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Inter-relações entre gosto e gênero cinematográfico


Marília Rezende

Inter-relações entre gosto e gênero


cinematográfico

Marília Rezende1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: Neste artigo pretendemos apontar as relações entre


gênero fílmico e gosto do público, demonstrando como o gênero é
capaz de modelar expectativas e como a percepção da audiência
pode afetar a indústria cinematográfica. Para tanto, abordaremos a
noção de gênero de Jule Selbo (2011), o estilo segundo Norma Discini
(2009), e a construção de gosto a partir de Eric Landowski (1997) na
perspectiva da semiótica francesa. Entendemos o gênero
cinematográfico enquanto uma construção virtual que guia, entre
tantas outras coisas, a escolha e a leitura do filme pelo público.
Palavras-chave: gênero cinematogrático; estilo; autoria; gosto;
público.

Abstract: In this article we intend to point out the relations between


the film genre and the taste of the public, demonstrating how genres
may model expectations and how the audience's perception affects
the film industry. In order to do so, we focus on the notion of genre
by Jule Selbo (2011), on the style approach by Norma Discini (2009),
and on the construction of taste addressed by Eric Landowski (1997)
in the perspective of French semiotics. We understand the film genre
as a virtual construction that guides, among many other things, the
audience's choice and reading of the movie.
Key words: film genre; style; authorship; taste; audience.

1
Mestranda na linha de Pesquisa: Regimes de sentido nos processos comunicacionais. E-mail:
contato.mrezende@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/0318208363043252

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O gênero cinematográfico, construto inacabado e forjado por diversas mãos, tem


no público um de seus elos fundamentais. É ele que está (bem ou mal) representado nas
categorias genéricas que se estabelecem. O gosto do público e da crítica, que assumem
posição de destinatários, é levado em conta pelos elos de produção, distribuição e exibição
dos filmes. E como poderia ser diferente se é o público o fim mesmo da comunicação
audiovisual que se estabelece? Sabe-se que todo enunciado implica no estabelecimento
de um contrato entre aquele que enuncia e aquele a quem se enuncia. O contrato de
veridicção é esse “crer-verdadeiro” que se faz necessário para a efetividade da
comunicação (GREIMAS, 2016, p.530). No cinema esse crer relaciona-se à verossimilhança
do filme, a qual não se equipara necessariamente à realidade, àquilo que de fato ocorre ou
faz sentido no dia-a-dia. O filme de horror, por exemplo, possui uma coerência interna da
qual faz parte o espanto, o sanguinário, o fantasioso. Mas essa coerência interna, longe de
isolar-se do contexto de produção cinematográfica, dependente de fatores externos, na
medida em que um filme só pode reconhecer-se de horror a partir de sua correlação com
outros. Jule Selbo, autora, pesquisadora e roteirista americana utiliza o termo espaço
mental, mais preciso que o termo verossimilhança, ao abordar a lógica própria de
determinado filme.
O espaço mental (mental space) de Selbo espelha-se, como aponta a própria autora,
em um conceito do cientista cognitivo Fauconnier e do linguista cognitivo Lakoff. Esses
autores, segundo Selbo (2011), propuseram a ideia de espaço mental em relação aos
possíveis mundos (possible worlds) da filosofia. A diferença entre o termo de
Fauconnier/Lakoff é que, diferentemente dos possíveis mundos, os espaços mentais não
seriam necessariamente representações fidedignas da realidade, mas sim modelos
cognitivos idealizados (ICM) de possíveis mundos. Nesse sentido, Selbo adota ambos os
termos — ICM ou espaço mental — para se referir ao universo de um filme, o qual não
engloba tudo o quanto faz parte do real, mas sim aquilo que interessa à sua narrativa ou à
sua intenção estilística e temática. Em outras palavras, a construção dos espaços mentais
ou de um modelo cognitivo idealizado é composta por “elementos como cenário,
personagens, tema, trajetória da trama — e gênero fílmico” (SELBO, 2011, p.46, tradução

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nossa). São esses elementos tanto pertencentes ao plano do conteúdo (como trama e tema)
quanto ao plano da expressão (como figurino e iluminação). Tais planos unidos
correspondem à manifestação e distinguem-se apenas para efeito de análise, já que toda
expressão carrega um conteúdo e vice-versa. Em suma, em cada gênero — drama,
suspense, comédia, mistério — o roteirista mobiliza determinados elementos de
manifestação em detrimento de outros.
Adentramos o assunto do espaço mental para assinalar a lógica própria que rege a
produção dos filmes e relacionarmos tais estratégias ao gosto do público, que influi
imensamente na determinação e no desenvolvimento dos gêneros. Na medida em que o
gosto do público se transforma, há uma adequação da indústria cinematográfica de modo
que essa possa então corresponder a seu destinatário. Todavia, essa adequação ocorre
somente para que se possa manipular o espectador, fazendo com que esse adira a seu
produto.
É claro que a indústria cinematográfica também contribui para modelar o gosto do
público ao atuar criativamente e inserir novos elementos em suas produções. Entretanto,
é o espectador quem se situa na posição avaliativa e sancionadora do filme. Como aponta
Altman em Film Genre, a divulgação de um filme passa a explorar novas nomenclaturas com
a finalidade de diferenciar seu produto quando julga ser necessário. Nos tempos em que a
comédia estava "gasta", por exemplo, surgia o termo comédia romântica, de modo que esse
rótulo (associado a mudanças na produção) conferia às comédias da época um novo
aspecto, mantendo ou até ampliando seu público. Assim, observando o desejo da
audiência por novos traços, ainda que essa queira ver espelhado na tela algo reconhecível,
a indústria cinematográfica age de forma estratégica para agradá-la.
Quando falamos em “novos traços” estamos perpassando também o campo do
estilo, bastante pertinente ao se tratar a relação entre gênero e autoria. Mas o que, afinal,
configura um estilo? Pertence esse ao campo da individualidade, do idioleto2 (Greimas e
Courtés, 2016)? É próprio de um autor ou pode ser relativo a um movimento? Não seria ele
uma unidade reconhecível somente em correlação com um todo?

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apropriação da língua por um de indivíduo, que se expressa de forma particular devido a suas escolhas.

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O Estilo
Norma Discini (2009) trabalha o estilo a partir de um modelo complexo. Aqui,
retomaremos algumas ideias apresentadas pela autora, a fim de vislumbrar como o estilo
encontra seu espaço em uma tipologia (conjunto reconhecível por gênero, por diretor, por
período, entre outros). Também apontaremos a querela entre autoria e gênero que, não
raro, volta suas costas para a confluência de ambos, esquecendo-se que o caráter genérico
perpassa todo e qualquer filme e que a autoria, em maior ou menor medida, está presente
numa filmografia rotulada policial, ficção científica, drama, suspense, etc.
Para Discini, o estilo é o efeito de sentido de individualidade que "emerge de uma
norma, determinada por recorrências de procedimentos na construção do sentido (…)”
(DISCINI, 2009, p.36). Entende-se essa norma não como uma prescrição, mas enquanto
“abstração dada pela recorrência de um modo 'único' de fazer e de ser, inerente a uma
totalidade” (ibid., p.37). Assim, partimos da compreensão de que para se reconhecer um
estilo é preciso apreender as isotopias (traços reiterados de conteúdo e de expressão) do
discurso ou dos discursos de um (ou mais) enunciador — não o de carne e osso, mas aquele
do próprio enunciado, em nosso caso fílmico; aquele que não corresponde a uma pessoa
(como ao diretor) mas que está implicado no filme de forma totalizada, enquanto ''voz
organizadora". Mas se essas recorrências se estendem a diversos realizadores, não perdem
elas seu caráter ‘único' de fazer e de ser, seu efeito de individualidade?
Essa é uma questão que nos interessa, pois deságua na noção dos gêneros
cinematográficos. Entendemos que o estilo é antes de tudo um efeito; muito mais uma
questão conjectural que de “autenticidade”. Observemos o modelo utilizado por Discini
ao se tratar o estilo, que depende da rede de relações entre partes e todo. Esse modelo tem
bases em Brøndal e Greimas (2016)3:

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as unidades Ui, Up, Tp e Ti foram projetadas por Greimas, mas Discini as relaciona com os conceitos unus,
totus, omnis e nemo, de Brøndal.

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LEGENDA
Ui: unidade individualizada | Up: unidade partitiva
Tp: totalidade partitiva | Ti: totalidade integral

A Unidade individualizada (Ui ou unus) é definida como “unidade realizada,


discreta, ‘expulsa’ do bloco integral” (DISCINI, 2009, p.35) e vamos associá-la a um único
filme longa-metragem, fechado em si mesmo e com determinada definição genérica.
Tenhamos em mente o filme Memento (Amnésia, 2001) como unus que, enquanto filme de
mistério, pressupõe uma totalidade integral (Ti ou totus): o conjunto dos discursos fílmicos
enquadrados no mesmo gênero e com o qual Memento dialoga involuntariamente. A
unidade partitiva (Up ou nemo) relaciona-se à virtualidade do sentido, congregando as
características compartilhadas por filmes de determinado gênero, como a revelação dos
fatos ao final da narrativa. Já a totalidade partitiva (Tp ou omnis) agrupa determinadas
partes numericamente, ainda que essas apresentem dissonâncias entre si. Pode agrupar,
por exemplo, os filmes de mistério produzidos na década de 1990. Nota-se que Up e Tp
dizem respeito a uma estrutura abstrata, enquanto Ui e Ti correspondem a produções
concretas.
A correlação de um filme (Ui) com a estrutura abstrata na qual esse se insere
genericamente (Up) remete à “arquitextualidade” da qual fala Moine (2010, e-book p. 613)
com base em Genette (1982), diferindo da intertextualidade, que diz respeito ao diálogo de
um filme para com outro(s). Notemos, a título de esclarecimento, a distinção metodológica
entre (1) uma análise de um filme específico (Ui) — como Memento (Amnésia, 2001) — em
comparação à estrutura abstrata (semântica e sintática) do gênero com o qual esse tem
maiores correspondências, como o mistério (Up), e (2) uma análise que leva em
consideração Memento e um corpus de filmes limitado, cada qual com suas características

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específicas mas também com similitudes de modo que possam ser enquadrados na
tipologia em questão (Tp; Shutter Island, Witness for The Prosecution, etc). Na primeira
análise, colocamos um filme em relação a um universo genérico (virtual); na segunda, um
filme com relação a outros, que constituem um grupo seleto e finito, representativo de uma
totalidade partitiva. Mas ao que corresponderia, afinal, a totalidade integral (Ti)? Ela
corresponderia, nesse caso, à totalidade de filmes enquadrados no gênero de interesse —
o que se torna inviável para fins de análise.
É o nemo, devido à sua virtualidade e relação com o gênero, que aqui
particularmente nos interessa. Discini o relaciona com o fato de estilo: “unidade formal,
reconstruída pelo percurso gerativo do sentido, aplicado a um conjunto de discursos”
(DISCINI, 2009, p. 35). Em outras palavras, o fato de estilo é um padrão que se faz
reconhecível, é aquilo que remete a um "modelo" aplicável a um conjunto de textos,
literários ou fílmicos.
Vamos voltar ao que nos ateve num primeiro momento: o que configura o estilo e
como esse encontra espaço numa determinada tipologia de filmes? Bom, vamos juntar as
pontas: se a unidade individualizada se reconhece enquanto estilo é em sua
correspondência com a totalidade integral. E esse estilo, para tornar-se observável,
depende da repetição, “apóia-se num fato formal enquanto potencialidade de sentido,
dada pela recorrência de um fazer, depreensível da totalidade de discursos enunciados”
(DISCINI, 2009, p.28). Ou seja, apoia-se no Up (nemo) que se torna exemplificável em um
corpus, Tp (omnis). O gênero, então, sendo estrutura abstrata, não é um estilo em si, mas
como mencionamos um fato de estilo, um percurso a ser “aplicado”, sempre com
adaptações. Estrutura virtual, o gênero toma corpo em filmes específicos, com unidades
próprias.
Note, agora, que tanto a noção de gênero quanto a noção de autoria subsume uma
estrutura virtual (como a blueprint de Woody Allen e o policial enquanto “norma”), sem por
isso deixar de constituir, em última instância, uma unidade integral (Ui), com suas devidas
individualidades. Nenhum filme policial é de todo semelhante; da mesma forma, um filme
de Woody Allen pode manter distâncias consideráveis com outro do mesmo “ diretor-autor

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” — vide Vicky Cristina Barcelona (2008) e Desconstruindo Harry (1997).


O termo genre film (filme de gênero) pressupõe uma conotação negativa, referindo-
se sobretudo aos produtos audiovisuais que empilham características genéricas, numa
tentativa de concretizar uma estrutura abstrata ao pé da letra. Essa virtualidade não se
pretende como prescritiva e o equívoco teórico de uma oposição imediata e gratuita ao
estudo dos gêneros está em confundir a validade desse enquanto ferramenta com sua
aplicação impensada, fácil e gasta. O “ cinema de autor” é um falso oposto do “cinema de
gênero”. O que há, na verdade, não é nem o cinema de autor puro, nem o cinema de gênero.
Existem filmes que, inevitavelmente, perpassam determinadas categorias genéricas e, em
maior ou menor medida, possuem aspectos particulares que os diferenciam enquanto
filmografias de um mesmo diretor.
A partir daqui, tenhamos em vista a flexibilidade das noções de gênero, autoria e
estilo. Vê-se também que o gosto do público é construído através do reconhecimento de
recorrências. Isto é, para se falar “eu gosto disso” ou “ele gosta daquilo” há de haver
experiência prévia, sendo desejável que essa experiência provenha da familiaridade com o
objeto em questão, ou seja, da exposição recorrente a ele. Por exemplo, ao dizer que gosto
de filmes de ação devo considerar mais de um filme. É só assim que posso observar que
minha preferência não é por este filme que acabo de assistir mas sim por filmes como este
(nemo), com longas sequências de perseguição, montagem acelerada, uso ostensivo de
foleys, etc.

Mais do Mesmo?
Agora que tratamos do estilo, podemos retornar à questão do gosto e inferir que a
preferência por um universo genérico corresponde à preferência por uma estrutura virtual
que se concretiza em filmes específicos, com maior ou menor eficácia4. O gosto do público,
portanto, pode ser melhor apreendido a partir da compreensão das diversas teias invisíveis
que se imbricam e correspondem tanto aos gêneros quanto a outras tipologias.
Quando nos referimos à satisfação do espectador que é, em grande parte,

4
avaliação essa do ponto de vista do público.

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produzida pelo “cumprir expectativas” do produto audiovisual — o qual se anuncia


enquanto uma comédia romântica, um suspense, um horror — estamos tratando do “gosto
de gozar” o filme, para usar o termo de Landowski (1997). Esse cumprir expectativas atrela-
se, em certa medida, ao cumprimento da estrutura genérica sugerida desde a divulgação
do filme (cartaz, trailer) até sua execução (com destaque para a sequência de abertura, que
costuma trazer fortes indícios genéricos). Mas há também, como define Landowski, o
“gosto de agradar”, o qual é comum àquele que gosta de algo na medida em que essa
inclinação é favorável à sua imagem a um Outro. Vê-se, por exemplo, que a crítica exerce
grande força sobre o espectador ao agregar valor a determinados filmes e agir de forma
depreciativa ou indiferente com relação a outros. Coibidos socialmente, pois há o senso do
bom e do mau gosto, muitos passam a “aderir” a determinados gostos em consonância
com a crítica. O peso da imagem na atualidade chega a tal ponto que não me parece
exagero apontar a gradual perda de sentido do termo “gosto”, dado que com frequência
não nos permitimos gostar genuinamente de algo. Cobramos de nós mesmos a adequação
àquilo e àqueles que estimamos. Sabemos, enquanto cineastas, que devemos amar Ozu,
Mizoguchi, Orson Welles, Glauber Rocha, Godard, Hitchcock, entre outros. E a valoração
atribuída aos objetos do mundo pelos que respeitamos, ou pelas instituições das quais
somos parte, atinge-nos de tal forma que o gosto que assumimos enquanto um reflexo de
nós mesmos revela muito mais aquilo que “queremos” ou “devemos ser”.
O medo de não agradar fica mais claro se observarmos a tendência do espectador
em esconder sua preferência por determinados gêneros, sendo um tanto quanto curioso o
"coming out" de um aficionado por certa categoria ao finalmente reconhecer outro,
sentindo-se à vontade para assumir seu apreço pelo horror, pelo musical, pelo melodrama
ou pelos demais gêneros cinematográficos (ALTMAN, 1999, p.158).
Por outro lado, fatores externos como a opinião do outro ou a atuação da crítica
também podem contribuir para a formação legítima do “gosto de gozar”. A crítica da qual
falávamos pode atuar como “destinador-doador” de competência, conferindo ao público
os conhecimentos e contextos necessários para a apreciação de um filme. Os “gostos”,
dessa forma, circulam e se reconstroem. A cadeia produção-distribuição-crítica-espectador

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movimenta-se — ao contrário do que possa parecer — de forma circular, um elo exercendo


força sobre o outro e modificando as formas de produzir ou receber determinado produto.
Os avanços tecnológicos também exercem pressão sobre essa cadeia, em cujas
extremidades situam-se produção e espectador. Isso porque contribuem para a afirmação
de novos padrões técnicos e estilísticos na produção de filmes, os quais vêm a reverberar
no gosto do público. No final da década de 1950 e no início dos anos 1960, produziram-se
câmeras mais leves que poderiam ser manejadas sem o uso de tripés, favorecendo
filmagens em ambientes externos e implicando no uso mais livre da câmera (THOMPSON;
BORDWELL, 2003, p. 440). Sem esse avanço não haveria a Nouvelle Vague francesa tal como
a conhecemos, ainda que o movimento tenha sido impulsionado, sobretudo, pela crítica
dos Cahiers du Cinèma que, fatigada dos filmes da tradição "de qualidade", mobilizou-se
para a construção de uma nova cinematografia. O desenvolvimento técnico forneceu as
condições necessárias para a concretização desse cinema enquanto um movimento de
afronta à tradição cinematográfica francesa do período.
Outro exemplo de influência da tecnologia sobre o estilo foi o uso de filtros e lentes
que possibilitaram o desfoque do plano fundo em contraposição aos elementos dispostos
no primeiro plano da imagem. Essa técnica tem implicações que vão além da plasticidade,
resultando na "intensificação do estilo da narrativa clássica ao concentrar a atenção do
espectador na ação principal, desenfatizando elementos menos importantes"
(THOMPSON; BORDWELL, 2003, p. 147, tradução nossa).
De modo mais amplo, o contexto histórico e social também influi sobre a
construção dos filmes e, particularmente dos gêneros ou movimentos, formas que ficam
conhecidas sob rótulos mediante a sua expressão numerosa. Parece-nos inevitável citar o
exemplo do Expressionismo Alemão5 no cinema, que data do período sombrio do entre-
guerras, no qual a nação alemã estava devastada com a deflagradora derrota e com suas

5
Fala-se muito em movimento quando tratamos do Expressionismo Alemão, por esse ter se limitado a
determinado contexto histórico. Ainda assim, o Expressionismo possui recorrências que se assemelham às
genéricas, não sendo esses termos — movimento, gênero e ciclo — de mútuo acordo entre os teóricos.
Tentamos aqui não nos prender a essas definições. O que nos interessa é que esses filmes reunem um
conjunto de características expressivas, tendo uma produção numerosa e reconhecível sob determinado
“rótulo”.

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inúmeras perdas. Assim, o dualismo, as sombras, os temas pessimistas, a expressão


corporal exacerbada, as distorções incômodas, são aspectos fílmicos que encontram elos
para com a realidade vivida pelo público. Vemos, portanto, que o gosto cinematográfico do
espectador relaciona-se também ao contexto, de modo que ele busque ver refletido no
filme questões do seu tempo, seus medos, sonhos, interesses e anseios.
Enquanto pesquisadora, Selbo se atenta para a importância de o roteirista
apreender a pertinência de um gênero fílmico na contemporaneidade. Esse conhecimento
necessário ao roteirista (e aos demais profissionais envolvidos na realização do filme) é por
Selbo denominado de conhecimento relevante (relevant knowledge). O conhecimento
relevante possui três componentes principais, sendo a primeira a observação (noticing) para
com as mudanças nos padrões sociais, os comportamentos dos indivíduos e seus desejos.
Observar os entornos, o ambiente, é extremamente necessário para se entender o contexto
de uma produção e dominar esse conhecimento que no fundo é mesmo uma compreensão
dos gostos do público enquanto uma legião de indivíduos inseridos cultural e socialmente
em determinado tempo e espaço. O gosto, entretanto, não se encerra aí — é multifacetado.
Indivíduos que partilham de uma mesma “realidade“ (temporal, social e culturalmente)
podem ter preferências distintas.
Dessa forma, ainda que pertinentes ao contexto do qual fazem parte,
determinadas produções podem agradar ou desagradar diferentes faixas do público, o qual
secciona-se devido à complexidade e variedade de seus gostos. A catalogação em gêneros,
portanto, auxilia o espectador na escolha daquilo que ele verá e promete a ele
determinados efeitos de sentido. No mistério, algo deve estar por ser desvelado. Caso
contrário, o espectador terá uma profunda decepção ao final do filme. O mistério promete
e “depende da exposição tardia, a verdade dos fatos sendo revelados apenas no final”
(BORDWELL, 1985, p.40, tradução nossa). O suspense, por outro lado, não se pauta na
revelação final. Nesse tipo de filme, o espectador sabe ou prenuncia o que está por vir de
modo a ansiar pelo destino das personagens, pela sequência dos acontecimentos. O gosto

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pelo suspense é o gosto pela “espera dilatada”6. Já o gosto pelo horror é o gosto pelo
espanto, pelo terrível; o gosto pela comédia é a espera do humor que provoque riso; e
assim por diante.
Esse conhecimento das reações que determinado gênero deve provocar em um
público relaciona-se a um outro conhecimento exposto por Selbo — o conhecimento
específico, o qual diz respeito à compreensão da memória pessoal de uma audiência sobre
determinadas situações ou eventos e às possíveis relações entre um público e os efeitos de
sentido7 provocados pelos diversos gêneros: o próprio riso, o espanto, etc. Nota-se,
portanto, que a prática de escrita de roteiros mediante os procedimentos de Selbo dialoga
amplamente com a compreensão dos gostos do público.
Até então não abordamos a hibridação dos gêneros. E, embora esse não seja o
objetivo do presente texto, vale mencionar que os exemplos dados, situados em um ou
outro gênero, são bastante didáticos. Os gêneros parecem mesclar-se cada vez mais, de
modo que suas fronteiras tornam-se ainda mais móveis e nebulosas. Não estaria o gosto
do público se complexificando, o que resulta na busca por novas relações genéricas? Essa
é uma questão, mas muitas outras podem ser colocadas a fim de que a relação entre
público e gênero se torne mais clara. Por que motivo, afinal, são os gêneros relativamente
estáveis? Por que o gosto por filmes de herói, por exemplo, se mantém por longos anos?
Por que o drama e a comédia, embora se atualizem, não se esgotam? Os gêneros, portanto,
não são apenas etiquetas catalogadoras, mas ferramentas (do destinador/ realizador do
filme e do destinatário/ público); formas indicadoras de gostos e transformações sociais;
formas de relativa estabilidade conquanto passíveis de mudanças.
Reiteramos que os ressaibos diante da teoria dos gêneros estão, usualmente,
fundados na má compreensão de que o uso dos gêneros é prescritivo. Se o foi em
determinados momentos da história, pode-se dizer que, hoje, após teóricos como Rick
Altman, Edward Buscombe, Steave Neale, Robert Warshow, Raphaëlle Moine, a

6
Referência ao título da tese de doutorado O Suplício na Espera Dilatada: a construção do gênero suspense
no cinema; defendida por SILVA, Odair J. M. na Universidade de São Paulo em 2011.
7
o termo efeito de sentido, da semiótica discursiva, não é empregado por Selbo, mas acreditamos que
contribua para esclarecer os conceitos da autora.

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compreensão dos gêneros é muito mais complexa. Nossa maior ressalva está justamente
em perceber que o guiar-se pela compreensão dos gêneros ou o fazer uso de um “fato de
estilo” autoral não implica em produzir necessariamente “mais do mesmo”, no sentido da
usura de um arquitexto. Produz-se mais de uma estrutura reconhecível, a qual é maleável
e se ajusta às intenções do destinador. Pode-se, através do conhecimento de estruturas
abstratas, dos gostos do público e de comportamentos culturais, gerar conteúdos que
apresentem um “senso de novidade”8. Ao entender os gêneros, o destinador está mais e
não menos apto a subvertê-los, a mixá-los, a agregar a eles novos aspectos e a relacionar-
se com um público cujos gostos vêm sendo formados há décadas, sob a inevitável
influência das estruturas virtuais (ou nemo) que aqui abordamos.

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termo utilizado por Selbo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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