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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
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Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506
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tornam vidas precárias: encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler / Flávia
aC
Cristina Silveira Lemos et al. (organizadora). – Curitiba : CRV, 2023.
750 p. (Coleção Transversalidade e Criação: Ética, Estética e Política, v. 19)
2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
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O QUE ERA PRA SER E NÃO FOI:
o conflito na produção dos atingidos por
grandes projetos em Barcarena, Pará
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Robert Damasceno Monteiro Rodrigues
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Introdução
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O conflito está presente em todos os níveis da socialidade humana; em alguns
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ele se apresenta na forma de contradições que se processam em torno das formas de
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se relacionar das pessoas, no cotidiano e nos modos de vida; em outros, o conflito é
transposto na forma de antagonismos, inconciliáveis e insolúveis, existentes por força
da natureza intransigente da luta de classes, da oposição diametral entre os interesses
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modo, tanto os modos de vida quanto a luta de classes estão, ao mesmo tempo, sendo
permanentemente determinados e sobredeterminados seja pela economia seja pela
ideologia. Portanto, não existe preponderância determinística entre o econômico
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tico para a aferição de sua validade: o conflito é imanente ao ser social. Isto porque,
em todos os níveis que se concebem relações sociais, a todo momento, o ser social
está sendo produzido – aquele que ser que se relaciona com outros tendo em vista a
sobrevivência, a subsistência, a procriação e a constituição familiar209 – o ser social.
209 Segundo Marx e Engels (2007), n’A Ideologia Alemã, os três pressupostos fundamentais da concepção
materialista de toda a existência humana são a produção de meios materiais para a satisfação de necessi-
dades, o ato da procriação e a constituição da família.
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Este ser, que antes de tudo é o resultado do seu próprio trabalho de transforma-
ção da realidade, é produzido por forças que são econômicas, materiais, objetivas
e por forças que são ideológicas, subjetivas. Um ser que, da forma como existe no
mundo e, especialmente, na sociedade capitalista, resulta de suas interações sociais
na sua comunidade, em sua família, no seu trabalho etc; mas resulta também dos
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movimentos mais gerais correspondentes à divisão social em classes, onde uma
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resguarda-se ao papel de garantir a sua reprodução às custas da exploração da outra.
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Ora, visto que o conflito é intrínseco à todas estas esferas da vida social e ine-
rente às determinações econômico-ideológicas – sendo daí produzido o ser social
– ele está presente lá onde é produzido este ser, e mais do que isso, ele pode ser
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observado e, observando-o, analisar a sua interação para a composição da estrutura e
da dinâmica do ser social. Este ser, portanto, que se diferencia substancialmente, por
o
exemplo, do ser inorgânico (LUKÁCS, 2018), possui particularidades que só podem
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ser apreendidas quando observadas diretamente em seu processo de socialização.
É este o exercício que pretendo fazer, de modo ensaístico, tendo por base os
materiais que tenho acumulados, decorrentes das pesquisas de campo realizadas entre
conflito para a produção do atingido enquanto ser social, partindo, para tanto, de
contribuições dos próprios interlocutores.
divisando o acesso entre a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, a Alça Viária e a
cidade de Abaetetuba. Considerado um local estratégico, pois fica a menos de dez
minutos de carro até o complexo industrial-portuário de Vila do Conde, ele foi
ão
sócio-ambiental cometido por esta gigante da mineração, quando uma de suas bacias
ver
210 Defendi minha dissertação de mestrado, intitulada QUANDO FALAM OS RIOS DA AMAZÔNIA: um estudo na
psicologia social crítica sobre o modo como são produzidos os atingidos por grandes projetos em Barcarena,
no Pará, em 31 de março de 2022; trabalho orientado pelo Prof. Dr. Leandro Passarinho Reis Júnior (PPGP/
UFPA), co-orientado pela Profa. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos (PPGP/UFPA) e avaliado pela Profa.
Dra. Edna Maria Ramos de Castro (NAEA/UFPA), pelo Prof. Dr. Aluízio Ferreira de Lima (PPGP/UFC) e
pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Freire Piani (PPGP/UFPA).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 699
Entre janeiro de 2019 e setembro de 2021 eu passei inúmeras vezes pelo Peteca,
sempre me impressionando, de um lado, com a enorme quantidade de caminhões se
movimentando ou parados em seus postos de combustível e, de outro, pela péssima
qualidade das estradas que lhe davam acesso. Quando a época era de muitas chuvas,
a lama atolava facilmente veículos de pouca tração e tornava alguns trechos intrafe-
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gáveis para pedestres ou ciclistas. Em outros períodos, quando o tempo estava mais
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seco, a poeira levantada pelos caminhões criava cortinas que prejudicavam a visão,
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adentrava nas casas ao redor e dificultava a respiração.
No dia do ato o período era de chuva, ou melhor, de lama. Chovera a noite toda
e, às seis da manhã, um leve chuvisco ainda se mantinha. Eu estava com o Rafael,
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companheiro no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), aguardando a che-
gada dos ônibus. Escondíamo-nos da chuva embaixo de um pequeno toldo de palha,
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improvisado no local onde param as vans e micro-ônibus que percorrem Barcarena
aC
entre a Sede, a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, o Núcleo Industrial e o Porto
São Francisco. Aquele cruzamento também era, portanto, a passagem de inúmeros
trabalhadores, estudantes e moradores das várias comunidades espalhadas pela região.
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Ainda assim, contudo, o que predominava eram os caminhões: todos grandes, com
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lonas pretas sobre a caçamba, placas de diversos estados do Brasil, seu cheiro de
diesel queimado e o som abafado do peso de mercadorias sequestradas, esburacando
a estrada e jogando lama e poeira sobre os nativos.
Confesso que, quando participei, em 10 de janeiro de 2019, da minha primeira
itor
reunião com lideranças de Barcarena eu ainda tinha uma visão que, para não chamar
a re
de ingênua, era, em muitos aspectos, um tanto quanto romântica. Essa visão, porém,
durou pouco tempo. Enquanto esperava o aparecimento repentino de cinco ônibus
lotados de manifestantes, revezando o lançamento agudo da visão entre os quatro
acessos do trevo, lembrava das muitas reuniões, assembleias e encontros informais
que participei com os líderes e presidentes de comunidades, diretores de associa-
par
Já passava das sete horas quando avistamos um ônibus que, suspeitamos, receo-
ver
sos, iria para o ato. Receosos porque nele só estava o motorista. Ele parou em um
posto e, quando lá chegamos, confirmamos a suspeita: ele fazia a rota das comuni-
dades de Tupanema e Arienga-Rio, mas quando passou ninguém aguardava, então
seguiu em frente. Subimos no ônibus e pedimos para o motorista nos levar ao local
do ato. Esperamos até às dez horas pelos outros quatro ônibus que também estavam
confirmados e levariam os moradores das comunidades Bom Futuro, Laranjal, São
Lourenço, Fonte Boa, Sítio Conceição, Burajuba, Sítio São João, Curuperé, Cupuaçú,
Tauporanga e Arrozal, mas nenhum apareceu.
700
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chuva, que se prolongava desde o início da noite, e pela péssima qualidade das estra-
das, que impedira os ônibus de chegar aos seus destinos; eu sabia, porém, que havia
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outros fatores que, apesar de pouco visíveis como a tormenta, eram mais concretos
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e correspondentes à realidade.
Mas naquela ocasião eu ainda não podia formular, com exatidão, o conteúdo
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e as articulações entre estes fatores; isto só foi possível na medida em que passei a
intencionalizar minha relação com as lideranças de Barcarena tendo em vista a produ-
ção dos dados para a minha pesquisa de mestrado, quase dois anos depois, apenas no
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final de 2020. Foram, principalmente, a observação, o diário de campo e as entrevistas
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em profundidade que me possibilitaram, ao olhar retrospectivamente para minhas
experiências não sistematizadas no contexto do ato, formular um pequeno esboço,
211 Atribuí estes nomes fictícios aos atingidos e às atingidas que entrevistei em minhas pesquisas de campo, a
decisão pelo anonimato foi por questões de segurança, visto que todos e todas são lideranças que fazem
a luta contra os grandes projetos na região de Barcarena.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 701
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em sua vida, nenhum benefício advindo dos grandes projetos que foram instalados
em Barcarena: “Porque pra mim os grandes projetos que se instalaram aqui no muni-
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cípio de Barcarena, eu nunca fui benéfico de nada deles. Eu não me empreguei, eu
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não fui trabalhar em fábrica, eu não fui me especializar em cursos que eles têm, que
oferecem”. Tapajós, por sua vez, ao falar das consequências nefastas provocadas
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pelos grandes projetos no meio ambiente e na vida das comunidades em Barcarena,
diz que eles são provedores de crimes: “eu não chamo de desastres, eu chamo de
crimes. Eu chamo de crimes mesmo, ambientais, que ocorre dentro do município de
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Barcarena”. Enquanto isso, Xingu (2020) se sente preocupada e insegura:
aC
Meu Deus, se um dia esses... essas bacias aí romperem, será que nós vamos ser
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Este medo e esta preocupação de Xingu, contudo, não são infundados, mas cor-
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respondem, ao mesmo tempo, a uma análise acurada da realidade, que envolve tanto
fatores externos quanto internos a Barcarena, ou fatores que são gerais – do modo
de operação dos grandes projetos como meios de acumulação capitalista às custas
da exploração de bases naturais de elevada capacidade de produção de capital – e
também de fatores específicos, relacionados ao passivo histórico de outros crimes
par
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emergenciais de atendimentos aos atingidos, como a distribuição de água nas comuni-
dades (MPF, 2020). Na sequência, a Alunorte e a Norsk-Hydro assinaram um Termo
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de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se, perante ao MPF, ao MP-PA
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e ao Governo do Pará, dentre outras coisas, a contratarem auditorias independentes
para avaliar os impactos causados nos rios da região, destinar R$ 65 milhões para o
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fornecimento de cupons de alimentação para as famílias atingidas – a serem levanta-
das e cadastradas também por auditorias independentes – e mais R$ 5 milhões para a
o
criação e implantação de sistemas alternativos de tratamento e distribuição de água
potável (MP-PA/MPF, 2018).
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Na tentativa de encontrar soluções fáceis e rápidas para crimes ambientais de
grande magnitude cometidos pelas multinacionais que operam os grandes projetos,
não viam com bons olhos a inclusão de novas comunidades, por medo de ver seus
benefícios diminuídos, seguiam na busca pela ampliação de suas conquistas. Todas,
porém, passavam ver o MP-PA e o MPF, tanto como aliados quanto como alvos
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prioritários de suas manifestações, pois teriam sido eles que forçaram as empresas a
cumprir suas obrigações para com os atingidos.
Este modo, cínico e perverso, de operar uma irreal solução para os conflitos
s
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supermercados. Ao final, o MPF informou que seriam feitos novos estudos sobre o
impacto causado pelo crime e que novas famílias seriam inclusas no benefício, o
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que fez com que muitos saíssem de lá com a sensação de conquista e que sua pauta
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imediata fora atendida, no entanto, ainda pairava a incerteza sobre quais comunidades
seriam contempladas e se todos os atingidos seriam beneficiados, principalmente os
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moradores de Abaetetuba, que não apareciam nos estudos técnicos, provocando, de
outro lado, a sensação geral de que, quem deveria ser pressionado era o ministério
o
público e não as empresas.
No dia seguinte à audiência, recebi uma ligação de um número desconhecido;
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eu estava na Vila do Conde, prestes a reunir com a Colônia de Pescadores de Bar-
carena, às margens do rio Dendê e resolvi atender. Quem ligava era Ismael Moraes,
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indispor ao diálogo. Respondi a ele que eu não tomava decisões sobre a organização
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do ato, apenas o comando, que era formado por representantes de vários movimen-
tos, coletivos e comunidades, dentre as quais a Cainquiama fazia parte e que, se a
associação tivesse algum questionamento a apresentar, que o fizesse na reunião que
ocorreria no dia seguinte. No outro dia a Cainquiama não compareceu à última reu-
nião antes do ato, e eu só fiquei sabendo, dois dias depois, que os dois ônibus que
par
ela se comprometera em levar com manifestantes para a frente da Hydro havia ido
para Belém realizar um protesto em frente à sede do MPF, pautando a ampliação do
Ed
TAC e o que ele provoca, tanto para a empresa, quanto para os atingidos:
Tem situações hoje, em relação aos território, irreversível. Não tem como voltar
s
mais, não tem. Eu nem acredito que tem esse rio, hoje, possa ser revertido essa
ver
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dos. É evidente que existem conflitos entre a empresa e o Estado, pois é este último
que impõe sansões, adverte e onera a primeira, no entanto, em outros momentos os
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seus interesses podem convergir quando o Estado fornece subsídios, incentivos e
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isenções fiscais para a empresa; os atingidos, porém, conflituam ora com o Estado,
ora com a empresa, no mais das vezes, aparentemente, têm o primeiro ao seu lado,
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mas a segunda é, na maioria dos casos, a sua antagonista central. Entretanto, o TAC
produz um conjunto de conflitos entre os próprios atingidos que, na medida em que
enfraquecem a sua unidade e suas lutas, arrefecem ainda mais e efetivação da justiça;
o
quando as comunidades ou seus representantes passam a se ver como adversários,
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acusam-se, ameaçam-se e brigam entre si, só que sai ganhando é, sem dúvida, a
empresa. Este será o ponto que, como algo que se diferencia, mas ao mesmo tempo
Posso dizer que minha pesquisa de campo só foi possível graças a tarefa que
itor
o pano de fundo das análises que venho fazendo. Foram estas primeiras semanas,
entre idas e vindas de Barcarena, que me possibilitaram conhecer melhor a cidade
e aprender a andar por ela, transitando entre várias comunidades, regiões urbanas e
rurais, por entre estradas e rios; foram também, estes contatos iniciais, que me levaram
a conhecer as quatro pessoas que entrevistei e pude observar os seus modos de vida.
par
Mineração (MAM) e presidente do Quilombo Sítio São João. Todos são lideranças
na luta contra os grandes projetos em Barcarena, têm histórias, relatos e experiências
que envolvem diferentes momentos de denúncias e reivindicações em defesa dos
seus direitos.
Através da luta a produção dos atingidos ocorre como síntese do imperativo
or
marxiano de que os homens fazem a sua própria história (MARX, 2015), portanto,
fazem a si mesmos, são os sujeitos da sua produção. Mas a luta é resultado dos con-
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flitos, das contradições e antagonismos que opõe os atingidos e os grandes projetos;
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logo, os primeiros são produzidos, e produzem-se a si mesmos, como resultado da
existência material destes últimos.
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Considerando o caráter antagônico em que se estabelece o processo de resistên-
cia dos atingidos, tendo em vista que estes, como trabalhadores, têm interesses que
o
divergem de modo oposto e inconciliável com os interesses dos grandes projetos, uma
das formas principais de luta empreendida tem se configurado, historicamente, como
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a pressão popular através de manifestações, atos, caminhadas e denúncias públicas
dos crimes cometidos pelas empresas presentes em Barcarena. Neste processo, for-
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versidade Federal – fazer a denúncia nos meios de comunicação, nas rádio, tele-
visão, jornal. Infelizmente a imprensa ela num dá muito ênfase pra essa questão
dos movimentos sociais; ela dá ênfase mais pra empresa. Saiu uma matéria bem
desse tamanhozinho assim, bem recortadozinho assim num cantinho; no jornal
não passou nada; na televisão aquela parte de televisão não mostraram nada disso
par
que nós fez. Mas saiu na Província do Pará e no Diário do Pará assim, uma maté-
ria com aquelas letra bem miudinha assim que... mas saiu! E as fotos da gente,
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né? Que nós tivemos lá. Isso em 1993, 1993 que isso tava no auge desse.... Aí as
empresas, elas botaram uma espécie de uma... de um... elas trocaram os... como
é que diz? Os crivos lá do... das chaminés, né? Que era por lá que passava, aí deu
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foram, aos poucos, aprimorando os seus métodos de luta, os grandes projetos também
cresceram, se multiplicaram e exacerbaram as contradições e transformações sobre
os modos de vida da população barcarenense. Como diz Amazonas (2021): “eles vão
acabando com tudo e hoje os grandes projetos, a gente vê que eles já se colocaram,
né? Já tão dentro, muitos anos dentro da área e tá vindo muito, a gente sabe”. Deste
modo, visando fortalecer a resistência para dar continuidade aos enfrentamentos,
os atingidos estabelecem alianças e fazem articulações entre as suas organizações e
outras que não necessariamente são de Barcarena ou aglutinam atingidos, pois “são
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lutas que a gente vai se juntar com outros companheiro, com outros parceiro, com
outras comunidades e com quem quiser vir pra luta com a gente, entendeu?” (ibidem).
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parceiro que a gente tem? A gente tem a Malungo, que é a Associação da Coor-
denação das Comunidades Remanescentes Quilombolas do Pará. A Malungo é
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muito parceira com a gente. A FASE. Então são parceiros que a gente tem hoje
aut
(TAPAJÓS, 2021).
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para dar maior legitimidade às suas lutas e, ao mesmo tempo, para darem visibilidade
às suas ações tendo em vista a construção de uma narrativa diferente da que recor-
o
rentemente é feita pela mídia, pelas empresas e até mesmo pelo Estado. Como diz
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Tocantins, “a imprensa dá menos ênfase para os movimentos sociais e mais para as
empresas”. Os grandes projetos, por terem os seus interesses – de expansão produ-
tiva, aquisição de novas áreas, leviandade com o meio ambiente – a todo o momento
safado. É.... que tá aqui é comunista, é gente que num quer o bem, que pensa... que
quer o mal, que não quer o desenvolvimento... esse pessoal não presta, né? Nós
temos que acabar!”. Então o pessoal: “Ah é do sindicato, é da associação. Esses
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são um bando de saf…”. E isso vai pegando; porque a gente tem visto assim que
é tipo uma contaminação que vai passando, né? De um pro outro e vai minando.
s
A análise feita por Tocantins demonstra que a criminalização da luta dos atin-
ver
gidos está imersa no processo mais amplo de criminalização da política e dos movi-
mentos sociais. No meio do povo, difundem-se histórias sobre as lideranças populares
que as retratam como safadas, corruptas e não confiáveis. Nas palavras de Amazonas
(2021): “o que eu acho é que a gente é muito tachado de... chamado de vagabundo,
de que não tem o que fazer, de ficar ganhando dinheiro alheio, entendeu?”. Esse
processo coloca os atingidos em luta uns contra os outros, forçando-os a desviarem
do foco central da luta contra os grandes projetos para resolverem os seus conflitos
internos – “Eles sempre distorce a nossa palavra, sabe? Eles distorce. Então é uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 707
coisa que eu vivo em luta com o povo. Assim, não com o povo… não com o meu
povo que me apoia, mas com o povo que é o contrário nosso, né?” (ibidem).
Historicamente, as promessas de emprego e crescimento econômico associados
às grandes empresas provocam divisões entre os atingidos, pois são muitos os que
acreditam nestas oportunidades. Porém, a história e o relato dos atingidos já vem
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demonstrando que, para os moradores das comunidades – que perdem o seu território,
seus meios e modos de vida tradicionais – as poucas vagas que lhes são destinadas
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são para o ocupar os postos mais precarizados de trabalho. Ainda assim, uma parcela
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considerável dos atingidos continua acreditando nos empregos, posicionando-se em
oposição àqueles que lutam contra os grandes projetos:
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Aí a gente, por exemplo, aqui, o pessoal da... desse lado aqui diz assim: “Não,
o sindicato não faz nada; não faz nada!’’. Não, na verdade, se a gente vai fazer
o
uma pesquisa, entre eles, eles preferem as empresas; eles defendem as empresas;
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eles defendem os projetos, a instalação desses de.... Tá igual aquele caso lá de
Mariana, né? Que as pessoas foram atingido e depois foi feita uma pesquisa e
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70% dizia que a empresa devia continuar por causa do emprego. Então é muito
complicado. Isso dá uma angústia na gente porque as pessoas preferem às vezes
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a morte, né? Preferem achar que o projeto é a solução (TOCANTINS, 2020).
Quem disse que a gente conseguiria tirar uma Hydro daqui? Aí é pedi pra morrer.
Porque o povo…. Porque a Hydro ela dá emprego pra várias pessoas, né? Ela
itor
mesmo, mas tem a terceirizada que emprega peão; e esse peão, sabendo que a
a re
empresa vai acabar e sabendo de onde vem… é isso. Isso porque naquele, lá em
2018, foi quebrado vários contrato por causa daquele crime ambiental, né? A
gente já sofreu ameaça, imagine se uma empresa dessa saí (AMAZONAS, 2021).
fatores que enfraquecem as suas lutas, mas também são elementos constituintes do
modo como eles são produzidos. Da intercessão entre as lutas que se articulam, dos
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atingidos uns contra os outros e destes contra os grandes projetos, envoltos com suas
alianças e na disputa pela forma como são representados, produzem-se: atingidos
que se reconhecem como tais e outros que não reivindicam esta identidade; atingi-
ão
dos que se organizam e lutam contra os grandes projetos e outros que defendem as
empresas e denunciam a ação dos primeiros; atingidos que lutam contra atingidos e
outros que, apesar de lutarem para sobreviver, não lutam nos termos aqui colocados.
s
Contudo, todos e todas são atingidos, pois independente da luta que façam – ou
ver
não façam – se contra as empresas ou entre si, o que fazem ou deixam de fazer e
da forma como é feito, é um produto das transformações provocadas pelos grandes
projetos em seus modos de vida.
Eu pude perceber, no processo de organização do ato de 18 de fevereiro de 2019,
como os conflitos entre os atingidos podem ser um fator determinante para dificultar
a sua unidade para a luta. Estes conflitos, contudo, envolvem relações políticas, de
parentesco e de liderança nas comunidades. Eles se associam ao nível dos modos de
vida dos atingidos, de seu cotidiano, de suas relações locais, mas não se dissociam,
708
por isso, dos movimentos mais gerais da luta de classes contra os grandes projetos
ou do modo de produção capitalista como produtor de contradições e antagonismos;
eles são, também, da ordem tanto da objetividade quanto da subjetividade, pois são
concretos e, ao mesmo tempo, dizem respeito às singularidades dos sujeitos atingidos.
Em 20 de janeiro de 2019, participei de uma reunião na comunidade Burajuba
or
onde, cumprindo com uma das táticas definidas para a realização do ato, de ampliar o
envolvimento das comunidades de Barcarena, compareceram representantes e presi-
od V
dentes de diversas outras comunidades, como Arienga, São Lourenço, Sítio Conceição,
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da Ilha Trambioca, Tupanema, de Vila do Conde, Vila dos Cabanos, dentre outras.
Desta reunião foi formado o comando do ato, composto por cerca de 10 pessoas, do
R
qual eu fazia parte mais os representantes das principais comunidades presentes; este
grupo teria tarefa de fazer a mobilização para o ato, garantir a estrutura, comunicação
e segurança para o dia, também seria a comissão responsável por elaborar a pauta de
o
reivindicações dos manifestantes e realizar qualquer tipo de negociação que se mos-
aC
trasse necessária, seja com a empresa, com representantes do estado ou com a polícia.
Foi neste dia, também, que comecei a perceber alguns detalhes que só a aproxi-
os demais familiares não eram mais associados, a ela cabia à presidência – ressalte-se
que Amazonas fez parte da fundação da Cainquiama e, nesta época, já presidia a
associação de outra comunidade.
Nesta reunião, também, conheci a Marilda e o Polinário; ambos se diziam
ão
212 As pessoas que não entrevistei, nomeei-as com nomes próprios, mas que não são os seus nomes verda-
deiros, pelos mesmos motivos pelos quais ocultei os nomes dos entrevistados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 709
or
em Brumadinho, provocando a morte de mais de 300 pessoas. Com o crime cometido
pela Vale na Barragem de Córrego do Feijão, imediatamente, as atenções nacionais e
od V
internacionais se voltaram para o conjunto de outros grandes projetos que, no Brasil,
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representassem riscos iminentes para a população em seu entorno, incluindo aí aqueles
instalados em Barcarena, especialmente a indústria mineral da Hydro-Alunorte. Deste
R
modo, o ato que estávamos organizando ganhava ainda mais importância e passava
a se inserir dentro de um contexto nacional de luta para denunciar os diversos crimes
cometidos pelo capital na mineração.
o
Foi assim que, no dia 1 de fevereiro de 2019 realizamos uma assembleia com os
aC
atingidos de Barcarena e Abaetetuba, na vila dos Cabanos, que contou com a participa-
ção de mais de 100 pessoas e acabou por se converter em um ato em solidariedade aos
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o dia do ato. Logo em seguida, fui alertado pela Marida para não confiar no Almeida,
pois ele era “queimado” nas comunidades por pedir dinheiro para as famílias em troca
de cadastro para sestas básicas e outros auxílios que nunca chegavam.
Após o ato, fiquei sabendo que o Sérgio Almeida andou por várias comunidades
par
ONGS (se ferindo ao MAB) que queriam se aproveitar das famílias para conseguir
recursos com as empresas, por outro lado, ele incitava as comunidades a se juntarem
a ele para participar da audiência pública que ocorreu no dia 15 de fevereiro. Eu
ão
soube também, através de Tapajós, que no mesmo horário do ato, várias lideranças
que faziam parte do comando, dentre elas a Jurema, o Marilda e o Polinário, estavam
reunindo com outros presidentes de associações e centros comunitários, preparan-
s
do-se para uma outra reunião que ocorreria, no mesmo dia, com representantes da
ver
Conclusão
or
a Hydro, naquele dia, eram 5% do que se esperava e que vinham de comunidades
que não constavam nas listas de mobilização. Eu mesmo ainda não entendia muito
od V
bem como tudo tinha acontecido e, as informações que possuía, estavam dispersas
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e pouco organizadas.
Em 18 de fevereiro de 2021 a pandemia do Coronavírus ainda era o foco cen-
R
tral das atenções e preocupações, e não ouvi falar nada sobre os 3 anos do crime em
Barcarena. Neste período, também, eu tentava organizar os primeiros materiais do
o
campo que conseguira realizar, com muitas dificuldades devido à pandemia, no final
do ano anterior. Um ano depois, em 18 de fevereiro de 2022, eu me preparava para a
aC
defesa de minha dissertação de mestrado, já com muitas análises e conclusões amadu-
recidas e consolidadas; no dia da defesa, em 31 de março, que foi no formato virtual,
Isto só foi possível, sem dúvida, e da forma como tentei fazer, graças a minha
aproximação com a antropologia e graças à gestação de minha esposa, Ádima, quando
a re
213 LEÃO, Bianca. Barcarena: 1 ano de vidas em suspenso e violação de direitos. Amazônia Real, 19 mar. 2019.
Disponível em: https://amazoniareal.com.br/barcarena-1-ano-de-vidas-em-suspenso-e-violacoes-de-direitos/.
Acesso em: 4 set. 2022.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 711
REFERÊNCIAS
AMAZONAS. Entrevista III. [mar. 2021]. Entrevista concedida a Robert Damasceno
Monteiro Rodrigues. Barcarena, 2021.
or
BARCARENA LIVRE. Barcarena Livre Informa 1: “37 anos de desastres socioam-
od V
bientais em Barcarena”. Belém: IBASE/UFPA/ICSA/NAEA, 2016. Disponível em:
aut
https://ibase.br/pt/wp-content/uploads/dlm_uploads/2018/02/IBASE_INFORMATI-
VO-BACARENA_V3.pdf. Acesso em: 24 jul. 2020.
R
BECKER, Berta K. Amazônia. 5. ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.
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