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Regionalismo Sul-Americanos
Na segunda metade do século XX, diversos mecanismos de cooperação entre os países
foram criados com a finalidade de configurar uma nova governança global para o nível
crescente de interpenetração das economias dos Estados. Contudo, as Organizações
Internacionais, como o FMI e a OMC (Organização Mundial do Comércio), e a ratificação de
acordos de natureza integracionista, quando submetidos ao escopo das teorias generalistas da
economia, podem impor a globalização à região latino-americana de forma impiedosa.
A Cúpula das Américas de Miami, na tentativa de criar a Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), em 1994, é um exemplo emblemático de como a agenda hegemônica
pode, ao invés de conduzir ao progresso, aprofundar o quadro de subdesenvolvimento da
região. São diversos os motivos pelos quais o debate sobre desenvolvimento regional, foco
deste trabalho, não pode ser compreendido somente voltado para o comércio e nem tampouco
voltado aos indicadores estreitos a essa dimensão. Se não ponderados outros aspectos da
integração econômica, como o de infra-estrutura e da redução das assimetrias, pode ser que
esta ferramenta seja contraproducente para o desenvolvimento regional amplo e soberano dos
países historicamente marginalizados na economia global.
A discussão sobre a ALCA e a decisão dos países em rejeitar o acordo evidenciam esta
problemática: ao reduzir as barreiras comerciais às corporações estrangeiras, principalmente
às norte-americanas, estas gozariam das mesmas prerrogativas jurídicas e tributárias que as
empresas nacionais, o que, na verdade, geraria uma disputa extremamente injusta à indústria
nacional. Esta indústria não têm a seu dispor as mesmas fontes de crédito e a mesma
experiência industrial que as grandes transnacionais, e, deste modo, seria facilitada, por
exemplo, a conquista de patentes por parte das corporações de matriz estrangeira de produtos
produzidos a partir de matérias primas da biodiversidade latina. No caso das controvérsias
que surgem no relacionamento dos Estados, os mecanismos de soluções de conflitos
possuiriam embasamento na regulamentação jurídica anglo-saxã, garantindo, assim, sentenças
favoráveis aos países norte-americanos, uma vez que este embasamento é absolutamente
diferente dos sistemas jurídicos da América do Sul. Para além das questões relativas aos
investimentos externos diretos e às transações comerciais, o bloco não previa a criação de
fundos fiscais que possibilitassem a redução das assimetrias entre os países. Não havia,
portanto, chances de comércio justo entre países em níveis de desenvolvimento econômico tão
distintos. (JAKOBSEN & MARTINS, 2002).
Diante do que poderia ter sido a ALCA, a inserção dos países periféricos no sistema
econômico internacional requer criticidade. Em razão dos déficits de autonomia que
remontam ao processo de formação econômica e política, relações comerciais podem ser
marcadamente desequilibradas. Isto é, os projetos integracionistas precisam estar além do
aspecto comercial, para que no âmbito político e social sejam pautadas as assimetrias próprias
dos estágios de desenvolvimento em que se encontram os países e os métodos de solução
deste cenário.
Mesmo o MERCOSUL, que logo no preâmbulo do seu tratado constitutivo, a saber, o
Tratado de Assunção (1991), coloca a importância do desenvolvimento acompanhado à
justiça social, durante a década de 1990 teve os fluxos de integração voltados à liberalização
do comércio. A integração regional, durante a década de 1990, compreendeu
predominantemente o aspecto comercial e até o ano de 1998 seu desempenho foi satisfatório,
haja vista o aumento do comércio intrabloco (RUIZ, 2007). Não obstante, criaram-se diversos
órgãos desta finalidade, tais como o Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo Mercado
Comum (GMC), a Comissão de Comércio do MERCOSUL (CCM) e a Secretaria
Administrativa do MERCOSUL (SAM). Acompanhando o adensamento institucional, de
1991 a 1997, as relações comerciais intra-MERCOSUL expandiram em 302% e chegaram a
corresponder por 23% das transações comerciais destes países (COUTINHO, 2007).
No entanto, na virada para o século XXI, este projeto de integração liberal entrou em
declínio. De 1998 a 2002 o PIB dos quatro países membros (Brasil, Argentina, Paraguai e
Uruguai) caíram e o volume das trocas comerciais entre estes Estados diminuiu. Este período
é caracterizado por uma crise comercial no MERCOSUL: de US$ 40.826 milhões em
transações intrabloco em 1998, desabou para US$ 20.462 milhões em 2002. Ou seja, o
comércio regional teve uma queda de 50,18%, o que representou, em suma, um retrocesso aos
parâmetros comerciais anteriores à existência do bloco econômico (COUTINHO, 2007).
Em seguida a isto, notou-se a violação dos contratos mercosulinos. A recessão
econômica dos Estados-membros do bloco se agravou e o modelo liberal se mostrou incapaz
de oferecer uma resposta à altura do problema. Brasil e Argentina, principais atores
econômicos na América do Sul, passaram a expressar unilateralidade em suas políticas
comerciais, na tentativa de preservar a autonomia nacional para aplicação de medidas de
sobrevivência de suas economias em meio à crise comercial.
Junto a este momento de crise intrabloco, houve iniciativa para que o bloco fosse
palco de estímulos próprios do regionalismo aberto, isto é, a integração regional como meio
de inserção e barganha nos processos econômicos globais. Em suma, orientar a economia do
regionalismo ao vínculos com terceiros, resulta em alinhamento às potências ocidentais, que
na perspectiva do neoliberalismo, têm grandes oportunidades de comércio a oferecer
(SARAIVA, 2012). Tal como destaca Gentil Corazza,“na prática, o “regionalismo aberto”
promoveu a abertura, a liberalização, a privatização, as reformas estruturais de cunho
liberalizante e as políticas macroeconômicas propostas pelo Consenso de Washington e
implementadas na América Latina, nos anos 90.” (CORAZZA, 2006, p. 148).
Com a crise intrabloco, contudo, o MERCOSUL não foi capaz de assegurar a sua
credibilidade como negociador no mercado global. É, portanto, com base na falência do
projeto integracionista estritamente comercial que novas elites políticas passaram a repensar o
paradigma de integração regional. Ainda que os mitos do neoliberalismo prometessem
desenvolvimento dos países, o regionalismo mercadológico, comprometido apenas com a
ampliação dos mercados nacionais, se mostrou insuficiente em matéria de desenvolvimento
regional. Ao mesmo passo que partidos progressistas começaram a ganhar força,
especialmente na América do Sul, a população começou a repensar as promessas da
construção política da década de 1990. A ordem do dia, diante disso, passou a incorporar uma
outra perspectiva acerca da matéria: conforme defende Amartya Sen (2000), desenvolvimento
é crescimento econômico acompanhado de justiça social.
Nos anos 2000, então, o Mercado Comum do Sul é visto à luz de uma nova
abordagem das políticas integracionistas. A este momento deu-se o nome de “Onda Rosa”
(PANIZZA, 2006), devido à influência crescente da esquerda na América Latina - a qual se
propôs a construir um paradigma de regionalismo pós-liberal de cooperação regional
(SANAHUJA, 2008). Nesta guinada à esquerda, o subcontinente sul-americano viu nascer um
novo projeto de cooperação, guiado pelos governos do Partido dos Trabalhadores, iniciado
pelo primeiro mandatos de Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil; do peronismo na Argentina;
com Néstor Kirchner, e também da Frente Ampla, com Tabaré Vázquez, no Uruguai.
Os governos dos Estados que protagonizaram este momento político da região
buscaram um novo projeto de cooperação, engendrado numa perspectiva pós-liberal, ou
pós-hegemônica: na qual o desenvolvimento dos povos que constituem o MERCOSUL
ultrapassou as fronteiras da supervalorização do crescimento econômico (SANAHUJA,
2008). Ou seja, a análise tão somente da expansão do produto econômico não era mais
suficiente para sopesar o desenvolvimento, ao passo em que as condições da obtenção e
distribuição deste produto ganharam relevância nos espaços de discussão. E é nesta altura que
a Economia Solidária se torna iniciativa setorial no âmbito de Coesão Social do Fundo de
Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), criado em 2004. Dá-se importância, a partir
de esforços como este, às políticas públicas e à infraestrutura capazes de organizar uma
integração regional que propicie maior participação e justiça social.
O FOCEM tem como objetivo “financiar programas para promover a convergência
estrutural; desenvolver a competitividade; a coesão social, em particular das economias
menores e regiões menos desenvolvidas e apoiar a estrutura institucional e o fortalecimento
do processo de integração” (FOCEM, 2015). Um dos quatro programas principais, chamado
Programa de Coesão Social, executa projetos que estão relacionados com o desenvolvimento
social, em especial nas zonas de fronteira, e atuam nas áreas de interesse comunitário como a
saúde, educação, redução da pobreza e do desemprego, a fim de diminuir as taxas de
mortalidade e de analfabetismo, e promover o fomento de atividades de economia solidária,
qualificação de mão de obra e mitigação da fome. (FOCEM, 2015). O exemplo da
incorporação da Economia Solidária nos trabalhos do bloco é um demonstra a preocupação
com a cidadania ativa na integração produtiva, uma vez que este tipo de atividade econômica
gera renda através da propriedade coletiva e da autogestão de trabalhadores possuidores de
capital em cooperativas.
Ao destacar as relações entre Brasil e Paraguai, e o papel de políticas como a do
FOCEM, teremos a exata ideia do que propomos neste trabalho: o FOCEM é formado
majoritariamente pela contribuição do Brasil, que aporta 70% dos recursos do Fundo,
enquanto o Paraguai é responsável pela integralização de apenas 1% do montante. No entanto,
maior beneficiário dos projetos aprovados por este Fundo é o Paraguai, que recebe cerca de
48% dos recursos. Isto é, no FOCEM, o Brasil é o país que mais investe em projetos de
redução de desigualdade social e mitigação de assimetrias, enquanto o Paraguai é o país que
mais recebe financiamento.
As experiências integrativas, portanto, deveriam considerar antes de tudo a perspectiva
do desenvolvimento. Isso implicaria não somente o crescimento econômico – e a busca por
indicadores econômicos favoráveis – como também e, em principal medida, a superação do
desequilíbrio existente entre as forças produtivas e apropriação que se faz dos bens
produzidos por elas. Esta superação demanda, para além do crescimento, a necessidade de
escolhas políticas bem claras em prol de um projeto que se ocupe da busca por uma maior
homogeneização social, nos termos já conhecidos de Furtado.
FURTADO, Celso. A Economia Latino-Americana. 4ª. Edição. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
HAYEK, Friedrich A.. O caminho para a servidão. Lisboa, Edições 70, 2009.
JAKOBSEN, Kjeld e MARTINS, Renato. Alca: quem ganha e quem perde com o livre
comércio nas Américas, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2002.
PANIZZA, Francisco. La marea rosa. Análise de Conjuntura OPSA, Rio de Janeiro, n.08,
2006.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
SUNKEL, Osvaldo & PAZ, Pedro. El subdesarrollo latinoamericano y la teoría del desarrollo.
Ed. Siglo XXI. México. 1970.