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Marília Rezende1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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Mestranda na linha de Pesquisa: Regimes de sentido nos processos comunicacionais. E-mail:
contato.mrezende@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/0318208363043252
nossa). São esses elementos tanto pertencentes ao plano do conteúdo (como trama e tema)
quanto ao plano da expressão (como figurino e iluminação). Tais planos unidos
correspondem à manifestação e distinguem-se apenas para efeito de análise, já que toda
expressão carrega um conteúdo e vice-versa. Em suma, em cada gênero — drama,
suspense, comédia, mistério — o roteirista mobiliza determinados elementos de
manifestação em detrimento de outros.
Adentramos o assunto do espaço mental para assinalar a lógica própria que rege a
produção dos filmes e relacionarmos tais estratégias ao gosto do público, que influi
imensamente na determinação e no desenvolvimento dos gêneros. Na medida em que o
gosto do público se transforma, há uma adequação da indústria cinematográfica de modo
que essa possa então corresponder a seu destinatário. Todavia, essa adequação ocorre
somente para que se possa manipular o espectador, fazendo com que esse adira a seu
produto.
É claro que a indústria cinematográfica também contribui para modelar o gosto do
público ao atuar criativamente e inserir novos elementos em suas produções. Entretanto,
é o espectador quem se situa na posição avaliativa e sancionadora do filme. Como aponta
Altman em Film Genre, a divulgação de um filme passa a explorar novas nomenclaturas com
a finalidade de diferenciar seu produto quando julga ser necessário. Nos tempos em que a
comédia estava "gasta", por exemplo, surgia o termo comédia romântica, de modo que esse
rótulo (associado a mudanças na produção) conferia às comédias da época um novo
aspecto, mantendo ou até ampliando seu público. Assim, observando o desejo da
audiência por novos traços, ainda que essa queira ver espelhado na tela algo reconhecível,
a indústria cinematográfica age de forma estratégica para agradá-la.
Quando falamos em “novos traços” estamos perpassando também o campo do
estilo, bastante pertinente ao se tratar a relação entre gênero e autoria. Mas o que, afinal,
configura um estilo? Pertence esse ao campo da individualidade, do idioleto2 (Greimas e
Courtés, 2016)? É próprio de um autor ou pode ser relativo a um movimento? Não seria ele
uma unidade reconhecível somente em correlação com um todo?
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apropriação da língua por um de indivíduo, que se expressa de forma particular devido a suas escolhas.
O Estilo
Norma Discini (2009) trabalha o estilo a partir de um modelo complexo. Aqui,
retomaremos algumas ideias apresentadas pela autora, a fim de vislumbrar como o estilo
encontra seu espaço em uma tipologia (conjunto reconhecível por gênero, por diretor, por
período, entre outros). Também apontaremos a querela entre autoria e gênero que, não
raro, volta suas costas para a confluência de ambos, esquecendo-se que o caráter genérico
perpassa todo e qualquer filme e que a autoria, em maior ou menor medida, está presente
numa filmografia rotulada policial, ficção científica, drama, suspense, etc.
Para Discini, o estilo é o efeito de sentido de individualidade que "emerge de uma
norma, determinada por recorrências de procedimentos na construção do sentido (…)”
(DISCINI, 2009, p.36). Entende-se essa norma não como uma prescrição, mas enquanto
“abstração dada pela recorrência de um modo 'único' de fazer e de ser, inerente a uma
totalidade” (ibid., p.37). Assim, partimos da compreensão de que para se reconhecer um
estilo é preciso apreender as isotopias (traços reiterados de conteúdo e de expressão) do
discurso ou dos discursos de um (ou mais) enunciador — não o de carne e osso, mas aquele
do próprio enunciado, em nosso caso fílmico; aquele que não corresponde a uma pessoa
(como ao diretor) mas que está implicado no filme de forma totalizada, enquanto ''voz
organizadora". Mas se essas recorrências se estendem a diversos realizadores, não perdem
elas seu caráter ‘único' de fazer e de ser, seu efeito de individualidade?
Essa é uma questão que nos interessa, pois deságua na noção dos gêneros
cinematográficos. Entendemos que o estilo é antes de tudo um efeito; muito mais uma
questão conjectural que de “autenticidade”. Observemos o modelo utilizado por Discini
ao se tratar o estilo, que depende da rede de relações entre partes e todo. Esse modelo tem
bases em Brøndal e Greimas (2016)3:
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as unidades Ui, Up, Tp e Ti foram projetadas por Greimas, mas Discini as relaciona com os conceitos unus,
totus, omnis e nemo, de Brøndal.
LEGENDA
Ui: unidade individualizada | Up: unidade partitiva
Tp: totalidade partitiva | Ti: totalidade integral
específicas mas também com similitudes de modo que possam ser enquadrados na
tipologia em questão (Tp; Shutter Island, Witness for The Prosecution, etc). Na primeira
análise, colocamos um filme em relação a um universo genérico (virtual); na segunda, um
filme com relação a outros, que constituem um grupo seleto e finito, representativo de uma
totalidade partitiva. Mas ao que corresponderia, afinal, a totalidade integral (Ti)? Ela
corresponderia, nesse caso, à totalidade de filmes enquadrados no gênero de interesse —
o que se torna inviável para fins de análise.
É o nemo, devido à sua virtualidade e relação com o gênero, que aqui
particularmente nos interessa. Discini o relaciona com o fato de estilo: “unidade formal,
reconstruída pelo percurso gerativo do sentido, aplicado a um conjunto de discursos”
(DISCINI, 2009, p. 35). Em outras palavras, o fato de estilo é um padrão que se faz
reconhecível, é aquilo que remete a um "modelo" aplicável a um conjunto de textos,
literários ou fílmicos.
Vamos voltar ao que nos ateve num primeiro momento: o que configura o estilo e
como esse encontra espaço numa determinada tipologia de filmes? Bom, vamos juntar as
pontas: se a unidade individualizada se reconhece enquanto estilo é em sua
correspondência com a totalidade integral. E esse estilo, para tornar-se observável,
depende da repetição, “apóia-se num fato formal enquanto potencialidade de sentido,
dada pela recorrência de um fazer, depreensível da totalidade de discursos enunciados”
(DISCINI, 2009, p.28). Ou seja, apoia-se no Up (nemo) que se torna exemplificável em um
corpus, Tp (omnis). O gênero, então, sendo estrutura abstrata, não é um estilo em si, mas
como mencionamos um fato de estilo, um percurso a ser “aplicado”, sempre com
adaptações. Estrutura virtual, o gênero toma corpo em filmes específicos, com unidades
próprias.
Note, agora, que tanto a noção de gênero quanto a noção de autoria subsume uma
estrutura virtual (como a blueprint de Woody Allen e o policial enquanto “norma”), sem por
isso deixar de constituir, em última instância, uma unidade integral (Ui), com suas devidas
individualidades. Nenhum filme policial é de todo semelhante; da mesma forma, um filme
de Woody Allen pode manter distâncias consideráveis com outro do mesmo “ diretor-autor
Mais do Mesmo?
Agora que tratamos do estilo, podemos retornar à questão do gosto e inferir que a
preferência por um universo genérico corresponde à preferência por uma estrutura virtual
que se concretiza em filmes específicos, com maior ou menor eficácia4. O gosto do público,
portanto, pode ser melhor apreendido a partir da compreensão das diversas teias invisíveis
que se imbricam e correspondem tanto aos gêneros quanto a outras tipologias.
Quando nos referimos à satisfação do espectador que é, em grande parte,
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avaliação essa do ponto de vista do público.
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Fala-se muito em movimento quando tratamos do Expressionismo Alemão, por esse ter se limitado a
determinado contexto histórico. Ainda assim, o Expressionismo possui recorrências que se assemelham às
genéricas, não sendo esses termos — movimento, gênero e ciclo — de mútuo acordo entre os teóricos.
Tentamos aqui não nos prender a essas definições. O que nos interessa é que esses filmes reunem um
conjunto de características expressivas, tendo uma produção numerosa e reconhecível sob determinado
“rótulo”.
pelo suspense é o gosto pela “espera dilatada”6. Já o gosto pelo horror é o gosto pelo
espanto, pelo terrível; o gosto pela comédia é a espera do humor que provoque riso; e
assim por diante.
Esse conhecimento das reações que determinado gênero deve provocar em um
público relaciona-se a um outro conhecimento exposto por Selbo — o conhecimento
específico, o qual diz respeito à compreensão da memória pessoal de uma audiência sobre
determinadas situações ou eventos e às possíveis relações entre um público e os efeitos de
sentido7 provocados pelos diversos gêneros: o próprio riso, o espanto, etc. Nota-se,
portanto, que a prática de escrita de roteiros mediante os procedimentos de Selbo dialoga
amplamente com a compreensão dos gostos do público.
Até então não abordamos a hibridação dos gêneros. E, embora esse não seja o
objetivo do presente texto, vale mencionar que os exemplos dados, situados em um ou
outro gênero, são bastante didáticos. Os gêneros parecem mesclar-se cada vez mais, de
modo que suas fronteiras tornam-se ainda mais móveis e nebulosas. Não estaria o gosto
do público se complexificando, o que resulta na busca por novas relações genéricas? Essa
é uma questão, mas muitas outras podem ser colocadas a fim de que a relação entre
público e gênero se torne mais clara. Por que motivo, afinal, são os gêneros relativamente
estáveis? Por que o gosto por filmes de herói, por exemplo, se mantém por longos anos?
Por que o drama e a comédia, embora se atualizem, não se esgotam? Os gêneros, portanto,
não são apenas etiquetas catalogadoras, mas ferramentas (do destinador/ realizador do
filme e do destinatário/ público); formas indicadoras de gostos e transformações sociais;
formas de relativa estabilidade conquanto passíveis de mudanças.
Reiteramos que os ressaibos diante da teoria dos gêneros estão, usualmente,
fundados na má compreensão de que o uso dos gêneros é prescritivo. Se o foi em
determinados momentos da história, pode-se dizer que, hoje, após teóricos como Rick
Altman, Edward Buscombe, Steave Neale, Robert Warshow, Raphaëlle Moine, a
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Referência ao título da tese de doutorado O Suplício na Espera Dilatada: a construção do gênero suspense
no cinema; defendida por SILVA, Odair J. M. na Universidade de São Paulo em 2011.
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o termo efeito de sentido, da semiótica discursiva, não é empregado por Selbo, mas acreditamos que
contribua para esclarecer os conceitos da autora.
compreensão dos gêneros é muito mais complexa. Nossa maior ressalva está justamente
em perceber que o guiar-se pela compreensão dos gêneros ou o fazer uso de um “fato de
estilo” autoral não implica em produzir necessariamente “mais do mesmo”, no sentido da
usura de um arquitexto. Produz-se mais de uma estrutura reconhecível, a qual é maleável
e se ajusta às intenções do destinador. Pode-se, através do conhecimento de estruturas
abstratas, dos gostos do público e de comportamentos culturais, gerar conteúdos que
apresentem um “senso de novidade”8. Ao entender os gêneros, o destinador está mais e
não menos apto a subvertê-los, a mixá-los, a agregar a eles novos aspectos e a relacionar-
se com um público cujos gostos vêm sendo formados há décadas, sob a inevitável
influência das estruturas virtuais (ou nemo) que aqui abordamos.
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termo utilizado por Selbo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. The classical Hollywood cinema –
Film Style & Model of production to 1960. New York (USA): Columbia University Press, 1985.
BUSCOMBE, Edward. A ideia de gênero no cinema americano. Tradução por Tomás Rosa
Bueno. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema —
Documentário e narratividade ficcional. São Paulo: Senac, volume II, p. 303-318, 2005a.
___________ . Idéias de Autoria. In: RAMOS, Fernão (org.). Tradução por Thomás Rosa
Bueno. Teoria Contemporânea do Cinema — Pós-estruturalismo e Filosofia Analítica. São
Paulo: Editora Senac, volume I, p. 281-294, 2005b.
DISCINI, Norma. O Estilo nos Textos. 2ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 31-42.
MOINE, Raphaelle. Cinema Genre. Tradução para o inglês por Alistair Fox e Hilary Radner.
Blackwell Publishing Ltda, 2008.
SELBO, Jule. The Constructive Use of Film Genre for the Screenwriter. Journal of Screenwriting,
vol. 3, Issue 1, 2011, p. 45-59.
WARSHOW, Robert. The Immediate Experience: movies, comics, theatre and other aspects
of popular culture. Cambridge: Harvard University Press, 2001.