Você está na página 1de 25

Revista Portuguesa de Filosofia

Kant e Husserl
Author(s): Paul Ricoeur
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 61, Fasc. 2, Herança de Kant: I - Razão, Sociedade e
Crença (Apr. - Jun., 2005), pp. 355-378
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40314288 .
Accessed: 17/07/2014 14:03

Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at .
http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp

.
JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of
content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms
of scholarship. For more information about JSTOR, please contact support@jstor.org.

Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista
Portuguesa de Filosofia.

http://www.jstor.org

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
R. P. F. I
61 « 2005

Kante Husserl
Paul Ricoeur*

desteestudoé situarcom algumaexactidàoa oposi^ao entrea


fenomenologia de Husserle a críticakantiana, depoisdos grandestraba-
lhosdos últimosvinteanos,consagradosa Kant(e particularmente
Afinalidade à sua
metafísica)e depoisde urnaleituramaiscompletada obrapublicadae inéditade
Husserl.
Gostariade mostrar que estaoposigàonào se situaondea julgavamos neokan-
tianos,que elaboraram a críticadas Ideen1.Estacríticapermanecía aindatributària
de urnainterpretado demasiadoepistemológica de Kant.A oposigàodevesersitu-
ada nao ao nivelda explorado do mundodos fenómenos, mas ao nivelem que
Kantdetermina o estatuto dos
ontologico próprios fenómenos.
1. Servindo-nos a principio de Husserlcomoguia,discerniremos pordetrásda
epistemologia kantiana, urna fenomenologia implícita, de que Husserl será em
alguma medida revelador. Neste sentido, Husserl continua algo que no kantismo
estavaimpedido, permanecendo emestadoembrionario, aindaque talfosseneces-
sarioà sua economiageral.
2. Em retorno, tomandoKantcomoguia,e tornando a sèrioo designioontolo-
gicode Kant,questionar-nos-emos sobrese a fenomenologia de Husserlnào repre-
sentaao mesmotempoo desabrocharde urnafenomenologia implicitaem Kante
a destruÌ9ào de urnaproblemática do ser,que tinhaa sua expressàono papel de
limitee de fundamento da coisa em si. Podemosquestionar-nos sobrese a perda
da medidaontologicado objectoenquantofenòmeno nào é comuma Husserle aos
seus críticosneokantianos do principiodo século; essa será a razào pela qual
deviamsituaro debatenumterreno secundario.
Seremos,portanto, conduzidos a o idealismohusserliano,
reinterpretar guiados
por este sentidodos limites que é, talvez,a alma da filosofiakantiana.
3. Como o processode desontologizagào do objectoconduzHusserla urna
criseda sua pròpriafilosofia,até um pontocrítico,que ele proprionomeoude

*
Tradujo realizadaa partirdo texto"Kantet Husserl"inseridono livroA Vécolede
la phénoménologie, Paris,Vrin,1986,pp. 227-250(a versàooriginalapareceuem Kant-
46, 1954-55,pp.44-67),porAnaFalcatoe revistaporFernandaHenriques,
-Studien da Uni-
versidadede Évora.
1Natorp,Rickert,Kreise Zocher.

© Revista Portuguesa de Filosofía I


[m] 6i «2005 1355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
356 Paul Ricoeur

solipsismotranscendental,questionar-nos-emos sobrese é possívelvenceresta


dificuldade semo socorrode urnafilosofia
e acederà intersubjectividade, pràtica,
do estilokantiano.Partindoagorados embarazosde Husserlna constituigào do
retomaremos,
alter-ego, urnaúltimavez,o kantismo,paraneleprocurara determi-
nagàoéticae pràticada pessoa.

I. A Críticacomo fenomenologia
implícita

Jáque Husserldevecomegarporservir-nos de guiaparapora clarournafeno-


menologíaimplícita do kantismo,é necessario dizerpelomenosnalgumaspalavras
quais os caracteres da fenomenologia husserliana que tomamospor essenciais
nestetraballiode revelagào.
Em primeiro lugar,insistocombastanteforgana necessidadede distinguir em
Husserlo método,tal comoele o praticouefectivamente, e a interpretagào filosó-
fica desse método,tal como ele a desenvolveusobretudoñas Ideen I e ñas
MeditaqóesCartesianas.Esta distingàoganharátodoo seu sentidoquandoa filo-
sofiakantianados limitesnos tenha,porseu lado,abertoos olhossobrea decisào
metafísica implícitana fenomenologia husserliana.
Distinguindo o método e a
praticado interpretagào filosófica do método, naopre-
tendode modonenhum do
rejeitar lado da interpretagàofilosóficaa famosa redugào
fenomenologica. Isso seriareconduzir a fenomenologia a urnarapsodiade experien-
cias vividase baptizarde fenomenologia qualquercomplacencia com as curiosida-
des da vidahumana,comoaconteceamiúde.A redugàoé a portaestreita da feno-
menologia. Mas é nesteacto mesmo que se cruzam urna conversào metodológica e
urnadecisàometafísica. É, pois,neste mesmo acto,que é necessario separá-las.
Na sua intengào estritamente metodológica, a redugàoé urnaconversàoque faz
surgiro para mimde todaa posigàoòntica.Quero serseja urnacoisa,umestado
de coisas (Sachverhalt), umvalor,um servivo,urnapessoa,a £7CO3Cf| "redu-lo"ao
seu aparecer.É precisofazerai urnaconversào, porqueo para mimé desdeo prin-
cipio dissimuladopela propriaposigào do ente;esta posigào dissimulante que
Husserlchamaatitudenaturai(ou tesegeraldo mundo)sendoeia mesmadissimu-
lada na reflexào:é porisso que é necessariaurnaascese especialparaacabarcom
essa atracgào.Sem dúvida,apenasse pode falarem termosnegativosdesta"tese
natural",já que o seu sentidoapenasapareceno movimento de a reduzir;diremos,
portanto, que eia nào é urnacrengana existencia, menosaindaa intuigào, já que a
redugàodeixaintactaestacrengae revela"o ver"emtodaa sua gloria.É antesurna
operagàoque se imiscuina intuigàoe na crengae tornao sujeitocativodestevere
destecrer,ao pontodestese omitira si mesmona posigàoònticadistoou daquilo.
É por isso que a atitudenaturalé urnarestrigào e urnalimitagào;ao invés,a
"redugào", nào obstante a sua aparèncianegativa, é a reconquista da relagàototal
do Ego com o seu mundo.Numaformula positiva,a "redugào"torna-sea "cons-
tituigào"do mundopelo e no vividoda consciència.

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61 • 2005 [12]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 357

Jádissemoso suficiente paraesbogara separac.àodo métodoe da doutrina, a


qual apenasficaráclaraquandoa ontologiakantiana nostiverabertoos olhossobre
urnaoutraproblemática que nao a da reducto.
O acto de reductodescobrea relatividade do que apareceà consciènciaope-
rante;esta relatividade definecom muitaexactidáoo fenómeno. A partirdesse
momento, a
para fenomenologia, tudo existecomo sentido na consciència.A feno-
menologiapretende ser a ciencia dos fenómenos asceticamente conquistados sobre
ào do ente.
a posic,
Todaa problemática do seré, portanto, anuladapela reducto?Paraafirmá-lo, é
precisodecidirque a problemática do serestavatotalmente contidana atitudenatu-
ral,istoé, na posigaode cada ente,absolutamente, semrelac,áocom urnaconsci-
ència.Temosde confessarque Husserlnuncaclarificou esta questào.Por isso, o
nosso deveré reservar inteiramente a questàode saberse a emergencia do para
mimde todasas coisas,se a tematizac,ào do mundocomofenómeno, esgotaqual-
querquestàoque se possa aindacolocarsobreo serdo que aparece.Na minhaopi-
niào,o métodopraticadoporHusserldeixaintactaestaquestào.Direimais:a ati-
tudenaturalé simultaneamente a dissimula^àodo aparecerpara mimdo mundoe
a dissimulalo do ser do aparecer.Se a atitudenaturaime perdeno mundo,me
enredano mundovisto,sentido,agido,o seu em si é umfalsoem si de urnaexis-
tenciasem mim;este em si é apenas a absolutiza^àodo òntico,do "isto",dos
"entes"."A natureza é", eis a tesenaturai. Pondofirna estaomissàodo sujeito,des-
cobrindoo "paramim"do mundo,a "redugào"abriu-mee de nenhumamaneira
fechoua verdadeira problemática do ser,porqueesta problemática supòe a con-
quista de urna eia
subjectividade; implica a reconquista do sujeito,estesera quem
o serse abre.
A redu^àofenomenologica que fez assimsurgiro fenomeno do mundo,como
o propriosentidoda consciència, é a chaveque abre o acesso a urna "experiencia"
original:a experiencia do "vivido"no seu "fluxode consciència".As Ideen cha-
mam-lhe urna"percepc.ào imánente", as MeditacdesCartesianasurna"experiencia
transcendental" que,comotodaa experiencia, retiraa sua validadedo seu carácter
intuitivo,do graude presentae de plenitude do seu objecto.A ressonáncia jamesi-
ana destaspalavras:"vivido","fluxode consciència",nào deve atrapalhar-nos. A
tónicaé fundamentalmente cartesiana:aindaque a percepgàoda coisa transcen-
denteseja sempreduvidosa,já que se faz numfluxode silhuetas,de perfis,que
podemsemprecessarde concordar numaunidadede sentido,o vividoda consci-
ència schattet sichnichtab, ou seja, nào se "perfila";nào é percebidopor fases
sucessivas.A fenomenologia repousa,pois, sobreurnapercepc.aoabsoluta,quer
dizer,nàoapenasindubitável masapodíctica(no sentidoemque é inconcebível que
o seu objecto,o vivido,nào seja).
Queristodizerque a fenomenologia é umnovoempirismo? Um novofenome-
nismo?É aqui que convémque noslembremos que Husserl nunca separoua redu-
cto transcendental dessoutra a
reducto que chama eidètica e que consisteem cap-

de Filosofía I
RevistaPortuguesa
[o] 6i • 2005 |355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
358 Paul Ricoeur

taro facto(Tatsache)na sua essència(Eidos): o Ego que a éno%i\revelacomo


aquelea quemaparecemtodasas coisas,nào deveserdescritona sua singularidade
fortuitamas comoEidos-Ego(Méd.Cart.).Esta mudanzade plano,obtidaprinci-
palmentepelo métododas variares imaginativas, faz da "experiencia transcen-
dental"urnaciencia.
É sob esteduplotítulo,Io,de reduqaodo enteao fenómeno e 2o,da experien-
cia descritiva do vividosobreo modoeidètico,que a fenomenologia de Husserl
pode servir de guia na obrade Kant. O proprio Kant autoriza-nos a tal: na cartaa
MarcusHerz,de 21 de Fevereirode 1772,anunciaque a grandeobraque ele pro-
jecta sobreos limitesda sensibilidadee da razào comportará na sua parteteórica
duas séceles: Io) a fenomenologia em geral,2°) a metafísica consideradaunica-
mentena sua naturezae no seu método.
E, no entanto, a Críticada Razào Pura nào se chamouurnafenomenologia e
nào é, propriamente, urnafenomenologia. Porque?
1. Esta questào vai-nospermitirsituara Critica em relac.àoà "reduc,ào".
Podemosatribuir a isso duas razòes:a primeira, que encontraremos na IIa parte,
reporta-se a essa filosofiados limites que na Críticaocupa o mesmo lugarque a
do
investigalo proprio dominio dos fenómenos.
Evocandono Prefacioda 2a Edigdo a "revolugào"operadapela Críticano
métododa metafísica, Kantdeclara:Sie istein Traktat vonderMethode,nichtein
Systemder Wissenschaft selbst; aber sie verzeichnet gleichwohlden ganzen
Umrissderselben, sowohlinAnsehung ihrerGrenzen, ais auchdes ganzeninneren
Gliederbausderselben(B 22-231)."Eia é umtratadodo métodoe nào umsistema
da propriaciencia.Mas eia descreve,apesardissoa circunscric.ao total,seja relati-
vamenteaos seus limitesou relativamente à sua estruturainterna"3.
Os dois designiosda Críticasao aqui claramente colocados:limitar o fenóme-
no, elucidar a sua estruturainterna. É esta segunda tarefa que poderiaser feno-
menologica.
Estarazàonào é suficiente, pois a elucidalo da estrutura interna da fenomena-
lidadenào é, eia mesma,conduzidaao estilode urnafenomenologia. É necessario
porem questàoa preocupagào propriamente epistemológica da Crítica. A questào
fundamental: "comosao possíveisos juízos sintéticos a priori",impedeurnaver-
dadeiradescrigàodo vivido:o problemade direito,que eclodeno primeiro plano
na Deduqáo Transcendental, aniquilao designiode comporurnaverdadeira fisio-
logiado Gemüt.É menosimportante descrever comoo espirito conhecedo quejus-
tificara universalidade do saberpela fune, ào de síntesedas categorías e finalmente
pela fungàode unidadeda apercepgàotranscendental. As tresnoyóescorrelativas
de natureza, de experiencia e de objectividade trazema marcadessa preocupado

2Citamos KantnaEdic.áo
sempre daAcademiaRealda Prussia.
3Trad.Tremesaygues
e Pacaud,
p.25.Citaremos
doravanteestatraducào
coma siglaTr.

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61 • 2005 [|4]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 359

epistemológica: a natureza, definida(de certaformafenomenologicamente) como


"o conjuntode todosos fenómenos", vema ser,em estiloepistemológico "a natu-
reza em geral,consideradacom conformidade com leis (Gesetzmàssigkeit). E
como a naturezaé o correlatoda experiencia, a Gesetzmàssigkeit da naturezaé
idènticaàs condicoesde possibilidadeda propriaexperiencia;a Crítica,na sua
tarefaepistemológica, procurará que conceitosa prioritornam possível"a unidade
formalda experiencia" ou ainda"a formade urnaexperiencia em geral".É neste
quadroque se coloca o problemada objectividade: eia e o valorde saberconferido
ao conhecimento empíricopela sua Gesetzmàssigkeit.
Mas justamentea Críticanao se fechasobreurnadeterminagào puramente
epistemológica da objectividade, ditode outramaneira,sobreurnajustificagao do
saberconstituido (matemáticas, física,metafísica).A Analítica ultrapassao destino
da físicanewtoniana e a Estéticao da geometria euclidianae mesmonao eucli-
diana.É nestamargempela qual a Críticaexcedeurnasimplesepistemologia que
existea chancede encontrar o iniciode urnaverdadeira fenomenologia.
Libertada hipotecaepistemológica, a revoluto Copernicana nào é maisdo que
a éjroxfifenomenologica; constimi urnavastaredu^aoque nào vaiapenasdas cien-
cias constituidas,do saberalcanzado,às suas condi^òesde legitimidade; vai do
do
conjunto aparecer às suas condigoes de constituiqao.Este designio descritivo,
envolvidono designiojustificativo da Crítica,aparecetodasas vezesque Kantre-
nunciaa apoiar-senumacienciaconstituida e definedirectamente o que chama
receptividade, espontaneidade, sintese, subsun^ào, producto, reprodujo, etc.
Estasdescribes embrionarias, aindaque muitasvezes mascaradasñas suas defi-
nigoes,sao necessáriasà empresaepistemológica propriamente dita;porqueo a
priorique constituías determinates formáis de todo o saber enraíza-se,ele mes-
mo,em actos,operates, fungòescuja descrivo ultrapassalargamente o dominio
estritodas ciencias.Podemos,entào,dizerque a Críticaenvolveurna"experiencia
transcendental"?
2. Esta experiencia transcendental que se abreao fenomenólogo paraalémdo
limiarda redu^àofenomenològica pareceao primeiro embatetotalmente estranha ao
geniodo kantismo. A propriaideiade urna"experiencia" do Cogitonao é, paraum
kantiano, urnaespeciede monstro? Olhare descrever o Cogito,nào é tratá-lo como
umfenómeno, portanto, comoumobjectona natureza e já nào cornoa condigno de
possibilidade dos fenómenos? A combinadoda redugáotranscendental e da redu-
jo eidètica,nào afastade maneiraaindamaisdecisivade Kant,porurnamistura
suspeitade psicologismo (o "vivido")e de platonismo (o Eidos-Ego)?Nào é esteo
lugarde recordar que o "eu penso"da apercep^àooriginària nào é de formaalguma
o eu tomadono seuEidose se reduzà func,ào de unidadeque suportaa obrade sín-
tesedo conhecimento? Comopoderáentào"a experiencia transcendental"escapara
estedilema:ou bemtenho"consciència" do eu penso,sendoque talnào é conheci-
mento,ou bem"conhego"o eu,nào sendoesteumfenómeno da natureza? É, efec-
tivamente, sobreesteterreno que se apoiamas críticasneokantianas de Husserl.

Revista Portuguesa de Filosofia I


[15] 61 «2005 |355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
360 Paul Ricoeur

É misterreconhecer que a Críticaabreum caminhodifícilforadestedilema


que existepuramente sobreo planoepistemológico: o "eu penso"\jepensé]e o "eu
fenómeno"[moiphénomène]sao definidosem termosde saberobjectivo.Mas
Kantescapa a estedilematodasas vezes que procedea urnainspecgàodirectado
"gemüt".O propriotermoGemüt,tao enigmático, designaeste"campoda expe-
rienciatranscendental",que Husserltematiza;ele nao é de todoo eu penso,garan-
tia epistemológicada unidadeda experiencia,mas o que Husserlchama Ego
CogitoCogitata.Resumidamente, é o propriotemada fenomenologia kantiana, o
tema que a "revolugàocopernicana"fez surgir;urnavez que nào se reduz à
Quaestiojuris,à axiomatizagào da fisicanewtoniana, estarevoluto nào é maisdo
que a reductodos entesao seu aparecerno Gemüt.
Comesteguiade urnaexperiencia transcendental do Gemüt, é possívelretomar
os tragosde urnafenomenologia kantiana.
A EstéticaTranscendental é, sem dúvida,a partemenosfenomenologica da
Crítica.A descrivoda espacialidadedos fenómenos - a únicaque Kantempreen-
de,já que concerneàs matemáticas - é esmagadaentre,porumlado,a preocupa-
gao epistemológica pelo conceitode intuigàopura,os juízos sintéti-
de justificar,
cos a priorida geometria4e a construtibilidade característicado raciocinio
matemático5 e, poroutrolado, a preocupagàoontologicade situarexactamente o
serno espago6.
Todavía,urnafenomenologia da espacialidadeestáimplicadalogoque o espago
se reportaà Subjektiven Beschaffenheit unseresGemüts(A 23), ("à constituigào
subjectivado nosso espirito").Apenas esta fenomenologia pode estabelecer que a
da
nogào puramenteepistemológica intuigào priori a coincide com a de urna
"formaque tema sua sede no sujeito".Kanté levadoa descrever o espagocomo
a maneirapela qual umsujeitose dispòea receberalgumacoisa antesdo apareci-
mentode algumacoisa; "tornar possívelurnaintuigàoexterior" é urnadetermina-
gào fenomenologica bem mais vasta do que "tornar possível juízos sintéticos
os a
da A
priori geometria". possibilidade nào é mais da ordem da legitimagào, mas da
constituigào,da BeschaffenheitunseresGemüts.
A EstéticaTranscendental permanece, todavia,muitodecepcionante pelo seu
carácter,nào apenasembrionario, mas estático.Espagoe temponào sao conside-
radosno movimento da experiencia total,mas comournacarnadaprevia,acabada
e inerte.O que aindase compreende pelo peso da epistemologia: parao geómetra,
a espacialidadenào é urnaetapana constituigào da "coisa"; a sua determinagào
como intuigàopuradeve fechar-se sobresi para assegurara totalautonomiadas
matemáticas.

4 Cf. "ExposigàoTranscendental"
A 25 Tr.68.
5 "Teoriatranscendentaldo método"A 712 sq, Tr.567 sq.
ò A questaoiniciale de ordemontologica:WassindnunRaumuna Zeitfòindes Wirk-
licheWesen?Usw.(A 23). "Ora,o que sao o espagoe o tempo?Sào seresreais?"(Tr.65-6).

RevistaPortuguesa
de Filosofía
61 «2005 [|6]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 3^

Mas, desdeque Kantcolocao pé em solo fenomenologico e remeteo espadoà


possibilidade de serafectado poralgumacoisa,é arrastado parao proprio movimento
de urnaconstituigào dinàmicada experiencia e da coisidade.De repente, a justaposi-
gào provisoria do espadoe do tempoé postaemquestào;o espagodeveser"percor-
rido"emmomentos temporais, "retido"numaimagemtotale reconhecido cornoum
sentido Idèntico (A 95 sq.:Tr.126sq.).A esquematizadoacentúaaindamaiso carác-
terdinàmico da propria constituigào espacial(A 137 ss.: Tr.175 ss.). Estaretomado
espagopelo tempo("o tempoé urnarepresentagào necessariaque servede funda-
mentoa todasas intuigòes") marcao triunfo da fenomenologia sobrea epistemologia.
Mais ainda,à medidaque nos afastamos da preocupagào de axiomatizar a geo-
metria, tudo o que parecía claro na ordem epistemológica torna-se obscuro na
ordemfenomenologica; se o espagoé de ordemsensível,nosaindanadapensamos
nele,apenasnos dispomosa receberalgo; mas,entáo,estamossob qualquersín-
tesee é necessariodizerque estaforma(epistemológica) é umdiverso(fenómeno-
Tr.
lógica)(A 76-77; 109). Kant entreve mesmo que espagodiz respeitoao esta-
o
tuto de um ser dependendo seinem Dasein sowohl ais seinerAnschauung nach(die
in
seinDasein BeziehungaufgegebeneObjektebestimmt) (B 72) "quantoà sua
existenciae à sua intuigào(a qual determina a sua existencia com relagàoaos
objectosdados)" (Tr.89).
Identifica ao mesmotempoo espago- ou propriedade formalde serafectado
pelos objectos ou de receber urna representagào imediata das coisas - com a pro-
priaintencionalidade da consciencia;é o propriomovimento da consciènciaem
a
direcgào algo, considerada como de
possibilidade expor, de discriminar, de plu-
ralizarurnaimpressàoqualquer.
É entàoa fenomenologia maisexplícitada Analíticaque dissipaa falsaclareza
da Estética,tào fracamente fenomenologica.
A fenomenologia da Analíticasobressaicomevidenciase nosatemosà sua lei-
turaa partir do firn, remontando da teoriatranscendental dojuízo (ou Analíticados
Principios) à teoria transcendental do conceito e demorando-se ñas Analogíasda
experiencia antes de mergulhar no difícil do
capítulo Esquematismo (porrazòes
que mencionaremos mais à frente). É natural a
que fenomenologia de Kant seja pri-
oritariamente urnafenomenologia do juízo; é estaque é a maispropriaparaforne-
cerurnapropedèutica à epistemologia; é naturai, pelo contràrio, que a fenomeno-
logia de Husserl seja de preferencia fenomenologia percepgào:é esta a
urna da
maisapropriada a ilustrar urnapreocupagàocom a evidencia,a originariedade ea
presenga, ainda as
que LogischeUntersuchungen comecem e o
pelojuízo que lugar
do juízo seja marcadoñas estratificagòes do vivido,ao nivelde síntesesfundadas.
(Veremosna IIa parteque outrasrazòesexplicamestadiferenga de acentuagào
e de preferencia na descrigàoentreKante Husserl).Em todoo caso, nào é a dife-
rengado temadescritivo que devedissimular o parentesco do métododa Análise.
Se, portanto, abordamos a Analitica pelofirn, pelasAnalogíasda Experiencia,
veremosdesenvolver-se urnaampia análisedo juízo comoactode subsumir as per-

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[17] 6i • 2005 |355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
362 Paul Ricoeur

cep^òes sob as regrasda intelectualidade. O Kantepistemólogo tomaestaopera-


io por urna simples"aplicagào"das regrasdo entendimento previamente consti-
tuidas; mas o peso da descrivo acarretaa análisenumoutrosentido:a subsun^ào
revelaserurnaverdadeira constituidoda experiencia, enquantoexperiencia com-
preendida, julgadae exprimida ao nivelpredicativo.
Os Principiosque, do pontode vistaepistemológico sao os axiomasde urna
físicapura,os primeiros juízos sintéticosa priori de urna ciencia da natureza, sus-
citamurnaadmirável da da
descrivo constituido Dinglichkeit: para além dos prin-
cipiosde permanencia, de productoe de reciprocidade, é a intelectualidade do per-
cebidoque é tematizada. E o que é admirável é que, bemantesde Husserl,Kant
tenhaligadoas estruturas da Dinglichkeit às estruturas da temporalidade: as manei-
ras diferentes em que a experiencia é "ligada"sao tambémas maneirasdiversas
pelasquais o tempose estrutura intelectualmente. A segundaanalogia,emparticu-
lar,ocultaurnaverdadeira Fenomenologia do acontecimento que respondeà ques-
tao:o que significa "acontecer"? É sobreo objectono mundoque a fenomenologia
elaboraa nogàode urnasucessàoregulada.Em linguagem husserliana, diríamos que
as Analogíasda Experienciadesenvolvem o lado noemáticodo vividonojuízo de
experiencia; elas consideram o juízo do lado do "julgado",terminando no objecto.
(O capítuloprecedente, sobre o Esquematismo, ao
releva, contrario, da análisenoè-
tica do "acontecimento" e reflectesobrea propriaoperagào de liga^ào, como
"podersintético da imagina9ào"(B233). Voltaremos a estepontomaisadiante.
Se se considerar que estecapítuloII da doutrina dojuízo,cujocora^àoé a teoria
dasAnalogíasda experiencia, mostra a facenoemática dojuízo de experiencia, com-
preender-se-à que esta análisenoemáticatermina nos Postuladosdo pensamento
empíricoem geral (A 218 sq.; Tr.232 seg.); estes,com efeito,nao acrescentam
nenhuma determinagao novaao objecto,mastematizam a sua existencia segundoas
modalidades do real,do possívele do necessario. Ora,o que significam estespostu-
lados?Pòemsimplesmente a correlatofundamental da existencia das coisase da
sua perceptibilidade: Woalso Wahrnehmung undderenAnhangnachempirischen
Gesetzenhinreichty dahinreichtauch unsereErkenntnis vomDasein derDinge(A
226). "Portodoo lado,ondese estendea percepsaoe o que dissodepende,emvir-
tudedasleisempíricas, ai também se estendeo nossoconhecimento da existencia das
coisas" (Tr.237). A espacialidadeforneceu-nos o estiloda intencionalidade, como
abertura ao aparecer;o postuladodo pensamento empírico determina a efectividade
da intencionalidade, comopresentapercebida da coisa que aparece.
Nào é, pois,casual,o factode Kantterintroduzido, na 2a Edigaoda Críticada
Razào Pura,a Refutacàodo Idealismo(B 274 sq.) que é urnadefinigao, avantla let-
tre,da intencionalidade; das blosse,aberempirisch bestimmte, Bewusstsein meines
eigenenDaseinsbeweistdas DaseinderGegenstande imRaumaussermir(B 275):
"A conscienciasimples,mas empiricamente determinada, da minhapropriaexis-
tencia,provaa existenciados objectosno espa£oe forade mim"(Tr.238). A cor-
relalo do "eu sou"e do "algumacoisaé", é, comefeito,a pròpria intencionalidade.

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61 «2005 [18]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 353

Mas se o capítuloII da Doutrinatranscendental do Juízodesenvolvea face


noemáticado juízo de existencia, o capítuloI, consagradoao esquematismo, éa
sua facenoètica;è porisso que é tào obscuro;antecipasemcessar,porvia refle-
xiva,as Analogíasda Experiencia, que mostram sobreo objectoa obrado juízo;
serásemprenecessariolerestecapítulodepoisdo seguintee voltara ele porum
movimento reflexivoque reencontra no Gemüto que foimostrado sobreo objecto.
É o carácter antecipadodestecapítuloque explicaa brevidadede Kantna elabora-
gáo dos esquemas:no entanto, as suas aproximadamente cem linhas(A 144-147;
Tr. 179-182)sao comoa facesubjectivada imensaanálisenoemáticado capítulo
seguinte.
Se a considerarmos destemodo,a teoríado esquematismo aproxima-se muito
a
daquilo que Husserl chama a ou a
autoconstituigào constituigào de si na tempo-
ralidade.Compreendemos que Kantse tenhaespantadocomestaverborgene Kunst
in den Tiefender menschlichen Seele, deren wahre Handgriffe wir der Natur
schwerlich jemals abratenundsie unverdeckt vorAugenlegenwerden(A 141),
"urnaarteescondidañas profundezas da almahumana"(Tr.178).JamáisKantfoi
táo livreem vistadas suas preocupagòes epistemológicas;jamáis estevetào pró-
ximode descobrir o tempooriginàrio da consciènciaparaalémdo tempoconstitu-
ido (ou o tempocomorepresentagào, segundoa EstéticaTranscendental). O tempo
do esquematismo estána sutura da da
receptividade espontaneidade, do diverso e
da unidade;é o meupoderde ordenar ameaga e a de me escaparsempre e de me
destruir; é indivisamente a racionalidadepossivelda ordeme a irracionalidade
semprerenascente do vivido;olha no sentidoda afecgào,de que è o fluxopuro,e
no sentidoda intelectualidade, já que os esquemasconfiguram a sua estruturagào
possivelquantoà "serie",ao "conteúdo", à "ordem".(A 145).
Se seguirmosaté ao firnesta fenomenologia do Gemüt,torna-senecessario
aproximar desta análise noètica da operacào mesma do juízo aquiloque Kant,em
diferentes momentos, é levadoa dizerda existenciada consciència.Se a análise
noemáticaculminanos Postuladosdo pensamento empíricoque remetem a exis-
tenciadas coisas à sua perceptibilidade, a análisenoèticaculminana autodetermi-
nagàodo eu existo.Mas,nao encontramos sobreestetemamaisdo que notasespar-
sas de Kantna Crítica:é nesteponto,com efeito,que a fenomenologia implícita
encontra as maisconsideráveis resistencias, no interiordo propriokantismo. Toda
a concepgàoepistemológica da objectividade tendea fazerdo "eu penso"urnafun-
gào destaobjectividade e impòea alternativa que evocávamosno inicio:ou bem
tenhoconsciènciado "eu penso",mas nao o conhego;ou bem "conhego"o eu
[moi],masé umfenómeno da natureza. É porisso que a descrigàofenomenologica
tendeparaa descoberta de um sujeitoconcretoque nào temassentofirmeno sis-
tema;è, pois,dele,que Kantse aproxima, todasas vezesque se aproximatambém
do tempooriginario que actúa no Juízo pormeiodo esquematismo; é tambémdele
se
que aproximaquando determina a existencia das coisas como correlativa da
minhaexistencia;é porestaocasiào que declara:"IchbinmirmeinesDaseins ais

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[19] 61-2005 |355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
364 Paul Ricoeur

in der Zeit bestimmt bewusst(B 275) ... folglichist die Bestimmung meines
Daseins in der Zeit nurdurchdie Existenzwirklicher Dinge,die ich aussermir
wahrnehme, móglich"(B 275-6). "Tenhoconsciènciada minhaexistenciacomo
determinada no tempo...porconseguinte, a determinagào da minhaexistenciano
temponao é possívela nao serpela existenciadas coisas reaisque apercebofora
de mim"(Tr.34-36).O mesmose pode dizerda notado prefacioda segundaedi-
9ào (BXL), (Tr.34/36).A dificuldade imensaestavaem tematizar urnaexistencia
que nào fossea categoriade existencia, querdizer,urnaestrutura de objectividade;
eia é enfrentada urnaprimeira vez no § 25 da 2a Edigao(urnaexistenciaque nao é
umfenómeno); a notaque Kantlheaduz (B 158;Tr.158) propòea tarefade apre-
endera existenciano acto do Eu pensoque determina esta existencia,logo antes
da intuidotemporal de mimmesmoque eleva a minhaexistenciaao nivelde um
fenómeno psicológico(B 157); a dificuldade é grande,sobretudo se consideramos
que o Eu pensoso passa ao actona ocasiao de umdiversoque ele determina logi-
camente.Conhecemos,sobretudo, o textofamoso,na críticada Psicologiaracio-
nal,ondeo "Eu penso"é considerado comournaproposigàoempíricaque engloba
a proposito eu existo;Kanttentaresolvero problemano quadroda sua episte-
mologia,ao ligara existenciaa urna"intuito empíricaindeterminada", anteriora
qualquerexperiencia organizada, o que lhepermite dizer:die Existenzisthiernoch
keineKategorie(B 423); "a existencianào é aqui aindaurnacategoria"(Tr.357).
Esta existenciaforada categorianào seráa subjectividade eia mesma,sem o
que o "Eu penso" nào mereceríao título de primeirapessoa? Nào estáeia emliga-
£ào com esse tempooriginàrio que a Analitica desenvolve para além do tempo-
-representa^ào da Estética?
Em resumo,nào é a existenciado Gemiit, - desteGemitique nào é nemo Eu
pensocornoprincipio de possibilidade das categorías,
nemo eu-fenómeno da cien-
cia psicològica,- desteGemiitoferecido à experienciatranscendental pela redu^ào
fenomenologica?

II. A Criticacomo inspectào dos limites

O nossoprimeiro grupode análisesrepousavasobreurnalimitagào provisoria:


admitimos que se podiadistinguir emHusserlo métodoefectivamente da
praticado
interpretagào filosófica que o autorai mistura
constantemente, sobretudo ñasobras
editadas;é estafenomenologia efectivaque nosserviude revelador paraurnafeno-
menologiaimplícita na Crítica.O parentescode Kante de Husserlnào é alcanzado
a nào sercomo pregode urnaabstracgao masprecaria,
legítima, praticadasobrea
intengaototalde urnae de outraobras.
Ora, a críticaé justamente algo diferentede urnafenomenologia, nào apenas
pela sua preocupagào epistemológica, mas também pela sua intengào É
ontològica.
aqui que a Crítica é mais do que urna simplesinvestigagào da "estrutura
interna"
do saber,mas é tambémurnainvestigalo dos seus limites.O enraizamento do

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61 • 2005 [20]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 3^5

saberdos fenómenos no pensamento do ser,inconvertível em saber,dá à Crítica


kantianaa sua dimensàopropriamente ontologica.Destruiresta tensáoentreo
conhecere o pensar,entreo fenómeno e o ser,é destruir o propriokantismo.
Podemos,entào,perguntar-nos se a fenomenologia de Husserl,que serviude
guiae de revelador paraurnafenomenologia descritiva do kantismo, nào deveser
considerada, porseu do
lado, ponto de vista da ontologia kantiana.
Talvez a inter-
pretagào filosófica
que se mistura com a énoxí] transcendental participe destru-
na
ido da ontologia kantiana e consagre a Perda do Denken no Erkennen, restrin-
gindo a a
filosofia urna sem
fenomenologia ontologia
Retomemos, em primeiro lugar,conscienciada fungàoque exerceem Kanta
posigàodo em si em relagàoà inspecgàodos fenómenos.
Nào se tratade saberdo ser.Mas estaimpossibilidade, que instimiurnaespe-
cie de decepgàono coragàodo kantismo, é, eia mesma, essencialparaa significa-
gào final do fenómeno. É urna de
impossibilidade alguma forma activae até
mesmopositiva;atravésdestaimpossibilidade do saberdo ser,o Denkenpòe ainda
o sercomoo que limitaas pretensòes do fenómeno emconstituir-se comoa última
realidáde; assim o Denken confere à fenomenologia a sua medida ou a sua valora-
gào ontologica.
Podemosseguir,atravésda Crítica,estaconexaoentreurnadecepgào(em face
do saber)e umactopositivode limitaqao.
A partirda EstéticaTranscendental, em que a intendoontologicaestá cons-
tantemente presente,Kantdiz que a intuigàoa priorise determina porcontraste
comurnaintuigào criadora,que nao temos.A muitoimportante notade Kantsobre
o intuitus originarias,no firnda Estética,é clara:o Gegen-stand coloca-sediante
de mimna medidaemque naoé Ent-stand, aqueleque surgiría da suapropriaintui-
gào7.Ora,estadecepgàometafísica está,desdeo comego,incorporada na determi-
nagàodo propriosentidodo espagoe do tempoe introduz umtoquenegativoem
cada páginada Estética:"todaa nossaintuigàonào é maisdo que a representagào
do fenomeno; as coisas que nos intuímos nào sào taiscomo as intuímos";a falta
de serdo fenómeno é-lhe,de qualquermodo,inerente. Mas estedefeitoé, ele pro-
prio,o inversode umactopositivodo Denkenque8,na Estética,tomaa formafan-
tásticade urnasuposigào;a suposigàoda destruigào da nossaintuigào:"Gehenwir
vondersubjektiven Bedingung ab, ... so bedeutet die Vorstellung vomRaumegar

7 A cartaa MarcusHerzde 21 de Fevereirode 1772 punhajá o problemada Vorstell-


ung,porreferencia estranha
a estapossibilidade de urnaintuigàogeradorado seu objecto.
8 O mesmomaislonge: "Wennaber Ich selbst,odereinanderWesen mich,ohnediese
Bedingungder Sinnlichkeit, anichasseskonnte, so würdenebendieselbenBestimmungen,
die wir unsjetzt ais Veranderrung vorstellen,eine Erkenntnisgeben, in welcherdie
"
VorstellungderZeit,mithin auchderVeranderunggarnichtvorkame... (A 37). "Wennman
vonihrdie besondereBedingung unsererSinnlichkeit
wegnimmt, so verschwindet auchder
Begriffder Zeit" (A 37).

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[21] 61 • 2005 I 355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
366 Paul Ricoeur

nichts"(A 26). O mesmoum pouco mais adianteparao tempo(A 37;Tr.75-6).


Estenadapossívelfazparteda nogaode idealidadetranscendental; o espagonao é
nada forada condigaosubjectiva(A 28; Tr. 70). Esta imaginagaofantástica
exprimeo positivodestenegativo:a nossa faltade intuigàooriginària. Este posi-
tivoé o Denken,irredutível ao nossoserafectado, irredutívelporconseguinte a esta
"dependencia"do homemseinemDasein sowohlais seinerAnschauungnach
(B 72) ("quantoà sua existenciae à sua intuigào"Tr.89 ) que o firnda Estética
evoca.É o Denkenque pòe o limite.9 Nào é o conhecimento fenomenal que limita
o uso das categoríasna experiencia, é a posigaodo serpelo Denkenque limitaa
pretensáo do conhecerao absoluto;conhecimento, finitudee mortesào assimliga-
dos porum pactoindissolúvel que so é reconhecido pelo proprioactodo Denken
que escapa a estacondigàoe considera-a, de certaforma, de fora.
Nào teremos prurido em mostrar que estasuposigáo nadado nossoconheci-
do
mentosensívelesclarecea afirmagao constante de Kantde que a filosofiatrans-
cendentaldefinea linhade fronteira que separaas "duas faces"do fenómeno (A
38), em si e para nos. (<Denn, das was uns notwendigüber die Grenzeder
Erfahrung undalterErscheinungen hinausgehen istdas Unbedingte,
treibt, usw."
o
(B XX); "Porque, que nos leva a sairnecessariamente dos limitesda experiencia
e de todosos fenómenos, é o Incondicionado". É o Incondicionado que nos auto-
rizaa falardas coisassofernwirsie nichtkennen(ibid.): "enquantonao as conhe-
cemos"(Tr.24).
Esta fun^ao limitadorado em-si encontraurnaespantosaconfirmagao na
AnalíticaTranscendental Eia acaba o sentidoda "natureza".Ao marcaro lugar
vazio de urnaimpossívelcienciada criagào,eia evitaque o saberdos fenómenos
da naturezase fechenumnaturalismo dogmático. Esta fun^aolimitadora do em si
encontra a sua expressàomaiscompletano capítulosobrea Distinguode todosos
objectosemfenómenos e númenos.O conceitode em si, aindaque problemático
(do pontode vistado saber;mas problemático nào querdizerduvidoso,mas nao
é necessario"umdie sinnliche
contraditório), Anschauung nichtbis überdieDinge
an sichselbstauszudehnen"(A 254); "paraque nào se estendaa intuigàoaté às
coisas em si" (Tr.265). Mais claramente ainda:Der Begriff einesNoumenonist
also bloss ein Grenzbegriff, umdie Anmassung der Sinnlichkeit einzuschrànken,
undalso nurvonnegativem Gebrauche"(A 255): "O conceitode um númenoé
entào,simplesmente, umconceitolimitativo que temporfirnrestringir as preten-
sòes da sensibilidade"(Tr.265). Haveria,entào,urnaespeciede Hybrisda sensi-
bilidade;em boa verdadenào da sensibilidade comotal,mas do uso empíricodo
entendimento, da praxispositivae positivista do entendimento. Esta no^ào de uso

9 "Aberdiese Erkenntnisquellena prioribestimmensichebendadurch(dass sie bloss


Bedingungen derSinnlichkeitsind)ihreGrenzen, nàmlich,dass sie blossaufGegenstande
gehen,sofernsie ais Erscheinungenbetrachtet
werden,nichtaberDingean sichselbstdars-
tellen".(A 39).

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61-2005 [22]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl ^61

das categoríasé capital.Kantdistingue-a expressamente do propriosentidodas


categorías(A 147,A 248;Tr.181 e 259); estadistingoesclarecebemo que Kant
entendepela presunto da sensibilidade. Kantnao diz outracoisa quandomostra,
pelojogo da ilusàotranscendental e pela san^ào do fracasso(paralogismo e anti-
nomia),até que pontoé va essa pretensào.Nào é, pois, a razào que encalhana
DialécticaTranscendental, é aindaa sensibilidade na sua pretensàode se aplicar
às coisas em si10.
Se pensamospoderservir-nos destadoutrina kantianacomo de um guia para
interpretar a filosofìaimplicita de Husserl, é misterque nos asseguremos que Kant
conseguiu fazer concordar esta de
fungào limitalo com o idealismo da sua teoria
da objectividade, tal cornoeia ressaltana DialécticaTranscendental. A objectivi-
dade nào se reduzà sinteseimpostaao diversoda sensibilidade pela apercep^ào
pormeiodas categorías?Se esta concepgàode objectividade, como obrada sub-
jectividadetranscendental, é bem o centroda Dedugao Transcendental como se
pode eia articularcom urna outra do
significalo objecto corno em si? Com efeito,
a so
parece,porvezes,que palavraobjecto pode designar "conjunto o das minhas
representagòes" e que a estrutura intelectual da experiencia bastaparalibertar as
minhasrepresentaresde mimmesmoe opò-las a mimcornoum face-a-face
(conhecemoso exemploda casa percorrida, apreendida e reconhecida)(A 190-1;
Tr.213-4);nestesentidoo objectoé apenasa Erscheinung imGegenverhaltnis mit
den Vorstellungen derApprehension "o
(A 191), fenòmeno, poroposigào com as
da A em
representares apreensào"(Tr.214). causalidade, particular, distinguindo
a sucessào no objecto da sucessào das representares,sofernman sich ihrer
bewusstist(A 189;"enquantotemosdeleconsciència"Tr.213) consolidao objecto
das minhasprópriasrepresentaresno contra-pólo da consciència;e pode-sefalar
de verdade,querdizer, de acordo da representagào o seuobjecto,urnavez que,
com
das
poresteprocessode objectivagào representares, existeclaramente das davon
unterschiedene "o da
Objektderselben(A 191; objecto apreensào distintodestas
na
representares"Tr.214). Esta constituidodo objecto consciència, corno face-
-a-faceda consciència, nào anunciaeia, efectivamente, Husserl?
E, noentanto, Kantnaoduvidajamáisde que aquiloque colocao objectoradical-
mentefora,é a coisaemsi. O visardo fenómeno paraalémde si mesmoé o objecto
nào empírico, o X transcendental. É porisso que Kantequilibraos textosondea
objectividade nasceda distanciaentreas minhasrepresentagòes e o fenómeno com
outrosem que os fenómenos permanecem nur Vorstellungen,die wiederum ihren
Gegenstand haben(A 109; "representaresque, porsua vez, tèmo seu objecto"
Tr. 143). O Objecto transcendental ist das, was in alien unsernempirischen

10"Der Verstandbegrenzt ohnedarumsein eigenesFeld zu


demnachdie Sinnlichkeit,
erweitern,und,indemerjene warnt,dass sie nichtanmasse,aufDinge an sichselbstzu
gehen,sondernlediglichaufErscheinungen,so denkter sichseibsteinenGegenstand an
"
sichselbst,abernurais transzendentales
Objekt... (A 288).

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[23] 61-2005 1355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
368 Paul Ricoeur

Begriffen iiberhaupt BeziehungaufeinenGegenstand, d. i. Objektive Realitatver-


schaffen kann(A 109; "é o que podeprocurar em todosos nossosconceitosempí-
ricosem geralurnarelasaocomumobjecto,istoé, comurnarealidadeobjectiva",
Tr. 143).
Assima fun^aorealistada intencionalidade (o objectoX como "o correlativo
da unidadeda apercepgào")atravessade lés a lés a funsàoidealistada objectiva-
<¿aodas minhasrepresentares.
Como é isso possível?A chavedo problemaé a distingo,fundamental em
Kant,mastotalmente desconhecida emHusserl,entrea intenqaoe a intuigào:Kant
dissociaradicalmente a rela^aoa algo.. .e a visàode algo.O Etwas=X é urnainten-
9ào semintuigào. É estadistinsàoque sustenta a do pensare do conhecer;eia man-
témentreelas nao apenasa tensàomas tambémo acordo.
Kantnàojustapòsas duasinterpretagòes da objectividade, masconfigurou a sua
É
reciprocidade.por isso a ao
que relagáo objecto = X é urna sem
intengào intuigào
que reenvíaà objectividade comounificalo de umdiverso;a partir de entào,a rela-
9ào ao objecto nao será mais do que a unidade necessaria da consciencia, assim
como da síntesedo diverso"(A 109; Tr. 143)11.A objectividade que emergeda
e a
objectiva^áo objectividade previa a esta objectiva^ào reenviam-se urnaà outra
Tr.
(A 250-1; 260-2): a idealidade transcendental do objecto reenvia ao realismoda
coisaemsi e esteàquela.O Prefacioda SegundaEdigáonaodiz outracoisaao colo-
cara implicadomutuado Condicionado e do Incondicionado (B XX; Tr.24).
Esta estrutura do kantismonao temcorrespondencia na fenomenologia hus-
serliana.Comoos neokantianos, Husserlperdeua medidaontologicado fenómeno
e, no mesmomovimento, perdeua possibilidade de urnameditalo sobreos limites
e o fundamento da fenomenalidade. É por isso que a fenomenologia nào é urna
"Crítica",istoé, urnainspecgaodos limitesdo seu propriocampode experiencia.
Temosaqui o guiaverdadeiro paradiscernir na redugàofenomenologica a sim-
ples conversào metodológica, cujasimplicatesjá vimos na Primeira Parte, deci-
e a
sao metafísica que ai se mistura. A segunda das Meditacóes Cartesianas pòe a nu
este escorregar sub-reptício de um acto de abstengo para um acto de nega^áo.
Abstendo-me (michenthalten) de colocaro mundocomo absoluto,consquisto-o
como mundopercebidona vida reflexiva, ou seja, ganho-ocomo fenómeno;e
Husserlpodelegítimamente dizerque "o mundonào é paramimmaisdo que aquilo
que existee vale para a minhaconsciencianumtal Cogito".Mas aconteceque
Husserlafirmadogmaticamente que o mundo"encontra em mime retirade mimo
seusentidoe a suavalidade:Ihrenganzen,ihrenuniversalen undspeziellen Sinnund

11 "Es istaber klar,dass, da wires nurmitdemMannigfaltigen unsererVorstellungen


zu tun haben,undjenes X, was ihnenkorrespondiert weiler etwasvon
(der Gegenstand),
alienunserenVorstellungen Unterschiedenesseinsoil,furunsnichtsanderesseinkónne,ais
die formale Einheit des Bewusstseinsin der Synthesisdes Mannigfaltigender
Vorstellungen" (A 105).

RevistaPortuguesa
de Filosofía
61 • 2005 [24]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 3$)

ihreSeinsgeltung hatsie ausschliesslich aus solchencogitationes"n. "O seu sentido


total,simultaneamente universal e especial,e a sua validadeontologica, o mundo
retira-os exclusivamente destasCogitares". Ingarden já tinhamostradoreservas
sobretaisexpressoesque, diz ele, antecipam sobreo resultado da constituic,ao,
da
darineinemetaphysische Entscheidung enthaltenist,eineEntscheidung, die einer
kategorischen These überetwas,was selbstkeinElementder trans zendentalen
Subjektivitatist,gleicht13: "Porqueestasexpressoesenvoivemurnadecisàometafí-
sica,urnadecisàoque podemosassimilara urnatesecategórica versandosobrealgo
que nao é, em si mesmo,umelemento da subjectividade transcendental".
A razáoprofunda dissoé que Husserlconfundiu a problemática do Ser com a
posi^ao ingenua dos "entes" na atitude natural;ora, esta posic,aoingenuanao é
mais do que a omissao da relagao dos entes a nos mesmose procededessa
Anmassung da sensibilidade de que falaKant.Porisso nao se encontra emHusserl
esteentrelac,amento de duas significances da objectividade que encontrávamos em
Kant, urna objectividade constituida "em" nos e urna objectividade fundadora
"do" fenómeno. É porisso que o mundoque é "para"mimquantoao seu sentido
(e "em"mimquantoao sentidointencional do "em") é também"de mim"quanto
à sua Seinsgeltung, à sua validade ontològica.Desde logo tambéma ércoxfl ea
medidado sere nào pode sermedida pornada; pode simplesmente radicalizar-se
a si mesma;mas eia nào pode seratravessada pornenhuma posic,àoabsolutaque,
à maneirado Bernem Platào, daña ao sujeito possibilidadede vere daña um
a
algo absolutoa ver.
Gostariaagora de mostrarque esta metafísicaimplícitada nao-metafísica
explicaalgunstraaosda propriadescrivo husserliana, nào a fidelidadee a sub-
missàodo olhar"às coisas mesmas"(estacríticaarruinaría purae simplesmente a
fenomenologia), mas as preferencias que orientam o olhar para certas carnadas
constitutivasdo vivido,maisdo que paraoutras.
1. É, antesde tudo,a func,ào da Razào que difereprofundamente de Kantpara
Husserl.Em Kant,a razào,é o proprio Denkeneie proprio reflectindosobreo "sen-
tido"das categoríasforado seu "uso" empírico;sabemosque esta reflexàoé,
simultaneamente, urnacríticada ilusàotranscendental das "ideias"
e a justificac^ao
da razào.Ora,Husserlempregaa palavrarazào geralmente associadaaos termos
realidadee verdade,numsentidototalmente distinto:é problemade razào (Ideen
/,secgàoIV) todaa apreciac.ào das pretensòes do vividoa significar algo de real;
ora,estaapreciac, ào de validadeconsisteemmedircada tipode significac, ào (o per-
cebidoenquantotal,o imaginario, o julgado,o querido,o sentidoenquantotais)
pela evidenciaoriginariado tipocorrespondente.

12CartesianischeMeditationen,Husserliana/,p. 60. Da mesmaforma,maisadiante,


p. 65, 1.-11-16.
urnafrasesemelhante,
13Bemerkungen vonProf.RomanIngarden, Apéndicea HusserlianaI, p. 208-21U.

Revista Portuguesa de Filosofía I


'25] 6i • 2005 I 355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
370 Paul Ricoeur

O problemada razàonào é, de todo,orientado paraurnainvestigalode algum


visadosemvisào,de algumainte^ào semintuito que daríaao fenomeno umpara
alémde si mesmo14. Pelo contràrio,a razàotemportarefaautentificar o fenòmeno,
ele mesmo,pela sua propriaplenitude.
Desde entào,a fenomenologia da razàovaijogar-se,todaeia, sobrea no^ào de
evidenciaoriginària (seja estaevidencia perceptiva, categorialou outra)."É, pois,
urnacríticaque a fenomenologia desenvolveaqui,no lugarda de Kant;comefeito,
eia faz maisdo que descrever de um modoespecular,eia medetodoo pretender
pelo ver; a sua virtude já nao é apenasdescritiva mascorrectiva; qualquersignifi-
ca$ào vazia (p. ex., a significalo simbolica da qual perdemosa lei da formagào)
é reenviadaà presentada realidade,talcomoapareceríase se mostrasse a si mesma
na sua Leiblichkeit, em carnee osso. A razào é esse movimento de reenviódo
"modificado" ao "originàrio".
Assim,a fenomenologia tornou-se masnumsentidoinversodo de Kant:
crítica,
em Kanta intuisàoreenviavaao Denkenque a limitava', em Husserlo "simples-
mentepensar"reenviaà evidenciaque opreenche.O problemada plenitude {Filile)
substituiu o do limite(Grenze).Ao definir a verdadepela evidenciae a realidade
pelo originàrio, Husserljá nào encontra maisnenhumaproblemática do "em si".
Kantestavapreocupadoem nào se deixarfecharno fenomeno; Husserlestápreo-
cupadopor nào se deixarabusarpelos pensamentos nào efectuados.O seu pro-
blemanào é maisde fundagàoontologica, mas de autenticidade do vivido.
2. Mas estacríticada autenticidade deviaconduzirHusserlde redu^àoemredu-
gào,e antesde tudoa urnaredu^àoda propriaevidencia.Toda a filosofia do ver,da
imediaticidade, amea^a voltarao realismo ingènuo; a de Husserl mais do que qual-
queroutra,na medidaem que insistena presenta"em carnee osso" da propria
coisa; é este perigoque Husserlnào deixoununcade esconjurar.Quantomais
insistesobreo reenviódo pensadoao originariamente evidente,mais deve com-
os
pensar perigos latentes deste intuicionismo, radicalizandosempree acimade
tudoa interpretaloidealistada constituisào.
É comisso que se ocupaa III MeditandoCartesiana,bemcornoos inéditosdo
ultimoperíodo;estesescritostendema reduzira discordancia semprerenascente
entrea exigenciaidealistada constituido- que fazdo objectournaunidadede sen-

14O parágrafo 128de IdeenI parece,à primeiravista,irnestesentido;Husserl,notando


que é o mesmo objectoque semcessarse dá de outromodo,chamaao objectoo "X das suas
determina^òes"; maisainda,propòe-seelucidarcomoo noema"visadoenquantotal"pode
terurnarelagàoa urnaobjectividade(Husserliana,III, p. 315): JedesNoema hat einen
Inhalt,namlichseinenSinn,undbeziehtsichdurchihnaufseinenGegenstand (316). Mas
depoisdestecornetto em estilokantiano,a análisetornaa umtemaespecificamente husser-
liano: o visarnovodo noemaparao seu objecto,que parecereenviara um paraalémdo
"sentido",designao graude plenitude, o modode "preenchimento" do sentidopela intui-
cào. (§§ 135 e seguintes).

RevistaPortuguesa
de Filosofía
61-2005 [26]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 371

tidopuramente ideal- e a exigenciaintuicionista da razào.Ha, pois,que fazerinci-


dirsobrea propriaevidenciaa reductodo apreendido e do adquirido;despojadade
todaa partede evidenciaantiga,sedimentada e abolida,a evidenciareduz-seao
presente vivo(die lebendigeGegenwart) da consciència.Vemosaqui de novomais
umefeitodesta"decisàometafísica" que discernimos há poucona reductohusser-
liana.Toda a presentapermaneceum enigmapara a describo,por este "acrés-
cimo"(Zusatz)que trazem relac.aoá minhaexpectativa e às minhasantecipagoes
maisprecisas.Husserl,quebrandoesteúltimoprestigio do em-sique poderáainda
resvalarna presenta,decideque a presentada propriacoisa,é o meupresente;a
alteridade radicalligadaà presentareduz-seà novidadedo presente: a presentado
outroé o presente de mimmesmo.
Doravante,é do lado da temporalidade que Husserlprocuraráo segredoda
constitui^ao de todo o em-sipretendido; antigasevidencias,abolindoo movi-
as
mentode constituigao em que nasceramoriginariamente dào-sepor
(Urstiftung),
urnatranscendencia misteriosa; o em-si é o da com
passado evidencia, possibilida-
de de a reactivar numnovopresente. Todoumgrupode inéditos- o GrupoC - opta
porestabrecha,abertapela TerceiraMeditaqào.
Encontramos aqui, em lugarde honra,o grandeproblemada temporalidade.
Foi porisso que Husserldiscerniu, paraalémdo temporepresentadoda Estética
Transcendental, a temporalidade originariaque é a pròpriaentradada consciència,
que podedesprezar o mais antigoprestigio, o da realidadeabsoluta.A questàoestá
em saberse ele algumavez se apercebeudo problemado ser.
3. Estadesontologiza^ào da realidadeconduza urnanovaperipecia:a passagem
da constituigao "estática"à constitui^ào "genética",marcadapelo papelcrescente
da temporalidade emtodosos problemas de origeme de autenticidade. Ora,a cons-
tituigao "genética"é, numaboa parte,urnagénese"passiva".Erfahmng undUrteil
é o testemunho destaorienta^ào ñas pesquisasde Husserl.Cada posigaode sentido
e de presentarepresenta emversàocurtaurnahistoria que se foisedimentando e que
logo se aboliu;já o vimosa propósito da evidencia,mas estahistoriaconstitui-se,
eia mesma,ñas carnadas"anónimas"do vivido.Na época das Ideen,Husserlnao
ignorava estelado de "passividade" da consciència, masjá nao o considerava corno
o inversoda consciència(como hyleem rela^àoà formaintencional). O que per-
manecíaem primeiro planoera a activaantecipagao de um"sentido", de urnauni-
dade significante (coisa, animal,pessoa,valor,Sachverhalt).Sobretudo, Husserl
nao deixavade sublinhar que a consciènciaé um diversoque o fenomenólogo so
podeabordarcomo "guiatranscendental do objecto".Ditode outraforma, é a aná-
lise noemáticaque tinhaa vantagem sobrea reflexàodo vividoconsiderado noeti-
camente.Esta preocupac.ao de identificar a consciènciacom a síntese,na sua pre-
sunc,aode unidade,é, no fundo,bastantekantiana.Mas o interessedesloca-se
progressivamente do problemada unidade de sentido,para o problemada
Urstiftung,istoé, do enraizamento de todoo sentidono vividoevidente actual.Este
deslocamento de interesses reduziaa razàológicaà razàoperceptiva - as articula-

Revista Portuguesa de Filosofía I


[27] 6i • 2005 I 355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
372 Paul Ricoeur

goes do juizo retomam sobreo modoactivoas estruturagòes elaboradaspassiva-


mentena esferaante-predicativa da percepgào- e a razào perceptiva à impressào
com
sensorial, as suasretengòes memoriais e as suasprotensòes anestésicas.
É, pois,numanovaEstéticaTranscendental, nao destruida porurnaDedugào
Transcendental, que trabalham os mais importantes inéditosdos gruposC e D da
classificagàode Lovaina.
Segundoesta nova EstéticaTranscendental, o objectopercebidopor todos
reenvía,maisabaixoque a intersubjectividade, ao mundoprimordial talcomoapa-
receao solusipse;no interior destaesferaprimordial, o objecto"externo" reenvia,
por meio de retengòese protensòesda constituigào temporal, ao "objectoimá-
nente"- à Urimpression.
Destaforma, Husserltransportava-nos do gèniode Kantao de Hume.Kant/wn-
dava a impressàono a priorida sensibilidade e todaa ordempercebidana objec-
tividadeintelectual. Com o ultimoHusserl,fundar já nao significaelevarà inte-
lectualidade,mas antesedificarsobre o solo do primordial, do ante-dado.É
o
precisamentegenio de Hume que leva a regressar assim, dos signos,símbolose
às
imagens impressòes.
4. Podemosdizerque, atravésdestaidentificagào da razàocom urnacríticada
evidencia,por esta reductoda evidenciaao presentevividoe porestereenvióà
impressào, Husserlidentifica totalmente a fenomenologia com urnaegologiasem
ontologia.
A intendomaismanifesta das MeditagoesCartesianasé conduzira estaiden-
tificagào.A II Meditacào diz inicialmente que todaa realidadeé um correlato da
Cogitano, toda a Cogitano é um modo do O sua
Cogito. Cogito,por vez, expli- é a
citagàodo Ego. A fenomenologia é, assim,urnaanáliseegológica(§ 13). Husserl
apercebe-se, entào,das temíveis consequèncias:"Sicherlichfàngt sie also ais reine
Egologie an und ais eine die
Wissenschaft, uns, wie es scheint,zu einem,obschon
transzendentalen Solipsismus verurteilt. Es istja noch gar nicht abzusehen,wiein
derEinstellung derReduktion andereEgo - nichtals blossweltliche Phanomene,
sondernals anderetranszendentalen Ego - als seiendsollensetzbarwardenkón-
nen, und damit zu mitberechtigten Themen einer phànomenologischen
eia no
Egologie"15."Seguramente cometa estilode urnaegologiapura,de urna
cienciaque noscondena,parece,ao solipsismo, pelomenosa umsolipsismotrans-
cendental. Nesteestadio,nao se pode,de todo,prevercomo,na atitudeda redugào,
poderáserpossívelque nos devamoscolocara existenciade outrosEgos, nào já
comosimplesfenómenos mundanos, mascomooutrosEgos transcendentais, e que
desse modo fagamosdeles tambémo tema legítimode urnaegologia trans-
cendental".Mas Husserlaceitaheroicamente a dificuldade e deixaentrever que o
solipsismotranscendental devepermanecer einePhilosophische Unterstufe - "um
degrau filosóficoprevio" - e deve ser assumido provisoriamente, um die

15Husserliana,
I, p. 69

RevistaPortuguesa
de Filosofia
61*2005 [28]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 373

Problematik dertranszendentalen ínter subjektivitatais einefundierte,also hóhers-


tufige in rechter WeiseinsSpielsetzenzu konnen...16 - "parapodercomprometer
a problemática da intersubjectividade transcendental de formalegítima, a títulode
problemática fundada, logo de grausuperior".
Veremosna III Partedesteestudose Husserlconseguiutranspor estelimiarda
intersubjectividade. Notemos a
parajá que radicalismo Husserlconduziu estaego-
a
logia, que paradoxo conduziu o solipsismo transcendental.
Na IV MeditagáoCartesianao proprioEgo, enquantoEgo do Ego Cogito,é
tematizado:also sich in sich selbstais seiendkontinuierlich Konstituierendes11:
"nao deixa de se constituir em si mesmocomo existente". Husserldevia,desde
logo,ultrapassar a antigatesedas Ideen,segundoa qual o Ego é deridentische Pol
der Erlebnisse- "o polo idénticodos vividos".O Ego é doravante das in voller
Konkretion genommene ego (das wirmitdemLeibniz'schenWorte Monadenennen
wollen)1*:"o ego tomadona sua totalconcreto, que designaremos com o termo
leibnizianode mónada".O que significa estapassagemda linguagem cartesianaà
linguagem leibniziana? Marca o triunfo totalda interioridadesobre a exterioridade,
do transcendental sobreo transcendente: tudoo que existeparamim,constitui-se
emmime estaconstituisao é a via concretado eu. Desde logo,bempodemosdizer
que todosos problemas de constituidoestàoincluidosnestederphanomenologis-
chenAuslegung diesesmonadischen ego (das ProblemseinerKonstitution fursich
selbst) ...In weitererFolge ergibt sich die Deckung der Phanomenologie dieser
Selbstkonstitution mirder Phanomenologie überhaupt...19: elucidalo feno-
"da
menologica desteEgo monàdico (é problemada sua constituigào
o parasi mesmo)
... no firnde contas,pareceque a fenomenologia destaconstituidode si parasi
coincidecoma pròpriafenomenologia". A fenomenologia faràentàojuramento de
atravessar o desertodo solipsismo,cornoascese filosófica. A fenomenologia éa
cienciado unicoego de que tenhournaevidenciaoriginària, o meu.Jamáiso kan-
tismopoderáencontrar um tal problema.Nào apenasporquena sua perspectiva
epistemológica so poderáencontrar urnaconscienciaem geral,o sujeitodo saber
verdadeiro, mas também porque o Gemüt que a críticapressupòecornosujeitocon-
cretotendesemprepara o objectotranscendental =X que escapa ao fenómenoe
que pode ser a existencia absoluta de urna outra pessoa. A desontologizasao do
em
objecto, Husserl,implica virtualmente a dos corpos alheiose a das outraspes-
soas. Assim,a descrivo do sujeitoconcreto, colocada sob o signodo idealismo,
conduza estasolidàometafísica de que Husserlassumiucomexemplarprobidade
todasas consequencias.

16Husserliana,I, p. 69.
17O.c. p. 100.
is O.c. p. 102.
19O.c. p. 102-3.

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[29] 61«2005 1355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
374 Paul Ricoeur

É porisso que a constituigào


do outro,que asseguraa passagemà intersubjecti-
mas
vidade,é a pedrade toquedo fracassoou do sucesso,nào da fenomenologia,
da filosofiaimplicita
da fenomenologia.

III. "Constituido da alteridade"e "Respeito"

Todos os aspectosda fenomenologia convergem entào,para o problemada


constituido da alteridade. Saimos nós, dessa forma, de urnaproblemática kanti-
ana? Penetramos numpaís novoque nadateráluzidoao geniokantiano? De modo
nenhum.Esta últimaperipeciada fenomenologia husserliana, saída do que há de
menoskantianona "experiencia transcendental" de Husserl,conduz-nosde forma
inesperada ao cora^aodo kantismo; nào,certamente, à Críticada Razào Pura,mas
à filosofia
pràtica.
Kantnào tinhaurnafenomenologia da consciènciada alteridade; a fenomeno-
logia do Gemüté demasiadoimplícitae demasiadoafundadapelas considerares
epistemológicas paraconterapenasos atractivos de urnateoríada intersubjectivi-
dade.Encontraremos as suaspremissas, alémdisso,naAntropologia, no quadroda
teoríadas paixòesque Kantleva a efeitocomournateoríada intersubjectividade.
Mas tudoistoé poucoem confronto com os admiráveis ensaiosfenomenológicos
de Husserlsobrea Einfühlung. A teoríada Einfühlung pertenceà fenomenologia
descritivaantesde suportar o peso de resolvero paradoxodo solipsismotranscen-
dental.Eia fazcorpocoma fenomenologia da percep^ào,a percepgàoda alteridade
incorporando-se à significagào do mundoque eu percebo;eia inscreve-se na cons-
tituidoda coisa da qual determina a ultimacarnadade objectividade. Está impli-
cada na constituigào dos objectosculturáis, da linguagem, das institui^oes.
Nào é, pois,sobreo terreno propriamente descritivoque a fenomenologia tem
alguma coisa a aprender com Kant. Husserl é o
aqui guia, e nào Kant.
Pelo contràrio, reencontramos Kantpara resolveras dificuldadessuscitadas
pela interpretado filosóficada redugàoe que culminamno paradoxodo solipsis-
motranscendental. Husserlnào se propósapenasdescrever cornoa alteridade apa-
rece,em que modosperceptivos, afectivos,práticosse constituí o sentido:"alteri-
dade", "alter-ego".Ele tentouconstitui-los "em" mime, contudo,constitui-los
enquanto"outro".
E essa a tarefada VMeditagàoCartesiana.Pode-sedizerque estedifícilensaio
é urnaapostainsustentável; o autortentaconstituir a alteridade comoum sentido
que se formaem mim,naquilo que é o mais "proprio"ao ego, naquilo a que
Husserlchamaa esferada perten^a.Mas, ao mesmotempoque constitui a alteri-
dade em mimsegundoa exigenciaidealista,entendeque deverespeitar o proprio
sentidoque se liga à presengado outro,cornoum outroque nào eu e cornoum
outroeu que temo seu mundo,que me percebe,se dirigea mime desenvolve
comigorelagòesde intersubjectividade, dondesaemo mundoúnicoda cienciae os
múltiplos mundosda cultura. Husserlnào quersacrificar nema exigenciaidealista,

RevistaPortuguesa
de Filosofía
61 • 2005 [30]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 375

nema docilidadeaos termosespecíficosda Einfühlung. A exigenciaidealistaquer


que a alteridade, comoa coisa,seja urnaunidadedos modosde aparigào,um sen-
tidoideal presumido; a docilidadeparacom o real querque a alteridade"trans-
grida"a minhapropriaesferada experiencia, fagasurgir, ñas margensdo meu
vivido,umacréscimode presera incompatível com a inclusàode todoo sentido
no meuvivido.
O problemada alteridade traz,pois,à luz o divorciolatenteentreas duas ten-
denciasda fenomenologia, a tendencia descritivae a tendencia dogmática. O genio
de Husserlestáem tersustentado a apostaatéao firn. A preocupadodescritiva de
respeitar a alteridade do outro e a preocupagàodogmática de fundar o outro na
da
esferaprimordial pertenga Ego ao encontram o seu equilibriona ideia de urna
apreensáoanalogizantedo outro.
O outroestálá, ele mesmo,e no entanto eu nao vejo o seu vivido.O outroestá
apenasapprasentiert - "apresentado", mas sobre o fundamento do seu corpoque
é -
apenas prasentiert "presentado" com urna evidencia originaria na esferada
minhaexperiencia vivida."Em" mimum corpoé apresentado que apresentaum
outrovividoque nao o meu.Este vividoé umvividocomoo meu,em virtudedo
aparelhamento (Paarung)entreo meucorpoaqui e o outrocorpolá. Estaconfigu-
em
ragao par funda a analogiaentreo vividoeingefühlt e o vividoerlebt,entreo
vividodo outroe o meu.
TeráHusserlconseguidoconstituir o estranho comoestranho na esferapropria
da experiencia? Fez ele a apostade vencero solipsismosemsacrificar a egologia?
O enigmaé que o outro,apresentado sobreo seu corpoe captadoanalogicamente
por"síntesepassiva",tenhaumvalorde ser(Seinsgeltung) que o arranqueà minha
esferaprimordial. Como é que urnaanalogia- supondoque conhegoo outropor
analogia- podeterestevisartranscendente, enquantotodasas outrasanalogíasvào
de urnacoisa a outrano interior da minhaexperiencia? Se o corpodo outrose cons-
titui"em"mim,comoé que o vividodo outro,que ai reside,é apresentado "fora"
de mim?Como é que urnasimplesconcordancia entreos modosde aparigàodo
comportamento podeindizieren umestranho e nao urnacoisa maissubtildo "meu"
mundo?ConseguiuHusserlsubtrair-se ao enormeprestigioda constituigào da
Dinglichkeit- da coisa como coisa - numfluxode perfis,de silhuetas{Ab-
schattungerì)! O outroé maisdo que urnasimplesunidadede perfisconcordantes?
É verdadeque ñasIdeenII (III Parte)Husserlopòe radicalmente a constituigào
das pessoasà da natureza(coisas e corposanimados).Acontecemesmo,numdos
apéndices,oporà Erscheinungseinheit - "a unidadede aparigòes"- da coisa, a
EinheitabsoluterBekundung - "a unidade de manifestaloabsoluta"- da pessoa;
a pessoa seriaentào muito mais do que um desdobramento de silhuetas;eia seria
umsurgir absolutode presela. Mas esta oposigào entre a pessoaque "se anuncia"
e a coisa que "aparece",urnaoposigàoque descrivo impòee que a filosofiada
a
redugàominimiza. É urnaperturbalototaldo sentidoidealistada constituigào que
eia implica:o que a pessoa anuncia,é justamentea sua existenciaabsoluta.

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
3,] 6! «2005 |355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
376 Paul Ricoeur

Constituir a pessoa,é entàoindicarem que modossubjectivosse operaestere-


conhecimento da alteridade, da estranheza, da existenciaoutra.O idealismohus-
serlianodeviafazerfacea estainversáodo sentidoda constituigáo.
É aqui que se apresenta umretorno a Kant;nao paraperfazer urnadescrivodo
aparecer da alteridade, mas paracompreender o sentido da Existencia que se anun-
cia nesteaparecer. É notávelque seja o filósofomaisdesarmadono terreno da des-
crivo fenomenològica que tenha ido direito a este sentido da existencia. Quando
Kantintroduz, na Fundamentando da Metafísicados Costumes, a segundafórmula
do imperativo categórico:Handle so, dass du die Menschheit sowohi in deiner
Person,ais inderPersoneinesjedenandernjederzeit ais Zweck,niemalsblossais
Mittelbrauchest(A 429; "Age de tal formaque tratesa humanidade tantona tua
pessoa como na de todos os outros sempre ao mesmo tempo como um firn,e nunca
simplesmente como um meio", trad. Delbos Delagrave,p. 150-1. Citaremos dora-
vanteD, p. 150-1).Podemosficarchocadoscom estaintroducào bruscado outro
no formalismo kantianoe podemoslamentarque nenhumadescrivo do conhe-
cimentodo outroprecedaesta determina9ào pràticada alteridadepelo respeito.
Nào é necessarioconhecero outrocomo outroe em seguidarespeitá-lo? O kan-
tismosugereurnarespostacompletamente diferente. É no propriorespeito, como
disposilo pràtica,que reside a única determinac,ào da existencia do outro.
Examinemosde maispettoo projectokantiano:a existenciaem si do outroé
entàocolocadahipotéticamente comoidènticaao seu valor:Gesetztaber,es gabe
etwas,dessenDasein an sichselbsteinenabsolutenWerthat,was ais Zweckan
sichselbstein Grundbestimmter Gesetzeseinkónnte, so würdein ihmundnurin
ihmalleinder Grundeinesmoglichen kategorischen Imperativs, d. i. Praktischen
Gesetzesliegen(A 427-8; "Mas supòeque há algo cuja existenciaem si mesma
temumvalorabsoluto,algumacoisa que, comofirnem si, poderiaserumprinci-
pio de leis determinadas - é entàonissoe so nissoque se encontrará o principio de
umimperativo categóricopossível,istoé, de urnalei pràtica/'D, p. 149).
Nestaposic.àohipotética de um fundamento, nao aparecenenhumadiferenc.a
entrea determinacào existencial e a determinacào pràticada pessoa.A oposito da
pessoa e da coisa é, em conjunto,pratico-existencial: a "coisa" pertence, como
objecto dos meus desejos, à ordem dos a
meios; pessoapertence, como face-a-face
do respeito, à ordemdos finsem si: ... dagegenvernünftige WesenPersonengen-
nantwerden, weilihreNatursie schonais Zweckean sichselbst...auszeichnet (A
428-9; "ao contrario, os seresracionáissao chamadospessoas,porquea sua natu-
rezaos designajá comofinsem si",D, p. 149).
Objectar-se-á que o respeito,como a simpatía,é um sentimento subjectivoe
nào temmaiso poderde esperarumem-sicomoa percepc,ào sensívelou o desejo.
É justamente julgarmal o respeitoe pò-lo ao lado da percepcào,do desejo,ou
mesmoda simpatía:o respeitoé o momento pràticoque fundao visartranscen-
denteda simpatía. A simpatía, comoafecto,nào é maisprivilegiada do que o odio
ou o amor;é porisso que o alargamento, alias legítimo, da fenomenologia husser-

RevistaPortuguesa
de Filosofía
61-2005 [32]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
Kant e Husserl 377

lianano sentidoindicadoporMax Schelerou porMac Dougall ou pelos existen-


cialistasfranceses, nao mudanada ao problemada existencia, mesmose oferece
uminventàrio maisricodos modosde aparecerda alteridade. O respeito, enquanto
sentimento pràtico,pòe um limiteà minhafaculdadede agir;assim,falandode
humanidade, Kantestabeleceque a mesmanào é um "firnsubjectivo"que visaría
a minha simpatia,o que seria ainda incluí-la ñas minhas inclinagòesals
Gegenstand, denmansickvonselbstwirklich zumZweckemacht(A 431; "como
umobjectodo qual fazemosemrealidadeumfirndo seu propriograu"D, 154).A
humanidade é um"firn objectivo",comolei da serieque constitui die obersteeins-
chrankende Bedingung aller subjektiven Zwecke(Ibid; "a condigàosupremares-
tritivade todosos finssubjectivos");maislonge,Kantchama-lhemaisfortemente
die obersteeinschrankende BedingungimGebrauchallerMittel(A 438; "a con-
die,ao limitativasupremano uso de todosos meios" D, p. 166). Do mesmomodo
é a pessoa:é "umfirnque existeporsi", que eu nào posso pensara nao sernega-
tivamente, como "aquilo contraquem nao devemosjamáis agir" (dem niemals
zuwiedergehandelt...werdenmussA 437; D, p. 165).
Pelo respeito, a pessoa encontra-se situadanumcampode pessoascuja alteri-
dademutuaestáestritamente fundada sobre a sua irredutibilidade aos meios.Se o
outroperdeestadimensao éticaque Kant chama a sua dignidade(Würde)ou o seu
pregoabsoluto,se a simpatíaperde o seu carácterde estima,a pessoajá nào é mais
-
do que umblossesNaturwesen "um puramente ser natural "-ea simpatíaum
afectoanimal.
Mas, diremos,a proposigáo:die vernünftige Naturexistiert als Zweckan sich
selbst(A 429; "a natureza racionalexistecomofirnemsi", D, p. 150) é apenasum
postulado.Kantrecorda-o amiúde(vera sua notaa A 429). Estepostuladoé o con-
ceitode umreinodos fins,istoé, de urnaligagàosistemática de seresracionáispor
leiscomuns.O historiador nao se coíbede reconhecer a ideiaagostiniana da cidade
de Deus e a ideia leibnizianado reinoda graga.O que é propriamente kantiano, é
acedera estaideiaporummovimento de regressàoparao fundamento da boa von-
tade,logo porradicalizagàode urnabuscada liberdade.A pluralidade e a comuni-
cagáo das conscièncias nao pode fazer o objectode urna descric,ao, se em primeiro
-
lugarnao sao postasporumactode Grundlegung:de "posigàode fundamento"
- a comunicagao das consciènciasé, entào,o que tornapossívela coordenagáo das
liberdades e o que fazde cada querersubjectivournaliberdade.
Podemos,semdúvida,lamentar o caminhoestritamente jurídicoque tomaesta
mutualidade das liberdadessob a ideiade urnalegislado a priori.Nào é isto,sem
dúvida,o maisdestacávelem Kant.O que permanece admirável é nào terprocura-
do outra"situagào"para a pessoa que a sua "pertenga" (como membroou como
chefe)a urnatotalidade pràticae éticade pessoas.Foradissonào é maisurnapes-
soa. A sua existencianao pode sermais do que urna"existencia-valor". As reve-
lagòes afectivasdo outronao ultrapassam forgosamente o nivel de utensilio ou de
mercadoria.

de Filosofia I
RevistaPortuguesa
[33] 6i «2005 1355-378

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions
37g Paul Ricoeur

Assim,a existenciaabsolutado outropertenceoriginariamente à intendode


urnavontadeboa; so um movimento de
reflexivo Grundlegung descobre que esta
intendoenvolveo acto de se situarcornomembrolegislador numa comunidade
ética.
Do mesmomodoa determinadoda pessoacornofirnem si que existeconduz-
-nosao problemada coisa em si. Na II Partesublinhámos a fun^àolimitativa da
coisa em si faceàs pretensòes do fenomeno. Esta filosofiados limites,totalmente
ausenteda fenomenologia, encontra no planopràticoo seu desenvolvimento, pois
o outroé aquele contrao qual eu nào devoagir.Mas ao mesmotempoa ideia de
umreinodos finsfaz surgiro carácterpositivodefundamento do em si. Apenasa
determinagao do em si nao se torna nunca teoréticaou especulativa,masmantém-
-se pràticae ética.O únicomundointeligível no qual posso "colocar-me" é aquele
ao qual acedopelorespeito. Pela autonomia da minhavontadee o respeitoda auto-
nomiade outrem, so versetzen wirunsais Gliederin die Verstandeswelt - "nos
transportamo-nos para o mundo inteligívelcomo membros". Mas ao entrar neste
nào
mundo, posso mich hineinschauen, hineinempfinden (A 459), olhar-me, nao
posso sentir-me; "Ao introduzir-se assimpelo pensamento num mundo inteligível,
a razàopràticanào ultrapassa emnadaos seuslimites;eia so os ultrapassará se qui-
ser,entrando nesse mundo,apercebendo-se dele e sentindo-o." D, p. 201).
Poristo,Kantnao mostrou nao apenasdas pretensòes
os limites, do fenómeno,
mas tambémda propriafenomenologia? Eu posso "ver","sentir"o aparecerdas
coisas, das pessoas,dos valores,mas a existenciaabsolutado outro,modelode
qualquerexistencia, nao pode sersentida.Eia é anunciadacomoestranha ao meu
vividopela apari^aomesmado outrono seu comportamento, na sua expressào,na
sua linguagem, na sua obra.Mas esta aparigáodo outronao é suficiente parao
anunciarcomoumserem si. O seu serdevesercolocadopraticamente cornoo que
limitaa pretensáo da minhasimpatíaeia mesmaa reduzira pessoaà sua qualidade
desejávele comoo quefundaa sua propriaapari^ào.
A gloriada fenomenologia é terelevadoà dignidadede ciencia,pela "redu^ào",
a investigagào do aparecer.Mas a gloriado kantismoé tersabido coordenara
investigalodo aparecercom a fungàolimitedo em si e com a determinaloprà-
ticado em si cornoliberdadee comoa totalidade das pessoas.
Husserl/<2z a fenomenologia. Mas Kantlimita-ae funda-a.

Revista Portuguesa de Filosofía


61 • 2005 [34]

This content downloaded from 151.228.160.143 on Thu, 17 Jul 2014 14:03:25 PM


All use subject to JSTOR Terms and Conditions

Você também pode gostar