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Padre

Agnelo
Filinto
O missionário espirituoso
que veio da Índia
A reportagem “Padre Agnelo Filinto: O missionário
espirituoso que veio da Índia” é parte de uma série
mais abrangente, “Santa Cruz de perfil” (de retratos
diversos, com padres e educadores – professores e
funcionários – da escola), que se propõe a reunir e
recuperar a história do Colégio. Esta edição foi redigida
por Camilo Vannuchi. Setembro de 2023
Padre
Agnelo
Filinto
O missionário espirituoso
que veio da Índia

Nascido em Goa, território de dominação portuguesa


na Índia, Padre Filinto veio ao Brasil nos anos 1980
para assessorar Padre Corbeil, então diretor do Colégio.
Afetuoso e brincalhão, tornou-se a principal referência
religiosa no Santa durante a transição para uma
direção laica – e o preferido dos alunos para celebrar
casamentos e batizados.

Por Camilo Vannuchi

Santa Cruz de perfil 1


2 Colégio Santa Cruz
— Ficou de recuperação? Em quantas matérias?
O interrogatório era conduzido por um padre de 1,65 metro de altura
e sotaque engraçado. Não um sacerdote de batina e colarinho clerical,
mas um padre vestindo camisa listrada e de mangas curtas, aberta até
o segundo botão, e que tinha a devotada mania de perambular pelo
pátio conferindo o desempenho de alunas e alunos. Numa espécie de
santa inquisição cordial e amorosa, a pena era atribuída e aplicada por
ele mesmo – a um só tempo promotor, juiz e delegado, de acordo com
o histórico escolar da pessoa investigada.
— Quantas notas vermelhas? — ele insistia, apertando o braço do
menor infrator.
— Três, padre; só três — o réu confessava. Onde já se viu mentir
para padre?
Soc, pow, crash!
Com o olhar muito sério, o padre aplicava o castigo ali mesmo, à vista
de todos: três socos, um para cada D no boletim, na região do braço
onde a maioria de nós exibe o sinal da vacina BCG.
— Nada de tirar D no próximo boletim, hein? — cobrava, casmurro.
Depois sorria, relaxava a sentença, bagunçava o cabelo do jovem
recém-anistiado e aplicava-lhe um tapão nas costas antes de partir em
busca da próxima vítima. Quando via alguém jogando pingue-pongue,
distraía-se e abandonava a blitz. Aproximava-se, pedia para jogar e
entrava na fila. A turma achava graça, pronta para dar uma surra no
padre – uma surra no jogo, que fique claro. Mas que nada. Aquele padre
de 1,65 metro e sotaque engraçado sabia jogar. Imprimia cada efeito na
bolinha que sempre deixava algum adolescente perplexo.
Padre Filinto aparecia poucas vezes em sala de aula e nunca esteve
à frente de uma disciplina. Por alguns anos, nas participações episó-
dicas que fazia nas aulas de filosofia do Ensino Médio, não era de se
aprofundar em assuntos teológicos complexos ou discorrer sobre as
obras de Tomás de Aquino ou Teilhard de Chardin. Nunca demonstrou
ter a densa erudição de Padre Paul-Eugène Charbonneau, escritor e

Santa Cruz de perfil 3


conferencista que se tornou a maior referência intelectual do Colégio,
tampouco o talento para a administração de Padre Lionel Corbeil, fun-
dador do Santa. Sua relação com os alunos era construída assim, no
dia a dia, fazendo coisas de que até Deus duvidava. Um padre que tira
onda, que joga, que faz piada com a própria autoridade, como pode?
Às vezes, chegava à escola numa moto vermelha. Nos anos 1990,
havia ruas dentro do campus, duas vias em forma de cruz. A principal
ligava, em linha reta, o único portão da Avenida Arruda Botelho ao
principal portão da Rua Orobó, separando geograficamente o pavilhão
do Ensino Fundamental, de um lado, e o pavilhão do Ensino Médio,
de outro. Essa rua era atravessada por outra, que ligava o pátio azul
ao campão, separando o ginásio de esportes do prédio do colegial. Até
a construção da garagem subterrânea, em 2016, professores e demais
funcionários estacionavam seus carros nessas ruas. Padre Filinto en-
costava sua moto e era logo assediado.
— Padre, padre, me leva na garupa? — eram três ou quatro pedidos
toda semana. E lá ia o padre, dar uma volta. Até que o então vice-diretor
e hoje diretor do Colégio o flagrasse.
— Padre, você não pode andar de moto com aluno sem capacete
dentro da escola — Fábio Aidar alertava.
Padre Filinto sorria de volta, encabulado. Reconhecia o erro e en-
cerrava a brincadeira. “Tá, tá”, dizia. Mais tarde, quando o encontrava
novamente, argumentava que o diretor pegava no seu pé por inveja.
— Naquela porcaria de moto que você tem ninguém quer andar...
O diretor não perdia a esportiva:
— Eu tenho uma Biz 100, a melhor das motonetas; você tem uma
Honda 125, a pior das motos.
Em conversa de entendidos, aptos a disputar cilindradas como quem
joga Super Trunfo, a garotada não metia a colher. Mas achava irado
aquele lance de padre andar de moto, jogar pingue-pongue e sair por
aí distribuindo socos nos braços de quem não mandou bem nas provas.
Nas décadas anteriores, Padre Charbonneau já havia conquistado a

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empatia dos alunos ao jogar handebol, lutar boxe e disputar cabo de
guerra com eles, entre gargalhadas e provocações. No filme Machuca,
de 2004, escolhido para representar o Chile na disputa pelo Oscar, o
padre-diretor de um colégio católico de Santiago, personagem inspirado
num diretor do Colégio Saint Georges, também da Congregação de Santa
Cruz, disputava corridas com os alunos – e, invariavelmente, largava
na frente, numa prosaica trapaça feita sob medida para provocar afeto
e indignação, como mostrado numa cena memorável do filme.
Padre Filinto transitava por esse imaginário. Apresentava-se para
jogar futebol quando via a turma se divertindo no recreio. Gostava de
ficar na banheira, paradão, e converter assim que sobrasse uma bola
para ele. Mas não se incomodava em assumir a posição de arqueiro
quando via que o esquema tático dos adolescentes não comportava
um terceiro atacante.
— Deixa que eu cato no gol! — oferecia, com o sotaque engraçado,
do alto de seu 1,65 metro.

Filinto José Agnelo Francisco de Souza nasceu em Goa, um dos 28


estados da Índia, em 20 de novembro de 1940. Situado na costa ocidental
do país, de frente para o Mar Arábico, Goa era território ultramarino de
Portugal desde 1510. Doze anos depois de o navegador Vasco da Gama
contornar o Cabo da Boa Esperança e fixar-se no mais cobiçado mercado
de especiarias do Extremo Oriente, em 1498, as tropas portuguesas
tiveram êxito em cercar a área, conquistar o melhor porto daquele litoral
e expulsar o sultão. Seguiram-se 450 anos de dominação lusitana.
Descendente de portugueses, como se pode inferir de seus muitos
sobrenomes, Filinto foi criança numa terra em que sua língua era o
idioma oficial e famílias de origem ibérica, como a sua, gozavam de
privilégios próprios dos colonizadores. Outras regiões da Índia eram
dominadas pelos ingleses. Ainda assim, Filinto cresceu num país

Santa Cruz de perfil 5


conflagrado. Por todos os cantos, sobretudo na Índia inglesa, mas
também na Índia portuguesa, havia nos anos 1930 e 1940 um intenso
movimento de independência, fustigado por iniciativas tão paradoxais
quanto o Exército Nacional Indiano – uma organização armada que se
uniu à Alemanha e ao Japão durante a Segunda Guerra Mundial com o
propósito de derrotar o governante britânico – e a política de “ação não
violenta” personificada no líder hindu Mahatma Gandhi, cinco vezes
indicado ao Nobel da Paz entre 1937 e 1948.
Quando Filinto tinha 6 anos, em 1947, a Coroa Britânica foi finalmente
derrotada pelo exército rebelde para a implantação da República da
Índia, agora um Estado independente. Quatorze anos depois, em 1961,
foi a vez de Goa sucumbir perante as Forças Armadas da nova República,
o que representou a imediata anexação do território e a substituição do
português pelo hindi como língua oficial.
A novidade era alvissareira em muitos sentidos, mas, de certa
maneira, colocou Filinto em maus lençóis. Após 450 anos de dominação
política e econômica sobre a população local, agora os portugueses
é que eram os dominados. Como parte de um ajuste de contas sem
precedentes, o povo colonizado tomou o país das mãos do colonizador
e assumiu o poder.
De uma hora para a outra, Filinto, aos 20 anos, viu sua ascendência
lusitana virar motivo de repulsa e sua família ser tratada com desprezo,
como se ele e seus parentes fossem asseclas de um ditador deposto,
correligionários de uma nação invasora. O sentimento era de desforra.
Filinto viu os horizontes se estreitarem. Deixar Goa tornou-se uma
alternativa – e, em poucos anos, um objetivo e uma esperança,
sobretudo para um seminarista poliglota em vias de ser ordenado.
Até meados do século XX, os seminários católicos ofereciam a melhor
educação em Goa, pelo menos do ponto de vista da cultura eurocêntrica.
Também por isso, seu pai, católico fervoroso, o encaminhara desde cedo
para a carreira eclesiástica. Não apenas ele, mas também três irmãs que
se tornariam freiras e um irmão, futuro padre.

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Filinto foi ordenado pelo Papa Paulo VI em pessoa, durante
viagem do sumo pontífice a Bombaim, na Índia, em dezembro de
1964. Tornou-se um padre diocesano, como é chamado aquele que é
vinculado a uma diocese e “deve obediência”, como se diz, ao bispo,
e não a uma ordem religiosa, com sua tradição, sua vocação e regras
específicas. A possibilidade de aderir a uma ordem religiosa surgiu
em seguida, quando o jovem padre de 24 anos conheceu o trabalho da
Congregação de Santa Cruz, que mantinha missionários no nordeste da
Índia, e aprendeu que aquela congregação, fundada na França e muito
atuante na América do Norte, estava presente em diversos países em
desenvolvimento, como o Haiti e o Brasil. Aparentemente, seu destino
era deixar Goa – talvez para sempre.

Padre Filinto tinha 30 anos quando trocou Goa,


na Índia, pelo noviciado em Montreal

O primeiro religioso de Santa Cruz que Padre Filinto conheceu foi


Padre Lourenço, ou Laurent Roberge, já perfilado para a Série Santa
Cruz de Perfil, em reportagem publicada em setembro de 2018. Missio-
nário canadense, Padre Lourenço trabalhou por quase seis anos junto
ao povo Hmar, um grupo originário do estado indiano de Assam, entre
1961 e 1967. Padre Filinto cogitava ingressar na congregação quando
Padre Lourenço, cinco anos mais velho, esteve em Goa. O veterano no-
tou que a casa da família Souza era uma construção antiga e espaçosa,
de arquitetura ibérica, à beira da praia, e chegou a visitar a modesta
casa que Padre Filinto dividia com outros padres, não muito longe dali.
Sua lembrança é de um local pouco confortável e muito bagunçado. E,
segundo ele, sem banheiro. “Não tinha onde tomar banho”, ele conta.
“E um macaco vivia na casa como animal de estimação, entrando e
saindo quando queria, subindo em tudo...”

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Padre Filinto dava aulas de inglês e falava um pouco de francês,
além do português nativo, habilidades que logo atraíram os religiosos
canadenses. Na virada dos anos 1970, ele foi finalmente convidado a
migrar para Montreal a fim de concluir o noviciado na Congregação
de Santa Cruz e escapar de uma conjuntura que lhe parecia arriscada
numa Índia sob nova direção.
Apenas em meados dos anos 1980, depois de viver quinze anos
no Canadá, Padre Filinto seria convocado para sua primeira missão
internacional.

Faltavam duas semanas para o Natal de 1986 quando Padre Corbeil


voltou do Canadá acompanhado por um padre indiano, de 1,65 metro
de altura e sotaque engraçado, para apresentar aos demais religiosos
da Congregação de Santa Cruz em São Paulo. Padre Lourenço, que
havia acabado de trocar as aulas de Ensino Religioso no Colégio pela
função de pároco do Jaguaré, o reconheceu imediatamente. Padre José
Bouchard, muito receptivo, comemorou ao saber que Padre Filinto
ficaria no Colégio.
A rigor, Padre Filinto mudou-se para o Brasil para ser uma espécie de
assistente de Padre Corbeil e lhe fazer companhia. Um tinha 46 anos e
o outro, 72. Padre Charbonneau, vice-diretor do Colégio, morreria nove
meses após a chegada de Padre Filinto, em setembro de 1987. Padre José
de Almeida Prado, a primeira vocação da congregação no Brasil, havia
ingressado como professor universitário no interior de São Paulo, de
modo que, em pouco tempo, restariam apenas dois padres no campus:
Corbeil e Filinto.
Juntos, o indiano e o canadense passaram a acompanhar um ao
outro: jogavam baralho, faziam as refeições e dividiam moradia na
casa dos padres, antiga residência dos religiosos localizada dentro do
Colégio, onde hoje é a Educação Infantil.

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Até a construção da pré-escola, no final dos anos 1990, o sobrado
próximo ao portão da Arruda Botelho despertava grande curiosidade nos
alunos. Alguns pais o haviam conhecido por dentro, na época em que
cursos de atualização religiosa eram ministrados no salão principal, e
algumas turmas do Ensino Médio tinham aulas regulares de inglês nesse
salão, mas as crianças do Fundamental nada sabiam sobre ele. Um dia,
no final dos anos 1980, uma aluna do Fundamental 1 chamada Fernanda
Assumpção foi flagrada espiando a casa de trás dos arbustos. “Padre
Filinto chegou em sua moto e me pegou”, diz ela, formada no Santa em
1996. “Não pude correr, afinal, era o padre do Colégio.” Para sua surpre-
sa, o que ela ganhou não foi uma bronca, mas um convite para entrar.
Futura arquiteta, a menina não esqueceria o piso de granito, o degrau
entre as salas, a porta de madeira, os vidros voltados para o jardim.
“Naquele dia aprendi que padres moram como qualquer outra pessoa.”
Padre Filinto ainda não havia se ambientado à rotina no Colégio
quando Padre Corbeil o levou para seu primeiro compromisso social.
Junto com um padre haitiano que estava na cidade apenas de passa-
gem, foram todos jantar na casa do ex-aluno da turma de 1969 César
Ciampolini Neto, mais tarde desembargador do Tribunal de Justiça de
São Paulo. César era filho de um amigo de Padre Corbeil, um engenheiro
que havia construído o prédio do Ensino Médio. “A cada quinze dias
ele ia jantar na casa do meu pai: avisava no meio da tarde e aparecia à
noite”, conta. “Depois que me casei, Padre Corbeil adotou o hábito de
ir também à minha casa, embora com menor frequência. Aquela noite
foi uma dessas.”
Naquele jantar e em outros que viriam, a intenção de Corbeil era
apresentar o recém-chegado a um seleto círculo de amigos.
— Prepara alguma coisa da culinária brasileira que vou levar dois
padres estrangeiros — o diretor do Colégio avisou por telefone, segundo
Ciampolini.
O jeito foi descongelar um dourado que um tio havia trazido do
Pantanal. Àquela mesa, além do ex-aluno havia também uma aluna do

Santa Cruz de perfil 9


Santa, Paula. A filha mais velha do advogado havia acabado de passar
para o Ginásio, hoje Fundamental 2. Foi orientada a se sentar à mesa
com os adultos. E a se comportar.
“Para Corbeil, era como uma passagem de bastão”, diz o dono da
casa. “Ele era muito bem relacionado em certos setores da sociedade
paulistana e sabia da importância de Padre Filinto manter essa tradi-
ção.” Deu certo. Muitos anos depois, era Padre Filinto quem visitava
as casas de dezenas de ex-alunos e ex-alunas, jantava com uma porção
deles e fazia contorcionismos na agenda para atender a todos os convi-
tes que recebia para celebrar casamentos e batizados na comunidade
estendida do Colégio.

Desses casamentos, centenas ao longo de duas décadas, muitas ve-


zes em endereços tradicionais como a Igreja Nossa Senhora do Brasil,
no Jardim América, e a Paróquia São José, no Jardim Europa, Padre
Filinto voltava cheio de histórias – e com os bolsos repletos de doces.
Na segunda-feira de manhã, ia até a secretaria do Ensino Médio e des-
pejava a colheita sobre a mesa da supervisora. Dona Eneida de Toledo
Pereira ficava surpresa. Um dia, ela conta, Padre Filinto chegou com
um guardanapo de linho branco preso em forma de trouxa. “Devia ter
uma dúzia de bem-casados”, lembra.
— Padre, você pegou tudo isso? Não vai dar problema?
— Come, come – ele resmungava, gesticulando como se dissesse
para não se preocupar.
— Mas, padre, esse lenço de linho, todo rendado...
— Fica para você.
— Imagina! Deve ser alugado. Os noivos têm que devolver.
— Deixa, deixa... São meus amigos.
Não demorou para que os exames de rotina começassem a indicar
diabete, hipertensão, colesterol alto e outros motivos para adotar no-

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vos hábitos alimentares. Mesmo assim, ele não resistia às guloseimas.
Levava balinhas no bolso e distribuía parte delas entre os estudantes
na hora do recreio. Também gostava de ir a restaurantes e não cortou
as massas nem as bebidas alcoólicas, apesar das reiteradas recomenda-
ções feitas pelos médicos, em sua maioria mães e pais de alunos, como
a cardiologista e a endocrinologista que frequentou por muitos anos.
Aos domingos, por exemplo, o programa favorito de Padre Filinto
era descer a serra até São Vicente e comer caranguejo à beira da praia
– quebrando a carapaça com martelinho de madeira, conforme lembra
Conrado Amoroso, secretário do Ensino Médio e companhia de Padre
Filinto nesses passeios. Pés na areia e sol a pino, o Padre não ousava
vestir bermuda, tampouco tirava a camisa. Cobria-se com um guarda-
napo em forma de babador e pedia uma caipirinha.
— Será que eu devo? — consultava.
— Não esquenta, padre — Conrado respondia. — Depois você dorme
na volta.
Tiro e queda, Padre Filinto subia a serra roncando para chegar revigo-
rado à missa que celebrava no Colégio nas noites de domingo. “Quando
não ia comer caranguejo, ele gostava que a gente fosse a Embu das Artes
para visitar a feira de artesanato e comprar santos de madeira, alguns
para presentear”, diz Conrado. O sítio da família de Conrado, em Mai-
rinque, era outro destino frequentado por Padre Filinto aos domingos.
E, quando o pai do amigo ficou doente, foi Padre Filinto que conseguiu,
com dois ou três telefonemas, agilizar uma internação e uma cirurgia
de emergência no Instituto do Coração (Incor). O pai acabou vivendo
mais uma década. “Ele tinha uma agenda de telefones, bem velhinha,
com várias folhas soltas ou rasgadas, na qual ele guardava os números
de um monte de gente importante”, lembra Conrado.
Às quartas-feiras, quando tinha jogo do São Paulo no Morumbi, os
dois começavam a se falar logo cedo. Na hora do almoço, o padre ia
até a mesa de Conrado:
— Cativas, cativas! — anunciava.

Santa Cruz de perfil 11


Era uma tradição. Padre Filinto ganhava ingressos do amigo Roberto
Estefano, que tinha três filhos no Colégio e era dono da Penalty. No anos
1990 e 2000, a marca de roupas esportivas era a principal patrocinadora
do tricolor. E Estefano, desde que soube que o padre era são-paulino,
adotou o hábito de lhe oferecer entradas de cortesia da cota dos patro-
cinadores que costumavam sobrar nas partidas de meio de semana.
Terminado o expediente, Conrado e Padre Filinto se trocavam e iam
para o estádio.
Na sala que mantinha no corredor do Ensino Médio, vizinha às de
Malu Montoro e Fábio Aidar, respectivamente diretora e vice-diretor
do curso na época, Padre Filinto guardava a camiseta do São Paulo e
acumulava um pouco de tudo: sapatos, calças, acessórios, vidros de
perfume, papéis, objetos decorativos, alguns trazidos da Índia, tudo
bagunçado, espalhado por mesa, estantes e um sofá. Antes de sair,
passava a chave na porta para que ninguém ousasse xeretar seu uni-
verso particular, um escritório excêntrico com uma parede de cada cor.
Uma vez, mandou pintar a capela no mesmo estilo: uma parede de
cada cor. A composição exótica, misturando verde, rosa e azul, perma-
neceu até que a nova capela fosse inaugurada, ao lado da biblioteca, e
a antiga fosse desativada.

Escrevo este perfil ancorado em uma dezena de entrevistas e em-


balado também pela memória. Estudei por sete anos no Colégio Santa
Cruz, entre 1990 e 1996. Não conheci Padre Charbonneau e pouco vi
Padre Corbeil. Dele, lembro que caminhava lentamente entre os ipês
para tomar sol. Um ou dois anos depois, abria oficialmente as festas
juninas instalado numa cadeira de rodas.
Durante a maior parte do meu tempo no Santa, Padre Filinto era o
único religioso presente. Atuava como uma espécie de capelão, além
de ser nosso “Animador Espiritual”, conforme indicado no letreiro na

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porta de sua sala – uma expressão que, na época, me fazia imaginá-lo
todo pimpão, fazendo traquinagens, empenhado em nos divertir. Ob-
viamente, seu papel era outro, muito mais de inspirar e sensibilizar
para as coisas do espírito. Animador não é quem alegra ou diverte, mas
quem estimula e encoraja. Anima, em latim, significa sopro, ar, e foi,
com o tempo, ressignificado como princípio vital.
Padre Filinto celebrava todas as missas – a de Páscoa, a do Dias das
Mães, a do aniversário do Colégio. Embora não houvesse mais nenhum
padre no corpo docente ou em cargos de direção, o Colégio mantinha
sua identidade católica. A presença de religiosos, bem como a adoção
de um calendário de eventos e celebrações litúrgicas, era uma evidência
disso. Participar das missas nunca foi uma obrigação dos alunos. Estive
em muitas, faltei a algumas.

Por 25 anos, Padre Filinto foi uma espécie de


capelão do Colégio e também seu “animador
espiritual” – aquele que estimula e encoraja

Conversei mais vezes com Padre Filinto depois de deixar o Colégio


do que quando era estudante. Recém-formado, fiz parte de um grupo
de uns dez ou doze ex-alunos que, uma vez por ano, organizava o En-
contro de Jovens: um fim de semana com alunos do Ensino Médio no
qual realizávamos dinâmicas, palestras e sensibilizações para dialogar
sobre espiritualidade, desafios do mundo atual, humanismo cristão
e cultura de paz – não necessariamente nesta ordem e sem que esses
temas fossem assim denominados.
Começava na sexta-feira à noite e terminava na tarde de domingo,
após uma missa celebrada por Padre Filinto: uma missa mais especial
do que todas as outras, em que ele quebrava protocolos para explicar
aos jovens o significado de cada símbolo desenhado em suas vestes, de

Santa Cruz de perfil 13


cada ornamento da capela e de cada etapa da missa. “Passei a convidá-lo
para fazer a mesma coisa no curso de crisma”, conta Renata Cataldi,
que coordenou a pastoral do Ensino Médio desde 1996 e de todo o Co-
légio de 2013 a 2022. De uma coisa o padre não abria mão: decidir se as
músicas selecionadas pelo grupo para serem executadas na missa eram
adequadas. De vez em quando, vinha uma orientação: “Essa é melhor
vocês cantarem mais tarde, fora da capela”, dizia.
Trabalhei por oito anos como monitor do Encontro de Jovens. Filho
de pais que, no final dos anos 1970, preferiram delegar a mim a tarefa de
escolher uma religião em vez de me batizar, encontrei em Padre Filinto
uma espécie de cicerone para minha anacrônica jornada espiritual. No
intervalo de um ano, entre meados de 2003 e meados de 2004, o padre
indiano de 1,65 metro e sotaque engraçado celebrou quatro sacramentos
meus: o batismo, a primeira eucaristia, a crisma e o matrimônio. “São
Tomé dizia que era preciso ver para crer”, ele ensinava. “A fé nos diz
que é preciso crer, e só então poderemos ver.”
Suas homilias eram místicas, encerradas na experiência da fé e
na leitura do Evangelho. Emotivas e acolhedoras, transmitiam a sen-
sação de flutuar nas nuvens, sem conotação política ou pretensões
intelectuais. Muitas vezes, essa postura aparentava certa alienação
perante os muitos desafios socioeconômicos do país ou do mundo. Mas
a preferência por uma igreja mais devocional contribuía para reunir
muita gente em torno de um ambiente de harmonia, congraçamento e
confraternização. “Ele entoava cânticos se movimentando e, às vezes,
dançando”, lembra Roberto Raposo, pai de três alunos e marido de uma
ex-aluna do Colégio que frequentou durante muitos anos a missa aos
domingos. “Ele quebrava protocolos. E a forma emotiva de declamar
os textos prendia a atenção de todos. Com sua partida, nunca mais fui
espontaneamente a uma missa, em lugar nenhum.”
A despeito de sua opção por uma liturgia mais mística e menos en-
gajada, Padre Filinto nunca foi um religioso insensível a temas sociais
ou desconhecedor da inesgotável necessidade de políticas distributivas,

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tanto na Índia quanto no Brasil. Tanto sabia que, por mais de vinte anos,
se engajou em diferentes frentes de trabalho voluntário e se dedicou a
atrair alunos, ex-alunos, pais e mães para que colaborassem com ini-
ciativas na Vila Nova Jaguaré, no Morro Continental ou num asilo em
Santo Amaro. Entre tantas ações, foi junto à população em situação de
rua que atuou por mais tempo. Nas noites de segunda-feira, distribuía
alimentos e cobertores na Praça da Sé.

Suas missas eram acolhedoras e valorizavam


uma experiência de fé mística e devocional:
“É preciso crer, e só então poderemos ver”

Cláudio Rondello, que presidiu a pastoral do Colégio durante a maior


parte dos anos 1990 e 2000, conta que tal iniciativa não foi de Padre
Filinto, mas do também indiano Padre Jaime Chacko, da Congregação
Missionárias da Caridade (fundada por Santa Teresa de Calcutá). Padre
Jaime administrava a Casa Serena, um local de acolhimento de pessoas
em situação de rua que funcionava na Pompeia, em regime aberto,
aonde a população vulnerável poderia chegar quando precisasse e sair
quando preferisse. Uma vez por semana, voluntários circulavam pela
Praça da Sé para aplacar o frio e a fome daquelas pessoas e apresentar
a entidade. Padre Filinto ia junto e acabou arrastando para essa missão
diversas pessoas ligadas ao Santa Cruz. “Ele era um grande formador de
comunidades”, diz Cláudio. “Sabia juntar as pessoas em torno de uma
ação comum. Nesse trabalho no Centro, muitas vezes voltavam com um
desabrigado disposto a passar um tempo na Casa Serena”, diz Cláudio.
Renata, sucessora de Cláudio à frente da pastoral, lembra que Padre
Filinto adotou um hábito inusitado nessas noites de ação social: poucos
sabiam, mas a cada expedição ao Centro ele convidava meia dúzia
de adolescentes em situação de rua para comer numa lanchonete de

Santa Cruz de perfil 15


uma rede de fast food. Padre Filinto não estava preocupado se aqueles
sanduíches eram nutritivos ou se eram uma porcaria. Ele entendia que,
além de matar a fome daquelas pessoas, era seu dever lhes proporcionar
a realização de um desejo que dificilmente conseguiriam satisfazer.
“A gente não quer só comida”, repetia uma música dos Titãs muito
reproduzida na época.

Padre Filinto era assim: todo coração. Imprevisível e brincalhão,


volta e meia extrapolava suas funções para contagiar o mundo ao re-
dor. Educava pelo afeto. Um dia, notou que as missas aos domingos e
as realizadas no fim da tarde não atendiam a todos os funcionários do
Colégio e inventou uma missa semanal na hora do almoço, sempre às
quintas-feiras, das 12h às 12h30, para que fosse acessível a mais gente.
No horário, tocava um sino para anunciar o início da liturgia. Quem
porventura estivesse trabalhando, na limpeza, na marcenaria, na vi-
gilância ou na administração, era encorajado a interromper o serviço
e ir à capela.
De repente, num dia qualquer, Padre Filinto irrompia pelos corredo-
res do Ensino Médio tocando violino. Uma semana depois, encontrava
alguém na rua e pregava-lhe uma peça. “Uma vez, eu tinha acabado de
sair do banco e ele subiu de moto na calçada como se fosse me atropelar
e anunciou um assalto; quase morri do coração”, conta o atual superior
de distrito e responsável pela condução das missas no Colégio, Padre
Laudeni Ramos Barbosa, que nunca se conformou com as brincadeiras
que ele costumava fazer.
Nas duas ou três ocasiões em que me confessei com ele, Padre Filinto
perdoou todos os meus pecados sem receitar sequer uma ave-maria,
o que me deixava desconfiado. Não era assim que eu tinha visto nos
filmes... No casamento, me deixou encabulado ao descrever, perante
uma capela lotada, a personalidade inquieta e por vezes inoportuna

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do Camilo adolescente. Em seguida, recitou o que chamava de “os dez
mandamentos do casal”. “Se alguém tiver de vencer a discussão, deixe
que seja o outro”, sugeria um deles.
Poucos anos depois, quando meu primeiro filho nasceu, fiquei sa-
bendo que Padre Filinto havia completado 70 anos e deixado o Brasil
rumo ao Canadá. Nunca mais o vi.

Vinte e quatro anos depois de sentar-se à mesa com os adultos para


degustar um peixe pantaneiro ao lado de seus pais e de três padres, um
canadense, um indiano e um haitiano, Paula Ciampolini, ex-aluna da
turma de 1993, descobriu que aquele senhor de 1,65 metro e sotaque
engraçado estava prestes a embarcar para Montreal.
— Fui transferido — ele contou.
Padre Filinto iria voltar para o Canadá e, agora, só visitaria São
Paulo excepcionalmente. Era novembro de 2010 e a mudança estava
prevista para fevereiro. O Plano Diretor de 2011 já não traria o nome do
animador espiritual.
Na mesma semana em que soube da novidade, Paula iria encontrar
muita gente da sua turma na Festa dos Ex-portes, que desde 2007 ex-
-alunos organizam como uma versão da tradicional Festa dos Esportes,
evento anual da área de Educação Física realizada desde 1958, reunindo
todas as séries. Paula contou a duas amigas o que havia descoberto e,
junto com Fernanda Sadek e Mariana Montoro, esboçou um manifesto
pela permanência do padre. A ideia era recolher assinaturas durante
os jogos e entregar à direção do Colégio. Elas não se conformavam com
o que lhes parecia uma decisão súbita e monocrática.
O documento de uma página ganhou cento e poucas assinaturas.
Dias depois, as autoras foram convidadas para uma reunião. Fábio Aidar
ainda não havia completado um semestre na direção geral – desde a
morte de Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães, em julho – quando olha-

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res se voltaram contra ele, como se a transferência fosse uma decisão
sua, um desmando da nova gestão. Fábio, que sempre teve uma relação
muito afetiva com Filinto e cujas filhas tinham sido batizadas por ele,
explicou que o padre fora requisitado pelo superior geral da congre-
gação. Lembrou que Padre Filinto, como os padres canadenses, era
membro da congregação no Canadá, onde havia ingressado na virada
dos anos 1970, e sua trajetória no Brasil, embora longa, era considera-
da uma missão. Não havia como evitar que ele retornasse quando os
superiores chamassem. Septuagenário, também inspirava cuidados
médicos e deveria se aposentar.

Aos 70 anos, Filinto foi requisitado no Oratório


São José, em Montreal, onde ainda trabalharia
por uma década antes de se aposentar em Goa

Padre Filinto chegou a Montreal em 26 de fevereiro de 2011. Insta-


lou-se na Maison Basile-Moreau, residência dos religiosos de Santa
Cruz, e trabalhou por mais alguns anos no Oratório São José. De lá,
continuou trocando mensagens por WhatsApp com o pessoal do Co-
légio, como Conrado e Eneida, relembrando, com saudade, os bons
tempos no Santa.
Voltou poucas vezes ao Brasil e, nessas ocasiões, retomou, na me-
dida do possível, o hábito de visitar amigos e ex-alunos. Numa dessas
estadias, em 2016, foi tomar café da manhã na casa de Yumi Pereira de
Oliveira Miranda, da turma de 1993, com quem trocava mensagens e
para quem mandava cumprimentos nos aniversários e no Natal – outro
hábito que manteve após a transferência. “Em 2017, ele esqueceu o nome
do meu filho e comentou que já estava velho, esquecendo as coisas, e
que provavelmente já não voltaria a viajar”, diz Yumi.

18 Colégio Santa Cruz


Quando veio a pandemia, em março de 2020, Padre Filinto havia
se mudado novamente, desta vez para Goa. Completou 80 anos pouco
depois, em novembro, quando medidas sanitárias continuavam indis-
pensáveis e o distanciamento social era a regra. Os jogos do São Paulo e
os caranguejos no restaurante pé na areia em São Vicente haviam ficado
na memória. O pingue-pongue no intervalo, o violino pelo corredor, os
soquinhos nos braços, as baladas do sino anunciando a próxima missa
e os bolsos cheios de bem-casados, também. Animado e espirituoso, o
animador espiritual faleceu aos 81 anos, em 30 de julho de 2022.

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Série “Santa Cruz de perfil”
Padre Agnelo Filinto: O missionário
espirituoso que veio da Índia

Projeto Editorial
Alejandro Miguelez
Fábio Marinho Aidar

Projeto Gráfico e diagramação


Caracol Design

Redação
Camilo Vannuchi

Revisão
Luisa Destri

Foto de capa
Acervo do Colégio Santa Cruz

Impressão
Aildo Carlos Oliveira Santos
Fredson Ribeiro de Sousa

Para a elaboração deste perfil biográfico, foram feitas


entrevistas e colhidos depoimentos de César Ciampolini Neto,
Cláudio Rondello, Conrado Amoroso, Eneida Pereira de Toledo,
Fábio Marinho Aidar, Fernanda Assumpção, Malu Montoro
Jens, Mariana Montoro Jens, Padre Laudeni Ramos Barbosa,
Padre Lourenço Roberge, Paula Ciampolini, Renata Cataldi
Usarski, Renato Prado, Roberto Raposo, Vera Escorel e Yumi
Pereira Oliveira Miranda, a quem agradecemos.

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Série “Santa Cruz de Perfil”
Edições publicadas
Padre José Amaral de Almeida Prado Malu Montoro
Sacerdote da esperança, educador Um olho na educação, outro na
de minúcias cidadania
(setembro de 2015) (maio de 2022)

Padre Roberto Grandmaison Marília Morello


Fermento na massa Uma educadora de portas abertas
(setembro de 2016) (junho de 2022)

Padre Paul-Eugène Charbonneau Eneida de Toledo Pereira


O boxeador que ensinava a pensar A supervisora que fazia a escola
(setembro de 2017) funcionar
(julho de 2022)
Padre Lourenço Roberge
Razão, fé e sensibilidade Clóvis Moreno
(setembro de 2018) Paixão e harmonia em sons e formas
(agosto de 2022)
Padre Lionel Corbeil
Pragmático sonhador Orlando Joia
(novembro de 2019) Professor, diretor e sempre aluno
(agosto de 2022)
Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães
O educador que inventou o futuro Flávio Berthola Facca
(dezembro de 2020) Adorável disciplinador
(setembro de 2022)
Lucy Sayão Wendel
Química do caráter, pedagogia Padre Agnelo Filinto
da persistência O missionário espirituoso que veio
(junho de 2021) da Índia
(setembro de 2023)
Wagner Pittelkow
O multiplicador de memórias
(setembro de 2021)

Sylvio Nepomuceno
O matemático à procura de uma onça
(dezembro de 2021)

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