas competentes
que acompanhavam o debate cientíico. O seu trabalho como docente, investigador
e mentor da nova legislação deu origem a uma profunda reforma na saúde pública
em Portugal, e à criação da Direcção-Geral de Saúde e Beneicência Pública e do
Instituto Central de Higiene, mais tarde Instituto Superior de Higiene, que em
1929 mudou o nome para Instituto Ricardo Jorge.
Entre 1914 e 1915 presidiu à Sociedade das Ciências Médicas. Participou em
conferências internacionais, como a da Comissão Sanitária dos Países Aliados, que
se realizou em Paris em Abril de 1918, e também no ano seguinte, em Março,
apresentou à mesma comissão um relatório sobre a gripe; em Outubro de 1919
apresentou uma comunicação ao Comité Internacional de Higiene Pública sobre o
tifo exantemático no Porto. Em 1929 foi nomeado Presidente do Conselho Técni-
co Superior de Higiene. Nesse mesmo ano viajou até ao Brasil, onde participou, em
colaboração com o Instituto Oswaldo Cruz, no combate à última grande epidemia

8 Diário de Notícias, nº 12102, 18/08/1899.

321
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

de febre-amarela que ocorreu no Rio de Janeiro9. Continuou a investigar e a publi-


car até falecer e teve ainda algumas obras publicadas postumamente.

LUÍS DA CÂMARA PESTANA


(Funchal, 28 de Outubro 1863 - Lisboa, 15 de Novembro 1899)

Nasceu no Funchal, onde completou o Liceu. Veio de-


pois para Lisboa, onde frequentou a Escola Politécnica
antes da Escola Médico-Cirúrgica. Concluiu a licencia-
tura em Medicina em 1889, com a dissertação intitulada
O Micróbio do Carcinoma, um dos primeiros trabalhos de
oncologia experimental realizados em Portugal. A 17 de Dezembro do mesmo ano
iniciou a sua carreira clínica nos hospitais civis de Lisboa, quando foi nomeado ci-
rurgião do Hospital de S. José. Um ano depois, em 1890, começou a dar as cadeiras
de Anatomia Patológica e Medicina Legal na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Em 1891 foi enviado pelo Ministro do Reino a Paris para aprofundar os estu-
dos de bacteriologia e tomar conhecimento dos mais recentes trabalhos de Koch
na prevenção e tratamento da tuberculose. Aí Câmara Pestana frequentou os cur-
sos e assistiu à investigação de bacteriologistas de renome e estagiou no Instituto
Pasteur, onde aprendeu o processo da vacina anti-rábica. De volta a Lisboa apre-
sentou uma conferência na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa sobre os
resultados da sua viagem de estudo, particularmente na questão do tétano.
Em 1892, perante um surto de febre tifóide em Lisboa e arredores, Câmara Pes-
tana foi encarregado da análise das águas de Lisboa. Para este trabalho foram en-
comendados os mais recentes aparelhos, que foram instalados numa enfermaria do
Hospital de S. José. Este laboratório improvisado acabou por dar origem ao Instituto
Bacteriológico de Lisboa, dirigido por Câmara Pestana, e mais tarde com o seu nome.
Fez parte de várias comissões cientíicas, nacionais e estrangeiras. Foi nomeado
membro de importantes sociedades cientíicas, mantendo correspondência com vá-
rios cientistas estrangeiros. Publicou artigos e memórias na revista Medicina Contem-
porânea (1882-1974) e na Revista de Medicina e Cirurgia, fundada por ele próprio. Foi

9 Jaime Benchimol, “Saúde e Ciências da Vida no Brasil e em Portugal: Balanço e Perspectivas”, conferência
proferida no Congresso Luso-Brasileiro de História das Ciências, Universidade de Coimbra, 26 a 28 de Outubro
de 2011. Na sequência desta viagem de estudo, Ricardo Jorge publicou Brasil! Brasil!: Conferencia na Academia
Brasileira de Letras sobre o Brasilismo em Portugal e alocuções proferidas no Rio e em S. Paulo de 30-6 a 25-7 de 1929,
Fluminense, Lisboa, 1930.

322
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

ainda director da revista mensal Archivos de Medicina.


Em Junho de 1899 manifestaram-se vários casos de peste bubónica no Porto,
diagnosticada pelo médico municipal e director do posto de desinfecção pública do
Porto, o Dr. Ricardo Jorge. Foram imediatamente postas em práticas medidas sanitá-
rias para o combate aos agentes transmissores da doença, que já eram conhecidos: os
ratos e as pulgas. Câmara Pestana fora nomeado em comissão de serviço público para
estudar o valor do soro Yersin contra a peste no Porto. Aí, ao realizar uma operação,
picou-se na mão esquerda, icando infectado com a doença. Dois meses antes tinha
sido vacinado com este soro, o que não o impediu de contrair a doença. No dia 10
de Novembro de 1899 Câmara Pestana viajou a Lisboa para participar no Conselho
Superior de Saúde e Higiene Pública que se reuniu sob a presidência do Conselheiro
Ferraz de Macedo. Ao chegar a Lisboa o Dr. Câmara Pestana violou os preceitos
rigorosos do cordão sanitário que implicavam quarentena e inspecções médicas a
todos os passageiros que viajavam do Porto para Lisboa, realizadas na Rua Ivens.
Assim sendo, Câmara Pestana foi um dos únicos doentes de peste a levar a epidemia
para fora do Porto.
Logo que chegou a Lisboa assistiu à reunião do conselho de higiene, e às 9h da
noite adoeceu revelando sintomas de peste bubónica. O primeiro médico que o
examinou foi o dr. Silva Carvalho, subdelegado de saúde, o qual tomou logo todas
as providências que o caso requeria, dando de imediato conhecimento ao Gover-
nador Civil, que mandou remover o doente e sua família para o hospital de Arroios
e ordenando o completo isolamento do prédio. Todas as famílias que habitavam
no prédio foram levadas para o Lazareto, onde cumpriram a respectiva quarentena.
A gravidade do seu estado provocou consternação em várias personalidades,
desde o rei D. Carlos, que foi ao hospital de Arroios visitá-lo, ao Cardeal Patriarca,
até aos alunos do curso de Medicina Veterinária que dirigiram uma mensagem ao
dr. Câmara Pestana com mais de 30 assinaturas. No entanto, apesar da situação ter-
minal em que se encontrava, Câmara Pestana não perdeu o seu sentido de humor,
declarando aos colegas que o visitaram: “Há casos, meus caros amigos, nos quais
os meios empregados pelos padres, hindus ou árabes, ou os métodos da ciência
moderna, dão o mesmo resultado. É o meu caso, podem ver”10. Acabou por falecer
cinco dias depois da doença se manifestar, com 36 anos, sendo alvo das maiores
homenagens por parte de todas as esferas da sociedade.

10 Federico Montaldo, La peste bubónica en Oporto (Portugal) 1899-1900: hecho epidemiográicos e investigaciones
clínicas recogidos personalmente y anotados por el Doctor F. Montaldo... que asistió en la epidemia, durante tres meses,
como Delegado Médico del Gobierno de España: memoria oicial, Establ. Tip. de Portanet, Madrid, 1900.

323
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

ANTÓNIO DE ALMEIDA GARRETT


(Porto, 22 de Setembro 1884 – Porto, 19 de Novembro 1961)

Sobrinho bisneto de João Baptista da Silva Leitão de


Almeida Garrett, o primeiro Visconde de Almeida Garrett,
igura fundamental da literatura portuguesa, político, Par
do Reino e grande impulsionador do teatro em Portugal.
Licenciado em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica
do Porto em 1906, especializou-se em Pediatria, desenvolvendo uma carreira mé-
dica e docente de destaque, para além do desempenho de importantes cargos pú-
blicos. A partir de 1912 foi professor de Pediatria e de Higiene na Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto. Entre 1931 e 1954 exerceu o cargo de director
desta faculdade. Teve longa carreira como funcionário na área da saúde pública. Foi
subdelegado, delegado e em 1934 foi inspector dos serviços de saúde do Porto. Em
simultâneo com a sua carreira docente, durante qual participou em vários em júris
de licenciatura e de doutoramento nas áreas da pediatria, higiene e termalismo, o
seu interesse na vida política levou-o a candidatar-se ao Parlamento. De ideologia
conservadora e católico convicto, foi eleito deputado em 1915 pelo círculo eleitoral
de Vila Nova de Gaia, pelas listas da União Republicana. No início de 1918 de-
sempenhava o cargo de Vereador da Câmara Municipal do Porto com o pelouro da
Higiene, com o qual participou ativamente na organização dos serviços de saúde da
câmara para o combate à epidemia de tifo exantemático, especialmente no que diz
respeito aos balneários públicos e à lavagem das ruas e ilhas, onde a doença gras-
sava com maior intensidade. Foi apoiante de Sidónio Pais e foi eleito deputado em
1918 pelo círculo do Porto. Na sua carreira política destacam-se ainda os cargos de
presidente da Junta Geral do Distrito do Porto entre 1926 e 1936 e de presidente
da Junta da Província do Douro Litoral em 1940.
O seu reconhecido trabalho na área da saúde pública e a sua iliação aos con-
ceitos higienistas e ao trabalho de Ricardo Jorge, assim como a atividade política e
o apoio a Sidónio Pais, mereceram-lhe a nomeação, em 18 de Maio de 1918, para
o cargo de comissário do governo na cidade do Porto para combate à epidemia
de tifo exantemático que grassava nesta cidade desde Dezembro do ano anterior
e se prolongou até Março do ano seguinte. Sucedeu ao Prof. Augusto de Almeida
Monjardino, que tinha sido nomeado em 23 de Fevereiro de 1918. Manteve-se
no cargo durante todo o resto do ano, acompanhando igualmente a epidemia
de gripe pneumónica que, desde Agosto desse ano, e com maior intensidade em
Outubro, provocou em Portugal um número de mortos estimado em mais de

324
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

135.000, apesar das estatísticas oiciais apontarem para 59.00011. Muitas das me-
didas sanitárias foram herdadas das medidas postas em prática por Ricardo Jorge
na epidemia de peste bubónica de 1899. No que diz respeito à epidemia de gripe, a
sua transmissão pelo ar tornou desnecessárias as guias sanitárias, mas foram toma-
das medidas preventivas de isolamento dos doentes, fecho das escolas, proibição
de feiras e mercados, assim como foram amplamente divulgadas recomendações
higiénicas, e foram fornecidos serviços médicos e farmacêuticos gratuitos para os
pobres, criando-se toda uma rede de assistência domiciliária a famílias inteiras
atacadas e de transporte para os hospitais.
Em 1927 colaborou com Ricardo Jorge na reforma dos serviços sanitários e
organizou o 2º Congresso Nacional de Medicina. Em 1932 criou o Instituto de
Puericultura do Porto, do qual foi director. Foi ainda vogal do Conselho Superior
de Higiene, presidente da Associação dos Médicos do Norte de Portugal e presi-
dente do Centro Nacional de Estudos Demográicos.
A sua vasta obra soma quase três dezenas de livros e artigos e revela atualidade
a nível das últimas descobertas cientíicas internacionais. Por exemplo, quando em
1918 publicou um artigo sobre “Epidemiologia e proilaxia do tabardilho” (tifo
exantemático), António de Almeida Garrett citou os trabalhos de Henrique da
Rocha Lima, um bacteriologista brasileiro que dois anos antes tinha isolado a bac-
téria causadora da doença. Debruça-se sobre temática variada, incidindo maiori-
tariamente sobre as especialidades médicas da Pediatria, Higiene, Alimentação
e Demograia. Destaca-se ainda a atenção dada às áreas da Epidemiologia, da
Medicina Geral e ainda à Literatura e à cidade do Porto. Foi o fundador e direc-
tor da revista mensal Portugal Médico: arquivos portugueses de medicina, publicada
em Lisboa entre 1915 e 1966. E publicou diversos artigos em revistas cientíicas,
incluindo a revista Clínica, higiene e hidrologia, publicada entre 1935 e 1957, espe-
cializada em higiene e termalismo.

11 José Manuel Sobral, Maria Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e Sousa (orgs.), A Pandemia Esquecida.
Olhares comparados sobre a Pneumónica 1918-1919, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2009, pp. 72-73.

325
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

FERNANDO DA SILVA CORREIA


(Sabugal, 20 de Maio 1893 – Lisboa, 19 de DEZEMBRO 1966)

Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1917, especializou-


se em Lisboa em Medicina Sanitária (1920) e Hidrologia (1921). Estabeleceu prá-
tica clínica nas Caldas da Rainha em 1919 e em 1921 assumiu os cargos de médico
municipal e delegado de saúde. Em 1934 foi nomeado Inspector da 3.ª Área da
Saúde Escolar para os distritos de Castelo Branco, Guarda, Setúbal, Portalegre,
Évora, Beja e Faro. No mesmo ano iniciou a sua carreira docente como professor
de Administração Sanitária, Estatística Sanitária, Higiene Social e Assistência So-
cial e Demográica no Instituto Central de Higiene Dr. Ricardo Jorge, do qual foi
director de 1946 a 1961. Entre 1935 e 1957 foi também docente no Instituto Su-
perior de Serviço Social de Lisboa, leccionando Proilaxia das Doenças Venéreas,
Legislação Sanitária e História da Assistência.
A sua vasta obra cientíica, com mais de uma centena de títulos de livros e arti-
gos publicados em revistas como a Clínica, Higiene e Hidrologia (1935-1957), entre
outras, incidiu sobre os temas da higiene e da saúde pública, abrangendo com es-
pecial preocupação as questões ligadas à infância, à higiene escolar e à necessidade
da educação física e do desporto.
A sua obra mais signiicativa foi sem dúvida Portugal Sanitário, na qual ele colo-
cou em evidência os “15 anos de experiências sanitárias e médico-sociais, acompa-
nhadas do estudo do que se fazia no resto do País e no estrangeiro”, e desenvolveu
a história da higiene, da epidemiologia e da política sanitária em Portugal, salien-
tando os seus aspectos mais importantes, como a endemiologia e a epidemiologia.
Salientou ainda os principais procedimentos de proilaxia; defendeu a frequência
da praia como medicina preventiva, tratamento da tuberculose e robustecimento
do organismo pela natação e remo; e apresentou a tuberculose, a síilis e o alcoo-
lismo como lagelos sociais, especialmente esta última, que descreveu como sendo
uma patologia hereditária que constituía uma “arma de enfraquecimento da raça”,
um discurso que se insere nas teorias eugenistas correntes na sua época.

326
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

CONCLUSÃO

Em resumo, os pontos em comum entre os seis médicos em destaque são os


seguintes: docência universitária; prática clínica; foram membros e diretores de
instituições e sociedades cientíicas; desempenharam cargos públicos; publicaram
artigos em revistas cientíicas portuguesas e estrangeiras; participaram em confe-
rências cientíicas internacionais; realizaram estudos e viagens cientíicas ao es-
trangeiro; demonstraram o seu valor em períodos de graves crises epidémicas e no
combate às doenças endémicas. Em suma, revelaram que o estado da ciência mé-
dica em Portugal estava ao nível do das maiores potências cientíicas da sua época
e contribuíram para a internacionalização da ciência.

REFERÊNCIAS

Jornais consultados
Diário de Notícias, o mais antigo jornal português ainda em publicação. Fundado em 29 de Dezembro de
1864 em Lisboa.
O Comércio, diário do Porto, publicado entre 2 de Junho de 1854 e 30 de Julho de 2005. Em 1856 mudou
o nome para O Comércio do Porto.

Bibliografia
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “he Portuguese cholera morbus epidemic of 1853-56 as seen by
the press”, Notes & Records of he Royal Society, March 20, n. 66 (1), 2012, pp. 41-53.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa”,
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 18, n. 4, Rio de Janeiro, out./dez. 2011, pp. 1057-1071.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “António de Almeida Garrett”, Biograias de Cientistas e
Engenheiros Portugueses, CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/
biograias/335-garret-antonio-de-almeida.html.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “Bernardino António Gomes”, Biograias de Cientistas e
Engenheiros Portugueses, CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/
biograias/336-gomes-bernardino-antonio.html.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “Fernando da Silva Correia”, Biograias de Cientistas e Engenheiros
Portugueses, CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/
biograias/357-correia-fernando-da-silva.html.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “Luís da Câmara Pestana”, Biograias de Cientistas e Engenheiros
Portugueses, CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/
biograias/330-camara-pestana-luis.html.
ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “Ricardo Jorge”, Biograias de Cientistas e Engenheiros Portugueses,
CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/biograias/345-jorge-
ricardo-almeida.html.

327
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “José Tomás de Sousa Martins”, Biograias de Cientistas e
Engenheiros Portugueses, CIUHCT, Lisboa, 2011, publicação eletrónica: http://ciuhct.com/index.php/pt/
biograias/346-sousa-martins-jose-thomas-de.html.
CORREIA, Fernando da Silva, Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo), Ministério do Interior –
Direcção Geral de Saúde Pública, Lisboa, 1938.
GARNEL, Maria Rita Lino, “Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das
epidemias oitocentistas de cholera-morbus)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9 (2009),
pp. 229-251.
GARRETT, António de Almeida, “Epidemiologia e proilaxia do tabardilho”, Portugal Médico, nº 2,
1918, pp. 105-106.
GOMES, Bernardino António, Aperçu historique sur les épidémies de choléra-morbus et de ièvre jaune en
Portugal, dans les années de 1833-1865 par le Délégué du Gouvernement Portugais a La Conférence Sanitaire
Internationale Réunie a Constantinople, Imprimerie Centrale, Constantinople, 1866.
JORGE, Ricardo, Hygiene social applicada à Nação Portuguesa: conferências feitas no Porto, Civilização,
Porto, 1885.
JORGE, Ricardo, Saneamento do Porto: relatório apresentado à Commissão Municipal de Saneamento, Typ.
de António José da Silva Teixeira, Porto, 1888.
JORGE, Ricardo, Demographia e hygiene da cidade do Porto: clima-população-mortalidade, Repartição de
Saúde e Hygiene da Câmara, Porto, 1899.
JORGE, Ricardo, A peste bubónica no Porto, 1899. Seu descobrimento. Primeiros trabalhos, Separata do
Anuário do serviço municipal de saúde e higiene da cidade do Porto, Repartição de Saúde e Hygiene da
Câmara, Porto, 1899.
JORGE, Ricardo, La grippe: rapport préliminaire présenté à la commission sanitaire des pays alliés dans sa
session de mars 1919, Imp. Nationale, Lisbonne, 1919.
JORGE, Ricardo, Le typhus exanthématique à Porto, 1917-1919: communication faite au Comité
international d’hygiéne publique dans sa session d’Octobre 1919, Imp. Nationale, Lisbonne, 1920.
JORGE, Ricardo, Brasil! Brasil!: Conferencia na Academia Brasileira de Letras sobre o Brasilismo em Portugal
e alocuções proferidas no Rio e em S. Paulo de 30-6 a 25-7 de 1929, Fluminense, Lisboa, 1930.
MONTALDO, Federico, La peste bubónica en Oporto (Portugal) 1899-1900: hecho epidemiográicos
e investigaciones clínicas recogidos personalmente y anotados por el Doctor F. Montaldo... que asistió en la
epidemia, durante tres meses, como Delegado Médico del Gobierno de España: memoria oicial, Establ. Tip. de
Portanet, Madrid, 1900.
ROSENBERG, Charles E., he Cholera Years: he United States in 1832, 1849 and 1866, he University
of Chicago Press, Chicago and London, 1987.
SOBRAL, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e Sousa (orgs.), A Pandemia
Esquecida. Olhares comparados sobre a Pneumónica 1918-1919, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2009.
TORGAL, Luís Reis, João Lourenço Roque (coords.), “O Liberalismo (1807-1890)”, José Mattoso
(dir.), História de Portugal, Vol. V, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993.

328
PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO
E ARQUIVOS DE CIÊNCIA
O Instituto Industrial do Porto e a Divulgação
da Ciência na Segunda Metade do Séc. Xix
Patrícia Costaa, Helder I. Chaminéb, Pedro M. Callapezc 1

INTRODUÇÃO

Com a criação, em 1852, da Escola Industrial do Porto (ig.1), na sequência de


reformas introduzidas após o dealbar da Regeneração, iniciou-se uma importante
etapa na divulgação da ciência junto das novas classes de trabalhadores, graças ao
esforço de industrialização nacional. A preocupação na formação de quadros qua-
liicados de um operariado do meio fabril em franco crescimento e transmutação
tinha já sido abordada, pouco tempo antes, pela Associação Industrial Portuense.
Esta chegou mesmo a criar a sua própria escola industrial que tinha como principal
objetivo “a instrucção especial e technica dos indivíduos da classe industrial”2.
A partir da criação oicial deste ensino os alunos passaram a ter acesso a uma
formação organizada e devidamente regulamentada, à semelhança do que já se ha-
via veriicado em Inglaterra, em França ou na Prússia, estados líderes da Revolução
Industrial, em meados dos séculos XVIII e XIX.
Este tipo de ensino, assim como a sua organização, foi pensado pelo Ministério
das Obras Publicas, Comercio e Industria, com o objetivo de ter efeito direto e
poderoso no desenvolvimento da riqueza pública3.
Nos primeiros anos (1852-1864) a Escola Industrial do Porto apenas lecionou a
instrução completa dos dois primeiros graus do ensino industrial, ou seja o elemen-
tar e o secundário, assim como a 7ª cadeira (química aplicada às artes) do ensino
complementar, que era lecionado integralmente no Instituto Industrial de Lisboa.

1 a Museu do ISEP, Instituto Superior de Engenharia do Porto, Politécnico do Porto, Portugal, pcmc@isep.ipp.
pt; b Instituto Superior de Engenharia do Porto, Labcarga|ISEP e DEG; Centro GeoBioTec|UA, Portugal,
hic@isep.ipp.pt; c Centro de Geofísica; Departamento de Ciências da Terra|Universidade de Coimbra, Portugal,
callapez@dct.uc.pt
2 Cf. Jornal da Associação Industrial Portuense, nº 6, segunda-feira, 1 de Novembro, 1852, pp. 81-94.
3 Cf. Relatório que acompanha o decreto de 30 de Dezembro de 1852. Colecção Oicial da Legislação Portuguesa,
p. 864.

331
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Por natureza o seu ensino estava vocacionado para o aperfeiçoamento dos artíices,
com os cursos de operário habilitado, de oicial forjador, de oicial fundidor, de
oicial serralheiro ajustador ou de oicial torneiro modelador4. Ajustava-se, assim, a
um elenco de alunos oriundos das classes menos favorecidas, destinados a integra-
rem um futuro operariado tecnicamente qualiicado para contribuir na otimização
de novas unidades industriais.
É neste contexto que a escola do Porto surge como estabelecimento de ensino
de grande importância no norte do país, a par da Academia Politécnica do Porto,
que já tinha em meados do século XIX uma longa tradição no que respeitava ao
ensino técnico no nosso país, e onde se lecionava uma formação superior. Em co-
mum estas duas instituições tinham o edifício, atual Reitoria da Universidade do
Porto, alguns docentes e certos recursos materiais.

O ENSINO INDUSTRIAL E A DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA

O ensino industrial destacava-se por uma forte componente prática, comprova-


da pela criação multidisciplinar de laboratórios e de gabinetes cientíicos vocacio-
nados para a didática (igs. 2 e 3), que possibilitavam aos alunos o acesso a ativida-
des experimentais. Estas incidiam, sobretudo, em áreas ligadas aos novos processos
tecnológicos utilizados nas obras e unidades fabris da época.
A partir da reforma do ensino industrial, publicada em 1864, em que a Escola
Industrial passou a ser denominada de Instituto Industrial do Porto, veriicou-se um
incremento muito signiicativo no desenvolvimento dos estabelecimentos auxiliares
de ensino. Passaram a existir oicialmente, de acordo com o referido no Capítulo
IX do decreto de 20 de Dezembro de 1864, os seguintes estabelecimentos: uma
biblioteca, um laboratório químico, um gabinete de física e um museu tecnológico.
Salienta-se que o diretor da escola tinha a possibilidade de criar estabelecimentos
auxiliares para além dos especiicados no decreto, caso houvesse necessidade disso,
como acabou por se veriicar mais tarde.
Anualmente eram adquiridos no estrangeiro instrumentos, aparelhos, modelos,
minerais, rochas e espécimes fósseis5, com a inalidade de equipar estes espaços
com o que de melhor se produzia e se empregava nas principais escolas dos paí-

4 Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 30 de Dezembro de 1852, Artigo 9º, p. 867.
5 Livros de registo de toda a receita e despesa da Escola Industrial e Instituto Industrial do Porto, 1859-1902.
(documentos pertencentes ao Arquivo Histórico do ISEP)

332
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

Fig. 1 – Panorâmica aérea das novas instalações do Instituto Industrial do Porto, sitas na Rua de S. Tomé,
Paranhos, cidade do Porto e inauguradas em 1967 (Fotograia pertencente ao acervo do Museu do ISEP,
nº inv. MPL6142FOT).

Fig. 2 - Laboratório Químico do Instituto Industrial e da Academia Politécnica do Porto (séc. XIX)
(fotograia pertencente ao acervo do museu do ISEP, MPL6157FOT).
Fig. 3 - Gabinete de Física do Instituto Industrial e da Academia Politécnica do Porto (séc. XIX)
(fotograia pertencente ao acervo do museu do ISEP, MPL6151FOT).

333
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Fig. 4 – Etiquetas existentes em diversos objetos do acervo do Museu do ISEP, coleção de mineralogia e
metalurgia, comprados a fornecedores de renome internacional como: Les Fils d´Émile Deyrolle (Paris),
Dr. F. Krantz (Bona), h. Gersdorf (Freiberg) e J. Digeon (Paris).

ses líderes da Revolução Industrial, permitindo aos alunos o manuseamento ou o


contato direto com o que de mais inovador existia nas diferentes áreas lecionadas
na escola.
Em virtude do esforço de industrialização em curso no nosso país, também
incidir na faceta da indústria extrativa, é natural que a Geologia e Arte de Minas
tenham desempenhado um papel signiicativo na formação académica do ensino
industrial, principalmente a partir de 1864, quando foi criado o Curso de Condu-
tor de Minas6.
São disso prova os acervos de Mineralogia, Petrologia e Paleontologia hoje exis-
tentes no Museu do ISEP, nos quais as principais geocoleções são provenientes,
maioritariamente, de fornecedores especializados de países europeus como a Fran-
ça e a Alemanha. Estes recursos formativos eram essenciais para a preparação dos
alunos no terreno, num cenário em que a indústria extrativa desempenhava um
papel fulcral na obtenção de carvão e de outras matérias-primas estratégicas para
Portugal (ig. 4).
No entanto, apesar dos progressos veriicados desde o início da Regeneração, se
analisarmos os resultados do inquérito industrial em 1890, poder-se-á concluir que
as técnicas de mineração ainda se deparavam com bastantes carências. Com efeito,
a lavra de minas não estava tão desenvolvida como se pretendia já que escassas
minas laboravam de forma regular e que tinham equipamento adequado e meios

6 Cf. Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 20 de Dezembro de 1864, Artigo 5º, p. 960.

334
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

Fig. 5 – Alguns exemplares de minerais e rochas das coleções estrangeiras do século XIX existentes nos acervos
do Museu de Mineralogia do Instituto de Engenharia do Porto.

para transportar o seu produto, como por exemplo uma linha de caminho-de-ferro
próximo7, muito útil para garantir a chegada de materiais, equipamento e pessoal
necessário à atividade e exportação da produção8. Na segunda metade do século
XIX foram licenciadas mais de 300 minas, muitas delas a estrangeiros e nalgumas
nem se esboçou a exploração. A atividade mineira em Portugal foi sempre pouco
desenvolvida, sujeita às lutuações dos preços internacionais, dos impostos ou pelas
condições fortuitas da guerra9.
Após a publicação dos novos programas dos cursos professados no Instituto
Industrial do Porto, no ano de 186710, dá-se o arranque deinitivo desta área na es-
cola, através da nomeação do docente para a 7ª cadeira Arte de Minas, Docimasia
e Metalurgia, António Ferreira Girão, lente substituto na Academia Politécnica do
Porto. Este foi substituído provisoriamente pelo Professor Manuel Nepomuceno
até 1881, altura em que o Professor Manuel Rodrigues Miranda Júnior, igualmente
docente da Academia, assumiu a regência da cadeira11.

7 Inquérito Industrial de 1890, Vol. I, Industrias Extrativas: Minas e Pedreiras, Lisboa: Imprensa Nacional, 1891.
8 BRANDãO, José Manuel - Caminho de Ferro Mineiro do Lena: desígnio de progresso industrial e social. In:
Património geológico, arqueológico e mineiro em regiões cársicas: atas do Simpósio Ibero-Americano, Batalha,
29 de Junho a 1 de Julho de 2007. Editores José M. Brandão, Carlos Calado, Fernando Sá Couto. SEDPGYM,
2008, p. 193.
9 GUERRA, Franklin, História da Engenharia em Portugal. 2ª ed. Publindústria: Porto, 2010, pp. 189-190.
10 Cf. Programas dos Cursos Professados no Instituto Industrial do Porto (Decreto de 20 de Dezembro de 1864)
aprovados por Portaria do Ministério das Obras Publicas Commercio e Industria de 15 de Maio de 1867. Porto:
Typograia de António José da Silva Teixeira, 1867.
11 Cf. Livro de termos de pose dos lentes e mais empregados da Escola Industrial do Porto, Porto, 19 de Setembro
de 1853, José de Parada e Silva Leitão, o Diretor.

335
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Fig. 6 - Modelo de forno revérbero para pudlagem, do construtor heodor Gerdorf, pertencente ao acervo
museológico do ISEP (nº inv. MPL573OBJ).

Ainda em 1867, adquirem-se os primeiros exemplares de minerais, mais concre-


tamente 2000, para o recém-criado Gabinete de Mineralogia12, um dos exemplos
de estabelecimento auxiliar existente na escola que não foi oicialmente criado pelo
já referido decreto de 1864 (ig. 5).
A Geologia e Arte de Minas assumem um papel ainda mais signiicativo na
formação dos alunos do ensino industrial quando, a partir de 1869, o curso de con-
dutores de minas e mestres mineiros passa a ser professado unicamente na escola
do Porto13.
A partir de 1883, o número de aquisições e de ofertas aumentou considera-
velmente. Nesta data, para além dos exemplares de mineralogia, passou-se a dar
atenção à necessidade de incorporar modelos didáticos de metalurgia na coleção,
que até então não se tinha veriicado.
Um exemplo disso foi a compra de modelos de minas e de fornos de metalurgia
ao construtor heodor Gersdorf (ig. 6), fornecedor da Academia de Freiberg, uma
das escolas de minas mais prestigiadas da Alemanha e da Europa naquela época,
fundada em 1765, para instalação do Gabinete de ensino prático anexo à cadeira
de Arte de Minas e Metalurgia.
Na nota que acompanhou a encomenda desses materiais, o Professor Manuel
Rodrigues Miranda Júnior, responsável pela cadeira desde 1881, como já foi refe-
rido, mencionou expressamente que estes modelos deveriam ser pedidos ao cons-

12 Livro de correspondência expedida, Carta de 1 de Junho de 1867.


13 Cf. Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 30 de Dezembro de 1869, pp. 865-868.

336
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

Fig. 7 - Nota de encomenda dos modelos para o estudo da metalurgia escrita pelo Professor Manuel Rodrigues
Miranda Júnior em 1880, para instalação do Gabinete anexo à cadeira de Arte de Minas e Metalurgia.
Os números à esquerda correspondiam aos do catálogo do mesmo construtor (documento pertencente ao
arquivo histórico do ISEP).

337
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

trutor Gerdorf de Freiberg, fornecedor da Escola de minas daquela cidade (ig. 7),
e que os números (que se encontram à esquerda da igura) correspondiam aos do
catálogo do mesmo construtor.
Como icou acima demonstrado, a seleção das aquisições era da competência
dos docentes responsáveis pelas respetivas cadeiras. Estes consideravam que as ma-
térias deveriam ser lecionadas na presença de modelos de minas e de espécimes que
reproduzissem os principais tipos de depósitos minerais com importância econó-
mica existentes na natureza e sua respetiva paragénese.
Esta atitude denota, na nossa opinião, um conhecimento muito rigoroso dos
métodos de ensino e do material didático que se produzia na Europa, proporcio-
nando aos alunos uma constante atualização dos seus conhecimentos, assim como
um contacto mais direto com as técnicas mais atuais, ao tempo em uso na indústria
e outras atividades económicas com elas relacionadas.
Para este conhecimento tecnológico também terá contribuído a presença da
escola industrial do Porto e dos seus professores nas Exposições Universais que
proliferaram na segunda metade do século XIX14, permitindo que o conhecimento
cientíico desenvolvido nos estados líderes da Revolução Industrial chegasse a pa-
íses mais periféricos da Europa, como era o caso de Portugal, com a aplicação das
novas invenções em áreas como a indústria e a agricultura.
Assim, na tentativa de acompanhar o que de melhor se ia produzindo e inventando
no estrangeiro, principalmente no que dizia respeito às indústrias, a escola industrial
começou a participar nestes certames a partir de 1855. Esta primeira presença foi feita
de forma indireta e na pessoa do seu diretor, José de Parada e Silva Leitão. Este foi
nomeado vogal da Comissão das Províncias do Norte15 para a Exposição Universal de
Paris16, com a inalidade de promover a reunião dos produtos e facilitar a sua remessa
para Lisboa, onde um júri decidiria quais os que seriam enviados para Paris.
A primeira Exposição Universal foi um sucesso, mostrando ao mundo civilizado
numerosas inovações importantes para o desenvolvimento da humanidade. João de
Andrade Corvo, responsável pela elaboração do relatório sobre a secção de agri-
cultura na Exposição Universal de Paris, refere o seguinte no seu relatório sobre o
evento: “Os rápidos e brilhantes progressos da mechanica industrial no nosso sé-
culo tem dado a todas as Indústrias o poder de produzir muito, de produzir barato,
e de executar quer os trabalhos mais delicados, quer aqueles para que se exigem es-

14 Cf. Volumes da correspondência recebida do Instituto Industrial do Porto, Arquivo Histórico do ISEP.
15 Esta comissão compreendia os distritos de Aveiro, Viseu, Guarda, Porto, Vila Real, Braga, Bragança e Viana do
Castelo.
16 Cf. Anexo IV – Regulamento da Exposição Universal de Paris de 1855.

338
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

forços violentos, com regularidade, rigorosa exactidão, perfeição geométrica e rapi-


dez. Cortar, dobrar, moldar o ferro e o bronze; iar, dobar, tecer as materias texteis;
transportar com a rapidez do vento de um ao outro extremo do mundo civilizado
viagentes e mercadorias; executar em im todas as obras com que a imaginação do
artista e as lucubrações do sábio estão cada dia enriquecendo a sociedade, pode-o a
mechanica moderna, não o podia a mechanica de ha meio século apenas. Por meio
das machinas sabe-se hoje ou multiplicar o poder de um qualquer motor, ou, o que
vale muito mais, applicar esse poder aos trabalhos mais variados pelos meios que a
cinemática e as experiencias têem ensinado aos modernos construtores.”17
Nos anos seguintes foram várias as exposições que se realizaram, tanto a nível
nacional como internacional, em que o Instituto Industrial do Porto participou
com tralhados e expositores (Quadro 1), como foi o caso na participação Exposição
Internacional de Filadélia, em 1876. A classe do Instituto era a 515 (aplaina-
ção, perfuração, entalhamento, forneiro, modelação, puncionagem, estampagem e
máquinas de corte), pertencente ao Departamento V - Maquinaria, localizado no
edifício principal. Fez-se representar pelo fabricante José Baptista, com um Torno
Mecânico e acessórios, exemplos de trabalhos18. Com este torno mecânico este
fabricante foi galardoado com um prémio.
QUADRO 1 - EXPOSIÇÕES REALIZADAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX,
EM QUE O INSTITUTO INDUSTRIAL DO PORTO PARTICIPOU.

Exposições Ano
Exposição Universal de Paris 1855
Exposição Industrial no Porto 1857
Exposição Universal de Londres 1862
Exposição Universal de Viena de Áustria 1873
Exposição Internacional de Filadélfia 1876
Exposição Universal de Paris 1878
Exposição de História Natural no Porto 1881
Exposição Mineira de Madrid 1883
Exposição Industrial de Guimarães 1884
Exposição Industrial de Lisboa 1893
Exposição Insular e Colonial 1894
Certame da República da Costa Rica 1895
Exposição Industrial do Porto 1897
Exposição Universal de Paris 1900

17 CORVO, João de Andrade. Relatório sobre A Exposição Universal de Paris: Agricultura. Lisboa: Imprensa Nacio-
nal, 1857.
18 International Exhibition, 1876 at Philadelphia; Portuguese Special Catalogue; Departments I., II., III., IV.,V.; Mining
and Metallurgy; Manufactures; Education and Science; Fine Arts; Machinery. s/l.: s/ed., 1876, p. 99.

339
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Um outro fator que destacamos respeita aos manuais de ensino e a sua utiliza-
ção. Para além de elaborar o programa, o professor responsável pela cadeira deinia
a bibliograia de referência. Contudo, a tarefa não se revelava fácil, sendo uma das
diiculdades o orçamento disponível para estas aquisições e ao mesmo tempo a
falta de compêndios em português, como seria conveniente, em virtude da maioria
dos alunos não dominar qualquer língua estrangeira, principalmente o francês19.
Apesar de todas estas diiculdades, anualmente eram adquiridos para a bibliote-
ca da escola novos livros de forma a possibilitar aos alunos o acesso às novas teorias
publicadas no estrangeiro, destacando-se mais uma vez a inluência francesa e a
inglesa20.
Muitos destes manuais de referência no estudo da Mineralogia encontram-se
hoje conservados no Fundo Bibliográico Antigo do ISEP em conjunto com acer-
vos mais antigos e de grande interesse histórico. Entre muitos outros exemplos
merecedores de destaque, relevamos a edição original do Traité de Minéralogie de
René-Just Haüy (ig. 8), obra que só por si permite antever a qualidade da biblio-
teca ao tempo existente à disposição de professores e alunos.
As visitas de estudo organizadas pelos docentes também permitiam aos alunos,
principalmente aqueles que frequentavam os cursos especializados, novas perspeti-
vas sobre à utilidade prática dos conhecimentos adquiridos e a aquisição de com-
petências em situações reais.
Um dos exemplos marcantes da aplicação deste tipo de recursos letivos não
formais foi a visita às minas do Lena (Leiria), em 1931 (ig. 9). A exploração dos
carvões da bacia do Lena iniciou-se em 1855, tendo a sua produção ganho alguma
expressão durante a 1ª Guerra Mundial, devido à escassez de carvão estrangeiro21.
A intenção era que o grupo visitasse várias instalações industriais em laboração no
centro do país, principalmente as minas do Lena, a indústria vidreira de Marinha
Grande e a fábrica de cimentos de Maceira-Liz22.
O interesse demonstrado pelas novas invenções e produtos industriais levou à
criação de espaços expositivos que albergassem exemplos de tudo o que se relacio-
nava com a indústria, ou seja os Museus Industriais e Comerciais (Lisboa e Porto)
criados pelo decreto de 24 de Dezembro de 1883, como complemento do ensino

19 Ata da primeira sessão do Conselho Escolar, ano letivo de 1862-1863, 17 de Outubro de 1862.
20 Relatório sobre o Instituto Industrial e Commercial do Porto. Anno lectivo de 1887-1888, Ministério das Obras
Publicas Commercio e Industria. Lisboa: Imprensa Nacional, 1889, p.33.
21 BRANDãO, José Manuel - Caminho de Ferro Mineiro do Lena: desígnio de progresso industrial e social. In:
Património geológico, arqueológico e mineiro em regiões cársicas: atas do Simpósio Ibero-Americano, Batalha,
29 de Junho a 1 de Julho de 2007. Editores José M. Brandão, Carlos Calado, Fernando Sá Couto. SEDPGYM,
2008, p. 194.
22 Cf. Ata do Conselho Escolar de 9 de Junho de 1931.

340
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

Fig. 8 – Página de rosto do livro de René-Just Háüy, Tomo I, 1801, pertencente ao Fundo Bibliográico Antigo
do Instituto Superior de Engenharia do Porto ( livro nº 973).

Fig. 9 - Grupo de professores e estudantes na entrada para as minas do Lena, em Leiria, durante visita de estudo
realizada de 18 a 20 Junho 1931 (fotograia pertencente ao acervo do Museu do ISEP, nº inv. MPL6270FOT).

341
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

professado nas escolas industriais. No primeiro parágrafo do decreto que cria este
museu é evidente a importância que inicialmente lhe foi atribuída: “Considerando
que o progresso incessante da indústria e commercio, os novos inventos e os novos
produtos, os processos modernos continuamente modiicados e a abertura de re-
centes mercados tornam inadiável a creação de museus industriais e commerciais,
que sejam o complemento indispensável dos conhecimentos obtidos nas escolas
especiaes [...]”23
Neste contexto a escola do Porto empenhou-se, durante a segunda metade do
século XIX, através de métodos de ensino compostos por aulas teóricas comple-
mentadas por uma forte componente aplicada, facultar a várias gerações de alunos
uma formação atualizada e ajustada às reais necessidades da indústria e do comér-
cio. Pólo dinâmico de tecnologia e de ciência, sempre soube responder às carên-
cias do país e, principalmente, do Porto, cidade onde proliferava uma burguesia
mercantil que demonstrava as suas preocupações económicas e sempre se associou
ao desenvolvimento do ensino, desde a criação da famigerada Aula Náutica, em
176124. A escola sempre assumiu, deste modo, um papel de relevância, contribuin-
do para o desenvolvimento da cidade portuense e estando os seus dirigentes intei-
ramente empenhados nessa tarefa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A área do Porto, verdadeiro núcleo da região norte do país, converteu-se num


dos vértices de maior desenvolvimento económico com consequentes transforma-
ções sociais, desde o dealbar da Revolução Industrial em Portugal. Neste sentido
e, principalmente, a partir da Regeneração, surgiu a necessidade de implementar
o ensino industrial como forma de qualiicar uma classe operária, que até aquela
altura, estava pouco instruída. Assim, proporcionou-se a este estrato social, um dos
pilares laborais, formação adequada aos novos desaios impostos pelo desenvolvi-
mento industrial.
Esta formação passava por um ensino teórico apoiado por aulas práticas em
ambiente de laboratório, equipadas com uma profusão de material adaptado às ver-
tentes aplicadas. Esse material era adquirido anualmente, integrando-se no esforço
de modernização do ensino em Portugal, facto perfeitamente percetível através da

23 Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 24 de Dezembro de 1883, p. 399.


24 Criada pelo Alvará de 24 de Novembro de 1761, pp. 813-816.

342
COMBATENDO EPIDEMIAS: BERNARDINO ANTÓNIO GOMES, SOUSA MARTINS, RICARDO JORGE, CÂMARA PESTANA,
ALMEIDA GARRETT, FERNANDO DA SILVA CORREIA

leitura de relatórios enviados à tutela, onde sempre se mencionava o estado e grau


de desenvolvimento dos estabelecimentos. Não obstante, os progressos veriicados
nem sempre eram notórios devido às pequenas dotações que a escola tinha para
investir em modelos, máquinas e instrumentos, tão necessários para o ensino práti-
co dos cursos lecionados. Muitas vezes estabeleciam-se prioridades, havendo uma
discussão sobre onde e no que se iria investir.
A realidade é que, apesar de todas estas condicionantes, chegou até nós um
importante acervo que ilustra a contemporaneidade do ensino ministrado no Ins-
tituto Industrial do Porto durante a segunda metade do século XIX. Nele são no-
tórias as inluências inglesa, alemã e francesa, assim como o esforço de divulgação
dos métodos mais atuais, no sentido de adequar o ensino industrial para que este
contribuísse signiicativamente para o progresso económico do país, através da sua
indústria, comércio e agricultura alicerçados numa mão-de-obra especializada.

BIBLIOGRAFIA

Legislação
Alvará de 24 de Novembro de 1761.
Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 30 de Dezembro de 1852.
Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Relatório que acompanha o decreto de 30 de Dezembro de
1852.
Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 20 de Dezembro de 1864.
Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 30 de Dezembro de 1869.
Colecção Oicial da Legislação Portuguesa, Decreto de 24 de Dezembro de 1883.
Manuscritos
Livros de registo de receitas e despesas da Escola Industrial e Instituto Industrial do Porto,1859-1902.
Volumes da correspondência recebida do Instituto Industrial do Porto, 1853-1900.
Ata da primeira sessão do Conselho Escolar, ano letivo de 1862-1863, 17 de Outubro de 1862.
Ata do Conselho Escolar de 9 de Junho de 1931.
Livro de correspondência expedida, Carta de 1 de Junho de 1867.
Livro de termos de pose dos lentes e mais empregados da Escola Industrial do Porto, Porto, 19 de
Setembro de 1853, José de Parada e Silva Leitão, o Diretor.
Impressos
CORVO, João de Andrade – Relatório sobre A Exposição Universal de Paris: Agricultura. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1857.
Relatório sobre o Instituto Industrial e Commercial do Porto. Anno lectivo de 1887-1888, Ministério

343
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

das Obras Publicas Commercio e Industria. Lisboa: Imprensa Nacional, 1889.


Inquérito Industrial de 1890, Vol. I, Industrias Extrativas: Minas e Pedreiras, Lisboa: Imprensa Nacional,
1891.
Programas dos Cursos Professados no Instituto Industrial do Porto (Decreto de 20 de Dezembro de
1864) Aprovados por Portaria do Ministério das Obras Publicas Commercio e Industria de 15 de Maio
de 1867. Porto: Typograia de António José da Silva Teixeira, 1867.
International Exhibition, 1876 at Philadelphia; Portuguese Special Catalogue; Departments I., II., III., IV.,V.;
Mining and Metallurgy; Manufactures; Education and Science; Fine Arts; Machinery. s/l.: s/ed., 1876.
GUERRA, Franklin, História da Engenharia em Portugal. 2ª ed. Publindústria: Porto, 2010.
Artigos
BRANDãO, José Manuel - Caminho de Ferro Mineiro do Lena : desígnio de progresso industrial e social.
In: Património geológico, arqueológico e mineiro em regiões cársicas : atas do Simpósio Ibero-Americano,
Batalha, 29 de Junho a 1 de Julho de 2007. editores José M. Brandão, Carlos Calado, Fernando Sá
Couto. SEDPGYM, 2008.
Periódicos
Jornal da Associação Industrial Portuense, nº 6, segunda-feira, 1 de Novembro, 1852.

344
Um projecto de musealização para o Real Gabinete
de História Natural da Ajuda (1768-1836)
História, Colecções, Espaços
João Brigolaa e Luís Ceríacob 1

A mais antiga iniciativa museológica em território nacional mergulha as suas


raízes no ano de 1768, quando o Rei D. José ordena que o naturalista italiano
Domingos Vandelli, contratado em Pádua por Pombal quatro anos antes, inicie o
desenho do Jardim Botânico da Ajuda e, com ele, a instalação do Gabinete de História
Natural. As colecções de naturalia e artiicialia, bem como o acervo do seu Cartório
e Livraria, serão transferidos para a Academia Real das Ciências em 1836. Anos
depois, no inal de um atribulado e longo processo que contou com o empenho do
próprio Rei D. Pedro V, a Escola Politécnica de Lisboa consegue incorporar, em
1858, os espécimes botânicos, zoológicos e geológicos para servirem de apoio di-
dáctico aos estudos de História Natural, muitos deles funestamente desaparecidos
no incêndio ali ocorrido em Março de 1978.
O espaço do seu estabelecimento original (Fig. 1), entregue à tutela do Insti-
tuto Superior de Agronomia desde 1918, apesar de ocupado hoje com outros ins,
poderia todavia prestar-se a uma intervenção de recuperação física do ediicado e
de reconstituição cénica do ambiente museal, com a utilização de mobiliário de
época, de naturalia2, de réplicas, de suportes virtuais e de instalações plásticas3.

1 a Universidade de Évora e CEHFCi (Centro de Estudos de História e Filosoia da Ciência) joaobrigola@


gmail.com; b Doutorando em História e Filosoia da Ciência, Universidade de Évora. Bolseiro FCT - CEHF-
Ci luisceriaco@netcabo.pt
2 Os autores pretendem agradecer a simpatia e colaboração da Doutora Judite Alves, do Museu Nacional de His-
tória Natural, pela permissão de consulta e digitalização do material do Arquivo Histórico da instituição. Esta
investigação foi inanciada pela bolsa de doutoramento concedida pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
a Luís Ceríaco, com a referência SFRH / BD / 66851 / 2009, inanciada pelo POPH - QREN - Tipologia
4.1 - Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Poderá ser equacionada a utilização de mobiliário e de especímenes, através da celebração de contratos de
depósito de duplicatas provenientes de diversas colecções públicas como as que possuem os museus de história
natural das universidades de Lisboa e de Coimbra, o Museu Geológico e Mineiro e o Museu Maynense da
Academia das Ciências de Lisboa, entre outros.
3 Em 2008, no âmbito das comemorações dos 200 anos da instalação da Corte portuguesa no Brasil, o Jardim Bo-
tânico do Rio de Janeiro albergou uma exposição, acompanhada de outros eventos como o lançamento do livro

345
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

A ser viabilizado esse projecto, além de poder signiicar uma nova valia de atrac-
tividade para o Jardim Botânico e para o denso eixo Belém/Ajuda, acentuaria ali
a atmosfera e a ambiência setecentistas, autenticidade patrimonial singular na in-
vocação do espírito e da matéria do complexo cientíico e museológico joseino e
mariano. Vem a propósito comparar esta iniciativa com a que o madrileno Museo
Nacional de Ciencias Naturales levou a efeito recentemente ao reconstituir simbo-
licamente, nas suas instalações, o Real Gabinete de Historia Natural de Carlos III
(1776). Mas com uma diferença decisiva, que é a de o primitivo espaço, na calle
Alcalá, se encontrar ocupado desde os inícios de novecentos com outra instituição
museológica, a Real Academia de Bellas Artes de San Fernando.
Na Ajuda, o nosso antigo Gabinete ostenta ainda as marcas fortes da sua função
setecentista: porta nobre de acesso pelo Jardim Botânico com bustos alusivos à His-
toria Natural, dois lanços de escada com painéis azulejares, vestígios de policromia
mural, e frontão do portal vestibular com inscrição latina anunciando ao visitante
o theatro da natureza que o aguardava nas duas salas de exibição: “Venite et videte
opera domini. Quae posuit prodigia super terram”4.
Lugares obrigatórios da visita touristica, os estabelecimentos scientiicos do Paço
Real foram objecto de apreciação demorada na pena de inumeráveis viajantes, im-
possível de encontrar noutra qualquer iniciativa museológica do seu tempo. Por
isso, esses testemunhos constituem a mais inestimável fonte documental para nos
guiar no percurso expositivo, na ordenação e colocação dos seus espécimes. E, con-
tudo, ixar a disposição cénica das colecções no espaço exibicional do Real Gabinete
de História Natural da Ajuda - ao longo das suas quase sete décadas de existência
- traduz-se num exercício de improvável rigor histórico. Antes do mais devido a
uma característica intrínseca a esta tipologia museal, que vem a ser a frequente al-
terabilidade quer dos objectos expostos (retirados por razões de deterioração física
ou por esbulho, como sucederá em 1803/045 e 1808) quer das relações sequenciais

O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli e a realização de conferências. A exposição reconstituía com rara
felicidade, rigor técnico e apuro estético o mundo das ideias, dos objectos e das realizações cientíicas do empre-
endimento vandelliano da Ajuda, em estreita ligação com a pesquisa naturalista nos trópicos. A obra, produzida
pela Dantes Editora, publica textos de enquadramento de Fernanda de Camargo-Moro, João Carlos Brigola,
Lorelai Kury e José Augusto Pádua. No mesmo ano, esteve patente no Museu Nacional de História Natural
do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista (primeiro museu do Brasil colonial, estabelecido por D. João VI em
1818, em edifício da Praça da República até 1892) uma exposição proveniente do Jardim Botânico de Coimbra
(Gabinete transnatural de Domingos Vandelli, Artez, 2008). Uma e outra exposição, temporárias, evidenciaram a
viabilidade museográica de um projecto mais estruturante adaptado à Ajuda.
4 “Vinde, e vede as obras do Senhor, as maravilhas que pôs sobre a terra” (PSALMOS 45:9, Velho Testamento,
Bíblia Sagrada, Tradução do Padre António Pereira de Figueiredo (1842), Lisboa, Deposito das Escripturas
Sagradas, 1924, p. 516).
5 Cfr. “Relações Dos Productos naturaes que por Ordem Regia se remetterão deste Real Museu ao General
Lasnes [sic], Embaixador da Republica Franceza nesta Corte”, (Agosto de 1803 - Maio de 1804), Arquivo
Histórico do Museu Bocage, Geofroy de Saint-Hilaire, Div.- 16 a., n.º 22.

346
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

estabelecidas entre os objectos no interior das colecções, em caso de incorporação


de novos especímenes. Esta especiicidade museográica - que condiciona forte-
mente o discurso museal adoptado (a ordem que subjaz à apresentação das colec-
ções, as relações ente os objectos e o espaço, o modo de expor e de acondicionar as
produções recolhidas) - tinha já sido luminosamente enunciada na Encyclopédie, ao
dobrar do século, por Daubenton, ‘guarda’ e ‘demonstrador’ do Cabinet du Roi.6.
Durante a longa gestão de Domingos Vandelli (1768-1810) serão escassas (para
não dizer inexistentes) as referências à temática da exibição museal na Ajuda, e os
próprios testemunhos de viajantes estrangeiros registam apenas apreciações gené-
ricas sobre a quantidade, variedade e disposição dos objectos, merecendo especial
referência dois dos autores de maior crédito documental, o académico espanhol
José Cornide y Saavedra e o botânico alemão Heinrich-Friedrich Link.
O primeiro salienta a correcta conservação e exposição dos objectos de acordo
com a Sistemática natural cumprindo-se assim, na Ajuda, o objectivo didáctico de
instrução dos amadores apesar de dispor de um espaço mais reduzido do que o do
Gabinete madrileno7.
Link, compreensivelmente mais exigente na avaliação das nossas unidades mu-
seológicas, apontava criticamente a pequenez do espaço, a lamentável ausência de
importantes produções naturais brasileiras e, sobretudo, o facto de nenhuma das
categorias taxonómicas se apresentar totalmente representada. Concedia, contudo,
que o Gabinete régio exibia objectos suicientemente interessantes para merecer
uma visita.8
Paradoxalmente, os testemunhos mais circunstanciados datam do período pos-
terior à primeira invasão napoleónica. Seremos portanto guiados, nesta visita aos
espaços que ao olhar dos curiosos se deixavam mostrar, pela mão de alguns estran-
geiros que os percorreram demoradamente depois da presença de Geofroy Saint-
Hilaire. Apesar da intervenção do comissário do Muséum parisiense ter depredado
as colecções de maior valia cientíica, é provável no entanto que o difícil esforço
de reconstituição levado a cabo pela direcção de Brotero (1811-1828), preocupado

6 Tant qu’on augmente un cabinet d’histoire naturelle, ont n’y peut maintenir l’ordre qu’en déplaçant continuelle-
ment tout ce qui y est. Par exemple, lorsqu’on veut faire entrer dans une suite une espece qui y manque, si cette
espece appartient au premier genre, il faut que toute le reste de la suite soit déplacé, pour que tout le reste de la
suite soit déplacé, pour que la nouvelle espece soit mise en son lieu Histoire naturelle, générale et particulière avec la
description du cabinet du roi, t. III, Paris, Imprimerie royale, 1749, pp. 1-12, apud D. Diderot, «Cabinet d’Histoire
naturelle», in Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751, t. II, pp. 489-492.
7 Um viajante português dirá, uns anos antes, do Gabinete madrileno que: “O Gabinete de História Natural de El
Rey tem muita cousa lá mais preciosas que raras, em o mais está muito em principio.” (Carta de Diogo de Melo a
Frei Manuel do Cenáculo (14 de Março de 1778), Biblioteca Pública de Évora, CXXVII/1-7, Carta 1371).
8 Heinrich Freidrich Link, Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, Lisboa, Biblioteca Nacio-
nal, 2005, pp.139-140.

347
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

com o que ali fora encontrar em 1811 - “uma vasta desordem de bellas cousas” 9 -,
tenha procurado manter a anterior lógica de exposição.
Entre-se, então, pela porta que lhe dá acesso pelo interior do Jardim Botâni-
co, a oeste do tabuleiro inferior; desça-se por um dos lanços laterais da pequena
escada, passe-se o espaço vestibular e penetre-se no primeiro compartimento do
Gabinete10. Aqui era o local destinado aos objectos do reino mineral. Saint-Hilaire
nos seus relatórios aos colegas professores-administradores tinha-o classiicado de
“salle considérable” mas, como esta não era a sua área de especialização, pouco
acrescentará sobre o acervo exposto11.
O geógrafo-estatista lorentino, Attilio Zuccagni Orlandini12, vê-la-á como
uma sala não muito vasta, com a coniguração de um quadrado regular, cada uma
das quatro paredes dispondo de uma porta. Em cada ângulo do compartimento,
entre uma porta e a seguinte, distribuem-se quatro armários de mogno envidra-
çados - formando um total de dezasseis - contendo toda a colecção. Em verdade,
não preciosa pela quantidade mas riquíssima pelo valor dos objectos, sobretudo de
alguns dos fragmentos nobres das minas de metais.
Por cima dos armários encontram-se aixados às paredes, lateralmente, seis
enormes crocodilos do Brasil (segundo o mesmo, corresponderiam ao “Lacerta
alligator” de Lineu), o maior dos quais ostenta um comprimento não inferior a
dez braços. Também ali se vê um manatim (“Trichechus manatus Lin.” de acordo
com Orlandini) e, sobre a porta de ingresso, uma tartaruga gigante (apelidada pelo
visitante de “Testuggine coriacea”) com quatro braços de comprimento, capturada
na costa de Peniche. Centremos, inalmente, a nossa atenção num grande pedaço
de cobre nativo - um quadrado irregular com a altura de um braço e meio e a lar-
gura de um braço, proveniente da vila de Caxoeira, na prefeitura da Baía - exposto

9 Félix de Avelar Brotero, “Carta a D. Francisco de Lemos. 27 de Fevereiro de 1815”, O Instituto. Revista scientiica
e litteraria, vol. XXXVII, 2.ª série, n.º 6, Dezembro de 1889, pp. 358-359. O próprio Vandelli dirá que: “Nesta
geral separação das produções Naturais, e reposição das que se restituiram, icou o Museu tão desordenado, que
necessita reordenar-se e pôr as etiquetas, que se confundiram ou perderam” (Carta de Domingos Vandelli ao Prín-
cipe Regente D. João (17 de Setembro de 1808), Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Reino, Maço
279). Vide também Noticia biographica do doutor Felix de Avellar Brotéro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1847.
10 Cfr. Manuel Sobral de Campos de Albuquerque de Azevedo Coutinho, O Jardim Botânico da Ajuda. História da
sua evolução. Estado presente do jardim. Projecto de remodelação, (Relatório inal do curso de engenheiro agrónomo
e arquitecto paisagista), Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, 1948, pp. 1-73. O exemplar dactilografado
desta tese pode ser consultado na BISA (Biblioteca do Instituto Superior de Agronomia), com a cota 17053.
Não pode deixar-se de mencionar o facto de se tratar da primeira dissertação de licenciatura em arquitectura
paisagista no nosso país. A orientação cientíica foi do Prof. Arquitecto Caldeira Cabral à época responsável pelo
Jardim Botânico da Ajuda cujo material vegetal fora muito devastado por acção do ciclone de 1944.
11 Carta de Geofroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Muséum (Lisboa, 19 de Maio de 1808),
apud E.-T. Hamy, “La mission de Geofroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et docu-
ments”, Nouvelles Archives du Museum National d’Histoire Naturelle, 4.ª série, t. X, 1908, p. 44.
12 Orlandini viajara por Portugal em 1816. Era sobrinho de um correspondente de Vandelli, o médico e botânico
Attilio Zuccagni, de quem herdou fortuna e nome (Cfr. Carta de Attilio Zuccagni a D. Vandelli (Florença, Feverei-
ro de 1792), AHMB, CE/L -25

348
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

no meio da sala, em cima de um pedestal13.


Passando ao compartimento seguinte para se apreciar os espécimes animais e
vegetais, distribuídos segundo o método lineano, o nosso guia de ocasião justiica-
se por a não descrever com igual pormenor, considerando-a menos necessitada de
alterações na disposição e nas classiicações do que a sala mineralógica. É que - ex-
plicava - as grandes mudanças e os progressos gigantescos veriicadas na geognosia,
naqueles últimos anos, não tinham tido paralelo na ciência zoológica. Também o
testemunho de Geofroy Saint-Hilaire não nos é de muita utilidade para a recons-
tituição das colecções dos reinos orgânicos expostas no segundo compartimento,
deinitivamente fascinado com o inesgotável acervo dos armazéns de reserva que
- como lhe explicara Vandelli - “le défaut d’espace et de préparation était cause
qu’on ne les produisait pas au public”14. As apreciações do zoólogo francês sobre os
produtos exibidos apresentam, todavia, um não negligenciável interesse para a nos-
sa visita, tanto mais que a sua opinião é certamente - entre todas as que recolhemos
de viajantes estrangeiros - a mais cientiicamente abalizada, além de produzida em
contexto de obrigatória proiciência proissional, tanto pelo tempo e pelos meios de
que dispôs, como pelo próprio objectivo da missão.
Alguns pelo contrário foram menos avaros em pormenores. Não são em geral
testemunhos de connaisseurs mas, antes, impressões gravadas na memória pelo exo-
tismo e beleza das espécies, ou até por desacordo com as soluções cénicas. É o caso,
por exemplo, da avaliação produzida pelo ilustre lusitanista Robert Southey quan-
do ali esteve em 1808, durante a segunda estada em Portugal: “Brazil has supplied
the Museum with the richest collection of birds I ever saw. he collection, if well
disposed, would make a much more respectable appearance” 15.
Para outro oicial, Peter Hawker, a enumeração de alguns animais exibidos na
segunda sala serve-lhe sobretudo de pretexto para destacar o papel desempenhado
pelos militares ingleses na protecção das riquezas do Museu durante as invasões:
“(....) beasts, birds, insects, and ishes, in high preservation, with a beautiful collec-
tion of shells (Soon after, all these things were packed up, to be sent to the Brazils;
it being thought that the British were about to evacuate the country”16.

13 Trata-se do famoso cobre nativo a que quase todos os viajantes fazem referência. Encontra-se ainda hoje no
Museu Nacional de História Natural, de Lisboa.
14 “Carta de Geofroy Saint-Hilaire aos professores-administradores do Muséum“ (Lisboa, 19 de Maio de 1808),
apud E.-T. Hamy, La mission de Geofroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents,
1908, p. 44.
15 Letters written during a journey in Spain and a short residence in Portugal, Londres, Longman, 1808, vol. II, pp. 158-
159.
16 Journal of a regimental oicer during the recent campaign in Portugal and Spain under Lord Viscount Wellington, Lon-
dres, J. Johnson, 1810, pp. 10-11.

349
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Em 1816, no mesmo ano em que o estadista Zuccagni Orlandini visitava Lisboa,


desembarcava no Porto um homem de negócios proveniente de Nantes, economis-
ta de formação, de nome Louis-François de Tollenare, e que a si próprio impunha
a disciplina de relatar, aos Domingos, os acontecimentos mais assinaláveis de cada
semana da viagem comercial que empreendia rumo ao Brasil17.
Na apresentação do longo manuscrito18 - que se manteve inédito durante mais
de século e meio - o lusóilo Léon Bourdon sublinha com justiça as qualidades
intelectuais do narrador (forjadas no meio parisiense dos Idéologues19), como as
que revela na ilimitada curiosidade e no esforço de compreensão e de aceitação dos
homens e das sociedades que visitava pela primeira vez, visível no facto de se ter
familiarizado em pouco tempo com os rudimentos da língua portuguesa.
Ora, isso mesmo se comprova nas extensas referências dominicales aos museus
e jardins botânicos de Coimbra20 e da Ajuda21, evidenciando incomuns conhe-
cimentos sobre a árvore dos saberes que o conduzem, mais do que a descrever, a
relectir sobre pertinentes questões de ordem teórica, relativas à formação do
campo disciplinar da Philosophia Natural e ao papel educativo dos seus museus
(questões epistemológicas e museológicas, poderíamos hoje assim designá-las com
propriedade)22.
Mas, apesar deste distanciamento crítico face ao hermetismo do aparato di-
dascálico adoptado na época pela generalidade dos gabinetes de história natural23,
Tollenare cumpre com gosto de genuíno connaisseur uma visita ao Museu e Jardim
Botânico da Ajuda munido de carta de recomendação (trazida de Coimbra) para
o Director, Félix de Avelar Brotero. Onde Orlandini se quedara na descrição cir-
cunstanciada, isto é, no segundo compartimento contendo as riquezas da fauna e

17 Notes dominicales prises pendant un voyage en Portugal et au Brésil en 1816, 1817 et 1818, 1971, 3 ts.
18 Bibliothèque Saint-Geneviève, Manuscrito n.º 3434.
19 Cfr. Sergio Moravia, Il pensiero degli ‘idéologues’: scienza e ilosoia in Francia (1780-1815), 1974; e Il tramonto dell’
Illuminismo. Filosoia e politica nella società francese (1770-1810), Roma-Bari, Editori Laterza, 1986, pp. 370 e sgs.
20 Desembarcara no Porto em Junho de 1816. Data de 5 de Agosto a note dominicale relativa a Coimbra.
21 Note de 8 de Setembro de 1816.
22 “Mais il appartenait surtout à ce qu’on pourrait appeler le ‘Siècle de Bufon’. Comme tant de ses contemporains, il
se passiona pour les sciences naturelles, et sourtout pour la botanique. (....) Avec un cercle d’amis (....) il herborise
(....) il fréquente les professeurs du Muséum (....) et il acquiert une connaissance approfondie de la classiication
des plantes par Linné et celle des minéraux par Hauy” (Louis Bourdon, “Introduction” a Notes dominicales prises
pendant un voyage en Portugal et au Brésil en 1816, 1817 et 1818, 1971, t. 1, p. XIII).
23 Esta parece ser uma questão de indiscutível actualidade, com a qual se confrontam ainda os nossos museus
naturalistas: Artur Ricardo Jorge, - “Museus de história natural. Relatório apresentado ao I.º congresso nacional
de ciências naturais na sua VIª sessão plenária, em 11 de Junho de 1941”, Arquivos do Museu Bocage, n.º 12, 1941,
pp. 79-112; idem, “A dupla missão - cientíica e cultural - dos museus de história natural, à luz da biologia e da
museologia modernas”, Arquivos do Museu Bocage, n.º 23, 1952, pp. 125-144; Germano F. Sacarrão, Museus de
história natural - signiicado nos domínios da investigação e da cultura, Lisboa, Arquivos do Museu Bocage, 1972;
idem, “Pedagogia da evolução e museus de história natural”, Prelo, n.º 16, Julho/Setembro 1987, pp. 17-37; e
Givanni Pinna, Fondamenti teorici per un museo di storia naturale, Milão, Jaka Book 1997.

350
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

da lora, o viajante francês demora-se na visita. E destaca, de entre todas, as espé-


cies ictiológicas e os crustáceos; considera pequeno o número dos quadrúpedes;
na classe dos insectos apenas lhe merece referência o belo escaravelho (“Scaraboeus
hercules”) do Brasil; na classe dos répteis realça as belas peles de serpentes, os sapos
e as rãs disformes e, sobretudo, os diversos camaleões (dos quais em Paris existia
apenas um modelo em cera), e os dragões da Índia (“Draco lineatus”).
O comerciante de Nantes terminava este relatório museológico da segunda sala
do Museu de História Natural da Ajuda com breves incursões em dois temas ca-
ros ao coleccionismo setecentista: as conchas e os fetos monstruosos. No caso da
malacologia estimava a colecção régia ali depositada, naquele ano de 1816, não es-
pecialmente diferente das de qualquer outro gabinete particular: “Tout nombreux
que soient les coquillages, ils ne forment pas un ensemble plus considérable que
celui de collections particulières que j’ai vues dans vingt endroits diférents. Je m’y
connais trop peu pour apprécier leur qualité»24.
Por im, icamos também inteirados de que ali se mantinha em exposição um
armário totalmente dedicado às anomalias da Natureza. Ora, é sabido que o Di-
rector italiano visivelmente valorizava no seu coleccionismo inicial a exibição de
monstros, documentados nas colecções transferidas para Coimbra logo nos anos
setenta. Esta tendência - prisioneira ainda da afeição cénica pelo maravilhoso, tão
característica das colecções de naturalia et mirabilia25 - não pode ser desligada, por
outro lado, da sua formação médica em Pádua nos longínquos anos cinquenta. Em
1776, publicará mesmo em Coimbra um pequeno texto intitulado Dissertatio de
Monstris descrevendo um par de gémeos humanos ligados pelo peito e chamando
a atenção para a importância de se exibirem estes casos anómalos nos museus.
No entanto, do ponto de vista museológico, a exibição de degenerescências foi
sendo progressivamente abandonada, acompanhando uma concepção cientíica
menos sensível às extravagâncias e mais preocupada com a busca da normalidade,
regulada pelas leis da Natureza. E será justamente desta nova visão que Tollenare
se mostrará credor, demarcando-se da opção doutrinal setecentista subjacente à
exibição pública de um tal armário:
“Une armoire est consacrée aux produits de ces générations extrordinaires que
l’on appele si improprement contre nature, comme s’il était vraisemblable que

24 Idem, ibidem.
25 A leitura da Gazeta de Lisboa, desde 1715 e durante todo o período joanino, é pródiga em relatos de partos hu-
manos com fetos anómalos (siameses, por exemplo) e de animais monstruosos nascidos um pouco por todo o país.
Algumas vezes chegava-se a ilustrar a notícia com desenhos enviados pelos próprios médicos ou por eruditos
locais. (Gazeta de Lisboa, 1715- 1762; 1778-1807). Sobre estes monstros veja-se ainda Ceríaco et al. 2011.

351
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

la nature renverse ses lois pour les produire. Nous ne connessons pas ces lois,
et voilà tout. Après les foetus monstrueux, les veaux à deux têtes, les poulets à
quatre pattes que l’on voit partout, j’ai remarqué des poissons à deux têtes, ce
qui est rare à voir sans être plus étonnant que les autres anomalies naturelles” 26.
O papel que o Gabinete da Ajuda representou na história das ciências da natu-
reza em Portugal foi sendo exaltado, ao longo dos séculos XIX e XX, por diversos
professores e naturalistas que apelaram ao estudo histórico do seu desempenho
cientíico:
“Museu de historia natural de Lisboa, instituto que entre muitos e os mais celebres do
paiz tem uma vida e merece uma biographia, quando mais não fôra, pelas vidas que
n’elle em parte tem sido consumidas com proveito e gloria da nação, desde o inal do
seculo passado”27. “Gabinete do Jardim Botânico da Ajuda, cuja importante e interes-
sante história, e alta inluência civilizadora está ainda por escrever” 28.
Este desígnio memorialista, biográico e historiográico encontra-se hoje, no
essencial, cumprido. Mas a recuperação patrimonial e museológica de espaços e
ambientes, das suas quase sete décadas de vida, permanece um projecto de incerta
realização. E, todavia, da leitura das páginas mais inspiradas escritas por estran-
geiros sobre o nosso património artístico e cientíico seria possível, apoiada pelas
virtualidades inesgotáveis das novas tecnologias, redesenhar os cenários de algumas
das colecções e dos museus da nossa primeira modernidade.

O Real Gabinete de Historia Natural estendia-se por duas salas de exposição,


salas de reserva, uma casa do risco, um cartório/livraria e um pequeno laboratório
químico. O espaço expositivo encontrava-se dividido em duas salas, a primeira
dedicada à mineralogia e outra dedicada à zoologia. Entre as duas, distribuíam-se
também alguns materiais etnográicos dos índios brasileiros, africanos e asiáticos29.

26 Louis-François de Tollenare, Notes dominicales prises pendant un voyage en Portugal et au Brésil en 1816, 1817 et
1818, 1971, t. 1, pp. 184-186. Existem alguns documentos sobre a disposição física dos objectos naturais nas
salas do Museu que, apesar de tardios em relação ao período que estamos a tratar, julgamos relevante divulgar:
«A [segunda] salla do Museu tem sete Armarios de cada lado. Á entrada da porta de cada lado está hum armario
no q. está a direita entrando estão as terras, e á esquerda estaõ sementes (...) e em ambos nas gavetas em baixo
estaõ os Herbarios» (Armario LXV (s/d) [1836], AHMB, Rem. 436); “(....) colecção de mais de 40 madeiras pe-
triicadas; armários de vidraças de grandes dimensões para recolher as produçoens do Reino Vegetal, construídos
dentro das casas; mesa de estanho em que sempre se curtiram as peles dos animaes para se poderem preparar;
pedestal de pedra da massa grande de cobre [nativo do Brasil]” (Livro De Registo das Ordens da Academia respecti-
vas ao Museu Nacional. Desde 6 de Outubro de 1836 em diante, AHMB, Div. - 23).
27 J. Bethencourt Ferreira - “O museu de historia natural de Lisboa”, Revista de Educação e Ensino, 1892, nº 6, pp.
261-272; nº 8, pp. 342-351; nº 9, pp. 420-427; nº 10, pp.476-480; nº 12, pp. 561-564.
28 Balthazar Osório - “Algumas notas inéditas e pouco conhecidas acerca da vida e obra de Félix d’Avelar Brotero”,
Arquivo da Universidade de Lisboa, vol. V, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1918.
29 Não constando em qualquer referência dada por visitantes estrangeiras nem em catálogos especíicos de cada

352
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

A primeira sala de exposição era o local destinado aos objectos do reino mineral,
como rochas, minérios e fósseis, existindo, no entanto, algumas peças zoológicas
esteticamente espalhadas. Seria uma sala quadrangular, não muito vasta, onde cada
uma das quatro paredes dispunha de uma porta ao meio. Em cada ângulo do com-
partimento, entre uma porta e a seguinte, distribuíam-se quatro armários de mogno
envidraçados - formando um total de dezasseis - contendo toda a colecção que na
verdade, não era preciosa pela quantidade mas sim pelo valor dos objectos, sobre-
tudo de alguns dos fragmentos nobres das minas de metais. Cada um dos armários
teria diferentes tipos de peças: o primeiro, logo à esquerda de quem entrava na sala,
estava destinado às argilas, ao brecce, ao ocre e areias; o segundo, aos mármores; o
terceiro às estalactites; e o quarto aos feldspatos, gessos e luores. Nos outros quatro
do seguinte canto, o primeiro continha selciose, o segundo as zeólitas, o terceiro
os basaltos, os magnésios e os xistos, e o quarto pedras várias. Seguidamente os
sais, o enxofre e as pirites ocupavam o primeiro armário do terceiro ângulo, e os
outros quatro destinavam-se aos metais que ainda mantinham os nomes de deuses
antigos, de modo que o ouro, prata, estanho, chumbo, cobre e ferro, corresponde-
riam ao nome do Sol, da Lua, Júpiter, Saturno, Vénus, Marte, etc. Finalmente as
concreções e as lavas no ultimo armário, que continha também as “petriicações”
(fósseis) seguindo a classiicação lineana. Algumas das rochas e minérios, tais como
algumas lavas vulcânicas, as estalactites ou os fósseis, encontravam-se montadas
sobre pedestais de madeira e algumas delas tapadas por campânulas de vidro30.
Para além destes armários, existiam ainda duas mesas, dispostas em dois dos lados
da sala onde estava exposta um colecção de cerca de cinquenta amostras de rochas
polidas (“mármores”) de Portugal31. Por cima dos armários encontravam-se aixados
às paredes, lateralmente, seis enormes crocodilos do Brasil (provavelmente exem-
plares de Caiman crocodilus Linnaeus, 1758, um deles ainda conservado no Muséum
National d’Histoire Naturelle de Paris). Também sobre os armários se encontrava

sala, a sua presença é atestada no inventário de Alexandre Rodrigues Ferreira (1794), bem como nos próprios
materiais que ainda hoje existem no Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa e no Museu da
Ciência da Universidade de Coimbra.
30 In “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
31 Estas duas mesas puderam ser vistas na antiga sala de Paleontologia da Escola Politécnica, mais conhecida como
Sala do Veado, até ao incêndio de 1978, onde viriam a ser consumidas pelo fogo. Seriam duas mesas tipo “con-
sola”, que permitia que se encostassem à parede, com várias amostras de rochas polidas incrustadas no tampo.
Teriam pernas em forma de “S”, e sobre os dois cantos externos de cada mesa encontravam-se representados
em baixos-relevos de latão, ocupando uma área de, aproximadamente, 5x5 cm, bustos femininos representado as
4 estações, em que numas das mesas estariam o Outono e o Inverno, e na outra a Primavera e o Verão (Liliana
Póvoas, comunicação pessoal). Uma destas mesas pode ser vista numa fotograia da Sala do Veado (anos 40 do
século XX), num dos cantos da sala, encostada a uma porta. Existem no Museu Nacional de Ciencias Naturales de
Madrid alguns exemplares semelhantes.

353
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

um manatim (Trichechus manatus Linnaeus 1758)32 e, sobre a porta de ingresso,


uma tartaruga de couro gigante (espécie descrita por Vandelli em 1761, actual-
mente Dermochelys coriacea Vandelli, 176133) com “quatro braços” de comprimento,
capturada na costa de Peniche34. Ao centro da sala estava exposto, em cima de um
pedestal, uma das peças mais importantes e espectaculares de todo o Gabinete, um
grande pedaço de cobre nativo, já acima referido. Este grande exemplar, símbolo
máximo das riquezas da natureza brasileira, ocupava ali lugar de destaque, manten-
do-se como uma reminiscência dos antigos gabinetes de maravilhas, não obstante
o seu valor e interesse cientíicos. Esta característica, de hibridismo conceptual,
é um exemplo perfeito dos traços gerais do Gabinete da Ajuda, bem como dos
gabinetes portugueses de história natural do século XVIII, ou seja, a adopção de
métodos classiicativos modernos, mas ao mesmo tempo a manutenção do curioso,
do maravilhoso e do espectacular, herança directa dos gabinetes de curiosidades e
maravilhas renascentistas e tardo-renascentistas.
Da segunda sala expositiva possuímos uma descrição menos detalhada por parte
dos visitantes. A sala da zoologia deveria ser uma sala semelhante à primeira, e
no seu seguimento, continha os espécimes animais distribuídos segundo o método
lineano35, sendo principalmente rica em colecções de animais do Brasil, nomeada-
mente mamíferos, aves e insectos, num óptimo estado de conservação36. A maioria
das colecções estaria colocada nos cerca de dezasseis móveis de mogno envidra-

32 Sobre um exemplar muito semelhante e da mesma origem deste (senão o mesmo!), ainda hoje existente no
Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, ver Almaça (1998).
33 Sobre a descrição desta espécie por Vandelli ver Fretey & Bour (1980), e sobre este espécimen em particular, que
ainda existia no Museu de Lisboa, então na Escola Politécnica, no início do século XX, ver Bethencourt Ferreira
(1907, 1911). “Deux autres exemplaires de Tortue marine de l’espèce généralement connue sous le nom de Tortue luth
sont dernièrement parus sur les côtes du Portugal, où elles échouent très rarement. L’exemplaire de cette espèce le plus
ancien du Muséum est un adulte de grandes dimensions, capturé à Peniche, au commencement du siècle dernier (1808?)
et qui aurait été mentionné par Vandelli (Bocage)» Ferreira (1907, pp 83); «Il existe au Museum de Lisbonne, faisant
partie de la collection primitive, formée aux dépens de objets réunis á l’ancien Muséum Royal (d’Ajuda), un exemplaire
de Tortue luth trés ancien, dont nous avons pu faire l’identiication grâce à un manuscrit exrait des Archives du même
établissement,, oú son fondateur, le regretté professeur B. du Bocage a réuni quantité de documents intéressant pour
l’histoire de l’institution et en particulier des Sciences naturelles en Portugal.» Ferreira (1911, pp. 59), onde existe
também o fac-simile de um documento escrito por Vandelli referente ao mesmo exemplar.
34 “Al di sopra degli scafali sono aissi alle pareti lateralmente sei grossossomi cocrodrilli del Brasile, ivi detti volgarmente
jacaré o giaccaré, e da Linneo (Lacerta alligator), il più grande dei quali ha una lunghezza non minore di braccia dieci.
Evvi pure un grosso vitello marino (Trichechus manatus Lin.), e sopra la porta d’ingresso una testuggine coriacea bi
braccia quattro, presa sulla coata di Peniche presso Lisbonna.” in Orlandini (1817); e “La première est toutee consacrée à
la minéralogie, sauf quelques crocodiles et tortues qui tapissent les murs au-dessus des armoires.” in Tollenare (1816).
35 “Most of the articles [...] and are all arranged according to the Linnaen system.” in Neale (1809)
36 “his leads to the second, which is illed with beasts, birds, insects, and ishes, in high preservation, with a beautiful
collection of shells (Soon after, all these things were packed up, to be sent to the Brazils; it being thought that the British
were about to evacuate the country)” in Hawker (1810); “La collection des oiseaux, des poissons et des coquilles est riche
et contient beaucoup de choses nouvelles, qui mériteroint d’être décrites et nom de rester enterrées ici sans aucune utilité.”
in Abildgaard (1895-96); “he collection of butterlies is far the best preserved and most perfect, that I have seen; many
of them very large, and as beautiful as can be conceived; they all came from the Brazils; the birds are also ine.” in Cock-
burn (1815); “a principale richesse des collections de Youda se forme de mammif ères, d’oiseuax et d’insects. [...] Ce que’il
y a surtout de satisfaisant, c’est que tous ces animaux sont d’une conservation parfaite. On m’en a dit la raison. Presque
tous proviennent d’un envoi qui ne remonte pas à plus de deux ans.” in Saint-Hilaire (1808)

354
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

çados37, como na primeira sala, mas também em quatro banquetas38, por cima dos
armários, e, alguns peixes, pendurados no tecto39. A ordem estabelecida seguiria o
sistema lineano no que toca à disposição dos diferentes grupos pelos armários, pelo
que os primeiros três armários da esquerda seriam dedicados aos mamíferos, os qua-
tro seguintes às aves, dois dedicados aos répteis e anfíbios, quatro aos peixes, dois aos
invertebrados e o último às monstruosidades40. A colecção de aves brasileiras seria
uma das mais ricas e imponentes. Estas encontrar-se-iam na sua maioria montadas
sobre pedestais azuis, embelezados com uma linha dourada41. Os ovos e ninhos es-
tavam também expostos nos armários, sendo alguns dos ovos (os de maiores dimen-
sões) colocados em pedestais pintados e colocados sobres os armários42. Os grandes
quadrúpedes africanos, como um hipopótamo43, um rinoceronte, uma zebra44, entre
outros, marcavam também posição de relevo (provavelmente ao centro da sala)45,
chamando desde logo a atenção pela sua imponência, raridade e excelente estado
de preservação, compartilhando o espaço com grandes felinos sul-americanos (com
destaque para uma magníica onça preta, com um tufo branco no peito46), cerví-

37 “Most of the articles are placed in mahogany glazed cases [...]” in Neale (1809)
38 Este número é inferido através da referencia contida no título de um manuscrito, infelizmente desaparecido,
intitulado de “Catalogo de todos os animaes, e mineraes, que se achão arranjados nos trinta e dois armários, e quatro
banquetas do Real Muzeu. Feito em Dezembro de 1810. (In Autos do Inventário ..., ANTT, Ministério do Reino,
Maço 2123, “Academia Real das Ciências. Ofícios. 1837-1843.) dá-nos então conta de que o número de armá-
rios respeitantes aos artigos zoológicos, somados aos 16 já referenciados que continham os espécimes geológicos,
era de número de 32, o que nos deixa com o número inal. Assim sendo, podemos perceber que as duas salas
seriam, em termos de disposição e arrumos, bastante semelhantes.
39 “No tecto da Sala: Squalus Zygaena (...) 1, Squalus Squatina (...) 1, Squalus mirimocellas (...) 1, Raja rhinobatoides
(...)1, Raja sem nº especiico 2” in “Catalogo dos Peixes do Real Museo”, Ms 2441 Biblioteca Central do Muséum.
Estes exemplares, nomeadamente os de Raja seriam iguais aqueles ilustrados no encabulo ilustrado “Riscos De
Alguns Mammaes, Aves, e Vermes do Real Museo de Nossa Senhora d’Ajuda, Ditos de Peixes, e Vermes de Angola, com
o Prospecto da Embocadura do Rio Dande, Ditos de varios Animaes raros de Moçambique, com alguns prospectos, e
Retractos.” AHMB.
40 A inferência desta disposição deve-se à conjugação da informação disponível em documentos do Ms 2441 da
Biblioteca Central do Muséum, onde temos a informação de que as aves ocupariam os armários 4, 5, 6 e 7, e que
os peixes ocupariam os armários 10, 11, 12 e 13, e da lógica lineana que colocava a ordem classiicativa a iniciar-
se na classe dos mamíferos, seguida da das aves, dos anfíbios e répteis, dos peixes e só após isso os invertebrados.
A atribuição do último armário como o dedicado às monstruosidades não é cem por cento iável mas, tendo em
conta que muitos viajantes referiam claramente a existência de um armário dedicado a estes tipo de especímenes,
e visto este conter “monstros” das diversas classes, consideramos que provavelmente seria esta a sua ordenação.
41 “Todas as Aves preparadas. 812. Que todas estão montadas em seus pedestáes de madeira pintada d’azul, com riscos
dourados” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
42 Por exemplo no “Armario 4” existia “na cimalha deste armario - Ovos de avestruz” in “Catalogo das Aves do Real
Museo” Ms 2441 Biblioteca Central do Muséum.
43 “Hippopotamus amphibius (Cavallo-marinho) ...(...)... hú 1” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de
Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
44 “Equus Zêbra ...(...).. huâ 1” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13,
BNRJ.
45 “he specimens deposited in the Museum are not numerous; but several are very curious, one indeed altogheter unique.
Among the specimens from the animal kingdom, I remarked a ine hippopotamus, a rhinoceros, and some other rare
quadrupeds well preserved. Most of the articles are placed in mahogany glazed cases, and are all arranged according to
the Linnaen system” in Neale (1808).
46 Exemplar representado nas aguarelas da Viagem Philosophica de Alexandre Rodrigues Ferreira (ver AHMB-ARF
Aguarelas), terá feito parte das requisições de Saint-Hilaire. Apesar dos esforços empreendidos por Daget &
Saldanha (1989) e Brucket (2002), não foi possível encontrar o rasto deste exemplar nas colecções parisienses.
Também no “Inventário Geral e Particular (...)” (Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.) se refere a

355
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

deos do Brasil47, um mulão48, uma cabra monstruosa49, outra cabra africana não
descrita50, e também um esqueleto de ema51 assim como um esqueleto humano52.
Dentro dos armários com colecções de mamíferos, reira-se ainda a considerável
colecção de primatas53, a colecção de mamíferos de pequeno e médio porte, quer das
antigas colónias, quer nacionais54, mas também de exemplares de mamíferos mari-
nhos, como os golinhos e manatins55. Alguns esqueletos de mamíferos, bem como
cerca de dez presas de elefante e quatro chifres de rinoceronte, encontravam-se dis-
persos pelo gabinete56. A classe dos répteis e anfíbios seria também representada por
vários exemplares de todo o mundo, avultando as belas peles de serpentes, os sapos
e as rãs disformes e, sobretudo, uma grande colecção de quelónios57 taxidermizados,
os diversos camaleões, os dragões da Índia (género Draco)58, e ainda o hoje extinto
e já então bastante raro, lagarto-gigante-de-cabo-verde (Chioninia coctei Duméril
& Bibron 1839)59. Para além destes, também um considerável número de serpentes
taxidermizadas e em tubos de solução, bem como outros répteis, alguns dos quais

presença de uma “Felis onça” que muito certamente seria o dito exemplar. O mesmo exemplar foi recentemente
encontrado por Luis Ceríaco e Mariana Marques nas colecções do Muséum de Paris, em Setembro de 2011
(ver Ceríaco, in press a). Os restantes felinos seriam certamente aqueles que serviram de base para as ilustrações
presentes nos documentos da Viagem Philosophica de Alexandre Rodrigues Ferreira.
47 “Cervus Corça do Brasil ... húa 1”in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13,
BNRJ.
48 Este mulão encontra-se representado no encabulo ilustrado “Riscos De Alguns Mammaes, Aves, e Vermes do Real
Museo de Nossa Senhora d’Ajuda, Ditos de Peixes, e Vermes de Angola, com o Prospecto da Embocadura do Rio Dande,
Ditos de varios Animaes raros de Moçambique, com alguns prospectos, e Retractos.” AHMB. Pelo seu tamanho, seria
impossível estar acondicionado num armário. Existe também a sua referência no “Inventário Geral e Particular
(...)”, mas também na própria lista de espécimes levados por Saint-Hilaire para Paris (ver Daget & Saldanha
1989). Durante as investigações no Muséum não foi possível a localização deste exemplar.
49 “Capra Hirco (monstruozo) ... húa 1” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-
13, BNRJ.
50 “Capra Hirco Dº de Africa nao descripto ... húa 1”in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos,
I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
51 “Esqueletos perfeitos de Ema ... hú 1”in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-
13, BNRJ.
52 “Esqueleto humano ... hú 1”in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13,
BNRJ.
53 “Todos os primazes , inclusos os Fetos - 62” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21,
10/49-8-13, BNRJ.
54 Entre eles os “II Brutos”, como os Trichechus, os Bradypus, os Myrmecophaga, os Manis e os Dasypus, mas também
as “III Feras”, como as Phoca, os Canis, Felis, Vivérra, Mustélla, Ursus, Didelphis e Talpa, ou os “IV Glires”, conten-
do os Hystrix, os Lepus, os Mus e os Sciurus, ou os “V Pécora”, com os Cervus e as Capra. In “Inventário Geral e
Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
55 “Trhichechus Manátus (Peixe Boy) ... 7 (...) Delphinus Delphis (Boto) ... dous 2” in “Inventário Geral e Particular (...)”,
Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
56 “Ossada incompleta de Elephante ... hú 1; Dentes do dito naturáes ... dez 10; Dentes do dito monstruozos em forma es-
piral .... hú 1; Cornos de Rhinocerote ... quatro 4; Ditos de Hirco de Angola ... dous 2” in “Inventário Geral e Particular
(...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
57 In “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ. Sobre o caso particular
dos quelónios do Gabinete da Ajuda ver Ceríaco & Bour (in press).
58 “Les reptiles ofrent de belles dépouilles de serpents, des crapauds et grenouilles monstrueux, et sourtout plusieurs camélé-
ons dont, à Paris, on n’a que le modèle en cire, plusieurs petits dragons volants.” in Tollenare (1816)
59 Sobre a história dos exemplares de C. coctei do Gabinete da Ajuda, ver Ceríaco (in press b).

356
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

subsistiram até meados do século XX60. Existiam também vários especímenes ic-
tiológicos que se apresentavam conservados dentro de tubos de vidro com solução
alcoólica61, taxidermizados (no caso dos exemplares de maiores dimensões62), ou em
herbário63, sendo este último método de preparação o que reunia um maior núme-
ro de exemplares. Estes últimos estariam guardados dentro de caixas de madeira
pintadas de vermelho64, onde poderiam estar acondicionadas largas dezenas65. Para
além das colecções de vertebrados, a sala exibiria igualmente vários exemplares de
invertebrados. Se a maioria destes exemplares estava em caixotes depositados na sala
de reserva do Gabinete (muitos deles ainda os originais expedidos pelos naturalistas
e colectores), nela existiriam também algumas prateleiras dedicadas a espécimes
invertebrados, nomeadamente insectos, crustáceos e moluscos na forma de conchas.
Vários caranguejos montados e colocados sobre pedestais de madeira pintada de
dourado, bem como estrelas e ouriços-do-mar66, partilhariam o espaço com vários
tabuleiros onde se encontravam colecções de borboletas e insectos67, e outros com
grandes colecções dos mais variados géneros de “zoophytos” e conchas. Estas co-
lecções, a de insectos e a de conchas, seriam das mais impressionantes do Museu,
pelo seu invulgar número de exemplares, bem como pela sua beleza e diversidade68,
e estariam em parte expostas nas quatro banquetas existentes na sala. No chão, por
baixo destas banquetas, existiam ainda vários exemplares de aves69. Num dos armá-
rios haveria também uma colecção de monstros e de abortos, como um cão de sete
patas ou um tubarão de duas cabeças, duas meninas siamesas de lábio leporino, entre
muitos outros, alguns dos quais alvo de alguns estudos publicados na época70.

60 Ver Bethencourt Ferreira (1923)


61 “Ditos conservados em espirito de vinho dentro de cilindros de vidro branco” in “Inventário Geral e Particular (...)”,
Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ. Sabemos também, através do documento “Catalogo dos Peixes
do Real Museo”, Ms 2441 Biblioteca Central do Muséum, que os exemplares ictiológicos preparados desta forma
estariam todos no Armário 11 (“Armário 11 - Peixes conservados em agua-arde.”)
62 “Todos os Nantes preparados 57” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13,
BNRJ. Alguns destes peixes preparados encontravam-se por cima dos armários correspondentes, nomeadamente
aqueles de maiores dimensões como os exemplares de Pirarucu (Arapaima gigas Cuvier, 1829) (“Catalogo dos
Peixes do Real Museo”, Ms 2441 Biblioteca Central do Muséum).
63 “Peixes com os meios periz dos corpos grudados em Pastas de Papelao” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão
de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ. Sobre esta colecção ver Ceríaco & Marques (2011).
64 “Que todos as sobreditas pastas estão arrecadadas, e arranjadas dentro em seis Caixas de madeira, pintada de encarnado,
com machas femeas argolas e fechaduras de ferrro” in “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos,
I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
65 Ver Ceríaco e Marques (2011).
66 In “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
67 In “Inventário Geral e Particular (...)”, Divisão de Manuscritos, I-21, 10/49-8-13, BNRJ.
68 Muitos destes exemplares encontram-se reproduzidos no encabulo “Riscos De Alguns Mammaes, Aves, e Vermes
do Real Museo de Nossa Senhora d’Ajuda, Ditos de Peixes, e Vermes de Angola, com o Prospecto da Embocadura do Rio
Dande, Ditos de varios Animaes raros de Moçambique, com alguns prospectos, e Retractos.” AHMB
69 “Debaixo da 4ª banqueta da Conchiologia . Anas Anser (...)” in “Catalogo das Aves do Real Museo”, Ms 2441 Biblio-
teca Central do Muséum
70 “here were also certain monstrosities of the human race, besides cyclopes, pigs, calves with six legs, and other equally

357
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Devido ao exíguo espaço das duas salas expositivas, era nos armazéns de reserva
que a maior parte da colecção estaria depositada, encontrando-se a maioria dos
animais guardados apenas em pele ou em esqueleto, ou ainda mesmo guardados
em caixas, tal como testemunhava Saint-Hilaire, em 1808, aos seus colegas do
Muséum de Paris71. Para além do espaço das colecções, lugar ainda para um cartó-
rio/livraria, de área reduzida, mas de considerável riqueza em livros e manuscritos.
Uma sala de preparação, com todo o material necessário às operações de taxider-
mia dos espécimes zoológicos, onde se incluíam alguns armários para depósito de
químicos, folhas de landres, frascos para a conservação em álcool, instrumentos,
caixotes para envios, e mesa de preparação, em cobre. Por im, um modesto labora-
tório químico onde se fariam os testes e experiências com o material do Gabinete
e do Jardim.

Face à já referida inexistência de planta ou de iconograia coeva do Gabinete, as


propostas de reconstituição apresentadas (Fig. 2, 3, 4 e 5) seguem com idelidade
os elementos recolhidos na massa documental actualmente conhecida. Além da
já referida iniciativa madrilena do Museo Nacional de Ciencias Naturales, que abriu
ao público o Real Gabinete de Historia Natural – cenograia estilizada do equipa-
mento cientíico criado, em 1771, por iniciativa de Carlos III e dirigido por Pedro
Franco Dávilla - também recentemente, na comemoração dos 150 do Museum
of Comparative Zoology da Universidade de Harvard, o Great Mammal Hall foi

agreeable objects” in Alexander (1835); “(...) caixa com feto humano monstruoso com duas cabeças; (...) abortos huma-
nos, «em aguardente», um preto e dois brancos; um pinto e um gato com quatro pernas; um cão, em aguardente, com sete
pernas» in «Museo da Universidade de Coimbra, que foi de Domingos Vandelli. Se acha distribuido em tres Casas (s/d)”,
Arquivo Histórico Ultramarino, Reino, Maço 2695 -A. Também em 1781 Alexandre Rodrigues Ferreira dava
conta que: “Outra utilidade q. consigo tras a indagaçaõ dos ninhos he o recolhimento dos partos monstruosos. No Real
Jardim Botanico da Ajuda em Lisboa conserva-se huma gallinha de muntas pernas. Existe no poder de Julio Mattiazzi
hum Caçaõ já grande com duas Cabeças: Outras duas cabeças tem no Gabinete de Coimbra hum Menino” in “Methodo
de Recolher, Preparar, Remeter, e Conservar os Productos Naturais. Segundo o Plano, que tem concebido, e publicado
alguns Naturalistas, para o uzo dos Curiozos que visitaõ os Certoins, e Costas do Mar (1781)” AHMB Res. -17. Re-
lativamente ao cão de sete patas, este terá sido enviado para Coimbra, aquando da transferência da colecção de
Vandelli. Sobre a presença de monstros nas colecções de História Natural portuguesas, ver Ceríaco et al. (2011).
Partilhava também o espaço dedicado aos monstros um exemplar de gémeas siamesas, nascidas em Évora em
1778, apelidadas na sua cidade natal por “Monstro Bicorporeo” e enviadas para a Ajuda. Sobre este exemplar ver
Ceríaco (in press c).
71 «Tous les cofres de ses magazins viennent de m’être ouverts. (...) J’ai vu plusieurs herbiers du Para, du Maragnon, de la
Rivière Noire, etc. Tous sont vierges, on ne s’est pas donné la peine de les ouvrir : ni une plante, ni une idée botanique
n’en sont sorties. Il y a aussi une minérologie très étandue des colonies portugaises. Je vous ai vanté, mês chers collègues,
le Cabinet et je persiste encore plus dans cette opinion, à present que je l’ai examiné plus en détail: mais ce n’est rien,
en quelque sorte, en comparaison des magazins. Des caisses en bon nombre sont pleines dans leurs diférents tiroirs, les
unes d’insectes, les outres d’oiseaux, celles-là d’herbiers, celles-ci de minéraux, de produits chimiques, etc... (...) Toutes les
branches de l’histoire naturelle rendront autant. L’ichtyologie sera peut-être la plus riche ; l’entomologie le sera beaucoup.
Au surplus, il y a dans les magazins des boites qui contiennent 50 à 100 individus d’une seule espèce d’insecte ou d’oiseau.
(...)(«Lettre de Geofroy Saint-Hilaire aux professeurs-administrateurs du Muséum», p. 44-46).

358
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

renovado de forma a recriar o seu aspecto original, utilizando no discurso expo-


sitivo espécimes originais e uma disposição cénica da época da sua fundação e da
direcção do seu célebre director, Louis Agassiz.
Considerável número de objectos naturais provenientes da Ajuda ainda hoje
persiste, disperso por várias instituições nacionais e estrangeiras, que poderia ser
utilizado ou recriado visando a sua musealização contemporânea. Nas secções de
Zoologia e de Antropologia, do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra,
estão depositados vários exemplares, a maior parte deles enviados directamente
para a Universidade em 1806, e noutras datas; no Museu Maynense da Acade-
mia das Ciências de Lisboa existem também, em número mais reduzido, alguns
exemplares que terão icado na Academia aquando da transferência do Museu
de Lisboa para a Escola Politécnica em 1858, mas também outros que terão lá
chegado já após terem ido para a Escola Politécnica, como o caso de um exemplar
de Periquito do Brasil; e, caso singular, identiicado recentemente, existe também
um exemplar de hraupis ornata Sparrman, 1789, em mau estado de conservação
no Museu de História Natural do Colégio Militar de Lisboa, para onde terá sido
enviado no inal do século XIX conjuntamente com mais exemplares zoológicos
do Museu de Lisboa72.
No estrangeiro, referência obrigatória ao acervo do Muséum National d’Histoire
Naturelle de Paris, que possui várias dezenas de exemplares zoológicos de origem
lusitana, boa parte espécimes-tipo e espécimes icónicos do Gabinete73, mas tam-
bém herbários e, muito provavelmente, alguns exemplares geológico-mineralógi-
cos. Contudo, a nosso ver, não seria isento de controvérsia o pedido de devolução
destes exemplares, atendendo ao estado presente, de preservação e estudo, das co-
lecções nacionais. Os exemplares da Ajuda actualmente depositados nas colecções
parisienses são, para além de especímenes históricos e biológicos de grande valia
intrínseca, notáveis porque inseridos num contexto museológico e cientíico que
permite o seu apropriado estudo e correcta conservação. Parece indiscutível que as
nossas colecções se encontram bastante incompletas e diminuídas no que toca às
faunas a que as colecções da Ajuda em Paris se reportam: brasileira e sul-america-

72 De acordo com o documento Div- 497 do AHMB, “Lista dos animaes cedidos pelo Museu de Lisboa ao Colégio Mi-
litar - Abril de 1880”, este exemplar terá sido enviado do Museu de Lisboa, em 1880 para o Colégio Militar. O
envio de material zoológico do Museu de Lisboa para estabelecimentos de ensino nacionais era prática comum.
Por vezes, como no caso do periquito brasileiro já referido, alguns exemplares da “Colecção Antiga”, ou seja, da
Ajuda, faziam parte desses envios.
73 Durante os meses de Setembro de 2011 e de Fevereiro de 2012, Luis Ceríaco procedeu, no Muséum parisiense, à
localização e identiicação dos exemplares de vertebrados. Na sua maioria encontram-se em boas condições e com
a proveniência bem identiicada como exemplares da Ajuda. Alguns destes espécimes foram já alvo de publicações
posteriores a esta investigação (Ceríaco in press a; Ceríaco & Bour in press), encontrando-se no entanto a ser
preparada uma publicação com a lista total dos exemplares (Ceríaco in prep.)

359
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

na. Assim sendo, o regresso destes exemplares a Portugal resultaria na sua privação
para centenas de investigadores de todo o mundo que utilizam estes especímenes,
comparando-os in situ com as longas séries de exemplares semelhantes que se
encontram no Muséum. Por outro lado, em Portugal eles icariam necessariamen-
te relegados para o seu interesse histórico, pois estariam descontextualizados e
afastadas das principais rotas e centros de investigação desta tipologia faunística.
No entanto, pareceria adequado e oportuno preparar uma exposição temporária
desses exemplares na Ajuda, prevendo-se a produção de réplicas para exposição
no novo espaço a musealizar.
A principal questão que se levanta neste projecto é o da natureza da recriação,
conceito que consequentemente implicará a escolha de um entre vários cenários
possíveis, e que terá também ela consequências na seriação dos objectos a serem
expostos ou utilizados, visando a sua fruição e uso pelo público em geral e pela
comunidade cientíica em particular. A concepção de um Museu de História Na-
tural ou, mais apropriadamente, de um Gabinete de História Natural, implica a
existência de uma colecção exposta (aqui simultaneamente colecção de estudo),
enquadrada por um discurso museológico e pedagógico destinado a públicos tão
diversiicados. A criação deste equipamento cultural permitiria a incorporação
a título deinitivo, ou apenas o contrato de depósito temporário, de espécimes
setecentistas e oitocentistas ainda hoje existentes nas diversas instituições que
algum dia beneiciaram do labor cientíico do Gabinete da Ajuda. Seja como for,
defendemos aqui que este projecto museal se revestiria sempre de um carácter
mais histórico, cenográico e pedagógico, do que propriamente de investigação.
Com os dados apresentados, bem como com as actuais técnicas cenográicas e
computacionais, ser-nos-ia possível recriar de forma particularmente iel e de-
talhada o mais importante Gabinete de História Natural português da segunda
metade de setecentos e das primeiras décadas de oitocentos. De inquestionável
interesse para a história da ciência, para a museologia, para a divulgação cientíica,
mas também para o próprio turismo no eixo urbano Belém/Ajuda, este espaço
poderá constituir uma mais-valia para o país e para a ciência nacional, património
cultural único, hoje sob a tutela da Universidade de Lisboa.

360
UM PROJECTO DE MUSEALIZAÇÃO PARA O REAL GABINETE DE HISTÓRIA NATURAL DA AJUDA (1768-1836).
HISTÓRIA, COLECÇÕES, ESPAÇOS

REFERÊNCIAS
ALMAÇA, Carlos, Baleias, focas e peixes-bois na história natural Portuguesa. Museu Bocage, Lisboa, 1998
BRIGOLA, João, Colecções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII. Fundação Calouste
Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2003
BRIGOLA, João, Os Viajantes e o ‘Livro dos Museus’. Dafne Editora, Porto, 2010
CERÍACO, Luís, BRIGOLA, João & OLIVEIRA, Paulo, “Os Monstros ainda existem? Os Monstros
de Vandelli e o percurso das colecções de História Natural do séc. XVIII” In Livro de Actas do Congresso
Luso Brasileiro de História da Ciência. Universidade de Coimbra, pp. 991-1005, 2011
CERÍACO, Luís & MARQUES, M., “Peixes em Herbário. Uma técnica cientíico- museológica do
século XVIII. In Livro de Actas do Congresso Luso Brasileiro de História da Ciência. Universidade de
Coimbra, pp. 1204-1219, 2011
CERÍACO, Luís, In press (a). “O Arquivo Histórico do Museu Bocage e a História da História Natural
em Portugal”. In: Alves, M.J., Cartaxana, A., Correia, A. M. & Santos-Reis, M. (eds.), Contributo do
Professor Carlos Almaça para o Ensino e Investigação da Biologia em Portugal. Museu Nacional de História
Natural e da Ciência/Centro de Biologia Ambiental/Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
CERÍACO, Luís, in press (b). “O Lagarto Gigante de Cabo-Verde, Chioninia (ex. Macroscincus) coctei
Duméril & Bibron, 1839: História Natural de uma espécie extinta/Cape-Verde Giant Skink, Chioninia
(ex. Macroscincus) coctei Duméril & Bibron, 1839: Natural history of an extnct species”. In Hazevoet et
al. he Natural History of the Desertas - Santa Luzia, Branco, Raso
CERÍACO, Luís, in press (c). Sobre um Monstro Bicorpóreo Eborense do século XVIII. Midas
CERÍACO, Luís & BRIGOLA, João, in press. “Coleccionismo naturalista na Évora do séc. XIX: as
colecções como fundamento da Teologia Natural no discurso de Frei Manuel do Cenáculo”. In Actas do
Seminário Internacional Formas e Representações do Império.
CERÍACO, Luis & BOUR, Roger, in press. Schweigger’s (1812) Chelonian types from the extinct
eighteenth century Portuguese “Royal Cabinet of Natural History of Ajuda”: some contributions for
their identiication and nomenclatural implications. Zootaxa
DAGET, Jean & SALDANHA, Luís, Histoires Naturelles Franco-Portugaises du XIXe Siécle. Publicações
Avulsas do I.N.I.P., Lisboa, 1989
FERREIRA, J. Bethencourt, “Sur quelques exemplaires de Tortues gigantesques du Musée de l’École
Polytechnique de Lisbonne « Bulletin de la Société Portugaise des Sciences Naturelles, Lisbonne, I (3), pp.
80-84, 1907
FERREIRA, J. Bethencourt, « Sur une Tortue marine du Muséum Bocage (Lisbonne) », Bulletin de la
Société Portugaise des Sciences Naturelles, Lisbonne, V (1), pp. 59-62, 1911
FERREIRA, J. B., “Trabalhos de Erpetologia do Museu Bocage I e II: Emydosáurios e Tartarugas da
Colecção Antiga, provenientes da exploração do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira no Norte do Brasil
(1783-1793)”. Jornal de Sciencias Matemáticas, Físicas e Naturais, 3ª Série, nº 14, pp.77–89, 1923
FRETEY, J. & BOUR, R. (1980). “Redécouverte du type de Dermochelys coriacea (Vandelli)
(Testudinata, Dermochelydae)”. Bolletino di zoologia, nº 47:1-2, pp. 193-205, 1980

361
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Figura 1 - Jardim Botânico e Gabinete na actualidade. (a) Imagem geral de fonte no Jardim;
(b) Espécimen original de Dracaena de Vandelli, alvo de publicação da época; (c) Portão de acesso ao Gabinete;
(d) Perspectiva exterior do Gabinete, na Rua do Jardim Botânico; (e) Frontão vestibular com inscrição latina
referente à Teologia Natural; (f ) Escadas de acesso ao Gabinete. Fotograias por Luis Ceríaco.

362
Figura 2 - Esquema da organização geral da primeira sala do Gabinete. Esquema por Luis Ceríaco.

Figura 3 - Representação artística de uma perspectiva da primeira sala do gabinete, a sala dedicado ao reino
mineral. Ilustração por Gabriel Roque, seguindo instrucções de Luis Ceríaco.

363
Figura 4 - Esquema da organização geral da parte superior da segunda sala do Gabinete. Muitos dos animais
representados são reproduções directas daqueles presentes no AHMB. Esquema por Luis Ceríaco.

Figura 5 - Esquema da organização geral da parte inferior da segunda sala do Gabinete. Muitos dos animais
representados são reproduções directas daqueles presentes no AHMB. Esquema por Luis Ceríaco.

364
Os acervos do Arquivo de Ciência e Tecnologia
Paula Meirelesa e Madalena Ribeirob 1

O ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

A Fundação para a Ciência e a Tecnologia dispõe de um espólio arquivístico


da maior relevância para o estudo da história da ciência em Portugal, nas suas
múltiplas vertentes.
Trata-se de um acervo único e de inegável interesse e qualidade histórica, que
acompanha e repercute a atividade cientíica portuguesa desde os meados do século
XX até à atualidade, a forma como se desenharam e desenvolveram estratégias e
políticas dessa atividade e as relações que se estruturaram em sede nacional e inter-
nacional entre os diversos organismos, públicos ou privados, ligados à vida cientíica2.
Tendo como objetivo o tratamento, a organização e a disponibilização deste
espólio, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia celebrou um acordo de cola-
boração com o Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2008. Desde então, um
grupo de técnicos, arquivistas e investigadores tem dedicado o seu trabalho e in-
vestigação neste projeto.
O trabalho já realizado vem conirmar o interesse e valorizar a existência do
Arquivo de Ciência e Tecnologia (ACT), o primeiro Arquivo do género existente
em Portugal, e, nesse sentido, enaltecer e reforçar a responsabilidade da sua salva-
guarda como fonte primária essencial para a história da organização da atividade
cientíica em Portugal desde meados do século XX, tanto na sua dimensão nacio-
nal como internacional.
O Arquivo de Ciência e Tecnologia da FCT foi formalmente inaugurado e
aberto ao público, a 16 de dezembro de 2011, numa cerimónia que contou com a

1 a Instituto de História Contemporânea- FCSH/UNL e Fundação para a Ciência e a Tecnologia – paula.meire-


les@fct.pt; b Instituto de História Contemporânea da FCSH-UNL e Fundação para a Ciência e a Tecnologia
– madalena.ribeiro@fct.pt
2 Cf. Rollo, Maria Fernanda, Para a história e estudo da ciência e da organização da ciência em Portugal. O Arquivo de
Ciência e Tecnologia da FCT, Ingenium, 2012, 12, p. 106.

365
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Fig. 1 - Entrada do ACT

presença do Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, da Secretária de Estado


da Ciência, Leonor Parreira, do Professor José Mariano Gago, do Dr. Mário Soa-
res, do Professor José Mattoso, entre outras personalidades.
É atribuição do Arquivo de Ciência e Tecnologia o tratamento, a organização,
a conservação, a comunicação e a divulgação do acervo documental à guarda da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia3. Para além deste conjunto de acervos, o
ACT pretende, igualmente, recolher e disponibilizar à comunidade outros espólios,
produzidos ou recebidos por pessoas e instituições que (i) efetuam investigação
cientíica, (ii) contribuem para o progresso tecnológico e (iii) realizam um conjunto
de outras atividades diretamente relacionadas com a investigação cientíica como o
planeamento, o inanciamento, a cooperação internacional, a organização e divul-
gação de documentação e informação cientíica, entre outros.

OS ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

O denominador comum de uma parte signiicativa da documentação existente


no Arquivo de Ciência e Tecnologia diz respeito à promoção, inanciamento e
acompanhamento da investigação cientíica e tecnológica em Portugal. Esta ativi-
dade foi levada a cabo, primeiro pela Junta Nacional de Investigação Cientíica e

3 Regulamento do Arquivo Histórico de Ciência e Tecnologia da FCT. Despacho nº 34/CD/2011, de 5 de


Dezembro. Disponível em http://www.fct.pt/docs/reg_AHCT_2011.pdf

366
OS ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Tecnológica, depois pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia4 e, em simultâneo


com ambas, por um conjunto de outras entidades públicas com atribuições especí-
icas, entretanto extintas.
Para além dos acervos institucionais, o Arquivo de Ciência e Tecnologia tem vin-
do a integrar espólios pessoais de cientistas, investigadores e académicos, o que tem
proporcionado a valorização e o enriquecimento do seu património arquivístico.5
De seguida, e em jeito de um contributo para um guia de fundos, faremos uma
breve referência aos acervos existentes no Arquivo de Ciência e Tecnologia, facul-
tando alguns dados sobre os produtores, nomeadamente as datas de existência e as
respetivas missões, sendo também referido o âmbito e o conteúdo da documentação.

QUADRO 1 – ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Nome Datas * Âmbito de atuação

Comissão INVOTAN 1959- Cooperação internacional no âmbito da NATO

Junta Nacional de Investigação Financiamento da investigação científica;


1967-1997
Científica e Tecnológica cooperação internacional

Instituto Nacional de Investigação Financiamento da investigação científica no


1976-1992
Científica quadro universitário; cooperação internacional

Gabinete de Gestão do PRAXIS XXI 1994-2001 Gestão de um programa comunitário

Fundação para a Ciência Financiamento da investigação científica;


1997-
e a Tecnologia cooperação internacional

Instituto de Cooperação Científica Cooperação internacional bilateral


1997-2003
e Tecnológica Internacional e multilateral

Unidade de Missão Inovação Coordenação das políticas para a sociedade


2002-2005
e Conhecimento da informação

Gabinete de Relações Internacionais Cooperação internacional bilateral


2003-2007
da Ciência e do Ensino Superior e multilateral

UMIC – Agência para a Sociedade Coordenação das políticas para a sociedade


2005-2012
do Conhecimento da informação

Espólio Mariano Gago 1978-1992 Presidente da JNICT

* Para os espólios institucionais, as datas correspondem às datas de existência das instituições; no caso do espólio
pessoal, corresponde à data de produção da documentação.

4 O arquivo da JNICT e da FCT são presentemente os fundos de maior dimensão do ACT.


5 Para além do tratamento e disponibilização do património documental à guarda da FCT, o ACT tem apoiado
o tratamento e disponibilização de arquivos de C&T pertencentes a outros organismos, com interesse para o
conhecimento e estudo da história da ciência e das políticas cientíicas em Portugal, como é o caso do arquivo
da Junta de Energia Nuclear (1954-1979), em tratamento para disponibilização à comunidade cientíica e ao
público em geral.

367
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Acervo da Comissão INVOTAN


A Comissão INVOTAN foi criada em 1959, na Presidência do Conselho, com
o objetivo de coordenar e apoiar as atividades cientíicas realizadas no âmbito da
Organização do Tratado do Atlântico Norte, tendo funcionado dentro de diferen-
tes entidades. Em 1970, a sua estrutura foi integrada na Junta Nacional de Investi-
gação Cientíica e Tecnológica, onde esteve até 1997, data de extinção da JNICT.
Entre 1997 e 2003, a Comissão funcionou no Instituto de Cooperação Cientíica
e Tecnológica Internacional; entre 2003 e 2007, no Gabinete de Relações Inter-
nacionais da Ciência e Ensino Superior; e, por im, desde 2007, está na Fundação
para a Ciência e a Tecnologia.
Apesar das mudanças de tutela, o fundo da Comissão INVOTAN mantém a
continuidade desejada, incluindo documentação sobre os vários programas, quer
de inanciamento, quer de intercâmbio cientíico, bem como os próprios processos
de inanciamento.

Acervo da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica


A Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica ( JNICT), existiu
entre 1967 e 1997, tendo por funções a coordenação, o planeamento e o fomento
da investigação cientíica e tecnológica no território nacional.
Os fundos produzidos quer pela JNICT, quer pela sua sucessora e herdeira di-
recta, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, são os fundos de maior dimensão
do Arquivo de Ciência e Tecnologia. Uma parte signiicativa da documentação
reporta-se a processos de apoio de projectos, de bolsas, de unidades de investigação
e de equipamento cientíico. Contém, também, documentação relativa à imple-
mentação de políticas e estratégias cientíicas em Portugal e à cooperação interna-
cional na área da C&T.
Com a extinção da JNICT, a quase totalidade das suas atribuições transitaram
para a então criada Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que herdou, também,
uma parte do seu quadro de pessoal e do seu património, nomeadamente arquivístico.

Acervo do Instituto Nacional de Investigação Científica


O Instituto Nacional de Investigação Cientíica (INIC), existiu entre 1976 e
1992, na dependência do Ministério da Educação e da Ciência, tendo por missão
contribuir para o fomento da investigação cientíica num quadro universitário e
para a formulação, coordenação e realização da política cientíica nacional, bem
como colaborar na deinição e execução dos planos de preparação do pessoal qua-
liicado necessário ao desenvolvimento do país.

368
OS ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

No arquivo do INIC reúnem-se processos de inanciamento dos centros de


investigação existentes nas várias universidades nacionais, processos de bolseiros
e processos de intercâmbio cientíico (acordos, convénios cientíicos bilaterais e
multilaterais).
O diploma de extinção do INIC decretou a transferência das suas principais
atribuições, bem como do seu arquivo central, para a JNICT.

Acervo do Gabinete de Gestão do PRAXIS XXI


O Gabinete de Gestão da Intervenção Operacional PRAXIS XXI foi a estrutu-
ra de apoio técnico da intervenção operacional PRAXIS XXI (1994-1999), criado
por despacho conjunto do Ministro das Finanças e do Ministro do Planeamento
e da Administração do Território, em 1994. As competências do Gabinete tradu-
ziam-se no apoio aos gestores e à Unidade de Gestão do PRAXIS XXI.
O fundo do Gabinete de Gestão do PRAXIS XXI inclui, entre outros, docu-
mentação relativa ao acompanhamento da Intervenção Operacional PRAXIS XXI,
documentação sobre o relacionamento com as entidades responsáveis pela gestão
técnica e administrativa das várias Medidas e Acções da Intervenção Operacional,
documentação relativa à elaboração de vários programas de inanciamento e alguns
processos de apoio.
O fundo do Gabinete de Gestão do PRAXIS XXI foi herdado pela Fundação,
em 2001.

Acervo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia


A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), criada em 1997, é a sucessora
e herdeira directa da JNICT, mantendo-se em atividade.
O fundo da FCT e o fundo da sua antecessora, a JNICT, constituem os fundos
de maior dimensão do Arquivo de Ciência e Tecnologia, sendo estes indissociáveis
na medida em que quase todos os processos em curso, aquando da extinção da
JNICT, foram depois continuados e encerrados na FCT. Uma parte signiicativa
da documentação reporta-se a processos de apoio de projectos, de bolsas, de unida-
des de investigação e de equipamento cientíico. Contêm, também, documentação
relativa à implementação de políticas e estratégias cientíicas em Portugal e à coo-
peração internacional na área da C&T.

Acervo do Instituto de Cooperação Científica e Tecnológica Internacional


O Instituto de Cooperação Cientíica e Tecnológica Internacional (ICCTI),
criado em 1997, resultou da remodelação institucional que criou o Ministério da

369
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Ciência e Tecnologia. Tal como o nome da entidade sugere, foi a instituição pública
responsável por dirigir, orientar e coordenar as acções de cooperação internacional
no domínio da ciência e da tecnologia. Junto do ICCTI passou, também, a funcio-
nar a Comissão INVOTAN, até então integrada na JNICT.
Uma parte signiicativa do fundo do ICCTI inclui processos de cooperação
bilateral resultantes de protocolos de colaboração e de acordos cientíicos e cul-
turais com outras entidades, nomeadamente congéneres, e processos de coope-
ração multilateral, resultantes da participação ou representação nacional em re-
des e instituições internacionais, nomeadamente, a Organização Europeia para
a Investigação Nuclear (CERN), a Conferência Europeia de Biologia Molecular
(EMBC), o Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), a Organização
Europeia de Biologia Molecular (EMBO), a Agência Espacial Europeia (ESA),
o Observatório Europeu do Sul (ESO), a Infraestrutura Europeia de Radiação de
Sincrotão (ESRF), o Centro Europeu de Informação sobre Ciência e Tecnolo-
gia Marinha (EurOcean), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE) e a Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educa-
ção e Cultura (UNESCO).
Após a extinção do ICCTI e transferência das suas atribuições para o Gabinete
de Relações Internacionais da Ciência e do Ensino Superior (GRICES), o arqui-
vo produzido pelo ICCTI, e pela Comissão INVOTAN, passaram para esta nova
instituição. Em 2007, na sequência da extinção do GRICES, e da passagem de
uma parte das suas atribuições para a FCT, assistiu-se à transferência dos arquivos
do ICCTI e da Comissão INVOTAN, e de uma parte do arquivo do GRICES
para a FCT.

Acervo da Unidade de Missão Inovação e Conhecimento


A Unidade de Missão Inovação e Conhecimento criada em 2002, na depen-
dência do Ministro-adjunto do Primeiro-Ministro, foi a estrutura de apoio ao de-
senvolvimento da política governamental em matéria de inovação, sociedade da
informação e governo electrónico.
Em 2005, o trabalho desta Unidade de Missão foi continuado pela UMIC –
Agência para a Sociedade do Conhecimento, instituição que herdou o seu arquivo.

Acervo do Gabinete de Relações Internacionais da Ciência e do Ensino Superior


O Gabinete de Relações Internacionais da Ciência e do Ensino Superior
(GRICES) foi criado em 2003, na dependência do Ministério da Ciência e do
Ensino Superior. Tinha por funções o planeamento, a coordenação e o apoio téc-

370
OS ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

nico nas áreas dos assuntos comunitários e das relações internacionais nos do-
mínios da ciência, da tecnologia e do ensino superior. O GRICES absorveu as
funções quer do Instituto de Cooperação Cientíica e Tecnológica Internacional,
quer do Gabinete dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais do Ministé-
rio da Educação, então extintos. Junto do GRICES passou também a funcionar a
Comissão INVOTAN.
A parte do arquivo do GRICES que a Fundação herdou é muito semelhante
à do arquivo do ICCTI: processos de cooperação bilateral resultantes de proto-
colos de colaboração e de acordos cientíicos e culturais com outras entidades,
nomeadamente congéneres, e processos de cooperação multilateral, resultantes
da participação ou representação nacional em redes e instituições internacionais,
acima nomeadas.
A transferência de uma parte do arquivo do GRICES para a Fundação – e,
consequentemente, do arquivo do ICCTI e da Comissão INVOTAN – aconteceu
em 2007, resultado da extinção do GRICES e da distribuição das suas atribuições
pelo Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais
e pela FCT.

Acervo da UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento


A UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento, IP foi a entidade
pública responsável pela coordenação das políticas para a sociedade da informação.
Exerceu funções entre 2005 e 2012, tendo sucedido à Unidade de Missão Inovação
e Conhecimento.
O fundo da UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento foi integrado
no Arquivo de Ciência e Tecnologia da FCT, na sequência da extinção da UMIC
e transferência de uma parte das suas atribuições para a Fundação para a Ciência
e a Tecnologia, em 2012.

Espólio Mariano Gago


O Espólio Mariano Gago é composto por 70 pastas com documentação produ-
zida pelo Professor José Mariano Rebelo Pires Gago, no exercício das suas funções
enquanto Presidente da JNICT (1986-1989). Físico de formação, especializado
em física das partículas, o Professor Mariano Gago foi, também, Presidente da Jun-
ta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnológica, entre 1986 e 1989, Ministro
da Ciência e Tecnologia, entre 1995 e 2002 e Ministro da Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior, entre 2005 e 2011.

371
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

Destaca-se a documentação sobre o relacionamento de Portugal com a O.T.A.N.


e com Cabo Verde e a documentação sobre o planeamento, a gestão e o acompa-
nhamento das atividades da Junta Nacional de Investigação Cientíica e Tecnoló-
gica, nomeadamente sobre os vários programas de inanciamento.
O Espólio Mariano Gago foi doado à Fundação pelo próprio, mediante celebra-
ção de um protocolo, em Dezembro de 2011.

PROJETO DE TRATAMENTO DOCUMENTAL

Como referimos acima, em 2008, a FCT e o Instituto de História Contempo-


rânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, celebraram um acordo, com o propósito de promover a organização, o
tratamento e a divulgação do património documental à guarda da FCT e, desde
então, um grupo de arquivistas, investigadores e técnicos tem dedicado o seu tra-
balho a este projeto.
A documentação produzida pela JNICT, e depois pela FCT, nunca fora alvo de
qualquer tratamento arquivístico. Por outro lado, o boom documental das últimas
décadas, bem como a progressiva integração de acervos das instituições públicas
extintas referidas acima, levou a que no início do projecto tivessem sido conta-
bilizados cerca de 4 mil metros lineares de documentação, dispersos por vários
depósitos.
Iniciado o tratamento arquivístico o primeiro passo foi a elaboração do Relatório
de Avaliação de Documentação Acumulada para a Fundação para a Ciência e a Tecno-
logia, apresentado em Janeiro de 2010 à Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e
das Bibliotecas (DGLAB), entidade pública responsável pelo sistema de arquivos
nacional, que tem apoiado e acompanhado todo este projecto.
O parecer favorável da DGLAB (recebido em Março de 2010) permitiu dar
continuidade ao trabalho: eliminação de 500 metros de documentação sem valor
arquivístico e início da descrição e inventariação da documentação de conservação
permanente. O sistema utilizado para o trabalho de descrição e inventariação é o
Digitarq, aplicação utilizada em vários arquivos históricos portugueses, que obede-
ce às principais normas de descrição internacionais.
O trabalho de descrição, que decorre atualmente, envolve, entre outras, as se-
guintes tarefas: descrição e elaboração de um inventário, seguindo as orientações
preconizadas nas ISAD(G) e na I Parte das Orientações para a Descrição Arquivística;
elaboração do estudo e descrição orgânico-funcionais das entidades produtoras

372
OS ACERVOS DO ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

da documentação, seguindo as orientações preconizadas nas ISAAR(CPF) e na


II Parte das Orientações para a Descrição Arquivística. O inventário do Arquivo de
Ciência e Tecnologia, em permanente crescimento, está disponível em http://www.
fct.pt/arquivo/ .
Entretanto, na segunda metade de 2011, a Fundação conseguiu reunir prati-
camente todo o seu espólio arquivístico, disperso por vários depósitos, num único
espaço, situado nas caves do edifício sede, na Av. D. Carlos I, em Lisboa. No inal
desse ano, a 16 de dezembro, como já referimos, foi inaugurado o Arquivo de Ci-
ência e Tecnologia.

*
O trabalho de organização do Arquivo de Ciência e Tecnologia da FCT tem
proporcionado a (re)descoberta de uma documentação inestimável para o estudo
da temática geral da política e da organização da ciência em Portugal e das diversas
áreas cientíicas e instituições associadas, entre diversas outras dimensões, compro-
vando a importância deste espólio.
Trata-se, conforme descrito, de um conjunto documental único, de grande valor
intrínseco e essencial para o aprofundamento do estudo da atividade cultural e
cientíica portuguesa desde os meados do século XX até à atualidade em múltiplos
domínios.
O facto de se encontrar preservado, organizado e disponível à consulta pública, a
que acresce a possibilidade de integração de espólios pessoais, valorizam ainda mais
a ação e o trabalho promovido pela FCT, contando com a colaboração e o apoio
cientíico do Instituto de História Contemporânea e o acompanhamento técnico
da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas.
Reira-se, por im, a adesão do Arquivo da FCT à Rede Portuguesa de Arqui-
vos, partilhando, agora também por essa via, a missão da divulgação do património
arquivístico que a FCT tem à sua guarda, tornando-o acessível a partir de redes de
informação internacionais, como a Europeana ou a Apenet.

373
ESPAÇOS E ACTORES DA CIÊNCIA EM PORTUGAL (XVIII-XX)

BIBLIOGRAFIA
DIREÇãO-GERAL DE ARQUIVOS – GRUPO DE TRABALHO DE NORMALIZAÇãO DA
DESCRIÇãO EM ARQUIVO (2007) – Orientações para a descrição arquivística. Lisboa: Direção-
Geral de Arquivos. Disponível em < http://dgarq.gov.pt/iles/2008/10/oda1-2-3.pdf> (acedido em
23/04/2012).
FUNDAÇãO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA. http://www.fct.pt/.
ROLLO, Maria Fernanda, MEIRELES, Paula, RIBEIRO, Madalena, BRANDãO, Tiago (2012) –
História e Memória da Ciência e da Tecnologia em Portugal. O Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, XXV, pp. 233-261.
ROLLO, Maria Fernanda (2012) – Para a história e estudo da ciência e da organização da ciência em
Portugal. O Arquivo de Ciência e Tecnologia da FCT, Ingenium, 12, pp. 106-108.

374

Você também pode gostar