Você está na página 1de 12

DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna

Celso Luiz LUDWIG1

Os Direitos Humanos, em especial no aspecto da fundamentação,


ocupam lugar de algum destaque na reflexão filosófica latino-americana,
entre tantos outros temas importantes. A seguir apresento possível
enfoque do tema.
Antes de mais nada, no entanto, cabe perguntar se é possível uma
fundamentação nessa época de perplexidade, de pluralismo e de
fragmentação? Ou então, em tempos de afirmação do multiculturalismo
e da pluralidade das tradições, ou até mesmo de ceticismo mais extremo,
faz sentido investigar a possibilidade e também a necessidade de uma
fundamentação última e pós-metafísica?

1.A delimitação filosófica


O tema será apresentado no contexto teórico da disputa de alguns
dos principais modos do pensamento filosófico atual. A estratégia
argumentativa situa o tema no amplo contexto dos grandes paradigmas
da filosofia ocidental e, também, com as chamadas grandes condições ou
projetos de mundo, para a partir daí enfrentar a questão da fundamentação
dos Direitos Humanos. A proposta arquitetônica do tema será apenas
indicativa porque um tratamento mais analítico ultrapassaria o objetivo
e o limite deste texto.
1.1. Assim, o primeiro critério de demarcação teórica situa o tema no
contexto da análise paradigmática. A classificação vem de Habermas que
menciona o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de
paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas
com o auxílio de ser, consciência e linguagem”2. Providencial e justo
reclamo provém da Filosofia da Libertação, no sentido da inclusão de um
quarto paradigma, denominado por Dussel de paradigma da vida concreta
de cada sujeito como modo de realidade – ou paradigma da vida concreta,
ou ainda, simplesmente paradigma da vida. Com essa inclusão, a divisão
das épocas históricas da filosofia ficaria sugerida com o auxílio de ser,
1
Professor de Filosofia do Direito da UFPR e da Uninter. Procurador do Estado do Paraná.
2
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-22.p. citO

12 13
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

consciência, linguagem e vida concreta. Metodologicamente, é prudente situações. Portanto, trata-se de uma noção de senso comum, cujo uso é
ter em conta que tal mudança paradigmática deve, no entanto, ser frequente, até mesmo nas situações mais corriqueiras. Não é diferente na
entendida no sentido da suprassunção (Aufhebung) hegeliana3, e não na produção do saber acadêmico ou científico, em especial para mencionar os
ótica de um processo natural de simples extinção das teorias precedentes fundamentos da ciência, das premissas, dos postulados dessa ou daquela
substituídas pelas novas. Nesse quadro da filosofia, a demarcação tese. Ocorre o mesmo quando o assunto está no campo da filosofia. Essa
teórica do nosso tema da fundamentação dos Direitos Humanos indica palavra, noção, categoria ou conceito acompanha, para afirmá-la ou refutá-
uma argumentação que será paradigmática, e a escolha recai sobre o la, de algum modo a história da filosofia desde seu início, com os pré-
paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade. socráticos até nossos dias. Os significados desse uso são os mais diversos;
Ou seja, a reflexão se dará no contexto dos argumentos e categorias do impossível seria inventariá-los, o que seria de todo modo inútil, talvez.
paradigma da vida. No entanto, de maneira geral, com as virtudes e vícios epistemológicos
que daí decorrem, os significados mais recorrentes de fundamento e de
1.2. Por fim, o segundo critério de demarcação teórica leva em
fundamentação podem ser mapeados paradigmaticamente. A finalidade
conta a condição ou o projeto de mundo que está em jogo. Com isso,
seria a de reunir argumentos que possam indicar o estado da arte nesse
queremos significar que ao atual debate, ainda centrado nas fronteiras
particular em tempos atuais, e a partir dessa moldura pensar o sentido
que delimitam a modernidade e a pós-modernidade, são necessárias
do tema, ou então sua falta de sentido, na sugestão dos tempos, que
também orientações que provêm tanto de um projeto pré-moderno (são
talvez não sejam mais tão modernos assim. Acredito que o procedimento
as inúmeras tentativas filosóficas, por exemplo, que tentam reconstruir o
metodológico que segui é um caminho possível - como se vê adiante -,
sistema-mundo desde as premissas da filosofia do ser, inclusive no campo
sem prejuízo de outros tantos. Creio que esse seja um dos aspectos que
do Direito), quanto orientações no sentido de um projeto transmoderno
o tema apresenta.
– particularmente proposto pelo pensamento contra-hegemônico e pelas
filosofias de libertação4. Portanto, no largo contexto invocado, situa-se a 2.2. Fundamentação e fundamentalismo. Antes de enfrentar tal
questão no âmbito do também chamado pensamento do giro descolonial, questão, cabe mencionar outro aspecto de relevo que, se não considerado,
nas diferentes expressões da filosofia da libertação, da filosofia latino- pode gerar equívocos conceituais importantes, bem como compreensões
americana, da filosofia da exterioridade, da filosofia analética, da filosofia distorcidas. Pois, antes de mais nada, o tema da fundamentação em
da alteridade e, também, da, já anunciada, filosofia transmoderna. nossa epocalidade niilista está também relacionado inevitavelmente ao
tema do fundamentalismo. É prudente fazer as distinções conceituais
Enfim, nosso tema será construído tendo em vista o paradigma da vida
para evitar que a ideia de fundamentação reste colada a algum tipo de
concreta e o horizonte da condição transmoderna.
fundamentalismo ou aos fundamentalismos de modo geral. A exigência da
fundamentação não pode ser confundida com a atitude fundamentalista,
2. Em busca de uma fundamentação pós-metafísica pragmática seja esta religiosa, política, econômica, jurídica, ou até mesmo intelectual.
2.1. Fenomenologia de uso dos termos. O uso das palavras fundamento O fundamentalismo na condição de tema contemporâneo ganhou fase
e fundamentação ocorre no dia a dia das pessoas, nas mais diversas nova no mundo da globalização, esta com seus problemas, riscos e até
mesmo com o terrorismo. Os acontecimentos terroristas mais marcantes
3 APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica. Dialética e liberdade. Petrópolis : Vozes, 1993, p. 320.
4 Refiro-me aos grandes projetos da modernidade, da pós-modernidade e datransmodernidade, e mais
- em especial os do século XXI, e em particular a chocante terça-feira de
recentemente da hipermodernidade. Em geral, a polêmica fica reduzida ao projeto da modernidade – que com seu 11 de setembro de 2001, na qual foram destruídos os ícones do império
caráter emancipatório aposta nas grandes utopias e promessas de igualdade, liberdade e paz, e a contrapartida
da pós-modernidade, descrente das grandes narrativas, e que Boaventura de Sousa SANTOS (2000, p. 29 e 37) norte-americano - ainda buscam no fundamentalismo uma das chaves
designa por pós-modernidade reconfortante – por não lançar utopias sugere que se aceite e celebre o existente; explicativas dos fenômenos de terror, de parte a parte, ou seja, tanto
posição que contrasta com a pós-modernidade inquietante ou de oposição, esta sim representativa de uma teoria
crítica, ainda que pós-moderna porque não subsume sequer o caráter emancipatório da modernidade. Enquanto do ocidente quanto do oriente. Porém, embora como atitude e como
isso, o projeto da hipermodernidade, na linha de Gilles Lipovetsky, defende a tese da inexistência da condição pós- tendência o fundamentalismo possa estar presente em todas as religiões
moderna, uma vez que os pilares da modernidade – indivíduo, mercado e tecno-ciência – não teriam desaparecido
em tempos atuais, tendo apenas assumido a forma exacerbada de lógicas do hiper-indivíduo, do hiper-mercado e práticas espirituais, bem como possa ser encontrado em todos os
e da hiper-tecno-ciência. O projeto transmoderno tem como ponto de partida as utopias factíveis criativamente
formuladas pelos dissensos legitimamente obtidos pelas diversas e heterogêneas comunidades das vítimas, e, ao
sistemas, tanto na cultura, na ciência, na política, no direito, na economia,
mesmo tempo, subsume o caráter emancipatório do projeto da modernidade, rejeitando, todavia, seu conteúdo nem por isso a busca de fundamentos necessariamente significa uma
negativo e mítico de justificação de uma práxis irracional e violenta.

14 15
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

atitude fundamentalista. Há que se distinguir o que é distinguível. A e é o que mais interessa, compreender o sentido da fundamentação
atitude fundamentalista se apresenta em qualquer sistema na medida na crise peculiar dos tempos atuais. Seria isso? Ou então, a questão da
em que alguém ou uma ação se arvora a condição de portador exclusivo fundamentação deve ser abandonada de vez? E se tanto, não seria este o
da verdade ou da solução única para os problemas. Nesse caso, estamos tempo mais adequado para isso? O desafio do tema se apresenta nesse
diante de atitudes fundamentalistas. Pois, em geral, podemos dizer que vazio da liquidez filosófica que acompanha o derretimento de certezas,
o fundamentalismo não é uma doutrina, mas a forma de conceber uma principalmente as hegemonicamente construídas.
doutrina, a forma de compreendê-la, de interpretá-la e principalmente Assim, as reflexões deste texto pretendem investigar, ainda que
a forma de vivê-la, como verdade única, absoluta, fechada e imutável. indicativamente, a possibilidade ou não (critério de factibilidade) de,
Significa assumir a doutrina e suas normas na letra fria com descuido total no campo da filosofia, tendo em vista o estado da arte neste momento,
da história dinâmica na qual se insere, e que exige sua contínua atualização encontrar uma fundamentação para os Direitos Humanos na perspectiva
semântica, diacrônica e diatópica. Ora, não é disso necessariamente que transmoderna e, enfim, verificar como seriam esses fundamentos, e qual
trata o tema da fundamentação. Leonardo Boff, em palestra proferida seria o sentido dessa fundamentação hoje.
no Planetário do Rio de Janeiro, em novembro de 2001, intitulada
Fundamentalismo – a Globalização e o Futuro da Humanidade, ajuda a 2.4. Breve compreensão paradigmática5 da fundamentação. O que se
compreender a diferença que aqui buscamos: pretende mostrar nesse instante está relacionado diretamente ao núcleo
de cada um dos paradigmas filosóficos com a exclusiva finalidade de
Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter caracterizar o movimento que se realiza no processo de fundamentação,
absoluto ao seu ponto de vista. Não é uma doutrina, mas uma forma de além de evidenciar o elemento que confere base à fundamentação, ou
interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas sem cuidar propriamente revelar seu fundamento. Segue resumida caracterização da
de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da
questão em cada paradigma:
história, que obriga a contínua interpretação e atualizações, exatamente
para manter sua verdade essencial.

Portanto, o problema do fundamento não pode ser confundido


5 A noção de paradigma, amplamente utilizada nas mais diferentes áreas do saber, tornou-se usual também
com o tema do fundamentalismo, como se observa. Diante disso, que na Teoria e Filosofia do Direito. Seu uso, no entanto, não é unívoco. Acepções diferentes surgiram no debate
sentido tem a questão da fundamentação, ou como poderia ela ser jusfilosófico atual. Parece, entretanto, poder destacar dois sentidos recorrente: um primeiro sentido tem caráter
epistêmico, exaustivamente explorado; um segundo, nem tão desenvolvido, diz respeito aos paradigmas societais.
sugerida, hoje, sem cair nas armadilhas fundamentalistas com todas as Empresto tal tipologia de Boaventura de Souza Santos (1977). Enquanto os paradigmas epistêmicos estão
suas consequências? Reflexões para essa questão serão examinadas na ligados à transição entre saberes filosóficos, entre uma ciência e outra e entre um paradigma jurídico e outro,
os paradigmas societais referem-se a diferentes formas básicas de organização e vida em sociedade. Apresento
sequência das discussões aqui propostas. alguns esclarecimentos nesta nota sobre o uso da noção de paradigma neste trabalho em conexão com a noção
de perspectiva também útil na análise do tema da fundamentação que tenho como pano de fundo permanente na
2.3. Fundamentação e niilismo. Outro aspecto a considerar, portanto, e reflexão em desenvolvimento. A noção de paradigma, foi recepcionada pela filosofia, ao ponto de Habermas (1990
p. 21-22) fazer alusão ao costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história
preliminarmente, se refere à própria situação em que se encontra a questão da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”. A noção de paradigma,
do fundamento ou da fundamentação em tempos de ceticismo, niilismo, conceitualmente construída por Thomas S. Kuhn (1992), objetiva explicar a transformação do conhecimento
científico através de saltos qualitativos e não de modo cumulativo e contínuo. Afirma que “Um paradigma é aquilo
relativismo, subjetivismo, provisoriedade, tempos de pensamento fraco, que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens
enfim, tempos de pensamento na era pós-moderna, pós-metafísica, que partilham um paradigma” (1992, p. 219). Assim, a ciência apresenta duas fases: a fase da ciência normal e a
fase da ciência revolucionária. Kuhn chama de ciência normal a que se processa enquanto o paradigma é aceito pela
pós-filosófica, como se propaga. Tempos em que a incerteza parece comunidade científica, e, de ciência revolucionária àquela que se processa quando da mudança de paradigma, com
base e nos limites deste novo paradigma. Pode-se dizer que um paradigma consiste num modelo de racionalidade,
ser a única certeza possível. Portanto, a atitude ou a pretensão de se num padrão teórico, hegemônico em determinados momentos da história e aceito pela comunidade que o utiliza
buscar os fundamentos de algo, ainda mais os fundamentos últimos – como fundamento do saber na busca de compreensões e soluções. A aplicação de tal conceito possibilita dizer que
a filosofia desde a Grécia antiga até a atualidade desenvolveu, segundo sugestão de Habermas, os paradigmas do
inultrapassáveis – da vida humana e de toda a realidade, seus primeiros ser, da consciência e da linguagem. O primeiro critério de demarcação anunciado – a questão paradigmática da
ou últimos fundamentos parece tarefa inútil, pretensiosa, temerária, filosofia – levou Habermas (1990, p. 21-22) a mostrar o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito
de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e
quando não insana. É um tempo de quebra de paradigmas, incluídos linguagem”. A Filosofia da Libertação acrescenta um quarto paradigma à essa classificação. Portanto, são quatro
aí também os paradigmas filosóficos. Como compreender o tema da paradigmas. Esse quarto paradigma pode ser denominado de paradigma da vida concreta de cada sujeito como
modo de realidade – ou paradigma da vida concreta. Ou simplesmente paradigma da vida. Ou seja, a divisão das
fundamentação na crise dos paradigmas? Creio que cabe, primeiramente, épocas históricas da filosofia ficaria desenhada com o auxílio de ser, consciência, linguagem e vida. A utilização
dessa noção permite uma reconstrução teórica da compreensão filosófica, especialmente no que tange ao tema da
compreender o sentido no interior de cada paradigma. Para depois, fundamentação. É nesse contexto que o termo será empregado.

16 17
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

(a) Paradigma do ser – a fundamentação ontológica É essa a dinâmica do processo de fundamentação neste paradigma, e
que tem como fundamento o próprio ser.
A ideia de fundamentação, em especial de fundamentação do
conhecimento pode ser encontrada em Parmênides. Exame de seu poema6 Tendo em vista os limites e a finalidade deste estudo, o tema não será
revela indícios sobre a necessidade de um conhecimento qualificado, ao apresentado em outros filósofos nele classificados, em geral dependentes
anunciar: “deves saber tudo”, da “verdade bem redonda” e de “opinião de da fonte parmenídica. Essa tese central torna os filósofos da tradição
mortais”. Também indica os caminhos (métodos): quanto aos caminhos grega, em geral, dependentes da fonte parmenídica indicada, o que
de investigação possíveis, há um que conduz à verdade: “diz que o ser é e permite Habermas (1990, p. 22) afirmar, sempre na lógica do ser, que:
que o não-ser não é”7. O outro, indicado no mesmo Fragmento, “que não
é e portanto que é preciso não ser”. Do mesmo modo, apresenta os tipos Apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do
pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de
de conhecimento (o epistêmico e o dóxico): a deusa diz que este caminho
partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico.
não gera certezas, apenas opiniões. Além disso, uma fundamentação
metafísica do conhecimento, critério último para avaliar determinado Tendo em vista a finalidade deste texto, a conclusão de Habermas
conhecimento, se é verdadeiro ou falso. serve como conclusão para caracterizar o fundamento e o movimento do
processo de fundamentação no paradigma do ser.

Há uma fundamentação metafísica que encontra respaldo no Fragmento


(b) Paradigma da consciência - a fundamentação subjetiva
3 do Poema: “Pensar e ser é o mesmo”. Ao negar a multiplicidade e o
movimento, o filósofo instaura uma forma de compreensão que mede Sob o ponto de vista filosófico, a modernidade se inaugura pela atitude
a experiência pela lógica dos conceitos e não pela lógica dos fatos. crítica de desconstrução do primado do ser sobre o pensamento. Não está
Ao descobrir o conceito de ser, identifica pensar e ser. Portanto, o em crise a necessidade de fundamentação, nem seu sentido, ou então,
conhecimento que gera certezas é fruto de uma operação que é própria da sua finalidade. Apenas expressa o desagrado com a fundamentação até
razão, instaurando um conhecimento racional. E quanto ao fundamento, então elaborada segundo a lógica do paradigma do ser. Portanto, a crise
também será identificado como sendo o Ser, porém não na sua faticidade, relaciona-se à natureza intrínseca da fundamentação até então formulada:
mas enquanto Ideia do Ser. a fundamentação ontológica. No novo procedimento, desde o ponta pé
inicial dado por Descartes ao idealismo alemão, o jogo da fundamentação
Dessa maneira, Parmênides instaura o começo da filosofia como
do pensar tem nova e definida direção: encaminha-se para a consciência
ontologia: “O ser é, o não-ser não é”. O ser é tido como o fundamento dos
do sujeito, ou para o sujeito consciente. Primeiro como razão pura, em
entes. O fundamento do mundo. O que não é ser, não é. É o nada. O ser
Descartes; depois como eu penso em geral, em Kant, para avançar como
não é pensado ou compreendido como um fundamento distante e isolado
interioridade absoluta do eu, em Fichte e alcançar a condição de eu
do mundo. Ao contrário, o ser como fundamento significa que o mundo,
absoluto plenamente acabado, em Schelling; para finalizar como Ideia
os entes, as coisas (tà onta), os úteis (tà prágmata) são vistos, porque
absoluta do processo de totalidade, em Hegel. Nos pensadores centrais
iluminados por ele. Ser e mundo coincidem.
do período, a direção do movimento é sempre a mesma: não mais em
A partir de Parmênides descobriu-se explicitamente a fundamentação direção ao ser, mas em direção à consciência (LUDWIG, 2006, p. 53-54)
ontológica: a compreensão do sentido e da forma dos entes desde o
A menção às concepções de Descartes e Kant, creio, exemplificam
horizonte do ser. O mundo (as coisas-sentido) é concebido nos limites do
teoricamente a mudança de fundamento e, ao mesmo tempo, revelam
ser. O caminho que conduz ao conhecimento verdadeiro conduz ao ser -
a persistência e a nova dinâmica da temática. Algumas características e
lugar epistêmico originário.
breves argumentos mostram o procedimento cartesiano e o kantiano
em torno do assunto. Efetivamente como é sabido, a reflexão cartesiana
6 O poema de Parmênides divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião. parte da facticidade e caminha na direção do pensamento. O movimento
O método do conhecimento verdadeiro estende-se do fragmento 2 ao fragmento 8; o caminho do conhecimento rechaça a faticidade, mostrando sua precariedade, no intuito de instituir
dóxico inicia-se a partir do penúltimo parágrafo do frag. 8. Ver BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. 3a.
ed. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 53-63. o pensamento na condição de fundamento: penso, logo existo. Dussel
7 Fragmento n. 2 do Poema SOBRE A NATUREZA.

18 19
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

(1976, p. 38-39) sugere que é nesse momento que a modernidade jogou (c) Paradigma da linguagem - a fundamentação intersubjetiva
seu destino definitivo, uma vez que o caminho empreendido já não irá Desde as últimas décadas do século XX, a temática da fundamentação
para o ser que se im-põe, mas para a consciência que põe o ser. Em outas volta a ter papel de destaque. Primeiro, a partir da desconstrução. Exemplo
palavras, a modernidade joga seu destino definitivo em virtude da nova de rejeição do fundamentalismo filosófico foi realizada pelo racionalismo
fundamentação lançada. A nova racionalidade concebida tem em sua crítico (Popper, Albert), como é conhecido. A crítica popperiana à metafísica
base o cogito, que por definição, é ponto de partida e de chegada de tudo. racionalista mostra que toda pretensão de fundamentação última cai
Dessa maneira, a subjetividade se define como fundamento, ponta inevitavelmente no trilema münchausiano. Tal ocorre porque ela leva a
pé inicial para novas formas de fundamentação nos limites do novo um regresso ao infinito; ou conduz ao chamado círculo lógico; ou então, o
paradigma, que passou a ser, desde então, hegemônico. procedimento de fundamentação terá que interromper dogmaticamente
o regresso fundacional. Embora concorde com a crítica popperiana nos
Kant amplia o horizonte da questão ao envolver o mundo das coisas que aspetos indicados, a Teoria do Discurso, em especial nas formulações de
são e das que devem ser. Em nova epistemologia, nega a possibilidade de Apel e Habermas, enfrenta o ceticismo como tal. No entanto, esse debate
identificar o fundamento último como sendo um conhecimento objetivo está marcado pela necessidade da mudança paradigmática. É o momento
e das essências, decidindo pelas “condições de possibilidade” como o da construção. A exigência da elaboração de novo paradigma filosófico no
a priori que viabiliza todo conhecimento objetivo. Para ele, o aparato contexto da chamada crise da modernidade e da filosofia da consciência
instrumental cognitivo, seja nas formas a priori da sensibilidade, seja nas reacendeu a discussão em torno da necessidade e da possibilidade da
categorias a priori do entendimento, é transcendental. Nos respaldamos fundamentação, e até mesmo da fundamentação última na atividade da
nas palavras de Kant (2003, p. 58) diz que: “Denomino transcendental a razão. Esta é uma questão que considero crucial na discussão filosófica
todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do acerca dos Direitos Humanos.
nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a
priori”.. Embora o paradigma em pauta não se esgote nisso, será dado maior
destaque a fundamentação intersubjetiva, tendo em vista sua importância
Assim, a conhecida “revolução copernicana do conhecimento” consiste e atualidade. Primeiro, alguns aspectos gerais, e depois em especial os
em reflexivamente encontrar o eu cognoscente como uma estrutura de argumentos de Karl-Otto Apel sobre o assunto.
condições de possibilidade de todo o conhecimento. A transcendentalidade
desses componentes estruturais funda um conhecimento numa regra que Alguns aspectos gerais auxiliam na caracterização desse novo enfoque.
reside no sujeito. Grosso modo, o discurso argumentativo se constitui em mediação
necessária, em lugar intranscendível e em núcleo pragmático, instância
No campo da moral, ao refutar toda fundamentação heterônoma não última de fundamentação.
coloca em questão a possibilidade ou a necessidade de um fundamento.
Sustenta, entretanto, uma nova ordem: a fundamentação autônoma da Isso quer dizer, em primeiro lugar, que toda a fundamentação, seja
moral. A autonomia consiste no fato de o sujeito dar a si próprio a lei da ela de ordem filosófica ou científica, ou de qualquer outra natureza,
conduta. Ao afastar a fundamentação heterônoma, fundou-a na vontade, deve sempre passar pela mediação do discurso. E por que o discurso
na boa vontade. Kant (2004b, p. 21), assim, afirma: Nem neste mundo desempenharia essa função de meio ou mediação necessária? Porque
nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como mesmo em toda crítica cética que tem por objeto a impossibilidade de
bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade. fundamentação existem pressupostas condições de validade inarredáveis.
Pois, aquele que formula um juízo (por exemplo, em que objetiva mostrar
Portanto, tanto no campo da razão pura, quanto na esfera da razão que não existe possibilidade de fundamentação) tem a pretensão
prática, estabelece novo fundamento, seja para o conhecer, seja para o de que seu discurso seja válido, de que faça sentido, de que possa ser
agir. compreendido e que indique uma verdade. Se assim não fosse, o juízo
formulado não atingiria sua finalidade, que é a de realizar uma crítica a
toda tentativa de fundamentação definitiva. A não aceitação disso, teria
como consequência inevitável a descaracterização da crítica como uma

20 21
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

crítica. Portanto, aquele que formula um juízo pressupõe, pelo menos o conceito tradicional da metafísica devem ser abandonados. Apel
implicitamente, que há pretensões. Pretensões quanto ao sentido, quanto o faz e desde o início enfrenta o desafio a partir da própria questão:
à validade, quanto à compreensão, e quanto à verdade. Assim, por justamente por se tratar de fundamentação última existe a necessidade
exemplo, as proposições semânticas podem ser qualificadas como válidas de uma filosofia pós-metafísica (APEL, 1993, p. 306). A crítica desferida
ou inválidas, verdadeiras ou falsas, porque pressupomos a existência de pelos popperianos à estrutura da fundamentação na linha da metafísica
pretensões de validade em toda linguagem. Essa é a razão pela qual o tradicional revelou a impossibilidade de qualquer tipo de fundamentação
discurso desempenha a função de meio ou mediação de toda pretensão última. Os popperianos, com base nessa impossibilidade, abandonam a
levantada, inclusive aquelas pretensões que objetivam a rejeição de toda ideia de fundamentação última.
e qualquer possibilidade de fundamentação. Na contramão, Apel sustenta não só a possibilidade, mas também a
Agora, por que o discurso seria o lugar intranscendível? Porque as necessidade da fundamentação em tempos atuais. Nem mesmo abandona
condições necessárias para a validade de toda pretensão discursiva não a ideia da fundamentação última. Critica a concepção tradicional da
podem ser ultrapassadas, sob pena de incorrer em autocontradição metafísica ontológica. E conclui pela possibilidade e necessidade de uma
performativa. Toda e qualquer tentativa que implica em negar uma filosofia pós-metafísica de fundamentação última, com a exigência de
ou todas as pretensões de validade entra em contradição, pois para se uma nova filosofia. Apel mostra a necessidade8 e, até mesmo urgência,
realizar necessita da presença das próprias pretensões que tenta refutar. de uma fundamentação filosófica específica em nosso tempo, tanto como
Dessa forma, o discurso não pode ser transcendido, pois nele residem tarefa teórica quanto como tarefa prática. Ilustra a questão com a seguinte
as condições irrefutáveis, sempre pressupostas na efetivação de qualquer situação problema:
enunciado.
Que faria um jovem que, na assim chamada crise da adolescência,
E enfim, o que no discurso é intranscendível? A resposta já está chegou ao ponto de problematizar, por exemplo, como Nietzsche todas
encaminhada nos itens anteriores. Cumpre, no entanto, sublinhar o as tradições morais convencionais e que nesta situação levanta a questão:
papel dos pressupostos transcendentais do discurso argumentativo, “Por que em absoluto terei que agir moralmente?” Com uma resposta que
não fornece uma fundamentação última, mas que de antemão se relativiza
no processo de fundamentação. O fundamento não está e não se como condicionada ou passível de revisão? (APEL, 1993, p. 309)
efetiva na presença empírica do discurso, já que este pode ser válido ou
inválido, com ou sem sentido, verdadeiro ou falso, justo ou injusto. Essas Portanto, o que é possível e necessário é uma fundamentação última
condições só podem, em geral, ser avaliadas em situações concretas. No não-metafísica - a pragmática transcendental. As condições da pragmática
entanto, os pressupostos que tornam possíveis tais discursos, esses são transcendental estão contidas na pretensão de verdade e nas regras do
transcendentais, reconstruídos ou reconstruíveis por estrita autorreflexão, discurso. Quanto à fundamentação última, Apel parte da premissa de que
e com tal representam o critério último, enfim, a fundamentação última. faz todo o sentido a exigência de que todos reconheçam a existência de
A autorreflexão mostra a relação necessária entre a fundamentação algo como pretensão de verdade, como vimos anteriormente. Exigência
e o fundamentado. Portanto, no discurso, o intranscendível, porque inafastável no campo da comunicação, sob penas de torná-la impossível
ineliminável, diz respeito não ao discurso em si, mas às condições que o ou, então, configurar a contradição performativa. As regras, inscritas
tornam possível. E as referidas condições não são de natureza metafisica, na linguagem, passam a ser condições normativas da possibilidade da
mas pragmática. As condições transcendentais são da ordem pragmática discussão acerca das proposições com pretensão de verdade. Pois,
e não mais metafísica. enfim, (1o.) todos os participantes do discurso em princípio são iguais
Karl-Otto Apel está convencido da possibilidade e da necessidade desse (e, portanto, não devem ser excluídos quaisquer argumentos); e (2o.) a
novo fundamento, a partir de uma nova concepção de fundamentação, obrigação de todos em argumentar sem violência (aberta ou oculta –
posição que confronta a opinião filosófica hoje dominante. O tema como por exemplo, ofertas de negociação e/ou ameaças).
consiste em enfrentar o desafio da possibilidade ou não de uma 8 A preocupação em testar os argumentos tem o sentido de prevenir ataques contrários, seja dos céticos, seja
fundamentação última não-metafísica, no contexto da filosofia atual. dos cínicos. Por isso, encontramos a postura em Apel, em Habermas e em Dussel, entre muitos outros. O cuidado
metodológico, portanto, se justifica ante tal possibilidade, motivo que leva a considerar alguns pensamentos nessa
Sabemos que o pensamento da fundamentação última e, assim também, linha, como é o caso dos defensores do princípio do falibilismo sem limites, que não apenas consideram uma
fundamentação filosófica última de princípios de conhecimento impossível, mas também desnecessária. (APEL,
1993, p. 310).

22 23
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

Ainda assim, esse novo quadro exige redefinição da concepção de histórica e social, assim como fazem Hegel, Heidegger, Gadamer e todos os
fundamentação até então utilizada. Sem tal medida, o processo de filósofos comunitaristas. Em outras palavras, o princípio está enraizado na
fundamentação seguirá inevitavelmente o caminho que leva ao trilema de faticidade. Portanto, não se origina no ideal ou no transcendental, como
Münchhausen (Hans Albert). Pois, o tradicional conceito de fundamentação na razão comunicativa de Habermas e de Apel, ou na proposta na linha da
se define como “dedução de um algo de outro algo”. Ora, este conceito tradição liberal de um Rawls. De outra parte, ainda metodologicamente,
não pode ser subsumido pela fundamentação pragmático transcendental. nessa dialética não se permanece imerso na tradição como o fazem os
A formulação de Apel (1993, p. 317) consiste no recurso reflexivo sobre comunitaristas. A sistemática negação da exterioridade é o ponto de
as condições de validade da argumentação, e em consequência, a partida. Dessa maneira, sem abandonar o real concreto (a injustiça da
fundamentação não se define como derivação de algo de alguma coisa exclusão do mundo da vida, sentida na corporalidade), a razão histórica
diferente e, com isso, não retrocede em seu proceder ao infinito. Pois, enquanto exterioridade constrói categorias pragmáticas com pretensão
a fundamentação requer apenas a certificação das pressuposições que de universalidade, que se projetam bem além de qualquer télos histórico-
não podem ser refutadas, sob pena de autocontradição performativa. concreto (DUSSEL, 1995, p. 97).
Dessa maneira, Apel (1993, p. 322) reconhece pela reflexão a existência É na e pela categoria da exterioridade que se manifesta o princípio
de pretensões universais de validade que fazem parte do argumentar e, da exclusão como fonte originária instranscendível da possibilidade
ao mesmo tempo, são condições irretrocedíveis (nichthintergehbaren), e e necessidade de afirmação da negação perpetrada pela lógica da
nesta medida, não-contingentes do conhecimento válido do contingente, o totalidade. Ou então, a afirmação do outro enquanto outro, isto é,
que implica na guinada linguística da filosofia, ou filosofia da comunicação. em sua exterioridade e não na semântica da totalidade, é a origem da
O sentido de uma fundamentação pragmática nos interessa sobremodo possibilidade da negação da negação dialética: afirmação analética da
para o tema que estamos enfrentando, qual seja o da fundamentação dos exterioridade. Essa exterioridade analética10 como afirmação (afirmação
Direitos Humanos, que será posteriormente retomado. de sua dignidade, de sua liberdade, de sua cultura, de seus direitos, de
seu trabalho - trabalho vivo, primeiro, e fonte de todo valor) é condição de
possiblidade de mudança. Para exemplificar, pode-se dizer que além da
(d) Paradigma da vida - a fundamentação na alteridade negada totalidade jurídica vigente não haveria direito, a não ser o já admitido pela
Agora a pretensão é apresentar um pequeno esboço de fundamentação lógica do próprio sistema, o que em última análise implica em renovação
no contexto da razão situada para além da lógica da totalidade, no possível apenas segundo critérios autopoiéticos do sistema dominante.
sentido de estar para além da fundamentação ontológica, subjetiva e No caso da fundamentação analética não. Portanto, a questão da
intersubjetiva. Trata-se de uma superação paradigmática no sentido fundamentação dos Direitos Humanos não se encontra esgotada.
filosófico. Como mencionamos em outro texto9, não se trata de lógica Outro exemplo teórico da ideia básica de fundamentação do direito na
maniqueísta na relação entre totalidade e exterioridade, entre centro racionalidade do outro (na concepção filosófica da exterioridade) pode ser
e periferia, entre inclusão e exclusão e assim por diante. Pretende- visto na seguinte moldura: o outro enquanto exterioridade irrompe como
se, pressupostas as idiossincrasias das sociedades e culturas situadas de uma espécie de nada (sem as determinações semânticas da lógica da
além do horizonte dos centros dominantes, esboçar o sentido de uma totalidade dominante), - do infinito, como quer Levinas – o de outro modo
fundamentação na perspectiva da libertação, na dinâmica do horizonte da que ser. O princípio básico é o da libertação da exclusão; libertação da
racionalidade negada, ou no sentido do paradigma da vida, evidenciando miséria e da opressão das lógicas de dominação no plano concreto: este
a dimensão da vida negada. é o fundamento - razão do outro enquanto exterioridade. É a vida como
A partir e para além do paradigma da linguagem é preciso anunciar, no modo de realidade de cada sujeito em comunidade. Positivamente, vida
entanto, o principiuim exclusionis (DUSSEL, 1995, p. 113). Tal princípio tem afirmada. Negativamente, vida negada.
sua referência na vida real, empírica, enfim, concreta das comunidades, em Não é o momento de explicitar cada um dos necessários fundamentos
especial as latino-americanas e caribenhas (e analogicamente, africanas para preservar a condição da vida afirmada, e desenvolver cada um dos
e asiáticas). Metodologicamente, a reflexão parte de uma faticidade
10 “El pueblo, como colectivo histórico, orgânico - não sólo como suma o multitud, sino como sujeto histórico con
9 Ver LUDWIG (2006). memoria e identidad, con estructuras proprias - es igualmente la totalidad de los oprimidos como oprimidos en un
sistema dado (...), pero al mismo tiempo como exterioridad”. DUSSEL (1985, p. 411)
24 25
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

necessários fundamentos para transformar a condição da vida negada. fundamentos é um momento necessário para a afirmação (preservação)
No entanto, em forma de anúncio, a arquitetônica do tema fica apenas da vida, sempre (tempo) e onde (espaço) há vida afirmada, e também um
sugerida. momento necessário para a negação (transformação) da negação da vida,
sempre (tempo) e onde (espaço) há vida negada.
Primeiro, como ideia central o problema da fundamentação é visto
desde uma atitude multifundamental. A complexidade da vida requer Nessa dinâmica, haverá, portanto, a necessidade de uma fundamentação
vários e distintos fundamentos em seu desdobramento e sempre estar positiva e também uma fundamentação negativa, no que diz respeito
aberta para novos fundamentos. ao princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida
humana concreta de cada sujeito em comunidade. E de igual modo, haverá
Segundo, a fundamentação é concebida nos diferentes campos a partir
a possibilidade e necessidade de uma fundamentação positiva e também
de fundamentos que são os pressupostos, condições intrínsecas – porque
uma fundamentação negativa do Direitos Humanos.
operam implicitamente - constitutivas da existência originária dos demais
campos ou mesmo sistemas (como por exemplo, o ético, o político e o
jurídico). Tais princípios orientam a ação em geral, servem como referência. 3. A fundamentação do Direitos Humanos
São necessários com a finalidade de estabelecer marcos estritos, firmes,
O que ocorre com os Direitos Humanos? A atenção a um recorte
bem sólidos para a atividade prática, tanto no que se refere aos fins a
particular desta pergunta implica em dizer que ocorre aos direitos
alcançar como aos meios de luta utilizados, e, por derradeiro, aos modos
humanos – consideradas as épocas históricas específicas – a lógica da
de luta (Luxemburgo 1990, p.118). Trata-se de uma fundamentação
totalidade própria de cada paradigma em jogo, seja ele filosófico (recorte
principiológica, não-metafísica, com fundamentos múltiplos e com níveis
da presente análise), seja ele societal, no atual processo de globalização
de abstração distintos.
e exclusão. Vale dizer que ocorre aos direitos humanos o que ocorre aos
Terceiro, a multifundamentação tem na vida concreta seu critério- seres humanos submetidos ao impacto das lógicas reais produzidas pelo
fonte. Esse critério fonte serve como referência de todo ato, norma, processo que hoje tem a assinatura da globalização e da exclusão. Assim,
estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Trata-se da vida humana falar de direitos humanos significa falar da vida concreta dos sujeitos
em comunidade. É o modo de realidade do sujeito – individual e coletivo em comunidade como modo de realidade. Enquanto vida afirmada,tem
- nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da o sentido do respeito e da efetividade dos direitos humanos. Enquanto
exclusão. Mais concretamente, o que importa é a produção, reprodução vida negada, tem o sentido do desrespeito e da inefetividade dos direitos
e desenvolvimento da vida de cada sujeito. Nessas três determinações humanos. Significa falar da dignidade humana violada ou ameaçada por
centrais, o sujeito humano em comunidade precisa ter objetivamente um sistema mundo que se impõe com sua lógica e suas leis próprias,
satisfeitas certas condições que servem de mediações adequadas para numa espécie de autopoiese, que mundialmente passa por sobre grande
viabilizar sua vida. Condições essas que, se não forem levadas em conta, parte dos seres humanos, produzindo vítimas, em sua maioria talvez não-
acarretam negações a aspectos da vida e, no limite, fatalmente levam à intencionais. Mesmo assim, vítimas – vida negada. A existência maciça
morte (negação do critério fonte e da condição de possibilidade). Trata-se de vítimas exige, em especial para o mundo sul, em relação aos direitos
da originária e genuína vulnerabilidade da vida do sujeito. O critério assim humanos, uma filosofia crítica que ultrapasse o horizonte da totalidade
desdobrado conduz ao princípio geral e crítico: o princípio da obrigação dos paradigmas filosóficos de centro, bem como a autopoiese fechada
de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada da totalidade do debate entre modernidade e pós-modernidade ou, no
sujeito em comunidade. máximo, admitido da hipermodernidade. Portanto, uma filosófica crítica
transmoderna ou descolonial dos direitos humanos.
Quarto, a atitude multifundamental desde o critério-fonte anunciado,
passando pelo princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver
a vida, chega positivamente ao fundamento material, ao fundamento 3.1. A possiblidade e a necessidade de fundamentação transmoderna dos
formal e ao fundamento do factível (possível). E chega negativamente direitos humanos
à crítica do fundamento material, à crítica do fundamento formal e à É conhecida a tese de Bobbio – que enuncio aqui livremente - de
crítica do fundamento do possível - o princípio libertação. Cada um desses que o problema dos direitos humanos não estaria mais na ordem da

26 27
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

fundamentação, mas na esfera da aplicação. Ou então, não mais na Portanto, para acentuar, estamos diante de uma realidade global, na
necessidade de sua justificação, mas, precisamente, na urgência de sua qual, enquanto 20% mais abastados da humanidade consome 82% dos
efetivação. Cabe protegê-los, afirma. Enfim, a questão central sobre os bens, os 60% mais pobres consomem 5,8% desses bens.
direitos humanos não estaria na esfera da filosofia, mas na esfera política. Ou ainda, nessa lógica global do mundo, as vítimas, na idade da
Não seria uma questão teórica, mas prática. globalização e da exclusão, alcançam quadros que impressionam
Embora se deva reconhecer que existem sérios problemas relacionados (POCHMANN, 2004, p. 56):
à proteção dos direitos humanos em suas mais diversas dimensões, a
questão filosófica de longe se encontra esgotada. O mundo moderno está longe de ser um lugar onde a pobreza e a exclusão
social estejam sendo vencidas. Na verdade, as antigas regiões pobres
No caso do terceiro mundo, dos países periféricos e semiperiférico, situadas entre os trópicos são as mesmas que hoje apresentam os piores
em especial da América Latina e Caribe, a centralidade da questão – bem indicadores de exclusão social. Aliás, entre os 40 países com os piores
destes valores, 82,0% deles estão na África, 7,5% na América, 7,5% na
como sua problematicidade mais dramática – pode ser conduzida pela Oceania e 2,5% na Ásia.
reflexão na tríplice orientação dos direitos humanos: (a) desde onde se
consideram; (b) para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam.
Os 40 países com os melhores valores no IES11, estão distribuídos
Ellacuria (1990, p. 590), em suas reflexões sobre o tema, adverte que desigualmente pelos cinco continentes (70,0% deles na Europa, 17,5% na
o desde onde, o para quem e o para que devem estar muito claros e Ásia, 5% na América, 5,0% na Oceania e apenas 2,5% na África).
explícitos no processo de fundamentação dos direitos humanos.
Entre os dois extremos, há 95 países que se encontram em posições
Em outros termos, estamos diante da questão do sujeito ou dos intermediárias, com um IES variando de 0,855 a 0,509. Neste bloco, aliás,
sujeitos da reflexão filosófica. Pelo visto até agora, a perspectiva da localiza-se a maioria dos países da América Latina, como por exemplo,
reflexão permite dizer que estamos diante do sujeito ou dos sujeitos da Argentina (57ª. posição), Uruguai (58ª. posição), Chile (68ª. posição), Costa
fundamentação filosófica transmoderna. Quem são esses sujeitos? Rica (69ª. posição), Peru (81ª. posição), Brasil (109ª. posição) e Colômbia
(111ª. posição).
Porém, antes de investigar a determinação específica desse ponto de
partida, cabe estabelecer o seguinte juízo de “fato” com pretensão de Enfim, observando o IES, o que se percebe é a existência de “ilhas” de
verdade: vivemos uma violação massiva e radical da condição humana. inclusão em meio a um “oceano” de exclusão em todo o planeta. Ou,
Enfim, experimentamos uma violação dos direitos humanos, seja na ordem mais propriamente, nas regiões em torno ou abaixo do Trópico de Câncer.
Isso se repete, também, no estudo da maioria dos índices parciais que
nacional, regional ou na ordem internacional nunca antes vista, e essa
compõem o IES.
violação está atualmente na esfera da não satisfação das necessidades
básicas da maior parte da população mundial, particularmente do mundo Ou ainda o mesmo autor diz que:
periférico e semiperiférico.
Dois bilhões e setecentos milhões, cerca de 50,0% da população mundial.
Há muitos e variados estudos estatísticos que indicam o quadro Esse é o número aproximado de pessoas que vivem com menos de dois
mencionado. Apresento um deles para ilustrar um possível enfoque da dólares por dia, consideras aqui miseráveis e pobres.
situação no sentido geral e global:
Dos 40 países com os piores valores no Índice de Pobreza, ou seja, com
Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o maior número relativo de miseráveis e pobres, 27 encontram-se na África,
Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35) das Nações Unidas que 8 na Ásia, 3 na Oceania e 2 na América. Nesses países, mais de 80 em cada
os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os 100 habitantes vivem com até 2 dólares por dia. Zâmbia (175a. posição),
Estdos Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os Nigéria (174a. posição) e Mali (173a. posição) lideram o ranking dos piores
60% mais pobres ( a “periferia” história do “Sistema-Mundial”) consome valores no Índice de Pobreza. Nesses países, especificamente, 90 em cada
5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da 100 pessoas vivem com até dois dólares dia.
humanidade!

11 Índice de Exclusão Social (IES)

28 29
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

Entre os países do ranking situados em posições intermediarias, encontra- produz em sua lógica e em sua práxis relações sociais e sistêmicas de
se a maioria dos países da América Latina. É lá que está o Brasil, ocupando massiva violação dos direitos humanos. Produz relações de negação da
a 71ª. Posição. De cada 100 brasileiros, cerca de 24 vivem com até 2 mais elementar condição humana. E nas perspectivas das causas, a fonte
dólares dia, ou seja, são miseráveis ou pobres. Outros países latino-
americanos, como Cuba (44ª. posição), Bahamas (46ª. posição), Argentina maior dessas violações, ou seja, aquela que supõe a violação mais grave
(48ª. posição), República Dominicana (57ª. posição), Chile (60ª. posição), e está na raiz das demais violações, é a violência estrutural: a violência
México (73ª. posição), Panamá (74ª. posição) e Jamaica (76ª. posição) da civilização do capital (quiçá moderna) que coloca a imensa maioria
também se situam no bloco intermediário da pobreza. da humanidade em condições biológicas, econômicas, sociais, políticas,
culturais e jurídicas em rigorosa precariedade, em condições desumanas.
Finalmente, dentre os 40 países com os melhores valores no Índice de É essa a violência estrutural fundamental e é dela que decorre uma
Pobreza, 24 estão localizados na Europa, 8 na Ásia, 4 na América e 2 exigência crítica de denúncia constante. Decorre uma exigência ética de
na África. Aliás, entre as primeiras posições no ranking, só há países
europeus: Bélgica (1a. posição), Dinamarca (2a. posição), Finlândia (3a. responsabilidade pelos efeitos negativos gerados pela lógica do capital.
posição), França (4a. posição), Alemanha (5a. posição), Luxemburgo (6a. Decorre dela uma exigência político-jurídica pela violação estrutural dos
posição), Holanda (7a. posição), Noruega (8a. posição), Suécia (9a. posição), direitos humanos.
Suíça (10a. posição). Nesses países, de cada 100 habitantes, apenas 1 vive
com até dois dólares por dia. (POCHMANN, 2004, p. 58) Segundo, mais recentemente, embora já se trate de um processo que
se alonga no tempo, o mundo periférico e semiperiférico, e aqui também
Ou, considerando o critério da desigualdade existente no mundo, cabe a referência especial à América Latina e ao Caribe, experimenta
temos (POCHMANN, 2004, p. 62): os efeitos da estratégia da globalização de forma extrema e radical. O
chamado terceiro mundo é por excelência o lugar da violação dos direitos
A população total residente nos 40 países com os piores valores humanos. Em nenhuma parte há tantas vítimas como no terceiro mundo,
no Índice de Desigualdade soma 841 milhões de pessoas. Essa embora toda a retórica de exaltação dos direitos humanos. Essa é, sem
soma corresponde a quase 14% da população do planeta. Ou seja,
dúvida, uma das estratégias mais visíveis da globalização. Afinal, tudo
de cada 100 pessoas, 14 moram em algum dos 40 países mais
é feito em nome dos direitos humanos, e da proteção da natureza. No
desiguais do mundo. Distribuídos por quatro dos cinco continentes
(24 na África, 2 na Ásia, 1 na Oceania e 13 na América), tais paises entanto, o que o processo de globalização mantém e até mesmo acelera
são liderados pela Namíbia (175a. Posição do ranking), seguida por e intensifica, é a mencionada violência estrutural fundamental, de onde
Lesoto, Honduras, Paraguai, Serra Leoa, Botsuana, Nicarágua, emanam as violações relacionadas à dignidade humana. Na América Latina
República Centro Africana, Brasil, África do Sul e Guiné-Equatorial, em especial, a estratégia da globalização consistiu nos chamados ajustes
respectivamente entre as 174a. e 165a. posições. estruturais relacionados a três dimensões da sociedade (Hinkelammert,
1999, p. 239 e segs). Estas relacionadas com a abertura tendencialmente
É esse o retrato a partir de apenas alguns dados estatísticos. No entanto, ilimitada ao capital financeiro e às mercadorias, à reestruturação do
eles já são suficientes para ilustrar a tese acima mencionada. Estado e imposição da lógica das privatizações, que resultam em nova
Dois aspectos de extrema importância para a ordem de ideias em fonte de acumulação originária, e a flexibilização da força de trabalho, com
consideração merecem ser destacados. as consequências que daí decorrem na ótica da violação de direitos e da
fragilização da organização coletiva das forças sindicais dos trabalhadores.
Primeiro, é imperioso dizer que estamos diante de uma crise de
Essa imposição dos ajustes estruturais vem acompanhada da propagação
realidade. Não se trata de um problema que se coloca na ordem da
da ideologia da competitividade e da eficiência. Instaura-se uma guerra
eficácia ou ineficácia de determinado campo de atuação, seja ele político
econômica. A questão toda está centrada na estratégia da vitória. É isso
ou normativo. Para exemplificar, a dramaticidade do problema não
que interessa. Vence quem consegue eliminar as distorções do mercado.
diz respeito apenas, nem sequer em seu cerne, a eventuais ou reais
Essa é a razão porque a questão das distorções do mercado assume
deficiências de políticas públicas relacionadas à proteção dos direitos
uma importância central: a lógica real do processo de globalização se
humanos - isso também existe -, ou a eventuais ou reais defasagens ou
expressa mais nitidamente em termos de eliminação das distorções do
injustiças na ordem da positivação no campo do direito. O que o ocorre
mercado (HINKELAMMERT, 1999, p. 240). As distorções são fricções que
é que a civilização do capital - para outros a civilização moderna - é que

30 31
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

devem ser eliminadas. Quanto menos fricções, melhor o funcionamento A resposta não pode ser outra senão a que se orienta para o sujeito ou
da máquina, que autopoieticamente vai se aperfeiçoando. Quanto os sujeitos da fundamentação dos direitos humanos ou, propriamente,
menos fricções, mais perfeito o sistema. As distorções são muitas e há, para os sujeitos dos direitos humanos, que são todos os oprimidos
entre elas, as que dizem respeitos aos direitos humanos. Na estratégia e excluídos; os que têm a sua condição de sujeitos autônomos e livres
da globalização, os direitos humanos, em sua totalidade, são vistos como negada na e pela estratégia da globalização.
distorções do mercado. E, como tal, o aperfeiçoamento da máquina, ou A questão dos direitos humanos, ao lado de todos os importantes
seja, a engrenagem do mercado no processo de globalização vai também debates e posições teóricas, desde o universalismo abstrato, passando
eliminando as fricções que causam a violação dos direitos humanos. No pelo comunitarismo, à posições da razão discursiva habermasiana, aos
entanto, enquanto isso não acontece, ocorre um choque entre os direitos enfoques dos multiculturalismos, - todos com valiosas contribuições -, é
humanos e a lógica do processo de globalização. O choque é evidente. E possível e necessário ir ao cerne do problema, ir à sua raiz, e demarcá-lo
isso acontece exatamente na sociedade de um mundo globalizado que no contexto da vida negada - que de algum modo é contexto de morte
fala dos direitos humanos numa intensidade jamais vista anteriormente. - das maiorias excluídas e oprimidas, e das minorias discriminadas e
Afinal, todos estão preocupados com os direitos humanos. Vencedores perseguidas.
e vencidos. No entanto, a concepção que as pessoas têm dos direitos
humanos certamente não é a mesma. Há uma compreensão, um uso e uma Esses são os sujeitos do filosofar transmoderno ou descolonial. Esses são
práxis ambígua nesse terreno. Tanto vencedores quanto perdedores nesse os sujeitos dos direitos humanos na perspectiva da filosofia transmoderna
processo de globalização falam de direitos humanos. Falam, no entanto, e descolonial. Direitos humanos que se definem desde tais sujeitos, para
de perspectivas distintas. A atual estratégia de globalização compreende tais sujeitos, e para que a vida negada desses sujeitos tenha a esperança
os direitos humanos como direitos do proprietário. Direitos humanos que de se tornar vida afirmada. É esse o ponto de partida da afirmação
têm sua raiz num mundo pensado como mercado e, agora, como mercado histórica dos direitos humanos na ordem da práxis libertadora frente a
globalizado. Direitos formulados desde onde? Desde o mercado. Direitos práxis de opressão e exclusão, na estratégia capitalista de globalização.
formulados para quem? Para o proprietário. Direito formulados para As negatividades (tais como fome, miséria, pobreza, dor, doenças,
quê? Para a relação mercantil, econômica. Ou seja, para o mercado. O analfabetismo, desnutrição, discriminação cultural, social e sexista, étnica,
âmbito da liberdade é o mercado. Ocorre uma extremada redução dos opressão política e ideológica), ou então, toda negatividade é o desde
direitos humanos ao direito de propriedade. Assim, direitos humanos e onde – lugar de fundamentação e legitimidade da exigência dos direitos
direitos de mercado acabam identificados por inteiro. Não se pensam humanos -, é o para quem – subjetividades com a vida negada pelo
direitos humanos para além do mercado. Ou então, menos ainda, direitos mercado globalizado, fonte legitima da exigência dos direitos humanos
humanos contra o mercado. A formulação dos direitos humanos desde e -, e é para quê - necessidade de negação da negatividade, exigência de
nos limites do mercado, para os sujeitos do mercado, e com a finalidade afirmação dos sujeitos, esses sim, fonte dos direitos humanos, antes,
da permanente produção, reprodução e desenvolvimento autopoiético depois e mesmo contra o mercado.
do mercado, exclui de sua lógica a possibilidade e necessidade de uma É tal contexto que exige a ampliação da questão concernente aos
concepção e fundamentação diferente dos direitos humanos. Talvez, por direitos humanos. Não se pode entendê-la nos estreitos limites da esfera
essa razão, a dramaticidade do problema dos direitos humanos esteja da aplicação, ou a um problema de ordem prática, porque alguma coisa
reduzida à dimensão política da necessidade de sua proteção. está desajeitada, desajustada, inadequada; ou mesmo reduzi-la à esfera
Feitas as rápidas observações nesses dois aspectos, é hora de voltar da proteção. Tudo está definido em termos de direitos humanos, só não
para a questão do tríplice aspecto da fundamentação na perspectiva que estão sendo protegidos como deveriam, havendo atritos intrassistêmicos.
aqui interessa. Afinal, em nosso caso, como responder ao problema da Portanto, retomando a ideia aqui defendida, a dramaticidade do
fundamentação dos direitos humanos: (a) desde onde se consideram; (b) problema dos direitos humanos está na ordem da fundamentação e nesta,
para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam, numa perspectiva especificamente, no momento da factibilidade.
que não seja a da lógica do mercado na estratégia de globalização atual?

32 33
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

4. Conclusão Franz Hinkelammert (1999, p. 248) o que podemos, no entanto, afirmar é


que uma ação alternativa só pode consistir de uma ação coletiva. Nesse
A violação massiva dos direitos humanos ocorre porque não são
caso, a exigência de uma ação coletiva contra-hegemônica é a condição
factíveis no mundo do capitalismo, especialmente, agora, com a
de possibilidade necessária para enfrentar aquelas forças que, por sua
globalização e sua específica estratégia. A factibilidade situada na ordem
vez, resultam da supressão da ação coletiva. Tal processo envolve, como
da fundamentação permite examinar criticamente se a aplicação ou a
pondera nosso pensador, a ação solidária. E esta ação coletiva, no entanto,
proteção dos direitos humanos é negligenciada em razão de desajustes,
na estratégia hoje dominante, desemboca também nas dimensões globais,
distorções, fricções intrassistêmicas, ou se a violação é inevitável, porque
sem as quais não pode ser efetiva. É o paradoxo a ser enfrentado.
na totalidade do capital globalizado sua proteção não é possível. Pois,
como já vimos, a concepção e fundamentação dos direitos humanos, no
sentido hegemônico, têm sua origem no mercado e seu destino é o da Referências
preservação do mercado. Resulta daí sua impossibilidade. Na concepção
ALBERT, Hans. Tratado da razão critica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
e fundamentação crítica contra-hegemônica têm sua origem na vida
negada, e seu destino é a vida dos sujeitos antes, depois e mesmo contra APEL, Karl-Otto e outros. Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación. México:
Siglo Veintiuno, 1992.
o mercado. Portanto, desde onde, para quem e para que os direitos
humanos devem existir. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 2 v.

Nessa ótica, o modelo dos direitos humanos na concepção da civilização APEL, Karl-Otto y DUSSEL, Enrique. Ética del discurso y ética de la liberación. Madrid:Trotta,
2004.
ocidental, ou seja, como núcleo de legitimidade do ideal prático da
civilização do capital, agora globalizado, tem elementos de falsidade APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica? In: STEIN, Ernildo e boni, Luis A.
de (org.). Dialética e liberdade. Petrópolis: Vozes, 1993, 305-326.
que deslocam a problematicidade dos direitos humanos apenas para a
dimensão de sua proteção. Assim, o contexto exige a crítica material com ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
o objetivo de reivindicar conteúdos com pretensão de verdade contra- BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de
hegemônica, em especial os das necessidades básicas, sem a satisfação Janeiro: Sextante, 2002.
das quais a vida, nesse seu momento, estará sujeita a negação absoluta. DESCATES, René. Discurso sobre o método. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
É necessária a crítica formal, porque há elementos indicativos de uma DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1984.
injustiça estrutural como nunca antes visto e, portanto, de perda da
DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1976. 292.
legitimidade, agora caracterizada como invalidade dos procedimentos
hegemônicos. E por fim, impõe-se o princípio da factibilidade crítica, eis DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, 1977.
que se o existente não permite estruturalmente a proteção dos direitos DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana. São Paulo: Loyola, s.d.
humanos, porque concebido e fundado na lógica do mercado globalizado, 5 v.
o novo factível requer nova concepção e nova fundamentação, que DUSSEL, Enrique D. e outros. Fundamentación de la ética y filosofía de la liberación.
permita a efetividade dos direitos humanos. México: Siglo Veintiuno, 1992.

Cumpre, aqui, esclarecer que se é certo que não se pode cair na ilusão DUSSEL, Enrique D. Hacia uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001.
filosófica ingênua de que a fundamentação leva espontaneamente à DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação - na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
realização, também é certo que o exercício filosófico crítico pode mostrar Vozes, 2000.
a falsidade, a ilegitimidade e a impraticabilidade de um projeto que, ELLACURÍA, Ignacio. Historización de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos
equivocadamente, pretende se afirmar em nome dos direitos humanos, y las mayorías populares (1989). ECA, 502,1990.
quando a rigor opera a lógica de sua impossibilidade. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
Há que pensar alternativas a partir dessa situação. Com a crise das HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
utopias modernas, e certa descrença pós-moderna nas metanarrativas, HABERMAS, Jürgen.Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
não sabemos ao certo quais poderiam ser tais alternativas. Segundo Tempo Brasileiro, 1997. 2v.

34 35

Você também pode gostar