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Marido, Matriz e Filial

Peça de Sérgio Jockman

LUIZ – A história que se passa hoje, é a história de um casal, como a maioria dos casais
que tem problemas, não iguais, mas problemas.
Marido, Matriz e filial, conta a história deste casal do triângulo amoroso em que este casal
se lança através do marido. E é justamente aqui que começa. Triângulo este que deixa de
ser geometria e torna-se um crime passional. Se há morte, o triângulo é amoroso. E ai a
definição depende do país. Na Inglaterra, por exemplo, cada triângulo é composto de dois
frios e um quente. E assim mesmo o mais quente é homossexual. Na Itália, o triângulo é
composto por dois homens e uma mulher. E se a mulher é napolitana dois homens não
chegam. Já nos Estados Unidos, os triângulos são diferentes. Um triângulo americano é
composto de marido, mulher e psicanalista. O psicanalista não funciona como vocês estão
pensando. Em compensação o marido também não. E com isso chegamos ao Brasil. No
Brasil, pequeno burguês, existem dois tipos de triângulos. Primeiro tipo: O marido, a outra
e a vítima abatida com cinco tiros. Segundo tipo, é o mais comum: marido, mulher e a
outra. Uns dizem que este tipo de triângulo depende do econômico. Outros dizem que é um
problema psicológico. E não falta quem diga que não é nem uma coisa, nem coisa alguma.
Freud explica, mas não justifica. Eu, naturalmente discordo de Freud. Justifico mas não
explico. Mas lá no fundo, acho que as coisas acontecem, por que o mundo está dominado
pelas mulheres.
ANA – (ENTRANDO) Não concordo.
LUIZ – Ela tem uma boa razão para não concordar, é minha mulher.
ANA – Não seja por isso, acho que existem outras pessoas que não concordam também.
LUIZ – Ah! Eu sei, mas vejamos os fatos, você me permite?
ANA – Tenha a Bondade.
LUIZ – Então com licença. Se um homem se mete com uma mulher de dezessete anos e
não se casa, vai preso, sedução, e não adianta alegar que quando um não quer dois não
deitam, porque vai preso do mesmo jeito. Agora, pergunto eu: Quem já ouviu falar de uma
mulher que tivesse sido presa por seduzir um homem de dezessete anos? Ninguém. E se
vai à polícia e prova que era virgem, ainda é capaz de ser preso do mesmo jeito.
ANA – Não seja ingênuo. Você está esquecendo que a mulher perde alguma coisa quando é
seduzida.
LUIZ – Ah, perde? Mas em compensação veja o que ela ganhou em troca. Mas quero ser
justo. Vamos a outro exemplo: Um homem casa e se desquita. O que acontece, é obrigado
a pagar uma pensão para a mulher. Mas quando é a mulher que se desquita, a única coisa
que o marido recebe é o alívio. Por quê? Eu explico. Porque o homem que vive às custas de
uma mulher é um gigolô e a mulher que vive às custas de um homem é uma dona de casa.
ANA – Ora. Muito bem, então de repente o senhor ficou contra as mulheres?
LUIZ – De forma alguma. Eu só acho que está na hora de haver igualdade de direitos.
Porque não é justo que o homem continue escravo da mulher.
ANA – Mas desde quando o homem é escravo da mulher?
LUIZ – Desde o momento que se casa. O casamento é uma ditadura feminina e os maridos
são os oprimidos.
ANA – Ah. Concordo plenamente que esse possa ser o caso dos maridos fiéis. Mas os
maridos infiéis, o que são dentro desta ditadura?
LUIZ – Os defensores da democracia.
ANA – Bem, se você permite, acho que chegou a hora de contar a história deste
democrata. Eu conheci esta preciosidade há sete anos. E me acreditem, que naquele
tempo ele não tinha as idéias que tem hoje. Era um rapaz tímido e envergonhado que
encontrei numa festa e que não parecia nem de longe este marido subversivo que hoje
berra contra a ditadura feminina. Muito pelo contrário, era um inimigo da liberdade que só
abria a boca para fazer a apologia do casamento.
LUIZ – Eu era um inocente útil.
ANA – Inocente, eu acredito, útil, ele até hoje não provou que fosse, mas, justiça seja feita,
desde aquele tempo ele já era vítima. Não do casamento, naturalmente, mas das doenças
da família. A tia sofria de reumatismo, o pai tinha pedras no rim, a irmã solteira sofria de
insuficiência ovariana.
LUIZ – Ah. Eu não falei de insuficiência ovariana, falei em sinusite.
ANA – Tem razão, era mesmo sinusite.
LUIZ – Isto é muito dela confundir nariz com ovários.
ANA – Me perdoe, mas na irmã dele os dois são parecidos.
LUIZ – Estava demorando. Ela não consegue falar em mim, sem por minha família no meio.
Ela sempre discute com minha árvore genealógica na mão.
ANA – Naturalmente agora eu sou uma mulher cheia de defeitos. Mas nos tempos de
noivado, eu era uma mulher perfeita. Perfeita, de repente, no entanto, a minha perfeição
acabou.
LUIZ – Eu passei a ver o casamento por outro lado.
ANA – Eu explico, lá está ela. (MOSTRANDO PARA A AMANTE)
FLÁVIA – Por favor, me deixem fora disso.
ANA – Depois que ela entrou naquilo (APONTA PARA LUIZ) – Quer ficar fora disso?
FLÁVIA – Minha querida, eu...
ANA – (CORTANDO) – E não me chame de minha querida.
LUIZ – Por favor, vamos pelo menos manter o respeito.
FLÁVIA – Deixe que ela fale meu bem, eu tenho paciência.
ANA – (ANA PARA FLÁVIA ENQUANTO LUIZ SAI) – Não senhora, não tem não, nessa
história toda que tem paciência sou eu. Há sete anos que venho tendo, desde o dia em que
me casei, ele me pôs um anel no dedo e uma paciência nas costas. Casamos para repartir
os direitos e os deveres.
LUIZ –(ENTRANDO DE CEROULA E TOALHA NA MÃO EM DIREÇÃO AO QUARTO ENQUANTO
FLÁVIA SENTA-SE NUM DIVÂ) – E justiça seja feita, eu reparti.
ANA – Repartiu mesmo. Tomou-me os direitos e me deu os deveres.
LUIZ – Você está esquecendo que na nossa lua de mel... (INDO PARA O QUARTO)
ANA- (CORTANDO) – Ah, você quer que eu fale da lua de mel?
LUIZ – (SENTANDO NA CAMA)
ANA – Tivemos uma lua de mel. Não é grande coisa, porque afinal até gato tem. Em todo o
caso, tivemos a nossa, mas na lua de mel, nossa casa só tinha uma peça, o dormitório. Ele
levou um mês para descobrir que além do dormitório, havia uma cozinha. E nos três meses
seguintes a nossa vida andou do dormitório para a cozinha e vice-versa. E a felicidade dele
dependia exclusivamente do que eu fizesse nesses dois lugares.
LUIZ – Mas que diabo você queria que a gente fizesse na lua de mel? Caratê? (ELE VAI SE
VESTINDO E SAI DO QUARTO)
ANA – Dá licença?(INDO PARA A SALA) – Bem, nos meses seguintes ele me deu o primeiro
direito. E era bem simples, tive inteira liberdade para descobrir os direitos dele, e não
eram poucos. Ele tinha o direito de chegar atrasado, de ser desleixado, de ser atendido
sempre em primeiro lugar. Resumindo, descobri que ele tinha o direito de ter todos os
direitos. Assim, terminada a lua de mel, eu não me tornei a esposa que todos esperavam,
mas a criada que esperava por ele. Mais ou menos um ano depois, eu num acesso de
vaidade, quis me tornar uma pessoa humana e atrasei o jantar. Pronto, a casa veio abaixo.
Ele deu um pontapé na porta?
LUIZ – Eu nunca dei pontapé em porta alguma.
ANA – Ah, não deu? Então tenha a bondade de me explicar como foi que o senhor
destroncou o pé direito?
FLÁVIA – (LEVANTANDO-SE DO SOFÁ ONDE ESTAVA DEITADA) – Meu bem, você me disse
que destroncou o pé jogando pólo.
ANA – (PARA LUIZ) Não me conte? Além de tudo o senhor é jogador de pólo?
LUIZ – (EMBARAÇADO) – Mas que pólo, ela entendeu mal.
FLÁVIA – Ora vamos meu bem, você ainda me disse que fazia parte da equipe estadual de
pólo.
ANA – Só se foi como montaria. Em todo caso este maravilhoso jogador de pólo, passou
quinze dias com o pé engessado e naturalmente pôs a culpa em cima de mim.
LUIZ – Você atrasou o jantar.
ANA – Viram como eu era esperta? Cada vez que eu queria quebrar o pé do meu marido
atrasava o jantar. Como eu devo ter atrasado o jantar umas trinta vezes, ele deve ser o
recordista mundial do pé quebrado. Aliás, quando ele esquecia o guarda chuva em casa a
culpa era minha, quando ele apanhava uma gripe, a culpa era minha, quando ele ia mal nos
negócios, a culpa era minha. Este cidadão é tão inocente que quando nasceu recusou o
pecado original e comprou uma imitação. Por isso, em tempo algum jamais teve culpa de
coisa alguma. Quando era absolutamente necessário cometer um erro chamava por mim. E
por incrível que pareça, foi uma promoção na minha vida. Fui promovida de criada, a bode
expiatório. Além da minha cruz, tinha também de carregar a dele.
LUIZ – Aliás, eu quero avisar que este casamento que ela está descrevendo não é o meu.
Eu sei por que eu estava lá. Se for assim como ela contou o marido deve ter sido outro.
ANA – Ah, vai ver que quem se meteu com ela fui eu. Mas voltando as promoções, logo em
seguida tive mais uma. Depois de prestar excelentes serviços como bode expiatório, fui
promovida a bola de cristal. Eu só tinha que adivinhar quantos botões iam cair, quantas
meias iam furar e quantos amigos sua majestade pretendia trazer de surpresa para jantar
em casa.
LUIZ – (INDIGNADO) – Uma esposa que ama o seu marido, adivinha os seus desejos.
ANA – Ora, não seja bobo. Nenhuma mulher que pudesse adivinhar, teria escolhido você
para marido. E quanto a amor nem se fala. Porque amor é uma coisa que os homens
sentem e as mulheres sofrem.
FLÁVIA – Talvez você não soubesse amar, minha querida. (LEVANTA-SE PEGA UM COPO
NA MESA E SAI)
ANA – Ah, ela naturalmente sabe. Deve saber mesmo, porque tem longa data no ramo.
LUIZ – (SE IRRITANDO AOS BERROS) – Quer parar com isso.
ANA – Vocês estão ouvindo? Essa é outra qualidade que ele tem. Ele pode estar aqui ou lá
no fundo, que só fala comigo aos berros e quando eu reclamo ele responde.
LUIZ – Quem é que está berrando?
ANA – Infalível, inocente, infiel e surdo. (LUIZ SAI E VAI EM DIREÇÃO AO QUARTO) Por
estas e outras que um dia eu me olhei no espelho e não me reconheci mais. Em sete anos,
eu tinha sido tudo, menos o que queria ser. Esposa. Resolvi reclamar os meus direitos. Mas
reclamar como? Não havia argumento meu que agüentasse um berro dele. Diante disso, só
me restavam um recurso: Greve. E foi o que fiz, mas fui fiel, avisei primeiro. (VAI PARA O
QUARTO E SENTA NA CAMA, LUIZ VAI DIRETO PARA O QUARTO PARANDO DE REPENTE)
• LUIZ – Ana, abra a porta, abra esta porta, minha querida. Vamos discutir o
assunto com calma. Eu estou morrendo de sono, abre a porta (ENÉRGICO).
Ana, abra a porta, vamos... Abra logo esta porta estou dizendo. Ana, está me
ouvindo?
• ANA – Estou. (TROCANDO DE ROUPA)
• LUIZ – Eu vou contar até três. Se você não abrir, eu ponho a porta abaixo, está
me ouvindo?
• ANA – Perfeitamente.
• LUIZ – Um, dois, t...ahhhh, abre esta porta querida. Que bobagem ficar ai
dentro de porta fechada. Vai ou não vai abrir?
• ANA – Não, não vou.
• LUIZ – (EXPLODINDO) – Pois deixe esta droga fechada. Mande por uma tranca.
Emparede logo esta droga. Está pensando que você é a única mulher do
mundo? Vá para o diabo, você e a porta. Eu vou dormir no sofá. (SAI E DEITA
NO SOFÁ)
ANA – E foi assim que inauguramos solenemente a era do sofá. E deste modo com portas
fechadas e sofás abertos, eu fui construindo a minha felicidade. Estávamos casados há
sete anos. Eu estava num purgatório, mas este me servia. E depois ele andava tão quieto,
que pensei que ele tivesse mudado. Cheguei a pensar que finalmente havia descoberto que
eu era uma esposa. Cheguei a pensar que eu estava sendo egoísta. Comecei a me
preocupar com ele. Coitadinho, trabalhava tanto. Pelo menos naquela época, eu pensava
que fosse trabalho. Se no início eu reclamava quando ele chegava tarde deixei de
reclamar, ele entrava e dizia.
• LUIZ – Estive batendo um papo com o pessoal, você sabe como é. A gente fica
falando e não vê o tempo passar. (SAI)
ANA – E eu acreditava. Os amigos, o inocentezinho andava batendo papo com os amigos.
Primeiro ele só batia estes papos uma vez por semana. Depois duas, três, depois só vinha
para casa lavar os dentes. E sempre batendo papo com os amigos, o coitadinho, e ainda
me contava:
• LUIZ (ENTRANDO) – Imagine, o José tem uma amante. Não sei onde ele anda
com a cabeça. Casado e com amante!
ANA – O José tinha uma, o Pedro tinha duas, o Paulo tinha três. Só ele o anjinho, é que não
tinha nenhuma. E eu acreditava. Sim porque ele me jurava:
• LUIZ – Minha filha, eu não sou desses.
ANA – Eu ouvia e fazia o sinal da cruz. O homem é santo. Qualquer dia levanta vôo e sobe
aos céus. E levantou mesmo. Os primeiros sintomas foram os banhos. Deu para tomar dois
banhos por dia, depois começou a usar perfumes. Depois a fazer as unhas. Eu andava de
boca aberta. O que será que deu nele?
• LUIZ – (DE PASSAGEM) – Oi, tudo bem?
• ANA – Será que o homem viu o passarinho azul?
• LUIZ (VOLTANDO DE PASSAGEM) – Oi, tudo bem?
ANA – Andava como bobo de ginásio. Eu não conseguia decifrar o mistério. Mas quando
decifrei compreendi tudo. Compreendi as cantorias, os dois banhos por dia, os passarinhos
azuis. Passarinho azul? Não, era uma passarinha madura. Mas é melhor contar como isso
aconteceu. O primeiro encontro dos dois foi numa festa na casa de um casal amigo. Ele
estava sentado num sofá quando ela entrou. Ela entrou, olhou para aquele pedaço de
burrice e pensou:
• FLÁVIA – Esse é presa fácil.
• ANA – Colocou um cigarro na boca e pediu fogo.
• FLÁVIA – (CORRESPONDENDO) – Por favor.
• LUIZ – (ACENDENDO) – Pois não, minha senhora.
• ANA – Ai ela atirou o primeiro anzol.
• FLÁVIA – O nome é Flávia, meu bem.
• ANA – Ele foi muito original na resposta.
• LUIZ – Flávia? Bonito nome.
• FLÁVIA – Você acha?
• LUIZ – Eu acho e você?
• FLÁVIA – Confio em você.
ANA – Se não tivesse tão abobalhado, teria visto logo que ela não passa de uma
mulherzinha, querendo pescar um trouxa. Mas ele não viu. Engoliu a isca, o anzol, a linha,
o caniço e a pescadora.
• FLÁVIA – Você se importa que eu sente ao seu lado?
• LUIZ –Ora, é um prazer senhorita.
• FLÁVIA - Me chame de Flávia, por favor.
• LUIZ – Tenha a bondade, Flávia.
ANA – Vamos interromper para pensar um bocadinho. Numa hora dessas, qual é o dever de
todo homem decente? Tomar uma atitude.
• LUIZ – (LEVANTA INDIGNADO PARA FÁVIA) Senhorita, sinto muito, mas sou
um homem casado. Não sei quais suas intenções, mas eu amo minha mulher.
Por favor, retire-se.
ANA – Mas ele não fez nada disso, muito pelo contrário, ficou sentadinho ao lado dela,
mostrando a dentadura, como se estivesse pousando para um anúncio de creme dental.
• LUIZ – (COM OS DENTES A MOSTRA) – Será que chove?
• FLÁVIA – Como é o seu nome, meu bem?
• LUIZ – Luiz.
• FLÁVIA – Acenta com o seu tipo másculo.
ANA – Perceberam como ela puxou o assunto para sexo?
• FLÁVIA – Você é casado?
• LUIZ – De vez em quando.
ANA – De vez em quando? Além de ser sem vergonha é covarde.
• FLÁVIA – Como você é espirituoso!
• LUIZ –Você acha?
• FLÁVIA – Você é o tipo mais espirituoso que conheci.
ANA – Ah, descarada (IMITA) Você é o tipo mais espirituoso que conheci. Esse suspiro de
homem nunca teve alma, quanto mais espírito.
• FLÁVIA – Um homem como você deve estar casado com uma mulher linda!
• LUIZ – Mulher linda?
• FLÁVIA – Ela é linda, não é?
• LUIZ – Não, até que nem.
ANA – Até que nem? Mas o que ele queria dizer com até que nem.
• FLÁVIA – Se ela não é linda, dever ser muito inteligente!
• LUIZ – É de fato, a minha mulher é inteligente. Não é nenhum gênio, mas é
inteligente.
• FLÁVIA – É deve ser mesmo, para por um homem como você numa gaiola.
ANA – Pronto, falou em gaiola ele já teve um ataque de claustrofobia.
• LUIZ – O que você disse? Eu engaiolado? Mas que é isso, minha filha? Então
você me acha com jeito de canário.
• FLÁVIA – Eu não disse isso meu bem.
• LUIZ – Olha aqui, está pra nascer gaiola que me prenda.
ANA – Foi assim que ele entrou numa.
• LUIZ – Nasci livre, você me entende? Faço o que quero, o que me der na telha.
E ninguém, ninguém tem nada com isso.
• FLÁVIA – E ela concorda?
• LUIZ – Minha mulher? Ora, a coitada...é que ele não me... bem deixe pra lá...
• FLÁVIA – Ela nunca compreendeu você?
• LUIZ – (SURPRESO) – Não sei como você percebeu, mas é pura verdade. Ela
nunca me compreendeu. Mas eu não gosto de me queixar. Cada um carrega a
sua cruz. Eu faço de tudo para esconder, não sei como você descobriu a
verdade.
• FLÁVIA – Você nunca procurou encontrar alguém?
• LUIZ – Para que? Que mulher sacrificaria a sua vida por mim.
ANA – Está aberto ao voluntariado.
• FLÁVIA – Não fale assim, por favor. É uma tortura. Tenho a impressão de estar
ouvindo a minha própria história.
• LUIZ – Não me diga que você é casada?
• FLÁVIA – Não, pior que isso, eu também sou sozinha. E você não imagina o
que é solidão para uma mulher.
• LUIZ – Você só? Mas não é possível. Uma mulher linda como você!
• FLÁVIA – Por favor, não diga isso nunca mais, não diga que sou linda, estou
cansada destas convenções sociais, cansada desses homens que me rodeiam,
desses homens que esquecem que eu sou um ser humano e que só pensam
em meu corpo. Você não é desses. É?
• LUIZ – Deus me livre.
• FLÁVIA – Me revolta o modo como eles me olham. Tenho a impressão que
estão me despindo.
ANA – Esse é o tipo de mulher que adora andar nua.
• FLÁVIA – Eu preferia mil vezes ser feia.
ANA – Não há problema. É só dar com a cara num poste.
• FLÁVIA – Você sabe, eu não peço nem casamento. Só peço alguém que me
compreenda.
ANA – Isso é que eu acho de edital de concorrência pública.
• FLÁVIA – Pena que eu tenha encontrado você tão tarde.
• LUIZ – (EMOCIONADO) – Flávia!
• FLÁVIA – Por favor não diga mais nada, antes que eu cometa uma loucura.
Adeus, Luiz, adeus. (SAI DRAMÁTICA)
ANA – (MOSTRANDO LUIZ IPNOTIZADO) – Olhem só a cara do idiota.
• LUIZ – (SAINDO ATRÁS DE FLÁVIA) – Flávia, Flávia, espere, Flávia.
ANA – Uma coisa eu sou obrigada a reconhecer, ela não sabe apanhar um trouxa. O infeliz
nem conseguiu dormir direito naquela noite. Ficou se virando de um lado para o outro,
dando suspiros de cortar o coração. E suspirou por mais dois dias. Até que no terceiro ela
telefonou para o meu marido, meu, é modo de dizer, porque naquela altura ele já tava
ficando nosso.
• LUIZ – Alô?
• FLÁVIA – Alô? Você lembra de mim?
• LUIZ – Flávia!!!
• FLÁVIA – Pelo menos você não esqueceu o nome.
• LUIZ – Eu preciso falar com você!
• FLÁVIA – Você tem pensado em mim?
• LUIZ – Dia e noite. Onde é que você mora?
• FLÁVIA – É cedo, meu bem.
• LUIZ – Mas eu preciso falar com você.
• FLÁVIA – E eu com você, amor.
• LUIZ – Vamos jantar juntos?
• FLÁVIA – Quando?
• LUIZ – Hoje?
• FLÁVIA – Não, hoje não posso, só no sábado.
• LUIZ – Sábado... eu tenho um problema...
• FLÁVIA – Não me diga que vai sair com ela?
• LUIZ – Com ela? Claro que não. Nós... nós nem saímos juntos (PENSANDO)
sábado, então, adeusinho.
ANA – E foi assim que no sábado ele teve um jantar com um cliente e deixou a trouxa aqui,
assistindo televisão. No jantar propriamente dito, não teve nada de mais. Mas depois do
jantar, ele naturalmente ele pediu a sobremesa.
• LUIZ – Bem, vamos para o seu apartamento?
• FLÁVIA – Não posso, meu querido.
• LUIZ – Porque não?
• FLÁVIA – Eu já lhe disse, tenha paciência.
• LUIZ – Não me torture Flávia.
• FLÁVIA – Eu não estou torturando ninguém, meu amor, eu apenas acho que
ainda é cedo.
• LUIZ – Quando então?
• FLÁVIA – Bem, na semana que vem... mas, só para conversar (SAEM)
ANA – É esse tipo de conversa que Poe gente no mundo por sinal. Eles devem ter
conversado muito, porque quando ele voltou para casa, me disse que estava caindo aos
pedaços. As primeiras conversas sempre são assim, eu no entanto pensei que fossem
excesso de serviço e não desconfiei de nada, mas era para ter desconfiado, porque no dia
seguinte ele me comprou um vestido.
• LUIZ – Um presente do maridinho.
• ANA – Um presente? Mas a troco de que?
• LUIZ – A troco da esposa compreensiva que tenho.
ANA – Marido só acha que a esposa é compreensiva quando arranjou outra (SAE DE PERTO
DELE E ELE SAI PARA TROCAR DE ROUPA) Mas eu durante dois meses não suspeitei de
nada. Enquanto isso ele me enchia de presente. Cada conversinha daquelas que ele dava
era um presente que eu ganhava. Até que o remorso passou e ele resolveu transformar as
conversas em conferências.
• LUZ – Olha aqui, sábado eu tenho que ir para fora, ouviu? Volto na segunda
feira.
• ANA – Ahhhh! Me leva junto?
• LUIZ – Minha filha, não é passeio, é negócio.
• ANA – Eu fico quietinha num canto e não incomodo ninguém.
• LUIZ – Bobagem, você não iria gostar da conversa. (SE DESPEDE COM UM
BEIJO E VAI PARA O QUARTO)
ANA – Eu não ia mesmo. E assim começaram as viagens. Ele nunca viajou tanto na vida. E
que viagens extenuantes. Sempre que ele voltava para casa vinha com terríveis dores de
cabeça. (NO QUARTO TIRA O VESTIDO FICANDO DE ROUPA DE BAIXO, ELE ESTÁ DEITADO
NA CAMA) Às vezes, eu me perfumava toda e ficava a espera dele. (ROMÂNTICA)
Benzinho!!!
• LUIZ – Credo, nem me fale. Estou com uma dor de cabeça medonha, tenho a
impressão que a minha cabeça vai explodir.
ANA – (SENTADO NA CAMA E SE VESTINDO NOVAMENTE ELE SAI) Comigo ele só não tinha
dores de cabeça uma vez por semana. Mas em compensação tinha falta de entusiasmo,
andava conversando tanto fora de casa que quando voltava, não tinha mais assunto. Eu,
mal sabia que fazia parte de uma sociedade anônima e que não tinha mais a maioria das
ações. E ela como principal acionista, começou a levar a parte do leão.
• FLÁVIA – Eu hoje vi um vestido lindo, meu bem.
• LUIZ – Compre minha querida.
• ANA – Meu bem, eu preciso de um sapato novo.
• LUIZ – Lá vem você querendo luxo.
• FLÁVIA – Meu bem, dizem que o rio está o máximo este ano.
• LUIZ – Eu vou comprar as passagens ainda hoje.
• ANA – Eu ando com uma vontade louca de viajar.
• LUIZ – Domingo eu te levo no recanto dos papagaios.
• FLÁVIA – Meu bem, eu gostaria de jantar fora esta noite.
• LUIZ – Vamos jantar num restaurante chinês, meu bem.
• ANA – Ah, eu gostaria de comer algo diferente hoje.
• LUIZ – Frita dois ovos na manteiga.
ANA – Eu fui apertando o cinto, apertando o cinto, até que não tinha mais cintura, foi neste
ponto que comecei a fazer as contas, e comecei a somar e diminuir e cheguei a conclusão
de que a coisa que andava mal era ele.
• LUIZ - Mas que diferente? Que mania que você tem. Outro dia me veio com
essa história que eu estava perfumado. Depois achou que o meu colarinho
estava manchado de batom. Agora me vem com esta história de diferente.
Quer saber de uma coisa, eu já estou farto, cansado desta história toda.
• ANA – Que história?
LUIZ – Eu acho que você cansou do casamento.
• ANA – Eu cansei?
LUIZ – E porque não? Há pessoas que cansam do casamento. Isso é perfeitamente normal.
• ANA – E daí, o que você sugere?
LUIZ – Porque você não tira umas férias. Trinta dias no campo.
ANA – Grande idéia. Ir para o campo e deixar o marido pastando na cidade é o que a
maioria das esposas fariam, mas não foi o que eu fiz. Me recusei a sair e uma semana
depois ele confessou.
LUIZ – Eu não nasci para o casamento.
ANA – De fato ele tinha nascido para o adultério.
LUIZ – O melhor é gente se separar e acabar logo com isso.
• ANA – Luiz você tem outra mulher?
LUIZ – Já vem você de novo com essa história.
• ANA – Quem é ela?
LUIZ – Mas que mania, isso é obseção.
• ANA – Eu conheço, não conheço?
LUIZ – Não sei do que você está falando.
• ANA – Acho bom você dizer logo, antes que eu descubra.
LUIZ – Ora, você ficou maluca. (SAI)
ANA – Não, eu não estava muito certinha, quem andava maluco era ele. E só podia. Ela
passava as noites inteiras enchendo a cabeça dele.
• FLÁVIA – Aquela mulher não te compreende.
ANA – Aquela mulher era eu.
• FLÁVIA – Aquela mulher Poe fora o seu dinheiro.
ANA – Ah, sim, ela economizava.
• FLÁVIA – Aquela mulher te trata mal.
ANA – Ana, a estripadora.
• FLÁVIA – Aquela mulher vai provocar a tua ruína.
ANA – O aviso veio tarde, porque o coitado já estava arruinado. Mas enfim, nesta altura já
estava tudo invertido. Ela era a boazinha. E eu a mulher fatal. Não sei o que teria
acontecido se a situação tivesse durado mais um mês. Mas feliz ou infelizmente, foi então
que descobri tudo. Quero avisar que nunca andei seguindo o meu marido. Vontade eu
tinha. O que me faltava era coragem, tudo aconteceu por acaso, uma noite ele saiu como
de costume para ver um cliente, eu, naturalmente, fiquei em casa. Uma hora depois, um
casal amigo me convidou para jantar e eu fui. E quando entro no restaurante, quem vejo já
sentadinho em companhia da fulana? O meu rico maridinho.
• LUIZ – (ESPANTADO) Jesus Cristo!
• FLÁVIA – Que foi?
• LUIZ – (TENTANDO SE ESCONDER) Olha só quem vem vindo.
• FLÁVIA – Não me diga que é ela?
• LUIZ – A própria.
• FLÁVIA – Ai, meu Deus!
• ANA – (ENTRANDO) Boa noite!
• LUIZ – Oh!
• ANA – (IRÔNICA) – Oh!
• LUIZ – Imagina... Imagina que coincidência!
• ANA – Enorme.
• LUIZ – A gente falando em você e nisso você entra.
• ANA – Vejam só, e nisso você entra.
• LUIZ – Adivinha quem é ela?
• ANA – A Princesa Isabel.
• LUIZ – Brincalhona. É Flávia minha prima.
• ANA – (EXAGERANDO) – Ah, não me conte, a prima Flávia?
• LUIZ – Ela mesma. Flávia, esta aqui é minha esposa.
• FLÁVIA – Muito prazer.
• ANA – Ora, o prazer é todo meu, priminha.
• LUIZ – Imagina, a mais de vinte anos a gente não se via.
• ANA – Já sei, você pegou ela no colo.
• LUIZ – Não, não.
• FLÁVIA – Com licença, eu vou empoar o nariz.
• ANA – E deve mesmo, priminha. Você anda pondo o seu rico narizinho onde
não deve.
• LUIZ – Mas que é isso?
• ANA – Isso é o início de uma longa conversa que nós vamos ter.
• LUIZ – (JÁ RECUPERADO E COM VOZ NORMAL) – E vamos ter mesmo uma
longa conversa. (SAEM E VÃO PARA A SALA ONDE FLÁVIA ENTRA COM UM
COPO DE ÁGUA)
• FLÁVIA – Se me dão licença eu adoraria participar.
• ANA – Que cerimônia é esta? Você já participou de coisas muito mais
importantes sem pedir licença.
• LUIZ – Por favor, vamos agir como pessoas adultas.
• ANA – Você está querendo dizer pessoas adúlteras.
• LUIZ – Falando em adultério, de onde você tirou esta bobajada toda que você
está contando?
• ANA – De onde eu tirei? Você ainda pergunta?
• FLÁVIA – Alhás, minha querida, eu faço questão de declarar que você possui
uma imaginação prodigiosa.
• ANA – Eu sei, mas você abusa.
• LUIZ – Por favor, vamos discutir como pessoas sensatas.(SENTAM)
• ANA – Formidável, e onde estão estas pessoas sensatas.
• FLÁVIA – Bem, minha querida.
• ANA – Escute aqui. Quer parar de uma vez com essa “minha querida” antes
que eu convença que você me ama.
• FLÁVIA – Mas que jóia de criatura (PARA LUIZ). Meu bem, você merece uma
medalha por ter resistido sete anos.
• ANA – Ora, sua...
• LUIZ – Pelo amor de Deus vão me deixar falar ou não? (PAUSA) Até que enfim.
• ANA – Fala o réu.
• LUIZ – Eu penso.
• ANA – Como é?
• LUIZ – Eu penso.
• ANA – Ai está uma coisa que eu julguei nunca ser possível.
LUIZ – Começamos muito bem, eu mal abri a boca e você me deu um aparte. E dizer que há
três meses essa mulher daria a vida por mim. E daria mesmo. Não porque me amasse. Não.
Nada disso. Mas, apenas por que eu era dela. Dela, propriedade particular da madame.
Bastou descobrir que não tinha mais exclusividade e pronto, mudou tudo. Hoje, por mim,
essa mulher não vai nem até a esquina.
ANA – Ainda bem que você descobriu.
LUIZ – E vejam que ela confirma com toda a tranqüilidade. Mas, isso não me surpreende. E
não me surpreendo, porque sei que o sonho de todas as mulheres é que nós homens
andássemos com uma coleira em volta do pescoço.
ANA – E de preferência latindo.
LUIZ – É, latindo atrás delas.
FLÁVIA – Sinto muito, mas eu peço licença para discordar. Nem todas as mulheres sonham
com isso.
ANA – Ah, sim, naturalmente ela é diferente.
LUIZ – Não, não é. E provo que não é. Vejam os senhores que as mulheres se dividem em
dois grandes grupos: As que tem e as que não tem homem de estimação. É porque o que
elas sabem fazer é correr atrás de um homem de estimação. E quando apanham um, saem
rosnando para um cato, para que não apareça outra e leve. E tudo isso por quê? Porque o
valor de uma mulher se mede pelo homem de estimação que ela leva do lado.
ANA – Puxa vida, então eu não valia nada.
LUIZ – Essa é uma das coisas que vamos discutir. Mas vamos estudar o assunto com
imparcialidade. Vocês sabem como se educa um monstro desses? Digo, uma mulher
dessas? Se não sabem, deixem que eu conte, mal essas criaturinhas saem do berço e já
são ensinadas a caçar.
FLÁVIA – Por favor, Luiz! Isso é antiquado!
LUIZ – Certo, mas vejam: Todas as mães se esforçam ao máximo para ensinar as filhas,
todos os truques da nobre arte de caçar um homem. É um longo treinamento, leva de
quinze a dezoito anos. E assim mesmo nem todas aprendem. Mas desde pequeninas são
vestidinhos, sapatinhos, sorrisinhos, anéizinhos e todos os truquezinhos que as
mamãezinhas usam para deixar as filhas engraçadinhas. Até parecem isquinhas
ambulantes, soltas pelo mundo. Meu filho é bonito, dizem as mães, mas nenhuma delas
passa duas horas enfeitando seu filho. Mas se é a filha...ah, meu Deus, que diferença,
ajeita aqui, enfeita ali, arruma acolá, até que a menininha mais inocente comece a
descobrir que isso de ser bonita e bem educada tem uma finalidade secreta, e tem mesmo
e precisa de treinamento.
FLÁVIA – Onde foi que aprendeu isso?
ANA – Comigo é que não foi.
FLÁVIA – Muito menos comigo.
LUIZ – São as únicas mulheres que existem no mundo. Mas continuemos porque agora
chegou a hora de falarmos em sexo. (PAUSA) Perder a virgindade é um sacrifício tão
grande que se dependesse das mulheres, a lua de mel não seria feito numa cama, mas
numa cruz. E dali se as mulheres tem problemas com o problema, nós homens é que temos
que ser compreensivos, nós homens é que temos que ser pacientes. Temos que ser tanta
coisa, que não há infeliz que agüente tudo isso sem pegar uns vinte ou trinta complexos. E
como se toda esta carga monumental não bastasse, ainda nos jogam em cima do parto.
FLÁVIA – Não dramatiza, meu bem, hoje em dia o parto é sem dor.
LUIZ – Pura bobagem não adianta inventar o parto sem dor, porque as mulheres fazem
absoluta questão que doa. Pergunte a qualquer mulher. Qual é a pior dor do mundo.
ANA – Todo mundo sabe que é a do parto.
LUIZ – Ouviram. O parto. Nós homens podemos ter nevralgias, câncer, artrite, porque é
tempo perdido, a maior dor do mundo é o parto e está acabado. Temos nós homens alguma
chance? Nenhuma. Assim chegamos aos filhos. Amor de pai é amor de pai, mas amor de
mãe é um negócio tão forte que só mulher pode sentir. Ou seja, nós neste mundo estamos
em situação de inferioridade.
(ANA E FLÁVIA TENTAM SE PRONUNCIAR)
LUIZ – Tá vendo, ambas concordam em discordar do que eu disse. Psiu. Passamos a um
caso particular: eu e ela.
ANA – Você quer dizer, você e elas.
LUIZ – O elas vem depois. (FLÁVIA SAI) – Por enquanto é eu e você, bem um dia me casei
com essa dama. Essa é modo de dizer, porque não foi bem com ela que eu me casei. Foi
com outra.
ANA – Não vai me acusar de ter dupla personalidade, vai?
LUIZ – Ai, quem me dera que você tivesse apenas duas personalidades. Você tem pelo
menos trinta. Essa, vocês já sabem como ela é. A outra era completamente diferente.
(ANA VAI PARA O QUARTO) – Era um anjo feita de mel e de açúcar. Quando casamos, tudo
para ela era pequenininho.
• ANA – (NA CAMA) – Benzinho machuquei o pezinho.
LUIZ – Coitadinha.
• ANA – Benzinho, vou fazer um lido jantarzinho para o meu maridinho. (COLOCA
UM PENHOAR E SAI).
LUIZ – Vocês não vão acreditar, mas o maridinho era eu. Ela fazia jantarzinho, cafezinho,
machucava a mãozinha, o pezinho, os dedinhos. Ela arrumava a caminha, a salinha, a
nossa casa era uma casinha. Eu o maridinho, ela a mulherzinha, nossa vidinha era uma
belezinha. Um diazinho porenzinho, ouve uma transformaçãozinha. Pouco a pouco tudo
começou a crescerzinho na nossa vidinha.
• ANA – (ENTRANDO) – Um bem, cortei o dedo.
LUIZ – Ela não tinha mais dedinho.
• ANA – Vou fazer o jantar.
LUIZ – Também não fazia mais jantarzinho.
• ANA – Não desarrume a sala.
LUIZ – Cataprum, para a nossa casinha. Também não estávamos mais casadinhos. Agora
só estávamos casados. Bem , se tivesse parado por ai, não haveria problema. Afinal, eram
o tamanho natural das coisas. O diabo é que não parou. De repente a nossa vida começou
a crescer. Crescia que dava medo.
• ANA – (ENTRANDO) – Você gastou um dinheirão o mês passado.
LUIZ – Dinheirão, eu comecei a crescer, crescer...
• ANA – Tire as patas de cima da mesa.
LUIZ – Eu não tinha mais pés, tinha patas.
• ANA – Não entre na sala com esse sapatão sujo.
LUIZ – Claro, quem tem pata só pode usar sapatão. Tudo o eu fazia era errado. Segundo
ela, eu abria rombos na meia, eu alagava o banheiro, eu sujava a casa toda. Resumindo, eu
era um elefante morando numa casa de bonecas. Patonas, pescoção, bocarra. Ahg, mas
nem tudo crescia assim, não as dores que eu sentia, ao invés de crescerem como era de
se esperar, diminuíam.
• ANA – Estou que não me agüento com uma unha encravada e você vem me
incomodar com essa fraturazinha da espinha?
LUIZ –Ah, eu só tinha dorzinha, febrinha, doencinha. Ela espetava o dedo num alfinete e já
dava câncer. Assim enquanto eu morria vendendo saúde, ela agonizava cheia de vida. E o
nosso casamento foi mudando, até que quando dei pela coisa, não estava mais casado
com a mesma mulher, estava casado com outra.
ANA – Ai está uma coisa que eu quero ver você provar.
LUIZ – Provo, por exemplo, a respeito de sexo...
ANA – Outra vez? Mas será que nem, com duas, você consegue pensar em outra coisa?
LUIZ – Absolutamente, não é verdade. Eu faço questão de declarar que tenho sido um
homem com muita moderação.
ANA – Se nota.
LUIZ – Nunca entrei em campeonato de virilidade.
ANA – Mas bem que andou tentando.
LUIZ – De fato, andei tentando, mas na metade tive que mudar de assunto e fumar um
cigarro. A primeira mulher com quem me casei, me compreendia muito bem, gostava que
eu tomasse um banho antes de dormir, para que ela se perfumasse toda. Na lua de mel eu
cheguei a tomar três banhos por dia. Depois que ela passou, os banhos foram ficando cada
vez mais espaçados. Até que foram reduzidos a três ou quatro por semana.
ANA – Com algum dia santo no meio.
LUIZ – Claro, esta segunda mulher, tinha uma opinião completamente diferente da primeira
a respeito de quantidades de banhos semanais que um marido deve tomar. Quis me
convencer que um banho por semana seria suficiente.Ora, pela minha constituição física
um banho por semana não me chega. Discutimos o assunto e ela concordou em usar
perfume três vezes por semana. Mas fazia isso com tão pouco entusiasmo que eu ficava
com medo que iria dormir exatamente no momento que eu estava mais acordado. Foi
então, que ela começou a demonstrar um repertório inesgotável de desculpas. Quando eu
entrava no quarto de banho tomado, ela dizia:
LUIZ – Estou com uma dor de cabeça terrível.
LUIZ – As nossas dores doíam sempre em lugares diferentes. Na noite seguinte, eu tornava
a tomar banho, ela me avisava.
• ANA – Hoje não estou quebrada.
LUIZ - E nunca se convenceu que certas coisas não quebram, eu tomava banho
novamente.
• ANA – Hoje não estou disposta.
LUIZ – E não deixava eu provar que estava. Ora, isso de tomar banho por tomar vai indo até
que a gente acaba perdendo a paciência. E numa noite daquelas eu tomava banho e
entrava no quarto com vontade de matar, ou morrer.
• ANA – Hoje não posso.
LUIZ – E por que não?
• ANA – Veio.
LUIZ – Ah, meu Deus.
• ANA – Sinto muito.
LUIZ – Mas que sente muito coisa nenhuma, e de mais a mais, eu não acredito que uma
coisa dessas venha por vir. Isso tem que ser proposital. E o mais triste é que se vinha,
nunca vinha como tinha de vir.
• ANA – Não sei o que ouve comigo, mas já devia ter passado.
LUIZ – Ou vinha demais ou vinha de menos. Ou era um filete ou era Amazonas. Mas pelo
menos vinha, graças a Deus, porque o pior é quando ela dizia.
• ANA – Já devia ter vindo. Vai ver que engravidei.
LUIZ – Eu odeio cegonha. É o bicho mais traiçoeiro do mundo. Nunca vem quando a gente
chama. Só aparece quando a gente se distrai. Como é que vai descobrir a distração num
negócio que não tem segunda via? Não há jeito. Seja o que Deus quiser. Se for menino leva
o nome do pai. Quando está tudo acertado, com batizado marcado, ela dá o golpe de
misericórdia.
• ANA – Veio hoje.
LUIZ – Mas como?
• ANA – Me enganei na data.
LUIZ – As noites que a gente passou em claro, as unhas que a gente roeu. Os vidros de
pílulas que a gente devolveu. Os médicos que a gente consultou. Nada disso conta. Ela
simplesmente se enganou na data. O caso está encerrado. Ah, a gente pensa, ela vai
aprender a lição. Daqui por diante vai tomar cuidado. Mais tarde quando a gente está
tentando dormir ela acende a luz e diz.
• ANA – Atrasou de novo.
LUIZ - E começa tudo outra vez. Eu só queria, antes de morrer, conhecer uma mulher
regulada, uma só me bastava. Uma só para me provar que não estou sendo vítima de
perseguição.
ANA – Pronto agora eu é que sou a culpada. Criminosa de guerra.
LUIZ – Eu realmente conheci a Flávia numa festa. Numa destas festas que as mulheres
presentes falam mal das ausentes. Eu entrei numa salinha para fumar um cigarro, quando
dei com ela. Estava chorando, eu não posso ver mulher chorar, principalmente as solteiras,
casada não me comove, porque só pode é estar pagando pelo que faz a um inocente. Por
um momento fiquei constrangido na porta, sem saber se entrava ou saia, até que a
solidariedade me venceu e ofereci um lenço.
• FLÁVIA – Obrigada, acho que perdi o controle.
• LUIZ – Acontece com todo mundo, posso fazer alguma coisa?
• FLÁVIA – Não se incomode por minha causa.
• LUIZ – Absolutamente, não é incômodo.
• FLÁVIA – Seu lenço.
• LUIZ – Por favor fique com ele.
• FLÁVIA – Obrigada.
LUIZ - E foi o que aconteceu. Um pequeno ato de cortesia e cavalheirismo. O que não
impediu que minha mulher não me recebesse com a gentileza de costume.
• ANA – Onde é que você esteve?
• LUIZ – Ali, na salinha.
• ANA – Fazendo o que?
• LUIZ - Fumando.
• ANA – Quem é que estava com você?
• LUIZ – Ninguém.
• ANA – Mentira, havia uma mulher com você. E não me diga que não, porque eu
vi.
LUIZ – Resultado: Fui condenado a passar a noite no sofá. Há sempre um sofá na vida dos
maridos, porque aconteça o que acontecer, as mulheres sempre ficam na cama. Mas três
dias depois Flávia me telefonou.
• FLÁVIA – Não sei se o senhor lembra de mim?
• LUIZ – Eu não lembrava.
• FLÁVIA – Fiquei com o seu lenço.
• LUIZ – Como é melhorou?
• FLÁVIA – Já estou bem obrigada. E u lhe telefonei justamente para lhe mandar
o lenço.
• LUIZ – Sabe onde eu moro?
• FLÁVIA – Me deram o endereço.
• LUIZ – Então pode mandar para a minha casa. Não, não pode, estão todos
viajando.
• FLÁVIA – Mando então para o seu escritório.
• LUIZ – Boa idéia, meu escritório.
• FLÁVIA – Mais uma vez obrigada.
LUIZ – E foi exatamente assim o nosso telefonema.Nada de convites, nada de suspiros.
Tudo perfeitamente natural.
ANA – Se tudo foi natural, porque o senhor não me falou do lenço?
LUIZ – Por um único motivo, o sofá.
ANA – Ah, a grande desculpa, o sofá. Só faltava essa dizer que se meteu com ela por causa
do sofá.
LUIZ – Foi por isso mesmo. E me diga qual o marido que não pensa em trocar o sofá por
uma cama? Quando Flávia veio me devolver o lenço eu já estava de cálice cheio. Você me
jogou num sofá e eu extravasei.
• FLÁVIA – Aqui está o seu lenço. Eu não sei como agradecer.
• LUIZ – Pois, eu sei, jante comigo esta noite.
• FLÁVIA – É muita bondade sua...mas...
• LUIZ – Nada de mais, favor se paga com favor.
• FLÁVIA – Sendo assim, eu não posso recusar.
LUIZ – Foi como se tirasse a coleira do meu pescoço. Eu estava livre depois de sete anos
de prisão. Eu estava livre, e aqui entre nós, como a gente se sente homem do lado de outra
mulher.
ANA – Começou assim e no outro dia pensou que era Napoleão.
LUIZ – Bem, pode ser que não seja. Mas o que interessa é que eu me sentia como se fosse.
Quando entrei no restaurante, já tinha até me esquecido que era um homem casado, e nem
era mais. Éramos eu e ela. Os dois, sozinhos no mundo. Tenha a bondade.
ANA – Olhem só a gentileza dele. A única vez que ele puxou a cadeira pra mim foi pra me
derrubar no chão.
LUIZ – E era tímida mesmo, tímida e retraída. Não era destas mulheres que pode ser
conquistadas numa noite. Por isso não forcei nada. Conversamos normalmente. Ela falou
que precisava chegar cedo em casa.
• FLÁVIA – Minha tia deve estar preocupada.
• LUIZ – Eu levo você para casa.
• FLÁVIA – Obrigada.
LUIZ – Levantamos, pegamos o carro e fomos até o edifício onde ela morava. Quando ela
deu boa noite eu resolvi dar um até breve. Flávia...
• FLÁVIA – Sim.
• LUIZ – Eu só lastimo que você não queira outra vez o lenço emprestado.
• FLÁVIA – Como assim?
• LUIZ – Para que pudéssemos jantar juntos outra vez.
ANA – Sinto muito.
LUIZ – Ah, meu Deus, o que foi agora?
ANA – Eu não acredito que tenha sido assim.
LUIZ – E por que não?
ANA – Por que a despedida está muito cinematográfica.
LUIZ – Eu tenho culpa se o cinema me copia? Foi o que houve e eu não posso alterar os
fatos.
ANA – (DANDO DE OMBROS)
LUIZ – Devo confessar que não foi fácil conquistar Flávia, durante um mês eu lhe enviei
flores e convite para jantarmos. Ela aceitava as rosas mas recusava os convites. Um belo
dia ela aceitou.
• FLÁVIA – Só por uma razão.
• LUIZ – Que razão?
• FLÁVIA – Pra saber por que o senhor me envia flores.
• LUIZ – Para que você se lembre de mim.
• FLÁVIA – Não era preciso.
• LUIZ – Suspendi as rosas no mesmo dia. Depois disso, sete ou oito jantares
até a ida na casa dela, depois ela me contou a sua vida, tinha sido noiva.
• FLÁVIA – Três meses antes do casamento ele morreu, eu estava grávida.
ANA – Como ela era tímida, deve ter sido por reembolso postal.
• FLÁVIA – Ele morreu e eu perdi a criança. Logo depois meus pais morreram
num desastre.
ANA – Isso nem é mulher. É uma agência funerária.
• FLÁVIA – Fiquei sozinha no mundo. Comecei a trabalhar. Não sabia o que fazer
da vida, pensei em me matar. De parente só sobrava uma tia do interior. Você
não imagina como é a solidão.
LUIZ – E começou a chorar. Quando dei pela coisa estávamos no quarto. No dia seguinte
fiz a maior besteira da minha vida: comprei um vestido para minha mulher.
• ANA – Mas que história é esta?
• LUIZ – Será que eu não posso comprar um vestido pra minha mulher?
• ANA – Luiz o que foi que você andou fazendo?
LUIZ – Eu podia contar? Podia. Passei a noite no sofá, mas justiça seja feita, pela primeira
vez não senti saudades da cama. Só que foram surgindo problemas inesperados.
• FLÁVIA – Benzinho, por que você vai tão cedo?
• LUIZ – Bem, é que...
• ANA – Luiz, porque você veio tarde?
• LUIZ – Bem, é que...
• FLÁVIA – Benzinho...
• LUIZ – O que foi minha querida.
• ANA – Luiz
• LUIZ – O que foi minha filha.
• AS DUAS – Venha cá.
LUIZ – Pois é, num dia cabem 24 horas, mas em 24 horas não cabem duas mulheres. Ai é
que entra a cabeça. Achei a solução. Tabela de serviço.
• FLÁVIA – Benzinho.
• LUIZ – Tome nota, minha querida. Segunda, quartas e sextas não posso
aparecer por aqui.
• FLÁVIA – Por quê?
• LUIZ – Tenho um compromisso. E tinha mesmo, há sete anos.
• ANA – Luiz.
• LUIZ – Tome nota, minha filha, terças, quintas e sábados, vou chegar tarde em
casa.
• ANA – Por quê?
• LUIZ – Hora extra, minha filha, andava fazendo mesmo.
ANA – Escute aqui, e nos domingos o que você fazia?
LUIZ – Dieta, minha filha, depois de acomodar os horários, desfrutei de tranqüilidade e
cheguei até a me tornar um marido perfeito. Só que não consegui me tornar um amante
perfeito, porque apareceram alguns imprevistos fora de casa.
• FLÁVIA – Meu bem, vamos passar o fim de semana juntos?
• LUIZ – Vou pensar.
• FLÁVIA – Vamos passar o fim de semana na praia.
• LUIZ – Vou pensar.
• FLÁVIA – Meu bem, porque você não vem morar comigo?
LUIZ – Nem pensei mais, lá estava outra querendo me tornar um homem de estimação.
• FLÁVIA – Alugamos um apartamento maior, arrumamos empregada, eu cuido
de você.
• LUIZ – (DETENDO O CAFUNÉ) – Não desta vez, eu era uma gato escaldado.
Minha filha eu nunca neguei que era homem casado, neguei?
• FLÁVIA – Não, mas...
• LUIZ – Eu nunca prometi nada a você, prometi?
• FLÁVIA – Não, mas aonde você quer chegar com isso?
• LUIZ – Do outro lado da porta.
• FLÁVIA – D outro lado da porta? Como assim?
• LUIZ – Se você continuar a me pedir coisas impossíveis, eu saio por aquela
porta e não volto nunca mais. Está me entendendo?
• FLÁVIA – Estou, meu bem, me desculpe.
LUIZ – Ah, conto pra vocês que a concorrência tem suas vantagens. Como eu digo sempre,
que tem uma mulher não tem nenhuma, mas quem tem duas, tem pelo menos uma. Foi um
santo remédio. Flávia nunca mais tocou no assunto. Só que arrumava de um lado entortava
de outro.
• ANA – Meu bem, vê se vem cedo hoje.
• LUIZ – Vou fazer o possível.
• ANA – Mas vem mesmo!
• LUIZ – Qual é o problema minha filha?
• ANA – É que eu vou estrear camisola nova.
LUIZ – Pois é, de repente esta senhora deu pra exigir serviços que eu infelizmente não
tinha condições de prestar. Não tive outro remédio, senão receitar uma dose de remédio
que ela mesmo me receitava. Mas quem foi que disse que ela engoliu?
• ANA – Que história é essa? Há uma semana que você vem tendo dores de
cabeça todas as noites.
• LUIZ – Que eu posso fazer, minha filha é o fígado.
• ANA – Luiz, você nunca sofreu do fígado.
• LUIZ – Minha filha, uma vez é sempre a primeira.
• ANA – Luiz, você tem outra mulher.
• LUIZ – Mas do que é que você está falando, mulher de Deus?
• ANA – Não negue, porque eu sei que tem.
• LUIZ – Mas como é que você pode pensar uma coisa dessas de mim, logo de
mim?
• ANA – Luiz, eu vou te prevenir uma coisa.
• LUIZ – Ai, meu Deus!
• ANA – Eu vou descobrir quem é ela.
LUIZ – E descobriu mesmo.; Culpa minha que não acreditei nela e não desconfiei de nada.
Era para ter desconfiado porque há uma semana ela concordava com tudo o que eu dizia.
• ANA – Querendo sair, não se preocupe comigo.
LUIZ – E eu não me preocupei. Saí com a maior tranqüilidade do mundo e fui jantar com
Flávia. E lá estávamos nós, jantando calmamente, quando entrou um furacão pela porta.
• ANA – Ah, eu sabia.
• LUIZ – Ana, por favor, tenha calma.
• ANA – Quem vai precisar de calma, é ela, não eu.
• FLÁVIA – Por favor, estão nos olhando...
• ANA – Pois que olhem, não tem nada com isso.
• FLÁVIA – É o que você quer, não é?
• ANA- Não, eu quero muito mais, eu quero que...
• LUIZ – Chega! S duas parem com isso. Eu precisava tomar uma atitude. Não
quero saber de escândalos. Vamos manter o respeito e agir como gente
civilizada. Flávia tome um taxi e me espere no seu apartamento.
• ANA – É lhe espere.
• LUIZ – Eu disse chega.
• ANA – Mas e nós.
• LUIZ – Nós vamos discutir o assunto em casa, venha (PEGANDO N BRAÇO DE
ANA)
ANA - - (SE SOLTANDO) – Gostei, gostei. Agora me diga uma coisa, quando você acordou o
que foi que aconteceu?
LUIZ – Ah, vai dizer que não foi exatamente assim?
ANA – Meu filho, o dia em que você fizer uma coisa dessas comigo, não vais continuar vivo
para contar. (IMITA) – Chega, as duas parem com isso.
LUIZ – Não senhora, desta vez a senhora não vai me desmentir.
ANA – Ah, não porque desta vez eu tenho uma testemunha, Flávia, qual é a sua opinião
sobre o jantar?
FLÁVIA – Não sei, eu não estava lá.
LUIZ – Como não estava?
FLÁVIA – Você estava?
ANA – Também não.
LUIZ – ORA VEJAM SÓ, AS DUAS SE UNIRAM.
FLÁVIA – Minha querida, acho que vou ser obrigada a contar tudo isso outra vez.
ANA – Se é por mim, não faça cerimônia.
FLÁVIA – Antes, eu gostaria de uma informação deste senhor. (PARA LUIZ) – Onde foi que
eu enterrei este filho que você me deu?
ANA – O que? Não me diga que o filho...
LUIZ – Ora, um detalhezinho a toa.
FLÁVIA – E não foi o único.
LUIZ – Como não?
FLÁVIA – E o noivo que morreu?
LUIZ – Ora, você me disse...
FLÁVIA – Eu não disse coisa alguma.
LUIZ – Em vista dos rumos inesperados dos acontecimentos, eu tenho uma declaração a
fazer. Declaro para todos os fins de direito que morri. E agora me deixem em paz.
FLÁVIA – Só espero que o defunto não venha assomar minha cama.
ANA – Pode dormir tranqüila, porque eu não cometo o mesmo erro duas vezes. E de mais a
mais não acredito que o finado faça uma coisa dessas.
FLÁVIA – Minha querida você não acredita que ele faça porque não sabe nem a metade do
que ele fez.
ANA – Aí estão tipo de conversa que me interessa. Por exemplo?
FLÁVIA – O primeiro detalhe importante é que eu não sabia que ele estava dando duas
sessões. Aliás, faça questão de declarar que não costumo levar para casa os maridos
extraviados que encontro na rua.
ANA – Início de carreira Luiz?
FLÁVIA – Absolutamente, minha querida, essa carreira não me atrai. Sei muito bem que
cães e maridos são duas espécies de animais que só trazem dor de cabeça.
ANA – Então, qual foi a vantagem?
FLÁVIA – A recompensa. E nada mais, porque os coitados só sabem latir.
ANA – Fora de casa, porque dentro de casa ainda roem um ossinho.
LUIZ – Puf!
ANA – Você ia latir alguma coisa?
LUIZ – Eu? Eu não, eu só estava procurando um poste.
ANA – Você viu como ele é? Com tanto poste dentro de casa, ele vai procurar na rua.
FLÁVIA – Ai está, minha querida, um direito que só os homens tem. Tanto que um homem
passa por dez mulheres e é chamado de experiente, o garanhão, enquanto que uma mulher
passa por dez homens é chamada de...
LUIZ – Não é preciso dizer que todo mundo já sabe.
FLÁVIA – Era justamente ai que eu queria chegar. Falamos de triângulos e assim os dois se
puseram a falar com muita animação, porque num triângulo o homem é o marido, a mulher
é a esposa e a outra é....
ANA – Uma que não é preciso dizer....
FLÁVIA – Porque todo mundo já sabe. Só que embora isso vá despontar muita gente, eu
não sou, porque quando conheci este cidadão eu não sabia quem ele era e muito menos se
era casado.
ANA – Prêmio Nobel de ingenuidade, bastava perguntar.
FLÁVIA – E, eu perguntei.
• LUIZ – Estou praticamente separado de minha mulher...Há mais de um ano que
a gente não...
ANA – O quê foi que você disse?
LUIZ – Moralmente era como se fosse.
FLÁVIA – Bem, com isso provo que não roubei nada de ninguém. O que me deram, já me
deram tarde. Era só por embaixo do braço e levar.
ANA – E naturalmente foi o que você fez.
FLÁVIA – Com a melhor das intenções. Pensando em até flores de laranjeiras, marcha
nupcial. Porque além de tudo que já foi dito, este cidadão insatisfeito moralmente, ainda
declarou.
• LUIZ – Dentro de três meses eu deixo dela e resolvo o nosso caso.
(ANA FICA BOQUIABERTA)
FLÁVIA – E diante de tantas provas, eu acreditei, tanto que hoje estou aqui.
LUIZ – Chega, chega, eu confesso, eu arrombei a porta e entrei na casa armado de
navalha. Violei a mãe, seduzi a filha e engravidei a gata. Atentei contra o pudor desta
virgem indefesa de quinze anos.
ANA – Ai, m ai, ai
FLÁVIA – Ora vejam só.
LUIZ – Depressa chame o juizado de menores.
FLÁVIA – O senhor vai negar que inventou aquela história?
LUIZ – Negar, por quê? Ela serviu, não serviu?
ANA – Ah, o senhor ainda confessa?
LUIZ – Se me permite, ainda com uma ponta de satisfação.
FLÁVIA – Mas então, qual é o problema?
LUIZ – O problema é que sendo maior de idade, vacinada e reservista, a senhora não tinha
a menor obrigação de acreditar.
FLÁVIA – Mas quando eu não acreditei o senhor insistiu.
LUIZ – O meu papel, minha cara senhora, era insistir.
FLÁVIA – Ah, não me diga! E o meu, qual era?
LUIZ – Recusar!
FLÁVIA – Mas quando eu recusei o senhor insistiu.
LUIZ – Não senhora!
FLÁVIA – Sim, senhor.
ANA – Não sei por que tanta confusão. Já ficou bastante claro que não precisava você ter
insistindo tanto.
LUIZ – Com que senhor juiz e senhores jurados, a defesa encerra seus trabalhos.
FLÁVIA – Delirantemente aplaudida pela vítima.
ANA – Epa, que história é essa de vítima?
FLÁVIA – Bem, minha senhora, a esposa enganada não fui eu. Ou a senhora ainda não
percebeu que acabou de aplaudir o desaparecimento de um macho tradicional. Não há
confusão possível, meu caro. Você só tem disposição quando há moralidade. E geralmente
com as mulheres dos outros, vocês só tem disposição.
LUIZ – O defeito do homem é ser macho?
FLÁVIA – Não é o que eu disse, não quero colocar em dúvida a sua capacidade de ser
macho, ainda não. Portanto vamos ao principio, naquela sala quando entrei para pedir um
lápis.
ANA – Eu pensei que fosse homem.
FLÁVIA – Não. Isso ou qualquer coisa parecida com isso, eu encontrei por acaso. Por sinal,
faço questão de declarar que quando entrei, não estava nem chorando, nem fumando. São
dois vícios que não tenho. Entrei na sala, dei com ele e pedi um lápis.
• LUIZ – Caneta serve?
• FLÁVIA – Serve. Pode me emprestar um momento.
• LUIZ – Tenha a bondade.
• FLÁVIA – Devolvo em seguida.
• LUIZ – Não há pressa.
FLÁVIA – E foi só o que aconteceu.
ANA – Não acredito.
FLÁVIA – Pergunte a ele.
ANA – Foi só?
LUIZ – Só.
ANA – E o lenço?
FLÁVIA – Pois é. E o lenço?
LUIZ – Bem...eu andei dando uns retoques.
ANA – Ah! Bem, então vamos retocar suas declarações. Onde o senhor disse: Eu não posso
ver mulher chorando, nós devemos ouvir que você não pode ver uma mulher pedindo lápis?
LUIZ – Esta falta de imaginação que estraga você.
FLÁVIA – É a pura verdade. Bem, quando dei pela coisa, tinha esquecido de devolver a
caneta. O pior que não sabia quem era o dono. Mas três dias depois e aqui o prazo
concorda, descobri que era, quando ele, em pessoa, bateu na minha porta.
ANA – Um momento, e o telefone?
FLÁVIA – O telefonema?
LUIZ – Um retoquezinho.
FLÁVIA – Bem, com ou sem retoquezinho, ele bateu na minha porta. Eu devolvi a caneta,
pedi desculpas, agradeci, dei boa noite e fechei a porta com ele do lado de fora.
ANA – E o convite para jantar?
LUIZ – Retoque.
ANA – E o sorriso na despedida?
LUIZ – Retoque.
ANA – Esse infeliz se achou na vida, Retocador.
FLÁVIA – Pois é, como é a falta de imaginação que nos estraga, sou obrigada a confessar
que ele não me convidou pra jantar nem pra nada, só fui dar com ele novamente duas
semanas depois, numa festa promovida pela empresa.
LUIZ – Vejam só. Que mundo pequeno.
FLÁVIA – O excesso que tinha não era de imaginação, era de bebida, não que estivesse
bêbado. Isso não estava naquele ponto que se chama de sociável. Ele falou na caneta, eu
falei na festa e de repente entre caneta e festa, toquei na palavra mágica.
• LUIZ – Você disse sofá?
• FLÁVIA – Disse. Por quê?
• LUIZ – Você está falando com o maior especialista do mundo.
• FLÁVIA – O senhor fabrica sofás?
• LUIZ – Negativo.
• FLÁVIA – Vende?
• LUIZ – Não.
• FLÁVIA – Compra?
• LUIZ – Não. Durmo em cima de um há mais de sete anos.
• FLÁVIA – E me contou toda a história dos sofás.
• LUIZ – Resumindo, minha filha, eu durmo tanto com aquele sofá que um dia ele
vai ter uma poltrona com a minha cara.
• (FLÁVIA RI)
• LUIZ – Não ria, não ria.
• FLÁVIA – E por que não? Realmente é muito engraçado.
• LUIZ – Porque você está falando com o cara mais infeliz do mundo.
FLÁVIA – Oh, eu sabia que era exagero. Mas ele disse isso com um arzinho desprotegido de
um pobre órfão e quando vi, o meu instinto maternal já estava funcionando.
ANA – Ela agora vai querer me convencer que foi a mãe de todos.
FLÁVIA - Eu não disse isso, mas se tivesse dito não estaria muito longe da verdade. Ou
somos também um pouco mãe de todos.
ANA – Só se for você, porque eu não sou.
FLÁVIA – Pois bem, então algumas de nós somos, fica melhor assim.
ANA – Fica perfeito. Mãe e filho. Ali está a mãe e Eli o filho da mãe.
LUIZ – Eu sabia, vocês ficam mexendo com água suja e eu acabo sendo respingado. Mas
também se isso é jeito de contar um caso.
FLÁVIA – Não acredito que seja pior que o seu. Falando nisso, aqui concordo com ele, ouve
de fato uma casa cheia de flores e cartões. Dizia assim: Há presentes para os olhos...
ANA – E para o coração.
FLÁVIA – Não me diga que...
LUIZ – É o único versinho que eu sei.
ANA – Mas que falta me faz um pau de macarrão.
FLÁVIA – E foi assim que a poesia entrou em nossas vidas. E depois da poesia, veio o
drama junto com a oitava dúzia de flores, apareceu o poeta em pessoa. E apareceu com
aquela história que estava separado da mulher, que a mais de uma ano nós não...Resumo,
choramingou durante uma hora. O choro me comoveu, depois...mesmo que eu tivesse outra
intenção, não teria coragem de tentar coisa alguma, pois ele declarou.
• LUIZ – Sexo para mim, não tem a menor importância.
FLÁVIA – Quase cai de joelhos e dei graças a Deus. Finalmente eu encontrara um homem
de coração puro.
ANA – Ah, sim e essa pureza quanto tempo durou?
FLÁVIA – Três semanas. Uma noite dessas ele entrou no meu apartamento e disse que
estava tudo arranjado. Os papéis estavam prontos e dentro de três meses ele estaria livre.
Eu estava tão emocionada com a notícia que vendi a crédito. No início era tudo perfeito.
Flávia a perfeita, não pedia nada. Luiz o perfeito não dava nada.
ANA – E pelo jeito que ele chegava em casa o que era dado era bem elevado.
FLÁVIA – Minha querida, novidade é novidade. Mas não foi tanto assim, porque lua de mel a
três tem suas limitações. Não que eu soubesse que tínhamos companhia, longe disso, eu
continuava acreditando na história do há mais de um ano que nós não... Por isso lá pelo
segundo mês comecei a achar meio estranho alguns ataques que ele tinha.
• LUIZ – Hoje minha querida, eu queria que nosso amor fosse puro como um
cordeiro casado... digo, platônico.
FLÁVIA – Foi justamente ai que ele inventou aquela tabelazinha de serviço e só me
aparecia as terças, quintas e sábados, compromissos inadiáveis. E eu acreditei piamente
na desculpa porque nem de longe sonhava que compromissos inadiáveis andavam
comprando camisolas novas. E assim passou o segundo mês. Passou o terceiro mês.
Passou o terceiro e nada de desquites. Resolvi tomar algumas providenciais.
• LUIZ - E o que foi que você disse?
• FLÁVIA – Perguntei se sou mulher que faz você feliz?
• LUIZ – Claro minha querida.
• FLÁVIA – E ela é a mulher que faz você infeliz?
• LUIZ – Você sabe disso, meu bem.
• FLÁVIA – Você gosta de ser infeliz?
• LUIZ – É evidente que não, meu anjo.
• FLÁVIA – Então porque você continua com ela?
• LUIZ – Bem...bom...bem...bom...
• FLÁVIA – Ahn, ahn, não estava nem bem nem bom. Fui acusada de
incompreensão, crueldade e não sei o que mais. Mas no final do discurso,
recebi mais uma promessa.
• LUIZ – Dentro de mais trinta dias eu me separo dela.
FLÁVIA – Recebi os juros e renovei o empréstimo.
ANA – Esse caso vai terminar em falência.
FLÁVIA – Foi o receio que eu tive. Mas infelizmente um receio que só fui ter no quarto mês,
quando novamente expirou o prazo.
• LUIZ – Sinto muito, mas não posso.
• FLÁVIA – E por que não?
• LUIZ – Por quê? Por favor não me pergunte mais nada.
• FLÁVIA – Aconteceu alguma coisa? O que foi? Mas o que foi Santo Deus?
• LUIZ – Minha mulher, minha mulher tentou se matar!
ANA – Eu o quê?
FLÁVIA – Tentou se matar. E eu acreditei piamente . Ah, eu sei que era um tango. Mas você
precisava ouvir o acompanhamento.
• LUIZ – Há três semanas que não durmo. Já chamei os pais dela. Não adiantou.
Primeiro foram, as pílulas, tomou um vidro inteiro, felizmente cheguei a tempo
no hospital, depois foi o revólver, saltei sobre ela, e a bala encravou no guarda
roupa. Ontem tentou cortar as veias. Tive que arrombar a porta do banheiro.
Ela estava com as duas mãos dentro da água quente e tentava cortar as veias
com uma gilete.
FLÁVIA – Eu estava tão assustada que nem me preocupei em separação.
• LUIZ – Me compreenda Flávia, por favor, eu não quero que o nosso amor seja
manchado pelo sangue de ninguém. Só peço mais um mês até que ela seja
internada no sanatório.
FLÁVIA – E assim, eu esperei o internamento. E este não vinha, as semanas passavam e a
suicida continuava em liberdade. Só que a medida que os dias passavam, passava também
minha paciência, até que achei que já era hora do herói tomar uma decisão, e fosse qual
fosse, desquite ou enterro.
• LUIZ – Mas eu já disse que não posso fazer isso, ela se mata.
• FLÁVIA – Melhor, você fica viúvo.
• LUIZ – Tenha paciência, não posso fazer isso com ela.
• FLÁVIA – Pois muito bem, já que o senhor não pode fazer isso com ela, não vai
mais fazer isso comigo.
• LUIZ – Aquilo, como assim? (CAINDO EM SI) – Ei, espera aí.
FLÁVIA – E cortei a semana.
ANA – Um momento, quando foi isso?
FLÁVIA – A data exata não recordo, por quê?
ANA – Porque há um mês atrás, alguém me propôs uma segunda lua de mel.
LUIZ – Coincidência, pura coincidência.
FLÁVIA – Coincidência ou não, quando ele passou uma semana muito platonicamente, eu
comecei a suspeitar que só conhecia a metade da missa. E quando quis conhecer a outra
metade ele tentou bancar o filhinho desprotegido.
• LUIZ – Minha mulher não me compreende.
• FLÁVIA - Então o que você está fazendo comigo?
• LUIZ – Ninguém me compreende!
FLÁVIA – Na verdade ele estava sendo compreendido por todo mundo. E tão bem
compreendido que os velhos truques de suicídio, sanatório e não sei o que mais, não
davam mais resultado. Diante disso, ele na quinta feira inventou de novo.
• LUIZ- Tenho uma notícia muito importante para lhe dar.
• FLÁVIA - E fomos queimar o último cartucho num jantar. Não havia nem
pólvora nem cartucho, era a mesma conversa de sempre.
• LUIZ – Flávia, você está agindo como uma criança.
• FLÁVIA – Não, não estou.
• LUIZ – (FLÁVIA VÊ ANA) – O que você precisa compreender...(ELE SEM SE
VOLTAR PERCEBE QUE HOUVE ALGO) – O que foi? (SE VOLTA) – Ah, meu
Deus.
• ANA – (ENTRA) – Vocês me dão licença?
• LUIZ – Ana, eu...eu....
• ANA – Fique quieto.
• LUIZ – Flávia, essa é....
• FLÁVIA – Eu sei quem ela é.
• ANA – Mas acho que não sabe quem ele é.
• LUIZ – Por favor....
• ANA – Ele é meu marido, sabia?
• FLÁVIA – Sabia. Pode ficar com ele.
• ANA – Ora, muito obrigada.
• FLÁVIA – Não seja por isso, querendo eu embrulho para presente.
• ANA – Não, pode deixar que eu levo assim mesmo.
• FLÁVIA – Bom proveito.
• LUIZ – Mas...Me escutem aqui...
• ANA – Eu disse fique quieto.
FLÁVIA – E ele obedeceu humilde e caladinho.
LUIZ – Eu só quis evitar um escândalo.
FLÁVIA – Nós sabemos. (LUIZ QUER SAIR) – Não senhor, fique sentadinho.
LUIZ – Mas..,.
FLÁVIA – Eu ainda não terminei.
LUIZ – Flávia...
FLÁVIA – Então ela disse:
ANA – Você vem comigo.
FLÁVIA – E ele respondeu:
LUIZ – Claro.
ANA – Grande novidade, isso eu já sabia.
FLÁVIA – Eu sei que você sabia. O que você não sabia é que...
LUIZ – Flávia, por favor.
FLÁVIA – (SEM DAR ATENÇÃO) – Enquanto ele dizia, claro, por baixo da mesa, tocava o
meu joelho dando a entender que...
LUIZ – Foi sem querer.
ANA – Você!
LUIZ – Juro que foi sem querer.
ANA – Luiz você...
LUIZ - Pelo que há de mais sagrado.
FLÁVIA – Ele respeita muito as coisas sagradas.
LUIZ – Ana, você não está vendo que ela...
ANA – Fique quieto.
LUIZ – Mas, eu não...
ANA – Mesmo que tivesse tocado, não faria a menor diferença.
LUIZ – Mesmo que?
FLÁVIA – Ah, minha querida, isso é uma declaração de guerra.
ANA – Ainda bem que você entendeu. Ou você pensa que eu vou abrir mão de sete anos só
porque ele tocou no seu joelho.
LUIZ – Mas eu já disse que....
FLÁVIA – Fique quieto, meu bem. Agora ela é a esposa compreensiva.
ANA – Exatamente, do tipo que ele prefere.
FLÁVIA – Ah, sim. E só porque ele prefere você...
ANA – Eu mudo, e você?
FLÁVIA – Você sabe muito bem que não. Quem me quer, tem que querer como sou.
ANA – Ai que formidável. Está vendo? Nossa senhora da personalidade em carne e osso.
FLÁVIA – Obrigada, minha querida.
ANA – Não seja por isso, você merece.
FLÁVIA – Pena que não posso dizer o mesmo de você.
ANA – Não se preocupe comigo. Vou me afogar na minha própria poça d’água.
FLÁVIA – Era o que faria uma dama.
ANA – Ah, mas eu não sou uma dama, sabia?
LUIZ – Mas, o que é isso?
ANA – Não sou, sou uma pobre coitada.
FLÁVIA – Pobre, porém sincera.
ANA – Continue assim que você vai receber uma relação das minhas sinceridades.
FLÁVIA – Não é preciso, minha querida. Eu já sei a relação de cor. Você prega botões,
engoma colarinhos, prepara o jantar, resumindo, você é a empregada perfeita.
LUIZ – (PARA FLÁVIA) – Você também!
ANA – Você esqueceu um detalhe. (FLÁVIA AMEAÇA DE FALAR) – Não, a certidão de
casamento não. O meu atestado de imbecilidade. Por que se há uma coisa que eu tenho
sido nestes sete anos é imbecil, imbecil e chapada. E tão imbecil que eu era, que chegava
a sofrer quando você tinha dor de barriga.
FLÁVIA – Ah, não. Por favor, não use dor de barriga como argumento.
ANA – Olhe aqui criatura celestial, eu não sei se você vai acreditar, mas ele tem uma
barriga...e ronca.
FLÁVIA – Eu nunca ouvi a barriga dele roncar.
ANA – Eu ouço . Há sete anos , e como ronca.
LUIZ – Ah, não, assim é demais.
ANA – Não ronca?
LUIZ – Ronca, ronca. Mas ninguém tem nada com isso.
ANA – Ah tem sim senhor, que casa com um homem casa com a barriga dele. Mas você seu
lindo, aposto que ao lado dela, se espremia todo, mas não deixava esta barriga roncar.
FLÁVIA – O que foi muito gentil da parte dele.
ANA – Ah, meu Deus, que romântico que ele é, fazendo gentilezas com a barriga.
LUIZ – Agora chega. Quem você pensa que é para falar deste jeito?
FLÁVIA – Que pergunta, ela é a mulher que ouve a sua barriga roncar.
LUIZ – Chega de falar nessa barriga. Pelo amor de Deus, tudo tem limite.
ANA – Diga isso a ela, não a mim. Há duas horas que ela subiu no pedestal de grande dama
e não quer descer, e nem me deixa subir, por mais que eu tente, fico sempre em baixo,
vendo a sua majestade recitar a mesma ladainha: (IMITANDO) – Minha querida você não
soube amar, minha querida você não sabe compreender...ora, vá pro diabo que a carregue.
FLÁVIA – Um lenço, por favor! Eu não posso ver ninguém representar o papel de esposa
indignada sem chorar.
ANA – Olha aqui, perfeição da natureza...
LUIZ – (TENTANDO INTERROMPER) – Ana...
ANA – (SEM INTERROMPER) – É muito fácil andar aos beijos e abraços com homem
engomado e perfumado.
FLÁVIA – É, eu sei.
ANA – O que você não sabe é como é difícil continuar querendo, quando acaba a goma e o
perfume e ele está sujo, barbudo e de ceroulas.
LUIZ – Ah, não. Ceroulas não, agora não.
ANA – Sim senhor, ceroulas, e esse pedaço de esupidez não sabe dar valor a isso, tome,
embrulhe e leve.
LUIZ – Espera aí.
ANA – E se der muita despesa, mande a conta que eu pago.
LUIZ – Não senhora.
ANA – E você me faça o favor, não acesse o meu Orkut. (SAI DA SALA)
LUIZ – Mas, você viu? Me ofende, me humilha, me despeja em cima um balde de
demagogia matrimonial e depois de tudo, dá as costas e ...Ah, não (PARA ANA) – Esta foi a
gota. (SAINDO) – Essa foi a gota.
FLÁVIA – Luiz (CHAMANDO)
LUIZ – Foi a gota.
ANA – (ENTRANDO) – Depressa minha querida, o que está esperando, siga aquele marido.
FLÁVIA – Não há pressa, minha querida, eu sei para onde ele está indo, mas não se
preocupe que nós lhe mandaremos um lindo cartão postal e de natal.
ANA – Muito obrigada, só não lamba o selo, porque o carteiro pode morrer envenenado.
FLÁVIA – Isso, minha querida, desabafe, desabafe que alivia, bem, adeusinho. Sinto muito,
mas você sabe, como Adão disse para Eva: O que se vai fazer: é a vida.
ANA – Eu sei.
FLÁVIA – E antes que eu me esqueça, eu sou ultra compreensível. Não sei quem foi que
disse que é o tipo que ele prefere.
ANA – Fui eu.
FLÁVIA – Ah, é mesmo. Bem adeusinho outra vez.
ANA – Fui eu mesma. Ainda bem que estava mentindo, mas enfim, o que se há de fazer? Os
maridos justificam os meios.
LUIZ – Preciso falar com a senhora.
ANA – O que eu mais gosto nas voltas é a solenidade.
LUIZ – Já vai começar?
ANA – Não senhor, só comentei, o que é que o senhor deseja?
LUIZ – Acho que chegamos num beco sem saída.
ANA – Sim senhor.
LUIZ – Tudo isso aconteceu aqui, entre eu e você e... Flávia. Onde está ela?
ANA – No quinto dos infernos senhor.
LUIZ – O que foi que você e Flávia fizeram na minha ausência?
ANA – Isso, senhor é segredo militar.
LUIZ – Eu saio, estavam você e ela, eu volto, só está você, o que foi que ouve aqui?
ANA – Isso meu prezado senhor, o senhor jamais entenderia.
LUIZ – Já sei, você mandou Flávia embora.
ANA – Bem senhor, é um ponto de vista.
LUIZ – Mas não é o que eu digo? Você não perde a mania de decidir a minha vida. Você não
podia mandar Flávia embora. Era um assunto meu.
ANA – Seu, não senhor, nosso.;
LUIZ – A amante era minha.
ANA – O marido era meu, senhor.
LUIZ – Você é minha mulher.
ANA – Ah, não me diga? Então eu sou sua mulher? Mas que beleza, e quando foi que o
senhor descobriu?
LUIZ – Há duas horas quando comecei a lutar para salvar nosso casamento.
ANA – Quando você começou a lutar? Ora, não me faça rir, seu macho indeciso. Tão
indeciso que se eu não faço uma cena, você sairia daqui de braço com ela.
LUIZ – Saía coisa nenhuma. Quem queria sair era a senhora. Há duas horas que venho
impedindo.
ANA – Ora, vá te enxergar, você não impede nem trânsito, se eu não abro os seus olhos,
você sai daqui trotando atrás daquela sujeita. Quem sabe vai querer apertar o dedinho dela
outra vez.
LUIZ – Eu já disse que não apertei o dedinho de ninguém. Encostei no joelhinho.
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