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19 a 27 de outubro
A Igreja e o Obia:
o que é preciso tornar visível ou invisível
(para os cristãos saamaka)
1 O termo Businenge (literalmente “negros do mato”) é a categoria usada pelos Saamaka para referirem-
se a si mesmos e outros cinco grupos descendentes de escravos fugitivos presentes no Suriname e na
Guiana Francesa. O termo pode ser traduzido por “quilombola” ou “maroon”. Na região, há uma dife-
rença étnica marcada entre businenge e creole, sendo o último termo reservado às populações de as-
cendência africana sem ligação genealógica com escravos fugitivos. Os povos Businenge têm suas pró-
prias línguas (os Saamaka falam saamakatongo), estruturas de cargos políticos oficiais parcialmente
reconhecida pelo estado surinamês, e territórios tradicionais nas áreas de floresta do centro do Surina-
me até a Guiana Francesa (o dos Saamaka é o entorno do Alto Rio Suriname).
2 O conceito de obia será explorado abaixo. Entenda-se nesta como a dimensão manipulável de um es-
pírito, divindade ou força sobrenatural. No caso específico, a divindade em questão era o espírito Gaan
Tata, localmente conhecido como Ndyukagadu (literalmente “divindade ndyuka”). A história da emer-
gência desta divindade entre o povo vizinho, os Ndyuka, e sua chegada ao Alto Suriname, é narrada em
detalhes por Thoden van Velzen & van Wetering (1988).
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Quando o cristianismo é adotado em algum lugar, algo sempre muda. Certas tradi-
ções vão sumir, ou ao menos se metamorfosear. Novas ideias, novas práticas vão surgir.
Em alguma medida, alguma alteração na relação com o tempo, com os mortos e com o
cosmos será percebida, dada a centralidade da escatologia na cosmologia cristã. Com o
tempo, se as duas vertentes – cristã e não-cristã – se consolidarem paralelamente, como
ocorreu em Saamaka – mais que mudanças, pode-se falar em alternativas.
Mudanças ou alternativas derivadas do cristianismo são tema de reflexão para os
Saamaka com quem convivi. Logo, o devem ser também para mim. Mais do que uma
questão de transformação cultural, tenho tentado lê-las na chave dos modos de vida ou
estéticas da existência (Mentore 2006). Adotar ou não o cristianismo, e de que modo, diz
respeito a escolhas entre formas de se relacionar com as pessoas, com as instituições e
com o mundo dos espíritos, que engendram formas entendidas como eticamente apropri-
adas de estar no mundo. Modos de compor mundos que, para se concretizarem, necessi-
tam ser obviados ou tornados explícitos, visíveis, audíveis, perceptíveis, em momentos e
locais apropriados, determinadas relações.
Entre os Saamaka, convivi com incertezas, debates, conflitos envolvendo entendi-
mentos distintos acerca de como performar o cristianismo, de que forma viver como um
bom cristão, acerca de como acrescentar (ou não) a ele outras práticas e poderes; mas
também controvérsias acerca do que define alguém como Businenge ou Saamaka, acerca
de virtudes estimadas na tradição de seu povo, e acerca do perigo de deixar de lado deter-
minados costumes ou descuidar a atenção de trocas com determinados espíritos (cf. Scott
1999, 2017).
Sempre que estamos diante de um cristianismo que se apresenta como adoção
posterior e possivelmente oposta a um outro conjunto de práticas anterior, parece incon-
tornável lidar com o problema da ruptura e da continuidade – tema clássico nos estudos
antropológicos sobre religião, e particularmente relevante para aqueles que envolvem o
cristianismo (cf. Meyer 1998; Robbins 2011). Nesses casos, parece quase um truísmo su-
blinhar que continuidade e rupturas dependem do ponto de vista que encara o fenômeno:
pode-se muito bem demonstrar como, após sua conversão ao cristianismo, um os Wari’
continuaram perspectivistas (Vilaça 2008). Pode-se demonstrar, igualmente, como os
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Wari’ enfrentam uma mudança ontológica considerável (Vilaça, 2015) – e essas não são
necessariamente posições incompatíveis! Porém, defendo que “pontos de vista” não é a
melhor elaboração – pelo menos não fora de cosmologias perspectivistas como a amerín-
dia. Argumentarei, no que segue, que a alternância entre continuidade e ruptura não se
deve simplesmente ao modo de observar uma história de transformação, de cristianiza-
ção. Esta alternância pode ser melhor compreendida como efeito ético-estético, provoca-
do por movimentos de exibição e ocultamento de determinados agenciamentos. São os
processos ou atos de fazer aparecer uma relação (continuidade) ou escondê-la (ruptura),
obviá-la ou eclipsá-la, que estão em jogo, e não um ponto de vista sobre uma relação
dada.
Vejamos como isto se dava na aldeia Saamaka onde fiz trabalho de campo entre
2011 e 2016.
A Igreja
Botopasi fica um pouco antes do meio do caminho entre as aldeias Saamaka mais
ao sul, nos afluentes do Alto Suriname, e o lago da hidrelétrica de Brokopondo, onde esse
trecho do rio, hoje em dia, deságua. Para chegar até lá, a maneira mais comum é pegar
uma van no centro de Paramaribo, capital do Suriname, que vai até Atjoni, o principal
porto do Alto Suriname, já em terras tradicionais saamaka, e dali um barco com motor de
popa, para uma viagem quase sempre rápida e tranquila, desde que o rio não esteja seco
demais. Em casos de emergências, pode-se usar a pista de pouso da aldeia. Apesar de lo-
calizada no meio da floresta amazônica surinamesa, no meio do planalto das Guianas,
não se trata, absolutamente, de uma aldeia isolada do resto do mundo.
De Atjoni a Botopasi, passa-se por cerca de 17 aldeias, em ambas as margens do
rio. Apesar das diferenças significativas de tamanho, da perspectiva de quem está no bar-
co, observa-se mais ou menos as mesmas coisas: muitas casas de madeira, algumas de al-
venaria, roças, mulheres lavando roupas nas pedras, crianças se banhando, pessoas pas-
sando em suas canoas ou esperando por alguma encomenda no píer. Por vezes, enxerga-
se um mastro de telefonia celular despontando em meio às árvores.
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3 A ausência do arco de folhas de palmeira como marca da presença de cristãos (ou, antes, missionários)
protestantes, é algo notado desde o séc. XIX entre os Businenge. Olívia Cunha chama atenção para
isto, tratando dos Ndyuka da região do Cottica, onde tal arco é chamado de kifunga. A ausência de fa-
akatiki (altar para os ancestrais) nas aldeias missionarizadas por protestantes é outro elemento de dis-
tinção. Isto é diferente, entretanto, nas aldeias “que receberam missões católicas”, onde “faakatiki, ki-
funga e uso de objetos visando proteção de divindades ‘menores’, não só parecem ter sido tolerados,
mas transformados em objetos de particular interesse” (2020: 415).
4 Ambas são línguas crioulas que tem como base lexical o inglês (língua dos primeiros colonizadores do
Suriname) cuja origem é comum. As Línguas Crioulas Maroons Ocidentais (Saamaka, Matawai, Kwin-
ti) sofrem influência do português (graças à forte presença local de judeus sefarditas ibéricos donos de
escravos) e pois isso distanciam-se do Sranantongo, que se tornariam, eventualmente, língua franca do
Suriname. Já as Línguas Crioulas Maroons Orientais (Ndyuka, Aluku, Pamaka) são mais próximas ao
Sranan, mas, ainda assim, línguas distintas. (cf. Migge 2003)
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mência, que a aldeia deveria se esforçar para manter esse vínculo. Era quase consenso,
por exemplo, que a educação religiosa – incluindo o ensino de hinos morávios – seja
obrigatória na escola da aldeia.
Só que este consenso, decerto, esconde certas variações que estão presentes, mas
que não devem aparecer oficialmente. Para começar, há outras formas de cristianismo
sendo praticadas por lá. O movimento rastafári tem alguma presença na região, sobretudo
em Pikiseei, mas demorou anos para ser aceito pelos anciões locais. O movimento pente-
costal do Volle Evangelie (Evangelho Pleno, em neerlandês) tem sua sede local em Futu-
naakaba, mas diversos adeptos em Botopasi. Há um esforço político constante para que
este não se destaque demais.
Por volta de 2013, houve um boato de que os pentecostais queriam construir uma
igreja em Botopasi. O boato provou ser infundado, mas, enquanto havia dúvida, muitos
foram os que se revoltaram com a pretensa ousadia do projeto. No passado, já tentaram
construir uma igreja do Volle Evangelie em Botopasi, mas, pelo que me disseram, foram
impedidos. “Aqui é uma aldeia da Igreja Morávia, quem quiser ir para o Volle Evangelie
que vá para Futuna”, afirmavam, “estão desafiando a aldeia.” De fato, há reuniões pente-
costais frequentes em Botopasi, frequentadas por um grupo de fiéis assíduos, que não são
acossados por sua escolha religiosa. Mas a construção de um prédio da outra igreja ali
seria demais. O pentecostalismo pode existir ali, mas não deve ser demasiado visível.
Há também, espalhadas pela aldeia, certas coisas ainda menos visíveis, mas não
menos importantes. Coisas que definitivamente não são cristãs e, aliás, para muitas pes-
soas, seriam incompatíveis com o cristianismo. Refiro-me aos obia.
“nada é religião”.5 Algo como os Baga da Guiné Conakrey, que tiveram que “aprender”
que tinham religião com seus vizinhos cristãos ou muçulmanos (Sarró 2007). Neste as-
pecto, o vodu, qual praticado no Haiti rural, sobretudo até meados do século XX, parece
guardar semelhanças com o que descrevo aqui (cf. Richman 2008).
Nas aldeias saamaka, a relação com presenças espirituais visíveis e invisíveis per-
meia o cotidiano – as pessoas rezam para divindades ou fazem uso de magias para quase
tudo. Ao cortar uma roça, é preciso fazer o pedido apropriado para a divindade dona do
local (gadu a kamian). Ao andar na mata, as pessoas devem se cuidar para não adentrar
territórios proibidos para pessoas de sua linhagem (bee), posto que pode ser o habitat de
um espírito vingativo (kunu). Espíritos de jaguares, anacondas, samaúmas, e muitas ou-
tros podem vir à cabeça (go a hedi) das pessoas, possuindo-as para protegê-las ou para
exigir algum tipo de reparação. A fronteira entre remédio e magia é quase indistinguível,
quando não se trata da medicina alopática estrangeira. Oráculos são consultados em situ-
ações importantes, a feitiçaria é uma ameaça constante, para não falar das presenças sem-
pre iminentes de divindades, ancestrais, fantasmas, vampiros, diabretes…
Não há exatamente autoridades eclesiásticas – todo mundo sabe alguma receita
mágica, tem suas próprias divindades familiares (gadu), e seus mortos para cuidar. Não
há espaços sagrados que concentram cultos, e sim toda uma paisagem na qual a presença
de poderes extra-humanos é historicamente localizada.6 São cultos a ancestrais, a divin-
dades da mata, do rio, do solo, e outros espíritos, uma enorme variedade de práticas e re-
lações com o mundo tangível e com o intangível que não é definido por nenhuma pala-
vra, nem diferenciado claramente de magia, ou mesmo de ciência. Outra separação que
5 Penso aqui na colocação de Malinowski: “Today we are somewhat perplexed by the discovery that to
a savage all is religion, that he perpetually lives in a world of mysticism and ritualism. If religion is co-
extensive with ‘life’ and with ‘death’ into the bargain, if it arises from all "collective" acts and from all
‘crises in the individual's existence,’ if it comprises all savage ‘theory’ and covers all his ‘practical con -
cerns’—we are led to ask, not without dismay: What remains outside it, what is the world of the ‘pro-
fane’ in primitive life? (1948: 7). A posição oposta, simétrica e complementar seria dizer que os povos
ditos selvagens “não tem religião”, por serem apegados à materialidade bruta, incapazes de abstração –
a fórmula do cronista cincocentista Pedro de Magalhães Gandavo sobre os povos indígenas do Brasil
(“não tem fé, nem lei, nem rei”) resume bem a ideia. Apesar de ambas as posições serem problemáticas
e preconceituosas, elas indicam a dificuldade do uso da categoria “religião” em certos contextos.
6 Pelo menos nas aldeias. Quando as pessoas vão para a cidade isso muda um tanto, pois tende a haver
uma compartimentalização maior da vida e uma especialização de certas pessoas, que se tornam obia-
ma profissionais (cf. Price 2008; Strange 2019).
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inexiste é aquela entre animismo e animatismo, isto é, uma separação estanque entre for-
ças personalizadas e não-personalizadas. Por outro lado, como nos universos africanos
que tanto encantaram a teologia africana e africanista, há um Deus criador (no singular),
e isso mesmo entre os não-cristãos. Ele é chamado em Saamaka de Masa Gadu (lit. “Se-
nhor Deus”).
Em sua língua nativa, os Saamaka não têm palavra para religião. Alternam entre a
palavra neerlandesa geloof (“crença”), a palavra sranan kulturu (numa curiosa torção do
conceito de cultura – ver Cunha 2020) e os termos saamaka keiki (“igreja”) e ventu. Esse
último é menos bem-definido – literalmente significa “vento”, mas indica de maneira ge-
nérica todas as potências invisíveis que agem no mundo. 7 Vejam só: os saamaka eles al-
ternam entre palavras que apontam para a dimensão psicológica da religião (geloof); para
a dimensão comunitária e étnica (kulturu); para a dimensão institucional e espacial
(keiki), e mesmo para uma dimensão mais experiencial e inefável (ventu)… Mas passam
sem uma para englobar tudo isto.8
Há uns 40 anos, o antropólogo Edward Green (1978) propôs chamar esse conjun-
to de práticas de Winti, baseando-se no termo usado pelos creole afrosurinameses (não-
quilombolas) para suas próprias instituições mágico-religiosas. A proposta de Green não
teve sucesso – ela ignora uma diferenciação que atravessa etnia e diferenças fundamen-
tais entre os cultos businenge e creole. Em diversos aspectos, particularmente no que diz
respeito a suas relações com divindades e espíritos, é inegável haver um contínuo unindo
as diferentes etnias afrosurinamesas. Um ponto de ligação importante parece ser a região
rural de Para, grande centro do Winti creole, onde porém a circulação de businenge é in-
tensa – ver Wooding (1981) para uma excelente etnografia do Winti de Para. Apesar dis-
7 Etnógrafo dos Saamaka há mais de cinco décadas, mas afastado do Alto Suriname há três, Richard Pri-
ce contou-me por comunicação pessoal (2015) que nunca ouviu o termo ventu usado nesse sentido.
Meus informantes usam-no abundantemente. Eis algo a ser pesquisado: quando essa ideia começou a
circular e entre quem circula. Cabe notar a proximidade entre a palavra saamaka ventu e o sranan winti,
discutido abaixo. Especulo que a expressão pode ser uma tradução relativamente recente de winti para
o Saamaka, que gerou novos significados para o termo.
8 Em minha experiência de campo, não lembro de ter ouvido a palavra neerlandesa religie (religião) de
modo integrado na fala em saamakatongo, como ouvi geloof e tantos outros termos da língua oficial
dos ex-colonizadores. Decerto, grande parte senão todas as pessoas de Botopasi conhecem a palavra
religie e entendem totalmente seus significados. Mas o fato de não a utilizarem com frequência me pa-
rece relevante aqui.
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to, é muito importante para a maioria dos creole marcarem que não são businenge; e
vice-versa. Ter como antepassados pessoas escravizadas que fugiram das plantations ou
que suportaram o regime escravista até seu fim em 1865 é algo que faz toda a diferença
no Suriname. Tal diferença se reflete no plano espiritual. Assim, ainda que práticas busi-
nenge e o winti dos creole possam e devam ser comparadas e aproximadas, entendo que
amalgamá-los seria impróprio.9
Outra opção seria cunhar um conceito descritivo, como “Religião Tradicional Sa-
amaka”, mas isto tem seus próprios problemas, como demonstra Shaw (1990), amparada
em Mudimbe (2013), ao tratar da questão similar, a “Religião Tradicional Africana”. Esta
seria inventada a partir de discursos missionários e, depois deles, por antropólogos agin-
do como missionários seculares. A “religião primitiva” dos evolucionistas é transformada
em “tradicional” e localizada, mas segue sendo lida de maneira essencialista. Assim, con-
juntos múltiplos de práticas, ideias, instituições e divindades, variando no tempo e espa-
ço, raramente nomeados por um termo similar a religião (ou por qualquer termo) são dis-
cursivamente unificados, seja em versões locais (“a religião iorubá”, “a religião saa-
maka”, “o vodu”), seja em versões estilo área cultural (“religião africana”, “religião afro-
diaspórica”). A unificação permite comparações com o cristianismo e outras religiões
mundiais. Por vezes, tais comparações seguem tratando as novas “religiões” construídas
como uma mera variação do “paganismo” ou da “religião primitiva”, isto é, como inferi-
or numa escala valorativa qualquer. Em leituras mais relativistas se faz um esforço para
tornar palatáveis as “religiões locais” e tratá-las como valorativamente equivalentes ao
cristianismo e a outras religiões mundiais. Em ambos os casos, porém, observa-se um
achatamento das diferenças que deforma o entendimento do fenômeno estudado em dire-
ção ao cristianismo enquanto modelo (cf. Asad 1993).
Se tivesse que escolher um termo como sinédoque para esse complexo todo do
qual venho falando, em vez de Winti, acredito que obia seria mais adequado. Em parte
porque, como o conjunto do qual faz parte, obia é uma palavra que amalgama muitas coi-
sas, cujo principal referente, aliás, são compostos heteróclitos que borram as fronteiras
9 Tenho a impressão que uma das diferenças entre creole e businenge neste aspecto jaze justamente a
maior institucionalização religiosa dos primeiros. É possível, entretanto, que tal impressão derive de
minha leitura da brilhante, mas um pouco rígida descrição de Wooding (1981).
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entre materialidade e imaterialidade. Obia diz respeito a fórmulas manipuláveis pelos hu-
manos, que potencializam poderes invisíveis extraídos das plantas e de outras substân-
cias. Materializados em formas variadas, compósitas, heteróclitas, objetos e receitas nos
quais plantas (uwii) possuem um lugar central, mas que podem incluir também metais,
minerais, ossos, estátuas, garrafas e ingredientes secretos conhecidos como biongo. Seri-
am, num primeiro entendimento, algo entre receitas médicas e mágicas: banhos, emplas-
tros, amuletos e beberagens que servem para se proteger de feitiços, para curar doenças e
ferimentos, para sorte na caça, para atacar inimigos, para ganhar vigo físico, dentre tantos
fins. Só que o termo cobre uma gama de agenciamentos que vai de um simples remédio
para a tosse até um ente espiritual conhecido por nome próprio e corporificado por uma
série de construções, esculturas e objetos de madeira, cobrindo um espaço de mais de
1km2. Os obiama são os especialistas em obia, as pessoas que conhecem mais sobre o as-
sunto, amiúde pessoas mais velhas – mas qualquer pessoa aplicando um obia é, naquele
momento, um obiama. Estes não formam um corpo ou classe sacerdotal especializada.
Enfim, mais que uma classe de objetos e receitas, obia é um conceito teológico
chave para as populações businenge, como frisam Thoden van Velzen e van Wetering.
Uma possível definição de obiya então seria:
De acordo com os Ndyuka, enormes poderes habitam no universo, a maioria inexplorados
e mesmo desconhecidos pelos homens. Um obiya é aquela parte dessas forças que se tor-
nou disponível para a humanidade, é benéfica para os seres humanos e assumiu uma for-
ma definida, de modo que pode ser distinguida de outras forças sobrenaturais. Um obiya
escolhe qualquer tipo de recipiente: um amuleto, um pacote, ou mesmo um ser humano.
Remédios dos europeus também são chamados de obiya.[10] O que separa obiya de outras
forças sobrenaturais é a influência benéfica que manifesta, sendo a cura do corpo e da
alma como o critério final (Thoden van Velzen 1978: 93).
Thoden van Velzen e van Wetering (1983, 2004) opõem dois conceitos centrais
no pensamento businenge acerca das forças do universo: de um lado, obia (obiya em
Ndyuka) e, de outro, jeje (yeye em ndyuka), que podemos traduzir como espírito. Dentre
10 Isso não procede para os Saamaka. Remédios europeus são chamadas de bakaa deesi, “remédio de
branco”. Por outro lado, há uma grande sobreposição entre os termos obia e deesi (remédio).
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11 Na definição de Thoden van Velzen, acima, outra característica distintiva do obia é ser benéfico. Efeti-
vamente, os Saamaka, que opõem com veemência obia a wisi, quase sinônimos em referente, mas an-
tônimos em avaliação moral. Isto é: obia é bom, wisi é ruim, é feitiçaria. No caribe anglófono, o termo
obeah sofre um processo de calibragem moral, colocado em movimento pelos colonialistas brancos,
que o torna quase sinônimo de bruxaria, da manipulação de forças sobrenaturais antissociais (Bilby &
Handler 2004; Brown 2003). No Suriname, obia não carrega tal conotação negativa.
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Os Obia enterrados
Em Botopasi, quando lá estive, todas as pessoas usavam algum tipo de obia,12
mas, diferente de aldeias não-cristãs, não se viam grandes altares, casas ou espaços onde
são feitas oferendas para esses seres, nem festas públicas para divindades. As pessoas la-
vavam-se com obia escondidas atrás de suas casas, nas suas roças, ou iam às aldeias vizi-
nhas em busca de tratamento. Na maior parte dos casos, era um segredo de polichinelo,
todo mundo sabia o que as pessoas faziam, quem conhece quais fórmulas, quem é
médium de quais espíritos, apenas não se falava abertamente sobre o assunto, sobretudo
não em situações oficiais, como grandes assembleias. O obia é feito, na maior parte do
tempo, de maneira quase invisível. Em oposição, o cristianismo é a religião feita pública,
tornada visível, para começar pela presença da imponente igreja, como vimos. As pessoas
iam endomingadas para a igreja, com suas melhores roupas – para verem e serem vistas.
Em 2012, quando uma importante divindade chamada Tata Ventu13 começou a co-
brar dos aldeões por negligenciarem os rituais necessários em seu nome, acompanhei vá-
rios dias de discussão. Havia aqueles que insistiam que a aldeia era cristã e que portanto
era preciso confiar em Jesus, em Deus, e deixar os cuidados de Tata Ventu nas mãos de
alguma aldeia vizinha, não-cristã. Esse tipo de colaboração era e é bastante comum, qua-
se sempre cristãos requisitam serviços, como oráculos e curas, de obiama das aldeias
próximas. Mas havia aqueles que veementemente argumentavam que “não foi a Bíblia
que enterraram nessa aldeia quando a fundaram”. Com essa eloquente frase, que seria
muito repetida nos dias que se seguiram, um dos anciãos locais, sem usar todas as pala-
vras, que Botopasi, apesar de sua fundação cristã, foi, desde sempre, protegida com obia.
A decisão final foi fazer os rituais na mata de madrugada, com o auxílio de especialista
de uma aldeia vizinha. Ou seja, fizeram o que precisavam fazer, mas furtivamente.
De fato, não é incomum, ao andar pelas veredas da aldeia, topar com algum obje-
to semicoberto pelo solo, parcialmente revelado pela erosão. Garrafas de vidro são bas-
12 Algumas pessoas, sobretudo pentecostais, entretanto, diziam que “não trabalham com obia” mas sim
meramente com folhas (uwii) cujo poder deriva diretamente de Deus e nada tem a ver com espíritos da
mata, da floresta e de mortos. Mas não-cristãos e moravianos dizem que a distinção não faz sentido.
13 Tata Ventu é mais antigo que a aldeia, existia antes da fissão de Sofibuka. Trata-se de um apuku (classe
de divindades relacionadas à floresta) que era o “dono” de certa área da floresta na qual foi enterrado,
de maneira irregular, um morto, há séculos. O uso impróprio de seu território fez com que passasse a
cobrar reparação das pessoas do clã que cometeu o erro.
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tante perceptíveis. São obia, cheios de biongo. Aquelas que vi, não consegui descobrir se
estavam enterradas há meses ou décadas, pois a atitude comum de meus interlocutores,
quando eu perguntava sobre elas, era desconversar, dizendo que alguém colocou aquilo
ali por algum motivo e que portanto era melhor simplesmente deixar onde estava.
Há exceções, há obia que são feitos para ser vistos, mesmo em Botopasi. Os kan-
duu são amuletos usados em propriedades como casas, roças e árvores frutíferas para evi-
tar roubos. Tais objetos necessitam ser visíveis, pois de outra forma os ladrões ignorariam
sua presença e fariam o roubo – sofreriam as consequências, é verdade, mas a ideia pode
ser mais evitar o roubo antes que ele aconteça do que necessariamente punir o ladrão. Há,
inclusive, quem faça kanduu falsos, sem qualquer princípio ativo, apenas para assustar
potenciais ladrões. Esses estão entre os raros objetos-de-poder não-cristãos visíveis pela
aldeia.
Voltemos ao episódio iconoclástico que trouxe o cristianismo para o clã Dombi,
no final do séc. XIX. O ato central de Anake foi justamente desenterrar um obia impor-
tante da aldeia, tornando visível algo que era invisível, com o fim de destruí-lo à vista de
todos. O fato de não ter sofrido as consequências esperadas, punições por parte desta di-
vindade (ao menos não visivelmente) foi o que levou muitos a se tornarem seguidores de
Anake ou, ao menos, a duvidar da prevalência total dos obia sobre os espíritos pregados
pelos “brancos da igreja”. Note-se, porém, que podem haver enormes diferenças entre
obia enterrados – aquele que Anake destruiu fazia parte do culto de Gaan Gadu, culto en-
tão recente (na década de 1890), e de origem não autóctone, derivado dos vizinhos,
Ndyuka (cf. Thoden van Velzen & van Wetering 1988). Era uma divindade que tinha algo
de estrangeiro, diferente de Tata Ventu, um espírito do mato (apuku), e portanto mais di-
retamente relacionado com o espaço de floresta onde hoje se encontra a aldeia. Não pare-
ce coincidência que Anake tenha escolhido como alvos os objetos de uma divindade
semi-estrangeira, a fim de substituí-la pelo cristianismo, em vez de destruir outros obia
enterrados pela aldeia, cuja relação com aquele espaço fosse talvez mais forte.
Deus à frente
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bre cristianismo na antropologia e nas ciências da religião. Foi a partir destas controvér-
sias, e das práticas que nelas estão em jogo, que aprendi com os cristianismos saamaka a
dar importância à ética e à estética para pensar a religião. Mais especificamente, das di-
nâmicas de exibição e ocultamento através da qual as pessoas atualizam sua relação com
espíritos e outras forças.
Em outro artigo, usei a ideia de eclipsamento, elaborada por de M. Strathern
(2006, 2010), para falar da maneira através da qual os Saamaka tornam menos perceptí-
vel a origem estrangeira do tecido e do rum, objetos fundamentais em seus rituais funerá-
rios. Tecido e rum são exibidos publicamente numa forma de troca ritual distintivamente
businenge, o tai bee (lit. “amarrar ventre”). Os modos de apresentação performados no ri-
tual permitem a eclipsar o fato de que esses objetos não são produzidos localmente, e sim
comprados fora da aldeia usando dinheiro – matéria entendida como fundamentalmente
estrangeira, branca, bakaa (Pires 2017).
No que tange à relação entre obia e igreja em Botopasi, parece haver algo ligeira-
mente diferente em jogo. Não se trata de eclipsar, mas de deliberadamente esconder cer-
tas relações – um processo de ocultamento menos delicado, menos poético, mas igual-
mente complexo. Este encobrimento dos obia é radicalmente diferente de movimentos de
ocultamento de práticas e potências espirituais por vergonha – como ocorre em contextos
onde conversão equivale a uma forma de humilhação (cf. Robbins 2004). Como anterior-
mente frisado, o profundo domínio dos poderes dos obia é um saber coletivo do qual a
maioria dos Saamaka se orgulha, mesmo a maioria dos cristãos que conheci. Quando eu
eventualmente comentava sobre a fama de “feiticeiros” que os Businenge têm no país vi-
zinho, a Guiana, as pessoas em geral se divertiam, e entendiam que era positivo que fos-
sem vistos assim – melhor, afinal, serem temidos e respeitados por estranhos, que menos-
prezados (cf. Pires, Strange & Mello 2018).
Em Botopasi, portanto, esconde-se o obia em parte por uma questão de equilíbrio
entre o respeito algo misterioso que eles devem evocar, e a efetiva respeitabilidade que a
imagem de cristão oferece.16 Nesta chave, entendo que, comparada com a respeitabilida-
16 Aproximamo-nos aqui de um padrão mais amplo notado no Caribe por Peter Wilson (1973): a ideia de
que o cristianismo é ligado à respeitabilidade – a produz e é seu emblema. De forma similar, obia e
práticas similares teriam mais a ver com respeito. Como na descrição de Wilson, o par é atravessado
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dos velhos; da relação estabelecida voluntariamente entre entes que permanecem distin-
tos; da criação artística, estética, poética; da realocação de elementos produzindo uma es-
trutura alterada. A ideia de “composição de mundos” possibilita, portanto, pensar de uma
vez só relações diversas, algumas das quais envolvem a criação de novas substâncias, no-
vos entes, outras não. Não é preciso escolher entre a imagem da “colcha de retalhos”, do
“híbrido”, do “trânsito”, do “angu de caroço” ou qualquer outra, se entendermos a com-
posição como processo continuado, existencial, ética e esteticamente orientado, de atuali-
zação de mundos e modos de vida, sempre envolvendo potências que se entendem “ex-
ternas”, sempre envolvendo outrem. Afinal, não se compõe (em nenhum dos sentidos)
exclusivamente consigo mesmo.
Por que toda essa digressão? Para propor uma imagem da relação entre os modos
de vida cristã e businenge, como composta, nesses múltiplos sentidos. Não há uma esco-
lha apenas entre opções fechadas – ser cristão ou não, protestante ou católico, morávio ou
rastafári – as possibilidades de entrelaçamentos dos elementos, espíritos, práticas, preces,
multiplicam-se em dinâmicas de exibição e ocultamento. Dinâmicas que expressam con-
trovérsias, disputas e incertezas acerca do que deve ser mostrado e do que deve ser es-
condido – e como. Tal dinâmica é quase sinônimo daquilo que Strathern (2006, 2010)
chama de estética. Nesta definição, estética pouco tem a ver com julgamentos acerca do
sublime, dado que está sempre em continuidade com a ética, com as formas de “avaliar o
que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica” (De-
leuze 1992: 125-6). É neste sentido que, apoiado em Mentore (2006), uso a expressão
“estéticas da existência”: trata-se, afinal, de uma questão simultaneamente estética e de-
ontológica. Goldman (2021) insiste que a antropologia deve sempre levar em conta ques-
tões deontológicas ou éticas, em conjunto com investigações sobre epistemologia e onto-
logia. Entendo que estética seria um quarto elemento também igualmente necessário, ain-
da que em grande parte indistinguível da dimensão ética.18
18 Decerto, falar de magia, religião e de fenômenos que podem ser englobados por tais conceitos é
sempre, de alguma maneira, falar da questão da invisibilidade, pois tais agenciamentos sempre
envolvem tornar acessível aos sentidos dimensões – potências, espíritos, planos – que se colocam fora
do alcance das pessoas, ao menos em seus estados de consciência cotidianos. Entretanto, trato aqui de
algo que vai um pouco além, posto que não priorizo a dimensão espiritual como “objeto” da religião,
nem colocando a materialidade como apenas o que faz a conexão do espírito com os humanos. É a
movimentação, é a dinâmica que me interessa – e não a condição espiritual ou material, sensível ou
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Birgit Meyer (2018, 2019), têm usado o conceito de estética, enquanto um “siste-
ma de formas a priori que determina aquilo mesmo que se apresenta para a experiência
sensorial” para pensar o cristianismo. Com Rancière, insiste que esse a priori não é dado,
e que a estética está em continuidade com a política. Sua ideia de estética igualmente
deve abrir espaço para a corporeidade. Meu argumento neste artigo flerta com as ideias
de Meyer, mas guarda algumas diferenças. A principal – e entendo que é mais uma ques-
tão de enfoque do que uma discordância – é que Meyer parece buscar entender como a
estética dá forma às experiências sensoriais, informa o mundo das pessoas, enquanto eu
entendo que o crucial é entender como as pessoas buscam, através de uma estética, dar
forma, compor seu mundo. Meyer fala na “indução de padrões repetitivos de sentimento
e ação” (2018: 30). Seguindo Wagner (1972, 2010), ao contrário, escolho por dar mais re-
levo à obviação, à eliciação de padrões como resultado de repetição. Ao menos por hora,
interessa-me menos pensar como as pessoas são persuadidas acerca de como o mundo
funciona, e mais como fazem existir aquilo em que acreditam existir. De todo modo, são
movimentos complementares.
A chegada do cristianismo, num contexto como o saamaka, certamente diz respei-
to a rupturas, à derrubada de certas tradições. Mas também diz repeito à criação de novas
continuidades. Nesse caso, a criação de uma tradição propriamente saamaka cristã ou de
cristianismo saamaka, para parafrasear Silva (2010). Esta tradição vincula certos clãs
com importantes figuras do passado, como Anake e Alabi, mas também, num nível mais
intimista, com virtudes e comportamentos que aprendidos em família, nas assembleias da
aldeia, no púlpito da igreja, com antepassados menos vultuosos mas importantes para
cada pessoa de dada família, linhagem ou clã.
Continuidades, entretanto, não existem apenas nessas situações mais óbvias. Mes-
mo o iconoclasmo do neopentecostalismo demonstra continuidades ontológicas com
aquilo a que se opõe: certos rituais da IURD, por exemplo, parecem pastiches de religi-
ões afrobrasileiras (Mafra 2001), ademais, como se sabe, neopentecostais não negam a
inefável, de um suposto “núcleo duro” da religiosidade. Neste sentido, estamos mais próximos de uma
“ontologia móvel” (Holbraad 2012) do que de um “núcleo fenomenológico” (Csordas 2004).
Tampouco estamos separando as dimensões “sociocultuais” deste tipo de experiência (digamos: seus
elementos feitos “públicos” e feitos “privados”) – nem para tratá-los como mais reais do que qualquer
outra coisa, nem para tratá-los como secundários.
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existência dos orixás, apenas os transformas e demônios (Reinhardt 2007). Porém, cha-
mar a IURD de uma religião de matriz africana seria um absurdo – não pela ausência de
continuidades, mas porque as continuidades existentes não são aqueles que os fiéis dessas
igrejas, ou os adeptos das religiões afrobrasileiras, querem fazer aparecer. É neste sentido
que entendo continuidades e rupturas como efeitos de atos éticos-estéticos.
Ruptura e continuidade só surgem como uma escolha exclusiva quando os termos
que conectam ou separam são reificados – tratados como coisas existentes em si mesmas,
independentes de seus contextos de enunciação e de atualização. Isto, certas variantes de
monoteísmo podem tentar fazer, tentar um “rompimento total com o passado”. Mas rara-
mente são inteiramente bem-sucedidas.
Como é possível ser saamaka e cristão ao mesmo tempo? Como é possível enca-
rar o perigo da perda cultural, levando-o a sério, sem deixar de pensar nos reais danos
que a atividade missionária pode causar em muitos locais, mas, ao mesmo tempo, sem
cair numa visão reificadora ou purificadora? Não tenho resposta simples. Os Saamaka es-
tão lidando com isso há mais de 200 anos, e suas respostas tampouco são simples – para
começar, dependem de fatores que se alteram ao longo do tempo. Ser cristão e ser saa-
maka na cidade não é o mesmo que ser no meio do mato; a cidade e o mato são hoje mui-
to diferentes do que eram 50 anos atrás.
De todo modo, o primeiro passo talvez seja aceitar que a própria ortodoxia cristã
é instável, assim como são mutantes toda e qualquer tradição em qualquer parte do mun-
do. Assim, deixa de fazer sentido tratar cristianismos nativos como menos cristãos, ou
nativos cristãos como menos nativos – possivelmente os grandes problemas da antropolo-
gia da conversão e das teleologias antropológicas, respectivamente.
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Título: “A Igreja e o Obia: o que é preciso tornar visível ou invisível (para os cristãos sa-
amaka)”, Rogério Brittes W. Pires (UFMG)
Resumo: Há uma minoria cristã entre os Saamaka, povo businenge da floresta amazônica
surinamesa. Esta minoria lida constantemente com uma dupla acusação: para outros cris-
tãos (urbanos, europeus), não praticariam um “bom” cristianismo, sua vida religiosa seria
impura, ignorante, inferior; para os Saamaka não-cristãos, estariam a imitar os brancos, a
deixar de ser businenge “de verdade” e, pior, negligenciariam o cuidado com espíritos de
antepassados e divindades da floresta. Para lidar com seus dilemas, meus interlocutores
elaboram respostas retóricas e pragmáticas. Focarei em mecanismos ético-estéticos pelos
quais faz-se certos objetos, forças e instituições visíveis para certos fins, em certos mo-
mentos, para certas pessoas – e invisíveis para outros. A igreja cristã tende a exigir movi-
mentos de visibilização: da adesão ao cristianismo, de certas materialidades e comporta-
mentos. Doutro lado, o complexo de fórmulas, espíritos e objetos que designo por obia
privilegia invisibilização e segredo.
Questão central: Para lidar com seus dilemas, meus interlocutores elaboram respostas
retóricas e pragmáticas. Focarei em mecanismos ético-estéticos pelos quais faz-se certos
objetos, forças e instituições visíveis para certos fins, em certos momentos, para certas
pessoas – e invisíveis para outros. A igreja cristã tende a exigir movimentos de visibiliza-
ção: da adesão ao cristianismo, de certas materialidades e comportamentos. Doutro lado,
o complexo de fórmulas, espíritos e objetos que designo por obia privilegia invisibiliza-
ção e segredo.
Conclusões parciais ou finais: Os modos Saamaka cristãos de viver e lidar com seres
mais-que-humanos estão em contante reelaboração. Tratam-se de atualizações móveis
tanto da tradição cristã quanto da tradição businenge que, apesar de conjugadas sem
grandes problemas na maior parte do tempo, em certos momentos deslancham conflitos,
impasses, controvérsias. Tento então pensar as formas de debatibilidade e veridicção Saa-
maka, cristãs, Saamaka-cristãs e suas conexões, em diálogo com as literaturas sobre sin-
cretismo e conversão, rumo a uma teoria etnográfica que seja aberta para a multiplicidade
ontológica, e para a ideia de que o modo como cada coletivo compõe seu mundo pode ser
lida numa chave ético-estética. Assim, a dinâmica de “tornar visível” e “tornar invisível”
parece um mote interessante, pois atravessa questões clássicas acerca da presença e intan-
gibilidade do mágico-religioso sob um ponto de vista anti-essencialista: é preciso (no
sentido ético) revelar (no sentido estético) certas coisas e ocultar outras.