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Talvez, sem que tenha sido muito notada, estej a ocorrendo uma
transformação fun damental na história do marxismo e dos movi
mentos m arxistas. Os sinais m ais visíveis são as guerras recentes
entre o Vietnã, o Camboja e a China. Essas guerras são de impor
tância histórica mundial por serem as primeiras a acontecer entre
regimes com independência e credenciais revolucionárias inques
tionáveis, e também porque nenhum dos b e l i ge r a ntes fez qualquer
tentativa que não fosse extremamente superficial para justificar a
carnificina nos termos de uma persp ectiva teórica que se pudesse
reconhecer como ma rxista. Se ainda era possível interpretar os
conflitos de fronteira sino- soviéticos de 1969 e as intervenções
militares soviéticas na Alemanha ( 1953 ) , Hungria ( 1 956), Che
coslováq u i a ( 1968) e Afeganistão ( 1 980) como - dependendo
do gosto - "imperialismo socialista': "defesa do socialismo" etc.,
n i nguém , imagino eu, acredita seriamente que esses termos pos
sam ter muito cabimento diante do que ocorreu na Indochina. Se
a invasão e a ocupação vietnamita do Camboja, em dezembro de
26
11nl m grande escala de um regime marxista revolucionário contra
u u l r , 1 a investida da China no Vietnã, em fevereiro, logo confir
lll u o p recedente. A pen a s alguém muito crédulo se atreveria a
q> star que, nesses últimos anos do século :xx , alguma eclosão sig-
11 i li t i v a de hostil idade entre Estados haverá de encontrar a União
27
do p as s a d o p ré- revolucionário. Inver samente, se a U ni ã o So
viética divide com o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irla n d a do
Norte a rara distinção de não mencionar nacionalidades em seu
nome, isso sugere que ela é não só a herdeira dos estados dinásti
cos pré- n acionais, mas também a p re cu r so ra de uma o r d e m
i nternacionalista no século XXJ .2
Eric Hobsbawm tem plena razão ao afirmar que "os movi
mentos e estados marxistas têm m o str a d o a tendência de se torna
rem nacionais não só na forma, mas também no conteúdo, ou seja,
nacionalistas. Nada s u ge re que essa corrente não h ave rá de conti
n uar'�3 E essa tendência não se restringe ao ..mundo socialista. As
Nações Un i d a s admitem novos membros pr a tic a m ente todos os
anos. E muitas "nações antigas", t ida s como plenamente consoli
dadas, veem- se desafiadas por "sub"-nacionalismos em seu pró
p rio t e r r it ó rio - nacionalismos estes, claro, que son h a m com
al g u m futuro feliz, livres dessa co ndi ç ão de "sub". A re a l id a d e é
m u i to simples: não se enxerga, nem remotamente, o "fim da era do
nacionalismo': q ue por tanto tempo foi pro fe t i zado Na verdade, a
.
2. Quem tiver alguma dúvida sobre as pretensões do Reino Unido q uanto a essa
paridade c o m a União Soviética que se pergu nte: qual a nacion alidade designada
pelo seu nome? Grã- Brito- Irlandesa?
3. Eric Hobsbawm, "Some reflect i o n s on 'The b reak - u p o f Britain'", New Left
Review, 1 05 (setembro-outubro 1 977), p. 13.
28
l 1 lll ente texto em língua inglesa sobre nacionalismo, e herdeiro
d u ma vasta tradição liberal de historiografia e ciências sociais,
•
29
para uma interpretação mais satisfatória da "anomali a" do nacio
nalismo. A minha impressão é que tanto a teoria marxista quanto
a liberal se estiolaram num derradeiro esforço ptolemaico de "sal
var os fenômenos". Creio haver uma necessidade urgente de se reo
7. Como nota Aira Kemilainen, os dois "pais fu n da do re s " dos estudos acadêmicos
sobre o nacionalismo, Hans Koh n e Carleton Hayes, defenderam essa datação de
maneira m u ito convincente. A meu ver, suas conclusões não chegaram a ser obj e
to de sérios debates, a não ser por ideólogos n acionalistas em determ inados paí
ses. KemiHiinen também observa que o uso do termo "naciona l i smo" generali
zou -se n o final d o século XIX. N ã o aparecia, p o r exemplo, em m uitos dicionários
'
oitocentistas correntes. Se Adam Smith invocou a riqueza das "nações : foi para se
referir apenas a "sociedades" o u "estados". Aira Kemili:iinen, Na tionalisrn, pp. 1 0 ,
33 e 48 - 9.
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• N EITOS E DEFINIÇÕES
lor versus sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. (2) A
u n iversalidade formal da nacionalidade como conceito sociocultural
n m undo moderno, todos podem, devem e hão de "ter" uma
tl 1 ·i nalidade, assim como "têm" este ou aquele sexo - versus a par
31
- I - m aiúscul o ) e, então, de classi ficá - " lo" co m o u ma ideologia.
( Nota-se que, se todos têm uma certa idade, a Idade é apenas uma
expressão analítica. ) Penso q ue valeria a pena tratar tal conceito
do mesmo modo que se trata o "parentesco" e a "religião", em vez
de colocá -lo ao lado do "liberalismo" ou do "fascismo".
Assim, dentro de um espírito antropol ógico, proponho a se
guinte definição de nação: uma comunidade política imaginada
e imagi nada como sendo i ntrinsecamente lim itada e, ao mesmo
tempo, soberana.
Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minús
cula das nações j amais conhecerão, encontrarão o u nem sequer
ouvirão falar da maioria de seus companhei ros, embora todos
ten ham em mente a i m agem viva da comunhão entre eles.9 Era a
essa imagem que Renan se referia quando escreveu, com seu jeito
levemente irônico : " Or l 'essence d ' une nation est que tous les in di
vidus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient
oubl ié bien des choses " [ Ora, a essência de uma n ação consiste em
que todos os indivíduos tenham m uitas coisas em comum, e tam
bém q ue todos tenham esquecido muitas coisas ] . 10 Gellner diz algo
parecido quando decreta, com cer·ta ferocidade, que "o naciona
lismo não é o despertar das nações para a a utoconsciência: ele
inventa nações onde elas não exi s te m " 1 1 Mas o i n co nveniente dessa
.
9. Cf. Seton- Watson, Nation.s and states, p. 5: "A única coisa que posso dizer é q u e
uma nação ex iste quando pessoas em nú mero significativo de uma comun idade
se c o n s i d e r am fo rmando uma nação, o u se comportam como se formassem
uma". Podemos trad uzir "se consideram" por "se imagin am".
10. E r n e st Renan, "Qu'est-ce qu'une nation?", in Oeuvres co mpletes, I , p. 892. E
acrescenta: "tout citoyen français doit a vo i r oublié la Saint-Barthélemy, les mas
s acres du Midi a u xme siecle. I l n'y a pas en France d.ix familles qui puissent fo ur
nir la p reuve d 'une origine franque . . ." [ todo cidadão francês deve ter esquecido a
noite de São Bar tolomeu, os m assacres do Sul no século xm. Não exi s t e m na
França dez famílias que possam oferecer provas de uma origem franca ] . ...
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1t l ' l n u l ação é que Gellner está tão aflito para mostrar que o nacio-
11 11 ismo . e mascara sob falsas aparências, que ele i denti fica " in ven
� 1 >" o m "con trafação" e " falsidade", e não com " imaginação" e
" ri 1 à o". Assim, ele sugere, implicitamente, que exi stem com u n i -
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nação, com o por exemplo na época em q u e os c ri s t ã o s p o d i a m
s o n h a r com um planeta totalmente cristão.
I m a g i n a - se a nação soberana p o rque o conceito nasceu n a
época em q ue o Iluminismo e a Revol ução estavam destruindo a
legitimidade do rei n o d i n ástico hierárq u i co de o rdem d ivi n a .
Amadurecendo n u ma fase d a h i stó ria h um a n a em q u e mesmo o s
adep tos mais fervorosos d e qualquer religião universal s e defron
tavam inevitavel mente com o pluralismo vivo dessas religiões e
com o alomorfismo entre as p retensões ontológicas e a extensão
territorial de cada credo, as na ç ões s o n h a m e m ser livres - e,
quando sob dom i n ação d ivina, estão diretamente sob Sua é gi d e . A
garantia e o emblema dessa ) jberdade é o Estado Soberano.
E, por último, ela é i m ag i n ada como uma com u nidade por
que, independentemente da desigualdade e d a exploração efetivas
que possam existir dentro dela, a nação sem pre é concebida como
urna profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa frater
n idade que to rnou possível, nestes doi s úJtirnos séculos, que tan
tos milhões de pessoas ten ham-se disposto não tanto a matar, mas
sobretudo a mo rrer por essas criações imaginárias limi tadas .
Essas mortes nos colocam bruscamente diante do p roblema
central posto pelo nacionilismo: o que faz com que as parcas criações
imaginativas da história recente ( pouco mais de dois séculos) gerem
sacrifícios tão descomunais? Creio que encontraremos os primeiros
contornos de uma resposta nas raízes culturais do nacionilismo.
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t. aízes culturais
r '111 t lc• r • t n Nc, por exemplo, essas n otáveis expressões: a. "Os irmãos de armas
t t l l l !t • 1111 lorlt r n m. , e o fizessem , u m m i U1ão de espec t ros em verde-oliva pardo,
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por i sso que tan tas nações diferen tes têm esses túmulos sem sentir
nenhuma necessidade de especificar a nacionalidade de seus ocu
pantes a u s e n te s . O que mais poderiam ser, salvo alemães, america
nos, a rgentinos etc . ? )
O sign ificado cultural desses monumentos ficará ainda mais
claro se tentarmos imaginar, por exemplo, um túmulo d o "marxis
ta desconhecido" ou um cenotáfio para os "liberais tombados em
combate". Não seria um absurdo? O marxismo e o liberalismo não
se importam m uito com a morte e a imortalidade. Se o imagi nário
n acionalista se importa tanto com elas, isso sugere sua grande afi
nidade com os imaginários religiosos. Como essa afinidade n ada
tem de fortuito, talvez valha a pena iniciar uma avaliação das raí
zes culturais do nacionalismo pela morte, o último elemento de
uma série de fatalidades.
A maneira de u m h o m e m morrer geralmente p arece arbitrá
ria, mas sua mo rtal i dade é inevi táve l . As vidas h umanas estão
c he i a s dessas combinações entre acaso e necessidade. Todos sabe
mos que nossa herança gen ética pessoal, nosso sexo, a época em
que vivemos, nossas capacidades físicas, língua materna, e assim
por diante, são fatores contingentes e inel utáveis. O grande méri
to das concepções religiosas tradicionais (o q ual, natu ralmen te,
não deve ser confun dido com o papel delas na l egitimação de sis-
f I 11is cbray, " Marx:ism and the n a tion a l question", New Left Review, 1 05
' l o r u i u o o u t u b ro 1 977), p. 29. Durante o m eu trabalho de campo na Indonés ia ,
u 1 ri 1 1do d I 60, fi q uei chocado com a tran q u i la negat iva de mu itos rnuçulma-
1 1 1 1 l l l l ii 'C i t n r as ideias de Danvin. No começo, interpretei es sa negativa corno obs-
1 1 11 1 ) 1 mo. l ) ·pois vi que era uma t e nt at iva louvável de manter a coerência: a dou
li 1 1 11 I r vol uç;e era simplesmente incompatível com os ensinamentos do islã. O
1 1 1 1111 • ) 1 1 1 um materialismo científico que aceita formalmente as descobertas
ti I t 1 uhr • matéria, mas que se empenha tã o pouco em v incular t a is descober
l ot l th d · la es, à revolução ou ao que for? Será que o abismo entre os prótons e
11 pwl l i t r iudo não oc ulta uma descon hecida concepção metafísica do homem?
M oi v • .u n -s os i n teressantes textos de Sebastiano Timpanaro, On materialism e
/ /11 j11 llt litt ll slip, e a resposta po n d e r a d a de Raymo n d Williams a eles, em "Timpa
l ! it t ! i' 111 H • r i" li t challenge': New Left Review, 1 09 ( maio-junho 1 978), pp. 3- 1 7.
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to evol u c i o n á r i o / p rogressivo é sua aversão q u a s e heraclitiana a
qualquer ideia de con tinuidade. )
Faço essas observações talvez simplórias principal mente por
que o século XV I I I , na Eu ropa Ocidental, marca não só o amanhecer
da era do nacio n al i smo, mas também o anoitecer dos modos de
pensamentos religiosos. O século d o i l uminismo, do secularismo
racionalista, t rouxe consigo suas próprias t revas modernas. A fé
religiosa decl inou, mas o sofrimento q u e ela a judava a apaziguar
não desapareceu. A desintegração do paraiso : nada torna a fatalida
de mais arbitrária. O absurdo da salvação: n ada torn a mais n eces
sário um outro est i l o de continuidade. Então foi preciso que hou
vesse uma transformação secular da fatalidade em continu idade,
da contingência em significado. Com o veremos, po ucas coisas se
mostraram (se mostram) mais adequadas a essa finalidade d o que
a ideia de n ação. Adm ite-se normalmente que os estados nacionais
são "novos" e "históricos", ao passo que as nações a que eles dão
expressão poütica sempre assomam de um passado imemoriai: e,
CO M U NIDADE RELIGIOSA
39
como cen tral - eram i mag i n a d o s principalmente pe l o uso de
uma l í n gu a e uma escrita sag ra d a s . Tomemos o exem p lo do islã: se
um m aguindanauense encontrasse um berbere em Meca, um des
c o n hece nd o o idioma d o o u t ro , i n c a p a zes de se co municar oral
men te, mesmo assim en tenderiam os seus c a r acte re s , porque os
textos s acro s adotados por ambos ex i s ti am apenas em árabe clás
sico. Nesse s en t i d o , o árabe escrito funcionava c o m o os id eogr a
mas c h i nese s , criando uma comunidade a par t i r dos signos, e nã o
dos sons. (Assim, hoje em dia a l i n gu a g em matemática dá p ros se
gu i m e n to a uma velha tradição. Os romenos não fazem i d e ia de
como se diz "+" em tailandês, e vice-versa, mas illllb Qs co m p re e n
dem o sim bolo.) Todas as grandes co m un idade s clássicas se consi
deravam cosmicamente ce n tra i s , através de u m a lín gua s agr a da
l i g ad a a uma ordem supraterrena d e poder. A s s im , o a l c a n c e do
latim, do p á l i , do á rab e ou do ch i n ês escritos era, teoricamente, ili
mitado. ( Na verdade, qu anto mais morta é a l ín g u a escrita
quanto m ais d is ta n te da fala -, melhor: em princípio, to do s têm
acesso a um mundo puro d e signos. )
Mas es s a s comunidades clássicas ligadas por línguas s a g ra das
tinham um caráter diferente d a s co m u n i da d es im a g in a d a s das
nações modernas. U m a d i feren ça fundamental era a co n fia n ç a das
comunidades mais antigas no sacramentalismo ún ico de s u as lín
guas, e daí der ivam as ide ias que tinham sobre a admissão de novos
membros. Os mand arin s chineses viam com bons olhos os b árb a
ros que a p ren d i a m a d u ras penas a p i nt a r os i d e o g r a m a s do
I mpério do Centro. Esses b á r b a ro s já estavam a meio caminho d a
p l e n a aceitação.5 Meio civ il i za d o era muitíssimo mel h o r do q ue
bárbaro. Essa at it u d e certamente não foi exclusiva dos chi n e ses ,
nem se res t r i n g i u à An t ig u i d ad e . Vej a, por exemplo, a seguinte
s. Daí a tranquilidade com que os mongóis e manchus sin izados foram aceitos
como Filhos do Céu.
40
" po l t i a para os bárbaros", formulada pelo liberal colombiano
I · l ro Fermín de Vargas, do começo do século XIX :
. John Ly nch, The Spa nish.-American revolutions, I 808-26, p. 260. Grifo meu.
• I as: : termo deprec iativo que, na época do imperialismo britânico, designava o
11 1 1 vo da f ndia, da Mrica do Norte e do Oriente M édio. [ N . T. ]
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n ações da realidade, e não representações inventadas ao a c a s o .
Conhecemos a l on g a discussão sobre a l íngua ( l a t i m ou ver n ácu
lo)mais adequada p a ra a m issa. Na trad içã o islâmica, há até bem
pouco tempo, o Corão era l iter alm e n te intraduzível (e, portan to,
in traduzido) porque o único a ce s s o à ve rd ad e de Alá e r a por meio
dos s ignos verdadeiros e insubstituíveis do árabe e sc r i to . Aq u i não
exi ste a id e ia de um mundo tão d esv i n cu l ado da l ingua que t od a s
as línguas vêm a ser si gno s eq u id i sta n t e s (e, p ort a n t o , intercambiá
ve is) dele. Com efeito, a realidade ontológica só p o d e ser a p ree n d i
42
tp • n as pelo texto sagrado: os seus leitores, afrnal, não passavam de
n d n (t c u l os recife s letrados em va stos o cean o s iletrados.9 Para
1 1 1 1 1 a expl icação mais co m p let a , temos de examinar a relação entre
o I ·t rados e suas sociedades. S e r ia equivocado considerá-los uma
t p ic de tec n o c racia t e o l ó g i c a . As l í n guas a que eles davam
u po rtc por ma i s abstru sas que fossem, não possuíam o caráter
t h.�t r u so autoconstruído do jargão d os advo ga dos ou dos econo-
1 1 i�>t us, à margem da i d eia de realidade alimen tada pela sociedade.
11 ·I 1 ontrá rio, os letrados eram gran des iniciados, c a m adas estra-
1 �i ·a s de uma hierarquia co s m ológi ca cujo áp ice era d ivi n o . '0 As
1 1111 c pções fun d amentais sobre os "grupos s o c i a i s " eram mais
1 111 r petas e h i erárquicas d o que h o r izontais e fro nteiriças. O
l 'n I · r assombroso do papado, no s e u auge, só p o de s er e nte n dido
l' i l l t r mos de um clero t ranseuropeu c o m conhecimento do latim
v. M 11 r Bl ch nos lembra que "a m aioria dos senhores e m u i tos grandes barões
l thl poca medieval ] eram administradores i ncapazes de examinar pessoalmen-
11' 1 1 1 1 1 rel a tó r i o ou uma prestação de contas': Feudal society, l , p. 8 1 .
11 • I so não significa que os iletrados não lessem . Mas o que eles liam não eram
plllitvra ', e si m o m undo visível. "Aos olhos de todos os que eram capazes de ref.le-
1 o, o m u ndo m aterial era pouco mais do que uma es p écie de máscara, por trás da
lj l lit l o arriam todas as coisas rea lmente importantes; era como se fosse também
1 1 1 1 111 1 1 ngua que expressasse por sin ais uma real i dade mais profunda': ibid. , p. 83.
43
mundo não europeu, as qu ais "ampliaram violentamente o h o r i
zon te cult ural - geográfico e, simultaneamente, os c once i tos acer
ca das possíveis formas de vida h u mana", " o q ue ocorreu sobret u
do, m a s n ã o exclusivamente, na Europa. Esse processo já fica cl aro
n. Erich Auerbach, Mimesis, p. 282 [ trad.. cit. Mimesis, São Pa u lo , Perspect i va, 5'ed..,
2004, p. 286 ].
12. M arco Polo, As viagens de Marco Polo [Brasiliense, I 954) , pp. l 58-9. Grifo meu.
Nota- se, porém, que beijam, mas n ão leem o Evangel ho.
44
céu ". Mas, pela ma neira com que sua majestade agiu em relação a
eles, é ev i d en te que ele considerava a fé dos cristãos a mais verda
deira e a melhor. . .
1 1 1'11 • 7'm vels ofMarco Paio, p. 1 52 [As viagens de Marco Paio, Brasil iense, 1 954 ] .
11 l i • n r i d e Montesqui eu, Persian Letters, p . 8 1 . As Lettres persa nes foram publ i
tllht p · la pri meira vez em 1 72 1 .
45
As i nvenções deliberadas e sofisticadas do cató l i co setecentis
ta espelham o real ismo i ngênuo do seu predecessor do século X l l l ,
m a s agora a "relativi zação" e a "territorialização" s ã o profunda
m e n te conscientes, e com in tenções p o l íticas. Será descabido
enxergar u m desdobramento paradoxal dessa tradição dinâmica
na identificação feita pelo aiatolá Ruhollah Khomein i do Grande
Satã, não com uma heresia, tampouco co m um p ers o nagem
de m o n íaco (o apagado Carter d i fi c i l m e n t e s e e n c a ixaria nesse
papel ) , e sim com uma nação?
Em segundo lugar, h ouve w n rebaixamento gradual da pró
pria língua sagrada. Escrevendo sobre a Europ_a Oçidental medie
val, Bloch observou que "o l atim era n ão só a língua em que se ensi
nava, como também a única língua ensinada". 1 5 (A palavra " única"
mostra mu ito claramente o caráter sacro do latim - nen h u ma
outra língua era considerada digna de ser ensinada . ) Mas, no sécu
lo XVI , tudo isso estava mudando rap idamente. Não precisamos
nos deter aqui nas razões dessa mudança: a i m po rtância funda
mental do capitalismo tipográfico [print-capitalism ] será tratada
mais adiante. Basta lembrarmos a escala e a velocidade em que ele
se d esenvolveu. Febvre e Martin calculam que 77% dos l iv ros
impressos a n tes de 1 500 ainda eram em latim (o q u e sign j fi c a ,
porém, q u e 23% deles já eram em vernáculo ) . 1 6 Se, entre a s 8 8 edi
ções impressas em Paris e m 1 50 1 , apenas oito não eram em la t im ,
após 1 57 5 , a maioria era sempre em francês. 1 7 Apesar de uma reto
m ada temp o r á r i a durante a Contrarrefo r m a, a hegemonia do
latim estava co ndenada. E n ã o estam o s falando a p e n as n u m a
popularidade geral . Um po uco mais tarde, e n u m a rap idez igu al-
46
l l l l' l l · stonteante, o la t i m deixou de ser a língua da a l ta intelectua
11 I HIN ) D I N Á STICO
47
tico" imaginável para a maioria das pessoas. Pois, sob alguns aspec
tos fundamentais, a monarquia "séria" contra ria todas as co n cep
ções modernas da vida p o litica . A re aleza organiza t udo em torno de
um centro elevado. Sua legitinúdade de r iva da d ivi n d a d e , e não d a
população, que, afinal, é com posta de súditos, não de c i da dãos . Na
concepção moderna , a sobera n ia do Estado opera de forma i ntegral ,
terminante e homogênea sob re cada centímetro quadrado de um
ter r itór i o legal mente demarcado. Mas, no i m ag i nári o mais a ntigo ,
onde os Estados eram defi nidos por cen tros, as fro n tei r as eram
porosas e indistintas, e as s o b e ra n ia s se esv a ec i a m imperceptivel
me n te u m a dentro d a outra.2' Daí, e m certo paradoxo, a facili d ade
com que os reinos e impérios pré - m o d e rn os con segui ram manter
seu domínio sobre populações imensamente heterogêneas, e mu it a s
vezes n em vizinhas, por longos p e r í od os de tem po.22
Cabe ta m b é m lembrar que esses an tigo s Estados monárqui
cos se expandiam não só pela guerra, mas também por uma poli
tica s ex ua l - m u ito d i fere n te da pr a t i c a da n o s n o ssos d i a s .
Segu indo o pri n cíp i o ge ra l d a verticalidade, os casamentos dinás-
.roácia, Eslovên ia, Gal ícia, Lodomeria e 11íria; rei de Jerusalém etc.;
u rq u iduque da Áustria [ sic ] ; grão-d uque da Tosca n a e Cracóvia;
d u q u e de Lotaríngia, Salzburgo, Estíria, Caríntia, Carniola e Bucovi
n a ; g rão-duque da Transilvânia, m a rq u ês da Morávia; d u qu e da Alta
T I e ra, como bem observa Jászi, " não sem um certo aspecto
1 1 1 i ·o [ . . . ] a enumeração das incontáveis n úpcias, b a r ga n h a s e
' t j l l l l ras dos Habsburgo'�
Ern rei n os o nde a poliginia tinha sanção religiosa, era ess en
i d p, ra a ua in tegração que exi stissem sistemas com p l exos de
' o n u b i natos sobrepostos. Com efeito, era frequente que as linh a
li� r ·ais p rocurassem ga nhar p restígio, para além de q u alqu e r
111 1 le d ivindade a partir da, d i ga mos , miscigenação.'4 Pois e ss a s
1 1 1 1 l u ras eram símbolos de uma posição de ordem superior. É típi-
49
co q u e n ão ten ha ex i st i d o nenhuma dinastia " i ng l esa do m i n a n do "
arquid uque, assassinado pouco tempo depois. Eram, de ambos os sexos, l 486 ale
mães, 1 24 franceses, 1 96 italianos, 89 espa n hóis, 52 poloneses , 47 dinamarq u eses,
20 ingleses além de q uatro o u t ras nacionalidades. Esse "curioso doc u m ento é
, "
citado in ibid. , p. 1 36, n" 1 . Aqui não re s i sto a citar a admirável reação de Francisco
J osé à n o tícia do a ssassinato do s e u exc ê n t r ico herdeiro l e g i t i m á r i o : " D e s t a
maneira , um poder sup e r io r resta urou a ordem q ue e u , infelizmente, n ã o fui
capaz de m a n ter " ( ibid., p. 1 25 ) .
2 5 . Gcllner destac a o caráter estrangeiro típico das di n a s t i a s m a s interpreta o
,
50
mnnarqu ias 'civilizadas' da Europa':27 O novo sistema, em 1 9 1 0, con
l t tl' i u ao t rono um homossexual excên trico qu e certamente te r ia
do pr terido n uma época anterior. No entan to, a aprovação inter-
t i l n, rquica de sua entronização como Rama VI foi selada pelo com
l hl l ' i m ento à sua cerimônia de coroação d o s principezinhos da
i t il Br tanha, Rússia, Grécia, Suécia, D i na marca - e JapâoF8
Em J 9 1 4, os Estados di násticos ainda eram maioria no sistema
pnl ti o mundial, mas, como veremos detalhadamen te mais adian
1! 1 lt C H P Ç Õ E S TEMPORAIS
51
rel igiosas e dos re i n o s d in ásticos, substituindo-as. Po r sob o declí
nio d a s comunidades, línguas e linhagens sa g r a d as estava ocorren
do uma transformação fu n dame n t a l nos modos d e a p ree nd e r o
mu n d o , a q ua l , mais do q u e qu al q u er o u tr a c oi s a , po s s i b i l i t o u
" p e n s a r" a nação.
Para termos uma ide ia dessa muda n ça, s e ri a útil recorrermos
às representações visuais d a s comunidades sagradas, co m o relevos
e vi trais d e ig rej as medievais, ou pinturas d os p r imeiro s mestres
italianos e flamengos. Um traço característico de ss as representa
ções é algo enganosamen te p a re ci do com uma " ro u p agem moder
na". Os p a s tore s q u e s e g u i r a m a e s t r e la at� a m anj edo ura onde
,
Cristo nasceu apresentam os t r aço s d o s ca m p o n es e s da Burgún
dia. A Virgem Maria é p i n tada como a filha d e u m mercador tosca
no. Em m u it os quadros, o patrono comitente, em t raj e completo
de nobre o u de burguês, está ali ajoelhado, em adoração, j unto com
os p a sto res . O que hoje parece incongruente ce rt ame n te parecia
mui to natu ral aos olhos dos d evo to s medievais. Estamos diante de
um mundo onde a rep resentação da rea l i dade i ma g i n a d a era
ma ci ç a m e n te visual e aud itiva. A cristandade a ss u m i a a sua forma
u n ivers a l mediante uma miríade de especificidades e pa r t i c ul ar i
dades: este relevo, aq u ele vitral, este s erm ã o , aq ue l a parábola, e s ta
peça de moral, aquela reliquia. Se o clero t r an s e u ro p e u letrad o em
l a t i m era um el eme n t o essencial na e st r u t u ra ç ão do ima g i n á r i o
cristão, i gu alm en t e vital era a transmissão dessas co n cep ç õ e s para
as massas i le tr ada s , por meio de cr i aç õ es visuais e auditivas, sem
pre p e sso a is e p a rt i c u lare s . O h u m i l d e pároco local, c uj os antepas
sados e c uj as fraquezas eram do conhecimen to de t od o s os que
a s s i s t i a m à missa, era a p es a r de tudo o intermediário direto entre
os paroquianos e o divino. Essa j ust ap o s i ção do c ó sm i co - univer
sal e mu n da n o - particular significava q u e , por maior q u e fosse a
cristandade (e ass im era considerada ) , e l a se manifestava de formas
variadas para as comunidades s u á b ia s ou andal uzas es p e cífi c a s ,
52
1111 r p l i ca s d elas mesmas. Seria i n co n cebível rep resentar a
1 � • m M ar i a com traços "semíticos" ou roupas " d o século 1" d e n -
1 1 1 1 l o e s p í r ito de restau ração da m u s e ologi a moderna, pois a
1 1 11 1 1 1 ! idade cristã me d i ev a l não concebia a h istó r i a como uma
d i o i n t rminável de causas e efeitos, nem imaginava separações
1 , , j 'li Í, entre p a ss ad o e p re sent e . 3° Como observa Bloch, as pes-
11 1 p n savam que o fi n al dos tem pos estava p r ó x i m o e q ue a
t t n da vi nda de Cristo p o d e ri a ocorrer a qualquer m o m e nto : são
I' 11!1 dito que "o dia do Sen h o r vem como um ladrão n a
havia
1 1 t l t •". A ·sim, para o bi sp o Otto de Freising, o gra nde cronista do
d X I I , era natural referir- se constantemen te a "nós que fo m o s
ull 1 d no fim dos tempos". Bloch conclui q u e , quando os
I H t l l l · n m e d i ev a i s " se entregavam à meditação, nada estava ma i s
lun I · e u s pensamentos do que a perspectiva de um longo futu-
·
u t ''' ' u 11 s. a ide ia de "roupagem moderna ", metáfora para estabelecer uma
• t i l ru i n ·ia e n t re passado e presente, é um reconhecimento indireto da inelutá-
1 �� p I I'UÇt o e n t re eles.
11 l l l o h , /·cllrln/ society, I, pp. 84 -6.
1 11 • r hn h , Mimesis, p. 64 [ cit. ed. bras., p. 63 1 . Grifo meu. Compare a descrição
'' I
"
1 1 1 1 1 1 . do Antigo Testamento como a sombra do futuro [ isto é, que ele pro
' l rl l 'll rll l r r: it. in Bloch, Feudal Society, 1, p. 90.
53
lecer esta relação quando se unem os dois acontecimentos, vertical
33 - Wal ter Benjamin, Illum ina tio ns, p. 265 [Trad. da epígrafe extraída da edição
brasileira, Magia e técnica, arte e política, t rad. Sérgio Paulo Rouanet, 7' ed., São
Paulo, Brasiliense, 1 994, p. 225 ] .
34- Ibid. , p. 263. Essa nova ideia está tão profu ndamente arraigada que podería
mos dizer que todas as p r i n cipais co ncepções modernas se baseia m n u m a noção
de "entrementes".
54
• n t e n derem os m e l h o r por que essa transform ação fo i tão
l l l l o rt a n te p a r a a gên ese da c o m u n ida de imaginada da nação se
1 mi J e ra rmos a e s tr utur a básica d e d u a s formas de criação i ma
li r i a q ue floresceram p e la p r i m e i r a vez na Europa d u r a n t e o
ul X V I I I : o ro m a n c e e o jornaJ.35 Po i s essas fo rmas pro p o rciona
num bar
casa com B
pesadelo
55
Note que A e D nunca se encontram duran te essa seq uência,
e na verdade p o d e m até i g no r a r a existência u m do o utro se C tiver
fe i to o seu jogo direito.36 E nt ão , o que realmente liga A a D? Duas
c o n cepções c o m p l e me n t a res: em p r i m e i ro l u g a r, p er t e n c e m a
"sociedades" ( Wessex, Lübeck, Los Angeles ) . Essas sociedades são
en tidades sociológicas de uma realidade tão sólida e estável que é
p o ssíve l até descrever os seus me m bros (A e D) se cruzando na rua
sem n u n ca se co nhecerem, e m e s m o ass i m m a n tendo l i g a çõ e s
entre si .37 Em segw1do l u g ar, A e D estão presentes no espírito dos
le it o res o niscien tes. A p e nas e l e s , à maneira de Deus, veem A ligan
do p ara C,
B fazendo co mp ras e D j o gango b ijhar, to d o s ao mesmo
tempo. Toda s essas ações s ã o executadas ao mesmo tempo no reló
gi o e n o calendário, mas por age nt e s que n ã o precisam se co n he
cer, e esta é a novidade d e s s e m u n d o i m a g ina do que o a u to r invo
ca no espírito de s e u s leitores.-'8
A ideia de wn or g a n i s m o sociológico atravessando cronolo
g i c a m e n te um te m po vazio e h o m o gê n e o é u m a analogia exata da
ideia de nação, que também é concebida co m o uma co mtmidade
sólida p erco rrendo constantemente a história, s ej a em sentido
ascen den te ou descen den te.39 Um a me r i can o mmca vai con h ec er,
e nem sequer saber o nome, da imensa maioria de seus 240 m i l hões
57
i n fi n ita bon dade, cri ou e com tanta ternura m u l t i pEca em M a n i l a .
U n s foram proc u r a r graxa p a r a as b o t a s , outro foram atrás de
ainda não a dest ruíra m . Não cremos que o seu proprietário tenha
m a n d a d o d e r r u b á - l a , v isto que tal obra geral{n ente é deixada a
nosso Governo.
42. ore, por exem plo, a passagem sutil de Rizal, n a mesma frase, do passado
"criou" (crió) para o presente rel ativo-a -todos- nós "multip] jca" (multiplica ) .
1 t' n ica, como se suas relações recíprocas não fossem min i m a
l t ll' t ll p ro b l e m áticas.'1
•
1 I ) r e v e rso da ob ·curidade anônima dos leitores era/é a cel ebridade i nst a n tâ-
11 ,, dn nu r o r. Como veremos, e!il a obscuridade/celeb ridade tem t u d o a ver com a
1 l l l u ti o lo capitalismo editorial. Já em 1 593, alguns dominican os c hei o s de i n i -
1 1 1 V•t l i n ha m pu blicado a Doctriua Christiana em Manila. M a s o prel o fico u sob
' I idn o n t role eclesiástico d u ra n te os séculos seguintes. A liberalização só come
nn� a nos 1 860. Ver Bi envenido L Lum bera, Tagalogpoetry 1 570- 1 898.
, ,1 1 Tradi-
1 ,, , 1 1 1 1 1 / illf/uences Íll its development, pp. 35, 9 3 .
1 //1/,/. , p. 1 1 5.
59
começa in media res, de m od o que a trama completa nos surge por
meio de u m a série de falas q ue servem de flashbacks".45 Quase a
metade das 399 quadras é dedicada à infância, a o s anos de estudan
te em Atenas e às p roezas m ilitares de Florante, que o herói relata
em suas conversas c o m Aladin . l6 O "flashback fal ado" era a única
alter nativa de Bala gt as à narrativa l inear. Se fica mos sabendo d o s
passados "simultâneos" de Florante e de Aladin, é porque eles estão
l iga dos pela conversa que estabelecem, e não p ela estrutura da epo
p e i a . Como essa técnica está distante da do ro mance! "Naquela
mesma primavera, enquanto Florante ain d a estudava em Atenas,
Al ad i n foi expulso da corte do seu soberan o.--::" Com efeito, B alag
tas n un ca tenta "situar" seus p rotagonistas n u m a "sociedade" ou
discuti - los com o seu p ú b lico. E, a fo r a a fl u ê n c i a melíflua dos
polissüabos tagalogs, nem há muito de "filipino" em seu texto.47
Em 1 8 1 6, seten t a anos antes da cr i a ção de Noli, José Joaquín
Há q uem interprete esta famosa estrofe como uma d eclaração velada do pat rio
tismo filipino, mas Lumbera mostra claramente que tal interpretação seria ana
crônica. Tagalog Poetry, p. 1 25. A tradução [para o inglês ] é de Lumbera. Alterei
levemente o seu texto tagalog, seguindo uma ed iç ã o do poema de 1 973, baseada
na edição de 1 86 1 .
6o
• • • Hi n d z de Lizardi escreveu um romance chamado El Periquillo
l l ltit 'III O [ O Periq uito Sarne nto ] , q u e foi evi dentemente a pri-
1111 t \1 b ra latino -americana no gênero. Nas palavras de um críti
' , 1 s • texto é "uma condenação feroz do g ove r n o espanhol no
li I o: a ignorância, a superstição e a corrupção são tidas como
11 i n racterísticas mais marcantes':•s Esse resumo do conteúdo
1 1 1 1 1 r a forma essencial desse romance "nacionalista" :••
61
romance ao mundo externo. Esse tour d'horizon picaresco - hos
pi tais, prisões, lugarejos distan tes, mosteiros, índi os, n egros - não
é, porém, u m tour du monde. O horizonte é claramente delimitado:
o Méxi co colonial. O que mais nos garante essa solidez soci ológica
é a s ucessão de plurais. Pois ele invocam um espaço social cheio de
p r i sões parecidas, nenh wna delas de importância ún ica e exclusiva,
50. Esse movimento de u m herói solitário percorrendo uma paisagem social dura
e i n fl exível é típico de m u i t o s dos primeiros romances ( anti ) colon ia is.
5 1 . Após urna c urta e meteórica carreira como jornal ista radical, Marco foi envia
do pelas autori dades co l o ni a is holandesas ao Boven Digu l , um dos p r i mei ros
campos de concent ração do m u ndo, enterrado nos pânta n os do i nterior da Nova
Guiné ocidental. Lá ele m o r re u em 1 932, depois de seis a n os d e con fi n amento.
Henri Chamberg- Lo i r, "Mas Marco Kartodikro mo ( c. 1 890- 1 932), ou L' Educa
208, in Littératures co n temporaines de l 'Asie du Sud-Est. Enco n
tion Poli tique", p.
t ramos u m a expos ição completa e brilhante da trajetória de Marco no recente
livro de Takash i Sh i raishi,An age in motion: popula r radicalism in fava, 1 9 1 2-26,
capítulos 2 - 5 e 8 .
5 2 . Tradução de Pau l Tickell em s e u Three early Indonesian short stories by Mas
Marco Kartodikromo (c. 1 890- 1 932), p. 7. Grifo meu.
62
na rua. Como a forte c h uvarad a do dia todo tinha deixado as ruas
Para os que t rabal havam nas l ojas e esc ritórios, a manhã do sába
c.lo era um perfodo de expectativa - expectativa do Jazer e da ale
gria de passea r pela cidade à n o i t e , mas nesta n o i te ficariam desa
d i ret a m ente sobre o asfalto b r i U1ante da rua. Vez por outra, a luz
lt•ndo u m jo rnal. Ele estava com pletamen te absorto. Sua raiva al ter
t hl v a -s com alguns sorrisos, dando m o st ra s claras de seu profundo
PROSPERIDADE
53· Em 1 924, wn grande amigo e aliado político de Marco publicou wn rom an ce cha
mado Rasa Merdika [Sentindo-se Livre/ O Sentimento de Liberdade] . O herói do
ro m a n c e , segundo Chambert-Lo i r (que, aliás, atribui erroneamente a obra a
h1 111 11 l igo morto : ele pensa no corpo representativo, não na vid a
I" 1 11.
E vem muito a calhar que apareça u m j orn al n a obra d e ficção
1 11/l l lf//lg Hitam, p o i s se agora observarmos o jornal como p rod u to
1 1 1 1 1 1 r.\1 , fi a remo s impressionados com seu caráter profundamente
• • on I.Qual é a principal convenção literária do jornal? Se olhar-
1 1 11 1 1 m primeira pá g i n a q ual q uer do New York Times, p o r exemplo,
I l ll , ) " não tem ideia do sentido da palavra 'socialismo': mesmo assim, ele sente
1 1 1 1 1 pt fu ndo mal-estar diante da organização social que o cerca, e sente a necessidade
I 1 1 1 1 pl io r os seus horizontes através de dois métodos: viajar e ler ·: ("Mas Marco';
1 UH, j r i to meu . ) O Peri q uito Sarnento se mudou para Java e para o século xx.
I 1 1 um jornal é como ler u m romance cuj o autor tenha desistido de qualquer
1111 ��� o d escrever um enredo coerente.
seus habita n tes. O formato romanesco do jornal lhes garante que,
em algum l u ga r lá fora, o "personagem" Mal i c o n t i n u a a existir em
silêncio, esperando pela próxima aparição no en re do .
A segunda fon te do vín c u l o imaginário consiste na re l aç ã o
entre o j o r n al , como uma fo r m a de livro, e o m e rc a d o . Calcula-se
que, nos q u are n t a e po ucos anos entre a publicação d a Bíblia de
G utenberg e o final do século xv, tenham sido i m p re ss o s n a Europa
mais de 20 m il h õ es de vol umes. 55 Entre 1 500 e 1 600, a quantidade
i m p re s s a a tingiu algo e n t r e 1 50 e 200 m ilh õ e s de exem plares . 56
" D e s d e o co me ç o [ . . . ] as gráficas se p a r ec i a m mais com oficinas
modernas do q ue com as salas de trabalho monásticas da I d ad e
Média. Em 1 455, Fust e Schoeffer já tocavam u m a firma voltada
para a p ro d u ç ã o padronizada, e vinte anos d ep o i s havia grandes
g ráfi c as funcionando por todas as p ar t es em toda [ s i c ] a Europa."57
Num s e n t i do bem específico, o l iv ro foi a p ri m ei r a mercadoria
industrial com produção em série ao est il o mo d erno. 58 Esse s e n t i
do ficará mais claro se compararmos o livro c om o utro s pro d ut o s
industriais daqueles temp o s, como tecidos, tijolos ou açúcar. Pois
66
1 111 · r c a d o r i as são medidas em q u a n t i d a d e s matemáticas
l pt 1 � . a rgas ou lib r a s ) Uma libra de açúcar é apenas
. uma quan -
1 1, d \ u m vol ume prático, n ão u m objeto e m s i . Já o livro - e aqui
I pr 1 u ra os bens d u ráve i s de nossa época - é um objeto dis-
11 11 1, mtido em si mesmo, rep rod uzid o fielmente em larga esca-
l l ma l i bra de açúca r escorre e s e j u n ta à l i bra segui nte; cada
li ro I •m a sua autossuficiência de anacoreta. ( Não é de se admirar
111 I m piares. Febv re e Martin, The Coming of the Book, pp. 2 1 8-20. Ao mesmo
h 1 1 1 1 '1 1 , 1 l ivro sem p re se d is t in gu i u dos outros bens de consumo d uráveis pelo seu
1 1 '' lo i n trinsecamente limitado. Qualquer pessoa com dinheiro pode com
I" 11 r r ros tch e co s , mas apenas quem lê tcheco comprará livros escritos ne s te
t l n l n ' · Veremos mais adiante a importância dessa distinção.
11 I m d isso, já no fina l do século xv, o editor veneziano Aldus foi pioneiro na
•I • o cJ ' bolso " portátil.
1 I Ht l 1 0 mostra o caso de Semarang Hitam, os dois tipos de best-sellers estavam
111 1 1 r x i mos do que hoje. Dickens também p u bl ico u capítulos de seus roman
I 'Up u la res em jornais populares.
totalmente simultâneo do jornal-como-ficção. Sabemos que as
edições matutinas e vespertinas vão ser maciçamente consumidas
entre esta e aquela hora, apenas neste, e não naquele dia. ( Com
pare-se com o açúcar, que é usado num fl uxo contínuo e s em con
trole de horário; ele pode empedrar, mas não perde a validade. ) O
significado dessa cerimônia de massa - Hegel observou que os
jornais são, para o homem moderno, um substituto das orações
matinais - é paradoxal. Ela é realizada no silêncio da p rivacidade,
nos escaninhos do cére b ro.62 E no entanto cad a participante dessa
cerimônia tem clara consciência de que ela está sen do repetida
simultaneamente por milh ares (ou m ilhões) ge pe:;soas cuja exis
tência lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente des
conhecida. Além disso, essa cerimônia é incessantemente repetida
a intervalos d iários, ou duas vezes por dia, ao longo de todo o
calendário. Podemos conceber urna figura mais clara da comuni
dade imaginada secular, historicamente regulada pelo relógio?63
Ao mesmo tempo, o leitor do jornal, ao ver réplicas idênticas sendo
consumidas no m e t r ô no barbeiro ou no b airro em que mora,
,
68
11 1 n l í n ua e silenciosa na realidade, criando aquela admirável
1 1 1 1 t 1 11 ç a da com unidade no anonimato que constitui a marca
t 1 L rada das nações modernas.
I ' u 1 i ndissociável dessa verdade. Foi essa ideia que gerou as gran
d 1 1llandades transcontinentais da cristandade, do Ummah islã
" 1 1 o ' de outros. A segunda é a crença de que a sociedade se orga-
I ' I I II I'Ía natureza das coisas, conferi ndo um certo sentido às fatali
' ' ' ' h•s diárias da existência (sobretudo a morte, a perda e a servi
l ' ' oferecendo a redenção de maneiras variadas.
•
70