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Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 1

PALHAÇARIA
EM HOSPITAIS*

Nereu Afonso da Silva

* Obra registrada na Biblioteca Nacional

São Paulo – 2022

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 2


Sumário
Nota Preliminar................................................................................................................................5

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................6

Origens.............................................................................................................................................6
Arte e Medicina...............................................................................................................................8
O que eu faço agora?.......................................................................................................................9

A COSTUMEIRA PERGUNTA: O E O PALHAÇO, O QUE É?................................................10

Médicos em circos.........................................................................................................................10
Difícil definição.............................................................................................................................11
A contribuição do picadeiro...........................................................................................................13
Além das aparências......................................................................................................................16
A contribuição da escola................................................................................................................17
Clown ou palhaço?.........................................................................................................................19
Commedia Dell'arte, bufonaria, palhaçaria e brincantes...............................................................21
A contribuição do cinema..............................................................................................................23
A contribuição dos arquétipos........................................................................................................26

A FORMAÇÃO................................................................................................................................30

Caminho próprio............................................................................................................................30
Relação e encontro.........................................................................................................................32
O inadvertido Chaplin....................................................................................................................32
Quem é? ou quando é?..................................................................................................................33
O jogo............................................................................................................................................35
A improvisação..............................................................................................................................37
Os cursos........................................................................................................................................39

O HOSPITAL....................................................................................................................................42

Que hospital é esse?.......................................................................................................................42


Autonomia e limites.......................................................................................................................44
Lendo o ambiente...........................................................................................................................45
Aprendendo in loco........................................................................................................................46
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Flexibilidade e atualização.............................................................................................................47
Branco E augusto...........................................................................................................................48
Conflito cênico e emoções sutis.....................................................................................................50
A especificidade psiquiátrica.........................................................................................................52
Fantásticos Frenéticos....................................................................................................................53
Transformação?..............................................................................................................................54
Ação ou não-ação?.........................................................................................................................56
Gesto ou verbo?.............................................................................................................................58
Amor ou labor?..............................................................................................................................59
Palhaçocentrismo...........................................................................................................................62
Outras problemáticas.....................................................................................................................64
Paródia...........................................................................................................................................65
Jaleco.............................................................................................................................................66
Subversão.......................................................................................................................................71
Cara limpa......................................................................................................................................73
Um dedo de prosa..........................................................................................................................76
Com nariz, sem nariz.....................................................................................................................77
Cultura e Saúde..............................................................................................................................81
Função da palhaçaria.....................................................................................................................84
Bebês..............................................................................................................................................86
Fronteira palhaço-pessoa...............................................................................................................89
Ficção.............................................................................................................................................91
Fictício...........................................................................................................................................93
Melancia?.......................................................................................................................................96
Performance...................................................................................................................................97

CONCLUSÃO...................................................................................................................................99

A contribuição do hospital.............................................................................................................99
Ridículo em relação.....................................................................................................................100

AGRADECIMENTOS...................................................................................................................102

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..............................................................................................103

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 4


Nota Preliminar

Este Palhaçaria em Hospitais é uma maneira singular de escolher, encarar e


investigar certas problemáticas levantadas ao longo dos anos em que visto um
nariz vermelho nos quartos, enfermarias e UTIs de diferentes hospitais.
Se minha trajetória, iniciada em 1996 como integrante dos Doutores da
Alegria, tem percorrido predominantemente as alas pediátricas de hospitais
da periferia de São Paulo, ela inclui experiências em outras regiões e países. E
também abarca incursões duradouras realizadas com outras organizações de
palhaços e palhaças em alas hospitalares adultas, sobretudo psiquiátricas.
Foi, portanto, nessa realidade que situei minha micro-história, minhas micro
utopias e as reflexões que delas extraí.
Embora seja minha intenção atravessar conceitos e práticas artísticas
realizadas no cotidiano hospitalar, procurei me distanciar de qualquer
diagnóstico totalizante que tenda a uma esquematização do ofício e das
criações que palhaças e palhaços realizam dentro de hospitais.
Como se verá, não serão poucas as perguntas sem respostas. Haverá
contradições, talvez. E desvios!
Espera-se, entretanto, que este ensaio possa aprimorar e lapidar inquietações.
Inquietações que possam de algum modo gerar impulso de reflexão e motor de
criação para artistas – iniciantes ou iniciados – em busca de vida potente em
seus atos.

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INTRODUÇÃO

Origens

Palhaçaria em hospital.
Eis aí uma expressão que até os meados dos anos 1980 era pouco, ou nada,
difundida nos meios das artes e da saúde no Brasil e no exterior.
Se, por um lado, as aproximações entre arte e medicina, humor e saúde
podem ser presenciadas em distintos momentos da trajetória humana, por
outro lado, parece ser somente a partir das últimas décadas do século XX que
tal trajetória presencia e acolhe o encontro desses dois termos, palhaço e
hospital, com uma frequência inédita.
Não é raro ouvirmos relatos ou vermos imagens de artistas de circo, de
diferentes épocas e continentes, visitando pacientes em hospitais. Também é
conhecida a história de Patch Adams, médico estado-unidense que já durante
seu período como estudante de medicina, no início dos anos 1970, propagava
como palhaço a alegria junto a seus pacientes enfermos.
Se essas e outras iniciativas contribuíram para que palhaçaria e hospital
fossem termos que, juntos, fizessem parte do mesmo discurso sem beirar o
absurdo, seria necessário esperar os meados dos anos 1980 e a década
seguinte para que a realidade de palhaços e palhaças em hospitais começasse
a se instalar e a se multiplicar pelo mundo.
Difunde-se muito, como “evento inaugural” da profusão de grupos de palhaços
e palhaças em hospital, a visita que Michael Christensen, palhaço do Big
Apple Circus de Nova York, realizou em 1986 às crianças da Cardiologia
Pediátrica do Columbia Presbyterian Babies Hospital.
Se Michael Christensen não foi o primeiro palhaço a intervir em um hospital,
ao menos é considerado um dos pioneiros em ter formalizado um plano de
intervenções profissionais, regulares e frequentes ao longo dos anos. Vale
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 6
dizer que já em sua primeira visita apresentou-se como um doutor palhaço. E
a sutileza e perspicácia em “parodiar”1 a postura do médico através de uma
figura cômica trajando jaleco branco e utensílios estapafúrdios parece ter sido
determinante para o que daí se seguiu. Michael foi convidado a renovar a
experiência através de novas visitas. Novos hospitais se mobilizaram para
acolher a iniciativa. Um grupo profissional de doutores palhaços e doutoras
palhaças foi criado e associado ao Big Apple Circus. Nascia assim, nos EUA, o
Clown Care Unit.
O que caracterizava o Clown Care Unit era, entre outras coisas, a frequência
regular das visitas, a adoção da figura do doutor palhaço, da doutora palhaça,
e o caráter profissional de seus artistas. Anos depois, uma linhagem de grupos
herdaria seus princípios. Do próprio Clown Care Unit emergiram artistas que
semeariam e reproduziriam as características do modelo estado-unidense em
diversos países.
Aos poucos, as especificidades do contexto político, socioeconômico e cultural
de cada país foram dando cor local a cada projeto.
No Brasil, o programa dos Doutores da Alegria, por exemplo, é fruto dessa
colheita. Nesse grupo, a figura do doutor palhaço e da doutora palhaça foi
chamada de besteirologista, alcunha que já traz em si o tom da “paródia”.
Fundado em São Paulo por Wellington Nogueira (integrante do Clown Care
Unit por três anos), os Doutores da Alegria surgiram em 1991 e são
considerados os responsáveis por espalhar essa iniciativa Brasil afora. Um
sem-número de grupos nacionais e também estrangeiros, das mais diversas
configurações, se dizem inspirados pelo trabalho dos Doutores da Alegria.
É possível que outros indivíduos e grupos com iniciativas semelhantes tenham
surgido ao mesmo tempo, ou até antes do Clown Care Unit. O objetivo deste
estudo não é o de traçar um panorama histórico sobre a evolução dos grupos
de palhaçaria em hospital e tampouco eleger com precisão um marco
fundador para o surgimento desses grupos. O que ressalto nesta introdução é
que hoje em dia palhaçaria e hospital não são apenas termos consonantes e
congruentes. Hoje em dia, a aliança entre a atividade palhacesca e o hospital

1
Trataremos das implicações da noção de “paródia” no tópico Paródia, jaleco e subversão, p.60.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 7
alcançou paragens que se estendem para além dos meios artísticos e
hospitalares.

Arte e Medicina

Várias são as pesquisas ao redor do planeta que investigam a potência


(clínica, dirão alguns) dessa atividade artística 2. Várias são também as
aproximações entre arte e medicina, essas atividades que nem sempre, e nem
para todas as civilizações, constituem-se separadamente. Um belo exemplo
disso está no testemunho de Jean-François Dusigne, pesquisador de tradições
teatrais oriundas de várias partes do planeta, quando nos lembra que, para
certas culturas ameríndias,

a palavra ‘arte’ não tem equivalente e sua noção é, em geral,


traduzida por ‘medicina’, o que nos leva a crer que a ideia de arte
representa, antes de tudo, um fator de equilíbrio (DUSIGNE,
2013, p. 214).

Parece que a “velha-nova” aproximação entre o mundo da ciência e o mundo


da arte não deixa de instigar praticantes e teóricos da medicina, da palhaçaria
e das mais diversas áreas das ciências humanas.
Das iniciativas embrionárias, algumas batizadas genericamente de
humanização hospitalar, até as pesquisas de ponta partilhadas entre médicos
e artistas de vários países do mundo, a história dos palhaços e palhaças, assim
como a dos hospitais, sofreu um significativo desdobramento nos últimos anos.
Por isso, partirei do princípio de que hoje em dia a palhaçaria está cada vez
mais inserida em hospitais e, embora ainda haja espaços a se conquistar, vem
obtendo certo reconhecimento de nossa sociedade.

2
No Brasil, Morgana Masetti é uma dessas estudiosas. Lança, ainda nos últimos anos do século XX, “Soluções de
Palhaços” (1997) e “Boas Misturas” (2000), dois estudos científicos baseados na prática artística dos Doutores da
Alegria.
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O que eu faço agora?

A partir dessa casa inicial retrocederei alguns passos para abordar uma
interrogação ainda recorrente e fundamental:
Em que consiste essa atividade? Ou mais especificamente, em que consiste
essa atividade tal qual praticada hoje, vários anos após Michael Christensen
ter realizado sua primeira visita a um hospital?
Explorar essa questão sob a perspectiva de um artista que atua sobretudo em
hospitais das periferias de uma megalópole da América do Sul é o intuito
deste Palhaçaria em Hospitais. Atentar para que as pistas e eventuais
respostas aqui oferecidas não percam de vista sua disposição a problematizar
novas questões é condição para que este ensaio possa pretender certa
abertura e dinamismo.
Sob esses parâmetros, as páginas seguintes pretendem se aproximar de uma
experimentação que deliberadamente se distanciará da análise dos fatores
históricos, sociais, culturais e econômicos que contextualizaram e, digamos
assim, permitiram a entrada de um palhaço em um hospital. Por outro lado,
investigaremos alguns aspectos dos modos de preparação, ação – e reação –
desse palhaço ou palhaça uma vez adentrado o ambiente hospitalar nos dias
de hoje.
Mais do que tentar repertoriar as singularidades de cada grupo de palhaçaria
atuante em hospitais, mais do que um levantamento estatístico sobre o
impacto de tal atividade,3 o interesse por ora está em problematizar
especificamente a pergunta que paira sobre o artista e a artista que atravessa
a soleira da porta de um quarto de hospital: “o que eu faço agora?” ou, para
quem já está familiarizado com tal atividade: “o que me faz continuar fazendo
isso?”

3
Para uma maior compreensão desses aspectos, cf. o capítulo “Mapeamento Mundial das Organizações de Palhaços
de Hospital” estabelecido pela organização Operação Nariz Vermelho, de Portugal, em conjunto com parceiros
internacionais em “Rir É o Melhor Remédio” (2016, p. 20).
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A COSTUMEIRA PERGUNTA: O E O PALHAÇO,
O QUE É?

Médicos em circos

Imaginemos um grande circo com artistas virtuosos enfrentando os riscos


impostos pela prática de suas disciplinas circenses. Imaginemos que a
administração desse circo, para prevenir e socorrer os eventuais acidentes
ocorridos a seus artistas, tenha contratado um médico que permanece de
plantão durante todas as sessões de todas as temporadas do circo.
Imaginemos a hipótese de esse médico exercer sua função prioritariamente
em circos, assim como outros médicos ou médicas a exercem em consultórios,
em clínicas, em hospitais, em clubes esportivos etc.
A fim de responder de maneira genérica o que ele faz, esse profissional
poderia simplesmente dizer que é médico. E se quisesse dar mais precisão à
sua resposta, poderia indicar que é “médico em circos”.
O que parece palpável é que, independentemente dos circos onde ele trabalha
e de sua especialidade médica, não hesitamos em admitir que antes de tudo
ele é um médico. Com formação, habilitação e, espera-se, vocação para a
medicina.
Tomemos agora o exemplo concreto de um palhaço que exerce seu ofício em
hospitais. O que ele faz?
Se ele se nomeia “palhaço em hospitais”, pela mesma lógica do “médico em
circos”, ele deve ser antes de tudo um palhaço. E, assim como aquele médico,
esse palhaço também pode ter acesso a uma formação sólida de sua arte e, no
Brasil, ter suas habilidades e capacitações técnicas reconhecidas por um
registro emitido pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT), órgão do
Ministério do Trabalho e Emprego.
É também possível que, dependendo da região do globo e do momento em que
o leitor ou a leitora estiverem lendo estas linhas, a atividade palhacesca em
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hospital seja reconhecida oficialmente e regulamentada por uma série de
princípios, códigos e formações acadêmicas específicas. Mas, mesmo nesse
caso, vale a pena se interrogar sobre em que consiste uma formação sólida,
sobretudo se aceitarmos que no caso da palhaçaria (assim como outras artes
ditas populares) uma formação sólida não se encerra necessariamente na
posse de diplomas formais.
É possível também que, em outra região e em outro momento onde outros
leitores e leitoras estejam lendo estas linhas, a palhaçaria em hospital
continue a não possuir registros e nem regulamentação estabelecida. Ora,
nesse último caso, parece-nos evidente que a falta de reconhecimento oficial
não deveria ser uma razão para uma despreocupação com a formação. Como
veremos mais adiante, formar-se e instruir-se não é seguir uma doutrina em
busca de uma suposta verdade, mas, talvez, uma maneira de transformar
perpetuamente o que já sabemos. Ou, se preferirmos, formar-se é uma
condição para justamente revermos as ditas verdades instituídas. E as vias
para um artista ou uma artista dar sentido à sua formação, para além da mera
aquisição de técnica e conhecimento, parecem infindáveis.

Difícil definição

Independentemente do percurso seguido por esse ou essa artista,


independente de ele ou ela ter ou não formação acadêmica, de ter ou não o
registro emitido pela DRT, resta-nos saber se é possível explicitar em que
consiste o seu ofício e, mais especificamente, responder à pergunta sobre
quem é esse ser quando decide atuar em um hospital nos dias de hoje?
Ou, no grito popular:

E o palhaço, o que é?

Essa pergunta, típica no grito folião brasileiro, está presente na quase


totalidade dos livros sobre a arte da palhaçaria. E nesses livros, essa pergunta
não tem tido uma resposta única. Dario Fo, abre seu depoimento no livro

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Clowns et Farceurs sem rodeios: “ O palhaço é feito por um conjunto de
elementos muito difícil de definir com precisão” (1982, p. 83). Claudio Thebas,
em “O livro do Palhaço”, não faz diferente: “a profissão de palhaço não é tão
fácil de definir como a de veterinário, cantor ou jogador de futebol” (THEBAS,
2005, p.11).
Como se verá, a dificuldade não é pouca quando se busca uma resposta que
defina o palhaço, a palhaça, ou palhaçxs. A diferença entre tais figuras com
relação a outras comunidades de figuras cômicas nem sempre é palpável e
tangível.
O que é – e quem é – palhaça, palhaço, palhaçx?
Indo direto ao assunto, poderíamos dizer que palhaço, palhaça ou palhaçx é
quem faz rir. Se não fizer rir não é uma figura palhacesca. A fórmula parece
inegável, mas reconheçamos que, nesse caso, o abuso da síntese retira-lhe
nuances. Se as figuras da palhaçaria são, sem dúvida, geradoras de riso,
sabemos, entretanto, que nem todo riso é gerado por palhaços, palhaças e
palhaçxs. E que o riso, em si, tem seus graus, texturas, origens, emoções e
destinos variados conforme veremos mais adiante, ao adentrarmos o ambiente
hospitalar.
Então a pergunta continuaria no ar, “e o palhaço, o que é?" (ou, "e o palhaço,
quem é?”). E um dia ou outro tal pergunta parece ocorrer a quem, em suas
trajetórias, se depara mais detidamente com o termo ou com a figura
palhacesca. Encarar tal pergunta, direta ou indiretamente, acontece
frequentemente àqueles e àquelas que praticam ou pretendem praticar o
ofício da palhaçaria.
Mesmo sabendo que não há abordagem que encerre o assunto, ou talvez
justamente por isso, deixaremos que essa inquietação primordial nos mova
pelas próximas páginas.

Haverá algo que unifique quem pratica a palhaçaria, um traço comum e


fundamental presente na totalidade de seus praticantes? Terá esse ser uma
natureza própria que o circunscreva, que o encerre e que o revele numa
essência reconhecida universalmente?

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Se sim, qual seria essa natureza capaz de separar o que nele é necessário do
que nele é contingente? Em outras palavras, como detectar aquilo que seria
claramente o substrato de todos os palhaços e palhaças e aquilo que ocorreria
circunstancialmente em um palhaço aqui ou em outra palhaça ali?
Espinhosa tarefa, como já entrevemos acima.
Mas não inviável se aceitarmos que tal questionamento não está à espreita de
respostas que simplesmente suprimam o próprio questionamento. Não
inviável se concordarmos que tal questionamento expressa menos um
problema a ser resolvido e mais um trampolim de possibilidades a serem
exploradas.

A contribuição do picadeiro

Dentre essas possibilidades, vejamos em linhas muito gerais alguns critérios e


parâmetros que orientam alguns artistas do picadeiro na justificativa de seu
ofício.
Para algumas tradições do circo, por exemplo, a questão acerca da natureza
do palhaço parece se resolver a partir de um panorama classificatório. O grau
de rigidez da classificação, sua nomenclatura e consequente aplicação variam
de tradição para tradição. Entre essas classificações, uma das mais difundidas
é a que estabelece a divisão entre os tipos ou temperamentos cômicos augusto
e branco.4
Muito resumidamente, poderíamos dizer que, enquanto o branco representa a
ordem, o augusto está fora da ordem. De um ponto de vista dramatúrgico, no
início de uma apresentação, o branco é, ou pretende ser, superior
hierarquicamente ao augusto para que, ao final da apresentação, esse status
seja abalado ou invertido. Poderíamos dizer de maneira resumida e
generalizante que o augusto é o palhaço que surge arruinado por uma
exemplar mistura de bobeira e ingenuidade que lhe pode salvar a vida. E o
branco surge salvo por uma pretensa inteligência e elegância que pode
arruiná-lo.
4
Para um aprofundamento histórico das origens desses termos, cf., entre outros: "O Elogio da Bobagem" (CASTRO,
2005); "Clowns et Farceurs", (org. FABRI; SALLÉ, 1982).
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Vale lembrar, porém, que tanto branco quanto augusto são figuras que, ao
longo do tempo, recebem diferentes nuances e denominações. E, como dito
acima, a “rigidez” classificatória na qual se moldam acaba por se remodelar e
adaptar em função da tradição de cada região do planeta para onde o circo se
expandiu. Há tradições, por exemplo, que chamam o branco de clown branco
ou simplesmente de clown. Os circos clássicos da França são um desses
lugares onde se percebe a supressão do termo branco. Na tradição francesa,
essa dupla cômica é geralmente chamada de clown e auguste. E
curiosamente, ambos são clowns (palhaços).
Assim como no circo tradicional francês, o artista brasileiro Roger Avanzi
também não utiliza o termo branco e ainda marca uma diferença com relação
aos franceses ao se servir de uma tradição que também aboliu o termo
augusto. Ao invés de augusto e branco, Avanzi utiliza os termos clown e
excêntrico para designar a oposição entre o palhaço “refinado e instruído”
(branco) e o palhaço “bobão e primitivo” (augusto) (AVANZI; TAMAOKI, 2004,
p. 28).
Como se vê, não é só a definição de palhaço que nos escapa. As denominações
acerca dos temperamentos cômicos também têm seus caprichos.
Seja qual for a nomenclatura, podemos dizer que juntos, branco e augusto,
complementam-se, desmascaram a idiotice humana e, ao partilharem-na com
justeza com o público, fazem explodir gargalhadas sob a lona. Como dissemos,
ambos são considerados palhaços, ou palhaças. Em geral, o aprendizado de tal
arte ocorre ao perpetuarem seus ofícios de pai para filho (e talvez de mãe
para filha, em tempos mais recentes), com o filho seguindo os passos, os
gestos e, em alguns casos, o figurino e o nome do parente mais velho. 5 A
noção de improvisação, tal qual é praticada nas escolas atuais como parte
integrante da formação, talvez se diferencie do modo de aprendizado no circo.
Isso não significa, de modo algum, que durante as apresentações do circo
tradicional não haja momentos improvisados ou, ao menos, imprevistos. Mário
Bolognesi sustenta que “um simples roteiro de cena, e a liberdade de
interpretação improvisada” são características do palhaço circense (2006, p.
5
Roger Avanzi, cujo nome de palhaço é Picolino II, relata: “[…] eu substituí meu pai. E o substituí com o mesmo
figurino, a mesma maquiagem, o mesmo nome: Picolino” (AVANZI; TAMAOKI, 2004, p. 260).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 14
10). Lembramos também que o Tony de Soirée (outro temperamento de certas
tipologias cômicas), além da habilidade em parodiar números sérios, é o
palhaço incumbido de entrar em ação quando algum desarranjo, incidente ou
imprevisto ocorre no espetáculo.
Se, por um lado, o modo de transmissão de conhecimento entre os palhaços
clássicos parece evoluir segundo uma dinastia de códigos a serem seguidos à
risca de geração em geração, por outro lado, vale a pena não confundir o rigor
do aprendizado com uma suposta rigidez de procedimentos aniquiladora de
dinamismos. O circo, ao contrário disso, em sua tradição, é um gênero
artístico que se adapta a seu meio, portanto é dinâmico e mutável. Sua
máxima parece ser a de agradar ao público. Sem perder sua personalidade
artística e o poder de sua linguagem, o circo cria códigos e técnicas artísticas
que visam sua própria sobrevivência. E, como em toda arte tradicional, é
também essa necessidade vital que é passada de geração a geração. E com o
palhaço clássico não é diferente. Pode se dizer que esses artistas tradicionais
encontram a liberdade em seus palhaços a partir do rigor de uma partitura
estabelecida. Surgem com vozes e gestos ampliados a fim de serem "lidos" da
primeira à última fileira das arquibancadas do circo. Aparecem
exageradamente coloridos por sua vestimenta e maquiagem. São finalmente
os responsáveis – especialmente o augusto – pela imagem que se forjou do
palhaço no imaginário ocidental, sobretudo a partir do século XX.
E essa imagem, como se sabe, extrapola o meio circense tradicional. Hoje
ainda, uma figura com tais características visuais é inevitavelmente tratada
como palhaço por muita gente, esteja essa figura nos circos, nos teatros, nos
hospitais, nos programas infantis da televisão ou nas publicidades de
hambúrguer. São, por isso, indistintamente denominados palhaços, ou
palhaças, todas as pessoas que, com mais ou menos discrição, se apresentam
maquiadas e munidas de um nariz vermelho.
A despeito de seu modo e local de atuação específicos, a despeito dos distintos
juízos estéticos e éticos que se possa emitir sobre cada um, eles e elas são, à
primeira vista, chamados de palhaço ou palhaça e como tais são reconhecidos
pelas crianças e pelo público em geral. Mas a questão que se impõe a partir

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dessa extrapolação é a seguinte: como passar dessa denominação “à primeira
vista” para uma abordagem mais específica da palhaçaria?

Além das aparências

Ora, se por um lado, um termo pode, em determinado contexto, associar-se


exclusivamente a uma imagem, por outro lado, raramente haverá quem diga
que toda uma tradição artística se resume a uma indumentária. Qualquer um
que se atreva a entrar num picadeiro ou subir num palco para tentar fazer rir
seu público sabe, desde o primeiro passo, que gestos largos, voz volumosa,
figurino, maquiagem e nariz vermelho só podem funcionar quando são
habitados por uma potência gerada e organizada por uma totalidade de
elementos muito mais complexa do que o arranjo de tecidos, cabelos, cores,
gestos variados e indistintos.
Que elementos seriam esses?
De modo bastante sucinto e, por ora, deliberadamente esquemático, podemos
esboçar uma primeira resposta dizendo o seguinte:
O palhaço dito “clássico”, aquele que atua no circo dito “tradicional”, deve se
destacar, além de seus trejeitos mais exteriorizados, pelo apuro técnico, pela
sensibilidade rítmica, acrobática, musical ou poética com que aborda e
aperfeiçoa a arte herdada de seus antepassados diretos ou, no caso de artistas
que não pertencem a uma família tradicional, do legado que os detentores da
tradição lhe transmitiram. Respondendo de outro modo, diríamos que a forma,
a "embalagem" de uma palhaça ou de um palhaço só pode lhes estimular o
conteúdo se ela for constantemente retroalimentada por ele. Por si só, a
indumentária raramente – ou jamais – fará um palhaço ou palhaça existir.
Sem os elementos que o treinamento e o questionamento constante propiciam,
parece difícil para qualquer artista se desvencilhar da palidez amorfa e
moribunda que a ausência de investigação lhe reserva.
Vale dizer que, hoje em dia, os meios de investigação são diversos. É possível
que esse palhaço ou palhaça atuante em circos tenha recebido seu
ensinamento através de cursos ou escolas. Afinal, como se sabe, o esquema

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dicotômico que divide o circo entre “tradicional” e “contemporâneo”
apresenta, a cada instante, novas brechas de flexibilidade que relativizam e
ampliam tanto seus conceitos estéticos como os modos de formação de seus
artistas.
Há um certo tempo o ofício da palhaçaria deixou de ser transmitido
exclusivamente entre as famílias de circo para ser difundido também através
do ensinamento praticado em formações especializadas, por professores e
professoras não necessariamente oriundos da tradição circense. 6 Diante de tal
realidade, novas questões se apresentam.
E nessas escolas, como é que se transmite o conhecimento sobre a arte
palhacesca e quais os elementos que tentam defini-la?

A contribuição da escola

Mesmo que não haja aqui uma resposta que não divirja de outras, é
incontestável que as pesquisas cênicas realizadas nos cursos de palhaço
oferecem sua contribuição ao debate e, mais do que isso, oferecem uma
possibilidade de renovação do entendimento da arte da palhaçaria.
Jacques Lecoq, criador de uma pedagogia teatral inovadora que se alastrou da
França para o mundo, pôs em prática desde os idos de 1960 uma busca do
palhaço e da palhaça que só se valida se resultar da busca de seu próprio
palhaço (LECOQ, 2010, p. 214). Para o pedagogo francês, cada estudante deve
estar pronto a revelar o eventual palhaço ou palhaça que se aloja dentro de si.
Sua prática de modo algum se situa à frente ou atrás do modelo circense. Seu
processo apenas se distancia do modo de aprendizado familiar ou popular
para, de certa maneira, encontrar os mesmos efeitos: o riso dos espectadores.
Para Lecoq, o palhaço ou palhaça de cada pessoa não é copiado, imitado de
um palhaço ou palhaça que lhe precede, tampouco conduzido por qualquer
personagem preestabelecido. O palhaço ou palhaça só pode estar dentro do
ator ou atriz que o “atua”, só pode ser descoberto ao apoiar-se nas
6
Segundo Michele Borges, no Brasil, a Academia Piolin, de São Paulo, e a Escola Nacional de Circo, do Rio de
Janeiro são consideradas as primeiras instituições a ensinarem as disciplinas circenses fora do exclusivo âmbito
familiar a partir do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. https://www.infoescola.com/artes-cenicas/historia-
do-circo/ (acessado em 18/11/2021)
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 17
verdadeiras fragilidades pessoais desse ator ou dessa atriz para daí se
transformar em potência cênica a ser apresentada no teatro, no cinema, na
televisão, na rua, no hospital ou no próprio circo.
Poderíamos dizer, grosso modo, que enquanto a artista ou o artista dito
“tradicional” chega à liberdade de seu palhaço ou palhaça a partir do rigor de
uma forma “ancestral”, a artista ou o artista não oriundo da tradição chega ao
rigor de uma forma a partir da liberdade de suas improvisações.

No Brasil, a partir do início dos anos 1990, uma parte dos novos cursos e
oficinas que se dedicavam exclusivamente ao ensino da palhaçaria apoiou-se
em linhas de pesquisas iniciadas na Europa, sobretudo nas contribuições de
Jacques Lecoq e seus discípulos. No velho continente, a figura do palhaço
tinha deixado de se restringir exclusivamente às lonas e picadeiros para, aos
poucos, protagonizar espetáculos em teatros (ou na rua) de modo autônomo e
independente dos métodos, da estética e da logística do circo tradicional.
Essas décadas, além de representarem o momento em que a palhaçaria passa
a se debruçar sobre uma dramaturgia própria, livre dos clássicos números
circenses, representam também o momento em que palhaças (e não mais
somente palhaços) passam a habitar a cena palhacesca nascente.
Em São Paulo, por exemplo, mais do que habitar, artistas mulheres são
responsáveis por conduzir essa nova cena. Cida Almeida, Cristiane Paoli
Quito, Tiche Vianna estão entre as pioneiras e mais cobiçadas formadoras e
diretoras de palhaçaria e comicidade daquele período, e suas contribuições à
formação de artistas cômicos se estende até os dias de hoje.
Ainda nos anos 90, também em São Paulo, o artista pernambucano Antonio
Nóbrega, introduz a figura dos brincantes no estudo da comicidade. Com ele,
a nova abordagem europeia de estudo da palhaçaria passa a se aliar às
manifestações da tradição popular brasileira. É assim que, com Nóbrega, a
capoeira, o frevo, o maracatu, o cavalo-marinho se tornam fundamentos
incontornáveis para o ensino da comicidade, da dança e da música
contemporâneas.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 18


A partir da segunda década do século XXI, dessa vez de modo mais
descentralizado, as figuras dos folguedos brasileiros, assim como
manifestações artísticas nascidas ou desenvolvidas nas periferias dos centros
urbanos, entram em sala de aula com mais vigor, muitas vezes conduzidas por
forças artísticas comprometidas com a difusão de narrativas até então
subjugadas pela hegemonia branca brasileira. Artistas como Vanessa Rosa,
Cibele Mateus, entre outras, apoiadas na prática e divulgação da comicidade
de matriz afro-indígena, procuram reequilibrar o debate pedagógico e
artístico ao questionarem o sentido de uma estética palhacesca
predominantemente eurocêntrica.

A variedade crescente de vertentes nos indica que encontrar sua palhaça ou


palhaço através da pesquisa de suas fragilidades pessoais faz tanto sentido
quanto se lançar à observação e prática de modos tradicionais e ancestrais de
comicidade. Todas essas formas de aprendizado requerem tempo e afinco. O
equilíbrio, a mescla e a não subalternização de um método pelo outro podem
responder pela formação de gerações de palhaços e palhaças nos anos
vindouros.

Clown ou palhaço?

No Brasil, nos mesmos anos 1990, anos em que surgem os primeiros coletivos
de palhaços e palhaças em hospital, certos profissionais parecem ter sentido a
necessidade de designar com o termo inglês clown (também utilizado na
França) todos aqueles que acessavam a figura palhacesca a partir de qualquer
método semelhante ao de Lecoq, ou dos discípulos de Lecoq. Talvez tenha sido
uma tentativa de se diferenciar o "novo palhaço teatral pesquisado
interiormente" do "antigo palhaço circense pesquisado exteriormente".
Mais do que a etimologia dos dois termos, apresentada em diversos estudos, 7
interessa-nos apontar que a distinção entre o “novo palhaço” e o “antigo
palhaço” vem entre aspas na formulação acima a fim de lembrar que a

7
Cf. BOLOGNESI, Mário Fernando (2013, p.62).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 19
contemporaneidade de um modelo em comparação com a suposta antiguidade
do outro modelo não é algo imune a questionamento. Ermínia Silva, por
exemplo, faz questão de nos lembrar que a técnica e estética circenses
“sempre estiveram e estão em sintonia com seu tempo” (SILVA, 2008, p. 60).
São e sempre foram, portanto, contemporâneas.
Apesar disso, ainda hoje, nas primeiras décadas do século XXI, alguns autores
brasileiros continuam a lançar mão do termo clown, ora o privilegiando, ora o
diferenciando, ora o igualando ao termo palhaço. O “Léxico de Pedagogia do
Teatro”, de Ingrid Dormien Koudela e José Simões de Almeida Junior,
apresenta o verbete clown (2015, p.30) e deixa o verbete palhaço ausente da
obra. Em 2003, Renato Ferracini opta pela denominação clown e a diferencia
do palhaço citando a seguinte passagem de “Arte do ator – da técnica à
representação”, de Luís Otávio Burnier, de 1994: “o palhaço é hoje um tipo
que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas extravagâncias,
ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto consigo mesmo”
(FERRACINI, 2003, p. 220). Cristiane Paoli Quito, em sua dissertação de
mestrado, não se atarda em diferenciações. Em uma única frase indistingue os
dois termos: “… o palhaço, ou clown, é também uma máscara...” (2016, p.28).
E com tal abordagem, Paoli Quito leva adiante sua exposição sem prejuízo da
compreensão do sujeito tratado.
Para voltar aos anos de 1990, vale dizer que nos Doutores da Alegria, primeiro
grupo de palhaçaria a atuar de modo sistemático em hospitais do Brasil, o
termo clown também foi largamente difundido e preferido ao termo palhaço
durante certo tempo. Nessa organização, naqueles anos, exigia-se, por
exemplo, que aspirantes a doutor da alegria tivessem uma experiência cênica
especializada na “linguagem do clown”. Mas, aos poucos, pessoas oriundas de
formações ditas tradicionais passaram a integrar a trupe de artistas que ia aos
hospitais8, colaborando para que paulatinamente o termo clown, ao menos na
acepção daqueles inícios de anos 1990, fosse abandonado junto com seus
critérios de utilização. Hoje, nos Doutores da Alegria, e em outras associações

8
Nos Doutores da Alegria, a abertura para outras linhagens de palhaço ocorreu a partir de um processo de seleção de
artistas em Recife, em 2002, alastrando-se posteriormente às outras unidades da Associação. Naquela ocasião,
percebeu-se a potência que diferentes abordagens e visões do fazer palhacesco traria ao trabalho no hospital.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 20
neles inspiradas, prevalece o termo em português, palhaço,
independentemente de suas origens circenses ou escolares, clássicas ou não
clássicas. Além disso, nos hospitais brasileiros, a utilização do termo clown
nunca existiu, ao menos por parte dos pacientes infantis. Ali, para eles, o
palhaço e a palhaça sempre foram unânimes.
Voltando à questão do aprendizado fora dos circos e círculos tradicionais,
podemos dizer que, após o advento das escolas, o termo palhaço parece
ganhar em nuance ou, ao menos, parece revelar aquilo que, talvez até mesmo
no circo, subjaz como chama insubstituível para quem pretende envolver-se e
mergulhar nesse ofício. Como evocado acima, palhaça e palhaço passariam a
designar, antes de qualquer invólucro ornamental, antes de qualquer
maquiagem ou nariz vermelho, antes de qualquer dualidade entre augusto e
branco, palhaço e palhaça passariam também a designar aquelas pessoas que
praticam no palco, ou no picadeiro, ou no hospital, a exposição cênica do que
há de ridículo no ser humano, a partir do que há de ridículo em si, para a
partir dessa chama primordial tentar acessar o riso de seu público.

Commedia Dell'arte, bufonaria, palhaçaria e brincantes

A concepção adotada e difundida por Jacques Lecoq sem dúvida cria uma
possibilidade de contorno mais nítido na figura palhacesca, apontando assim
para o que, para muitos, seria sua essência.
Vale dizer contudo que, durante sua vida, Lecoq abordou em sua escola a
comicidade através de pelo menos três domínios distintos: o da palhaçaria, o
da bufonaria e o da Commedia Dell’Arte.
Simplificando ao máximo, e assumindo de antemão todos os riscos que tal
redução suscita, tracemos aqui um brevíssimo e esquemático resumo de como
essa distinção se apresenta.
Digamos que essas três figuras cômicas operam segundo os seguintes
princípios:
Figura 1: o palhaço e a palhaça expõem seu próprio ridículo para provocar o
riso do público.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 21


Figura 2: o bufão e a bufona se divertem, muitas vezes zombando do público,
para provocar, primeiramente, o riso em si próprios.
Figura 3: as máscaras da Commedia Dell’Arte, se também expõem o ridículo
das relações humanas, o expõem com o auxílio de personagens tipificados
cujos códigos de jogo e personalidades não nascem necessária e
exclusivamente de uma pesquisa interna e pessoal, mas são antes de tudo
herdados de uma tradição que deve se reinventar constantemente para
permanecer viva.
Vale também dizer que, assim como na Commedia Dell’arte, temos na tradição
brasileira figuras cômicas presentes em nossas manifestações mais ancestrais.
Mateus, Bastião Catirina, Velho, Clóvis são personagens que, entre outros,
povoam e alimentam o imaginário popular do país. Seja no Cavalo-marinho, no
Pastoril, na Folia de Reis, nos Autos e Carnavais, percebemos uma
dramaturgia entrelaçada com dança e música sempre acolhedoras e
reveladoras do que poderíamos chamar de “palhaços brasileiros”. Esses
“brincantes”, como se auto denominam, tem transbordado do círculo das
festas populares para cada vez mais adentrarem o espaço das salas de aulas e
teatros de nossos centros urbanos.9
Se de um ponto de vista pedagógico, essas distinções entre bufões,
brincantes, palhaços e tipos cômicos auxiliam estudantes de teatro a
reconhecerem diferentes territórios dramáticos, é preciso reconhecer também
que territórios dramáticos não são substâncias puras cujas classificações
seriam irretocáveis.
Sob esse olhar, podemos voltar ao circo e à tradição popular e lá reconhecer o
cômico que, simultaneamente, expõe seu ridículo, ri do outro e age segundo
uma tipificação herdada – ou conquistada – da tradição.10 Evidentemente,
como dito acima, esses ingredientes se misturam a outros, e cada artista cria
e recria sua própria composição de comicidade, ora sendo mais bufão, ora

9
Para maiores informações a respeito das figuras dos brincantes, cf. “Palhaços do nosso povo” (LULU; FRANCO,
2010)
10
T.S. Eliot, em seu ensaio “Tradição e Talento Individual”, apresenta uma interessante rotação de perspectiva sobre
nossa relação com a tradição: A tradição “não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la com grande
esforço” (ELIOT, 1989, p. 38).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 22
sendo mais personagem tipificado, ora sendo mais palhaço, ora sendo mais
brincante, e ora sendo o que ainda nem sequer foi nomeado.

A consciência dessa diversidade de comicidades, mais do que separar


territórios, pode ajudar a praticante e o praticante a mergulhar em diferentes
campos de pesquisa e, caso queira, misturá-los conforme seus desejos
artísticos mais genuínos. Essa consciência nos revela também a dificuldade
em agarrar e reter essa figura que, como temos visto, por um lado nos destaca
seus contornos e, por outro, se esgueira, se desalinhava, se renomeia
perpetuamente fugindo de uma definição certeira e única.

A contribuição do cinema

Façamos então um desvio até o caso do cinema a fim de entrever como essa
arte nascida no crepúsculo do século XIX incorpora aos poucos a figura
cômica.
É interessante perceber o quanto a comicidade do cinema nascente, e
posteriormente a da televisão, se inspiraram nos antigos números de circo
para a partir deles gerar novas possibilidades de humor. Se acompanhamos a
migração da comicidade circense em direção às telas no início do século XX,
podemos observar como os cômicos das telas se viram obrigados a sintetizar e
compactar, por assim dizer, alguns dos elementos que os cômicos das lonas
ampliavam e dilatavam. O que era grande em exuberância no picadeiro
tornou-se grande em sutileza no cinema e na televisão.
Essa migração, entretanto, não se faz sem escalas. Para sair da cena circular
do picadeiro e atingir a tela plana do cinema, essa comicidade, muitas vezes,
atravessou os palcos frontais do Music Hall. Esse gênero teatral nascido no
hemisfério norte ocidental no final do século XIX foi berço e celeiro de muitos
futuros cômicos e cômicas da chamada sétima arte. Ali, artistas da lona
podiam – e deviam – adaptar suas habilidades circenses a uma nova
configuração espacial. Palcos menores, plateias mais próximas dos artistas,

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 23


novos sistemas de iluminação eram alguns dos fatores que determinavam
experimentações distintas e distantes da exuberância exigida pelo picadeiro.
Pierre Etaix, que transitou entre a lona e as telas, lembra outra característica
que a cinematografia nascente exigia de seus cômicos:

o cinema faz rir a partir de coisas e emoções da vida cotidiana


[…], o cinema se nutre do real, enquanto o palhaço de circo é um
personagem totalmente irreal (ETAIX, 1982. p. 164).

Em seu livro The Silent Clowns, Walter Kerr diz, de modo semelhante, que nos
filmes mudos, ao reconhecermos um personagem grotesco, devemos ao
mesmo tempo reconhecê-lo como um ser humano. Nesse tipo de filmes, um
ser estranho deveria ser antes de tudo um ser humano estranho, cuja
estranheza não o impedisse de passear tranquilamente pelas ruas ou pegar
um táxi, por exemplo (KERR, 1975, p. 155).
De acordo com esses exemplos, percebemos como essa nova arte parece
dispensar a indumentária, a maquiagem e a gestualidade ampliada das figuras
cômicas do circo tradicional para, ao invés disso, deixar surgir figuras cômicas
menos espalhafatosas e, portanto, mais próximas da imagem do “cidadão
comum”. Sob essa perspectiva vemos surgir os cômicos burlescos dos
primeiros anos do cinema (Charlie Chaplin, Buster Keaton…). Se, além disso,
consideramos como o traço fundamental do palhaço, ou da palhaça, o fato de
ele “ser a piada”, enquanto os demais cômicos “mostram a piada”, veremos
como facilmente Chaplin e Keaton se inserem, na maior parte do tempo, na
família dos palhaços.
Mas há quem inclua também entre os influenciados por palhaços (e também
influenciadores de palhaços) aqueles que deliberadamente flertam com o
absurdo ou mergulham no lado obscuro – ou bufão – da vida (Monty Python,
no cinema, e Leo Bassi, no teatro, são alguns exemplos que abalam as divisas
entre uma categoria e outra). Como se vê, nesse caso, nosso leque volta a se
ampliar. E qualquer “pureza essencial” parece se desvanecer.
Mas talvez seja justamente tal ampliação que, já aqui, nos ajudará a entrever
que no cômico reside certa inapreensibilidade típica das artes que o libera de
ser categorizado segundo fronteiras imutáveis. Mais do que simplesmente

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 24


evitar novas turbulências classificatórias, tal percepção, como veremos mais
adiante, não deixa de ser instigante ao esfumaçar contornos e dilatar
porosidades entre as diferentes comicidades.
Por enquanto, vale também notar que, durante a migração do circo para o
cinema, o palhaço articula uma transformação de linguagem. O que poderia
ser encarado apenas como uma adaptação artística e necessária de um meio a
outro acabou engendrando, ao mesmo tempo, uma linguagem explodida em
uma miríade de vertentes de fazedores de riso na TV e no cinema. Mais do
que uma acomodação, e mais do que um ajuste, o humor praticado no cinema
e na televisão se viu criador de estilos que, por sua vez, voltaram a inspirar e
a reformular a própria concepção formal da palhaça e do palhaço que atuam
hoje em circos e é ensinado nas escolas. Mario Bolognesi lembra o caso de
Kuxixo, palhaço de circo tradicional brasileiro e admirador de Charlie Chaplin.
Segundo o pesquisador, Kuxixo apresenta-se de terno preto, maquiagem sutil
e um pequeno bigode, criando assim uma “síntese entre o tradicional Augusto
[…] e o ator e diretor de cinema mudo.” (BOLOGNESI, 2003, p. 95).
A partir de tais dados, talvez seja possível conceber com mais maleabilidade
que o augusto que circula nos picadeiros dos dias de hoje pode ser
influenciado pelo humor praticado nas telas dos novos e novíssimos meios de
comunicação sem que, com isso, os códigos da tradição circense sejam
negados.
Talvez acolhamos também com mais facilidade o fato de que as investigações
realizadas hoje nos cursos de teatro passam a reconhecer e a mesclar em seus
métodos de ensino os frutos do aprendizado tradicional do palhaço oriundo
das lonas e das festas populares.
Restaria, por fim, saber como encontrar, a partir de tais constatações, um
caminho genuíno diante de tamanha reverberação de possibilidades.
E o palhaço, o que é?, uma vez que as dicotomias se atenuam e ele pode ser
tantas coisas?

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 25


A contribuição dos arquétipos

Para mesclar perspectivas às nossas já multifacetadas pistas, vale lembrar que


alguns pesquisadores, em busca de uma resposta à pergunta acima formulada
e no encalço de um suposto traço essencial do palhaço, trazem à tona a noção
de “arquétipo”.
Esbocemos alguns pontos do assunto.
Para C.G. Jung, um arquétipo seria como uma imagem ou, se preferirmos, um
modelo de comportamento humano herdado psicologicamente de nossos
ancestrais.11 Sua origem, entretanto, “permanece obscura e inescrutável
porque sua pátria é aquele misterioso reino das sombras, o inconsciente
coletivo, ao qual jamais teremos acesso direto.” (JACOBI, 1957, p.38). Entre
as imagens residentes no “misterioso” inconsciente coletivo, encontra-se uma
variedade de modelos arquetípicos: a mãe, o pai, deus, o herói e muitos
outros. E o palhaço seria, para alguns, a representação de uma dessas
imagens ancestrais, denominada trickster. Para dar uma ideia de outras
representações do trickster, podemos citar, na mitologia brasileira, o Saci e o
Curupira e, nos desenhos animados estadunidenses, o Pica-pau e o
Pernalonga. E a lista se estenderia longamente.
Alice Viveiros de Castro, por exemplo, erige seu Elogio da Bobagem sob o
signo do arquétipo. Cedo, entretanto, a autora reconhece a dificuldade em
expor as características e as diferenças entre as várias denominações que o
arquétipo do cômico pode tomar (bufão, palhaço, zanni, jogral, saltimbanco,
bobo da corte…), e não hesita em esclarecer que “todas essas tentativas de
determinar um nome para cada tipo e de fixar cada um dos tipos com seu
devido nome são sempre vãs.” (CASTRO, 2005, p. 31).
Sem entrar nos pormenores dessas dificuldades, poderíamos dizer, contudo,
que o trickster constitui-se de uma imagem alegre e trapaceira que trafega
com ambiguidade entre o humano e o animal, entre o sublime e o grotesco,
entre o masculino e o feminino, entre o adulto e o infantil. Incoerente,

11
Carl Jung, no prefácio ao livro “Complexo, Arquétipo, Símbolo”, de Jolande Jacobi, resume: “No ser humano, os
instintos manifestam-se em imaginações fantasistas, atitudes e atos irrefletidos e involuntários. […] Eles têm um
aspecto dinâmico e outro formal. […] Para esse aspecto formal do instinto, escolhi […] a denominação de
“arquétipo” (JUNG, in JACOBI, 1957, p. 10).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 26
inconsequente e desprovido de poder, o trickster seria, como lembra o
dramaturgo Luís Alberto de Abreu, detentor da “mesma energia que anima a
primeira infância de um ser humano” (ABREU, 2015, p.26). Esse arquétipo
seria como o leito original de uma multitude de outras representações que
passam, além das já citadas acima, pelo Bobo da Corte, pelo Coringa das
cartas de baralho, pelo Louco da carta do Tarô, pelas máscaras da Commedia
Dell'arte, por brincantes da tradição brasileira e por bufões das mais variadas
linhas. Essas e outras figuras, nem sempre fáceis a cernir e muitas vezes
embaralhadas por confusões semânticas, seriam derivações ou representações
de uma fonte original. Elas estão presentes em diferentes culturas, são figuras
de épocas distantes, de regiões longínquas, do Ocidente, do Oriente, do
extremo norte, do extremo sul, antigas ou contemporâneas, com funções
sociais e estatutos distintos, mas unidas sob o traço da criatividade da alegria,
da irreverência e regidas (se quisermos) por uma espécie de “não-norma” que
as alojaria todas sob um mesmo arquétipo.
Ainda sob uma perspectiva psicológica, vale lembrar que não são poucos os
estudos que comparam a figura arquetípica do palhaço e, no nosso caso
específico, a do palhaço e a da palhaça em hospital, com a figura de xamãs ou
outros curandeiros e curandeiras aptos à adivinhação, exorcismo e outras
propriedades mágico-religiosas.12 Suas atribuições seriam comparáveis em
diversos aspectos, tanto pela maneira como subvertem os símbolos de uma
determinada sociedade (um palhaço ou palhaça vestindo jaleco de médico, por
exemplo) como pela maneira como contribuem com o reforço dos laços dos
integrantes dessa mesma sociedade. Dessa maneira, haveria na atuação
dessas figuras uma função psicossocial e equilibradora que integra os
membros de uma determinada sociedade apesar da – ou melhor, a partir da –
“desordem”; uma função que não deixa de sugerir, em certo sentido, a
liberdade e também a cura.
O assunto é longo e, embora não caiba nos capítulos deste estudo, é inegável
que seu desdobramento pode apresentar novos olhares para o estudo sobre

12
Wellington Nogueira, ao citar William Willeford, defende que palhaços tem capacidades distintas: alguns são
especialistas em truques e piadas e “outros compartilham funções religiosas e mágicas junto a padres e homens de
medicina que têm a responsabilidade direta sobre o bem-estar da sociedade.” (2007, p. 28).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 27
palhaços e palhaças. Ele certamente pode contribuir para o esfacelamento da
dicotomia entre as definições “clássicas” e “contemporâneas” acerca do
palhaço ao inseri-las, ambas, em um balaio de cômicos mais amplo e
recheado. Tal manobra acabaria por fornecer aos “antigos” e aos “novos”,
assim como a todos os demais cômicos, um estatuto de “legitimidade” que não
aniquila a “legitimidade” do outro. Ao resgatar um fundo comum capaz de
abrigar a comunidade de “fazedores de riso”, a noção de arquétipo, tal qual
trazida à tona por certos estudos, estabelece laços outrora improváveis entre
figuras tão variadas quanto, aparentemente, contraditórias.

Evidentemente, há oposições a tal concepção. Se a noção de arquétipo acolhe


traços supostamente básicos a todos cômicos, ela parece não se deter em
certos traços específicos que, por exemplo, opõem diametralmente um ser que
ri de si mesmo de um ser cujo motor é o deboche ou zombaria do outro. Nesse
sentido, a noção de palhaço, apesar de incerta, não pode abarcar tudo. André
Sallée invoca

a posição de alguns puristas e intransigentes do circo que


afirmarão que o que vem antes do palhaço não é palhaço. Para
eles, qualquer grotesco, bufão, zanni […] anterior a 1774 não é
palhaço. O mesmo princípio se aplica a qualquer cômico
contemporâneo que, por mais engraçado que seja, não atue
segundo seus irredutíveis critérios (1982, p. 34).13

E, assim, os argumentos se multiplicam a favor ou contra tal ou tal ponto de


vista.
Diante disso, talvez aqui tenhamos chegado ao momento em que uma outra
via de busca se apresente, uma via que aborde essa figura paralelamente às
classificações e supostas definições: a via do exercício prático! – ao menos
para aqueles e aquelas que fazem ou pretendem fazer do ofício da palhaçaria,
e mais especificamente da palhaçaria em hospital, uma atividade primordial
em suas existências.
Resta-nos, portanto, saber como ir ao encontro desse ser cuja história, vasta e
multifacetada, deve se aliar à história pessoal, e também multifacetada,

13
1774 é o ano em que Philip Astley, a quem se atribui a invenção do circo moderno, leva seu espetáculo a Paris.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 28
daquele ou daquela que pretende entendê-lo na carne e nos ossos, ou seja,
mergulhando em uma investigação cênica profunda e absolutamente sincera.

Uma vez que tocamos de relance em alguns aspectos do dito palhaço


“tradicional”, que passeamos pelo aprendizado dito “contemporâneo”, que
sobrevoamos o cinema mudo e as ditas semelhanças substanciais entre
cômicos promovidas pela noção de arquétipo, talvez seja o momento de girar o
leme. Não para abandonar o destino, apenas para suspender a rota balizada a
fim de que outras veredas possam, eventualmente, nos surpreender.
Quem sabe assim possamos integrar à infindável busca pelo traço coletivo e
essencial de todo palhaço e palhaça a também infindável busca pelos traços
particulares e transitórios de cada palhaço e de cada palhaça.
Enquadrar tal busca sob a via da prática poderia ser nosso próximo passo ou,
nos termos deste ensaio, nosso próximo desvio.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 29


A FORMAÇÃO

Caminho próprio

Como vimos, palhaçaria pode dizer respeito a muitas coisas. Estudiosos nem
sempre estarão de acordo com relação aos pormenores de suas propriedades
e de sua história. E uma abordagem não substitui necessariamente outra.
Porém, há um dado que deveria amparar quem pretende se lançar em uma
experiência prática como palhaça ou palhaço, seja para levar tal figura ao
palco do teatro, ao circo, à rua, ao hospital, a instituições ou a qualquer outro
lugar insuspeitável onde essa figura se permita adentrar. E esse dado poderia
ser abordado da seguinte maneira: se o conhecimento da diversidade histórica
e estilística daqueles e daquelas que nos precederam na arte da palhaçaria é
importante, o conhecimento das possibilidades de nosso próprio caminho
nessa arte, além de importante, é indispensável.
E essa experiência cênica merece acontecer como um mergulho, uma paixão.
E tal mergulho apaixonado será mais profundo quanto mais distante ele
estiver do mero acúmulo de opiniões, quanto mais distante ele estiver da
busca desenfreada pelo acerto ou por verdades aparentes. Uma distância
metodológica em relação a esses “perigos” talvez seja a chave para nos
aproximar de uma investigação sólida e vivida, investigação cujos frutos não
se desvelam necessariamente de imediato, mas uma investigação certamente
potente. É um caminho que se tateia generosa e humildemente, que se
descobre com um treinamento constante, ao longo do qual o germe do palhaço
poderá se insinuar dentro de nós, brotar, vir a fazer sentido e, com sua
singularidade, vir a fazer parte da diversidade geral das palhaças e palhaços
deste mundo.
Haverá várias vertentes, escolas, tradições e, é evidente, influências. Tal
diversidade, elevada a seu paroxismo, talvez implique aceitar que, para existir,
cada artista da palhaçaria terá que ser único e, por ser único, traçará, não
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 30
necessariamente um novo e inédito modelo, mas um franco e autêntico
percurso.
Vale lembrar que tal singularidade não se inventa, descobre-se. Não se
fabrica, constrói-se e desconstrói-se permanentemente ao longo de anos de
dedicação, trabalho, estudo e questionamento. Não há um caminho pronto,
balizado e seguro. O que existe - ou deveria existir -, entretanto, é a confiança
para encarar a insegurança do caminho. Não basta, portanto, treinar risadas,
imitar caretas, vestir calças do avesso ou reproduzir gags prontas. Philippe
Gaulier, nesse sentido, enfatiza que “a gag conta pouco; o público ri do
ridículo e da humanidade do palhaço”. (2012, p. 115). Como já evocamos mais
de uma vez, as formas não valerão nada se não forem preenchidas com um
conteúdo adequado, humano e, sobretudo, pessoal. Mas vale lembrar: tal
pessoalidade, além de não ser projetada de antemão, tampouco supõe um
isolamento das demais pessoalidades. Ao contrário, a palhaça ou o palhaço
único e pessoal não é um ser concluído e ensimesmado. Ele é um ser
relacional. Que se redescobre, vibra, se potencializa e se modifica no instante
do encontro com os outros.14
Nas pediatrias dos hospitais, como se verá adiante, as visitas leito a leito são
pautadas e conduzidas a partir da inter-ação entre o palhaço, a palhaça, e os
jovens pacientes. A atuação da palhaça, ou do palhaço, integra e considera os
outros (a criança e seus acompanhantes) enquanto sujeitos da atuação, ao
convocá-los a participarem de seu dispositivo artístico. Sua “obra”, se assim
quisermos chamá-la, está então em perpétua feitura e dependente dessa
relação. Ou, como diz Suely Rolnik a respeito do trabalho de Lígia Clark, a
obra, nesse caso, é “um acontecimento que toma corpo na relação entre seus
‘experimentadores’ e o mundo” (ROLNIK, 2011, p. 3).

14
Nicolas Bourriaud, em seu livro “Estética Relacional”, discorre sobre essa forma de arte “cujo substrato é dado pela
intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o ‘encontro’ […] , a elaboração coletiva do sentido.”
(BOURRIAUD, 2009, p. 21)
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 31
Relação e encontro

Eis aí duas noções que permearão este estudo, relação e encontro, sobretudo
quando adentrarmos nas questões do hospital propriamente dito. A fim de
evitar interpretações por demais discrepantes, vale ressaltar já de início algo
que nos parece palpável, mas que talvez não esteja totalmente isento de mal
entendidos. De um tal processo relacional não se espera, obviamente, que
pacientes hospitalizados tenham em mãos um leque de habilidades
palhacescas, ou um domínio dramatúrgico equivalente ao de palhaços ou
palhaças. Crianças ou adultos enfermos serão co-criadores de jogo na medida
em que são ouvidos e considerados. Não é um problema palhaços e palhaças
conduzirem a situação. Não é um entrave palhaços e palhaças terem posturas
estéticas, éticas e políticas bem estabelecidas. O problema existirá quando tal
condução e tais posturas não considerarem os desvios, as pausas e qualquer
outro estímulo que seus interlocutores realizarem durante a intervenção. Ter
uma postura e conduzir, nesse caso, não significaria controlar. E a interação
será plena, não por haver um equilíbrio entre a quantidade de ações das duas
partes (artista e paciente), mas por haver equilíbrio entre a qualidade de
escuta dessas partes.

Dito isso, podemos continuar lembrando que o palhaço e a palhaça, vistos


como participantes de um acontecimento surgido de sua relação com o outro,
nos tragam indícios tão ou mais potentes do que a busca por sua essência,
natureza ou determinação. Experimentemos, então, um olhar sobre o palhaço
e a palhaça a partir do que acontece e não somente do que é.
Vejamos como essa rotação de perspectiva pode vir a contribuir com a
abordagem pedagógica da palhaçaria. Mas antes, façamos uma digressão que
poderá ajudar no esclarecimento de certos propósitos.

O inadvertido Chaplin

Tomemos o exemplo de O Circo, de Charlie Chaplin.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 32


Nesse filme, Carlitos irrompe no picadeiro várias vezes, ora fugindo da polícia,
ora fugindo de um cavalo... A cada nova entrada ele, inadvertidamente, causa
mais gargalhadas no público do que os próprios palhaços oficiais do circo. Tal
situação o leva a ser contratado pelo patrão do circo.
De um ponto de vista pedagógico, o que nos interessa na descrição da cena
acima é o advérbio inadvertidamente. Porque, nesse exemplo, a construção
dramatúrgica do filme exige que o personagem Carlitos não saiba por que se
ri dele. Sua preocupação está em outro lugar: sobreviver às perseguições. E
esse mesmo estado de inadvertência, ou de inconsciência, quando ocorre ao
estudante em um ambiente pedagógico, pode revelar, como diz Gaulier, as
“vulnerabilidades e idiotices que estão na origem do nascimento de seu
palhaço” (2012, p. 138).
Desse mesmo ponto de vista pedagógico, poderíamos arriscar a pergunta:
Quem nasceu primeiro, o palhaço ou o riso? Ou, em outra formulação: é o
palhaço que gera o riso em seu público ou será, como no filme de Chaplin, o
riso do público que gera o palhaço?

Quem é? ou quando é?

E se o pesquisador, iniciante ou iniciado, suspendesse a busca sobre quem é


seu palhaço para se prontificar a descobrir quando é que seu palhaço se
revela? No suspender momentâneo e metodológico das ideias e dos ideais,
dos conceitos e dos preconceitos, talvez resida uma possibilidade para que o
palhaço apareça quando menos se espera, desimpedido, espontâneo,
inadvertidamente. E uma tal suspensão da busca de uma identidade desse
personagem pode ser bastante benéfica, sobretudo se concordarmos que
“pensar demais em um personagem o limita consideravelmente” (GAULIER,
2012, p. 135).
Vejamos como a discussão da primeira parte deste ensaio repercute também
na abordagem pedagógica da palhaçaria.
Citemos novamente “O livro do Palhaço”, de Cláudio Thebas, no qual vários
palhaços e palhaças do Brasil respondem à seguinte pergunta proposta pelo

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 33


autor: “o que é ser palhaço para você?”. Todas as respostas são obviamente
verdadeiras do ponto de vista de cada entrevistado e, de um modo geral, não
deixam de contribuir com a estimulante indefinição geral acerca desse ofício.
Uma resposta dentre as demais, no entanto, chama a atenção pela sua
aparente secura e incompletude: “Palhaço é uma profissão”, diz Fernando
Sampaio (THEBAS, 2005, p. 27). Ora, se jardineiro, bancário e arquiteto
também são profissões, então, em que a resposta de Sampaio acrescentaria à
distinção entre ofícios?
Nesse sentido, ela talvez não acrescente muita coisa, mas não deixa de
enriquecer a questão ao subtrair do palhaço qualquer traço transcendental,
idealista ou essencialista. Uma resposta como essa nos provoca a deixar de
querer dizer o que é palhaço para, em vez disso, deixar-nos afetar por ele; ela
também parece suspender momentaneamente a provável (e, como temos
visto, também discutível) natureza rebelde, subversiva, libertária, frágil,
vulnerável do palhaço para colocá-lo simplesmente no fazer. Não que as
características acima lhe sejam indiferentes, mas simplesmente para lembrar
que não há um modo canônico de abordagem da palhaçaria capaz de
“purificar” o assunto.

Por isso, não é raro constatarmos que questões do tipo “quem é meu palhaço
realmente?” mais freiam do que aceleram a existência e a atividade desse ser.
Como diz Clément Rosset,

se enquanto eu nado eu me pergunto em que consiste a natação,


eu me afogo. Se enquanto eu danço eu me pergunto em que
consiste a dança, eu caio no chão.

E continua o filósofo francês:

quem com frequência se examina não avança em nada no


conhecimento de si próprio. E quanto menos nos conhecemos,
melhor nos portamos (ROSSET, 1999, p. 86).

Com a arte da palhaçaria talvez não seja diferente. Seu exercício implicaria
uma certa inconsciência de si. Essa inconsciência, da qual trataremos mais

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 34


adiante, e que acima chamamos de inadvertência – e que Paulo Leminsky
eternizou na frase “Distraídos Venceremos” – talvez devesse fazer parte da
prática de todos e todas que pretendem se formar continuamente nessa arte,
seja qual for a estrada escolhida.

O jogo

Como vimos, o estudo do palhaço não se restringe mais ao ensinamento


dentro dos circos; o estudo do palhaço, entre outras abordagens, também
passa a ser dirigido a todo aquele e aquela que efetuam uma busca interior e
profunda dentro de seu baú pessoal de fragilidades a fim de expô-las aos
outros – através da técnica do jogo – no intuito de neles gerar algum riso.
E já que falamos em jogo, abramos um parêntese fundamental para abordar
essa noção tão recorrente entre os atuantes da cena.
Gonçalo M. Tavares, em seu “Atlas do Corpo e da Imaginação” resume bem:
“O jogo é quase sempre isto: regras que se fixam e, dentro delas, liberdade
que se oferece” (2013, p. 282). O jogo no teatro, assim como a brincadeira de
criança e o jogo esportivo, se alinham à frase acima. E possuem traços
comuns. O limite espacial é um desses traços: o palco para os atores, o
traçado de giz da amarelinha para as crianças, e o campo de futebol para os
esportistas são exemplos de “espaços de jogos” cujas fronteiras perimétricas
visam criar um “ninho” protegido que potencialize a realização do próprio
jogo.
Novamente Gonçalo M. Tavares, dessa vez evocando Umberto Eco, atenta
para um outro traço – talvez o mais crucial de todos – que constitui o jogo: o
desperdício.

Se arremesso uma pedra pelo puro prazer de a arremessar – não


para um fim utilitário qualquer – desperdicei calorias […]: este
desperdício – que fique claro – é profundamente são. […] O jogo é,
em suma, uma manifestação explícita, quase obscena, de um
corpo vivo. Um corpo vivo que joga diz aos outros – tenho tanta
energia (isto é: estou tão vivo) que até a posso desperdiçar. (2013,
p. 283-284).

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 35


Essa capacidade de jogar enquanto houver vida pulsante disposta ao
desperdício, tal qual descrita acima, abre uma grande pista de entendimento
das relações estabelecidas por palhaços e palhaças em hospital. Trataremos
de alguns aspectos dessas relações no capítulo “Hospital” deste estudo. 15
Continuemos, por enquanto, a ver como a imaginação ilimitada face a um
certo número de regras é outra característica que se verifica nas diferentes
modalidades de jogos. Mas mais do que isso, lembremos que o que nos
interessa aqui é destacar onde o teatro diverge das demais modalidades.
Os jogadores no teatro (atores e atrizes) são cúmplices, e não adversários. Seu
objetivo não é a disputa e menos ainda a vitória, uma vez que seu jogo não se
baseia no modelo competitivo. Eis aí algo fundamental para quem atua em
qualquer categoria cênica.
E o palhaço é uma dessas categorias!
Portanto, ele só existe ao jogar. Seu impulso vital depende do jogo consigo
mesmo, com o parceiro, com o público, com a câmera de cinema ou televisão;
sua manutenção depende do jogo que ele descobre ao improvisar livremente
sem estrutura ou tema predefinido, ou que ele descobre em uma partitura
cênica, número ou esquete previamente escrita e estruturada. Seja qual for a
situação, é difícil conceber a vida desse artista sem a noção de jogo, sem essa
“aspiração primeira” (GAULIER, 2011, p. 29).
No ambiente da saúde, seu jogo pode ajudar na restauração da transição
entre o mundo exterior e o mundo interior do hospital, muitas vezes
angustiante para a criança hospitalizada. Ele pode auxiliar a recompor a parte
do paciente que está em sofrimento. Lembremos que para uma criança
fragilizada pela doença, o jogo, além de oferecer movimento a seu imaginário,
permite-lhe resgatar laços afetivos. A figura palhacesca, com seu nariz
vermelho, seus gestos, sua musicalidade e sensibilidade à improvisação pode
transportar a criança a uma dimensão lúdica que a extrai momentaneamente
do hospital.

15
Morgana Masetti, através da noção da Ética do Encontro, é uma pesquisadora que também tem abordado as
qualidades dessas relações com afinco e reiteradamente. (http://www.eticadoencontro.com/category/seminarios-e-
oficinas/).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 36
Vale lembrar que viver uma situação de improvisação é se situar longe de
padrões estéticos a serem copiados. Mais do que isso, improvisar é se colocar
disponível a uma descoberta pessoal de atuação que ilumine o caminho a ser
tateado na evolução da própria improvisação.

A improvisação

Façamos aqui algumas observações com o intuito de tornar mais preciso o


emprego do termo improvisação.
No ambiente da saúde, sobretudo em visitas efetuadas leito a leito, a
dualidade entre palhaço sujeito de uma atuação e público objeto de uma
atuação tende a amolecer. Tal dicotomia é passada em revista dada a natureza
do encontro privilegiado e, digamos assim, horizontal, que pode ocorrer entre
artistas e pacientes dentro de uma enfermaria, quarto ou corredores de
hospital.
Nessas situações, a capacidade de improvisar se torna um recurso
indispensável a quem deseja experimentar a palhaçaria em um encontro com
pessoas enfermas. E, aqui, a distinção: improvisar num hospital não se resume
a uma prática que revelaria a habilidade de um improvisador em satisfazer
uma demanda expressa por um espectador. Não queremos dizer com isso que
essa estrutura, presenciada nas competições de improvisação, seja desprovida
de rigor e valor. Mas, enquanto estrutura que expõe prioritariamente um
"ator-sujeito" atuando para satisfazer um objetivo definido por um
"espectador-objeto", ela talvez não preencha a potência relacional oferecida
pelo ambiente hospitalar.
Queremos dizer que, mesmo quando o pontapé inicial da intervenção é dado
pela palhaça ou pelo palhaço, mesmo que certas estruturas ditas clássicas
apoiem suas ações dentro de uma enfermaria, será sempre exigida de tais
artistas uma abertura irrestrita para o inesperado que o outro (paciente ou
ambiente) manifesta. E, se um dos recursos para lidar com essa abertura é a
improvisação, ela contudo merece ser uma improvisação isenta de ponto de

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 37


chegada, de resultados previsíveis; ela deve ser livre de objetivos pré-
definidos.
O treinamento para as diferentes “aplicações” da improvisação são distintos.
Uma coisa é improvisar em função das demandas expressas e explícitas de
uma plateia em uma sala de espetáculos.16 Outra coisa é o que se passa no
recinto hospitalar. As demandas em um hospital são genuínas, legítimas,
extremas, mas nem sempre explicitamente formuladas. No hospital, a
improvisação é um meio, e não o fim, da intervenção. A predisposição e os
riscos de artistas que ali intervêm são, portanto, outros, distintos daqueles
que querem engajar (ou divertir) a plateia em um espetáculo em que a
improvisação, além de meio, parece ser necessariamente a razão final da
existência do próprio objeto artístico. Não há melhor ou pior modelo e, sem
dúvida, ambos podem nutrir-se mutuamente. Estamos apenas tratando de
aspectos distintos de um mesmo conceito, visando esclarecer seus usos e
potencialidades mais frequentes.
Estabelecida tal distinção, lembremos que a improvisação, em qualquer uma
de suas instâncias, se pratica!
E para que a prática desse caminho seja seguida, alguns requisitos são
solicitados aos atores/jogadores, entre eles, a escuta, a presença e a
cumplicidade (RYNGAERT, 2009, p. 55).
Escutar a si mesmo e ao parceiro é uma das principais qualidades que se
exige do palhaço, da palhaça e de qualquer outro “jogador cênico”. Uma real
escuta demanda generosidade e abdicação. Entretanto, não se trata de uma
atitude passiva ou de uma perda de individualidade. Pelo contrário, abrir-se ao
outro e ao espaço que nos circunda significa estar ativamente conectado com
os fenômenos e eventos do instante presente. Significa descolonizar-se das
ideias e projeções que, inevitavelmente, povoam nossa mente para deixar-se
levar pela real experiência em viver o momento em toda sua instabilidade e
impureza. É desse não-controle, desse vazio primordial, que um real estado de

16
Se os recursos do “teatro improvisado” se baseiam sobretudo nos fundamentos da “Impro”, erigidos por Keith
Johnstone, entre outros, em seu livro “Impro – Improvisation and the Theatre” (2008), vale dizer que os princípios
de Johnstone, ao contrário de se reduzirem exclusivamente a um conjunto de regras aplicáveis a “matches de
improvisação” e formas teatrais deles derivadas, alçam voos pedagógicos, estéticos e filosóficos muito amplos e
benéficos a diferentes modalidades teatrais.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 38
escuta pode surgir. E é a partir desse estado que a imaginação (e não as ideias
pré estabelecidas) pode se fortalecer e, por sua vez, nutrir a improvisação e
por ela ser nutrida. Se os jogadores envolvidos nessa situação possuem
prontidão para encarar os desdobramentos inesperados, e não programados
de antemão, eles se tornam cúmplices um do outro, prontos para escutar um
ao outro e, dessa maneira, fazer o jogo avançar em detalhes e primor.
Philippe Gaulier acrescenta, ou sobrepõe, a esses requisitos a noção de
prazer. Se essa noção está presente em todas as categorias cênicas, no
palhaço ela se faz evidente: “o público admira o prazer, a tática, a fantasia que
o palhaço tem para nos fazer acreditar em algo” (2012, p. 137). Se Lecoq tem
na noção de movimento o eixo em torno do qual gira sua pedagogia, para
Gaulier, a palavra mestra, a obsessão presente em todos seus cursos, é o
prazer, o prazer que qualquer estudante deve ter quando entrar em cena
durante sua formação, e jamais deixar tê-lo (ou buscá-lo) uma vez formado.
E, o que vale a pena ser lembrado: esses requisitos, essenciais a qualquer
indivíduo que se coloca em cena no teatro, circo, rua, hospital, podem – e
merecem – ser constantemente treinados a partir de exercícios em salas de
trabalho, ensaios, cursos ou escolas.

Os cursos

Os cursos e escolas que hoje em dia proliferaram nas grandes cidades são dos
mais diversos modelos.
Há desde as formações profissionalizantes de palhaços que duram dois ou
mais anos, com carga horária intensa de 4h/dia, 5 dias por semana, até os
cursos e oficinas de um fim de semana, ou até mesmo as vivências de uma
única tarde.
Em geral, cada formação acaba por tocar com mais ou menos profundidade
em princípios básicos, dificilmente contornáveis, tais como: a improvisação, o
jogo, a percepção de um estado de palhaço que nasce no momento em que a
pessoa que o “atua” passa a ter consciência de seu ridículo pessoal; a
utilização do nariz vermelho como instrumento de auxílio na revelação desse

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 39


estado; os diferentes status/tipologia de palhaço; a percepção rítmica; a
destreza técnica e musical como partes integrantes do treinamento regular do
palhaço; o recurso às gags do repertório clássico, ao contato com brincantes e
outras figuras menos hegemônicas...
A utilização dessas e outras ferramentas pedagógicas varia de formação para
formação. Algumas ampliam, reveem e discutem a potência de cada um desses
conceitos básicos, outras os aplicam de modo mais estrito. Seja como for, não
nos deteremos na análise de cada uma delas, 17 mas ressaltamos que artistas
com dedicação, sejam aprendizes iniciantes ou profissionais com experiência,
extrairão elementos de pesquisa, pistas de trabalho, caminhos a serem
desenvolvidos sempre que se colocarem em situação de aprendizado, seja lá
qual for a dimensão ou extensão de sua formação. Evidentemente, as
formações mais longas tendem a ser mais completas e aprofundadas, mas isso
não significa que as pequenas e curtas experiências vividas em oficinas sejam
desprovidas de valor, desde que, qualquer que seja a carga horária, se
proponham mais ao desafio de uma experiência transformadora do que à
transmissão de uma verdade pronta e concluída.
Se “educar é transformar o que sabemos, e não transmitir o já sabido”
(LARROSA, 2014, p. 5), cabe aos formadores e aprendizes da palhaçaria não
abdicar do questionamento perene sobre o significado de formar e ser
formado nessa arte.
Uma escola, curso ou oficina apoiada exclusivamente em "trilhos certeiros",
em detrimento de tentativas e desvios de programa, pode até fazer dos ditos
“trilhos” marcos para uma formação de palhaços, mas marcos provavelmente
falaciosos destinados a uma pedagogia moribunda. Afinal, um projeto
pedagógico, por mais sólido e constituído que seja, deve se atentar para o fato
de que, tão ou mais pulsante do que os "trilhos certeiros", são as tentativas,
esboços e tateamentos que poderão garantir a sobrevivência do programa
pedagógico.
17
Destacamos, contudo, a abordagem de dois exemplos brasileiros que aproximam palhaçaria e hospital em suas
formações: os Doutores da Alegria, embora não ofereçam nenhum curso específico de “palhaço em hospital”, não
deixam de apoiar-se em princípios oriundos da prática da palhaçaria hospitalar e transformá-los em recurso
pedagógico de parte de suas formações. Ana Achcar, coordenadora do Programa Enfermaria do Riso, desenvolve
em tese de doutoramento (ACHCAR, 2007) a hipótese de uma formação com especialização e conhecimentos
específicos para quem pretenda atuar como palhaço ou palhaça no ambiente hospitalar.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 40
Se há um gesto onde o palhaço e a palhaça são capazes de enlaçar a tradição
que os precede (brincantes, circo, cinema, teatro etc.) com a tradição que ele
e ela fundam, esse gesto jamais pode ser deliberado, voluntário, estudado. Os
resultados de uma experiência formativa jamais são previsíveis e controláveis,
sobretudo se concordamos com o fato dessa experiência estar baseada em um
encontro constitutivo. Ou, nas palavras de José Sérgio Fonseca de Carvalho:

essa é uma característica forte do conceito de formação: uma


aprendizagem só é formativa na medida em que opera
transformações na constituição daquele que aprende (CARVALHO,
2011, p. 1).

É por isso que um gesto livre, para uma história viva, acontece
potencialmente em ambientes educacionais onde marcos (ou trilhos) mais
flutuam do que ancoram. Um gesto livre acontece prioritariamente num
presente pulsante onde formadores e aprendizes abdicam do gesto vão e
oficial para se lançarem – cada um no seu papel, cada um revendo em
permanência o seu papel – num mundo desconhecido de tentativas onde cada
conquista atingirá, no melhor dos casos, o estatuto de eternidade provisória.
Para que isso aconteça em uma formação de palhaços é preciso viver
plenamente os paradoxos da aprendizagem e, com inebriante convicção,
acreditar que é possível abolir a fôrma do formar.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 41


O HOSPITAL

É com uma formação íntegra e emancipada que palhaços e palhaças deveriam


entrar no hospital. Anne Bogart, diretora teatral estadunidense, expõe uma
visão sobre a arte que pode servir de rumo a jovens artistas, e também a quem
se sente mais experiente:

a arte, assim como a vida, é entendida através da experiência, não


de explicações. Como artistas de teatro, não podemos criar uma
experiência para uma plateia; nosso trabalho é estabelecer as
circunstâncias para que uma experiência possa ocorrer (2011, p.
74).

No hospital, não é diferente. A palhaça ou o palhaço que lá atuam são artistas.


E justamente por estarem munidos de conhecimento, deveriam abdicar de
qualquer tentativa de demonstração de sua arte para os outros. Ao invés
disso, deveriam se dedicar à perpétua construção de um terreno onde
significados artísticos possam surgir em conjunto com os outros, a partir do
encontro com os outros.
Não é para o outro, mas com o outro que o trabalho pode ter algum sentido.
Para além de uma frase de efeito, essa última afirmação merece ser entendida
concreta e realisticamente. Afinal, da pessoa recém-nascida à pessoa em fim
de vida, todo ser hospitalizado é um sujeito. E, por ser um sujeito, nos fornece,
em alguma medida, as linhas pelas quais a experiência de interação pode ser
co-criada.
Mas para chegar a tal estado de construção artística, passemos antes em
revisão alguns outros conceitos que alicerçam o ofício de palhaços e palhaças
que atuam em hospitais.

Que hospital é esse?

Aqui, mais uma vez, não há uma resposta isolada.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 42


Há palhaças e palhaços que atuam exclusivamente em pediatrias, outros que
expandem sua atuação para áreas adultas, e outros ainda que, dentro da área
adulta, dedicam-se a uma determinada especialidade: cirurgia, oncologia ou
geriatria, por exemplo. Isso dependerá das diretrizes que esse ou essa artista,
ou a instituição para qual atuam, adotam.
Há artistas que fazem parte de instituições reconhecidas por certificações
governamentais e que contam com o apoio de recursos financeiros que lhes
permitem atuar em vários hospitais. Algumas dessas instituições se unem a
outras que se lhes assemelham e passam a constituir federações nacionais.
Algumas federações nacionais se unem a outras e, nos últimos anos, vemos o
surgimento de federações internacionais, como é o caso da EFHCO
(Federação Europeia de Organizações de Palhaços em Hospitais), surgida em
2011.
Enquanto isso, outros palhaços e palhaças integram organizações recentes ou
pequenas que atuam em poucos hospitais. Há artistas ainda que realizam suas
intervenções sem recursos, de maneira completamente individual e autônoma,
geralmente em um único hospital ou centro de saúde.
Com relação às intervenções, algumas iniciativas são pautadas pela
regularidade dos encontros. Outras possuem regularidade e pontualidade
menos precisas.
Há artistas que recebem remuneração suficiente, há quem recebe muito
pouca e há quem não recebe nenhuma remuneração.
Como se vê, a variedade de modalidades de atuação é gigantesca e, enquanto
desse ofício não se exigir uma regulamentação e enquadramento formal, o
hospital poderá ser abordado segundo várias condutas.
Não é meu propósito julgar qual dessas condutas tem mais mérito. Entretanto,
para não sucumbir diante da dificuldade em abordar nosso objeto de estudo
nesse caldeirão de miscelâneas, continuaremos adotando, como fizemos até
agora, o fator “dedicação ao aprendizado e ao ofício” como critério distintivo
do palhaço em hospital.
Se a palhaçaria é uma atividade que exige tal dedicação, sigamos nos
debruçando sobre indivíduos que por sua vez se debruçam ou pretendem se

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 43


debruçar sobre essa arte, seja ela sua atividade principal ou não; seja ela
remunerada ou não; seja ela exercida a tempo integral ou a tempo parcial;
seja ela acolhida por uma grande federação ou por uma pequena estrutura
organizacional.
Iniciante ou experiente, profissional com regulamentação ou em regime de
voluntariado esporádico, terão mais chances de se constituir e manter-se
como palhaço ou palhaça no ambiente da saúde aqueles indivíduos que
treinam sua técnica, questionam posicionamentos e repensam seus
antecessores. Assim poderão aprimorar a arte que construirão leito a leito nos
quartos, enfermarias e UTIs do ambiente hospitalar. Afinal, a palhaça e o
palhaço que vão ao hospital são, ou deveriam ser, como já evocamos, antes de
tudo, artistas. Artistas dedicados à arte da palhaçaria e que, justamente por
serem palhaças, palhaços, palhaçxs, permanecem em perpétuo processo de
aprendizado e questionamento.

Autonomia e limites

De um ponto de vista institucional não é diferente. O fortalecimento da


atividade artístico pedagógica exercida por uma organização deveria ser
pautado pela capacidade da organização em pensar sua prática a partir da
realidade de suas condições (estruturais, estéticas, financeiras…). Isso
significa entender – e mergulhar com autonomia em – seus próprios processos,
para além da imitação grosseira e sem critérios de outra organização. É a
partir de tal imersão em seu cotidiano de intervenção leito a leito que novas
problemáticas e pistas de trabalho poderão vir à tona. Deter-se na observação
do que se passa entre artistas e pacientes, entre artistas e seus parceiros de
trabalho, entre artistas e a equipe hospitalar, entre artistas e a gestão de sua
organização, parece ser uma maneira prudente de começar a desenvolver um
pensamento institucional genuíno e autônomo.
Ao nos debruçarmos sobre a abordagem leito a leito, excluímos, de certa
maneira, as práticas palhacescas, profissionais ou não, que consistem em
apresentar espetáculos prontos nos auditórios ou áreas de convivências dos

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 44


hospitais. Mais uma vez, não se nega aqui o valor e alcance de tais iniciativas.
Mas o que move este estudo é a especificidade da palhaçaria quando exercida
no ambiente hospitalar em contato reservado e próximo de quem está
enfermo. E a intervenção leito a leito, realizada a partir de atuações apoiadas
em improvisações feitas, em geral, por uma dupla de palhaços e palhaças
profissionais (ou ao menos com dedicação à pesquisa e reinvenção constante
dessa arte) parece-nos, por ora, o que mais se aproxima do objetivo deste
estudo.
Se a prática de palhaçaria em hospital, hoje em dia, tem sido acolhida e
relativamente reconhecida pelas instituições de saúde e pela sociedade em
geral, ainda se cola nela a imagem romântica do herói salvador, ou do anjo
bondoso. E com frequência, ignora-se a demanda de competências e
implicações ligadas à especificidade dessa prática.
Artistas que pretendem se lançar nesse domínio de atividade terão que se
mostrar engajados e aptos a se adaptar ao meio hospitalar.
Um hospital, assim como o palco e o picadeiro, oferece inúmeros limites.
Como em qualquer manifestação artística, e humana, os limites nos
enquadram e permitem que nos definamos dentro de suas fronteiras, até
mesmo para expandi-las.
Pretendo dizer com isso que, se por um lado o hospital é, como se afirma, um
local propício à criatividade libertária de artistas que ali atuam, por outro
lado, tal liberdade só é possível na medida em que são respeitadas as pessoas
ali presentes e os limites de ética, segurança e higiene de cada setor
hospitalar.

Lendo o ambiente

Qualquer artista deve conhecer seu ambiente de trabalho, seja esse ambiente
o circo, o teatro, a rua... E quando deslocado para um ambiente desconhecido,
como o hospital, por exemplo, sua primeira atitude deveria ser a de se
familiarizar com esse novo local. No ambiente hospitalar, para que um terreno
de experiência comum entre artistas e pacientes possa surgir, essa

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 45


familiarização demanda humildade, apuro e, como fazemos questão de insistir,
dedicação e pesquisa.
Na verdade, é com o passar do tempo que o palhaço e a palhaça se
apropriarão de seu ofício dentro do hospital e passarão a ter um maior
domínio da globalidade de fenômenos que ali se produz.
O indivíduo que se lança nessa empreitada, inevitavelmente terá que
submeter seu palhaço ou sua palhaça a esse novo meio. Isso, assim como o
que vem a seguir, não são regras, mas circunstâncias extraídas da prática.
No hospital, artistas se confrontarão com situações muito variáveis, e às vezes
difíceis, as quais deverão, senão superar, ao menos aceitar em seu cotidiano.
Os exemplos são inúmeros, mas lembremos aqui alguns deles: a recusa, o
sofrimento, um contexto social desestruturante, a morte…

Aprendendo in loco

Nesse novo meio, que é o hospital, artistas terão como aprender a absorver
parte do vocabulário médico ali empregado. Esses termos, muitas vezes de
uso corrente entre profissionais da área da saúde, indicam elementos
primordiais para a segurança de pacientes e equipe hospitalar (da qual o
palhaço e a palhaça que atuam em hospitais não deixam de fazer parte).
Portanto, apreender o significado de termos tais como “isolamento de
contato”, “isolamento respiratório”, “paciente em abstinência”, “parentes poli-
queixosos”, entre muitos outros, passa a ser fundamental para quem intervém
nesse meio. Manter a confidencialidade em relação aos casos que atende é
outro dos princípios que o hospital impõe a palhaças e palhaços que ali
evoluem. E, evidentemente, é indispensável verificar as atualizações impostas
pelas regras do hospital em que se atua, lembrando que os princípios e
regulamentos variam de setor para setor, de região para região, de país para
país. A pandemia do coronavírus nos mostrou como esses princípios e
regulamentos foram rapidamente alterados, e se tornaram mais restritivos,
diante das ameças sanitárias impostas a quem trabalha ou é paciente em
hospitais.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 46


Com o passar do tempo, artistas que trabalham em hospitais podem – e
deveriam – aprender a observar o trabalho de seus colegas de profissão a fim
de lhes fornecer um retorno artístico e orientações críticas de maneira
pontual ou sistemática a respeito do trabalho que efetuam; podem também
desenvolver suas capacidades de refletir e se expressar junto à instituição
para a qual trabalham; e podem aprimorar o conteúdo de seus relatórios e de
suas participações em reuniões artísticas, hospitalares, institucionais etc.
Também podem aprender, seja qual for a intensidade de suas presenças no
hospital, que sua colaboração com a equipe de saúde pode resultar em
melhoras significativas para o bem estar de pacientes.
Trataremos desse último tema adiante, com mais afinco, quando abordarmos a
chamada visita de “cara limpa”.

Flexibilidade e atualização

Por enquanto, lembramos que, diante das circunstâncias acima apresentadas,


quem pretende ir como palhaça ou palhaço ao hospital, além de apuro técnico
de sua arte, muito provavelmente terá que se mostrar pronto a redescobrir
suas forças e fraquezas nesse novo ambiente. Tal disponibilidade e prontidão
tendem a ser de grande auxílio para a potencialização e adaptação de seu jogo
face a um maior número de parceiros e parceiras, crianças, acompanhantes,
funcionários e funcionárias do hospital. Convém também, ao palhaço e à
palhaça que atuam em hospitais, uma grande flexibilidade artística, a fim de
explorar diferentes aspectos da palhaçaria.
Evidentemente, não se trata aqui de impor uma regra supostamente fixa ou
estimular a imitação cega desse ou daquele grupo de artistas. Mas sim de
discutir possibilidades de abordagens passíveis de se adaptar à configuração
particular de cada associação de artistas. Muita coisa mudou desde que
Michael Christensen e seus seguidores sistematizaram suas visitas em 1986.
Portanto, parece-nos importante e saudável que novas instituições de palhaços
e palhaças em hospital, mesmo quando originárias de um tronco comum,

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 47


saibam encontrar a genuinidade de seus caminhos de acordo com suas
próprias capacidades criativas de atualização de preceitos difundidos.
Assim como os modos e costumes sempre são impactados por novas atitudes
comportamentais, o repertório e as ações de palhaços e palhaças também
merecem ser atualizados, critica e reflexivamente, em função das mudanças
da sociedade em que vivem.
Além de uma constante renovação de repertório, cabe a qualquer artista
rever e aprimorar princípios, técnicas e saberes.

Branco E augusto

De um ponto de vista estritamente palhacesco, é bastante útil saber inverter


poderes, alternando-se entre branco e augusto. Dessa maneira, com o apoio
de uma escuta aguçada, sempre será possível empoderar o paciente, mesmo
que por caminhos comicamente sinuosos e palhacescamente nebulosos.
Quando se estimula a alternância entre augusto e branco, na verdade quer-se
ressaltar um dado conhecido de quem já atua em hospitais, a saber, que a
coerência e os rumos de uma intervenção não são decididos de antemão.
Quer-se ressaltar também que não se decide de antemão o comportamento de
cada artista. De certo modo, é a criança, seus acompanhantes ou algum outro
fator externo que muitas vezes insinuam e autorizam tacitamente as pistas a
serem seguidas, inclusive com relação ao temperamento entre branco e
augusto que cada artista adotará.
Aqui também tentamos escapar de qualquer determinação imutável. No
hospital, mais do que ser estaticamente branco ou augusto, importa
dinamizar-se como branco E augusto. Assim, uma vez identificada a pista de
atuação, poderá ocorrer em uma mesma intervenção a troca de
temperamentos: quem era branco vira augusto e vice-versa. Tal troca,
aparentemente ilógica e inconcebível, será possível se as regras internas que
cada intervenção suscitar forem respeitadas. Nesse caso, a criança não se
abalará em ver o “mandão” ser “mandado” e, no instante seguinte, o
“mandão” voltar a mandar. Mas que fique manifesto: toda e qualquer

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 48


coerência dependerá, sempre, das regras – lógicas ou poéticas – que forem
construídas e aceitas conjuntamente por artistas e pacientes.
Vale lembrar que crianças, dependendo da idade e do estado de saúde, às
vezes se colocam na posição do branco ou de Monsieur Loyal (para usar uma
das terminologias que representa o “chefe do circo”). Tornam-se assim uma
espécie de chefe dos palhaços, ou comandante da situação. Nesse caso, a
sensibilidade dos palhaços e palhaças determinará a qual função se alinharão,
lembrando que o conflito estabelecido no jogo não deixa de apontar um rumo
para tal alinhamento. Mais abaixo nos deteremos alguns instantes sobre a
noção de conflito.
Vejamos antes algumas características que a distinção binária entre branco e
augusto pode receber nos hospitais. Como evocamos, quando tratamos do
circo, essa distinção, a despeito de seu caráter referencial, tem suportado
matizes, redenominaçãoes e adaptações ao longo do tempo e das regiões onde
o circo se instalou.
No hospital não é diferente. Na esteira do que apontamos acima, podemos
evocar aqui que a fronteira que separa branco e augusto é passível de
nuances. O ambiente da saúde, além de permitir a alternância entre os
temperamentos, acolhe e estimula tal nuance. Mas atenção! Por nuance não
se insinua a abolição das fronteiras palhacescas e tampouco alguma fusão
entre os dois tipos, branco e augusto, em um suposto terceiro tipo “misto”: em
uma espécie de brangusto. Diferentemente disso, quer-se aqui apenas
dinamizar o alcance dos códigos e adaptá-los à fluidez e à imprevisibilidade
hospitalar. Artistas podem – mas não precisam! – calcar os contornos dessa
tipologia. Palhaços e palhaças podem, ao contrário, seguir os fundamentos
fornecidos pela concepção binária augusto e branco sem, contudo, afundar-se
tenaz e perpetuamente em um suposto padrão inabalável que tal concepção
viria a sugerir. Imprecisar as fronteiras tipológicas, sem negá-las, apenas
enviesá-las, fractalizá-las em virtude da especificidade dos ambientes e dos
encontros que se tem diante de si, eis aí uma hipótese para a dupla de artistas
que exerce a palhaçaria em hospitais.18
18
A terminologia dessa hipótese (“imprecisar fronteiras”, “enviesar”, “fractalizar”) é emprestada de Eduardo Viveiros
de Castro quando, em “Metafísicas Canibais”, expõe seu projeto de estudo antropológico (CASTRO, 2015, p. 28).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 49
Como se vê, não estamos diante de certa convicção classificatória das ciências
naturais quando separa, por exemplo, répteis de mamíferos. Fronteiras
artísticas que se embaralham – sem se desfazerem – são motivos
interessantes, para que sejam, inclusive, transgredidas.
Surgiria aqui, entre outras, a seguinte questão: e quando não se trabalha em
duplas? E quando a escolha da organização repousa suas atuações em outras
quantidades de artistas (trios, solos…)? Nesse caso, diferentes abordagens
dramatúrgicas se apresentarão. Vejamos se as abordagens abaixo contemplam
tal questionamento, ou parte dele.

Conflito cênico e emoções sutis

No caso em que a criança tem idade e estado de saúde para acompanhar – e


participar de – uma trama dramatúrgica, o palhaço e a palhaça treinados e
habituados a situações de jogo saberão que o estabelecimento de um conflito
cênico é de grande valia para a evolução de sua improvisação.
De uma maneira bastante resumida, podemos dizer que essa abordagem
teatral clássica se constitui da seguinte maneira:
Alguém (o palhaço, por exemplo) tem um objetivo (sentar em uma cadeira, por
exemplo). Para alcançar tal objetivo, ele terá que enfrentar um ou vários
obstáculos (como o fato de outro palhaço ter se sentado antes na cadeira, por
exemplo).
Surge aí um conflito estabelecido entre seu objetivo de se sentar e o
impedimento desse objetivo se realizar.
Desse conflito surge uma emoção. Qual? Depende: raiva, inveja, resignação,
orgulho… As possibilidades são infindáveis e repletas de nuances. Serão tanto
mais potentes quanto forem baseadas na emoção sensível e verdadeira da
pessoa real que está “encarnando” o palhaço ou a palhaça.
O fato é que a essa altura o jogo está estabelecido. E a criança e seus
acompanhantes esperam o desenvolvimento e, consequentemente, seu
desenlace.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 50


Se os palhaços trabalham em trio, o terceiro palhaço pode se sentar em uma
segunda cadeira vazia, aumentando a dose de conflito (e de emoções) ao
impedir o primeiro palhaço de se sentar.
Se o palhaço trabalha só, ele, muito provavelmente, terá que encontrar
obstáculos nele mesmo ou no espaço que o circunda para alimentar seu
conflito.
Ora, essa é uma situação muito esquemática e didática que, se por um lado
pretende descortinar uma linha de abordagem dramatúrgica consagrada, por
outro lado nos lembrará da quantidade de imprevisibilidades que ocorre em
hospitais. Afinal, é bastante grande a possibilidade de um profissional da
saúde atravessar o quarto para cumprir uma tarefa ou procedimento no
momento exato em que os palhaços desenvolviam o conflito cênico. Ou então,
a irrupção ou o choro de uma criança dentro da mesma enfermaria.
Ora, se concordamos que o palhaço ou a palhaça estão treinados para o
imprevisível, tal acontecimento, além de não abalar o jogo construído, poderá
ser direta ou indiretamente incorporado a ele. Novamente, trata-se de uma
questão de sensibilidade – e treino!
Explicando melhor, não é com uma cena pré-fabricada que palhaços e
palhaças procuram atuar a cada leito. Muitas vezes, nem a noção de cena é o
que melhor se aplica ao encontro que é realizado ali. E a familiaridade com o
jogo (ou esquetes estruturadas) jamais deve abolir sua capacidade de rever e
retificar o rumo da improvisação em virtude dos imprevistos frequentes que
habitam e movimentam o hospital. Como dissemos acima, mais do que a
demonstração de uma habilidade, ali é o lugar onde uma experiência comum
pode surgir a partir dos fatos ocorridos no momento presente da situação. As
habilidades, tais quais as descritas abaixo, estarão a serviço da situação. Não
crio uma situação para mostrar habilidades. Mas, ao contrário, utilizo-as para
que uma situação seja criada.
É assim que, apoiados em técnicas de improvisação, mágica, dança, canto,
marionetes, música, mímica, malabares etc., os palhaços e as palhaças que
atuam em hospitais são capazes de esboçar universos. Como evocado acima,
lembramos que tais técnicas não bastam por si sós. A necessidade de sua

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 51


aplicação só pode ser determinada pelo que a escuta apurada de artistas
captar no ambiente. Não são raras as aulas, palestras e publicações que
resgatam tais preceitos. O que gostaríamos de lembrar aqui é que, junto com
tudo isso, o sentido das técnicas acima listadas só pode ser reconhecido se
portado – e movido – pelas próprias emoções dos palhaços e palhaças que
estão em situação de encontro. Suas emoções – ao menos aquelas que o
palhaço e a palhaça estão aptos a transformar em jogo – são impulso para um
leque de reações que pouco a pouco poderá se abrir e contribuir com o rumo
da intervenção. Aí sim, o esboço de universo poderá almejar sua
concretização mais plena.
Por universo, entenda-se a variação que vai desde a sutileza de um olhar
trocado até a mais visível transformação espacial do ambiente. Dependendo
do encontro estabelecido entre artistas e pacientes, podem surgir dentro de
um quarto ou enfermaria a construção cênica de viagens de aventuras,
programas de auditório, concursos de beleza, cassinos falidos, perseguições
rocambolescas, questionários ininteligíveis, cirurgias absurdas, receitas
médicas estapafúrdias e outras situações palhacescas onde a noção de conflito
cênico é preponderante. E também surgem imobilidades repletas de sentido,
canções silenciosas, palavras ternas, apertos de mão significativos em que o
ridículo da palhaça e do palhaço é colocado à disposição de emoções sutis.
Vale a pena insistir: tudo depende do que se apresenta no aqui e agora
daquele recinto, com aquelas pessoas, naquele momento.

A especificidade psiquiátrica

As intervenções junto a pessoas usuárias de instituições psiquiátricas auxilia


palhaços e palhaças a reverem seus princípios. De certa maneira, os recursos
dramatúrgicos, tais quais foram apresentados acima, pouco ou nada servem
nesse meio tão específico. E, curiosamente, o confronto com a inutilidade de
um recurso não deixa de enriquecer a própria paleta de recursos que palhaços
e palhaças possuem. É claro que, para isso, é exigida uma nova disposição dos
artistas a relerem esse novo ambiente e as pessoas que nele circulam. Com

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 52


relação ao enredo dramatúrgico, a experiência tem mostrado que qualquer
construção baseada na instalação, desenvolvimento e desenlace do conflito
cênico, raramente pode ser levada adiante quando se tem diante de si sujeitos
com quadros de intenso sofrimento mental. Muitas vezes, a distinção, por
parte desses sujeitos, entre o que é “jogo” e o que é “realidade” não se opera
conforme estamos habituados em outros meios hospitalares. Se as
proposições feitas por artistas dependem do outro e daquilo que o outro é
capaz de partilhar naquele momento, nas instituições psiquiátricas tal
afirmação é levada a seu paroxismo. Ali, mais do que nunca, o terreno que se
constrói para que uma experiência ocorra é um terreno provisório, movediço,
capaz de alterações repentinas, em frações de segundo.

Fantásticos Frenéticos

Junto com os Fantásticos Frenéticos, grupo criado pelo psiquiatra e palhaço


Frederico Galante Neves e pelo palhaço Nando Bolognesi, visitei durante
alguns anos pessoas em instituições dedicadas à saúde mental. Nando já tinha
uma trajetória dentro do grupo, mas sua experiência anterior, assim como a
minha, vinha da prática palhacesca em alas pediátricas, não necessariamente
psiquiátricas. A instituição que visitávamos no período em que me integrei ao
grupo era composta por adultos de todas as idades, não por crianças. Pelo fato
de ser um hospital dia, não havia leitos, apenas alas de acolhimento e de
desenvolvimento de práticas terapêuticas com os usuários da instituição. Em
geral, era no pátio e nas alas de terapia em grupo que nossas intervenções
ocorriam. Nosso acesso era livre, e podíamos entrar e sair desses locais
quando bem desejávamos. Também participávamos do almoço e, por vezes, da
própria preparação do almoço. Essa liberdade de ir e vir, aliada à falta de
conectividade de alguns usuários com os fundamentos básicos do que
entendemos por “comunicação”, obrigou-nos a rever por completo nosso modo
de interação. A duração de nossas intervenções, nossas atitudes, nossos
deslocamentos e nossa lógica palhacesca foram obrigatoriamente revistas.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 53


Transformação?

Para explicitar como se opera tal revisão, tomemos um exemplo real,


acontecido em duas salas silenciosas, de dois hospitais distintos (um
psiquiátrico e outro não), em épocas diferentes.

A primeira sala se situa em uma ala hospitalar (não-psiquiátrica) e é uma sala


de espera onde cerca de 20 pessoas, adultas, esperam silenciosamente suas
senhas piscarem em um monitor luminoso para que possam ser atendidas.
A segunda é uma sala de reuniões, onde cerca de 20 pacientes e terapeutas
(também adultos) de uma instituição psiquiátrica refletem e debatem em
assembleia, silenciosamente, sobre a programação de atividades da semana
seguinte.
Uma leitura de ambiente apressada poderia levar palhaços e palhaças que
atuam nesses dois locais a pensar que, em ambas as salas, o silêncio é um
“estado original” e que pode vir a ser quebrado, “transformado” pela ação
palhacesca.
Ora, nos casos acima, não foi bem assim que os fatos aconteceram.

Primeira sala

Na primeira sala (não-psiquiátrica), em função do tempo e da tensão da


espera, algumas pessoas puderam de fato se deixar levar pela surpresa que a
simples passagem de dois palhaços por aquele ambiente provocou. Nada é
garantido, mas, por vezes, em um determinado ambiente, a surpresa de um
sorriso contamina positivamente outro sorriso. E então, por alguns segundos,
é possível – mas jamais certo – que algumas pessoas deixem a realidade da
espera de lado e aceitem o convite tácito para embarcar na ficção que
palhaços e palhaças podem evocar, enquanto o número da senha tarda a
piscar na tela luminosa. O silêncio original, nesse caso, foi quebrado.

Segunda sala

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 54


Na segunda sala, na instituição psiquiátrica, ao contrário do que se pode
imaginar, o silêncio não era um “estado original”, mas sim um estado
trabalhado e alcançado arduamente através de inúmeros acordos e
dispositivos criados entre pacientes e terapeutas do local. Aquele estado de
atenção e reflexão em torno de um assunto comum era, apesar de frágil e
vulnerável, um estado constituído por uma grande conquista, sobretudo se
levarmos em conta que o estado habitual de parte daquelas pessoas já é em si
um estado de transtorno. Nesse caso preciso, não caberia aos palhaços ali
presentes quebrar o silêncio em nome de uma suposta “transformação”. O
ambiente já estava transformado ou, se preferirmos, deslocado em direção a
um estado de equilíbrio desejado por todos, terapeutas e pacientes. Naquela
sala de reunião, o estado atingido por parte daquelas pessoas, incapazes de
embarcar em narrativas palhacescas, nos parecia, portanto, mais potente do
que a vã criação de qualquer estado de jogo fictício (sobrevoaremos essa
noção mais adiante). A própria noção de “narrativa” cai por terra em
circunstâncias como essa (ao menos se, por "narrativa", entendermos um
encadeamento de fatos com princípio, meio e fim, onde personagens evoluem
pontuados por conflitos no tempo e no espaço). Em situações como a descrita
acima, mais vale adaptar-se a uma “entrada e saída do trem em movimento”,
com tudo o que isso tem de desestabilizador, do que perseguir qualquer noção
de narrativa.
Outra possibilidade, contudo, se apresenta: poderíamos ter ido embora – o
que aliás é bastante recomendável quando o estado do paciente ou da
paciente que temos diante de nós é mais vigoroso sem nossa presença. Mas ali
sentimos que nossa figura, se não chegava a “transformar” o local, também
não o contaminava negativamente. Puxamos uma cadeira e passamos a refletir
e debater junto com os demais. Éramos todos sujeitos, em certo aspecto,
indistintos – pacientes, terapeutas e palhaços – que tinham a tarefa coletiva de
refletir simples e silenciosamente sobre as atividades a serem propostas na
semana seguinte. O estado de palhaço estava lá, de prontidão, reagindo e
agindo muito sutilmente ao que lhe rodeava, sem a preocupação de impor
qualquer transformação ou propor qualquer encadeamento narrativo. O

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 55


máximo – e o mínimo – que fizemos foi aceitar a transformação (involuntária?)
que uma pessoa exerce sobre outra pelo simples fato de compartilharem o
mesmo espaço e tempo. A bem da verdade, tivemos antes que transformar a
nós mesmos, transformar a qualidade de nossa escuta a fim de perceber que o
que aquele ambiente silencioso pedia era ainda mais silêncio e não sua
quebra, supostamente transformadora. Ali, passamos a relativizar e colocar
maiores aspas nos termos “transformação” e em seu correlato “subversão”,
não para aboli-los de nosso vocabulário, mas simplesmente para abordá-los
com a precisão que o hospital exige. Nessa segunda sala, o silêncio construído
foi mantido.

Ação ou não-ação?

A partir da especificidade psiquiátrica, uma série de atitudes foram se


adicionando – e se revendo – dentro da pesquisa da palhaçaria em hospital tal
qual eu a pude vivenciar até hoje. Às vezes, como se viu, a leitura mais
apurada do ambiente nos levava a uma espécie de “não-ação”, ao invés de
uma “ação” assertiva.
E disso decorrem outras investigações. Vejamos abaixo essas e outras
questões recorrentes para as quais relativizamos (ou suspendemos) as
soluções.
Se por "ação" se entende a “produção de acontecimentos em uma narrativa”,
parece-nos pouco prudente a imposição de tal noção dentro de um panorama
artístico que, como no nosso caso, se pauta pela relação, pela pesquisa do
encontro e, consequentemente, pela imponderabilidade de seus resultados. A
eventual eficácia de uma intervenção palhacesca não se mediria, portanto,
somente pelo manejo daquilo que em uma situação há de mais visível e
aparente. Muitas vezes, um trabalho aparentemente pouco retumbante e de
pouca "ação" (como no exemplo da ala psiquiátrica) se revela mais potente se
estiver atento ao que de invisível e oscilante subjaz à situação. E isso exige
tempo e percepção apurada por parte de quem realiza esse trabalho.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 56


Como já reiteramos, aquilo que se apresenta no aqui e agora de um quarto,
enfermaria ou corredor só pode ser percebido através de um fino exercício de
escuta e leitura do ambiente. E aqui vale a pena chamarmos a atenção para
um certo mal-entendido que por vezes paira entre palhaços e palhaças que
atuam em hospitais.
Já evocamos anteriormente que muitos profissionais iniciantes e iniciados
sabem que em uma abordagem leito a leito, repleta de imprevistos, não se
costuma decidir de antemão a execução de uma determinada ação visando um
suposto resultado. Não se costuma decidir de antemão a busca do sucesso de
um efeito.
É o contrário disso que geralmente visamos quando procuramos um estado de
receptividade e escuta que favoreça a leitura do ambiente.
O mal-entendido está justamente em como se concebe esse contrário.
Em muitos casos, a opção acaba sendo: decidir de antemão pela não ação
visando um não resultado.
Ora, na verdade, a segunda opção somente em aparência é uma alternativa à
primeira. Porque ela, apesar de bem intencionada, continua “decidindo de
antemão”.
E o contrário de “decidir de antemão por uma ação” não é “decidir de
antemão por uma não-ação”, mas simplesmente, no nosso caso, não decidir
coisa alguma de antemão.
Colocar-se em estado de abertura seria, então, adentrar o ambiente hospitalar
sem preconceitos e pré decisões. Toda a habilidade do palhaço e da palhaça
está em ler esse ambiente com olhos e ouvidos em máximo grau de
sensibilidade. Assim poderá se encaminhar, nunca de antemão, mas sempre
desviando, voltando, reencaminhando e sobretudo deixando-se encaminhar
pelo encontro com o paciente. E esse suposto “vazio” jamais pode se
configurar como meta a ser alcançada ou como ideia a ser elaborada, caso
contrário o “vazio” já estaria “cheio” de expectativas. A “não-ação”, então, só
teria sentido enquanto for uma possibilidade de postura entre outras
possibilidades, jamais enquanto missão a ser cumprida. Aí reside o mal-
entendido.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 57


Para compreender o alcance de um princípio (como o da "não-ação", por
exemplo), parece-nos importante distanciá-lo de qualquer idealismo. Em vez
disso, parece-nos mais prudente concatená-lo à sensibilidade e ao poder das
experimentações cabíveis em um ambiente hospitalar. Como dissemos desde o
início deste ensaio, não se trata de criar e aplicar regras com o intuito de
perseguir um ideal imutável. Mas sim criar princípios suficientemente sólidos
em sua flexibilidade a fim de que a experiência sensível ocorrida entre artistas
e pacientes reformule constantemente esses mesmos princípios. Seria preciso,
então, resistir à tentação de sempre predefinir conceitualmente sob qual
maneira artistas devem entrar em um quarto de hospital. Afinal, entrar com a
definição de se produzir uma ação, ou entrar com a definição de se produzir
uma não-ação, são, no frigir dos ovos, ambas a mesma coisa: definições ou
predeterminações que comprometem a experiência vivida. E palhaços e
palhaças que atuam em hospitais, e que têm na abordagem relacional o eixo
central de suas práticas artísticas, não deveriam ter comprometida suas
experiências vividas. Entre a ideia de ação e a ideia de não-ação, nenhuma das
anteriores, mas simplesmente a abertura para a possibilidade, a abertura para
a reação.
A experiência no lugar da ideia.

Gesto ou verbo?

Outra falsa dualidade frequente.


Muitas palhaças e palhaços lamentam-se por insistirem em basear suas
atuações na palavra e não na ação.
O palhaço ou palhaça nessa situação até pode optar por um jogo menos
verbal. Mas o que determina a correção do que julgam um problema não é
necessariamente a substituição da palavra pelo gesto.
Como vimos acima, ação, para nós, não se resume a uma sequência de gestos
ou acontecimentos. Uma situação repleta de ação não implica ausência (ou
escassez) de palavras, assim como uma situação repleta de palavras também

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 58


não implica ausência (ou escassez) de ação. Seria um mal-entendido supor que
palavra é o oposto de ação.
O que se deve examinar é se a palavra em questão é portadora de jogo e é
portada pelo jogo. Há muitos palhaços e palhaças cujo jogo se apoia
substancialmente na criação de construções verbais altamente inventivas.
Nesses casos, a palavra está em ação e, sim, é ação. E, como se sabe, a
palavra em ação não está separada de um corpo em ação. Ela está no corpo,
ela é corpo. E para isso demanda tônus, para que seu jorro seja jogo.
Por outro lado, há os casos onde gestos, mesmo com tônus, serão mera
gesticulação desprovida de sentido, se não forem portadores de jogo e
portados pelo jogo.
Não é, portanto, a quantidade de gestos ou palavras que define o sentido de
uma atuação, mas sim a presença de jogo nela contida. Pouco importaria,
nesse caso, se os recursos utilizados para a construção de tal jogo são verbais
ou gestuais. Jogo e ação, como se intui, não são privilégio do recurso gestual e
existem, como é de se supor, também no silêncio e na imobilidade. Tudo
depende da sensibilidade e do treinamento de quem atua. Essa pessoa deverá
ser capaz de escutar a frequência emocional, psicológica e "patológica" do
ambiente para, aí sim, saber com quais recursos nele interferir, intervir e
interagir. E isso, novamente, não se traz pronto e decidido de antemão. Ao
invés de almejar o feito, treina-se para se deixar fazer. Mesmo uma gag,
esquete ou rotina conhecida, só se torna viva se contiver o frescor e a
abertura para o desconhecido. As imprevisibilidades do hospital, nesse caso,
são aliadas e não inimigas do artista e da artista que lá se prontificam a atuar.

Amor ou labor?

Não, não se trata aqui de vasculhar filosoficamente o presumível alcance do


sentimento do amor e tampouco inquirir sobre o enaltecimento das supostas
virtudes que o trabalho humano teria em nossas sociedades.
Presumiremos simples e ordinariamente que uma atividade, qualquer que seja
ela, ao ser exercida com paixão, terá mais chances de potencializar tanto

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 59


quem a produz quanto quem a recebe. E isso não é diferente com os palhaços
e palhaças que atuam em hospitais. O amor não estaria fora da atividade, em
uma espécie de carroceria, como carga a ser levada e distribuída aos
pacientes, ou como meta a ser atingida pela instituição. Amor não é carga,
mas parte do combustível para esse palhaço ou palhaça. O amor, se realmente
quisermos usar esse termo, contribuiria com a propulsão de movimento ao
ofício e também com a propulsão de movimento àquele que o executa. E talvez
seja o resíduo desse combustível que se espalha pelos ares de qualquer local
onde se exerce apaixonadamente uma atividade. Não como missão, mas,
eventualmente, como resíduo. Não como causa, mas, no melhor dos casos,
como consequência. Essa tem sido grosso modo, ora mais explícita ora mais
furtivamente, a abordagem das organizações para as quais atuei até hoje.
Essa é também a concepção que talvez mais se encaixe neste estudo.

Um caso

Certa vez, perambulávamos como palhaços pelo corredor de uma ala


pediátrica. Estávamos no fim de nossa jornada, rindo em dupla de alguma
graça que nos haviam dirigido instantes antes. Ao virar a esquina do corredor,
avistamos em um saguão, só e aos prantos, uma senhora conhecida nossa. Ela
era a avó de um bebê internado havia semanas. Assim que nos viu, a senhora
conhecida disparou : “palhaços, meu neto morreu”. E emendou: “me deem um
abraço, por favor”.
Fiz sobre esse caso um relato mais detalhado que acabou sendo publicado,
comentado e compartilhado no blog dos Doutores da Alegria. 19 Nesses
comentários públicos, as palavras “amor” e “trabalho” embaralhavam-se
repetidas vezes. Mas em raras oportunidades o caso foi tratado do ponto de
vista estritamente artístico. Em um primeiro momento, atribuí esse a dado à
inexorabilidade do tema (a morte).20 Em seguida o atribuí à ausência, em meu
próprio relato, de um gancho reflexivo que insinuasse o seguinte:
19
cf. https://doutoresdaalegria.org.br/blog/os-dois-lados-da-mesma-moeda/
20
Não nos estenderemos aqui sobre os impactos que a morte de crianças têm em nossa existência profissional e
humana. A abordagem de um evento que, invariavelmente parece violar a ordem natural das esperanças, mereceria
um ensaio à parte.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 60
Em hospitais, ninguém se constitui como palhaço ou palhaça pelo simples fato
de trocar abraços; é preciso, antes, estar constituído como palhaço ou palhaça
para saber quando e como trocar abraços.
Além disso, é preciso conhecer as normas de higiene e as implicações que o
contato físico com pacientes e familiares pode ter na disseminação de doenças
e males (a pandemia escancarou essa problemática!). É também necessário
avaliar – ou ao menos intuir – os desdobramentos que um envolvimento
emocional com seus interlocutores pode acarretar.
E aqui, mais duas possibilidades se propõem a problematizar a questão.
De uma maneira muito esquemática poderíamos dizer que, de um lado, há os
que avaliam positivamente o envolvimento sistemático com o público e, por
isso, tornam-se partidários do abraço e do amor como meta. E do outro lado
há os que avaliam negativamente o envolvimento sistemático com o público e,
por isso, tornam-se partidários do abraço e do amor como interdição.
Aqui, novamente podemos atentar aos riscos de uma distinção por demais
dicotômica. O contrário da “obrigação de dar abraço” não é a “obrigação de
não dar abraço”, mas sim “a não obrigação nem disso e nem daquilo”. E essa
não-obrigação, ao contrário do que se pode imaginar, não geraria um “tudo
pode” irreversível, mas sim uma alta responsabilidade artística. Afinal, nosso
ofício parece não se apoiar tão-somente em um princípio essencial
determinante que resolva todos os casos mas também, ou sobretudo, em uma
capacidade norteadora de se lidar com o caso a caso. É com o que há de
contingente e acidental no ambiente do hospital que palhaços e palhaças
também tomariam sua forma e, como não cessamos de ressaltar, uma forma
maleável. Em um caso como o relatado acima, parece ser mais o
acontecimento – e menos a essência – que nos aponta o rumo.
Voltando ao abraço.
Ele foi dado, não por ser essa a suposta tarefa do palhaço (levar abraços e
amor aos hospitais), mas por ser seu labor discernir o campo e as
possibilidades de atuação artística e afetivas dessa figura quando se aventura
hospital adentro. E naquela situação precisa, naquele local, naquela hora,

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 61


para aquela senhora irrompendo aos prantos pelo saguão, a retribuição do
abraço nos pareceu o gesto mais justo que poderíamos ter feito.
Nossa arte, por mais quixotesca que seja, não deveria ter a pretensão de
domesticar imprevisibilidades, como a que vivemos junto àquela senhora.
Também não deveria se refugiar em uma redoma impermeável, às vezes auto
proclamada de linguagem do palhaço, e agraciada por uma hipotética
ontologia que visaria nos proteger em demasia contra as vicissitudes dos
acontecimentos. A linguagem – viva que é – se forma, se dilata, se reforma
também pelos acontecimentos nos quais ela navega. E o movimento de suas
fronteiras parece – ou merece – estar em permanente imprecisão.
Resumindo, um palhaço, ou uma palhaça, não entraria em um hospital com o
intuito de distribuir abraços, e também não entraria com o intuito de negar
abraços. A palhaça e o palhaço que atuam em hospitais estão em relação
permanente com a imprevisibilidade absoluta do que acontece nos quartos e
corredores desse ambiente. Sua arte e linguagem, tal qual expressa nesses
ambientes, têm como princípio de funcionamento a relação que se estabelece
entre artistas e o mundo. Ao colocarem-se abertamente nessa relação, artistas
com tal disponibilidade estarão aptos a recriar, em fluxo permanente, as linhas
de força dessa própria arte e linguagem. E sempre que as regras de
segurança, ética e higiene hospitalares permitirem, palhaços e palhaças
poderão movimentar responsavelmente suas posturas artístico-afetivas para
muito além de um código que simplesmente permita ou restrinja abraços ou
qualquer outro afeto desse gênero nas dependências do hospital.

Palhaçocentrismo

Mas atenção, não é por problematizarmos a questão acerca dos fundamentos


da palhaçaria que estaríamos sugerindo aqui que ela seja desprovida de
estrutura. Tampouco sugerimos que palhaças e palhaços sejam pura
indeterminação ou, o que seria ainda pior, que sejam liberdade ilimitada. Se
assim fosse estaríamos diante de um temerário “palhaçocentrismo” cuja
astúcia estaria em valer-se desatinadamente de características tais quais a

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 62


“inadequação”, a “inadaptação” ou a “subversão” para impor aos outros uma
espécie de “tudo pode”. E esse poder absoluto, se levado a cabo, se revelaria
letal à própria existência da espécie dos palhaços e palhaças desse mundo.
Logo, o palhaço ou a palhaça não podem tudo, nem no hospital e em lugar
nenhum. No hospital, por exemplo, a demanda de uma postura relacional,
geradora de encontros, atribui-lhe parte dos limites norteadores para a co-
criação do próprio encontro. Minha condição depende da condição do outro, e
minha liberdade está condicionada à liberdade do outro. Não compreender a
potência dada por tais limites talvez seja o principal equívoco conceitual
acerca da figura palhacesca.
Por isso vale lembrar que, quando trazemos à tona a aptidão relacional e a
imprecisão de fronteiras como algumas das características responsáveis pelo
vigor da atuação de palhaças e palhaços em hospitais, não estamos abolindo a
riqueza que as contribuições do circo, dos brincantes, do cinema, dos
arquétipos e da escola fornecem à constituição de uma estrutura para a
palhaçaria. Quando ressaltamos a importância dos afetos impulsionados pelos
acontecimentos – em contraste com a visão essencialista – pretendemos com
isso mais a suspensão do cerco imposto por uma definição identitária rígida do
que o abandono geral das noções que atravessam a palhaçaria.
As noções que trouxemos na primeira parte desse estudo, mesmo quando
relativizadas ou recontextualizadas, não perdem seu caráter constitutivo de
palhaços e palhaças. No ambiente da saúde, em determinadas situações,
algumas dessas noções (o riso, por exemplo) nos parecerão mais estruturais, e
em outras situações nos parecerão mais complementares. E isso não lhes
retira potência nem valor. O que estamos tentando lembrar é tão somente a
possibilidade que palhaços e palhaças têm de revisitar constantemente tais
noções e os passos que nela apoiam em função das situações que atravessam.
Artistas com tal propósito fazem com que a própria linguagem do palhaço, ao
invés de se estagnar sob preceitos fixos, estará em permanente investigação e
movimento. E é essa figura movente, distante de qualquer palhaçocentrismo,
que merece se colocar em relação nos recintos hospitalares a fim de conduzir
e ser conduzida pelos encontros.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 63


Lembremos mais uma vez que conduzir, nesse caso, não significaria controlar,
nem impor, mas propor. Ao invés da imposição de um “tudo pode”
palhaçocêntrico, melhor seria a proposição de um “o que podemos juntos?”. E
desse “juntos”, que fique palpável, não se espera a indefinição sistemática dos
papéis de artistas e pacientes. Ambos, pacientes e artistas, serão atores da
situação na medida em que as possibilidades de ação de cada um são
respeitadas. Há nessa interação uma interdependência ou, como diz Beatriz
Sayad, “o espectador de um palhaço no hospital é criador da condição de
palhaço médico que está a sua frente, e que só pode seguir viagem se for
acompanhado” (2008, p.77).
Isso compreendido, podemos embrenhar-nos em novas problemáticas.
De um modo ou de outro, são problemáticas que não deixarão de sobrevoar a
questão sobre quem é ou o que é palhaço. Às vezes nos interrogaremos sobre
a necessidade – e qualidade – da formulação da própria questão. Outras vezes
tenderemos a substituir os pronomes quem e que pelas formulações quando,
onde e como se é palhaço. Outras vezes ainda, como veremos no tópico a
seguir, insinuaremos o deslocamento do verbo ser (é) pela conjunção e.

Outras problemáticas

Aqui se faz necessário explicitarmos uma distinção.


Existem palhaços e palhaças que, ao atuarem em hospitais, apresentam-se
comicamente como se fossem “médicos” ou “médicas”. E existem palhaços e
palhaças que não lançam mão desse recurso em suas atuações hospitalares.
Os artistas e as artistas que se apresentam comicamente como médica ou
médico geralmente carregam em sua indumentária algum signo que evoca tal
ofício. Na maioria dos casos, o mais destacado desses signos é o jaleco branco
sobreposto ao figurino original dos palhaços e palhaças. Além disso,
costumam se apresentar com os títulos de “doutor” e “doutora” (e em alguns
casos como “enfermeira” ou “enfermeiro”) antecedendo seus nomes de
palhaço e palhaça.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 64


As artistas e os artistas que não se autodenominam “doutor” ou “doutora”
costumam atuar exclusivamente com seus figurinos e nomes de palhaço e
palhaça sem nenhuma alusão à medicina ou a qualquer outra especialidade da
área hospitalar.
Dentro de um hospital, portanto, podemos ter, no primeiro caso, artistas que
exercem a palhaçaria como doutor-palhaço ou doutora-palhaça. E no segundo
caso, aqueles que dispensam tal abordagem.

Paródia

Nesse tópico, dedicaremo-nos a examinar aqueles e aquelas que optam pela


figura do doutor-palhaço e da doutora-palhaça.
Essa via, vale lembrar, foi a que Michael Christensen escolheu ao realizar sua
primeira intervenção em 1986, em Nova York, nos EUA. É também a via que
os Doutores da Alegria, e vários grupos inspirados por sua prática,
escolheram.
Os Doutores da Alegria, por exemplo, fundamentaram a figura do doutor-
palhaço como sendo a paródia da figura que exerce a autoridade máxima
dentro de um hospital, a saber, o médico. Nessa organização, os artistas e as
artistas que vão aos hospitais se autodenominam besteirologistas.
Vale dizer, entretanto, que apesar de a paródia constituir oficialmente a
abordagem palhacesca dos Doutores da Alegria durante mais de 30 anos, tais
conceitos não estão isentos de críticas e atualizações realizadas por parte do
núcleo de artistas da própria organização.
Uma das atualizações repousa sobre o fato de que o médico, aquele que
representava a autoridade máxima nos hospitais em que os Doutores da
Alegria atuavam em seus primórdios, não ocupa mais tal posto de maneira
inabalável. Atualmente, médicos e médicas, se ainda estão no topo da
hierarquia hospitalar, raramente são vistos como os semideuses e semideusas
inatingíveis em sua, por assim dizer, onipotência de outrora. Ao contrário
disso, o que se percebe a olhos vistos é certa fragilidade causada pelo
acúmulo de tarefas – e consequentemente pelo aumento do nível de estresse –

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 65


imposto às equipes de saúde dos hospitais brasileiros. Esse nível aumenta
mais ainda quando tratamos de hospitais que são sobrecarregados por um
número de atendimentos muito superior ao que lhe é previsto por sua
capacidade estrutural.
Esse e outros fatos revelam que o ofício da medicina, tal qual é praticado hoje
em dia em hospitais da rede pública, depara com “doenças” cujo tratamento
não constam do currículo da formação básica dos cursos de medicina. Médicos
e médicas não deixam de manifestar, mesmo que furtivamente, suas
dificuldades em tratar a ferida socioeconômica – essa, sim, onipresente – que
abala estruturalmente a saúde de pacientes e usuários da rede hospitalar
pública, e sobretudo daqueles hospitais que se encontram superlotados nas
periferias das grandes cidades de nosso país. Uma médica do hospital do
Campo Limpo, na periferia sul de São Paulo, nos diz: “Se há algumas décadas
o que acometia esses hospitais eram os males advindos da desnutrição e da
falta de saneamento básico (doenças para as quais tínhamos tratamento), hoje
em dia o que nos acomete é a falta de estrutura social dos pacientes, doença
para a qual nem sempre temos ferramentas para lidar.” Em depoimentos como
esse, ao contrário da onipotência, o que salta aos olhos é a vulnerabilidade à
qual médicos e médicas se veem expostos. Ao contrário de uma suposta
soberba, o que se vê é uma latente fragilidade, pouco passível – e nada
interessante – de ser parodiada.

Jaleco

Ficaria então a pergunta: “se hoje não há mais espaço para a paródia, por que
manter o uso do jaleco branco nas intervenções palhacescas?”

E aqui, propomos um salto:


Embora os argumentos da atualização descrita acima nos pareçam sólidos,
gostaríamos de sugerir que não é apenas hoje que a paródia não faz sentido.
Talvez ela nunca tenha feito sentido, ao menos em certa acepção que
examinaremos a seguir.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 66


Embora a paródia seja o mote adotado por diversas organizações, propomos
aqui que não é exclusivamente dela que tratam e se nutrem os palhaços e
palhaças que vão aos hospitais. Não seria, portanto, somente para parodiar
alguém que um palhaço ou palhaça veste o jaleco. As razões, talvez sejam
prioritariamente outras.
Mas antes, talvez valha a pena nos determos um pouco mais sobre a noção de
paródia.
Jacques Lecoq, ao elencar as etapas que o permitiram investigar em sua
escola os atributos do bufão, diz:

A primeira etapa foi a da paródia. Consistia simplesmente em


zombar do outro, imitando-o. Quando alguém anda na rua, basta
imitar seu jeito para que apareça a zombaria e a paródia.
Acontece o mesmo com a voz, com o comportamento. A imitação
constitui um primeiro nível, relativamente gentil, do sarcasmo
bufão (2010, p. 180).

Podemos também tomar como referência o verbete paródia do Dicionário de


Teatro, de Patrice Pavis. A fim de facilitar nossa compreensão, poderíamos
substituir os termos “texto” e “discurso”, utilizados abaixo por Pavis ao falar
de peças teatrais, pelos termos “figura” ou “personagem”, para nos
aproximarmos do território palhacesco.
Pavis diz que

a paródia compreende simultaneamente um texto parodiante e um


texto parodiado, sendo os dois níveis separados por uma distância
crítica marcada pela ironia. O discurso parodiante nunca deve
permitir que se esqueça o alvo parodiado, sob pena de perder a
força crítica (2015, p.278).

Ora, se por um lado nos parece claro que o palhaço ou palhaça que adentrar o
hospital trajando um jaleco branco estará realizando a imitação do médico,
por outro lado também nos parece claro que a imitação produzida pelo
palhaço não deveria assentar-se estritamente na zombaria e no sarcasmo.
Jacques Lecoq, que separa os personagens cômicos em diferentes territórios
dramáticos, atribui as características do sarcasmo e da zombaria não ao

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 67


palhaço, mas ao bufão. É este último que usa e abusa de um procedimento
crítico-jocoso que visa caçoar impiedosamente das fragilidades dos outros.
Evidentemente, não queremos dizer com isso que palhaços e palhaças são
desprovidos de crítica e, até mesmo, de zombaria.
Até agora, este ensaio tem se esforçado para não cercar o palhaço ou a
palhaça com atributos restritos e tampouco determinar tais figuras segundo
qualquer ontologia que lhe atribua uma essência imutável. As várias
contribuições ao seu entendimento (circo, escola, cinema…) nos permitem
vislumbrá-lo tanto ou mais através dos afetos que ele suscita do que pelos
contornos que lhe prendem. Estaríamos, portanto, diante de uma figura
maleável que muitas vezes se manifesta na fronteira dos termos, ou no entre e
no e de dois territórios. Para ficarmos com uma formulação de inspiração
deleuzeana, mais do que dizer que o palhaço é isso, valeria arriscar pensar
que o palhaço também esteja entre isso e aquilo.21

E “entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai


de uma para a outra reciprocamente, mas uma direção
perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e
outra…” (DELEUZE, GUATTARI, 2014, p. 49).

É nessa perspectiva que as características ditas bufonescas poderiam ser, por


vezes, atribuídas ao palhaço.
O que criticamos aqui não é o eventual movimento entre o palhaço e o bufão,
mas a maneira como se estampa a paródia como norteadora de todo um
processo de abordagem de palhaços e palhaças em hospital. Se nos
detivermos nos termos empregados por Pavis, podemos perceber que o
médico, para o palhaço, não se resumiria em um “alvo parodiado”; e tampouco
a “ironia” seria a ferramenta – ou arma (já que se falou em alvo) – principal do
palhaço “contra” o médico. O palhaço e a palhaça, quando entram no hospital,
não estão em busca de um alvo preciso a ser criticado. Se usam o jaleco,
parecem fazê-lo como faz a criança que, com sua ingenuidade, imita o adulto.
“Ingênuo é aquele que nasce a cada instante” (MNOUCHKINE, 2011, p. 19). A
21
“O E não é nem um nem outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre há uma fronteira, uma linha de fuga ou
de fluxo...” (DELEUZE, 2003, p. 65). “Deleuze disse e redisse seu programa com todas as letras – literalmente:
substituição do É pelo E ou, o que dá na mesma, substituição do “ser” pelo “devir” (ZOURABICHVILI, 2016, p.
27).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 68
criança, quando percebe no adulto uma referência comportamental, imita-o
como quem pretende nascer, aprender e se estabelecer dentro de seu grupo
social. Tenta vestir uma calça mas coloca seus dois pés na mesma perna da
roupa; tenta abotoar uma camisa mas não alinha os botões com as casas;
tenta calçar os sapatos mas enfia o pé direito no sapato esquerdo; tenta
articular uma palavra mas troca suas sílabas; tenta articular uma frase mas
troca seus termos principais. E desse processo imitativo da criança, ao menos
duas inferências poderíamos extrair para nossa análise. A primeira nos mostra
que a criança parece querer “passar por adulto” mas não consegue, e sua
“falta de recursos” e ingenuidade nos faz rir. A segunda nos mostra que a
criança, inadvertidamente, indica – e critica – o fato de que as soluções dos
adultos são, apesar de boas, bastante intrincadas, e isso também nos faz rir.
Se aceitamos esse exemplo, percebemos que a crítica está presente com
contundência. Mas ela não surge como “projeto” e sim como “rastro”.
O palhaço e a palhaça que portam jalecos querem se “passar por médicos”,
assim como a criança que tenta abotoar uma camisa quer se passar por
adulta. Palhaços e crianças não visam exclusivamente a paródia, apenas
entendem que no ambiente que os circunda há alguém referente cujos modos
merecem ser imitados para que ali se sintam integrados. O jaleco, portanto,
serviria como porta de entrada, como tentativa de aceitação.
Didi Mocó, personagem de Renato Aragão, não age de outra forma ao portar
uma gravata em ambientes solenes, só não se dá conta de que sua gravata é
desmesuradamente maior do que a dos demais personagens. E esse “não se
dar conta” faz toda a diferença, nesse caso. Como destaca Bergson em seu
largamente citado “O Riso”, “um personagem cômico é geralmente cômico na
exata medida em que ele se ignora a si mesmo. O cômico é inconsciente”
(2002, p. 13). Vimos algo semelhante com o inadvertido Chaplin, em “O
Circo”.
Exemplos como esses são inúmeros e invariavelmente apontam para uma
tentativa de integração, nem sempre bem sucedida (e portanto, cômica), do
personagem. O que se revela é o fracasso do palhaço, da criança e de Didi
Mocó – inconscientes de suas “inaptidões”– em quererem se fazer passar por

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 69


médico, adulto ou pessoa solene. E esse fracasso, de alguma maneira, nos
espelha a ponto de nos fazer rir. O médico não precisa ser parodiado
diretamente para entender que, por vezes, seu comportamento, apesar de
bom, é intrincado. O palhaço e a palhaça, através de seu próprio fracasso,
oferecem a todos nós – e portanto ao médico – o reflexo das inaptidões e
fragilidades próprias à espécie humana. A crítica não provém do deboche ou
da zombaria direta, mas do espelhamento “indireto” – porém não menos
profundo – fornecido pelo palhaço ou pela palhaça a toda a equipe de saúde,
acompanhantes e pacientes de um hospital.
A crítica, portanto, não acontece como intuito único e primeiro, nem como
“mira de um suposto alvo ”. A crítica não seria, nesse sentido, o objetivo
zombeteiro da intervenção palhacesca, mas seu resultado “inconsciente”,
conduzido mais por uma ingenuidade infantil, de quem nativamente descobre
e deseja o mundo que o cerca, do que por uma concepção estritamente
satírica. Sua postura – ou seu espanto, como diz Yves Cusset – é de outra
ordem, mais próxima de uma incarnação do espanto filosófico. Haveria, por
parte do palhaço,

uma tentativa de reproduzir a ingenuidade da criança, ele é a


infância mesmo tornada modo de ser-no-mundo. O palhaço existe
inteiramente em situação, ele existe através dela, ele é o joguete
dela antes de poder eventualmente jogar com ela, ele é nativo ao
que acontece” (CUSSET, 2011, p. 56).

Na paródia, como vimos, há ironia. E onde há ironia há projeto pensado, não


inconsciência. A ironia, para funcionar, demanda que seu sentido final seja
desvendado, afinal ela é formada por dois sentidos: um primeiro, mais
evidente; e um segundo, que geralmente aprofunda ou contradiz o primeiro.
Palhaços e palhaças podem se servir de tais recursos, mas eles não lhe são
indispensáveis. A paródia, se está ao alcance de palhaças e palhaços em
hospital, não parece ser seu mote nem seu tema. E, se isso é verdade, tal
conceito mereceria ser revisto e revisitado com mais afinco a fim de se
examinar se ainda lhe cabe fundar as abordagens que, supostamente, dão o
rumo a atuações de diversos grupos.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 70


Subversão

Há quem diga – e difunda – que o simples porte de um jaleco por parte de um


palhaço ou de uma palhaça é, em si, um ato subversivo. Ora, tal expressão
merece esclarecimentos, sobretudo se considerarmos que “subversão” faz
parte daquelas noções que, devido a um uso frequente e indiscriminado na
produção artística, acabam padecendo de um vácuo semântico.
Em primeiro lugar, poderíamos dizer que um ato subversivo, qualquer que
seja ele, depende inevitavelmente de uma ordem a ser subvertida, não
podendo portanto ser subversivo “em si”.
Se isso estiver correto, repensemos então a frase com a supressão do “em si”:
o porte de um jaleco por parte de um palhaço ou de uma palhaça é um ato
subversivo.
Na frase acima, se “subversão” quiser realmente significar o rompimento de
uma certa ordem, sim, podemos considerar que o jaleco médico vestido por
um palhaço já tenha sido subversivo. Em 1986, quando o palhaço Michael
Christensen vestiu um jaleco em um hospital situado dentro de uma sociedade
para a qual, até então, jalecos eram símbolos exclusivos de médicos e
médicas, não há dúvida de que uma certa ordem estava sendo rompida. Mas
para saber se ainda há subversão hoje, mais de três décadas após aquele ato
inaugural, temos que nos perguntar como está configurada a ordem onde tal
símbolo opera.
Como reconhecemos já nas primeiras páginas deste estudo, palhaços e
palhaças que portam jalecos são, nos dias atuais, figuras bastante inseridas e
aceitas no ambiente hospitalar. Quer dizer, hoje o jaleco não é mais um
símbolo exclusivo de médicas e médicos; não há portanto, nenhuma ruptura
de ordem no fato de palhaços e palhaças fazerem uso dele. Tais figuras são
parte da ordenação habitual do universo da saúde. É mais do que comum a
presença de doutores-palhaços e doutoras-palhaças nos corredores,
enfermarias e quartos hospitalares de várias regiões do mundo. E nessas
regiões, não se poderia mais dizer que há subversão no simples ato de vestir
um jaleco. E, que fique patente, isso não nos parece um problema se
concordarmos que a existência de palhaços e palhaças em hospitais não está
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 71
unicamente determinada por sua suposta capacidade de “subversão em si”,
“transformação em si” ou "paródia em si”. Insistimos: o ofício da palhaçaria
em hospital não merece ser assentado em definições fixas e totalizantes. Como
dissemos na primeira parte deste ensaio, muitas vezes aprendemos mais sobre
as possibilidades do palhaço a partir das relações circunstancias que ele
estabelece do que com os conceitos que nele se colam. Subversão e
transformação, se houver, talvez residam justamente no fato de se quebrar a
tendência que visa encurralar o palhaço em hospital em torno do verbo ser
(ele é algo). Subverter seria, portanto, deixar de apostar em frases feitas, de
efeito pouco duradouro, para, ao invés disso, reconhecer na palhaçaria
hospitalar a presença de uma maleabilidade de fronteiras e sobretudo um
caráter relacional.

Os conceitos têm vários aspectos possíveis. Durante muito tempo


serviu-se deles para determinar o que uma coisa é (essência). Nós,
ao contrário, interessamo-nos pelas circunstâncias de uma coisa:
em qual caso, onde e quando, como etc? […] o evento e não mais a
essência. (DELEUZE, 2003, p. 39-40)

Além disso, vale dizer que o uso do jaleco varia de organização para
organização.
Há aquelas onde seus doutores-palhaços e doutoras-palhaças são livres para
customizar seus jalecos, fazendo deles uma verdadeira peça de figurino.
E há aquelas onde o jaleco é uma peça que, além de identificar artistas como
doutores ou doutoras, serve também para estampar os logotipos dos
apoiadores e financiadores da organização. Nesse caso, o jaleco geralmente
recebe o interdito de customização, retoques ou qualquer outro ajuste que fira
o padrão estabelecido pela organização e seus acordos com as marcas
financiadoras. Nesse último caso, sob o aspecto visual, o palhaço e a palhaça
dessas organizações não deixam de ser, em parte, padronizados. E é sob esse
padrão imposto pelos valores do mundo corporativo que artistas acabam
sendo portadores de publicidades ambulantes junto a pessoas enfermas,
algumas delas recém-nascidas, outras com alto grau de sofrimento, outras em
fim de vida.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 72


Mas, dirão alguns, é graças a tais marcas que artistas podem ser remunerados
pela realização desse trabalho. Não há dúvida, poderíamos responder, sem
deixar de lembrar, contudo, que algumas legislações ou comissões de ética de
certas regiões do planeta perceberam há tempos que a exposição de marcas
junto a crianças e adolescentes deve ser coibida, sobretudo quando esses
jovens pacientes se encontram hospitalizados. As organizações que levam
artistas a hospitais, e que têm o compromisso de proteger seres menores de
idade, deveriam se debruçar sobre a questão da veiculação de publicidade em
seus jalecos. E as instituições financiadoras de tais organizações, sensíveis e
solidárias com esse tema, deveriam se esforçar em negociar suas
contrapartidas em outros lugares que não os jalecos de artistas.
Patrocinadores e financiadores deveriam situar suas marcas em outras
circunstâncias que não aquelas onde pessoas - e sobretudo crianças e
adolescentes em estado de vulnerabilidade - se encerram em ambientes
adversos, como é o caso do hospital.
Nos locais onde tal sensibilidade não ocorre, e onde a lógica mercadológica
têm poucos freios que a regulamentem, vale se perguntar se o jaleco que
estampa marcas é um símbolo de subversão ou de submissão.

Cara limpa

Cara limpa, dentro dos Doutores da Alegria, por exemplo, é uma expressão
utilizada, originalmente como jargão para nomear a visita que palhaços dessa
organização efetuam nos hospitais quando estão à paisana, sem maquiagem.
Nos Doutores da Alegria, originalmente essa visita era realizada no início de
cada ano quando uma nova dupla “assumia” um novo hospital e se
apresentava formalmente a todos os setores por onde atuaria. É preciso
entender que há alguns anos as duplas de palhaços e palhaças dos Doutores
da Alegria permanecem em um hospital durante um ano inteiro.
Em 2016, o hospital do M’boi Mirim, no extremo sul do município de São
Paulo, era o mais novo hospital aberto dentro do programa dos Doutores da
Alegria. Diferentemente do processo de abertura dos antigos hospitais

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 73


parceiros, o M’boi adotou um novo padrão de abordagem. Este padrão
consistia, em poucas palavras, em aproximar e conectar com mais efetividade
a instituição Hospital da instituição Doutores da Alegria. Para isso, uma série
de atividades (palestras, reuniões, sondagens...) precedeu a abertura do
programa de visitas de palhaços no hospital, e outra série (cursos, oficinas,
reuniões, pesquisas, novas sondagens…) deu continuidade ao projeto, depois
de iniciado o trabalho de intervenção palhacesca. A dupla de palhaços atuante
no hospital não só fazia parte integrante dessas atividades como suscitava
outras.
E a cara limpa continuada foi uma das atividades sugeridas pela dupla que
abriu o hospital.
O que se quer dizer por “continuada”?
Simplesmente que tal atividade não se restringia mais ao primeiro dia de
intervenção no hospital mas, ao invés disso, aconteceria em todos os dias de
intervenção, ao longo do ano. Como dissemos, a cara limpa continuada não
era um projeto que fazia parte dos planos preparados em conjunto entre as
instituições, mas com o passar do tempo revelou-se uma das mais eficientes
pontes de conexão entre o mundo dos palhaços e o dos médicos ou, em outras
palavras, entre o mundo institucional dos Doutores da Alegria e o mundo
institucional do hospital onde estávamos atuando.
Lembremo-nos que nos idos de 1996, uma experiência semelhante ocorrera
durante a permanência dos Doutores da Alegria no Hospital do Câncer, em
São Paulo. A dupla de artistas que atuava naquela pediatria foi convidada pela
equipe hospitalar a participar das reuniões de troca de plantão. Tal convite
partiu do desejo de profissionais de saúde em estabelecer uma relação
interdisciplinar entre os colaboradores do hospital. Sob esse princípio,
representantes da enfermagem, da fisioterapia, da psicologia e da área
médica passaram a se encontrar em reuniões das quais também fazia parte a
dupla dos Doutores da Alegria. Nessas reuniões, discutia-se cada caso levando
em consideração as observações de cada área. Foi um projeto animado por
questões que, naquela época, tratavam de humanização e também de uma
ampliação da participação dos trabalhadores e trabalhadoras em diferentes

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 74


esferas do hospital. Ali já se percebia que a boa correspondência entre equipe
palhacesca e equipe do hospital (incluindo sua direção) era a responsável pela
instalação e permanência de tais encontros.
Esse projeto existiu por algum tempo, até a mudança de direção do hospital. A
nova diretoria, adotando novas posturas, transferiu lideranças e suprimiu tais
encontros. Pouco tempo depois, os Doutores da Alegria encerraram suas
atividades naquele hospital. E, apesar de as relações entre equipe palhacesca
e equipe hospitalar serem bem estabelecidas nos demais hospitais onde essa
associação vem atuando, não há relatos de experiências semelhantes àquela
praticada no Hospital do Câncer até o momento que, em 2016, foi firmada a
parceria com o Hospital do M’boi Mirim.
Vale dizer que ainda nos idos de 1996/1997, os Doutores da Alegria
receberam a visita de palhaças do Rire Médecin (grupo equivalente, da
França) que também praticavam – e ainda praticam – a visita de cara limpa
sistematicamente. Os franceses chamam tal visita de “transmissão”.
“Transmissão” ou “passagem de plantão” seriam certamente termos mais
apropriados do que cara limpa se a visita, tal qual realizada no M’boi Mirim,
consistisse exclusivamente na troca de informações técnicas sobre o estado de
saúde dos pacientes a serem visitados. Acontece que a prática tem mostrado
que a visita não se limita a tal troca.
“Visita técnica” talvez fosse um termo que expressasse parte do que se faz na
visita de cara limpa. Assim como artistas realizam visitas técnicas nos teatros,
circos e ruas para verificar as condições, riscos e possibilidades que cada um
desses locais oferece à apresentação de sua arte, artistas que trabalham em
hospitais mereceriam efetuar a mesma verificação. E como a paisagem
humana é o que há de mais movente em um hospital, nada mais aconselhável
que essa visita – que, como veremos, não se reduz exclusivamente a uma
verificação técnica – seja feita sistemática e cotidianamente.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 75


Um dedo de prosa

A visita de cara limpa é o momento em que artistas visitam cada uma das alas
às quais voltarão posteriormente como palhaços ou palhaças. É o momento
onde reservam um espaço de tempo diário para prosear com a equipe médica
e de enfermagem.
Mas então qual é o método para abordarmos tal prosa?
Apesar de tal abordagem evoluir e oferecer novos parâmetros a cada visita,
podemos traçar alguns princípios balizadores.
Vejamos:
Mesmo se existe um roteiro de fundo (uma espécie de passagem de plantão de
médicos/enfermeiros para artistas), não é a realização desse roteiro que
define a qualidade da prosa. Em geral, os desvios de roteiro contribuem tanto
quanto o próprio roteiro para a boa visita de cara limpa. Saber de um quadro
pós-operatório de apendicite de um jovem paciente tem sido tão relevante
quanto saber que haverá uma troca de residentes ou uma troca de função
entre coordenadores de área. Saber que o setor está passando por uma
auditoria externa, ou que uma das mães entrou em contato com um canal de
televisão para reclamar de algum suposto mal atendimento a seu filho, ou que
o mesmo canal de televisão divulgou os excelentes resultados obtidos pelo
hospital, não deixam de ser informações valiosas para palhaças e palhaços.
Assim como são significativas as informações sobre uma médica que faz
trabalho voluntário durante suas férias, ou sobre outro médico que atribui à
sua espiritualidade uma parcela de seu bom rendimento profissional, ou sobre
outro ainda que se abala, humano que é, com a desestrutura socioeconômica
arrasadora de seus pacientes.
Todas essas informações têm permitido analisar o ambiente, sentir com
contundência indubitável a atmosfera do setor e o estado de espírito das
pessoas daquele ambiente naquele dia. Além disso, os artistas e as artistas,
por seu lado, além de receberem tais conteúdos, também partilham uma
variedade de sentimentos que, por sua vez, podem impactar de alguma
maneira aquele recinto. A visita, tal qual tem sido efetuada, aproxima-se então
mais da troca de percepções do que da mera transmissão e recepção de
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 76
dados analíticos e informativos. Dessa maneira, a passagem de plantão não
tem sido o objetivo final dessas visitas, tem sido apenas seu ponto de partida.
A título de exemplo, poderíamos listar (sem encerrar a lista) que essa visita
tem sugerido as seguintes reflexões:
Ela integra e aprofunda a relação entre artistas e profissionais da saúde.
Ela avizinha as distâncias profissionais entre artistas e profissionais da saúde,
respeitando a especificidade de cada disciplina.
Ela aproxima a organização de palhaços em hospital da instituição hospitalar.
Ela protege os pacientes.
Ela enriquece a atuação artística.
Ela pode ser simultaneamente séria e divertida.
Ela está em constante reelaboração.
Ela aquece palhaços e palhaças, sem se limitar a ser um mero aquecimento.

Como se vê, a heterogeneidade listada acima não torna a visita de cara limpa
menos necessária e menos precisa. A dificuldade de enquadrar tal prosa em
um plano cuja eficácia seja mensurável em resultados numéricos também não
nos aflige.
Se cabe a um artista interventor realizar a leitura do ambiente em que
intervirá, sabemos, pela experiência vivida, que a visita de cara limpa tem
potencializado tal leitura.

Com nariz, sem nariz

Essa visita, entretanto, nas organizações onde é efetuada, apresenta variações


consideráveis.
Algumas instituições procuram segui-la rigorosamente, como é o caso da já
citada associação francesa Le Rire Médecin, organização para a qual a
“transmissão” é obrigatória.
No volumoso “Abecedário de palhaços hospitalares” que o Rire Médecin criou
no início dos anos 2000 para a formação e informação interna de sua equipe
palhacesca, lê-se o seguinte:

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 77


Uma transmissão acontece, à paisana, junto com a equipe de
saúde a fim de conhecer o estado de saúde e o moral de cada
criança a ser visitada. Essa transmissão é indispensável: você não
pode visitar nenhuma criança antes de tê-la efetuado. (LE RIRE
MÉDECIN, 2003, p. 2).

Mais adiante, no próprio “Abecedário”, uma nuance diz que a visita tem que
ser “preferencialmente à paisana” ou, quando isso não é possível, deve ser
feita “sem o nariz” (2003, p. a4).
Façamos aqui um parêntese – um desvio, melhor dizendo – cujo
desenvolvimento poderá nos servir quando tratarmos da noção de ficção mais
adiante.
Vestir ou desvestir o nariz vermelho são as duas facetas de um mesmo código
cênico, difundido em certa área do mundo palhacesco.
Desvestir o nariz vermelho representa, nesse caso, a suspensão do estado de
palhaço. Tal suspensão possibilitará a realização de uma conversa séria entre
profissionais de saúde e profissionais artistas, apesar de esses últimos
continuarem a portar seus figurinos e maquiagens.
Como é de se supor, a realização completa desse código parece estar
condicionada à utilização de um nariz vermelho, um objeto que possa ser
posto e retirado facilmente do rosto de quem atua. É, portanto, um código
inutilizável para artistas que apenas maquiam a pele de seus próprios narizes
de vermelho (ou outra cor) em vez de portarem um nariz artificial.
Esse detalhe inócuo não deixa, contudo, de revelar muito sobre a conduta
conceitual de artistas e das organizações para as quais trabalham.
Um palhaço ou palhaça que apenas maquia seu próprio nariz com maquiagem
avermelhada, sem portanto portar um nariz de plástico ou borracha em seu
rosto, terá que lançar mão de outros recursos para informar a equipe
hospitalar que, em determinado momento, estará agindo “seriamente como
pessoa” e em outro estará agindo dentro de seu estado de palhaço. Esse
palhaço ou palhaça, em princípio, não precisará explicitar verbalmente em
que estado está agindo. Basta operar com maior ou menor grau de
relaxamento do corpo e voz para que a informação sobre seu estado (de jogo,
ou não jogo) seja assimilada por seus interlocutores. De um modo geral,
quanto menor o tônus físico, mais próximo se está do estado “normal”
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 78
cotidiano da pessoa. Em muitas situações, o teor do assunto tratado na
conversa, aliado ao relaxamento cotidiano, auxilia na identificação do estado,
tanto quanto o tom adotado.
Ora, então, se o recurso do “maior/menor tônus” for aplicado com eficácia,
poderíamos concluir que não há mais a necessidade do código
“vestir/desvestir” o nariz para informar qualquer espectador sobre o estado
em que palhaças e palhaços se encontram em determinado momento.
Nos Doutores da Alegria, por exemplo, boa parte de seus artistas passam de
um “estado cotidiano” para um “estado palhacesco” somente através de
mudanças corpóreo-vocais, independentemente de portarem ou não um nariz
de borracha, removível, em seus rostos. O código do “vestir/desvestir” o nariz,
nessa organização, se não foi abandonado, foi consideravelmente
dessacralizado, sem que com isso houvesse prejuízo da compreensão dos
diferentes estados exercidos por palhaças e palhaços atuantes nos hospitais.

Fechemos momentaneamente esse parêntese para voltar à questão da visita


de cara limpa propriamente dita. Ou da “transmissão”, como se diz na França.
Como dissemos, as variações a respeito dessa prática são amplas, às vezes até
mesmo dentro de uma mesma organização.

Há as organizações onde simplesmente essa prática não existe. Nesses casos,


o trabalho começa com artistas caracterizados que se dirigem diretamente aos
quartos e enfermarias onde se encontram as pessoas enfermas, sem nenhum
contato prévio com a equipe de saúde. Tudo é descoberto e vivido
exclusivamente durante a situação de jogo. Não chegaremos ao ponto de dizer
que tal prática prejudica a totalidade da relação. Muitas vezes, a ausência de
uma troca de informações prévia parece não comprometer a atuação de
artistas em hospitais. Mas a experiência tem mostrado que o contato prévio,
sobretudo aquele em que é feito de cara limpa, desprovida de caracterização –
tal qual feita no M’boi Mirim, por parte dos Doutores da Alegria, e em sintonia
com a prática do Le Rire Médecin – aponta para um trabalho artístico que
começa bem antes da entrada dos palhaços e palhaças “em cena”.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 79


A essa altura, poderíamos nos perguntar qual a diferença entre conversar com
a equipe hospitalar à paisana (de cara limpa) ou conversar apenas sem o nariz
(mas portando figurino e maquiagem), uma vez que em ambos os casos se
trata de uma conversa séria.
Vejamos.
Antes de chegar até as salas e balcões das equipes de saúde dos diferentes
setores por onde atua, o palhaço ou palhaça terão que percorrer vários
corredores e alas hospitalares, maiores ou menores, em função da arquitetura
do hospital em questão.
A experiência tem mostrado que ao nos dirigirmos à paisana até os balcões ou
salas das equipes médicas (ou de enfermagem) estamos livres e desobrigados
de qualquer atitude palhacesca. A postura à paisana possibilita uma
concentração exclusiva nas contingências do hospital durante o trajeto que
nos leva ao encontro com a equipe. E, muitas vezes, é já no trajeto que
sentimos o pulso do hospital daquele dia.
Não quero afirmar que o estado cotidiano é mais apto do que o estado
palhacesco para se perceber as tensões e dinâmicas dentro de um hospital.
Quero apenas ressaltar que nesse primeiro momento do dia, o fato de não ter
que reagir palhacescamente a eventos e pessoas que cruzamos, nos coloca em
um estado de disponibilidade para analisar o ambiente e a ele reagir sem a
urgência que a prontidão artística exige.
Por exemplo:
Mais de uma vez, durante a visita à paisana, estimamos, em conjunto com
membros da equipe médica de um determinado setor, ser desaconselhável – e
talvez até inconveniente – voltarmos com nossas figuras de palhaço ou palhaça
àquele setor. Geralmente, os motivos de tais decisões conjuntas são os óbitos
recentes mal assimilados pela família, ou qualquer outra tensão extrema
ocorrida entre pessoas de uma determinada ala. Nessas situações, é muito
mais saudável – e menos constrangedor para todos e todas – estar à paisana
no setor recebendo tais informações.
Outro argumento utilizado contra a visita de cara limpa baseia-se no fato de
que pacientes, acompanhantes, e equipe do hospital veriam a magia da ilusão

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 80


desfalecer-se diante de si ao se depararem com artistas à paisana. Ora, quem
oferece o melhor contra-argumento a isso é a própria experiência. Se por um
lado, as pessoas que nos cruzam de cara limpa nos reconhecem como sendo as
pessoas que realizam a palhaçaria, em nenhum momento parecem
desapontadas com uma suposta perda de ilusão. Pelo contrário, tanto adultos
quanto crianças, sabem – e desfrutam – do fato de ora estarmos à paisana e
ora de palhaço e palhaça. Não há quem não perceba nossa diferença de
estado em nossas diferentes funções (cara limpa e palhaço/palhaça) e não se
adapte a ele.
Daí a tendência em recomendar a visita de cara limpa e não a conversa com
trajes palhacescos e nariz desvestido. O trabalho do dia não começa apenas
quando a imagem de palhaços ou palhaças adentram no recinto hospitalar. Ele
começa antes, quando artistas se dispõem a conhecer o ambiente em que
atuam e sobre ele trocar informações e percepções.
E esse é o trabalho artístico cuja amplitude pode nos ajudar a enfrentar a
espinhosa questão sobre a função de palhaços e palhaças em hospitais no dia
de hoje.

Cultura e Saúde

Parafraseando Eduardo Viveiros de Castro, poderíamos dizer que “não é


possível pensar como médicos, no máximo é possível pensar com os
médicos”.22
O exercício da visita técnica, de cara limpa, é um dos aspectos que nos tem
revelado o poder de tal afirmação. E pensar junto com os médicos e médicas
não representa nenhuma perda de capacidade criativa ou, como ainda se
defende em algumas instâncias, da suposta perda de capacidade de
“subversão”, “transformação” e “paródia” que artistas exercem em hospitais.
Como vimos anteriormente, esses últimos pressupostos proferidos sem a
devida prudência, assim como a busca desenfreada pela identidade do “ser”
palhaço, parecem não mais conseguir expressar sozinhos as linhas de força
22
A frase do antropólogo, presente em “Metafísicas Canibais”, é a seguinte: “não é possível pensar como os índios;
podemos, no máximo, pensar com eles” (CASTRO, 2015, p. 231).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 81
que palhaços e palhaças traçam atualmente dentro do ambiente da saúde. Na
palhaçaria hospitalar, tal qual a exerço hoje em dia em alas pediátricas ou
psiquiátricas, os princípios parecem ter se deslocado. Atualmente, mais do
que subverter, transformar ou parodiar, parecem ser outras as características
que potencializam a atividade de palhaço em hospital. Em minha trajetória,
poderia dizer que algumas dessas características, tais quais a propensão à
relação e a aptidão para a leitura do ambiente, sempre fizeram parte da
abordagem das organizações com as quais tive algum contato profissional. E
hoje em dia, essas características – apesar de aparentemente menos
assertivas – parecem sobrepujar a suposta retumbância dos brados
“subversivo” e “transformador” (termos originalmente fortes, sem dúvida, mas
que parecem padecer de certa anemia semântica quando aplicados à nossa
atividade nos dias atuais). Outras características defendidas neste ensaio, tais
quais a crítica não parodística, a flexibilidade conceitual, e a aliança entre
artistas e profissionais de saúde, variam de organização para organização, às
vezes sendo adotadas irrestritamente, às vezes parcialmente, e outras vezes
sendo ignoradas ou refutadas por completo.
Seja como for, o impulso vital que alimenta a atividade de palhaços e palhaças
em hospital nos dias de hoje parece não mais depender de alguns dos
pressupostos que a alimentavam em seus primórdios. O ambiente da saúde,
assim como seus profissionais, evoluem constantemente. Artistas que
intervêm em tal meio merecem se atualizar e se movimentar também,
sobretudo se a leitura que fazem do ambiente indicam mudanças que incidem
no processo de intervenção.
Se, no passado, foi necessário lançar mão de certos princípios úteis à
demarcação e ao destaque do campo de atuação da palhaçaria em hospital
face a outras atividades hospitalares (associação de voluntariado, grupo de
animadores, brinquedistas, terapeutas ocupacionais etc.) e também face aos
olhares do mundo exterior (financiadores, apoiadores, imprensa, mundo
acadêmico etc) hoje em dia, uma vez reconhecida pela sociedade e integrada
aos demais campos da área da saúde, a palhaçaria hospitalar não precisaria
mais clamar seus slogans com a retumbância de um adolescente. Ao invés

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 82


disso, deve cada vez mais investigar com profundidade e coletivamente as
pistas e conceitos que realmente balizam esse ofício no momento presente.
Muitas organizações espalhadas pelo mundo (mas não todas) percebem que
estar próximo de toda a equipe médica e com ela trocar e traçar planos
coletivos não representa, para artistas de hoje, a perda de autonomia e
tampouco uma "acomodação estética". Pelo contrário, tal ato parece apontar
para a compreensão de que os termos “cultura” e “saúde” não se encontram
assujeitados um ao outro mas, ao contrário, são termos que, sob certo recorte,
poderiam ser considerados vizinhos e interdependentes.
Embora não seja, nem de longe, minha intenção engrossar o caldo da querela
“arte e/ou terapia”, levantamos, contudo, a hipótese de que médicas e
médicos que pensam junto com palhaças e palhaços contribuem, em última
instância, para uma visão mais ampla das possibilidades regeneradoras do
hospital. Não deixamos de reconhecer a especificidade de cada área, e com
isso reconhecemos também o quanto tal especificidade colaborou para o
enrijecimento das estruturas que as separam. Mas lembremo-nos que tal
separação não ocorre em todos os tempos e espaços da história da
humanidade. Como citado no início deste ensaio (p. 7), Jean-François Dusigne
destaca que há grupos sociais de nosso planeta que não têm equivalente para
a palavra “arte” e, em geral, a traduzem por “medicina”. Morgana Masetti
também parece aproximar essas noções quando nos lembra que

a medicina, antes de um conjunto de técnicas, é um lugar


sociológico de crenças e rituais para cuidar de questões
fundamentais da existência humana. A medicina é um principio de
formação da realidade como a arte e a religião, e revela, através
de nossos sentidos, nosso imaginário sobre morte, vida, dor,
sofrimento. (MASETTI, website Ética do Encontro,
http://www.eticadoencontro.com/seminarios-e-oficinas/)

Estamos aqui evidenciando – e sugerindo o que já foi sugerido por outros


povos e autores – que a arte representa, antes de tudo, um fator de equilíbrio
para o ser humano. E, no caso do palhaço e da palhaça, o riso que provocam
dentro ou fora do hospital também se caracteriza como gesto regenerante e
equilibrador. Ele serviria a nos manter despertos, a reestabelecer a

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 83


elasticidade de nosso corpo e de nosso espírito […] a amaciar tudo
o que pode restar de rigidez mecânica na superfície do corpo
social. [...] O riso não é do domínio da estética pura já que
persegue [...] um objetivo útil de aperfeiçoamento geral.
(BERGSON, 2002, p. 14, 15, 16).

Função da palhaçaria

Não se trata aqui de discorrer sobre o sem número de respostas que poderia
receber a pergunta “para que serve a arte?” ou a sua correlata “o que é
arte?”. Para os fins deste estudo, evocaremos simplesmente a possibilidade de
que arte e medicina, a despeito de suas atuais especificidades, possuem
aspectos convergentes quando se trata de “cuidar de questões da existência
humana”. O fato de a arte lidar, entre outros, com símbolos, metáforas,
representações imateriais ou impalpáveis, distantes da utilidade visível,
palpável e concreta de outras atividades, não lhe retiraria certa
“funcionalidade”. Sua “inutilidade” conceitual pode continuar sagrada. Ela
pode até não ser lucrativa, mas sem dúvida é benéfica.
Ter uma função não significa encaixar ou encaixilhar a arte – ou no nosso caso
específico, a arte do palhaçaria em hospital – em nenhuma trilha ou moldura
pré-definidas. Não significa submeter-se a padrões conhecidos de comicidade.
Não significa domesticar-se face a uma suposta entidade superior
representada por médicos ou médicas. Ter uma função social exige da arte do
palhaço uma permanente e elevada atenção ao que muda na sociedade,
inclusive para, em alguns aspectos, reorientar, rever – e até resistir a – tal
mudança. Tais gestos, lembramos, visariam em última instância o reequilíbrio
vital desta mesma sociedade.
Se aceitarmos que o riso tem certa função regeneradora de vida, a presença
de artistas no ambiente hospitalar parece evidente. A capacidade que a risada
– e também a poesia – através das quais palhaças e palhaços tem a
possibilidade de suspender, nem que seja por alguns segundos, o irremediável,
parece ser um dos aspectos que confere legitimidade à evolução de artistas
nesse meio sensível. “Face ao insuportável, ainda há a possibilidade do riso”
(DUFOURMANTELLE. 2011 p. 117). Porque o riso gera a possibilidade de um
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 84
desvio, de um parêntese, de uma liberdade, mesmo que fugaz, diante de males
que nos ameaçam. Ou, se quisermos, ele representa nosso desejo de existir, e
de algum modo de resistir à nossa implacável finitude.
Por isso, enquanto houver rigidez, doença e miséria sociais e psicológicas,
tudo indica que serão necessários os gestos propostos pela arte e pela
medicina. Ao menos tem sido assim desde a aurora dos tempos. E em alguns
hospitais dos dias de hoje, com algumas organizações de palhaços e palhaças
dos dias de hoje, tais gestos, aos poucos, parecem recomeçar a convergir, ou
ao menos parecem ser pensados conjuntamente.

Porém, uma questão subsiste.


Esse gesto social (se quisermos ficar com os termos de Henri Bergson), esse
riso regulador, necessário para a manutenção de uma flexibilidade coletiva – e
portanto adequado ao hospital – não deveria ser confundido com outros
fenômenos de sociedade também associados ao riso e à alegria.
Haveria duas dimensões distintas do uso e do alcance do riso e da alegria na
sociedade contemporânea.
A primeira, que nos interessa, seria a de um riso, por assim dizer, sensível;
uma espécie de inteligência espontânea e instantânea espalhada no corpo,
capaz de nos potencializar e que representaria simplesmente “a expressão
explosiva de nossa alegria de viver” (CUSSET, 2011, p.51). Um riso que pode
ser sutil feito um sorriso mas cujo prazer, de certo modo, nos eleva sempre.
A segunda seria a do riso que nos aprisiona sob a forma de gozo eufórico ou
do divertimento compulsivo imposto pela lógica mercadológica do “jamais
triste – consumindo sempre”; uma lógica que aumenta nosso grau de
passividade e dependência. Aqui, a explosão de divertimento não seria a da
simples alegria de viver, mas aquela advinda de um estímulo permanente de
excitação externa que, por estar mal dosado, nos despedaça, nos aparta de
nós mesmos. Não se trata de negar a diversão, mas simplesmente de atentar-
se para que ela não substitua nossa capacidade interna de se afirmar – e de
existir plenamente.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 85


“Amedrontador é o divertimento compulsivo, que nos priva de nós
mesmos" [...] Não tenho nada contra o divertimento. Mas para
poder se desviar de si com prazer, é preciso saber como se
reencontrar...”. Caso contrário, “o divertimento, longe de evitar o
tédio, acaba sendo sua causa, assim como o riso pode se tornar
causa da tristeza” (CUSSET, 2011, p. 52, 53).

Se aceitarmos que as duas dimensões do riso, tal qual expostas acima, estão
realmente presentes em nossa sociedade, caberia a cada organização de
palhaço em hospital questionar-se permanentemente sobre qual desses dois
aspectos tem repousado suas intervenções. Sabemos entretanto que nem
sempre tal distinção se apresenta com nitidez, que nem sempre a organização,
por mais cautelosa que seja, tem o controle da leitura que a sociedade faz de
seu trabalho. Daí a necessidade, por parte das organizações, da realização e
difusão periódica de pesquisas com apurado senso crítico a fim de
questionarem sempre se seus palhaços e palhaças têm – e mantêm – como
função primordial a potencialização dos sujeitos com os quais interage, ou se,
ao contrário, sucumbem à “cultura do divertimento a qualquer custo” que,
dissimulada de alegria, apenas fragmenta e dissolve as capacidades de
afirmação que o sujeito, mesmo hospitalizado, ainda tem.

Bebês

Estacionemos nossa reflexão alguns instantes no caso dos bebês.


Essa parada estratégica talvez nos abra pistas para entender melhor a
gradação que o jogo palhacesco pode alcançar dentro do recinto hospitalar.
Não é de hoje que discursos e observações sobre a arte da palhaçaria em
hospital nos lembram que tal figura não depende exclusivamente do riso para
ali evoluir. Sua atuação pode gerar a mais histriônica gargalhada como
também pode gerar um silêncio repleto de ternura. Ambas reações são
possíveis e igualmente potentes. Tudo dependerá do encontro estabelecido.
E os encontros estabelecidos com bebês são propícios à nossa perpétua
reinvenção como artistas.
Assim como a migração do humor circense para as telas de cinema pôde abrir
novas possibilidades de atuação cômica no início do século XX, o contato de

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 86


uma palhaça, de um palhaço, com uma criança recém-nascida também pode
abrir um sem-número de novas possibilidades de interação artística. Um
exame atento dessas possibilidades talvez aponte para uma ampliação dos
limites da linguagem do palhaço ou, se preferirmos, para um novo modo de
ser palhaço.
Um ambiente hospitalar é repleto de restrições e áreas exíguas. Além de
estarem espacialmente próximas, as pessoas com as quais interagimos estão
fisicamente vulneráveis. Tais fatores, como se sabe, exigem uma abordagem
artística específica.
Já afirmamos que a modalidade de atuação específica que privilegiamos neste
ensaio é a visita artística leito a leito. Também já tentamos esclarecer que tal
intervenção não se resume à apresentação de um mini show a um paciente.
Mais do que autor de uma intervenção dirigida a um espectador hospitalizado,
o palhaço e a palhaça que atuam leito a leito se colocam em uma relação onde
suas ações dependem das ações das pessoas com as quais ele e ela se
encontram.
Isso já foi expresso mais de uma vez neste ensaio. Resta-nos saber como tal
interação se produz quando diante de nós temos um bebê.
Antes, é preciso considerar que um bebê aparentemente silencioso, por mais
jovem e debilitado que esteja, pode ainda assim mostrar-se receptivo à
intervenção palhacesca. Se a ação feita por artistas é sempre uma das partes
da inter-ação, a outra parte depende daquilo que a escuta preliminar e
constante do ambiente poderá fornecer a tais artistas. E bebês são muito
aptos a nos dar o rumo de nossas intervenções, mesmo se as respostas a
nossos estímulos não forem, em um primeiro momento, completamente
visíveis e audíveis.
É preciso então se aproximar da criança, antes mesmo de qualquer outra
proposta de ação. É preciso encontrar a distância exata em que os olhares de
artistas e bebês podem se cruzar e, como veremos, alimentar-se mutuamente.
Não é raro vermos palhaços e palhaças, iniciantes e experientes, sacarem seus
instrumentos musicais e seus fantoches assim que avistam um bebê enfermo
em seu berço. Esses recursos, aliados à “hipnose mágica” produzida por

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 87


bolhas de sabão, podem efetivamente contribuir para o estabelecimento de
uma relação artista-bebê. Mas, como nem sempre é o caso, tais recursos não
merecem ser generalizados. Em muitas situações, o excesso de informação e a
sobrecarga de estímulos podem ser menos impactantes do que a simples –
calma e aberta – presença do palhaço ou palhaça diante do berço. Mais do que
portadores de efeitos, artistas face a bebês têm a oportunidade de aprender
(muito) com essas pequenas criaturas que sua força artística também reside
no fato de serem capazes de portar um olhar aberto à comunicação infinita.
Colocar-se na condição de espelho – ou de esponja – que se conecta com o
estado do bebê, com o ritmo que ele impõe e com as informações que ele
envia parece-nos um primeiro passo para que uma real conexão se produza.
E tal passo é inspirado pela pesquisa que Marianne Clarac, palhaça do
programa francês de palhaço em hospital Le Rire Médecin, desenvolve com o
intuito de capacitar palhaços e palhaças a compreenderem os estímulos
fornecidos por bebês de todas as idades e em diferentes estados de
enfermidade.23
A fim de criar um terreno de apoio a essa relação, é preciso conhecer as
particularidades do bebê, assim como conhecemos as das crianças e
adolescentes de outras idades.
E que particularidades são essas?

Desde o nascimento, o bebê procura entrar em contato com outras


pessoas e se interessa por aquilo que lhe dizemos. O cérebro do
bebê e todo o seu corpo se desenvolvem através de laços afetivos
e afetuosos que ele pode ter com as pessoas à sua volta. Esses
laços podem se constituir a partir de uma coordenação sutil e
sensível das expressões faciais, vocais e gestuais de cada
integrante dessa interação. O bebê se dirige mais às pessoas do
que aos objetos. Seu tônus e seus movimentos se organizam assim
que lhe dirigimos a palavra. O recém-nascido tende a se dirigir a
um rosto que o olha (CLARAC, 2016, p. 1).

Quer dizer que, em muitos casos, bebês gostam de “bater papo”. Parecem
preferir que falemos com eles. E essa fala merece ser trabalhada. Com o
tempo, percebe-se que os estímulos e respostas variam enormemente em
23
Parte do conteúdo expresso neste tópico, provém da assimilação de oficina, conversas reiteradas e apostilas que
Marianne Clarac realizou no HCIM (Healthcare Clowning International Meeting) em Lisboa, Portugal, em 2016.
Outra parte vem de minha própria experiência – e corroboradoras – do que Marianne Clarac assinala.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 88
função da idade dos bebês. Mas, de modo geral, a presença sincera é o
primeiro passo para que o contato se entrelace.
Uma vez estabelecido o contato com a criança, e uma vez afirmada nossa
situação de “espelho-esponja” que escuta os sinais do bebê em função de sua
idade e estado de saúde, podemos passar a experimentar a criação de sons
vocais que o interpele. Em função de suas respostas, a prosódia desse som vai
se construindo em torno de palavras com poucas sílabas, emitidas pausada e
repetidamente. Inflexões e tonalidades tomam vida. Palavras de nossa própria
língua tendem a se “musicalizar” durante esse processo. Às vezes se misturam
com sons emitidos pelos bebês e passam a criar uma língua própria,
constituída aos poucos pelos sinais sonoros e visuais que deles recebemos.
A experiência tem mostrado que não se trata de chegar com uma língua
pronta (seja a nossa ou seja uma língua inventada). Mesmo sabendo que tal
recurso tem propriedades impactantes, a comunicação genuína que sugerimos
aqui acontece quando ouvimos a “língua” e demais reações que a criança
envia. É uma comunicação em seu sentido mais nobre. Um diálogo que
considera e depende da escuta atenta do outro, pouco importando sua idade.
Para que isso aconteça, vale lembrar que

deixar-se fazer pelo interior de si próprio é mais importante do


que querer dirigir a situação a partir de um dever fazer […] O
momento onde deixamos aflorar no palhaço nosso lado mais
íntimo, tão necessário para o encontro com o bebê, é um momento
que tange a fronteira entre nossa figura palhacesca e nossa
própria pessoa (CLARAC, 2016, p. 2, grifos meus).

Fronteira palhaço-pessoa

Aqui surge uma problemática que nos interessa e que, não raro, é fonte de
muitos mal entendidos. Trata-se dessa fronteira entre a figura palhacesca e a
própria pessoa.
E o trabalho junto aos bebês pode nos auxiliar a elucidar tal ponto.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 89


Ao convocarmos o que há de mais íntimo em nossas emoções pessoais, ao
contrário do que possa parecer, não estamos deixando de ser palhaço ou
palhaça. Também não estaríamos sucumbindo a um processo de
“domesticação da máscara” do palhaço (BOLOGNESI, 2006, p. 8). Estaríamos
apenas torcendo as dobras da linguagem da palhaçaria para além de seus
limites habituais. Nesse caso, estamos supondo que palhaças e palhaços, além
de poderem atuar sem sempre fazer rir, também podem reduzir a intensidade
de seu jogo de modo a parecer, para um observador externo, que ali não haja
mais linguagem. Isso acontece em inúmeras situações, várias vezes durante
intervenções em hospital, sem que haja, porém, o prejuízo do estado
palhacesco. Ao contrário, nesses ambientes onde a potência do palhaço se dá
através de sua capacidade relacional, não estaríamos diante da perda de um
estado, mas apenas diante de uma capacidade de dinamização de jogo capaz
de fazer vibrar estados muito reduzidos em efeitos externos e muito elevados
em porosidade com percepções interiores e íntimas. O palhaço estará ali,
porque não há fusão esquizofrênica de personalidade com o ator ou a atriz
que o atua. Há apenas uma imprecisão de fronteiras com relação a códigos
mais estritos de atuação. Emprestar emoções pessoais a seu próprio palhaço
ou a sua própria palhaça, não configuraria uma afronta à definição de tal
figura. Ao longo deste estudo, trabalhei com a possibilidade da suspensão da
definição. Não para negá-la. Mas para que ela não preceda completamente o
encontro e, sim, seja também moldada por ele. E os bebês não cessam de nos
ensinar isso.
De certo modo, já havíamos evocado tal fenômeno anteriormente. Algo
parecido ocorreu quando abordamos a atuação de palhaços e palhaças em
instituição psiquiátrica junto a pacientes com forte transtorno mental; ou
diante de uma senhora aos prantos em busca de um simples abraço, depois de
saber do falecimento do neto. Agora apresentamos a possibilidade de uma
existência palhacesca diante de bebês ávidos por uma comunicação sutil, olho
no olho, papo sincero, para além do encanto de bolhas, bonecos e música.

É um privilégio visitar artisticamente um outro espaço de nós


mesmos, se deixar guiar por nosso “bebê” interior. Ele está em

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 90


nós assim como todas as outras idades de nossa vida. E cada uma
delas é um recurso a ser explorado para enriquecer a paleta de
nosso palhaço (CLARAC, 2016, p. 3).

Ficção

Ficção é um termo do qual lançamos mão algumas vezes até aqui sem,
todavia, aprofundá-lo. É um termo delicado, com acepções distintas, e com
uma amplitude que não caberia no espaço deste estudo. Entretanto,
percorreremos alguns de seus aspectos a fim de entrever possibilidades de
sua utilização no âmbito de nosso ofício.
Beatriz Sayad, em seu trabalho “Dia a dia com os palhaços dos Doutores da
Alegria” afirma que

a ficção é uma premissa para a ressignificação dos papéis, ou para


a inversão dos mesmos. Se o palhaço diz: “Olá, eu sou médico da
equipe de besteirologia deste hospital”, a criança, paciente, aceita
o jogo e já não é mais a “mesma” paciente de alguns instantes
antes, mas outra possível paciente deste possível novo médico “de
mentira” que surge. Quem compactua com a ficção ajuda a
compor o universo do trabalho, e vira parte criativa do jogo (2008,
p. 77).

A situação acima descrita representa com fidelidade o que vivemos em boa


parte de nossas intervenções em pediatria. Partindo de um fato inicial, no qual
a criança decide acreditar que um palhaço é um médico, um sem-número de
universos ficcionais pode ser desenvolvido. Não é raro vermos esse dado
inicial se extrapolar. Quando isso ocorre, a “situação médica” se transforma e
podemos ser levados aos mais recônditos rincões ficcionais que a imaginação
dos participantes do encontro é capaz de alcançar.
Casos como esses, onde pacientes se prestam a embarcar no jogo de palhaços
e palhaças que se autodenominam “doutores”, são conhecidos e difundidos.
Também é relativamente divulgada e analisada a potência regeneradora
contida em tais jogos. Desde a sistematização de intervenções de palhaços e
palhaças no contexto da saúde até os dias de hoje, tem aumentado o
reconhecimento e a aceitação do fato de que artistas – treinados – promovem

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 91


experiências capazes de resgatar o cotidiano infantil até mesmo em locais
onde sua ocorrência, em princípio, seria improvável, como os hospitais, por
exemplo.
Mas há outras situações nas quais a proposição de uma ficção, se acontece,
parece menos evidente. Vejamos abaixo um trecho do relato que abre a tese
de doutorado de Ana Achcar:

Logo no corredor que dá acesso aos quartos das crianças em


estado grave, sentada numa cadeirinha infantil que alguém
esqueceu por ali, uma senhora chora, sem desespero,
copiosamente. A palhaça da dupla senta ao seu lado em outra
cadeirinha esquecida e delicadamente lhe estende a mão. Ficam
ali, as duas. Uma mulher que chora e uma palhaça que lhe dá a
mão. […] Quando um palhaço, no contexto hospitalar, se coloca
dessa forma no seu trabalho, ele está trazendo para alguém toda a
beleza e toda a esperança, mas também toda a fragilidade e toda a
inconstância do ser humano (ACHCAR, 2007, p.15).

O trecho relata a experiência da autora como acompanhante de um dia de


trabalho de uma dupla de artistas do programa francês de palhaço em hospital
Le Rire Médecin. Assim como a situação imaginada por Beatriz Sayad, o relato
de Ana Achcar também remete ao que artistas podem enfrentar no contexto
hospitalar. Sua ocorrência, entretanto, pode variar em função do contato
artista-paciente adotado por cada organização.24 O que nos interessa aqui é
perceber como tal situação, mesmo quando rara, ou extrema, pode enriquecer
a reflexão acerca da ficção palhacesca no ambiente da saúde.
Em um primeiro momento, o que se pode notar entre as duas situações
apresentadas por Sayad e Achcar é a diferença de tom e teor na abordagem
artística.
No primeiro caso, a criança aceita a proposição do artista e acolhe o “médico
de mentira”. No segundo caso, o artista está lá, mas o apelo ao “médico de
mentira”, além de desnecessário, poderia ser inconveniente. Na primeira
situação, a criança diz “sim” à proposta de jogo. Na segunda, será que haveria
jogo no acolhimento silencioso de um aperto de mão?
Vejamos.
24
Na experiência que a organização Teatro do Sopro (RJ) realiza junto a idosos, por exemplo, a empatia através do
contato físico entre artistas e pacientes, além de não ser interditada, é um recurso habilmente empregado, desde que
as regras de higiene e segurança o permitam, evidentemente.
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 92
Na tradução brasileira do livro “Além dos Limites”, de Josette Féral, aparece a
seguinte citação de Johan Huizinga acerca do jogo: “uma ação livre, sentida
como ‘fictícia’, e situada fora da vida corrente” (2015, p.93). Na tradução
brasileira da própria obra de Huizinga, Homo Ludens, os termos são outros:
“uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à
vida habitual” (2012, p.16). Seja “fictícia”, seja “não-séria”, não nos parece ter
sido a partir dessas características que a relação estabelecida entre a palhaça
e a senhora que chorava tenha se constituído. Ao menos nessas acepções, não
seria o jogo a base daquele encontro. O gesto ali partilhado não estava fora da
vida corrente, habitual, e tampouco era fictício ou não-sério. Já havíamos visto
que palhaços e palhaças em hospital não atuam exclusivamente apoiados no
riso. Agora, parece-nos também possível suspender, por vezes, o jogo (ao
menos em sua acepção de ação fictícia).
O que seria da ficção, então, nesse segundo caso?

Fictício

A resposta não é evidente. Precisaríamos antes separar os significados de


fictício e ficção a fim de obter mais pistas de entendimento da questão.
Nicolas Bourriaud, ao tratar das artes visuais em seu livro “Radicante”,
propõe uma distinção entre esses dois termos que talvez nos ajude a
identificar tais pistas.

a ficção não é só imaginário, e o ficcional não se reduz ao fictício:


o ready-made duchampiano25, por exemplo, pertence à ordem da
ficção, sem por isso diferir, por sua natureza, da realidade que ele
apresenta… (2011, p.100).

Isso quer dizer que, enquanto o fictício difere da realidade corrente (por
exemplo, um palhaço que é um “médico de mentira”), a ficção não supõe mais
uma separação explícita com a realidade, ou se preferirmos, com o mundo
histórico. A ficção integraria – e partilharia – em seu regime de sentido certos

25
Marcel Duchamp, artista plástico francês (1887 - 1968).
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 93
fatos e atos “cotidianos” do que chamamos de “realidade” (por exemplo, uma
palhaça de mão dadas com uma senhora que chora copiosamente).
Se esse argumento for crível, torna-se possível aceitar o fato de que, dentro do
contexto hospitalar, a figura palhacesca é capaz de provocar e acolher
encontros de diferentes sortes: tanto aqueles fincados na realidade crua e
dolorosa de uma senhora que chora, quanto aqueles que convocam o
imaginário de uma criança a jogar um jogo fictício. E ambos estariam
circunscritos na noção de ficção.
Jacques Rancière é mais um autor que, ao lançar luz sobre uma nova maneira
de se conceber a ficção, alimenta nosso debate.

A soberania da literatura não é […] o reino da ficção. É, ao


contrário, um regime de indistinção tendencial entre a razão das
ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações da
descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e
social (2015, p.55).

Essa indistinção entre os fatos do mundo histórico (fatos ditos “reais”) e os


fatos narrativos, poéticos, imagéticos (fatos ditos “fictícios”) torna possível a
compreensão de uma nova ficcionalidade. Tal compreensão, acreditamos, pode
ser estendida ao domínio da arte da palhaçaria em ambientes da saúde,
sobretudo quando tal arte é exercida com base no encontro e nas relações que
o encontro torna possível.
Em um hospital, fatos da chamada “vida real” de um artista, assim como
eventos da “vida real” dos interlocutores que interagem com tal artista,
podem – mas não precisam! – ser excluídos da intervenção para que o
encontro continue pertencendo ao regime ficcional. Não é de hoje que as
linguagens se ampliam ao incorporar elementos não-fictícios em seus
desenvolvimentos sem que isso as comprometa enquanto linguagem. A
literatura, o cinema, as artes visuais não perdem seus estatutos quando aliam
jornalismo, cartas, anúncios, receitas e outros elementos do mundo “empírico”
a um material ficcional. Dentro do teatro brasileiro contemporâneo, Denise
Stoklos é um bom exemplo de quem maneja os termos para sugerir a
amplitude que buscamos. Embora a atriz não opere seguindo a distinção entre

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 94


fictício e ficção, a frase seguinte não deixa de instigar nosso debate. Stoklos
diz que “não busca a ficção, mas a fricção com o público” (2011, p. 3).
Em nosso caso específico, não é raro vermos artistas revendo e ampliando os
limites desse modo de fazer ao acolher aspectos biográficos, autobiográficos,
reflexivos, críticos e meditativos em suas intervenções palhacescas dentro de
hospitais e ambientes ligados à saúde. Não é pouca a quantidade de artistas
que, já na escolha de seus nomes de palhaço ou palhaça, inspiram-se – ou
simplesmente reproduzem – seus verdadeiros nomes. Para nos limitarmos aos
Doutores da Alegria, poderíamos citar, sem encerrar a lista, Dra. Ferrara, Dra.
Quinan, Dr. Escrich... Também é comum a migração de uma peça de roupa do
guarda roupa do artista para seu figurino de palhaço, embaralhando, ao
menos sob um ponto de vista vestimentário, o que seria da ordem do “fictício”
e o que seria da ordem do “real”.
Além desses aspectos imediatos (nome e figurino), uma série de outros signos
e elementos “empíricos” podem circular no universo habitado pelo palhaço.
A mulher que chorava copiosamente, como no exemplo dado, chorava em sua
vida real. O aperto de mão que lhe ofereceu a palhaça relatada por Ana
Achcar não pode deixar de ter sido real e – muito provavelmente – com um
tônus que, se não é, aparenta ser o tônus do cotidiano.
O que, então, nos permite dizer que era uma artista palhaça que ali estava, e
não uma “pessoa qualquer”, uma vez que o riso, o jogo e até seu tônus
estavam aparentemente ausentes? Uma resposta possível talvez se esconda
atrás desse “aparentemente”. Se é verdade que, na situação em questão, um
observador ou observadora externo teria dificuldade em visualizar tais
atributos (riso, jogo, tônus), para a artista ou o artista que experimenta a
relação, esses atributos, mesmo que “invisíveis”, estão em permanente
prontidão. Há portanto um estado físico e mental, mantido por um tônus
dinâmico, que é capaz de adequar a intervenção artística à situação mais
cotidiana e dolorosa e, se for o caso, no instante seguinte, adequá-la à
situação mais espalhafatosamente risonha. E, há de se convir, uma palhaça
consolando uma mãe não é uma situação trivial. Se, por um lado, os
sentimentos trocados não eram da ordem da fantasia fictícia, por outro lado, a

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 95


configuração dos “personagens” (palhaça e mãe) não fazem parte das
ocorrências mais frequentes de nosso cotidiano.

Melancia?

Vejamos um outro caso que talvez ilumine a reflexão. É o caso de uma palhaça
dos Doutores da Alegria que, grávida, recebeu durante sua intervenção um
delicado abraço no ventre dado pela mãe de um paciente. Ela poderia, entre
infinitas possibilidades, tanto dizer que não se tratava de uma gravidez, mas
de uma melancia entalada (fato fictício), ou que daquele ventre iria nascer
uma menina cujo nome é Maria (fato real). Deixar-se tocar na barriga grávida
– e assumir que se está realmente grávida – não é, para nós, um ato passivo da
palhaça e nem um mero render-se à cotidianidade mais banal da situação. Ao
contrário, tal opção deve ser uma ação consciente de uma artista preparada
que acredita (ou ao menos intui) que tal situação, ao invés de suprimir-lhe o
estado de palhaço, revela-lhe uma palhaça mais ampla e potente, capaz de
viver sutilezas, nuances inéditas, e cujas emoções podem ser transpostas com
apuro e técnica a outras situações futuras.
Como se vê, a potência da intervenção de uma palhaça ou palhaço não estará
determinada pela escolha da reação fictícia (embora essa fosse também uma
possibilidade de reação). No exemplo dado, reagir dizendo que uma barriga
redonda é uma melancia, ou reagir com qualquer outra resposta que fuja do
signo real da gravidez, não garantiria, por si só, o vigor da intervenção.
A possibilidade de reação apoiada no “fato real”, se também não é garantia de
potência, alerta ao menos para o fato de que, de um ponto de vista artístico,
as intervenções palhacescas são fenômenos vivos e, por isso, não-
determinados segundo preceitos artísticos rigidamente fixos. É somente no
aqui e agora do encontro que será possível, à palhaça ou ao palhaço,
aventurar-se por uma das pistas – ou por ambas as pistas de reação.
O caráter relacional de nossa atuação, distinta de uma apresentação
estruturada para picadeiro ou palco, talvez contribua para a especificidade

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 96


dessas características. Em nosso dia a dia, acabamos sendo engendrados
tanto pelos fatos ditos fictícios quanto pelos fatos ditos reais. Ao nos abrir e
renovar enquanto palhaças e palhaços somos levados a entrever que não é
somente na escolha de um material estritamente fictício que reside nossa
linguagem, mas também, ou sobretudo, no tratamento artístico de qualquer
material humano. O fictício seria então uma das possibilidades da nova
ficcionalidade, não a única possibilidade.
A noção de ficção, tal qual estamos supondo, deixa então de ser equivalente ao
“não-real” e passa a acolher e organizar signos de diferentes naturezas e
origens.
Isso não quer dizer que “tudo na vida é ficção”. Apenas que a noção de ficção
acolhe novas acepções.

Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que


a ficção da era estética definiu modelos […] que tornam indefinida
a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção (RANCIÈRE,
2015, p.58).

Performance

Esses modelos que imprecisam fronteiras, modelos que acreditamos ser


constituintes de nosso ofício, parecem ampliar os horizontes estéticos
desenvolvidos por palhaças e palhaços em hospitais. Se por um lado, a noção
de teatralidade, sustentada por uma estrutura narrativa e representacional,
parece abalada em certas situações que enfrentamos em hospitais, por outro
lado, essas mesmas situações podem nos fornecer novos impulsos expressivos,
em uma rede dinâmica que nos aproximaria, em certo aspecto, de conceitos
partilhados pela arte da performance.

Nós também somos cronistas de nosso tempo, mas diferentemente


dos jornalistas ou comentaristas sociais, nossas crônicas tendem a
se afastar da narrativa e a ser multivocais. Se utilizamos o humor,
não estamos buscando a gargalhada como nossos primos, os
comediantes. Pelo contrário, nos interessa provocar a
ambivalência do riso nervoso e melancólico ou os sorrisos

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 97


dolorosos, embora seja sempre bem-vindo um estouro ocasional
de riso pleno (GÓMEZ-PEÑA, 2013, p.443).

O trecho acima foi escrito pelo performer Guillermo Gómez-Peña. Mesmo não
correspondendo ipsis litteris às características que abordamos até agora,
mesmo não tendo sido extraído de um texto sobre palhaços, ele não deixa de
lançar faíscas de pesquisa e aberturas a novas contribuições estéticas à arte
do palhaço e da palhaça que atuam no contexto da saúde. Um ser cronista,
não eternamente narrativo, aberto à ambivalência dos risos, talvez trouxesse
contribuições mescláveis ao que o circo, os brincantes, o cinema, o teatro e as
escolas já forneceram ao nosso ofício. Eis aí um fluxo suscetível de ser
abordado em um estudo futuro.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 98


CONCLUSÃO

De desvios, saltos e lacunas é feito este livro. Como se viu, ele não visa
fornecer nenhum panorama homogêneo do que seria a arte da palhaçaria em
hospital. Ao contrário, ele se contenta com a exploração irregular e esparsa de
pequenos territórios de atuação. Uma investigação que puxa, empurra,
arrasta a reflexão de um território para outro, e vice-versa. Esse vai e vem
descontínuo às vezes é pautado por afinidades conceituais, outras vezes é
guiado por recônditos afetos. Poderíamos chamar tudo isso simplesmente de
pensamentos. Pensamentos extraídos de um aqui e agora pessoal;
considerações avulsas que ora se entrelaçam, ora caminham sós e
desprotegidas.
Foi com esse espírito que convocamos a contribuição de diferentes aspectos
da palhaçaria a fim de problematizar a figura do palhaço e da palhaça quando
decidem atuar no ambiente da saúde. Tentamos não negligenciar certos
aspectos do circo, do teatro, das folias, do cinema, dos arquétipos, do ensino e
da performance durante esta travessia. Talvez agora, sob o pretexto de
finalização, possamos nos arriscar a entrever que contribuição o hospital
esboçaria a essa linguagem.

A contribuição do hospital

Se é verdade que palhaças e palhaços se determinam por uma espécie de


cogito próprio expresso pela frase “eu fracasso, logo existo”, é verdade
também que tal determinação merece modulações. No caso do hospital, tal
expressão, mais do que servir exclusivamente a estabelecer uma definição
rígida e completa de nossa arte, servirá a alimentar um estado palhacesco
movente, que é, no fundo, um estar ali.
Intervir em uma ala pediátrica, psiquiátrica, geriátrica, ou qualquer outra ala
de um serviço hospitalar, consistirá em praticamente não levar nada, a não ser
esse estado cujas condições se redefinem constantemente em relação ao
Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 99
estado dos outros e ao estado do mundo; é ao firmar sua porosidade que
palhaços e palhaças aumentarão sua capacidade de vínculo com o que - e com
quem - os envolve.

Ridículo em relação

Seria bom lembrar que a singularidade da figura palhacesca talvez repouse na


maneira como ela organiza e se deixa organizar pelos atravessamentos do
mundo e, mais precisamente, pelo ridículo do mundo.
Nossa singularidade talvez esteja nas falhas que revelaremos do mundo e
também nas falhas que revelaremos para o mundo.
Ao se apresentar na porta de quarto de hospital, a figura de um palhaço ou
palhaça aparece assim, munida de seu ridículo pessoal e de uma
disponibilidade, de um faro para descobrir um terreno fértil a ser fecundado
ainda não se sabe exatamente como. Isso não quer dizer que não haja pistas,
nem preparo para atravessá-las. Isso apenas lembra que o que vier a
acontecer só será nomeado em função de uma experiência vivida, de um
encontro realizado entre artistas e pacientes, ali, no quarto, e não antes, de
antemão. E em tal encontro, uma noção expandida de ficção, acolhedora de
materiais fictícios e não-fictícios pode vir a ser explorada em função das
improvisações geradoras do encontro. E mesmo que pacientes e
acompanhantes esperem que o palhaço ou a palhaça atue, muito rapidamente
perceberão que, de certo modo, estarão eles, pacientes e acompanhantes,
também convocados a atuar. A arte da palhaçaria em hospital sem dúvida
concorre para o amolecimento das categorias rígidas de ator e espectador, de
sujeito e objeto. Ali, naquele quarto, com o respaldo de sua técnica e de seus
recursos artísticos, de sua propensão ao fracasso, de sua capacidade geradora
de riso, nossa figura não pode ser outra coisa senão um ser em situação,
contagiando e sendo contagiado emocionalmente, direta e ativamente pelos
outros seres que compartilham a mesma situação. Sim, de certa maneira, eles
constroem juntos a arquitetura dessa ficção, desse jogo do qual o palhaço ou a
palhaça talvez tenham dado o pontapé inicial. Nossa arte consiste em manter

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 100


essa ficção, ouvi-la, desviá-la, aprimorá-la, expandi-la junto a quem – e em
função de quem – jogamos.
Assim, a especificidade do ambiente hospitalar ajuda a nos lembrar que esse
ser é movente, que seus princípios, embora identificáveis, são ajustáveis e
reacomodáveis. A experiência tende a mostrar que o estado do palhaço não é
uma meta pura a ser alcançada, mas que tal estado já pode fluir num impulso
subjacente de quem o pratica, inspirado pelas impurezas da própria prática. É
nas tentativas que essa figura – humana que é – poderá revelar seu ridículo,
sua ternura.
O reino da resposta clara, exclusiva, definitiva, acerca da palhaçaria, nesse
caso, se mostra inalcançável. Da mesma maneira, será ilusório um método
formativo que pretenda colher e reproduzir um veredicto detentor da solução
única e final sobre os meios de se ensinar tal arte.
Não seria pouco, portanto, dizer que o palhaço e a palhaça sejam talvez
apenas pessoas que trabalham e que não deixam de encontrar no mundo do
circo, do cinema, do teatro, da performance, da rua, da escola e, mais
recentemente, do hospital, o questionamento que nunca acabarão de
responder. E que talvez seja provavelmente por isso que a obra de palhaças,
palhaços, palhaçxs, assim como seus estados e seus seres, nunca estão dados
e feitos completamente. Pelo contrário, estão ainda – e sempre – em perpétuo
curso, em belíssima, responsável e potente, inconclusão.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 101


AGRADECIMENTOS

a
Vera Abbud
ea
Anderson Machado, David Taiyu, Duíco Vasconcelos, Fernando Paz, Florencia
Ferrari, Giulia Cooper, Heraldo Firmino, José Afonso da Silva, Juliana Gontijo,
Layla Ruiz, Lenita Muñoz, Lourdes Atié, Luciana Viacava, Nando Bolognesi,
Ronaldo Aguiar, Soraya Saide, Thais Ferrara, Val Pires, Virgílio Afonso da
Silva.

Palhaçaria em Hospitais - Nereu Afonso da Silva 102


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