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Revisão: O Autor

or
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

od V
CATALOGAÇÃO NA FONTE

aut
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

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B886

Brutalismos, necropolítica e biopolíticas: governamentalidades em quadros de guerra que

o
tornam vidas precárias: encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler / Flávia
aC
Cristina Silveira Lemos et al. (organizadora). – Curitiba : CRV, 2023.
750 p. (Coleção Transversalidade e Criação: Ética, Estética e Política, v. 19)

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Bibliografia
ISBN Coleção Digital 978-65-251-XXXX-X
visã
ISBN Coleção Físico 978-65-251-XXXX-X
ISBN Volume Digital 978-65-251-XXXX-X
ISBN Volume Físico 978-65-251-XXXX-X
DOI 10.24824/97865251XXXX.X
itor
a re

1. Psicologia 2. Brutalismos – Necropolítica 3. Neoliberalismos 4. Psicologia –


Subjetividades 5. Saúde – Sociedade I. Lemos, Flavia Cristina Silveira. et al. org. II. Título
III. Série.

CDD 194 CDU 1


par

Índice para catálogo sistemático


1. Michel Foucault – 194
Ed

2. Achille Mbembe – 199


3. Judith Butler – 191
s ão
ver

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
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O QUE ERA PRA SER E NÃO FOI:
o conflito na produção dos atingidos por
grandes projetos em Barcarena, Pará

or
od V
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues

aut
Introdução

R
O conflito está presente em todos os níveis da socialidade humana; em alguns

o
ele se apresenta na forma de contradições que se processam em torno das formas de
aC
se relacionar das pessoas, no cotidiano e nos modos de vida; em outros, o conflito é
transposto na forma de antagonismos, inconciliáveis e insolúveis, existentes por força
da natureza intransigente da luta de classes, da oposição diametral entre os interesses
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dos trabalhadores, de um lado, e da burguesia, de outro.


visã
Ao mesmo tempo, na medida em que o conflito está presente na esfera eco-
nômica da vida social – essencialmente na produção da vida material, na produção,
na circulação e no intercâmbio de mercadorias – assim também ele se apresenta na
esfera da ideologia, isto é, das representações, das criações da consciência que se
itor

manifestam através da política, da religião, da filosofia, dos regimes jurídicos, etc. Em


a re

outros termos: o conflito é inerente, tanto à objetividade quanto à subjetividade, ou,


para dialogar com a formulação marxiana, ele se funde à base material da sociedade
e está imerso na superestrutura ideológica.
Mas não quero dizer, com isto, que não haja interação entre estas esferas, muito
pelo contrário, acredito que o conflito seja uma das categorias de mediação entre os
par

níveis objetivo e subjetivo de existência do ser social, entre as dimensões micropolíti-


cas das relações individuais e macroeconômicas da sociedade capitalista. Do mesmo
Ed

modo, tanto os modos de vida quanto a luta de classes estão, ao mesmo tempo, sendo
permanentemente determinados e sobredeterminados seja pela economia seja pela
ideologia. Portanto, não existe preponderância determinística entre o econômico
ão

e o ideológico, ou entre o cotidiano e as classes; o que existe são determinações


recíprocas que se processam na totalidade que compreende a produção do ser social.
Disso tudo, arrisco-me a formular uma síntese possível – ainda que decidida-
s

mente parcial, posto que passível de um imprescindível aprofundamento teórico-prá-


ver

tico para a aferição de sua validade: o conflito é imanente ao ser social. Isto porque,
em todos os níveis que se concebem relações sociais, a todo momento, o ser social
está sendo produzido – aquele que ser que se relaciona com outros tendo em vista a
sobrevivência, a subsistência, a procriação e a constituição familiar209 – o ser social.

209 Segundo Marx e Engels (2007), n’A Ideologia Alemã, os três pressupostos fundamentais da concepção
materialista de toda a existência humana são a produção de meios materiais para a satisfação de necessi-
dades, o ato da procriação e a constituição da família.
698

Este ser, que antes de tudo é o resultado do seu próprio trabalho de transforma-
ção da realidade, é produzido por forças que são econômicas, materiais, objetivas
e por forças que são ideológicas, subjetivas. Um ser que, da forma como existe no
mundo e, especialmente, na sociedade capitalista, resulta de suas interações sociais
na sua comunidade, em sua família, no seu trabalho etc; mas resulta também dos

or
movimentos mais gerais correspondentes à divisão social em classes, onde uma

od V
resguarda-se ao papel de garantir a sua reprodução às custas da exploração da outra.

aut
Ora, visto que o conflito é intrínseco à todas estas esferas da vida social e ine-
rente às determinações econômico-ideológicas – sendo daí produzido o ser social
– ele está presente lá onde é produzido este ser, e mais do que isso, ele pode ser

R
observado e, observando-o, analisar a sua interação para a composição da estrutura e
da dinâmica do ser social. Este ser, portanto, que se diferencia substancialmente, por

o
exemplo, do ser inorgânico (LUKÁCS, 2018), possui particularidades que só podem
aC
ser apreendidas quando observadas diretamente em seu processo de socialização.
É este o exercício que pretendo fazer, de modo ensaístico, tendo por base os
materiais que tenho acumulados, decorrentes das pesquisas de campo realizadas entre

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2019 e 2021 e também das minhas experiências não sistematizadas, junto às comu-
visã
nidades de Barcarena, atingidas pelos grandes projetos na região. Estes materiais,
antes de tudo, desembocaram em minha dissertação de mestrado em psicologia210,
agora, porém, apresento alguns elementos que não foram considerados na monogra-
fia, apresentando-os desde uma perspectiva etnográfica e buscando, essencialmente,
itor

extrair algumas considerações sobre o viés analítico engendrado pela categoria de


a re

conflito para a produção do atingido enquanto ser social, partindo, para tanto, de
contribuições dos próprios interlocutores.

Um ato e o Ato dos Atingidos


par

O trevo do Peteca está localizado na PA-483, no município de Barcarena,


Ed

divisando o acesso entre a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, a Alça Viária e a
cidade de Abaetetuba. Considerado um local estratégico, pois fica a menos de dez
minutos de carro até o complexo industrial-portuário de Vila do Conde, ele foi
ão

escolhido como o ponto de concentração dos ônibus que, no dia 18 de fevereiro de


2019, iriam até a frente da empresa Hydro, levando centenas de pessoas de comu-
nidades tradicionais de Barcarena e Abaetetuba para denunciar um ano do crime
s

sócio-ambiental cometido por esta gigante da mineração, quando uma de suas bacias
ver

de rejeitos transbordou e foi constatado o despejo clandestino de resíduos minerais,


contaminando os rios da região.

210 Defendi minha dissertação de mestrado, intitulada QUANDO FALAM OS RIOS DA AMAZÔNIA: um estudo na
psicologia social crítica sobre o modo como são produzidos os atingidos por grandes projetos em Barcarena,
no Pará, em 31 de março de 2022; trabalho orientado pelo Prof. Dr. Leandro Passarinho Reis Júnior (PPGP/
UFPA), co-orientado pela Profa. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos (PPGP/UFPA) e avaliado pela Profa.
Dra. Edna Maria Ramos de Castro (NAEA/UFPA), pelo Prof. Dr. Aluízio Ferreira de Lima (PPGP/UFC) e
pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Freire Piani (PPGP/UFPA).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 699

Entre janeiro de 2019 e setembro de 2021 eu passei inúmeras vezes pelo Peteca,
sempre me impressionando, de um lado, com a enorme quantidade de caminhões se
movimentando ou parados em seus postos de combustível e, de outro, pela péssima
qualidade das estradas que lhe davam acesso. Quando a época era de muitas chuvas,
a lama atolava facilmente veículos de pouca tração e tornava alguns trechos intrafe-

or
gáveis para pedestres ou ciclistas. Em outros períodos, quando o tempo estava mais

od V
seco, a poeira levantada pelos caminhões criava cortinas que prejudicavam a visão,

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adentrava nas casas ao redor e dificultava a respiração.
No dia do ato o período era de chuva, ou melhor, de lama. Chovera a noite toda
e, às seis da manhã, um leve chuvisco ainda se mantinha. Eu estava com o Rafael,

R
companheiro no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), aguardando a che-
gada dos ônibus. Escondíamo-nos da chuva embaixo de um pequeno toldo de palha,

o
improvisado no local onde param as vans e micro-ônibus que percorrem Barcarena
aC
entre a Sede, a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, o Núcleo Industrial e o Porto
São Francisco. Aquele cruzamento também era, portanto, a passagem de inúmeros
trabalhadores, estudantes e moradores das várias comunidades espalhadas pela região.
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Ainda assim, contudo, o que predominava eram os caminhões: todos grandes, com
visã
lonas pretas sobre a caçamba, placas de diversos estados do Brasil, seu cheiro de
diesel queimado e o som abafado do peso de mercadorias sequestradas, esburacando
a estrada e jogando lama e poeira sobre os nativos.
Confesso que, quando participei, em 10 de janeiro de 2019, da minha primeira
itor

reunião com lideranças de Barcarena eu ainda tinha uma visão que, para não chamar
a re

de ingênua, era, em muitos aspectos, um tanto quanto romântica. Essa visão, porém,
durou pouco tempo. Enquanto esperava o aparecimento repentino de cinco ônibus
lotados de manifestantes, revezando o lançamento agudo da visão entre os quatro
acessos do trevo, lembrava das muitas reuniões, assembleias e encontros informais
que participei com os líderes e presidentes de comunidades, diretores de associa-
par

ções e centros comunitários, dirigentes de sindicato rural, membros de colônia de


Ed

pescadores e conselhos municipais. Eu estive presente em quase todos os momentos


oficiais voltados à organização, preparação e planejamento do ato de 18 de fevereiro,
como representante do MAB; eu não estive, porém, nos grupos de WhatsApp das
ão

comunidades, na casa de todas as lideranças, na sede das associações, nas reuniões e


negociações paralelas, extraoficiais à organização do ato que, como fui percebendo,
ocorriam a todo momento.
s

Já passava das sete horas quando avistamos um ônibus que, suspeitamos, receo-
ver

sos, iria para o ato. Receosos porque nele só estava o motorista. Ele parou em um
posto e, quando lá chegamos, confirmamos a suspeita: ele fazia a rota das comuni-
dades de Tupanema e Arienga-Rio, mas quando passou ninguém aguardava, então
seguiu em frente. Subimos no ônibus e pedimos para o motorista nos levar ao local
do ato. Esperamos até às dez horas pelos outros quatro ônibus que também estavam
confirmados e levariam os moradores das comunidades Bom Futuro, Laranjal, São
Lourenço, Fonte Boa, Sítio Conceição, Burajuba, Sítio São João, Curuperé, Cupuaçú,
Tauporanga e Arrozal, mas nenhum apareceu.
700

O ato ocorreu, contudo, pois apareceram algumas pessoas de bicicleta, que


moravam na Vila do Conde, chegaram dois carros com pessoas de Belém e, inespe-
radamente, um ônibus com moradores das comunidades Pirocaba, de Abaetetuba,
e Dendê, de Barcarena, que não constava na lista de transportes da organização do
ato. No momento, avaliamos rapidamente que a desmobilização tenha se dado pela

or
chuva, que se prolongava desde o início da noite, e pela péssima qualidade das estra-
das, que impedira os ônibus de chegar aos seus destinos; eu sabia, porém, que havia

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outros fatores que, apesar de pouco visíveis como a tormenta, eram mais concretos

aut
e correspondentes à realidade.
Mas naquela ocasião eu ainda não podia formular, com exatidão, o conteúdo

R
e as articulações entre estes fatores; isto só foi possível na medida em que passei a
intencionalizar minha relação com as lideranças de Barcarena tendo em vista a produ-
ção dos dados para a minha pesquisa de mestrado, quase dois anos depois, apenas no

o
final de 2020. Foram, principalmente, a observação, o diário de campo e as entrevistas
aC
em profundidade que me possibilitaram, ao olhar retrospectivamente para minhas
experiências não sistematizadas no contexto do ato, formular um pequeno esboço,

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ainda que parcial e passível de aprofundamento, de uma análise dos fatores – não
todos, mas aqueles que julgo estarem entre os centrais – que se acumularam para que
visã
um ato político, organizado para acontecer com cerca de mil pessoas, tenha ocorrido
com pouco mais de cinquenta. Apresento, a seguir, dois breves pontos deste esboço.
itor

O Estado, o Capital e os Atingidos


a re

A Hydro-Alunorte, que foi instalada em Barcarena em 1984, ainda com o nome


de Alunorte – quando era uma associação entre a então Companhia Vale do Rio
Doce (CVRD) em parceria com empresas japonesas – e posteriormente vendida à
multinacional norueguesa Norsk-Hydro, é uma empresa do setor mineral voltada ao
par

beneficiamento da bauxita, matéria prima para a produção da alumina que, posterior-


mente, é transformada em alumínio. Considerando as particularidades da formação
Ed

social e econômica imposta sobre a Amazônia, a partir principalmente dos governos


que se sucederam desde o início da ditadura civil-militar no Brasil, a Hydro faz parte
do conjunto dos grandes projetos pensados, planejados e executados na região.
ão

Algumas características são comuns e, ao mesmo tempo, determinantes para


a compreensão dos grandes projetos, como o grande volume de capitais e mão de
obra investidos, a sua implantação como enclaves, dissociados das forças locais, sua
s

conexão com sistemas econômicos de escala planetária, seu processo expansionista,


associado a crimes contra a terra e os direitos humanos, o risco e imprevisibilidade
ver

produtores de danos sociais e ambientais (BECKER, 1997; CASTRO, 2019). Durante


minha pesquisa de campo, entrevistei quatro pessoas, atingidos e atingidas, moradores
de comunidades de Barcarena, os quais chamarei aqui pelos de Amazonas, Tapajós,
Tocantins e Xingu211. Estas pessoas, também, têm as suas próprias definições sobre

211 Atribuí estes nomes fictícios aos atingidos e às atingidas que entrevistei em minhas pesquisas de campo, a
decisão pelo anonimato foi por questões de segurança, visto que todos e todas são lideranças que fazem
a luta contra os grandes projetos na região de Barcarena.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 701

os grandes projetos e suas consequências e, especialmente, sobre a Hydro, que ao


mesmo tempo em que corroboram com as características acima, também possuem
suas especificidades.
Segundo Amazonas (2021), “esses grandes projetos, são grandes projetos sim,
mas que levam os lucros tudo pra fora”; do mesmo modo, Tocantins não reconhece,

or
em sua vida, nenhum benefício advindo dos grandes projetos que foram instalados
em Barcarena: “Porque pra mim os grandes projetos que se instalaram aqui no muni-

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cípio de Barcarena, eu nunca fui benéfico de nada deles. Eu não me empreguei, eu

aut
não fui trabalhar em fábrica, eu não fui me especializar em cursos que eles têm, que
oferecem”. Tapajós, por sua vez, ao falar das consequências nefastas provocadas

R
pelos grandes projetos no meio ambiente e na vida das comunidades em Barcarena,
diz que eles são provedores de crimes: “eu não chamo de desastres, eu chamo de
crimes. Eu chamo de crimes mesmo, ambientais, que ocorre dentro do município de

o
Barcarena”. Enquanto isso, Xingu (2020) se sente preocupada e insegura:
aC
Meu Deus, se um dia esses... essas bacias aí romperem, será que nós vamos ser
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de novo outros igual o povo lá de Mariana, lá em Minas Gerais? Eu sinto muita


preocupação, mano. Eu moro aqui, eu amo morar aqui, mas ao mesmo tempo eu
visã
fico muito preocupada, porque esse lado aqui tá... é o acesso pra Hydro. Essas
terras aqui vêm daí, e o que vier daí mano, vai atingir todo mundo pra cá; aí o
nosso rio não vai prestar mais.
itor

Este medo e esta preocupação de Xingu, contudo, não são infundados, mas cor-
a re

respondem, ao mesmo tempo, a uma análise acurada da realidade, que envolve tanto
fatores externos quanto internos a Barcarena, ou fatores que são gerais – do modo
de operação dos grandes projetos como meios de acumulação capitalista às custas
da exploração de bases naturais de elevada capacidade de produção de capital – e
também de fatores específicos, relacionados ao passivo histórico de outros crimes
par

cometidos pela Hydro e outras empresas em Barcarena. Xingu, primeiramente, com-


para o que pode advir da Hydro com o ocorrido na cidade mineira de Mariana, em
Ed

05 de novembro de 2015, quando houve o rompimento de uma barragem de rejeitos


minerais da Vale/BHP-Billiton que matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do
Rio Doce; por outro lado, ela sabe do que já ocorreu em Barcarena.
ão

Entre os anos de 2000 e 2018 ocorreram 26 crimes de diferentes escalas e


proporções em Barcarena, cometidos por diferentes empreendimentos e empresas,
impactando rios e igarapés como Arienga, Arrozal, Dendê, Mucuruça, Murucupi, Pará
s

e Cururuperé. Em torno destes cursos d’água vivem milhares de pessoas, produzidas


ver

como atingidas em decorrência da ganância, irresponsabilidade e ânsia desenfreada


por lucro dos grandes projetos. Apenas a Hydro, antes Alunorte, foi responsável por
pelo menos dez destes crimes, segundo levantamentos de MP-PA/MPF (2015), Bar-
carena Livre (2016) e Steinbrenner et al. (2020), sendo o maior deles o que ocorreu
entre os dias 17 e 18 de fevereiro de 2018 que, segundo o Relatório Final da CPI
instalada na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), atingiu 77 comunidades e,
portanto, dezenas de milhares de pessoas em torno da bacia hidrográfica do rio Pará
(PARÁ, 2018).
702

Vários dos principais rios da região de Barcarena estavam contaminados com


metais tóxicos, como arsênio, chumbo, manganês, cobalto e urânio, dentre outros,
significando risco às populações de entorno dos rios e inviabilizando a utilização e
consumo da água e peixes (IEC, 2018). Inicialmente, o Ministério Público Estadual
obrigou a Hydro a reduzir parcialmente suas operações e pôr em prática medidas

or
emergenciais de atendimentos aos atingidos, como a distribuição de água nas comuni-
dades (MPF, 2020). Na sequência, a Alunorte e a Norsk-Hydro assinaram um Termo

od V
de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se, perante ao MPF, ao MP-PA

aut
e ao Governo do Pará, dentre outras coisas, a contratarem auditorias independentes
para avaliar os impactos causados nos rios da região, destinar R$ 65 milhões para o

R
fornecimento de cupons de alimentação para as famílias atingidas – a serem levanta-
das e cadastradas também por auditorias independentes – e mais R$ 5 milhões para a

o
criação e implantação de sistemas alternativos de tratamento e distribuição de água
potável (MP-PA/MPF, 2018).
aC
Na tentativa de encontrar soluções fáceis e rápidas para crimes ambientais de
grande magnitude cometidos pelas multinacionais que operam os grandes projetos,

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são recorrentes a assinatura de TACs, mas estes, porém, mostram-se muito mais como
um paliativo que, ao invés de garantir os direitos dos atingidos, visam assegurar às
visã
empresas a continuidade e crescimento de suas atividades produtivas, pois como
solução extrajudicial, priorizam medidas imediatas de mitigação dos danos causados
às pessoas e ao meio ambiente, mas sem culpabilizar os responsáveis pelo crime
itor

(VIÉGAS; PINTO; GARZON, 2014; SANTOS; MILANEZ, 2018).


O TAC assinado pela Hydro-Alunorte, portanto, na medida em que não buscou
a re

solucionar os problemas crônicos que afetam a população de Barcarena, forçou a


implementação de medidas que significaram ganhos econômicos imediatos – porém
efêmeros – para muitas famílias, através da distribuição de vales-alimentação no
valor de R$ 670,00 por alguns meses. Isso fez com que, ao mesmo tempo, muitas
par

comunidades que não foram contempladas no TAC passassem a reivindicar a sua


inclusão, pois também se consideravam atingidas, enquanto outras, ao passo em que
Ed

não viam com bons olhos a inclusão de novas comunidades, por medo de ver seus
benefícios diminuídos, seguiam na busca pela ampliação de suas conquistas. Todas,
porém, passavam ver o MP-PA e o MPF, tanto como aliados quanto como alvos
ão

prioritários de suas manifestações, pois teriam sido eles que forçaram as empresas a
cumprir suas obrigações para com os atingidos.
Este modo, cínico e perverso, de operar uma irreal solução para os conflitos
s

deflagrados – ou evidenciados – a partir de um crime ambiental, que envolve o


ver

Estado e o Capital, ou seja, órgãos públicos como os Ministérios Públicos e empresas


transnacionais que se associam em monopólios como braço do Imperialismo, como a
Hydro-Alunorte, é um dos fatores que, considero, contribuíram para a desmobilização
do ato de 18 fevereiro de 2019; e isso já poderia ser previsível, contudo, a poucos
dias antes da data marcada para acontecer a manifestação.
No dia 15 de fevereiro ocorreu uma grande audiência pública na Vila dos Caba-
nos, onde o MP-PA e o MPF prestariam contas do cumprimento das obrigações da
Hydro firmadas no TAC. Neste dia compareceram mais de duas mil pessoas na sede
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 703

da Assembleia de Deus da vila, onde ocorreu a audiência; foram vários ônibus de


comunidades de Barcarena e Abaetetuba, a sessão ficou lotada e centenas de pessoas
não conseguiram entrar. Boa parte destas pessoas vieram de comunidades que não
foram contempladas no TAC e reivindicavam a sua inclusão para o recebimento
dos galões de água mineral e do cartão com R$670,00 mensais para compras em

or
supermercados. Ao final, o MPF informou que seriam feitos novos estudos sobre o
impacto causado pelo crime e que novas famílias seriam inclusas no benefício, o

od V
que fez com que muitos saíssem de lá com a sensação de conquista e que sua pauta

aut
imediata fora atendida, no entanto, ainda pairava a incerteza sobre quais comunidades
seriam contempladas e se todos os atingidos seriam beneficiados, principalmente os

R
moradores de Abaetetuba, que não apareciam nos estudos técnicos, provocando, de
outro lado, a sensação geral de que, quem deveria ser pressionado era o ministério

o
público e não as empresas.
No dia seguinte à audiência, recebi uma ligação de um número desconhecido;
aC
eu estava na Vila do Conde, prestes a reunir com a Colônia de Pescadores de Bar-
carena, às margens do rio Dendê e resolvi atender. Quem ligava era Ismael Moraes,
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advogado da Cainquiama (Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da


visã
Amazônia) que aglutinava representantes de algumas comunidades de Barcarena.
Ele queria conversar sobre a organização do ato, pois estava preocupado que a sua
realização dificultasse as negociações entre a associação e o Ministério Público,
visto que a Hydro poderia se sentir ameaçada com um ato na sua porta e passar a se
itor

indispor ao diálogo. Respondi a ele que eu não tomava decisões sobre a organização
a re

do ato, apenas o comando, que era formado por representantes de vários movimen-
tos, coletivos e comunidades, dentre as quais a Cainquiama fazia parte e que, se a
associação tivesse algum questionamento a apresentar, que o fizesse na reunião que
ocorreria no dia seguinte. No outro dia a Cainquiama não compareceu à última reu-
nião antes do ato, e eu só fiquei sabendo, dois dias depois, que os dois ônibus que
par

ela se comprometera em levar com manifestantes para a frente da Hydro havia ido
para Belém realizar um protesto em frente à sede do MPF, pautando a ampliação do
Ed

tempo de benefício do vale alimentação para as comunidades associadas.


Tapajós, no entanto, é um atingido que não se deixa enganar, a partir de sua
realidade, das suas experiências vividas, ele tem uma compreensão sobre o que é o
ão

TAC e o que ele provoca, tanto para a empresa, quanto para os atingidos:

Tem situações hoje, em relação aos território, irreversível. Não tem como voltar
s

mais, não tem. Eu nem acredito que tem esse rio, hoje, possa ser revertido essa
ver

situação. É uma situação irreversível, porque é anos e anos aí impactado, entendeu?


Então quando a empresa tem alguma punição, de algum crime ambiental, aí eles
chamam... eles chamam... é o TAC, né? Termo de Ajustamento de Conduta. A
justiça vai, dá pressão tudo “Ah, não, ela vai ter que assinar o TAC”. Esse TAC, eu
vejo uma maneira... ela é, na verdade, ela é uma forma dela justificar o crime pra
justiça. Esse eu vejo que é uma forma de justificar. “Olha, não, ela assinou o TAC,
ela justificou que ela assumiu o compromisso”. Isso não é verdade. Isso nunca
sai do papel... isso nunca sai do papel. É uma forma dela se defender na justiça.
704

Se a assinatura do TAC é uma forma da empresa se defender na justiça ele é,


portanto, uma forma de dificultar com que a justiça efetivamente seja feita. Ao mesmo
tempo, neste silenciar da justiça, reverberam um conjunto de conflitos que envolvem
a empresa, o estado e os atingidos; porém, no jogo das combinações que são feitas,
a tensão instaurada entre estes conflitos tende sempre a pesar mais sobre os atingi-

or
dos. É evidente que existem conflitos entre a empresa e o Estado, pois é este último
que impõe sansões, adverte e onera a primeira, no entanto, em outros momentos os

od V
seus interesses podem convergir quando o Estado fornece subsídios, incentivos e

aut
isenções fiscais para a empresa; os atingidos, porém, conflituam ora com o Estado,
ora com a empresa, no mais das vezes, aparentemente, têm o primeiro ao seu lado,

R
mas a segunda é, na maioria dos casos, a sua antagonista central. Entretanto, o TAC
produz um conjunto de conflitos entre os próprios atingidos que, na medida em que
enfraquecem a sua unidade e suas lutas, arrefecem ainda mais e efetivação da justiça;

o
quando as comunidades ou seus representantes passam a se ver como adversários,
aC
acusam-se, ameaçam-se e brigam entre si, só que sai ganhando é, sem dúvida, a
empresa. Este será o ponto que, como algo que se diferencia, mas ao mesmo tempo

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faz parte do primeiro, tentarei abordar a seguir.
visã
Lideranças, presidentes e parentes

Posso dizer que minha pesquisa de campo só foi possível graças a tarefa que
itor

me coube, de contribuir, como militante do MAB, na organização do ato que virou


a re

o pano de fundo das análises que venho fazendo. Foram estas primeiras semanas,
entre idas e vindas de Barcarena, que me possibilitaram conhecer melhor a cidade
e aprender a andar por ela, transitando entre várias comunidades, regiões urbanas e
rurais, por entre estradas e rios; foram também, estes contatos iniciais, que me levaram
a conhecer as quatro pessoas que entrevistei e pude observar os seus modos de vida.
par

Tocantins eu conheci no dia 10 de janeiro de 2019, em uma reunião na sala


da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Belém; Amazonas, Tapajós e Xingu eu
Ed

conheci em momentos posteriores, em Barcarena, nas várias reuniões, assembleias


e conversas informais de preparação do ato. Todas estas quatro pessoas, portanto,
são atingidos e atingidas, moradores de comunidades de Barcarena e que fazem
ão

parte de organizações, coletivos e entidades que defendem os direitos dos atingidos.


Tocantins e Xingu são da comunidade do Furo do Arrozal, moradores do Sítio Boa
Esperança; o primeiro, homem negro com o cenho franzido, é filiado ao Partido dos
s

Trabalhadores, dirigente no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais


ver

(STTR) de Barcarena e é, segundo ele “presidente do Conselho de Desenvolvimento


Rural. Faço parte do Conselho de Meio Ambiente e também sou presidente de uma
Associação de agricultores familiares, ribeirinhos extrativistas, assalariados rurais”.
Amazonas, por sua vez, é uma mulher que faz tudo que se possa imaginar,
Agente Comunitária de Saúde (ACS), integrante do MAB e da Associação dos
Moradores Ribeirinhos do Arrozal (AMORA). Tapajós e Xingu são de comunida-
des quilombolas, ele foi “nomeado líder” do Quilombo Sítio Conceição e faz parte
do Movimento Barcarena Livre, já ela é do Movimento pela Soberania Popular na
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 705

Mineração (MAM) e presidente do Quilombo Sítio São João. Todos são lideranças
na luta contra os grandes projetos em Barcarena, têm histórias, relatos e experiências
que envolvem diferentes momentos de denúncias e reivindicações em defesa dos
seus direitos.
Através da luta a produção dos atingidos ocorre como síntese do imperativo

or
marxiano de que os homens fazem a sua própria história (MARX, 2015), portanto,
fazem a si mesmos, são os sujeitos da sua produção. Mas a luta é resultado dos con-

od V
flitos, das contradições e antagonismos que opõe os atingidos e os grandes projetos;

aut
logo, os primeiros são produzidos, e produzem-se a si mesmos, como resultado da
existência material destes últimos.

R
Considerando o caráter antagônico em que se estabelece o processo de resistên-
cia dos atingidos, tendo em vista que estes, como trabalhadores, têm interesses que

o
divergem de modo oposto e inconciliável com os interesses dos grandes projetos, uma
das formas principais de luta empreendida tem se configurado, historicamente, como
aC
a pressão popular através de manifestações, atos, caminhadas e denúncias públicas
dos crimes cometidos pelas empresas presentes em Barcarena. Neste processo, for-
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jaram-se lideranças na região que obtiveram algumas conquistas. Tocantins (2020)


conta a história de uma dessas lutas:
visã
No princípio nós fizemos uma denúncia quando teve a fuligem da Albras; ela
descia lá no Conde, que as casas ficavam todas cheias daquela fuligem, né? Que
itor

houve a destruição de toda a pupunha... pupunhais do pessoal do cupuaçu. Nós


fizemos um movimento; fomos pra Belém – inclusive com parceria com a Uni-
a re

versidade Federal – fazer a denúncia nos meios de comunicação, nas rádio, tele-
visão, jornal. Infelizmente a imprensa ela num dá muito ênfase pra essa questão
dos movimentos sociais; ela dá ênfase mais pra empresa. Saiu uma matéria bem
desse tamanhozinho assim, bem recortadozinho assim num cantinho; no jornal
não passou nada; na televisão aquela parte de televisão não mostraram nada disso
par

que nós fez. Mas saiu na Província do Pará e no Diário do Pará assim, uma maté-
ria com aquelas letra bem miudinha assim que... mas saiu! E as fotos da gente,
Ed

né? Que nós tivemos lá. Isso em 1993, 1993 que isso tava no auge desse.... Aí as
empresas, elas botaram uma espécie de uma... de um... elas trocaram os... como
é que diz? Os crivos lá do... das chaminés, né? Que era por lá que passava, aí deu
ão

uma melhorada nesse processo.

A luta é o principal meio de assegurar conquistas e garantir direitos para os atin-


s

gidos. Porém, ao mesmo tempo em que os atingidos constituíram suas organizações e


ver

foram, aos poucos, aprimorando os seus métodos de luta, os grandes projetos também
cresceram, se multiplicaram e exacerbaram as contradições e transformações sobre
os modos de vida da população barcarenense. Como diz Amazonas (2021): “eles vão
acabando com tudo e hoje os grandes projetos, a gente vê que eles já se colocaram,
né? Já tão dentro, muitos anos dentro da área e tá vindo muito, a gente sabe”. Deste
modo, visando fortalecer a resistência para dar continuidade aos enfrentamentos,
os atingidos estabelecem alianças e fazem articulações entre as suas organizações e
outras que não necessariamente são de Barcarena ou aglutinam atingidos, pois “são
706

lutas que a gente vai se juntar com outros companheiro, com outros parceiro, com
outras comunidades e com quem quiser vir pra luta com a gente, entendeu?” (ibidem).

Temos hoje o Ministério Público Federal; a Defensoria Pública; nós temos a


Universidade, alguns parceiros lá dentro da UFPA. Nós temos… qual é o outro

or
parceiro que a gente tem? A gente tem a Malungo, que é a Associação da Coor-
denação das Comunidades Remanescentes Quilombolas do Pará. A Malungo é

od V
muito parceira com a gente. A FASE. Então são parceiros que a gente tem hoje

aut
(TAPAJÓS, 2021).

As alianças, os parceiros, são também uma forma encontrada pelos atingidos

R
para dar maior legitimidade às suas lutas e, ao mesmo tempo, para darem visibilidade
às suas ações tendo em vista a construção de uma narrativa diferente da que recor-

o
rentemente é feita pela mídia, pelas empresas e até mesmo pelo Estado. Como diz
aC
Tocantins, “a imprensa dá menos ênfase para os movimentos sociais e mais para as
empresas”. Os grandes projetos, por terem os seus interesses – de expansão produ-
tiva, aquisição de novas áreas, leviandade com o meio ambiente – a todo o momento

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confrontados com os interesses da maioria dos atingidos – defesa dos seus territórios,
visã
preservação de seus meios de vida, de sua saúde, cultura e práticas tradicionais –
eles tentam, a todo o momento, criminalizar as lutas dos atingidos e deslegitimá-las
com alegações diversas. Em muitos casos, o Estado segue esta mesma linha – por
estar alinhado aos interesses das multinacionais – e, consequentemente, os meios de
itor

comunicação hegemônicos vendem histórias que contradizem a realidade dos fatos.


a re

Este movimento ideológico, comandado pelos representantes dos interesses da


classe dominante, tem profundas e graves consequências na realidade material dos
atingidos. Uma delas é o conflito, a cisão e a disputa entre os próprios atingidos, o
que tende a enfraquecer a luta pelos seus direitos. Segundo Tocantins (2020):
par

As pessoas não confiam mais. Hoje tá criminalizada a política; tá criminalizado


os movimentos sociais; sindicatos, associações, cooperativas. “Todo mundo é
Ed

safado. É.... que tá aqui é comunista, é gente que num quer o bem, que pensa... que
quer o mal, que não quer o desenvolvimento... esse pessoal não presta, né? Nós
temos que acabar!”. Então o pessoal: “Ah é do sindicato, é da associação. Esses
ão

são um bando de saf…”. E isso vai pegando; porque a gente tem visto assim que
é tipo uma contaminação que vai passando, né? De um pro outro e vai minando.
s

A análise feita por Tocantins demonstra que a criminalização da luta dos atin-
ver

gidos está imersa no processo mais amplo de criminalização da política e dos movi-
mentos sociais. No meio do povo, difundem-se histórias sobre as lideranças populares
que as retratam como safadas, corruptas e não confiáveis. Nas palavras de Amazonas
(2021): “o que eu acho é que a gente é muito tachado de... chamado de vagabundo,
de que não tem o que fazer, de ficar ganhando dinheiro alheio, entendeu?”. Esse
processo coloca os atingidos em luta uns contra os outros, forçando-os a desviarem
do foco central da luta contra os grandes projetos para resolverem os seus conflitos
internos – “Eles sempre distorce a nossa palavra, sabe? Eles distorce. Então é uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 707

coisa que eu vivo em luta com o povo. Assim, não com o povo… não com o meu
povo que me apoia, mas com o povo que é o contrário nosso, né?” (ibidem).
Historicamente, as promessas de emprego e crescimento econômico associados
às grandes empresas provocam divisões entre os atingidos, pois são muitos os que
acreditam nestas oportunidades. Porém, a história e o relato dos atingidos já vem

or
demonstrando que, para os moradores das comunidades – que perdem o seu território,
seus meios e modos de vida tradicionais – as poucas vagas que lhes são destinadas

od V
são para o ocupar os postos mais precarizados de trabalho. Ainda assim, uma parcela

aut
considerável dos atingidos continua acreditando nos empregos, posicionando-se em
oposição àqueles que lutam contra os grandes projetos:

R
Aí a gente, por exemplo, aqui, o pessoal da... desse lado aqui diz assim: “Não,
o sindicato não faz nada; não faz nada!’’. Não, na verdade, se a gente vai fazer

o
uma pesquisa, entre eles, eles preferem as empresas; eles defendem as empresas;
aC
eles defendem os projetos, a instalação desses de.... Tá igual aquele caso lá de
Mariana, né? Que as pessoas foram atingido e depois foi feita uma pesquisa e
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70% dizia que a empresa devia continuar por causa do emprego. Então é muito
complicado. Isso dá uma angústia na gente porque as pessoas preferem às vezes
visã
a morte, né? Preferem achar que o projeto é a solução (TOCANTINS, 2020).

Quem disse que a gente conseguiria tirar uma Hydro daqui? Aí é pedi pra morrer.
Porque o povo…. Porque a Hydro ela dá emprego pra várias pessoas, né? Ela
itor

mesmo, mas tem a terceirizada que emprega peão; e esse peão, sabendo que a
a re

empresa vai acabar e sabendo de onde vem… é isso. Isso porque naquele, lá em
2018, foi quebrado vários contrato por causa daquele crime ambiental, né? A
gente já sofreu ameaça, imagine se uma empresa dessa saí (AMAZONAS, 2021).

Os conflitos, disputas, cisões e desconfianças entre os próprios atingidos são


par

fatores que enfraquecem as suas lutas, mas também são elementos constituintes do
modo como eles são produzidos. Da intercessão entre as lutas que se articulam, dos
Ed

atingidos uns contra os outros e destes contra os grandes projetos, envoltos com suas
alianças e na disputa pela forma como são representados, produzem-se: atingidos
que se reconhecem como tais e outros que não reivindicam esta identidade; atingi-
ão

dos que se organizam e lutam contra os grandes projetos e outros que defendem as
empresas e denunciam a ação dos primeiros; atingidos que lutam contra atingidos e
outros que, apesar de lutarem para sobreviver, não lutam nos termos aqui colocados.
s

Contudo, todos e todas são atingidos, pois independente da luta que façam – ou
ver

não façam – se contra as empresas ou entre si, o que fazem ou deixam de fazer e
da forma como é feito, é um produto das transformações provocadas pelos grandes
projetos em seus modos de vida.
Eu pude perceber, no processo de organização do ato de 18 de fevereiro de 2019,
como os conflitos entre os atingidos podem ser um fator determinante para dificultar
a sua unidade para a luta. Estes conflitos, contudo, envolvem relações políticas, de
parentesco e de liderança nas comunidades. Eles se associam ao nível dos modos de
vida dos atingidos, de seu cotidiano, de suas relações locais, mas não se dissociam,
708

por isso, dos movimentos mais gerais da luta de classes contra os grandes projetos
ou do modo de produção capitalista como produtor de contradições e antagonismos;
eles são, também, da ordem tanto da objetividade quanto da subjetividade, pois são
concretos e, ao mesmo tempo, dizem respeito às singularidades dos sujeitos atingidos.
Em 20 de janeiro de 2019, participei de uma reunião na comunidade Burajuba

or
onde, cumprindo com uma das táticas definidas para a realização do ato, de ampliar o
envolvimento das comunidades de Barcarena, compareceram representantes e presi-

od V
dentes de diversas outras comunidades, como Arienga, São Lourenço, Sítio Conceição,

aut
da Ilha Trambioca, Tupanema, de Vila do Conde, Vila dos Cabanos, dentre outras.
Desta reunião foi formado o comando do ato, composto por cerca de 10 pessoas, do

R
qual eu fazia parte mais os representantes das principais comunidades presentes; este
grupo teria tarefa de fazer a mobilização para o ato, garantir a estrutura, comunicação
e segurança para o dia, também seria a comissão responsável por elaborar a pauta de

o
reivindicações dos manifestantes e realizar qualquer tipo de negociação que se mos-
aC
trasse necessária, seja com a empresa, com representantes do estado ou com a polícia.
Foi neste dia, também, que comecei a perceber alguns detalhes que só a aproxi-

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mação das comunidades e seus presidentes começara a tornar possível: 1. as comu-
nidades São João e Burajuba ficavam uma de frente para a outra, cortadas por uma
visã
estrada, antes elas eram uma só e, após sucessivos conflitos que envolviam a rea-
lização dos estudos do componente quilombola para a certificação pela Fundação
Cultural Palmares, elas se dividiram; 2. Amazonas, atual presidente da Associação
itor

dos Moradores do Quilombo Sítio São João e Jurema212, autointitulada presidente da


Cainquiama e moradora da Comunidade Quilombola Burajuba, eram parentes – não
a re

consegui saber o grau de parentesco – e nutriam entre si desavenças que remontavam


à cisão comunitária; 3. Socorro reivindicava para si a presidência da Cainquiama,
porém, outras pessoas diziam que ela não era mais presidente e que a diretoria da
associação estava sendo recomposta, segundo eles, ela usava a associação em bene-
par

fício próprio, apropriando-se privadamente do dinheiro coletivo, mas a Jurema, no


entanto, afirmava que foi ela quem criou a associação, junto a sua família e que, como
Ed

os demais familiares não eram mais associados, a ela cabia à presidência – ressalte-se
que Amazonas fez parte da fundação da Cainquiama e, nesta época, já presidia a
associação de outra comunidade.
Nesta reunião, também, conheci a Marilda e o Polinário; ambos se diziam
ão

“lideranças do Conde” e reivindicavam certa autoridade e direito de participar das


decisões por comporem o Fórum Intersetorial de Barcarena, que conglomerava
representantes da sociedade civil, da prefeitura e das empresas no município. Pos-
s

teriormente, em momento diferentes, quando estava junto ao Polinário e a Marilda,


ver

ambos me diziam que eu não devia confiar na Amazonas ou na Jurema e, em outras


situações, quando estava conversando separadamente com a Amazonas ou a Jurema,
ambas me diziam para não confiar, nem em uma e nem em outra, nem no Polinário
ou na Marilda. Comecei a pensar, que diante dos avisos, não deveria confiar em
ninguém, no entanto mantinho o diálogo com todos, comparecia às casas que era

212 As pessoas que não entrevistei, nomeei-as com nomes próprios, mas que não são os seus nomes verda-
deiros, pelos mesmos motivos pelos quais ocultei os nomes dos entrevistados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 709

convidado e, em todas as reuniões, quando essas pessoas estavam juntas, eu buscava


não demonstrar surpresa por ver, aqueles que não se confiavam, apresentar tão larga
familiaridade, intimidade e “confiança”.
No dia 25 de janeiro de 2019 ocorreu um gigantesco crime na mineração, pro-
vocado pela Vale, que chocou o Brasil e o mundo: o rompimento da bacia de rejeitos

or
em Brumadinho, provocando a morte de mais de 300 pessoas. Com o crime cometido
pela Vale na Barragem de Córrego do Feijão, imediatamente, as atenções nacionais e

od V
internacionais se voltaram para o conjunto de outros grandes projetos que, no Brasil,

aut
representassem riscos iminentes para a população em seu entorno, incluindo aí aqueles
instalados em Barcarena, especialmente a indústria mineral da Hydro-Alunorte. Deste

R
modo, o ato que estávamos organizando ganhava ainda mais importância e passava
a se inserir dentro de um contexto nacional de luta para denunciar os diversos crimes
cometidos pelo capital na mineração.

o
Foi assim que, no dia 1 de fevereiro de 2019 realizamos uma assembleia com os
aC
atingidos de Barcarena e Abaetetuba, na vila dos Cabanos, que contou com a participa-
ção de mais de 100 pessoas e acabou por se converter em um ato em solidariedade aos
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atingidos de Brumadinho. Neste dia, foi encaminhada a proposta de ampliar a mobili-


zação do ato para as comunidades atingidas do município de Abaetetuba, que se faziam
visã
representar, na ocasião, pelo Sérgio Almeida, intitulado presidente do Movimento Social
dos Ribeirinhos das Ilhas de Abaetetuba. Lembro dele insistir em querer saber quem
financiava o MAB e, diante de nossas afirmações do caráter popular e autônomo do
itor

movimento, pareceu perder o interesse ao mesmo tempo em que se mantinha descon-


fiado, mas ficou responsável por levar um ônibus com as pessoas de Abaetetuba para
a re

o dia do ato. Logo em seguida, fui alertado pela Marida para não confiar no Almeida,
pois ele era “queimado” nas comunidades por pedir dinheiro para as famílias em troca
de cadastro para sestas básicas e outros auxílios que nunca chegavam.
Após o ato, fiquei sabendo que o Sérgio Almeida andou por várias comunidades
par

de Abaetetuba e de Barcarena, convencendo vários presidentes de comunidades a não


irem para o ato, alegando que a comissão organizadora estava sendo comandada por
Ed

ONGS (se ferindo ao MAB) que queriam se aproveitar das famílias para conseguir
recursos com as empresas, por outro lado, ele incitava as comunidades a se juntarem
a ele para participar da audiência pública que ocorreu no dia 15 de fevereiro. Eu
ão

soube também, através de Tapajós, que no mesmo horário do ato, várias lideranças
que faziam parte do comando, dentre elas a Jurema, o Marilda e o Polinário, estavam
reunindo com outros presidentes de associações e centros comunitários, preparan-
s

do-se para uma outra reunião que ocorreria, no mesmo dia, com representantes da
ver

Hydro e da Albrás para tratar sobre cursos e programas de capacitação oferecidos


pelas empresas às comunidades.

Conclusão

No dia 18 de fevereiro de 2020 houve mais um ato das comunidades de Barca-


rena em frente ao MPF, em Belém e, depois, enquanto eu participava de um semi-
nário na UFPA sobre os dois anos do crime da Hydro-Alunorte, lembrava dos dias
710

que passei percorrendo diversas comunidades tradicionais, reunindo com lideran-


ças e entregando panfletos, mobilizando para um ato que, pretendíamos, chamar a
atenção da mídia internacional. O ato ocorreu, e foi citado na matéria de um site de
médio alcance213. Não foi noticiada, contudo, a trama das relações que envolveram
a sua organização, nem que, as poucas pessoas que seguravam as faixas em frente

or
a Hydro, naquele dia, eram 5% do que se esperava e que vinham de comunidades
que não constavam nas listas de mobilização. Eu mesmo ainda não entendia muito

od V
bem como tudo tinha acontecido e, as informações que possuía, estavam dispersas

aut
e pouco organizadas.
Em 18 de fevereiro de 2021 a pandemia do Coronavírus ainda era o foco cen-

R
tral das atenções e preocupações, e não ouvi falar nada sobre os 3 anos do crime em
Barcarena. Neste período, também, eu tentava organizar os primeiros materiais do

o
campo que conseguira realizar, com muitas dificuldades devido à pandemia, no final
do ano anterior. Um ano depois, em 18 de fevereiro de 2022, eu me preparava para a
aC
defesa de minha dissertação de mestrado, já com muitas análises e conclusões amadu-
recidas e consolidadas; no dia da defesa, em 31 de março, que foi no formato virtual,

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alguns de meus entrevistados estavam presentes e então lembrei, inevitavelmente, da
organização do ato de 4 anos atrás, no entanto, apesar de já ter aprendido um pouco
visã
mais sobre como são produzidos os atingidos pelos grandes projetos em Barcarena,
como se relacionam e os conflitos que lhes são imanentes, eu ainda não havia me
debruçado sobre uma análise específica a respeito do conflito nesta produção.
itor

Isto só foi possível, sem dúvida, e da forma como tentei fazer, graças a minha
aproximação com a antropologia e graças à gestação de minha esposa, Ádima, quando
a re

decidimos, na espera do nascimento de Maya, que eu a acompanharia na disciplina


Leituras Etnográficas. Agradeço às duas e também à Profa. Dra. Michele Escoura
Bueno, pela oportunidade de, como um estrangeiro amador, navegar ainda que super-
ficialmente pelas águas caudalosas da escrita etnográfica.
par
Ed
s ão
ver

213 LEÃO, Bianca. Barcarena: 1 ano de vidas em suspenso e violação de direitos. Amazônia Real, 19 mar. 2019.
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BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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