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As raízes da violência

Antonio Marcio Junqueira Lisboa

Sumário
Apresentação. Introdução. O que vem sendo
feito. A prisão de crianças. O resultado? Por quê?
Causas da violência. Como prevenir. Programas
destinados a prevenir a formação de comporta-
mentos anti-sociais. Considerações finais.

Apresentação
Espero conseguir o apoio de todos na
luta para convencer governantes, políticos
e a sociedade em geral de que os distúrbios
de conduta, cuja origem, na maioria das
vezes, se inicia na primeira infância, são
os responsáveis pelo crescente aumento
das diferentes formas de violência. A falta
de amor, atenção, segurança, limites, dis-
ciplina, valores, auto-estima são fatores
determinantes da nossa caminhada para
o caos social. Os resultados das medidas
punitivas e repressivas de combate à vio-
lência que vêm sendo utilizadas, há mais de
um século, têm sido decepcionantes. Ainda
não nos conscientizamos de que é mais fácil
construir crianças do que seguir tentando
consertar adolescentes e adultos.

Introdução
Antonio Marcio Junqueira Lisboa é Membro
O Correio Braziliense do dia 9 de novem-
da Academia Brasileira de Pediatria. Membro
honorário da Academia Nacional de Medicina.
bro de 1999 relata a fala, a seguir transcrita,
Ex-presidente da Academia de Medicina de do deputado José Genuíno:
Brasília, da Sociedade Brasileira de Pediatria, da “Existe um grande volume de
Sociedade de Pediatria de Brasília. Professor Ti- revelações envolvendo o crime orga-
tular de Pediatria da Universidade de Brasília. nizado que sinalizam que, no Brasil,

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ele esteja operando a partir de um parada e temida pela população, com polí-
estado-maior que coordena as suas ticas de combate à violência com resultados
ações estrategicamente planejadas. pífios, e sem praticamente nenhuma idéia
Indícios revelam a infiltração das de como prevenir a formação acelerada de
organizações criminosas nas di- delinqüentes, sente-se perdido. Combate os
versas esferas do Estado, e nos três brinquedos marciais, promove manifesta-
poderes. Deputados denunciados ções pela paz, tenta controlar programas de
como chefes de quadrilhas; poli- televisão, distribui cartilhas, faz apelos, ten-
ciais e outros ramos do Executivo ta desarmar os cidadãos honestos, melhorar
estão contaminados pela presença a iluminação das ruas e implantar ações de
de quadrilhas dedicadas ao tráfico cunho punitivo e repressivo. Providências
de drogas, esquadrões da morte, de pouco alcance na prevenção do aumento
assaltos, tráfico de armas. Juizes fa- do número crescente de delinqüentes.­
zem parte do esquema de proteção O que os governantes e políticos não
de bandos organizados. O esquema conseguem entender é que a grande maio-
abrange também empresas legais e o ria dos violentos – delinqüentes, traficantes,
uso de instituições financeiras, para homicidas, contrabandistas, assaltantes,
a lavagem de dinheiro. Nenhuma in- corruptos, estupradores – é formada na
filtração dessa envergadura ocorreria infância, “fabricada” antes dos 6 anos de
sem um planejamento central. Exis- idade, quando neles é plantada a semente
tem conexões entre quadrilhas que da violência. São fatores importantes na
atuam em ramos criminosos diversos, gênese da delinqüência: a falta de atenção,
e, em diferentes estados; surgem fios de amor, de segurança, de princípios, de
que ligam quadrilhas que atuam no valores, de limites, de disciplina e a baixa
tráfico de drogas, contrabando de auto-estima, cuja maior responsabilidade
armas, roubos de cargas e de veícu- cabe aos pais e aos professores. Além
los, etc. Surgem conexões entre os desses, são fatores extremamente impor-
grupos que atuam no Acre, Alagoas, tantes a privação materna e a violência
Maranhão, Piauí, Ceará, Amazonas, doméstica.
Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Em 14 de janeiro de 1914, Franco Vaz,
Grosso do Sul. A violência urbana educador e pediatra, publicou um artigo,
está relacionada com o crime organi- “Problema da Proteção à Infância”, onde,
zado e com o tráfico de drogas e mata além de descrever a situação do menor
mais hoje no Brasil do que qualquer abandonado no Rio de Janeiro, critica as
guerra dos últimos tempos. Em São ações governamentais e propõe medidas
Paulo chega-se à cifra de quase mil corretivas, que nunca foram implantadas.
mortos por mês. O avanço do crime Passados quase cem anos, a situação vem
organizado, nas várias esferas sociais deteriorando-se cada vez mais. E por que
e de poder, confirma a completa fa- isso acontece? A resposta a esta pergunta
lência do Estado. O Estado não só não está no fato de que as ações dos gover-
mostra nenhu ma eficácia no combate nos em relação à violência são de ordem
ao crime, como perdeu toda credibi- repressiva, paliativa, cujo objetivo maior
lidade perante a opinião pública de é o combate à violência, sem maiores pre-
que possa fazer algo nessa área.” ocupações com a prevenção das causas
O governo, diante de uma guerra civil determinantes, responsáveis pela formação
não declarada, do crime organizado infil- de delinqüentes. Medidas que visem a
trado nas diferentes esferas do Estado e nos melhorar as condições socioeconômicas da
três poderes, refém de uma polícia despre- população, controlar o narcotráfico, acabar

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com a impunidade, coibir o contrabando do. A criança ainda é considerada uma das
e a venda de armas, embora importantes, menores prioridades em nosso país. Perde
são pouco eficientes, pois atuam somente para os bancos, por exemplo.
sobre as causas predisponentes ou sobre as Há mais de meio século, inúmeras me-
conseqüências da violência. didas vêm sendo tomadas para diminuir
Considero que a prevenção à violência os episódios de violência. Entre outras, as-
é principalmente um problema pediátrico, sinatura de tratados, promulgação de leis,
o que exigirá o concurso de profissionais implantação do Estatuto da Criança e do
conhecedores das necessidades emocio- Adolescente. Criação de Varas, Delegacias
nais das crianças – pediatras, psiquiatras Especializadas, Escritórios de Defensoria,
infantis, psicólogos, educadores, assistentes Conselhos Municipais e Tutelares. Comis-
sociais, sociólogos, antropólogos – para ser sões Nacionais, Estaduais e Municipais de
resolvido. Já o combate ou tratamento da Defesa de Direitos. Programas de proteção
violência é responsabilidade do Estado, às testemunhas. Combate à pobreza, às
da Justiça e dos órgãos de segurança. Sem desigualdades sociais, ao tráfico de drogas,
programas dirigidos para a prevenção, a ao contrabando de armas, à impunidade, à
violência seguirá crescendo, consumindo corrupção. Desarmamento da população,
recursos fabulosos sem o retorno esperado. e, também, das crianças por seus brinque-
Acredito que isso só poderá ser conseguido dos marciais. Construção de centros de
se houver uma atuação sobre as crianças ressocialização para “recuperar” infrato-
nos seis primeiros anos de vida, durante o res adolescentes (FUNABEM, FEBEM),
processo de formação de seus valores, do delegacias, penitenciárias, presídios de
seu caráter, da sua personalidade. segurança máxima. Conscientização da
Assim, neste Fórum proponho-me a população, distribuição de cartilhas com
tentar convencer os parlamentares de que recomendações para evitar os diferentes
a prevenção da violência é, em quase sua tipos de violência. Criação de ONGs que
totalidade, de responsabilidade pediátrica. se dedicam a promover a paz. Promoção
Ou protegemos nossas crianças para que se de cultos, protestos, passeatas pela paz e
tornem adultos honestos e responsáveis, contra a violência, distribuição de fitinhas,
ou continuaremos caminhando, inexora- cartazes, bandeiras e lenço brancos.
velmente, para o caos social. Trata-se, no Em relação à Policia: aumento do efe-
fundo, de um problema de cidadania. tivo, treinamento adequado, criação de
grupos especializados, além de compra de
O que vem sendo feito novos equipamentos. Aumento dos salários
e punição de membros corruptos. Colocá-la
Em termos de política de defesa dos nas ruas.
direitos humanos, o Brasil é um dos países O combate à criminalidade é atribuição
mais avançados. É signatário de vários dos órgãos de segurança e do Poder Judi-
tratados internacionais, leis têm sido ciário. A Polícia identifica os delinqüentes,
promulgadas e a Constituição Brasileira é prende-os e os entrega ao Judiciário, que
considerada uma das que mais assegura define qual o tipo de pena a ser-lhes atri-
direitos às pessoas, às crianças e aos ado- buída.
lescentes. O artigo 227 da Constituição visa Embora a Polícia seja a instituição que
a garantir às crianças e aos adolescentes, nos protege do caos, ela e o Judiciário es-
com absoluta prioridade, alimentação, tão contaminados pelo crime organizado,
educação, proteção, saúde, segurança. In- principalmente pelo narcotráfico. Inúmeros
felizmente, na prática, não funciona, pois o policiais e delegados, inclusive da Polícia
que está prescrito não vem sendo cumpri- Federal, considerada de elite, foram exclu-

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ídos por corrupção. Várias operações da trabalhos à comunidade. A redução da
Polícia Federal identificaram membros do idade penal é mais uma medida que em
Judiciário, inclusive ministros e desem- nada contribuirá para prevenir ou diminuir
bargadores, participando de atividades a criminalidade. Ao contrário, permitindo
ilícitas. Fatos preocupantes por serem eles a restrição da liberdade pela colocação de
os guardiões das leis. adolescentes em centros de recuperação
ou presídios, aumentarão os já graves
A prisão de crianças problemas conseqüentes à superpopulação
carcerária, e poderemos assistir, estupefa-
Acredito que os órgãos de segurança e tos, o contrário do esperado, a um aumento
a sociedade estejam completamente perdi- da criminalidade, pela formação de mais
dos. Como se fossem avestruzes, escondem delinqüentes. J.C.E. fumava maconha, chei-
a cabeça na areia, para não enxergar a rava cocaína e tinha sua Beretta. Pergunta-
origem real do problema – as deformações do se achava que um garoto de dezesseis
da personalidade e do comportamento hu- anos tem consciência do que está fazendo,
manos, a maioria tendo origem na primeira respondeu: “Tem. Mas a redução da idade
infância. só vai encher mais as cadeias. Mas cadeia
O medo dos jovens transbordou os não reabilita ninguém. O cara sai da prisão
limites da racionalidade, em grande parte seis vezes mais bandido. Em vez de discutir
devido às notícias veiculadas pela mídia. isso, deveria prevenir os crimes que ainda
Criou-se um clima de que algo mais teria não aconteceram . A questão principal é
que ser feito. Em lugar de se procurar as melhorar o cara que está com vontade de
causas determinantes e atacá-las, acharam roubar” (C.B. 18.03.98). Até J.C.E., 17 anos,
mais fácil tentar baixar a idade de respon- sabe que o melhor é prevenir.
sabilidade penal. As pessoas que defendem
essa diminuição não estão buscando uma O resultado?
solução para o problema da delinqüência e
da violência, e sim uma forma de conseguir • As pessoas estão em pânico, insegu-
dormir com tranqüilidade, andar nas ruas ras, impotentes, acuadas, aprendendo a
com segurança, diminuir suas preocupa- usar armas ou recebendo lições de defesa
ções com a escola e o lazer dos filhos, ga- pessoal;
rantir seu patrimônio pessoal e a sua vida, • A mídia relata, em um crescendo, epi-
nem que isso custe colocar uma multidão sódios e cenas terríveis de violência.
de jovens nas cadeias. Para pacificar suas • Nas capitais, mais da metade da po-
consciências, fingirão acreditar que a prisão pulação já foi vítima de violência.
será boa para eles, pois aprenderão lições • A polícia instrui a população a se
de cidadania, de civilidade, de respeito à defender.
propriedade privada, de obediência às leis e • A população defende a pena de morte.
de lá sairão cidadãos honestos. Assim pen- Os linchamentos aumentam.
sando, estão na contramão dos penalistas • Fazendas são invadidas.
que acreditam na falência pedagógica e de • O futebol deixa centenas de feridos.
recuperação de nossas FEBEM e penitenci- • Cresce o número de empresas de
árias, e que o sistema carcerário existente, segurança.
como produtor e reprodutor da violência, • Aumenta a violência doméstica, a
esteja contribuindo para o aumento e não corrupção, roubos, assaltos, seqüestros,
para a diminuição da criminalidade. Por homicídios.
essas razões têm proposto a aplicação de • A polícia é temida pela população,
penas alternativas, como a prestação de principalmente pelos pobres.

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• Aumentam os corruptos, inclusive públicos, tênis, gasolina aumentam o tra-
entre parlamentares, governantes, magis- balho policial.
trados e policiais. • Falsificação de documentos, de di-
• As pessoas se defendem construindo nheiro, fabricação pirata de artigos são
grades, muros, compram armas, não saem comuns.
de casa, não viajam à noite. Contratam • Os golpes, dos mais diversos tipos, têm
seguranças, instalam equipamentos ele- se multiplicado: do Boi Gordo, do Avestruz
trônicos, usam carros blindados, heli- Master, do Camarão, do Celular, do Orkut,
cópteros. da Internet, das Premiações (falsas), do
• Os presídios e centros de recupera- Seqüestro, dos Acidentes, dando prejuízos
ção estão superlotados. Rebeliões, fugas, milionários à população.
assassinatos são rotineiros e os motoristas • Doleiros desonestos lavam dinheiro
assaltados e violentados. do narcotráfico.
• Narcotraficantes dominam favelas e • Concursos públicos para Polícia Fe-
bairros, decretando feriados e quem pode deral, Tribunal de Justiça do DF, Ordem
ali morar, viver ou morrer. Incendeiam dos Advogados do Brasil, Procuradoria
ônibus, queimando as pessoas que estão são fraudados.
em seu interior. • O contrabando e o nepotismo se tor-
• O índice de corruptos está aumentan- naram uma praga.
do. Políticos, governantes, magistrados, • Um terço dos deputados escalados
policiais e empresários estão se locuple- para investigar o caos nos aeroportos en-
tando com o dinheiro público, aquele que frenta problemas com a justiça.
deveria ser usado para melhorar a saúde, • Aumento do número de bebês en-
a educação, a nutrição do povo. terrados, jogados em lixeiras, lagoas, rios,
• Cada vez mais homens, mulheres e ainda vivos.
crianças fazem cursos de defesa pessoal e • Estão roubando até sapatos de defun-
manejo de armas de fogo. tos em velórios.
• Os bandidos, de dentro de presídios, • Os tiroteios, verdadeiras batalhas
principalmente dos do Rio e São Paulo, entre traficantes e policiais, ou entre si,
utilizando celulares, ameaçam a população, são cada vez mais freqüentes, matando e
já aterrorizada. Os falsos seqüestros che- ferindo centenas de pessoas, aterrorizando
gam a um em cada 17 horas, só no Distrito­ a população.
Federal. • Em 2007, as operações Themis, Hurri-
• A internet é utilizada por pedófilos, cane e Navalha, feitas pela Polícia Federal,
para roubar senhas e sacar dinheiro de ban- prenderam e indiciaram centenas de pes-
cos, para ameaçar pessoas e até para plane- soas acusadas de corrupção e formação
jar roubos, seqüestros e assassinatos. de quadrilhas. Entre elas, magistrados,
• Os roubos de carros, de transporte de procuradores, policiais, parlamentares,
cargas, de ônibus vêm aumentando tanto governadores, funcionários públicos, em-
que os seguros estão cada vez mais caros. presários. Curiosamente, todos tinham
• As milícias dominam os morros do emprego, bom rendimento, não estavam
Rio, competindo com a Polícia. drogados; eram considerados cidadãos de
• Polícias do Rio e São Paulo em alerta. “bem”. Ironicamente, um deles é deputado
O assassinato de policiais, de agentes carce- e Presidente da Comissão de Justiça da
rários, ataques às delegacias e quartéis são Câmara de Brasília.
acontecimentos comuns e preocupantes. • No Brasil, de 1994 a 2004, foram assas-
• Roubo de fios elétricos, tampas de sinadas 476.255 pessoas. 175.548 tinham de
bueiros, material de construção, telefones 15 a 24 anos.

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• Estudo de organismo das Nações Uni- edifício, cada instituição, cada empresa
das feito em ocorrências policiais registra- contrata sua própria polícia. Cada pessoa
das nas duas maiores capitais do país, Rio tenta construir sua fortaleza particular. E
de Janeiro e São Paulo, concluiu que o rigor o resultado dessas providências é que, em
da legislação não reduziu os índices da 2007, todos estão reféns do medo, quer este-
violência, inclusive a prática de crimes he- jam em casas, apartamentos, ruas, trabalho,
diondos. No Rio, os homicídios aumentaram escolas, supermercados, lojas, bancas de
162% no período de 1984 a 2003 e, em São jornal, templos religiosos, meios de trans-
Paulo, 292%. O tráfico de drogas aumentou porte. A descrença na segurança pública e a
de 950%, segundo estudos da Universidade certeza da impunidade levam a população
Federal do Rio de Janeiro. A lei de crimes a viver enjaulada, encarcerada. E os bandi-
hediondos não alterou em nada a projeção dos... à espreita, do lado de fora.
do previsto para os anos seguintes. Enquanto isso, a violência aumenta,
Ao se referirem aos episódios de cres- em todas as suas formas de manifestação.
cente violência, os jornais estão usando a E continua-se a bater na velha tecla, já
palavra “guerra” para definir uma verda- mais que centenária, de se atribuir a culpa
deira situação de guerrilha urbana vivida à pobreza, às desigualdades sociais, ao
pelas populações do Rio, São Paulo, Recife, narcotráfico, à impunidade, à proliferação
Vitó­ria,­ Porto Alegre. de armas de fogo, à falta de policiais, à
Todos os tipos de violência vêm aumen- falta de políticas públicas e, infelizmente,
tando, o que significa que as medidas ado- até ao próprio Estatuto da Criança e do
tadas não têm contribuído em nada para a Adolescente.
melhoria das condições de segurança. Em síntese, para a redução dos índices
Está-se chegando a um ponto que de violência, o que temos visto são as se-
quem decide quem vai viver ou morrer é guintes medidas: a implantação de políticas
o bandido.­ sociais para diminuir a pobreza e promover
Embora pareça paradoxal, quanto mais uma justa distribuição de renda, diante das
planos de combate à violência são implan- desigualdades sociais existentes; o controle
tados, mais a violência aumenta. ou a proibição do uso de armas de fogo pela
população; o combate ao contrabando de
armas e ao narcotráfico, com a melhoria
Por quê?
do aparato policial e a agilização da justiça;
Os planos de combate à violência não
criação de mais presídios.
visam prevenir os desvios de conduta, da
Apesar de as citações anteriores cons-
personalidade, do caráter, responsáveis
tituírem, em alguns aspectos, avanços,
pelo aumento do número de delinqüentes,
refletidas como por exemplo na queda da
e, sim, combater os crimes, usando para
mortalidade infantil e nos índices de des-
isso de medidas punitivas e restritivas,
nutrição, a violência vem aumentando. E
enchendo os presídios, tentando “recupe-
poderíamos perguntar: por quê?
rar” portadores de graves distúrbios de
A resposta está na sua causa determi-
conduta, boa parte irrecuperáveis.
nante, a mais importante na gênese da
violência. Ela é endógena, interna, depende
Causas da violência do comportamento do ser humano.
Há mais de um século, são formuladas Sem exceção, no centro de todos os ca-
as mesmas propostas para diminuir a vio- sos de violência, quaisquer que eles sejam,
lência – punir e prender – e os resultados onde e como sejam perpetrados, encon-
são cada vez piores. Antes, havia uma polí- tra-se um ser humano que a praticou. Na
cia, depois, duas, três, quatro. Agora, cada maioria das vezes, alguém criado por uma

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família desestruturada, que não lhe deu a tes nas últimas décadas aumentou quase 10
atenção, o amor e a segurança necessários vezes, apesar de terem mais acesso a escolas
ao seu bom desenvolvimento; que não lhe e aos empregos. Em 1960, 17% dos infrato-
ensinou a importância da disciplina, dos res, quando foram presos, eram analfabetos;
limites, dos princípios e valores; que vio- 12% haviam cursado o ensino fundamental;
lentou a sua auto-estima, que o submeteu 9% eram empregados, 11,6/100.000 jovens
a episódios de violência física, mental, entre 12 e 18 anos haviam praticado crimes.
emocional, relacional e social. Em 2002, 1.5% eram analfabetos; 67,5% ha-
Existe uma infinidade de casos que po- viam cursado o fundamental; 30% estavam
dem ser imputados a falhas na formação da empregados; 112,5/100.000 haviam partici-
personalidade e do caráter dos criminosos. pado em crimes.
Creio, por isso, que as medidas preconiza- Dizer que desigualdade social, pobreza,
das pelos governos e pela sociedade não armas de fogo, por si só, são causas deter-
são capazes de preveni-los. Smith estudou minantes da violência é pura balela. Atrás
oito assassinos de idade entre 14 e 20 anos. de cada criminoso existe, quase sempre,
Em todos, a primeira infância foi marcada uma personalidade doentia, principal
por episódios de desintegração familiar e responsável pela situação de violência em
privações, com graves repercussões sobre que vivemos.
o processo de identificação. Qualquer pediatra ou psicólogo, mesmo
Infelizmente, existe em nossa sociedade os menos preparados, sabe que o tempera-
um crucial preconceito: o de que a pobreza mento violento pode ser herdado ou adqui-
e as desigualdades sociais sejam causas rido. A herança pode ser responsabilizada
importantes no aumento da criminalida- por um pequeno contingente de indivíduos
de. Talvez essa idéia derive da associação com comportamento anti-social, ou doentes
errônea de crime / favela = violência e de mentais, atribuindo-se aos fatores ambien-
que favela = pobre, logo, o pobre seria po- tais que atuam sobre indivíduos suscetíveis
tencialmente perigoso. Por conseqüência, – a maioria crianças com menos de 6 anos
combatendo-se a pobreza, os indicadores – a maior responsabilidade.
da violência diminuiriam. Terrível enga- Esses profissionais aceitam que, até
no. Os pobres não são agentes e, sim, as 3 anos, ou no máximo 6, a criança tenha
maiores vítimas. A quase totalidade dos estruturado sua personalidade, por já ter
moradores em favelas, que representa um passado por vivências suficientes para isso.
quinto da população, é constituída de cida- Dizem que, do ponto de vista da persona-
dãos honestos, trabalhadores, que sofrem lidade, do caráter e do comportamento,
em sua convivência diária com situações de somos o que éramos aos 6 anos. Se essa
risco. Vale lembrar, não devemos confundir afirmação é verdadeira, como tudo indica,
favelas com celeiro de marginais. as medidas para prevenir os distúrbios da
Na Índia, país com altos índices de personalidade e do caráter terão de ser to-
miséria e pobreza, a criminalidade é bai- madas antes dos 6 anos, preferencialmente
xa. Religião e sistema de castas mantêm a antes dos 3.
violência longe das favelas. Nelas não há Para Kramer existe uma fórmula in-
tensão e medo. Não existe tráfico de drogas falível para implantar na criança, rica ou
e armas. Pode-se caminhar em suas ruas pobre, o que eu denomino a “semente da
durante a noite. Na Suíça e Canadá, países violência”, ou seja, produzir desvios da per-
onde quase toda a população possui armas, sonalidade que irão predispô-la a tornar-se
a criminalidade é baixa. um delinqüente.
Estudo da Universidade de São Paulo “Eis como você cria uma criança
mostra que a criminalidade entre adolescen- violenta: ignore-a, humilhe-a e pro-

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voque-a. Grite um bocado. Mostre ração familiar esteve sempre presente nos
sua desaprovação a tudo o que ela fi- grupos “b” e “c”, e ela constitui um dos
zer. Encoraje-a a brigar com irmãos e principais caminhos em direção ao caos
irmãs. Brigue bastante, especialmente social, pois afeta profundamente a saúde
no sentido físico, com seu parceiro mental das crianças. E reforça o fato de que
conjugal, na frente da criança. Bata- boas condições sociais não são suficientes
lhe bastante.” para evitar a formação de delinqüentes. O
Eu adicionaria: ameace-a, castigue-a, en- que importa é o comportamento da família
gane-a, minta-lhe, seja permissivo, ensine-a em relação à criança.
que o mundo é dos “vivos”, vangloriando- Em outubro de 2005, tramitavam na
se diante dela de atos dos quais deveria ­Câmara dos Deputados 153 projetos que
se envergonhar. Se isso não for suficiente, tinham como objetivo promover alterações
coloque-a em frente à televisão para assistir na segurança pública. Nenhum dos projetos
a novelas em que a desestruturação familiar e nenhuma das medidas neles preconizadas
é mostrada como um ganho social, bem pretendiam melhorar o caráter, a perso-
como as safadezas, as imoralidades e os nalidade, o comportamento das pessoas.
atentados ao pudor são mostrados como Assim, continuarão as denúncias: de venda
acontecimentos moralmente aceitáveis. de sentenças pelos juízes; de corrupção dos
Hoje, está sobejamente comprovado políticos; do aumento crescente de policiais
que a qualidade dos cuidados parentais que torturadores, venais, corruptos, assaltantes,
as crianças recebem nos primeiros anos de homicidas; de acordos de representantes
vida, desde a concepção, é de fundamental dos poderes Executivo, Legislativo e Ju-
importância para sua saúde mental futura. diciário com o crime organizado; de atos
É necessário que elas tenham a vivência de de violência contra as mulheres, crianças
uma relação íntima, contínua, gostosa, com e adolescentes; do aumento da violência
suas mães biológicas ou substitutas, para o sexual e da prostituição infantil; do aumen-
desenvolvimento do apego. É o apego, nos to crescente da violência urbana – roubos,
primeiros anos de vida, e a convivência com estupros, pedofilia, seqüestros, assaltos, ho-
o pai, os irmãos, os avós que os psiquiatras micídios. Continuarão as mortes estúpidas,
infantis, psicólogos e pediatras julgam estar absurdas, por motivos fúteis sem uma expli-
na base do desenvolvimento da personali- cação lógica, que comovem a população que
dade, do caráter e da saúde mental. se indaga: por quê? Todas as pessoas, sejam
A falta do aprendizado de valores, elas profissionais liberais, policiais, políticos,
limites, disciplina, a baixa auto-estima, juízes, advogados, religiosos, governantes,
os maus-tratos e a privação materna são continuarão a ser e a agir de acordo com
os fatores que mais contribuem para a normas, certas ou erradas, que aprenderam
formação de comportamentos anti-sociais na infância. Nossos ancestrais tinham razão
e, conseqüentemente, para o aumento da quando diziam “fulano tem berço” para
delinqüência. Na origem da delinqüência designar cidadãos de conduta ilibada.
e da criminalidade juvenil encontra-se uma As causas externas – corrupção, im-
personalidade instável ou perversa, mais punidade, miséria, desigualdades socais,
raramente um distúrbio mental. contrabando de armas, narcotráfico, em-
Kramer classificou a delinqüência em bora importantes para explicar o aumento
três grupos: 1) a associada com doenças da criminalidade, devem ser consideradas
mentais; 2) a associada com psicopatologia como causas predisponentes ou desenca-
familiar com boas condições socioeconômi- deantes. Como demonstrado, os planos
cas; 3) a associada com problemas sociais de “prevenção” e de combate à violência
graves. Obviamente, diz ele, a desestrutu- visam controlar as causas externas. Não

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existindo uma política para a formação de amar. Será uma forte candidata a distúrbios
bons cidadãos, o número de indivíduos de conduta e à delinqüência.
com comportamentos anti-sociais (delin-
qüentes, corruptos, marginais, estuprado- Famílias para todas as crianças
res, homicidas) continuará a aumentar. A privação materna e a violência do-
Em resumo, as causas determinantes da méstica são as causas mais importantes na
formação de comportamentos anti-socais, de gênese de comportamentos delinqüentes.
delinqüentes são: a criança não desejada; a Assim sendo, cabe ao governo a iniciativa
má convivência familiar e o mau exemplo de conseguir que todas as crianças tenham
dos pais; os lares desestruturados; a falta de famílias e de acelerar o processo de adoção.
limites, de disciplina e principalmente de Psicólogos e pediatras estão cientes da im-
valores; a baixa auto-estima; a privação ma- portância da presença materna para a boa
terna; a violência doméstica; a saúde mental saúde mental das crianças.
precária. As causas predisponentes são: a
miséria, as desigualdades sociais, o tráfico de Lares substitutos
drogas e de armas. As causas desencadeantes Crianças vítimas de violência doméstica
são: o uso de drogas; do álcool; do porte de deverão ser colocadas em lares substitutos.
qualquer tipo de arma; as emoções adversas A violência doméstica é a segunda causa em
(raiva, ciúmes, vingança, cobiça, etc). importância na geração da delinqüência.

Ensino pelas famílias e professores de


Como prevenir?
disciplina, limites, valores
As seguintes ações ou medidas são indis-
Disciplina, limites e valores, como
pensáveis para prevenir os comportamentos
honestidade, lealdade, amor ao próximo,
anti-sociais, a delinqüência, a violência:
caridade, igualdade, não são congênitos.
paternidade responsável; boa assistência
São ensinados pelos pais, familiares e pro-
pré-natal (feto); a amamentação; o apego;
fessores. A conscientização das famílias,
a boa convivência familiar (amor, atenção,
dos educadores, dos profissionais da área
segurança) e o bom exemplo dos pais. O
da saúde, da própria sociedade da impor-
ensino da disciplina, dos limites e, princi-
tância desse ensino é de fundamental im-
palmente, dos valores, na família e nas es-
portância na formação de personalidades
colas; promoção da auto-estima; prevenção
sadias. Os valores têm a ver com ser e dar
da privação materna desde o nascimento
e não com ter. São valores da personali-
(alojamento conjunto, internação conjunta
dade: honestidade, sinceridade, coragem,
em hospitais); promoção da adoção; preven-
tranqüilidade, serenidade, autoconfiança,
ção da violência doméstica elevada (lares
fidelidade. São valores de entrega: respeito,
substitutos); papel dos professores – aten-
amor, carinho, altruísmo, compreensão, le-
ção, amor, segurança, ensino da disciplina,
aldade, generosidade, cordialidade, justiça
valores, limites, cidadania, educação moral
e perdão. Corruptos são indivíduos que não
e cívica; cumprimento pelas autoridades,
aprenderam honestidade. Homicidas não
com absoluta prioridade, do que preceitua
formaram apego. Agressores não apren-
o artigo 227 da Constituição Federal.
deram amor ao próximo. É imprescindível
a promoção do ensino dos princípios, va-
Programas destinados a prevenir a lores, disciplina e limites para se prevenir
formação de comportamentos anti-sociais os episódios de violência. Honestidade,
Paternidade responsável lealdade, amor ao próximo, generosidade
A criança não desejada não será ama- estão em baixa na bolsa de valores morais.
da. A criança que não é amada não saberá Uma personalidade forte ajudará as crian-

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ças e os adolescentes a resistir às grandes constatados os primeiros sinais de desvios
influências negativas, infelizmente tão de conduta.
presentes na atualidade, em nossa cultura
e sociedade. Será que os pais, as famílias, Centros educacionais para infratores
os professores ainda sabem como ensinar com desvios leves de conduta
valores, limites e disciplina? As crianças e os adolescentes que come-
tessem infrações leves seriam enviadas para
Promoção da auto-estima centros educacionais, onde não existiriam
A maioria dos menores internados nos grades, mas que contariam com professo-
centros de ressocialização tem uma baixa res, psicólogos, psiquiatras, pediatras.
auto-estima. E é tão fácil sua promoção, no
Centros de reintegração social para infratores
seio da família e nas escolas. Elogios, prê-
que cometeram graves desvios de conduta
mios, recompensas, elevam a auto-estima.
Críticas e castigos destroem-na. Este tipo de unidade seria denominada
UTI Social, para indivíduos que roubam de
Educação moral e cívica forma contumaz, estupradores, homicidas,
Ensinava-se, em casa e nas escolas, a res- incendiários, traficantes, contrabandistas.
peitar os pais, professores, os mais velhos, Deveriam contar com médicos, educadores,
as crianças, as pessoas, a pátria, a bandeira psicólogos, psiquiatras, psicoterapeutas,
nacional. Cantava-se o Hino Nacional, praxiterapeutas, e pessoal de segurança
comemorava-se o Dia da Bandeira, da especializado.
Independência, do aniversário do colégio.
Por que tudo isso acabou? Considerações finais
Promoção da saúde mental A violência é uma doença psicossocial.
Conscientizar as pessoas da impor- Não é causa e, sim, na maioria das vezes,
tância do apego, da atenção, do amor, da conseqüência da ação de indivíduos porta-
segurança, da boa convivência familiar, do dores de sérios distúrbios comportamen-
exemplo dos pais na formação de uma boa tais, derivados, principalmente, de trans-
saúde mental, de uma personalidade forte, tornos afetivos graves com suas raízes na
sadia e na prevenção dos comportamentos primeira infância. A semente da violência
anti-sociais. Usar para isso os meios de é implantada na criança em seus primeiros
comunicação. anos de vida.
No livro “A Primeira Infância e as Raízes
Centros Integrados de da Violência”, demonstro a importância da
Desenvolvimento Infantil (CIDI) família, dos vínculos afetivos, dos valores,
Criar os CIDIs, instituições encarrega- limites, disciplina, auto-estima na formação
das de supervisionar a saúde física, mental, da personalidade e na prevenção da vio-
emocional e social das crianças de menos de lência. Analiso os fatores que transformam
seis anos (creche e pré-escola), com a parti- uma criança em um delinqüente. Explico
cipação ativa das famílias na administração por que a violência segue aumentando, ape-
e manutenção das unidades. sar das inúmeras medidas tomadas pelos
governos há mais de um século. Discuto o
Centros de apoio psicológico a papel da polícia, do poder judiciário, das
crianças e adolescentes instituições de ressocialização no combate à
Criar serviços de atendimento psico- violência e que redirecionamentos carecem
lógico, para onde seriam encaminhadas as políticas e as práticas atuais para uma
as crianças e os adolescentes ao serem efetiva redução da violência. Sugiro como

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se priorizar as ações preventivas sobre as São Paulo e no Rio de Janeiro. Prevenir a
corretivas. violência é uma questão de cidadania que
A prevenção dos distúrbios de conduta começa com o respeito aos direitos das
que levam à violência, à delinqüência é crianças e dos adolescentes estabelecidos
atribuição da família, dos educadores, dos
pediatras, dos psicólogos, dos assistentes
sociais. Sem prevenção a violência conti- Bibliografia
nuará aumentando e caminharemos para Lisboa. A.M.J. – A Primeira Infância e as Raízes da
o caos social, como já vem ocorrendo em Violência, Editora LEG, Brasília, 2006.

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