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SPIDER-MAN: INTO THE SPIDER-VERSE: UMA ANÁLISE FÍLMICA

COM
BASE EM FERRAMENTAS DE PERCEPÇÃO

Murilo Batista de Almeida

Resumo

Neste trabalho, foi analisado o filme ​Spider-Man: Into the Spider-Verse​, mais
especificamente as técnicas utilizadas na linguagem visual do filme e a forma como tais
técnicas, assim como o arco dramático do filme são derivados da linguagem das
histórias em quadrinhos, levando à conclusão de que o filme mescla elementos de
quadrinhos e produções audiovisuais criando uma linguagem própria distinta

Introdução

Contar histórias pode ser definido como a apresentação de vários eventos.


Apesar de verdadeira, essa definição é incompleta, pois para configurar uma narrativa,
vulgo uma história, é necessário que tais eventos estejam relacionados entre si. Mais
especificamente, de acordo com David Bordwell e Kristin Thompson em “A Arte do
Cinema: Uma Introdução”, é necessário que exista uma relação de espaço, tempo e de
causa e efeito.
Transmitir tal relação entre os eventos que compõem a narrativa para o leitor ou
espectador se dá de diferentes formas dependendo da mídia através da qual a história é
apresentada, mas em todas elas isso é feito com base na tendência inata do ser humano
em tentar relacionar os eventos apresentados, mesmo que estes sejam aleatórios.
Utilizando tais tendências humanas e somando a isso outros símbolos
específicos que os indivíduos são capazes de interpretar, conscientemente ou não,
devido a um condicionamento cultural ou por familiaridade com a mídia em questão,
por exemplo, forma-se uma biblioteca de signos e seus significados.
De fato, Saussure afirma que a língua é, em parte, um conjunto de convenções
necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir o exercício da linguagem. Em
outras palavras, a mencionada biblioteca de signos e significados forma um idioma, que
pode ser explorado pelos criadores de uma obra para transmitir diversos aspectos da
narrativa, desde a relação de tempo, espaço e causa e efeito até inúmeras outras
informações, sejam elas essenciais ou não. A esse exercício, quando aplicado em mídias
consumidas totalmente ou parcialmente através do sentido da visão, dá-se o nome de
linguagem visual.

Metodologia

Diferentes mídias visuais apresentam diferentes linguagens que se utilizam das


capacidades distintas de cada mídia. Além disso, a linguagem visual de uma única mídia
é vasta o suficiente para ser subdividida em outra categoria, gênero.
Santamarina e Heredero definem um gênero como sendo um estereótipo
reconhecido socialmente e estabelecido na indústria, cujos códigos sustentam
simultaneamente o feedback do reconhecimento social desse gênero, a evolução de suas
diferentes configurações históricas e a articulação de sua textualidade visual, dramática
e narrativa, sendo este último pilar da definição uma representação de linguagem visual.
Quando aplicado a produções audiovisuais, tal conceito é frequentemente chamado de
cinematografia.
De acordo com Blain Brown, cinematografia é uma palavra com origem do
grego, e significa “escrevendo com o movimento”, ou seja, é o processo de expressar
visualmente ideias não verbais, como emoções. O autor define também como “técnica
cinemática” o conjunto de métodos e técnicas utilizadas para atingir esse objetivo.
Percebe-se portanto que, apesar de “técnica cinemática” referir-se
especificamente às técnicas utilizadas para criar cinematografia, um conceito atrelado à
ideia de movimento, a mesma definição é perfeitamente válida para atingir outros tipos
de linguagens visuais que não incluam movimento.
Especificamente nas histórias em quadrinhos, é possível identificar tanto
técnicas que se distinguem quanto outras que são similares às utilizadas por produções
audiovisuais.
Segundo Scott McCloud, é possível definir o conjunto dessa linguagem em 5
escolhas feitas pelo criador: Momento, pois na ausência de movimento é necessário
escolher um momento que melhor ilustre a ação como um todo; Quadro, os ângulos e
enquadramentos utilizados para cada ilustração na página; Imagem, a forma como a
ilustração será renderizada pelo artista; Palavra, para que informação escrita seja
complementar à visual evitando ser redundante; e Fluxo, determinando como o olhar do
leitor será guiado pela página e pelos balões de dos quadros.
Enquanto conceitos como os de quadro e palavra são muito similares aos
utilizados na escolha de enquadramentos e planos de câmera e nos diálogos de uma
produção audiovisual, outros como momento e fluxo são bastante característicos da
mídia dos quadrinhos sem uma técnica similar de fácil correlação em filmes.
Imagem, no entanto, se destaca por ser um elemento da linguagem dos
quadrinhos que está presente também nas animações, mas não nos filmes ​live-action​.
Além das técnicas propositalmente utilizadas pelos criadores na linguagem
visual dos quadrinhos, existem outros aspectos inatos da mídia que fazem parte dessa
linguagem de forma não-proposital, como por exemplo a estética criada pela impressão
da tinta no papel que, se analisada de perto, principalmente em publicações antigas, é
formada por pequenos pontos coloridos.

Desenvolvimento

Em ​Spider-Man: Into the Spider-Verse,​ acompanhamos a histórias de Miles


Morales, um jovem meio afroamericano meio latino que, vivendo em um mundo onde o
Homem-Aranha é um super-herói famoso com anos de carreira, se vê subitamente,
devido à morte do herói, como o responsável por terminar sua missão, e o único capaz
de substituí-lo devido aos seus recém-adquiridos super poderes.
No filme vemos a dificuldade de Miles de se enquadrar nos padrões esperados
por seu pai, Jefferson, um policial. O jovem é muito mais ligado ao seu tio, Aaron, que
tem uma personalidade muito mais liberal e ajuda Miles a se expressar através de
grafitti.
Durante a história, Miles é auxiliado por versões de outras dimensões do
Homem-Aranha e descobre que seu tio Aaron é na verdade um super vilão. De acordo
com Kristine Belson, presidente da Sony Pictures Animation, em um trecho de
Spider-Man: Into the Spider-Verse: The Art of the Movie, Miles tenta descobrir quem
ele é como um jovem em relação ao seu pai e tio e ainda tem que lidar com novas
expectativas e responsabilidades.
Miles não consegue controlar seus poderes e cumprir sua missão como herói até
o momento em que ele consegue decidir quem ele realmente é, finalmente tomando seu
lugar como super herói, um defensor do certo e justo assim como seu pai, porém ainda
assim atuando como um vigilante mascarado, representando, em parte, a rebeldia e
necessidade de expressão que herdou de seu tio.
O arco do filme pode ser desenhado pelos 3 frames abaixo:

Cena 1: Miles, envergonhado e aborrecido pela lição de moral de seu pai.

Cena 2: Miles e Aaron cientes da identidade secreta um do outro


Cena 3: Miles decidido a tomar seu lugar como o próximo Homem-Aranha

Além de um arco dramático que gira em torno de um conceito clássico do


gênero de super heróis, a posição do herói como um vigilante, defensor da lei e ao
mesmo tempo fora da lei, o filme desenvolve uma linguagem visual própria igualmente
enraizada nas histórias em quadrinho que dão origem à história. Kristine Belson
menciona como explorar a linguagem gráfica dos quadrinhos na animação foi uma
tentativa de trazer uma ideia nova à mesa, subvertendo expectativas e apresentando algo
que os espectadores nunca haviam visto antes.
Chris Miller, produtor executivo do filme, menciona no livro oficial da arte do
filme como, por exemplo, há momentos em que o quadro é quebrado em vários painéis,
assim como nas histórias em quadrinhos, ou ​frames ​que apresentam uma composição
estilizada e incomum. Tais técnicas não apenas aproximam o filme dos quadrinhos de
um ponto de vista estético, mas servem como ferramenta alternativa para,
respectivamente, dar foco em uma ação pequena ou em várias ações simultâneas e
aumentar o impacto de quadros particularmente marcantes enfatizando um momento em
particular.
Vários painéis em um único quadro

Quadro estilizado para enfatizar um momento

Apenas com estes dois primeiros exemplos de técnicas dos quadrinhos


adaptados para a animação já percebe-se a aplicação de conceitos da linguagem dos
quadrinhos de acordo com as definições de McCloud.
Os vários painéis em um quadro não apenas enfatizam o conceito de momento,
mas principalmente o de fluxo, pois junta quatro imagens distintas em uma única
composição que precisará guiar o olhar do espectador. Já o quadro estilizado enfatiza
tanto o conceito de momento, escolhendo um quadro dentre os vários que compõem o
movimento da animação assim como seria necessário fazer nos quadrinhos, mas
também traz o conceito de imagem, pois renderiza a imagem de forma distinta e
impactante.
Outra técnica encontrada no filme é o uso da estética de quadrinhos antigos,
onde a impressão da tinta colorida nem sempre era bem alinhada com a tinta preta,
resultando em cores mal-encaixadas nos contornos dos desenhos. Danny Dimian,
supervisor de efeitos visuais do filme, conta que o filme não utiliza a forma
convencional de representar o foco de uma cena, que na animação normalmente
consiste em recriar o efeito da lente uma câmera, onde elementos fora de foco ficam
borrados. Ao invés disso, o foco é criado através do alinhamento da cor com o contorno,
dando novo significado a um elemento estético dos quadrinhos.

Miles em foco, letreiro fora de foco com cores e contorno desalinhados

O filme também utiliza onomatopéias acompanhadas dos sons que elas emulam.
Enquanto que nos quadrinhos as onomatopéias são necessárias para simular o som,
unindo os conceitos de letras e momento de McCloud, pois as onomatopéias são
“palavras” que complementam a ilustração do quadro tanto quanto são uma forma de
escolher um momento no qual o som deve ser enfatizado, já apenas os sons mais
relevantes são apresentados dessa forma.
Na animação as onomatopéias são redundantes, diferente dos quadrinhos, porém
continuam exercendo sua função de sublinhar ações e momentos que, se fossem
representados apenas pela imagem e pelo som, poderiam passar despercebidos ou ser
menos impactantes.
Onomatopéia sendo utilizada para enfatizar uma ação

Considerações Finais

Enquanto uma produção audiovisual e uma animação, ​Spider-Man: Into the


Spider-Verse​ poderia ter se utilizado de uma linguagem visual comum dessa mídia e
ainda assim sem bem sucedido em apresentar a narrativa que se propõe a contar, no
entanto, o foco em apresentar algo único e distinto levou os criadores a explorar a
linguagem das histórias em quadrinhos e desenvolver novas formas de transmitir
informações ou enfatizar momentos e ações.
A grande maioria das técnicas inovadoras apresentadas no filme são empregadas
para funções similares àquelas que cumprem nos quadrinhos, sendo instantâneamente
compreendidas pelos espectadores que estão familiarizados com tal mídia, porém,
devido às propriedades inatas dessas técnicas que as levam a ser corretamente
interpretadas por leitores iniciantes nos quadrinhos, elas acabam sendo também de fácil
compreensão aos espectadores do filme que não estão familiarizados com elas.
Outras técnicas, como o uso da cor e contorno mal-encaixados para representar
foco, são apropriações de elementos estéticos do quadrinho que recebem novo
significado no audiovisual, mas, devido ao fato de gerarem um resultado final de
propriedades semelhantes ao criado pelas técnicas tradicionais que substituem, com
objetos nítidos quando em foco e pouco nítidos quando fora de foco no exemplo citado,
são também compreendidas subconscientemente com facilidade.
Pelo fato de a linguagem criada para o filme ser corretamente interpretada pelos
espectadores apesar de utilizar técnicas nunca vistas por eles nesse tipo de mídia, é
possível afirmar que os criadores foram bem-sucedidos em criar uma nova linguagem
visual, pois tal decodificação é possível mesmo apenas com os signos e significados que
os espectadores já conhecem.

Referencial Teórico

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. ​Film Art:​ an Introduction. 9th Edition.


New York: McGraw-Hill, 2010

SAUSSURE, Ferdinand. ​Curso de Lingüística Geral. ​27ª Edição. São Paulo: Cultrix,
2006

HEREDERO, Carlos; SANTAMARIA, Antonio. ​El Cine Negro​: Maduración y crisis


de la escritura clássica. 1ª Edição. Barcelona: Paidós, 1996

BROWN, Blain. ​Cinematography​: Theory and Practice. 2ª Edition. Oxford: Focal


Press, 2012

MCCLOUD, Scott. ​Making Comics:​ Storytelling Secrets of Comics, Manga and


Graphic Novels. First Edition. New York: Harper, 2006

ZAHED, Ramin. ​Spider-Man: Into the Spider-Verse:​ The Art of the Movie. First
Edition. London: Titan Books, 2018

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