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A Infância Abandonada no Século XVIII:

Análise Documental e Desvelamento de


Significados
Autores: Paula Kleize Costa Sales Antonio Marcos Chaves | Publicado na
Edição de: Março de 2016
Categoria: História da Psicologia

Resumo: Os significados de infância e de proteção à infância podem ser revelados a


partir da análise das formas de cuidado e/ou violência dirigidas às crianças em dado
momento da história de uma sociedade. Neste plano, analisou-se as condutas dirigidas
às crianças e as suas condições de chegada à Santa Casa de Misericórdia da Bahia, no
período de 1757 à 1763. Os pressupostos teóricos e metodológicos assumidos foram os
das perspectivas histórico-culturais em Psicologia. Analisou-se o Livro dos Expostos
1193, do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Este plano identificou,
registrou e descreveu os eventos contidos nesse registro, tais como: a) as condições de
entrada da criança na Santa Casa; b) os primeiros encaminhamentos; c)
encaminhamentos; d) intercorrências e especificidades; c) saída (destino). Objetivou-se
desvendar significados da infância que vigoraram no século XVIII, com o intuito de
ampliar o entendimento desta categoria, entendida como construção social na
contemporaneidade. Das análises feitas, depreendeu-se que as crianças brasileiras no
século XVIII recebiam investimentos da Igreja, da sociedade, de forma geral, e do
Estado com perspectiva de manutenção da ordem social. As ações destinadas aos
expostos visavam o resgate das suas almas, a sua sobrevivência e inserção em famílias
dentro dos preceitos cristãos, bem como a sua prosperidade como cidadãos de utilidade
pública.

Palavras-chave: Desenvolvimento Humano, Infância, Século XVIII, História da


Psicologia

1. Introdução
A história Social da América Latina, mais especificamente dos países que foram
colonizados e tiveram grande influência do catolicismo em sua constituição, é marcada
por desigualdades e outros problemas sociais. Nesse sentido, o abandono e o desamparo
de crianças sempre foram acontecimentos predominantes nessas sociedades, como o
Brasil, em que esse fenômeno foi comum durante todo o período colonial e imperial.
Porém, não se tinha alcance sobre os índices deste problema, em vista da ínfima
quantidade de pesquisas que foram realizadas nesse âmbito. Este cenário começou a
modificar-se apenas com o surgimento da disciplina Demografia Histórica
(MARCÍLIO, 1998; BRUGGER, 2006).

A partir de 1970, os níveis dos enjeitados passaram a ser mais conhecidos. Somando-se
a isso, multiplicou-se, na década de 1980, os estudos acerca da infância. Assim, foi
possível ter uma maior compreensão desse quadro. No Brasil, o índice das crianças
ilegítimas foi elevado em praticamente todas as regiões entre os séculos XVIII e XIX.
Em Salvador, Bahia, essa taxa chegou a 43,1%, já em Ouro Preto foi verificado o índice
de 39,5% (MARCÍLIO, 1998). Para combater as estatísticas de abandono, foram
desenvolvidos planos e políticas de assistência às crianças desvalidas (BORRIONE e
CHAVES, 2004; MARCÍLIO, 1998).

A Roda dos Expostos, implantada pela Misericórdia, foi um sistema de destaque no


acolhimento das crianças enjeitadas (ARANTES, 2010). Amplamente difundido no
país, o serviço durou da época colonial até meados do século XX e correspondeu a uma
alternativa ao abandono, aborto e infanticídio que assolavam na época. No século
XVIII, os elevados índices de expostos passaram a preocupar sobremaneira as elites que
governavam o Brasil Colônia (MARCÍLIO, 1998; GALDELMAN, 2001; GAMA,
2002; BRUGGER, 2006).

Nesse sistema, um dispositivo giratório, de forma cilíndrica, era acoplado às paredes ou


às janelas das Santas Casas. Sempre que uma nova criança era nele depositada, o
expositor tocava a sineta, para que o vigilante ou a Rodeira tomasse conhecimento de
que um enjeitado acabara de chegar, e retirava-se imediatamente do local, mantendo
preservada a sua identidade (GAMA, 2002; TORRES, 2006; VALDEZ, 2004).

Entende-se que a modalidade de auxílio aos bebês desamparados por meio da Roda
estava circunscrita as possibilidades de assistência da época. O contexto cultural e as
atividades desenvolvidas pela sociedade fornecem as bases para que seja construída a
subjetividade humana. O homem, a partir das suas relações com o meio, é envolto pela
cultura, forma de conhecimento desenvolvida historicamente e partilhada por grupos
sociais.

Pino (2005 apud Silva, 2009) defende que, além do nascimento biológico, há o
nascimento cultural. Isto é, com o tempo, o ser humano é acrescido de significados e
torna-se um ser culturalmente maduro, apto a discernir os juízos de valor, como o que é
certo e errado, fixados pela sociedade para determinadas ações e aspectos da vida
cotidiana (CHAVES, 2000). Através das trocas com os seus pares, o humano é
influenciado em suas formas de pensar, sentir e agir (CHAVES, GUIRRA,
BORRIONE, SIMÕES, 2003).

Tendo em vista que a relação do homem com o mundo é mediada, os significados que
atravessavam a sociedade brasileira no século XVIII e XIX, donde se extraem aqueles
relativos à infância, justificavam as condutas dirigidas às crianças. Por outro lado, o
apoio prestado pelas Rodas dos Expostos faz parte da trajetória desenvolvimental das
outras formas de amparo implantadas no país posteriormente. Na perspectiva histórico-
cultural, o desenvolvimento resulta na apropriação de formas mais elaboradas de
atividade (SILVA, 2009). Em seu exercício elaborativo, o homem sustenta, remodela ou
exclui os significados dos eventos encontrados na cultura e questiona constantemente
regras e normas (CHAVES, GUIRRA, BORRIONE, SIMÕES, 2003; CHAVES, 2000).

Levando-se em consideração esses aspectos, somos levados a crer que a retomada


histórica desse importante sistema de assistência dá luz ao entendimento das
representações que tinha sobre a infância no passado, aumentando a compreensão dessa
construção no presente.

Acrescenta-se que as instituições, detentoras de normas e regras, constituem-se como


subestruturas da arquitetura social, ao passo que cooperam para a subjetividade dos
indivíduos. Sendo composta por inúmeros significados, elas expressam convicções
acerca do comportamento humano (BORRIONE e CHAVES, 2004).

Assim, tendo em vista a sua constante mudança pela ação do homem, entender o seu
funcionamento histórico é uma forma de nos aproximarmos das diferentes mentalidades
que atuaram na sociedade (CHAVES, GUIRRA, BORRIONE, SIMÕES, 2003). A
investigação da história dos produtos sociais, como as instituições, esclarece as
condições de desenvolvimento da cultura e abrange traços de uma realidade
compartilhada socialmente que ditam maneiras de pensar, sentir e de comportar
(CHAVES, 2000), Isso pode ser feito consultando os documentos e registros
disponíveis, que expressam significados culturais e valores sociais admitidos
(CHAVES, GUIRRA, BORRIONE, SIMÕES, 2003; BORRIONE e CHAVES, 2004;
SILVA et al. 2009).

A importância da pesquisa documental, nesse contexto, reside em esta concretizar-se em


uma ferramenta de aumento da compreensão da atualidade. Através dela, é possível
delinear a processualidade de acepções e eventos (BORRIONE e CHAVES, 2004).
Considera-se, assim, que para compreendermos os significados da infância vigentes é
necessário traçar a sua construção sócio-histórica, por meio da interpretação das práticas
voltadas às crianças (CHAVES, GUIRRA, BORRIONE, SIMÕES, 2003; CHAVES,
2000). Esse processo pode ser feito mediante a comparação passado versus presente e o
reconhecimento de diferentes códigos e ações (BORRIONE e CHAVES, 2004); SÁ-
SILVA, Almeida, GUINDANI, 2009; SILVA et al. 2009).

Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho foi identificar significados da criança em


situação de abandono no século XVIII, por meio da análise do Livro de Registros dos
Expostos 1193, 1757 - 1763, da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, como forma de
auxiliar na compreensão acerca da infância na sociedade brasileira. A proposta inicial
foi fazer leituras relativas aos anos compreendidos entre 1721 – 1740. Entretanto, em
vista da indisponibilidade de dados sobre esses anos, o período de análise alterou-se,
sem comprometer a realização da contribuição a que este plano foi proposto.

2. Materiais e Métodos
Este trabalho objetivou trazer à tona significados da infância no século XVIII através da
análise do Livro dos Expostos 1193 do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
relativo aos anos compreendidos entre 1757 e 1763, com perspectiva de ampliar o
conhecimento acerca desse tema na sociedade brasileira.

Inicialmente, foi feita a coleta de dados. Realizamos uma visita ao arquivo da Santa
Casa de Misericórdia da Bahia, situada na Avenida Joana Angélica do bairro de Nazaré
em Salvador-BA. Neste ambiente, obtivemos Livros dos Registros dos Expostos e
outros documentos digitalizados. Mais tarde, efetuamos a análise sistemática de 61
registros contidos no livro 1193, por meio da leitura detalhada das imagens. Anotou-se,
para cada registro, as seguintes informações: a) O código da imagem; b) A data de
entrada do enjeitado; c) O nome; d) Se batizado ou sem batizar; d) O sexo; e) A cor da
pele; f) Os sinais; g) O destino; h) O nome, estado civil e a residência das amas; i) A
data de falecimento do exposto; j) A data de saída; k) Observações; As informações
decorrentes da análise foram organizadas em planilhas.
Posteriormente, os dados contidos nas planilhas foram codificados para o seu
consecutivo processamento no programa Statiscal Package for the Social Sciences –
SPSS. Assim, a análise descritiva da frequência para cada item avaliativo que integra
este estudo, isto é, para as informações relacionadas aos 467 expostos, foi feita e os
gráficos foram gerados. Por fim, os resultados foram discutidos à luz da literatura
vigente acerca do tema, desvelando significados pertinentes à infância no Brasil.

3. Resultados
Os dados coletados no Livro dos Expostos 1193, 1757 – 1763, da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, foram analisados, sistematizados e tratados no Statiscal Package
for the Social Sciences – SPSS. Os resultados obtidos estão listados abaixo:

Tabela 1: Ano de Ingresso na Roda dos Expostos

ANOING
Porcentagem Porcentagem
Ano de ingresso Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido 1757 23 4,9 4,9 4,9
1758 80 17,1 17,1 22,1
1759 80 17,1 17,1 39,2
1760 88 18,8 18,8 58,0
1761 88 18,8 18,8 76,9
1762 65 13,9 13,9 90,8
1763 43 9,2 9,2 100,0
Total 467 100,0 100,0

Os dados obtidos através da análise do livro 1193 do arquivo da Santa Casa de


Misericórdia da Bahia expressam certa similaridade na frequência de admissão dos
expostos na referida Instituição entre os anos 58 e 61, conforme a Tabela 1. 80 crianças
foram acolhidas nos anos 1757 e 1758, e a Roda recebeu 176 enjeitados entre 1760 e
1761, 88 em cada ano. Ocorreu um declínio no registro da exposição pela Santa Casa no
ano seguinte, 1762, foram registrados 65 enjeitados. Em 1763, foram catalogados 43
expostos.

Tabela 2: Frequência e percentual dos expostos com nome

NOME
Porcentagem Porcentagem
Nome das crianças Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido IDENTIFICADO 445 95,3 95,3 95,3
NÃO
7 1,5 1,5 96,8
IDENTIFICADO
ILEGÍVEL 15 3,2 3,2 100,0
Total 467 100,0 100,0

A análise da Tabela 2 indica que o mais comum no Livro de Matrícula analisado, 1193,
era as crianças receberem identificação. O nome de 445, 95,3 %, quase a totalidade dos
dados obtidos, foi anotado. Apenas 1,5%, sete crianças, não foram identificadas. Essa
informação, entretanto, não pôde ser lida nas páginas correspondentes ao registro de
quinze crianças, 3,2% do total, em vista do seu estado.

Tabela 3: Proporção dos Expostos Batizados

BAT
Porcentagem Porcentagem
Crianças batizadas Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido SIM 455 97,4 97,4 97,4
NÃO 11 2,4 2,4 99,8
ILEGÍVEL 1 ,2 ,2 100,0
Total 467 100,0 100,0

De acordo com a Tabela 3, os enjeitados frequentemente recebiam o batismo. 97,4 % do


total, 455 crianças foram batizadas, onze crianças, apenas, de 467, igual a dois, 4%, não
foram batizadas. Não foi possível consultar essa informação a respeito de uma criança,
devido à baixa legibilidade da página em questão.

Tabela 4: Proporção do Expostos que Tiveram Sinais Registrados

SINAIS
Porcentagem Porcentagem
Sinais Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido SIM 466 99,8 99,8 99,8
NÃO 1 ,2 ,2 100,0
Total 467 100,0 100,0

Em relação ao quesito Sinais, expresso pela Tabela 4, a maioria quase absoluta das
crianças, 99,8%, veio acompanhada de alguma informação ou objeto que pudesse
diferenciá-la e dizer algo a seu respeito. Nesse sentido, somente uma criança que consta
nos dados impressos no livro 1193 chegou à Roda dos Expostos da Misericórdia
desprovida de algum artigo ou não foi devidamente descrita, em suas condições de
chegada, pelo escrivão que as registrava no Livro dos Expostos.

Tabela 5: Frequência e Percentual do Sexo dos Expostos

SEXO
Porcentagem Porcentagem
Sexo das crianças Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido FEMININO 221 47,3 47,3 47,3
MASCULINO 244 52,2 52,2 99,6
ILEGÍVEL 2 ,4 ,4 100,0
Total 467 100,0 100,0

Na Tabela 5, verifica-se certo equilíbrio relativo à variável sexo entre as crianças


investigadas no livro 1193 do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. 47,3 %,
221 crianças, eram do sexo feminino. 52,2%, por outro lado, 244 crianças, foram do
sexo masculino. Não foi possível identificar o sexo de duas crianças que integram os
dados analisados, contudo.
Tabela 6: Frequência e Percentual da Cor da Pele dos Expostos

COR
Porcentagem Porcentagem
Cor da pele das crianças Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido BRANCA 290 62,1 62,1 62,1
MULATA 10 2,1 2,1 64,2
PARDA 115 24,6 24,6 88,9
CABRA 13 2,8 2,8 91,6
CRIOULA 7 1,5 1,5 93,1
NÃO
32 6,9 6,9 100,0
INFORMADA
Total 467 100,0 100,0

A Tabela 6 indica que mais da metade das crianças contidas na fonte de análise deste
estudo, Livro 1993, tinham a cor da pele branca. As crianças de cor branca
correspondem a 62,1% do total, 290. Em segundo lugar, 24,6%, 115 crianças, possuíam
a cor da pele parda. Treze enjeitados (2,8%) foram identificados como cabras, sete
(1,5%) como crioulas e dez (2,1%) como mulatas. A cor de 32 crianças, 6,9%, porém,
não constava nesse documento.

Tabela 7: Proporção do Destino dos Expostos

DEST
Porcentagem Porcentagem
Destino das crianças Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido AMA DE LEITE 204 43,7 43,7 43,7
HOMEM CASADO 25 5,4 5,4 49,0
HOMEM SOLTEIRO 10 2,1 2,1 51,2
NÃO
11 2,4 2,4 53,5
IDENTIFICADO
RESGATADO PELA
14 3,0 3,0 56,5
FAMÍLIA
ILEGÍVEL 19 4,1 4,1 60,6
NÃO DISPENSADO 184 39,4 39,4 100,0
Total 467 100,0 100,0

A Tabela 7 aponta para a forte tendência das crianças, acolhidas pela Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, serem encaminhadas às Amas-de-leite. 204 crianças, 43,7%,
foram levadas aos cuidados das amas. Nesse total de 467, 25, 5,4%, foram amparadas
por homens casados. Outras dez crianças, 2,1% foram acolhidas por homens solteiros.
Por outro lado, também é elevado o índice de expostos que não eram dispensados aos
criadores, falecendo pouco tempo depois após entrarem na Santa Casa. No Livro dos
Expostos 1193, esse número corresponde à 39,4%, 184 crianças. 3% dos enjeitados,
quatorze, foram resgatadas por algum familiar. Em vista da leitura dos documentos
desgastados fisicamente, não foi possível saber o destino de dezenove crianças, o que
representa 4,1%. No que se refere as outras onze crianças, 2,4% esta informação estava
ausente no Livro dos Expostos 1193.

Tabela 8: Proporção do Estado Civil dos Receptores


RECEPEST

Estado civil dos Porcentagem Porcentagem


receptores Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido CASADA 72 15,4 28,0 28,0
SOLTEIRA 90 19,3 35,0 63,0
VIÚVA 44 9,4 17,1 80,2
NÃO
24 5,1 9,3 89,5
INFORMADO
ILEGÍVEL 27 5,8 10,5 100,0
Total 257 55,0 100,0
Ausente Sistema 210 45,0
Total 467 100,0

Conforme identificado no livro dos Expostos 1193, 239 crianças foram dispensadas ao
cuidado das pessoas que, voluntariamente, se dispuseram a recebê-las. Desse total, de
acordo com a Tabela 8, 90, 19,3% estavam solteiros e 72, 15,4%, encontravam-se
casadas. 44 das mulheres e homens que receberam os desvalidos, 9,4%, estavam
viúvos. No livro, o estado de 24 pessoas, 5,1%, não foi descrito. No tocante aos 5,8%
dos cuidadores, correspondente a 27, o recorte da página pertinente ao registro desse
dado estava sobremaneira ilegível, não sendo possível obter tal informação.

Tabela 9: Frequência e Percentual da Cor da Pele dos Receptores

RECEPCOR
Cor da pele dos Porcentagem Porcentagem
receptores Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido BRANCA 74 15,8 28,8 28,8
PRETA 8 1,7 3,1 31,9
PARDA 63 13,5 24,5 56,4
CABRA 2 ,4 ,8 57,2
CRIOULA 14 3,0 5,4 62,6
NÃO
65 13,9 25,3 87,9
INFORMADA
ILEGÍVEL 31 6,6 12,1 100,0
Total 257 55,0 100,0
Ausente Sistema 210 45,0
Total 467 100,0

A cor das pessoas as quais as crianças foram enjeitadas, expressa pela Tabela 9, variou.
74, 15,8%, eram brancas, 13,5%, 63, pardas, 1,7%, oito, pretas e 0,4%, duas, de cor
cabra. 14 criadores, 3%, possuíam a cor crioula. A cor de 65 pessoas, 13,9%, não foi
informada no livro analisado. A cor de 31 cuidadores, por outro lado, estava ilegível.
Não se tratando de legibilidade, os 45%, 210, correspondem às páginas em que tal
informação (cor do receptor) estava ausente, porque os expostos não viveram a tempo
de serem dispensados ao cuidado de outrem.
Tabela 10: Frequência e Percentual do Tempo em que o Exposto Faleceu após estar sob
os cuidados da Santa Casa de Misericórdia

FALECIMENTO
Tempo até o falecimento das
crianças após entrar na Porcentagem Porcentagem
Santa Casa Frequência Porcentagem válida acumulativa
Válido ATÉ 1 MÊS APÓS 151 32,3 32,3 32,3
ATÉ 3 MESES APÓS 149 31,9 31,9 64,2
ATÉ 6 MESES APÓS 18 3,9 3,9 68,1
ATÉ 1 ANO APÓS 6 1,3 1,3 69,4
ATÉ 2 ANOS APÓS 5 1,1 1,1 70,4
ATÉ 3 ANOS APÓS
46 9,9 9,9 80,3
OU MAIS
NÃO INFORMADO 71 15,2 15,2 95,5
ILEGÍVEL 21 4,5 4,5 100,0
Total 467 100,0 100,0

A Tabela 10, por fim, denota o tempo em que 467 crianças do Livro 1193, pertencente à
documentação da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, permaneceram vivas. Observou-
se que 151 delas, 32,3%, faleceram com até um mês após a sua chegada à esta
instituição. Outras 31,9%, 149 crianças, faleceram com até três meses após serem
acolhidas pela irmandade. 3,9%, o equivalente a dezoito crianças faleceram após seis
meses e seis crianças, 1,3%, faleceram, aproximadamente, após um ano de ter chegado à
Santa Casa. Cinso crianças, 1,1%, permaneceram vivas durante cerca de dois anos. 46
crianças, somente, deste total, 9,9%, viveram por mais de três anos. A informação sobre
o tempo de vida não foi registrada acerca de 71 crianças, 15,2%. O registro de 21
crianças, 4,5%, estava ilegível.

4. Discussão
Identificam-se três fases distintas na evolução da assistência à infância abandonada
brasileira. A primeira fase tem caráter caritativo e estende-se até meados do século XIX.
A segunda, de caráter filantrópico, durou até 1960. A terceira fase é caracterizada pelo
Estado do Bem-Estar Social, iniciada no final do século XIX (MARCÍLIO, 1998).

Na fase caritativa, que vai do período colonial até meados do século XIX, a assistência
as crianças desvalidas e ilegítimas era paternalista e movida pelo sentimento de
fraternidade humana. Essa forma de assistência tinha inspiração religiosa, sem
perspectiva de mudanças sociais, significando um ato de caridade e beneficência. As
famílias ou indivíduos recolhiam os recém-nascidos, então chamados “Filhos de
Criação”, deixados próximos às casas, igrejas, outros estabelecimentos e na Roda dos
Expostos, principalmente, a partir do século XVIII. A recompensa dos benfeitores era o
reconhecimento da sociedade e a salvação das suas almas (BRUGGER, 2006;
MARCÍLIO, 1998).

No século XIX, as Misericórdias, que sustentavam a Roda dos Expostos, principal local
onde as crianças eram apanhadas para a criação, começaram a enfrentar problemas
administrativos e financeiros, com prédios improvisados e insalubres e
indisponibilidade de verba, móveis e outros recursos necessários. Nessa época, com o
avanço do liberalismo e a secularização da sociedade brasileira, a tendência a agir
caritativamente foi diminuindo. Assim, surgiu a fase filantrópica na assistência às
crianças pobres. As Misericórdias passaram a depender financeiramente dos governos
que, por sua vez, passou a controlá-las e a impor exigências (ARANTES, 2010;
MARCÍLIO, 1998).

A última fase da assistência à infância abandonada brasileira surgiu no final do século


XX. Os militares no poder introduziram o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State),
conhecido também como Estado Interventor, em 1964. O Estado passou a assumir a
responsabilidade de cuidar e proteger as crianças desvalidas. Contudo, o salto na
assistência às crianças em situação de desamparo aconteceu, efetivamente, com a
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente e com a criação do Ministério da
Criança em 1990 (MARCÍLIO, 1998). As crianças começaram a ser consideradas
sujeitos de direitos por lei, art.227 da Constituição Federal. O ECA endossou uma
reforma no campo das políticas de assistência para a população infanto-juvenil, as quais
passaram a ser formuladas para acolher e auxiliar todas as crianças que precisassem da
proteção do Estado (MARCÍLIO, 1998).

A assistência infantil no Brasil é passível de uma leitura histórica, não linear, que
possibilite a apreensão dos inúmeros significados que permearam a sua construção.
Sendo assim, diante dos três períodos assistenciais do Brasil apresentados, interessa-nos
a fase caritativa, na qual vigorou a Roda dos Expostos. É nesta fase que se situa o objeto
deste estudo. O objetivo deste trabalho foi revelar, através da análise das práticas de
proteção dispensadas às crianças em situação de abandono, significados da infância no
século XVIII, como forma de contribuir para a compreensão da infância na sociedade
brasileira. Foi utilizado, como principal fonte de estudo, o Livro dos Expostos 1193,
1757-1763, contido no arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

A assistência aos recém-nascidos, de caráter caritativo, iniciou-se na Idade Média, onde


já se constatava o abandono em massa e o aborto de crianças como persistentes entraves
sociais. Junto com outros necessitados, os hospitais passaram a receber e assistir
crianças desamparadas (VALDEZ, 2004; ARANTES, 2010). Ao lado do Vaticano, um
hospital foi destinado para acolher os expostos por determinação do Papa Inocêncio III
(1198-1216) que comoveu-se após saber que pescadores haviam retirado do rio Tibre
um grande número de bebês, vítimas de infanticídio (MARCÍLIO apud VALDEZ,
2004). A prática de abandonar os filhos no Brasil, contudo, diferentemente da realidade
europeia, não era comum entre os indígenas e escravos que residiam aqui inicialmente.
Esse costume chegou ao país com o processo de colonização (de notória influência da
igreja católica) e intromissão de normas e valores (VALDEZ, 2004).

Assim, acerca das relações maritais, diversas regras morais e leis civis foram criadas
pelos teólogos e legisladores, propagando a exigência do sagrado casamento, realizado
pela igreja. O Concilio de Trento propalou mais veemente a necessidade de casar-se. As
Constituições do Arcebispado, na Bahia, por outro lado, também reafirmaram a
legitimidade do casamento, compreendido como um dos sacramentos da Santa Madre.
Essa norma, instrumento de normatização dos comportamentos, foi incluída na
catequese e em pregações e deveria ser interiorizada pelas pessoas. O casamento era
uma forma de disciplinar e controlar os desejos carnais. Embora não fosse o ideal de
santidade, casar-se era uma alternativa para aqueles que não conseguiam conter os seus
instintos e ceder aos prazeres sexuais que, mesmo em relações aprovadas pela igreja,
seriam controlados por meio do confessionário. O sexo deveria ter por finalidade a
reprodução, que o justificaria. Além disso, o casamento representava a conservação da
estrutura social definida pelos portugueses, o meio pelo qual os preceitos religiosos
eram introduzidos nos lares e entre os fiéis. A diferença, portanto, precisava ser
combatida para o projeto colonizador obter sucesso (PIMENTEL, 2005).

Nesse contexto, as relações sexuais que não se encontravam dentro dos parâmetros
morais instituídos pela igreja eram transformadas em crime e reprimidas. O Santo
Oficio e Tribunais Eclesiásticos solicitaram muitos processos por conta de homens e
mulheres que não prosseguiam em consonância com o que orientava a fé cristã acerca
da sexualidade. Contudo, o concubinato e outras relações classificadas como ilícitas
existiam em grande número no Brasil, como detectado em Minas Gerais no século
XVIII, principalmente entre a população pobre e escrava. O custo do casamento teria
sido um dos estorvos para a realização das normas acerca das relações conjugais,
excluindo todos aqueles que não podiam pagar pela cerimônia (PIMENTEL, 2005).

A pressão exercida pelos religiosos para o enquadramento das condutas humanas, dessa
forma, teria sido um dos fatores que levou à exposição de crianças. Gerados a partir de
concubinato e adultério, práticas reprovadas socialmente, muitos bebês eram
abandonados por questões morais. Entre mulheres brancas, o enjeitamento era ainda
mais usual (BRUGGER, 2006; ARANTES, 2010).

As mulheres brancas, da elite, e solteiras teriam sofrido mais com o controle moral,
temendo, inclusive, serem mortas. Essa tendência era menor entre os casais pobres,
cujos filhos significavam mão-de-obra a mais (BRUGGER, 2006; TORRES, 2006). O
abandono de crianças foi um fenômeno eminentemente urbano, lócus da elite branca,
atrelado ao seu rápido e desorganizado crescimento. No meio rural, caracterizado pela
economia de subsistência, as famílias alternavam-se no cuidado dos pequenos que, mais
tarde, colaborariam com o trabalho agrícola. As crianças não poderiam ser aproveitadas
de igual maneira nos centros urbanos, pois, nestes locais, a produção era artesanal e
exigia especialização profissional (TORRES, 2006; MARCÍLIO, 1998).

Outro fator para o hábito da exposição, assumindo que ele não tinha causas únicas, é a
pobreza, a qual concorre a ser a mais influente (BRUGGER, 2006). Esse fator, quando
associado com a morte de parentes próximos, frequentemente ocasionava o
enjeitamento de crianças, pois pareciam não haver outras alternativas, já que não
existiam orfanatos no Brasil Colônia (BRUGGER, 2006; TORRES, 2006). Mais uma
situação que gerava a exposição era quando a criança encontrava-se doente e tinha-se
pouco ou nenhum recurso para oferecer-lhe cuidados (VALVEZ, 2004). Muitas
escravas, por sua vez, depositavam os seus filhos na roda com a expectativa de que
crescessem como cidadãos livres (TORRES, 2006); (ARANTES, 2010). O abandono,
dessa forma, não queria dizer que os pais eram inescrupulosos, irresponsáveis ou que
não amavam os seus filhos (VENÂNCIO apud VALDEZ, 2004).

Em virtude dos fatos mencionados, no século XVI, as Ordenações Manuelinas


estabeleceram uma ordem para que os Conselhos Municipais se encarregassem de
proteger e cuidar dos órfãos e desvalidos com seus próprios rendimentos. No século
XVII, as Ordenações Filipinas reemitiram esta ordem. Para isso, deveriam ser cobrados
impostos, ou seja, “lançar fintas”, e fundar loterias para arrecadar dinheiro. As Câmaras
Municipais, então, se tornaram as principais responsáveis pelo amparo das crianças
sem-família, pela legislação portuguesa (GALDELMAN, 2001). Porém, mesmo assim,
tal assistência tinha caráter caritativo, ao passo que dependia de pessoas que aceitassem
criar as crianças em situação de abandono (MARCÍLIO, 1998). Além disso, a Câmara
demonstrou desinteresse nesse encargo, sendo negligente, omitindo-se e oferecendo
resistências diversas. Damázio (1865, apud Marcílio,1998, p. 140) afirma que, “(...) em
136 anos a Câmara só manteve perto de 50 enjeitados.”

Nesse período (século XVII e XVIII), ocorriam muitos abortos e infanticídios no país.
Os expostos eram um grave problema na sociedade. Além disso, deixados, muitas
vezes, sozinhos nas calçadas ou em terrenos baldios, eles eram facilmente devorados
por animais (BORRIONE e CHAVES, 2004; MARCÍLIO, 1998); TORRES, 2006).
Nesse contexto, as Câmeras Municipais, por meio de ofícios autorizados pelo rei, criou
convênios com as Santas Casas de Misericórdia. A partir daí, no século XVIII, passaram
a funcionar as Rodas dos Expostos (BORRIONE e CHAVES, 2004; MARCÍLIO,
1998). Entre outras finalidades, a implantação da Roda, visava inibir os crimes
cometidos em prol da preservação da moralidade, muito frequentes (TORRES, 2006).
Com esse novo sistema, o quadro de assistência à criança pobre alterou-se.

A Irmandade da Misericórdia foi criada em Portugal, em 1498, por dona Leonor, sob
influência do freire Miguel de Contreiras. Ela respondia às 14 obras de caridade, sete
espirituais: ensinar os ignorantes, dar bom conselho, castigar com caridade, consolar os
tristes, perdoar as ofensas, suportar as deficiências do próximo, pedir a Deus pelos vivos
e pelos mortos; e sete corporais: curar os enfermos, remir os cativos e visitar os presos,
vestir os nus, dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes
e os pobres e sepultar os mortos (GALDELMAN, 2001).

Difundida em vários países, a Misericórdia tornou-se uma marca da colonização


portuguesa. Antes de 1750, já existiam 16 delas no Brasil (GALDELMAN, 2001;
ARANTES, 2010). De inspiração religiosa, as ações desenvolvidas pela irmandade
buscavam, à princípio, a salvação das almas, obtendo grande repercussão em relação
aos enjeitados (TORRES, 2006). A adoção, dessa forma, seria uma forma de manifestar
a caridade cristã (VALDEZ, 2004). Foram recolhidas na Roda dos Expostos da cidade
do Rio de Janeiro 47.225 enjeitados, entre 1738-1888, segundo relatórios do império
(ARANTES, 2010).

A Roda dos Expostos deveria prover assistência aos bebês abandonados até sete anos de
idade. Nos três primeiros anos, “período de criação”, a criança ficava sob o cuidado da
ama ou alguém que estivesse disposto a criá-la (BORRIONE e CHAVES, 2004;
MARCÍLIO, 1998). 204 das 467 crianças investigadas no Livro dos Expostos, entre os
anos 1757 e 1763, adotado para este trabalho, foram encaminhadas à ama-de-leite, e
outras 35 a homens que disponibilizaram-se a dar-lhe abrigo e proteção, totalizando
239, portanto mais da metade dos dados analisados. As crianças dos três aos sete anos
de idade, por outro lado, encontravam-se no “período de educação” e retornariam à
Casa dos Expostos para serem integradas às famílias. Quando isso não acontecia, elas
permaneciam sob tutela da Misericórdia na Casa dos Expostos (MARCÍLIO, 1998);
(TORRES, 2006; ARANTES, 2010).

Além do cuidado com a salvação da alma dos enjeitados, tinha-se a preocupação em


como os expostos poderiam inserir-se na sociedade, tornando-se sereis úteis à população
e ao Estado. Os enjeitados, após atingirem 7 anos de idade, ficavam sob alçada dos
juízes dos Órfãos, encarregados de encontrar famílias que os agregassem, alimentassem,
vestissem e transmitissem os conhecimentos acerca de algum oficio. Os rapazes tinham
a opção de serem admitidos na Companhia de Artífices do Arsenal de Guerra, já as
meninas eram acolhidas pelo Recolhimento de Órfãs, mantida pela Casa dos Expostos,
onde acumulariam um dote e casariam logo quanto fosse possível (GALDELMAN,
2001; ARANTES, 2010). Como observado, as ações empreendidas tinham como meta a
manutenção da ordem social pré-estabelecida (GALDELMAN, 2001).

Depois da instalação das Rodas, nos seus locais de funcionamento, a maior parte das
crianças enjeitadas foi nela depositada (BRUGGER, 2006). A primeira Roda de
Expostos do Brasil foi instalada em Salvador, Bahia, em 1726, a partir da doação de
Joao Mattos de Aguiar, rico comerciante da Bahia (TORRES, 2006). Na segunda
metade do século XIX, quase 100% dos expostos dessa região foram postos nela
(MARCÍLIO, 1998). Em seguida, a Roda foi implantada no Rio de Janeiro, 1738, e
depois, ainda no período colonial, na cidade de Recife, 1789 (VALDEZ, 2004).

Porém, mesmo com a criação da Roda dos Expostos, a taxa de mortalidade permaneceu
elevada. Infelizmente, um terço dos enjeitados não atingia a idade de sete anos
(MARCÍLIO, 1998). Em 1831, no Rio de Janeiro, das 325 crianças que foram levadas à
Santa Casa, 303 faleceram, ou seja, cerca de 93,2% (VALDEZ, 2004). Das 467 crianças
que compõem este trabalho, relativas aos anos de 1757 a 1763, 9,9% apenas, 46,
sobreviveram por mais de três anos após entrarem na Roda.

Dessa amostra, 329 crianças, 70,5%, faleceram com até dois anos de chegada à Santa
Casa. Apesar da data de falecimento não ter sido fornecida ou estar ilegível para 19,7%
das crianças registradas, esses dados demonstram que a mortalidade dos expostos era
um fato crítico (BORRIONE e CHAVES, 2004). Cerca de 80% dos recém-nascidos
faleciam nos abrigos (GAMA, 2002).

Kidder (1985, apud Marcília, 1998, p. 145) problematiza essa realidade ao afirmar que
“(...) A despeito de todos os esforços despendidos e das despesas feitas com a
contratação de todas as amas que puderam encontrar, só foi possível salvar um terço dos
enjeitados”. Rizzini apud Gama (2002) disse que a mortalidade infantil era causada,
entre outros motivos, pela falta de higiene, dieta inadequada, sífilis, herança alcoólica e
tuberculose.

Em Rio Grande, onde a taxa de mortalidade também era bastante elevada, a assistência
aos expostos foi assumida somente a partir de 1843. Segundo o provedor dessa Santa
Casa, as crianças não sobreviviam porque, antes de serem depositadas nas Rodas, eram
maltratadas por familiares, debilitando-se, e, além disso, não recebiam o afeto
necessário dos novos cuidadores. Algumas pessoas que amparavam os enjeitados
ofereciam amamentação artificial, pouco nutritiva e, outras, tinham a prática perigosa de
alimentar as crianças com a mistura de leite com aguardente (TORRES, 2006).

O leite materno, naquele período, anterior a invenção do leite em pó, era o único
alimento que poderia sustentar os recém-nascidos. Os relatórios da Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro expressavam que os índices de mortalidade, por outro
lado, estavam relacionados às condições de saúde, já pouco favoráveis, em que as
crianças chegavam àquela instituição (ARANTES, 2010). Aumentando o quadro de
risco, existiam, ainda, amas que padeciam de inúmeras doenças, como sífilis, escrafulas
e boubas, contaminando os pequenos. Outro fator de mortalidade poderia ser encontrado
no baixo valor do pagamento aos criadores, preditor de condições inadequadas de saúde
e nutrição (TORRES, 2006; VALDEZ, 2004).

A câmara Municipal fornecia uma ajuda pecuniária a todas as famílias e indivíduos que
criassem as crianças, abandonadas nos estabelecimentos públicos e privados. Os
interessados em acolher os expostos, antes de tudo, deveriam levar a criança à Igreja
para que esta fosse batizada. Ressalta-se, aqui, que o batismo era um dos princípios a
serem cumpridos, tendo em vista a fé cristã (BORRIONE e CHAVES, 2004);
(MARCÍLIO, 1998).

Os bebês precisariam receber este sacramento para que as suas almas fossem salvas.
Isso explica o índice de batismos encontrado em nosso estudo. Das 467 crianças
analisadas, 455 foram batizadas, o que representa 97,4 % do total. O certificado,
redigido pelo pároco depois do batismo, era levado ao presidente da Câmara, o nome da
criança era escrito no Livro de Matrícula dos Expostos e, o auxílio, finalmente entregue
ao criador. Contudo, as crianças que não encontravam famílias eram encaminhadas às
criadeiras, amas-de-leite, ou homens, pela Câmara. Esse processo de recebimento e
encaminhamento dos enjeitados foi importado da Europa, da Misericórdia de Lisboa
(MARCÍLIO, 1998).

Lima e Venâncio apud Valdez (2004) relatam que a imposição do batismo tornou-se
mais forte na Europa com o Concilio de Trento, no século XVI, momento em que a
Contrarreforma incumbiu o clero de difundir este sacramento. As ordenações desse
Concilio foram reproduzidas no Brasil com as Constituições do Arcebispado (1765),
forma do país partilhar da mesma religiosidade da metrópole. Considerado um dos 7
sacramentos da Santa Madre, ser batizado era um direito que permitia a salvação e devia
ser estendido a todas as crianças, independente da sua cor, região, etnia e relações das
quais foram originadas. Acreditava-se que “o inocente não deveria pagar pelos
pecadores” (VALDEZ, 2004).

Portanto, o batismo e a sucessiva salvação dos recém-nascidos teria sido uma grande
motivação para a assistência aos expostos (ARANTES, 2010). Os cristãos e a elite
incomodavam-se muito com o destino da crianças, pois os inocentes deixados nas
calçadas morriam sem serem batizados. As crianças que faleciam sem receber o
batismo, conforme a crença católica lusitana, não teriam suas almas salvas ou ficariam
no limbo (purgatório para crianças). O batismo, no mínimo, garantiria a passagem para
a morte (TORRES, 2006).

A seleção das amas para atuarem na criação dos expostos não obedecia a algum critério
ou exigência formal. Qualquer pessoa que se dispusesse a criar os enjeitados, desde que
tivesse boa saúde, poderia colaborar para a obra da Misericórdia (MARCÍLIO, 1998).
Muitas vezes, as amas que tinham mais tempo nesse ofício convidavam outras mulheres
conhecidas. Nesse sentido, observou-se variações relativas ao estado e a cor das amas e
homens que ampararam os enjeitados. Dos receptores registradas em nossos dados, 90,
19,3% eram solteiros, 15,4% casados, 72, e 9,4%, 44, viúvos. Em relação a cor da pele,
embora não tivéssemos conseguido saber a cor de 20,55% dos receptores, também
notou-se diversificações. Os dados apontam que 15,8%, eram de cor branca, 13,5%,
parda, 1,7% preta, 3%, crioula e 0,4%, 2, tinham a cor cabra.
As amas-de-leite vinculadas à Misericórdia encontravam-se dirigidas por uma regente.
Quando recebia uma nova criança, essa regente examinava e registrava as condições e o
momento em que ela foi exposta, o seu sexo, cor, sinais, os bilhetes e as células que a
acompanhavam (MARCÍLIO, 1998); (ARANTES, 2010). Anotar todos esses aspectos
era de relevância para a Misericórdia. No Livro que é fonte de estudo para este trabalho,
1193, o sexo de quase todas as crianças foi identificado, 99,5%. O registro pertinente ao
sexo de 2 duas crianças, 0,4% restante, estava ilegível.

Do mesmo modo, registrou-se os sinais de 99,8% das crianças. Somente 1 enjeitado,


dos 467, não tinha distintivos. Os sinais, bem como os escritos que acompanhavam
algumas crianças, além de registrados, eram guardados em um cofre para que os
parentes ou outras pessoas, que por ventura viessem a procurá-los, os encontrassem
(ARANTES, 2010). Essa busca, provavelmente, foi efetiva para 14 das 467 crianças
inscritas no Livro dos Expostos 1193, da Bahia, distribuídas entre os anos 1757 e 1763.
No que tange à cor, esse aspecto não foi assinalado para 32, ou seja, 6,9% das crianças.
Todas essas informações (cor, sexo, sinais) eram repassadas ao tesoureiro, que colocava
um número, nome e as encaminhava para serem batizadas na Igreja da Misericórdia. Em
seguida, as crianças iam viver com as amas e outros cuidadores (MARCÍLIO, 1998).

A imediata identificação das crianças foi observada nos nossos dados, cerca de 445,
95,3% tinham um nome e apenas 7 crianças não foram nomeadas. As outras 3,2%
restantes não foram legíveis. Como as crianças que chegavam doentes não saíam da
Santa Casa ou eram entregues às amas, justifica-se que as crianças do nosso estudo não
batizadas e que, consequentemente, não receberam um nome, não viveram a tempo
desse encaminhamento ser feito.

No que se diz respeito a exposição das crianças na Roda em função da sua cor e etnia,
consideramos que no Brasil há forte mestiçagem, por conta da sua formação histórica.
Desse modo, acredita-se que o fluxo de exposição dos pequenos seguiu a característica
demográfica de cada região. Assim, no século XVIII, a população de Salvador- BA era
majoritariamente branca, com 39% de pardos e negros. No século XIX, entretanto, em
virtude da entrada de escravos no mercado dessa cidade, verificou-se maior presença de
negros e mulatos, 72% no ano de 1872 (MARCÍLIO, 1998; BRUGGER, 2006).

Nesse contexto, conforme os dados obtidos por Marcílio (1998) e por Venâncio apud
Brugger (2006), os expostos eram predominantemente brancos no século XVIII e, no
século XIX, negros e mulatos. Estas informações estão de acordo com a proporção da
cor de 467 expostos investigados no livro 1193, pertencente ao arquivo da Santa Casa
de Misericórdia da Bahia, de 1757 à 1763. As crianças brancas representavam a
maioria, 62,1%, 16,4%. Em segundo lugar, estavam as de cor parda, 24,6%, 115.

Diversos trabalhos sobre os enjeitados têm sugerido que as crianças brancas


predominavam entres as abandonadas (BRUGGER, 2006). Brugger (2006) enunciou
que em São Joao del Rei, em contrapartida, os registros de cor dos expostos não eram
muito frequentes e, para as crianças que tiveram sua cor assinalada, aponta-se para um
equilíbrio na exposição entre brancos, 44 e não brancos, 43. Entretanto, esses registros
teriam sido enviesados com a tendência para o indicativo de cor branca, por esta
representar certo status na época, um lugar social privilegiado.
Sendo as crianças expostas legalmente livres, era comum que fossem registradas como
brancas para garantir a sua liberdade. Após a crise do escravismo, no século XIX, no
entanto, houve um declínio na exposição de brancos, que poderia estar relacionado,
além do aumento da população negra, à mudança de atitude dos que registravam a cor
das crianças, tendo em vista que ser negro não significava mais ser escravo
(BRUGGER, 2006).

Logo, a respeito do abandono por sexo, parece não ter havido uma tendência para a
exposição de mais meninos ou meninas no Brasil Colônia e Império. Nas Rodas do Rio
de Janeiro e São Paulo entre 1737 e 1845, as proporções entre meninos e meninas foram
harmônicas (MARCÍLIO, 1998; BRUGGER, 2006). Os dados pertinentes a 467
enjeitados do livro que é fonte para este estudo, por outra via, também mostram o
equilíbrio entre as crianças, com 47,3 do sexo feminino e 52,2%, do sexo masculino.

Nessa perspectiva, independentemente da cor e do sexo, a exposição era um


acontecimento ao qual muitos bebês do século XVIII estavam sujeitos. Em Salvador,
Bahia, a Roda dos Expostos foi uma forma de lhes fornecer amparo, para que
sobrevivessem. A maioria das crianças que era atendida pela Misericórdia, porém,
falecia antes de atingir a idade adulta. Mesmo assim, esse sistema, localizado na fase
caritativa de assistência à criança abandonada, durou até parte do século XIX. Inerente à
isso, encontram-se os sentimentos de solidariedade católica e crenças cristãs.

Levando-se em conta esses aspectos, infere-se que as crianças deixadas na Roda dos
Expostos no século XVIII, e em outros espaços, representavam serem frágeis e sem
família que, imediatamente, deveriam ser nomeados, batizados e protegidos. Os
expostos recebiam auxilio, significado como um ato de caridade cristã, na maioria das
vezes, com vistas à preservação da sua vida. Tinha-se a acepção de que o enjeitado
deveria ter alguém que pudesse ocupar o lugar do seu cuidador. Boa parte dos esforços
na assistência infantil dessa época, então, foram feitos neste sentido.

Em primeiro lugar, a salvação das almas de todos os recém-nascidos precisava ser


assegurada por meio do batismo e, em seguida, deveriam ser-lhes oferecidas as
condições para que desempenhassem papéis de prestígio futuramente, atendendo a
expectativas sociais e morais. Buscava-se viabilizar o casamento para as meninas e, para
os meninos, o seu encaminhamento a algum ofício. Portanto, as crianças eram alvos de
investimento da sociedade, do governo e dos cristãos para a continuação das relações já
existentes na estrutura social.

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Psicologado.com

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