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Que rei serei eu?


Que rei serei eu?
por Robert Daibert Júnior

A partir do século XVIII, difundiu-se na Europa uma grande mudança nos conceitos da educação dos príncipes. A piedade e a caridade, valorizadas na Idade Média, perderam
força, abrindo espaço para a instrução laica e para o estudo da política e das ciências. Os reflexos dessa mudança chegaram ao Brasil na época da infância de D. Pedro II, de
modo que sua educação foi feita de acordo com o novo modelo europeu. O fato é que o monarca se consagrou nas páginas da história como um governante culto e devotado ao
saber, mecenas das letras, das ciências e das artes. Mas, na prática, como se deu sua formação? Que tipo de instrução recebeu ao longo da vida?

O menino Pedro, órfão de mãe (a imperatriz D. Leopoldina) com apenas um ano de idade, teve uma surpresa desagradável ao acordar no dia 13 de abril de 1831. Seu pai, o
imperador D. Pedro I, havia deixado o Brasil em companhia de sua madrasta, D. Amélia, uma semana depois de abdicar do trono. O menino tinha então cinco anos de idade e
descobriu que lhe restava apenas a companhia de três de suas quatro irmãs mais velhas: D. Januária, D. Francisca e D. Paula. O motivo que o separava do pai e o prendia ao
Brasil era nobre: deveria assumir futuramente o trono na condição de imperador. Mas o significado disso era muito difícil de ser apreendido por ele.

De tempos em tempos,o pequeno Pedro recebia cartas de seu pai com conselhos.

“Muito estimarei que esta [carta] te ache de saúde e adiantado nos teus estudos. Sim, meu amado filho, é muito necessário, para que possas fazer a felicidade do Brasil, tua
pátria de nascimento e minha de adoção, que tu te faças digno da nação sobre que imperas pelos teus conhecimentos, maneiras etc. etc., pois, meu adorado filho, o tempo em
que se respeitavam os príncipes por serem príncipes unicamente acabou-se. No século em que estamos, em que os povos se acham assaz instruídos de seus direitos, é mister
que os príncipes igualmente o estejam e conheçam que são homens e não divindades, e que lhes é indispensável terem muitos conhecimentos e boa opinião para que possam
ser mais depressa amados do que mesmo respeitados. (...)”

O recado era claro: os reis já não podiam mais confiar em uma legitimidade divina para exercerem o poder. Do mesmo modo, a religião já não tinha a mesma força de
antigamente.

O fato é que, desde o século XVIII, ocorria na Europa uma mudança no modo de se encarar a importância das virtudes cristãs na formação dos príncipes. A piedade e a
caridade, em seu sentido puramente religioso, deixaram de ser valorizadas, enquanto a instrução laica e o conhecimento profundo da sociedade e da natureza eram associados a
uma nova autoridade política. Buscava-se formar governantes capazes de promover a prosperidade do gênero humano. Ou seja, o príncipe moderno deveria ter como principal
virtude a sabedoria e ser guiado pelo princípio civilizador da sociedade.

Ao mesmo tempo, ainda era comum em Portugal, no século XVIII, a existência de uma literatura voltada para a educação do príncipe virtuoso, pautada pelos moldes cristãos. As
reformas educacionais empreendidas no país no período pombalino provocaram a expulsão dos jesuítas. Pretendia-se, com isso, estabelecer uma instrução pública secular e
nacional. Porém, a presença de eclesiásticos no encaminhamento das reformas dificultou a modernização do ensino. Mesmo sofrendo abalos, o clero ainda constituía um
importante sustentáculo do poder. Assim, numa clara tentativa de harmonizar princípios laicos e católicos, empreendeu-se apenas uma reforma e não uma mudança completa no
pensamento tradicional. Conduzida pelo próprio Estado absolutista português, essa reforma se deu de modo fragmentado e seletivo. Se por um lado não foi possível eliminar a
influência da religião na educação formal, por outro, muitos educadores religiosos levaram adiante as propostas de uma educação laica.

D. Pedro I sabia que não era o único a se preocupar com a formação do filho. Sabia também que o menino receberia variadas influências das pessoas que o cercavam. Dentro
do palácio, Pedro seria exposto a um conjunto de orientações voltadas para sua educação e preparação como futuro monarca.

De sua preceptora, D. Mariana Carlota de Verna, por exemplo, ganhou de presente o “Pequeno Catecismo Histórico, oferecido a Sua Alteza Imperial, que em tão tenros anos
começa a desenvolver tanto os princípios da virtude e da firmeza do caráter, que, com o andar do tempo, fará a glória do Brasil.” A autora era a própria D. Mariana,
carinhosamente apelidada de “Dadama”. Como uma espécie de babá e governanta, era encarregada, entre outras funções, de ensinar o príncipe a ler e escrever. No livro, o
garoto era aconselhado a seguir a religião cristã a fim de se transformar em um governante capaz de promover a felicidade de seus súditos.

D. Mariana tentava passar ao pupilo o modelo do príncipe devoto, diferente daquele apresentado pelo pai, que defendia a sabedoria e a instrução laica. Afastada de sua função
por questões políticas durante a tutoria de José Bonifácio, a preceptora foi chamada de volta ao cargo pelo marquês de Itanhaém, novo tutor do príncipe. A religiosidade de D.
Mariana, porém, não deixou grandes marcas na formação de D. Pedro II.

Itanhaém, por sua vez, elaborou em 1838 as "Instruções para serem observadas pelos Mestres do Imperador na Educação Literária e Moral do Mesmo Augusto Senhor”. O
manual exigia que a religião ensinada a D. Pedro estivesse em harmonia com a política e com as ciências. Essa orientação se aproximava dos conselhos dados por D. Pedro I
ao filho, e também estava de acordo com o modelo educacional resultante das reformas em Portugal. A religião já não aparecia como principal valor na formação do príncipe,
mas não perdia por completo o seu espaço nem era rejeitada.

Itanhaém também convidou frei Pedro de Santa Mariana para ser o diretor dos estudos de D. Pedro. Nascido em Pernambuco em 1782 e formado no seminário de Olinda, onde
estudou filosofia e retórica, saiu do Convento da Lapa do Desterro para atuar como uma espécie de preceptor. Na prática, foi um pedagogo que não só assistia às lições do
príncipe e de suas irmãs, como também selecionava o conteúdo considerado importante e necessário à formação do futuro imperador. Além disso, ensinava latim, religião e
matemática.

Santa Mariana substituía Antônio de Arrábida, frei português que viera para o Brasil em 1808 como confessor e preceptor do então príncipe D. Pedro e o acompanhara até a
abdicação, em 1831. Arrábida havia sido escolhido por D. João VI, quando ainda era regente, para cuidar da educação de seu filho. O rei ficara impressionado com sua
inteligência, como bibliotecário no Convento de Mafra. O frei foi convidado pelo tutor José Bonifácio, seu amigo da Loja Maçônica do Apostolado, para dirigir os estudos do
menino. Deixou o cargo após a conspiração que levou à destituição de Bonifácio e à nomeação de Itanhaém como novo tutor dos príncipes.

Outro religioso de destaque na educação de D. Pedro II foi René Pierre Boiret. Refugiado em Portugal após a Revolução de 1789, o padre francês se tornou mestre de sua
língua materna no Colégio dos Nobres de Lisboa. Posteriormente, desembarcou no Brasil por ocasião da vinda da Família Real. Era um maçom, também amigo de José
Bonifácio, e tinha boas relações com o imperador D. Pedro I, de quem havia sido mestre desde a infância. Atuou como professor de francês do príncipe D. Pedro.

Muitos padres contribuíram para a divulgação das idéias ilustradas sob o molde português. Isto é, nem radicais demais, nem conservadoras ao extremo. Religiosos com esta
tendência eram considerados ideais. Esta percepção parece ter sido seguida pelos tutores do futuro D. Pedro II.

A presença de religiosos na formação do herdeiro do trono, no entanto, não o transformou em um beato. O programa de estudos do Seminário de Olinda, onde foram formados
muitos dos professores de D. Pedro II, copiava o modelo dos estatutos portugueses implementados na reforma da universidade, em 1772. Os professores da instituição adotaram
com entusiasmo as idéias iluministas introduzidas por José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, eclesiástico formado em Coimbra.

O modelo de príncipe transmitido ao futuro D. Pedro II era, portanto, marcado pela herança iluminista portuguesa. Em seus exercícios de caligrafia, ele copiava frases que
mostravam os valores de destaque em sua educação. Certa vez, registrou cinco vezes a sentença: “A sabedoria é mais estimável que as forças; e o homem prudente vale mais
que o valoroso”. Em outro caderno, anotou onze vezes em francês “rien n’est plus satisfaisant que le plasir de faire le bien” [nada satisfaz mais do que o prazer de fazer o bem].
Nas frases copiadas, aparecem os atributos desejados na formação de um príncipe do século XIX: sabedoria, justiça e prática do bem.

Assim o menino Pedro cresceu e se formou. Amante das ciências, das letras e das artes, e dedicado ao Império do qual esteve à frente durante quase meio século, D. Pedro II
parece ter sido bastante influenciado pela educação que recebeu. Em 31 de dezembro de 1861, aos 36 anos, registrou de maneira melancólica suas reflexões em uma espécie
de balanço de sua vida, feito no último dia do ano. Em seu diário, ele lamentava, em tom de desabafo:

“Sou dotado de algum talento, mas o que sei devo-o, sobretudo, à minha aplicação, sendo o estudo, a leitura e a educação de minhas filhas, que amo extremosamente, meus
principais divertimentos. (...) Nasci para consagrar-me às letras e às ciências e, a ocupar posição política, preferia a de presidente da república ou ministro à de Imperador. Se ao
menos meu pai imperasse ainda, estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo”.

Dedicado, no entanto, aos deveres constitucionais de sua função, o monarca viria a consagrar-se nas páginas da história como grande incentivador do saber e da instrução.

Robert Daibert Júnior é doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Isabel, a ‘Redentora dos escravos’: uma história da
princesa entre olhares negros e brancos. Bauru: Edusc, 2004.

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