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MÚ LTIPLOS
MUNDOS ANTIGOS
(Das origens ao século xvm )

«... a animação dos primeiros dias do mundo , os ruídos


múltiplos dos começos do falante.»
DENIS ROCHE
'
1 - A INSTALAÇÃO DOS POVOS
A instalação dos povos operou-se lentamente. Três e quatro
milhões de anos separam os primeiros antropóides descobertos
no Leste Africano, dos humanos hoje omnipresentes; mas os sítios
devidamente datados que permitem que se imagine a dissemina-
ção da nossa espécie continuam separados por milhares de milé-
nios e de quilómetros. No entanto, tudo leva a pensar que a Terra
I esteve muito tempo quase vazia de homens. Os dem ógrafos
estão mais ou menos de acordo sobre um cálculo a contrapelo da
população planetária: 200 milhões de homens no tempo de Carlos
Magno e de Harun al-Rashid , por volta de 800 d. C.; metade
menos, treze séculos mais cedo, quando Dario reina na Pérsia e
quando os Etruscos se apoderam de Roma, por volta de 500 a. C.;
50 milhões somente por volta de 1000 ou 4000 a. C., segundo as
fontes. Algumas dezenas de milénios antes da nossa era, a huma-
nidade compunha-se provavelmente de algumas dezenas de
milhar de homens: algo com que povoar uma cidade bastante
pequena nos dias de hoje.

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i A instalação dos povos foi, de in ício, uma lenta dispersão dos dois a três habitantes por km2, salvo nas zonas tropicais onde a
bandos animais-humanos ao sabor das mutações climáticas e dos fertilidade natural das terras permitia, no máximo , o triplo daque-
acasos ecológicos. Estes bandos, multiplicados graças a raras la média. Um campo cultivado por oito a nove habitantes por km2
invenções - a linguagem, o fogo, a criação de animais, a agricul- e dando um excedente alimentar igual a 10 por cento das colhei-
tura, alguns utensílios de pedra e, depois, de metal, etc. estive- tas pode suportar uma cidade de 1000 habitantes, num círculo de
ram na origem de raças, de línguas e de culturas diversificadas 18 km de raio. E assinalar o privilégio das zonas, sobretudo fluvi-
nos sítios dispersos onde a sua aventura os depôs, um pouco por ais, onde a agricultura permite ter 200 a 400 habitantes por km2:
toda a parte no planeta. Ao mesmo tempo , eles tornaram-se as cidades tornam-se aí numerosas e, por vezes, gigantes (4, 35) .
humanos e sociais e formaram povos. As cidades primitivas desenterradas pela arqueologia parecem
Durante muito tempo, a errância foi comum a todos os povos. muitas vezes tão exíguas que se hesitaria em distingui-las das
A recolecção, a caça e a pesca a isso mais ou menos obrigam. A cria- aldeias se não fossem os seus traços originais: um artesanato a
ção de animais que alimenta mais homens muda pouco a prática: tempo inteiro; uma cerca frequentemente fortificada (salvo no
os cavaleiros nomadizam nos grandes espaços, os criadores de car- Egipto); um povoamento denso jm habitat de material sólido,
neiros ou de camelos fazem transumâ ncia num raio menor, as
manadas de bois ou de búfalos deslocam-se menos ainda, mas
^
alinhado em torno de ruasecfiípraças; uma ocupação duradoura,
!
à diferença dos acampamentos móbiles dos príncipes e dos exér-
todas estas produções são itinerantes e levam, por vezes, a longín- citos. Em chinês, como em russo, a mesma palavra designa a
quas expedições. A agricultura interrompe a errância. Não a cultu- cidade e a cidadela (4, 31) , mas noutras partes as cidades têm
ra sobre queimadas que arrasta ainda a migrações periódicas, mas também um papel militar, quando não nascem à volta de castelos
sim a cultura perene das terras ricas e leves; depois, com instru- de in ício isolados. No entanto, quando os perigos da errâ ncia
mentos mais potentes e novos amanhos, a cultura das terras sedi- parecem afastados, os mercadores multiplicam-se nelas, enquan-
mentares mais pesadas. Os grandes vales aluviais, as margens to os Estados e as igrejas nelas prendem as malhas principais dos
inundáveis e os solos facilmente irrigáveis tornam-se assim, do seus aparelhos. Por toda a parte, as cidades libertas das suas
sétimo ao quarto milénios, nas primeiras zonas de sedentarização necessidades primeiras tornam-se polivalentes, não sem suscita-
maciça, do Houang-ho - ou rio Amarelo - ao Nilo e ao Eufrates e, rem lendas e invejas quando são grandes e ricas.
depois, ao Indo. Noutras partes, a começar talvez pelos elevados A errância dos povos está carregada de significações contradi-
planaltos dos Andes, do México, da Etiópia e do Iémene, depois tó rias. O nomadismo , a pilhagem e a conquista são cantados
pelas margens setentrionais do Mediterrâneo, a sedentarização foi como aventuras gloriosas, enquanto os sedentários deploram
mais tardia. Daí, passou a todas as zonas férteis, sobretudo à longa essas invasões bárbaras. Por isso, convém apreciar as narrativas
planície europeia. Mas a estepe que prolonga esta, até ao coração de uns e de outros, tendo em conta a densidade real do povoa-
da Ásia e à campina americana, tardou em tornar-se densa, a tal mento. O invasor cujo assalto é suportado por um povo sedentá-
ponto o nomadismo até continuou fácil e devastador. Só uma forte rio é raramente o iniciador do movimento que transmite. O cho-
armadura urbana triunfou em relação a ele, mas sem recaídas. que desordenado dos povos é de regra, à volta dos impérios
Assim, para além do Reno e do Danú bio, a Europa só na Idade chinês, romano, hindu , etc., e depois no seio deles, a partir de
Média estabilizou, enquanto após a tomada mongol a planície errâncias iniciadas por algum povo da grande estepe que se
russa só a partir do século xv restaurou a sua rede de cidades. estende do Amur aos Cá rpatos. De 'resto, esta estepe onde a
A cidade protege a agricultura sedentá ria, mas ele só pode sedentarização só acabará no século xx não é a ú nica reserva de
estabelecer-se a partir de um campo já eficaz. Bairoch pensa que povos condenados à errância. A expansão dos Han rechaça, no
antes da agricultura, a população em pouco podia ir além dos Sul da China, diversos povos que se dispersarão em seguida por

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Cidades grandes
Antes da revolução industrial, dezoito cidades reuniram, pelo menos, um
milésimo da população pbnetária total (*) ; algumas passaram mesmo dos
três milésimos (**). Ref énda à população total do seu próprio mundo, a pro -
-
porção é muito maia elevada.

Circa 1700 a.C. Babiló nia (**) Circa 1100 d .C. Kaifeng (*)
450 a.C. Atenas (*) Séc. xm /xrv Tsiuan-tcheu (*)
300 a.C. Alexandria (*) Circa 1300 d.C. Linan (*)
100 a.C. Louiang (*) 1350 d .C. Cairo (*)
100 a 200 a.C. Roma (**) 1500 d.C. Hampi (*)
1700 d .C. Agra (*)
Do séc. v ao X! Constantinopla (**) 1700 d .C. Istambul (*)
Circa 700 d.C. Xi'an (Sian) (**) 1700 d.C. Tóquio (*)
950 d.C. Bagdade (**)
1000 d.C. Có rdova (*)

Fontes: Para a população: 30; para as populações urbanas: 4; para as denominações urbanas, ver
16 e 31.
todo o Sudeste Asiá tico. O avanço árabe-muçulmano em direcção
à Espanha , e depois em direcção à Insul í ndia, agita diversos
povos, sobretudo no Irão e na índia. Os impérios pré-colombia-
nos têm o mesmo efeito no México e nos Andes. Por toda a
parte, as errâncias se propagam em cascata.
Frequentemente, também, as migrações amalgamam povos
variados. Os germanos dos séculos v e vi e os eslavos dos sécu-
los viu e x são tão heteróclitos quanto o eram os gauleses quan-
do da conquista romana. Os á rabes que penetram na Espanha,
nos começos do século vm , contam muitos mais contingentes
recrutados no Egipto e no Magrebe que árabes de cepa directa.
Os povos migrantes são, por diversas vezes, sobejos de avalan-
cha , nunca puras correntes de neve.
:: O efectivo dos invasores toma sempre proporções grandiosas
entre os povos assolados. No entanto, as estimativas sérias que têm
podido ser estabelecidas reduzem as hordas imensas a alguns
milhares ou, mais raramente, a algumas dezenas de milhar de
migrantes. Um pouco mais, talvez, para os visigodos instalados na
Aquitânia e em Espanha, no começo do século v. Uns 30 000 ape-
nas, para os árabes que se apoderaram da Espanha visigótica no
começo do século VIII, antes de serem reforçados, ao correr dos

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séculos, por um fluxo de povoamento berbere (8-1, 61) . Mas é pre- tadas: a sua famí lia, a sua actividade, o seu habitat e todas as
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ciso ainda distinguir, em cada povo , a minoria combatente , dos outras necessidades da sua vida prática, como todos os outros
milhares de mulheres, de crianças, de velhos e de escravos que a hábitos comuns da sua vida social (costumes, ritos, festas, etc.)
6 acompanham - e por vezes a reforçam. Em todas as épocas, os inscrevem-nos em múltiplos grupos de convivência que se im-
povos errantes que se aventuram em zonas densamente sedentari- põem a eles, com a força inerte dos usos tradicionais. Tomados
zadas, são neles muito minoritários. A força deles é a da necessida- nesta rede de grupos entreligados, os homens vivem todos jun-
de que os agita, da brutalidade que por vezes manifestam; mais tos, estão ligados num mesmo povo. Localmente , a interligação
ainda, ela resulta do temor dos povos já instalados. De tal maneira opera-se de facto, à escala dos grupos de trabalho e de habitat.
que , um pouco por toda a parte, os impérios bem estabelecidos A curta distância, ela é prolongada pelos laços de vizinhança e de
combatem a errância dividindo os bárbaros, recrutando entre eles permuta entre as comunidades sedentárias ou nómadas. A dis-
mercenários ou disseminando-os em terras livres, como os francos tância mais longa, formas de sociabilidade mais episódicas, mas
na Gália Setentrional. Ou, de maneira mais refinada, estendendo as igualmente constrangedoras, estabelecem, com fins cerimoniais,
marcas fronteiras, emalhadas de cidades e de campos militares; mercantis ou outros, ocasiões de encontros ou de permutas.
convertendo os recém-chegados a qualquer religião pacificadora O povo inscrito em tal rede de convivência só pode ir para
(n.° 5) ; ajudando mesmo os que chegavam tarde a fazerem amadu- além dos limites da vizinhança rural se sólidos pontos de apoio
recer os seus próprios Estados na órbita do império (n.° 5) . permitirem que se prendam redes múltiplas mais ou menos
semelhantes, umas às outras. As cidades oferecem a este respei-
to as melhores junções: cada uma constitui em torno de si uma
2 - OSPOVOS região - no sentido do latim pagus - que , por seu turno, pode ser
ligada, de cidade em cidade, a todo um cacho de regiões. Mas,
Os povos, cuja instalação é tão caótica, parecem constituir uma desde então, os povos espalhados numa região com uma cidade
medíocre unidade histórica. No entanto, eles são os mais resis- por centro ou num conjunto mais vasto, sustentada por toda uma
tentes dos agrupamentos humanos, apesar das transformações armadura urbana, requerem outros apoios para garantirem a sua
que sofrem. unidade. Por detrás das cidades, um Estado e diversos aparelhos
Cada povo é um agrupamento singular, um conjunto de ideológicos operam e contribuem para novas extensões da rede
homens co-detentores de uma mesma cultura e portadores de í dos grupos de convivência em que um povo se desdobra (n.° 6) .
uma identidade comum. A sua identidade colectiva pode ser rica E Salvo lacunas maiores da documentação sociológica, histórica
em ilusões e a sua cultura pode ser mais ou menos partilhada, 1; ou arqueológica, qualquer rede pode ser objecto de uma investi-
gação empírica e, portanto, qualquer povo pode ser devidamente
nos seus diversos aspectos materiais e intelectuais, por diversos
povos aparentados. Convém, por isso , fixar solidamente a refe- 1' referenciado e circunscrito, contanto, porém, que as distorções
renciação de cada povo, antes de reconhecer os seus emparelha- I de que a rede possa sofrer sejam, também elas, inventariáveis.
mentos ou de observar as suas transformações. I A mais importante destas distorções é de ordem linguí stica: a
Falando de modo estrito, um povo é o conjunto dos homens IE convivência, garante da unidade de um povo, supõe uma comuni-
reunidos numa mesma formação ideológica, quer dizer, numa cação permanente e completa, a qual se estiola por falta de lin-
estrutura tão pregnante como um Estado ou um modo de produ- guagem comum . Mas a comunicação não é apenas linguística:
ção, mas tendo outros traços distintivos e, na maior parte das í
usos e costumes insólitos, hábitos estranhos, ritos desconheci-
vezes, uma outra extensão. Em cada formação ideológica, todos dos, etc., provocam cortes, também eles. Assim, dois povos - ou
os homens estão ligados por uma rede de malhas muito aper- dois fragmentos de povos - justapostos ou misturados num

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mesmo solo ou numa mesma actividade podem permanecer para a singularizar, mas para a tipificar. Nesta segunda óptica, os
estranhos um ao outro: a vizinhança não conduz à convivência, povos dos antigos mundos aparecem antes de mais como peque-
enquanto se não operar a colocação em rede. nos povoados: comunidades que agrupam, quando muito, algu-
Esta relacionação não se perfaz nunca de uma só vez, entre mas centenas de homens ou tribos que reú nem durante algumas
povos estranhos que entram em contacto. Ela instaura-se pro- T gerações, milhares de homens, se não mais. A favor de uma seden-
gressivamente por meio de aquisições linguísticas, de imitações tarização duradoura, de uma trama urbana já sólida e de um enqua-
e de solidariedades parciais, de casamentos entre membros da 1 dramento estatal estável, a escala dos povos pode mudar. Por meio
mesma família ocasionais de início, etc. Ou então, ela não se ins- de proliferação natural e de lenta digestão de contribuições exter-
taura, seja porque um Estado mantenha a separação dos povos nas, certos povos tomam a dimensão e o vigor de etnias, de voca-
que domina, seja porque os povos postos em contacto por qual- ção perene, em que os homens se contam a maior parte das vezes
por dezenas ou centenas de milhar. É certo que as etnias não são

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quer catástrofe - avalancha migratória, epidemia, guerra, etc. -
se separam logo que o perigo passa. indestrutíveis mas, afora as grand íssimas avalanchas de povos e as
O ideal seria poder reconstituir, para os mundos antigos, as for- guerras de extermínio - propriamente etnocidas os povos que
mas de convivência dos povos antes de eles entrarem em relação cresceram até este grau identitário e cultural não conhecem mais
uns com os outros, a fim de melhor dosear as respectivas colabora- que dois destinos: ou fundem-se em qualquer nação mediante um
ções nas suas amálgamas ulteriores. Gostaríamos, por exemplo, de I trabalho de dominante estatal ou escapam a este trabalho e são
reduzidos ao estado de fragmentos esparsos, num mundo progres-
seguir em pormenor a formação dos povos galo-romanos, ao norte
da Narbonesa, do século i ao século m; depois, a adjunção àqueles, sivamente cheio de Estados-nações (n.° 34) .
do século ui ao século v, dos povos francos alojados entre Seine e 1 Qualquer sistema mundial é um viveiro de povos desigual-
mente desenvolvidos. Enquanto o povoamento permanece dis-
Meuse, antes de outros povos germânicos terem vindo enriquecer I‘
essa mistura. Mas o principal documento, hoje disponível para se perso e os recursos permitem, esses povos podem proliferar
ajuizar destas transformações, não é suficientemente pormenoriza- espalhando-se. O afastamento distende ou rompe as redes, a
do: é, muito simplesmente, o velho fundo da língua francesa, antes sucessão das gerações deforma as linguagens e as tradições. Em
da sua depuração nos séculos clássicos. poucos séculos, os parentescos antigos dos povos apagam-se da
Os povos apresentam todos uma identidade forte e distintiva, lembrança deles e enterram-se no coração dos mitos, dos ritos e
a qual se exprime por uma denominação e por muitas outras 1 das palavras de que ulteriormente sábias pesquisas podem desa-
lojá-los. Mas novos parentescos se criam por efeito das relações
características: uma memória comum, uma história lendária, um 1 que os Estados mais vastos frequentemente favorecem: assim
feixe de normas e de ritos e assim de seguida, até cobrir toda a i
vida real e imaginá ria do povo assim identificado, em todos os aconteceu com os impérios romano e chinês, vastos congregan-
seus aspectos correntes. 3 tes de povos heteróclitos que as suas administrações e os seus
Podemos aproximarmo-nos desta identidade - ou desta cultu- exércitos impregnaram pouco a pouco de características comuns,
ra - através de duas vias principais. Uma, que é prática corrente ; nisso ajudados pelos sacerdotes e pelos mercadores. Ao longo do

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em etnologia, é a de prestar atenção aos próprios conteúdos da cul- tempo, estes parentescos novos manifestam-se primeiramente no
tura-identidade, de discernir os seus costumes e os seus sonhos jogo das trocas económicas e nos domínios especializados que os
originais, de a especificar na sua própria singularidade. A outra, aparelhos ideológicos e estatais lavram regularmente - justiça,
menos poética, mas não menos científica, é propriamente macros- religião, fiscalidade, etc. Eles afectam assim a linguagem corren-
sociológica, e é a de situar a identidade de um dado povo na escala te e, através deste vasto canal, revolvem pouco a pouco nos usos
dos desenvolvimentos culturais observáveis em sociedade, não e costumes menos especializados.

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;

I Parentescos antigos e por vezes esquecidos, parentescos


novos mas que são parciais, deste modo se acham os povos
de defender o dom í nio deles (n.° 34) -, alojaram-se, também elas,
nas margens do continente, na Escócia, na Irlanda, na Bretanha
arrastados para uma proliferação espontânea que muitas vezes os
Estados travam e por vezes invertem. A escala dos mundos anti-
gos, em que os espaços livres permanecem durante muito tempo
íI ou em alguns enclaves, como a Boémia. Nisso, a Europa de modo
nenhum se singulariza: dos Andes meridionais ao norte de
Hokkaido, da tundra canadiana aos semidesertos da Austrália,
muito abundantes, a proliferação prevalece certamente, salvo no
v das florestas equatoriais da Amazónia às do Zaire e do Bornéu ,
centro dos impérios vivazes. Mas nos mundos ulteriores, a inte- I por toda a parte, os povos escarnecidos pela história de outros
gração torna-se predominante. Mir íades de povoados, milhares povos mais bem organizados, acham-se nas margens do mundo
de povos, acabam por se condensar nessas poucas centenas de quando, pelo menos, sobreviveram. A sua concentração máxima
povos, por vezes imensas, que ocupam hoje o planeta. I observa-se em alguns maciços montanhosos, verdadeiros reser-
I vató rios de povos instalados nas encruzilhadas das migrações e
das invasões: nos Balcãs, nas duas vertentes do Cáucaso , nos
3 - AS LÍNGUAS; PRIVILÉGIOS DAS LÍNGUAS ESCRITAS I sopés dos montes himalaicos e nos confins sino-birmaneses, etc.
E ao presente de cada língua, mais do que aos parentescos
As relações entre um povo e a sua linguagem são de uma sim- arcaicos, que é preciso prestar atenção. Com efeito, a linguagem
plicidade falaz. Qualquer povo pratica a língua que lhe é comum funciona no presente, pratica-se, de tal modo que o parentesco das
mas, inversamente, muitas línguas são faladas por povos distin- línguas se julga primeiramente nesta prática. Ela é real, quando os
tos, e até mesmo hostis. Trata-se, no entanto, neste caso de povos homens que pertencem a povos diferentes podem comunicar
e de línguas praticamente aparentados, a que se juntam as cone- \ entre si, nos seus contactos ocasionais ou repetitivos; ela é parcial
xões linguísticas complexas que a história sepultou debaixo de e frágil, quando esta intercomunicação se faz mal, por exemplo à
contribuições novas. Para além das migrações e das invasões tur- í custa de um sabir simplificado; ela torna-se rara e muitas vezes
cas, mongóis, árabes e outras dos últimos 15 séculos, os linguis- elí ptica, quando supõe uma cultura erudita ou, pelo menos, um
tas sabem reconhecer, entre todos os povos da Europa actual, esforço especial de aprendizagem. Assim, pode-se duvidar de que
parentescos lingu ísticos que atestam a existência de um escoa- os povos múltiplos reunidos, desde a Inglaterra até à Sí ria sob a
mento de povos, dito indo-europeu, que se efectuou, em diversas tutela de Roma, tenham adquirido uma prática do latim que lhes
vagas, há mais de três milénios. Mas esta origem comum às lín- I abrisse, a todos, uma real intercomunicação: esta só se estabele-
guas pré-otomanas da Anatólia e dos Balcãs, às linguagens escan- ceu para os homens postos em contacto pelo exé rcito, pelas
dinavas e eslavas, aos falares germânicos e gauleses e aos idio- magistraturas ou pelo comércio. Mesmo no coração do império,
\ mas das penínsulas mediterrâneas, n ão atesta sobre qualquer nas províncias mais longamente mantidas por Roma, da Ibéria à
parentesco íntimo entre os diversos povos saídos das migrações Sicília, assistiu-se à cristalização de dezenas de idiomas, próximos
indo-europeias, os quais viveram histórias separadas ao dispersa- por vezes, como o provençal e o genovês, mas muitas vezes de um
rem-se por toda a Europa. longínquo parentesco, como o português e o siciliano.
As línguas europeias estranhas às influências indo-europeias Trata-se em todo o caso, para o latim como para o árabe ou o
- quer sejam anteriores como o basco ou posteriores como o chinês, de uma língua à qual múltiplos privilégios vieram dar uma
h úngaro e o finlandês - só sobrevivem em pequenos povos, nas força pouco comum. A primeira dessas valorizações resulta da
margens do continente. Do mesmo modo, as línguas de origem escrita, inventada separadamente no Egipto , na Suméria e na
mais recente, mas trazidas por povos sem história - quer dizer, China - e cuja criação foi interrompida pelos conquistadores, num
privados durante numerosos séculos de qualquer Estado capaz México asteca já hábil nos pictogramas. A escrita, maleada pelo

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:
uso fenício do alfabeto, dá uma melhor consistência às línguas, de
início pouco numerosas, que dela beneficiam. Este privilégio mani- 4 - EXÉRCITOS E DOMINAÇÕES
festa-se sobretudo pela propagação dos seus sinais para além da
sua á rea de origem. Assim , os Coreanos , os Japoneses e os Nos mundos antigos, as guerras foram frequentemente trava-
Anamitas receberão sucessivamente da China os seus ideogramas, das por guerreiros pouco numerosos, mas alguns bandos bastam
tal como os povos da Europa adoptarão o alfabeto romano. para dizimar ou submeter um povo exíguo. Daí o terror que pude-
O escrito é posto em relevo pelos escribas dos Estados e pelos ram causar os exércitos muito grandes, como o que Alexandre
sacerdotes das religiões do Livro , qualquer que seja este livro. conduziu à conquista da Pérsia {circa 330 a. C.) e que contava tal-
Deste modo se fixam as probabilidades de uma longa sobrevivên- vez 40 000 homens1, ou seja um efectivo superior ao de muitos
cia para o sâ nscrito, o hebraico , o latim, o á rabe e, de modo povos migrando por inteiro. O terror foi por vezes aumentado
menos religioso, para o grego dos pedagogos romanos e dos pelo carácter estranho e pela crueldade dos assaltantes. Assim foi
administradores bizantinos e para o chinês dos mandarins, lín- com os Mongóis, descendo para a Pérsia e para a Rússia, com
guas todas elas que beneficiam, além disso, de contribuições eru- quatro a oito montadas por cavaleiro, para renovarem os seus
ditas. As igrejas, com efeito, não hesitam em traduzir os seus tex- assaltos, e percorrendo imensas etapas: Temudjin torna-se
tos em todas as lí nguas que as suas ovelhas actuais ou potenciais Gengiscão em 1206; 15 anos mais tarde, ele é senhor de Cabul, a
falam, indo mesmo até inventarem para tal novos alfabetos, tal 3500 km das suas bases; dois anos mais lhe bastarão para dobrar
como sucedeu com o cirílico que adapta o grego de Bizâncio às esta distância estendendo as suas conquistas até Tabriz e Kiev.
necessidades das lí nguas eslavas e que, pela via dos impérios búl- Massas tais sã o , no entanto, raras. Os exé rcitos antigos
garos, se espalha na Rússia, a partir do século xi. engrossam sobretudo quando um povo, em perigo extremo, emi-
Em compensação, as elites cultas, que se formam muitas vezes gra em bloco e surpreende por vezes os exércitos dos impérios
na esfera de influência das igrejas, utilizam de maneira duradoura bem assentes dando-se por inteiro ao combate, até mesmo as
as lí nguas sagradas que elas tornam eruditas, quer dizer, aptas a mulheres e os velhos. Mas uma sociedade bem regulada, como a
tratar matérias que excedem as capacidades das línguas corren- repú blica romana, podia, em crise aguda, reunir até 10 por cento
tes. Algumas lí nguas tornam-se assim em vectores universais, à da população total no seu exército de cidadãos, ou seja 30 por
escala dos mundos respectivos. Algures onde mundos distintos cento mais ou menos de homens adultos1.
se entremeiam por algum tempo, a alta cultura reconhece-se nas Na maior parte das sociedades antigas, a participação no comba-
grandes bibliotecas e nas oficinas de tradutores e de copistas, te é um dever para todo o homem válido e livre. Ela marca a sua
sobretudo em Alexandria (até o último incêndio de 645) , em pertença à comunidade: daí a exclusão dos escravos, que tem pou-
Córdova (até à reconquista espanhola de 1236) , em Bagdade (que cas excepções. Em compensação, os Estados mais extensos substi-
um filho de Gengiscão pilhará em 1258), etc. Assim, uma hierar- tuem o chamamento de todos os homens pelo alistamento de con-
quia móvel estabelece-se entre lí nguas que sempre abundam: de tingentes, de tal modo que o serviço das armas se assemelha então
toda a palha dos dialectos usuais sai uma elite de línguas escritas ao tributo ou ao imposto. Um passo mais é dado no sentido da pro-
em que a preeminência caberia incontestavelmente às línguas fissionalização dos exércitos pelos impérios que recorrem aos ser-
promovidas pelo funcionamento dos impérios, se não fosse a per- viços mercenários de bandos vindos do exterior. Este método que
severança de algumas línguas sagradas e eruditas, mantidas por tenta moderar bárbaros marca também a desconfiança dos domina-
diversos aparelhos ideológicos. A isto se juntam, como se verá dores em relação aos povos submetidos de mais longa data.
(n.° 16) , algumas outras línguas privilegiadas pelos mercadores, Em todas as sociedades antigas, a verdadeira dificuldade está
para as suas próprias necessidades. em disciplinar de modo duradouro os exércitos. Frequentemente

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valorizam-se os homens de armas, nobilitam-se os seus chefes, A natureza das guerras torna-se mais clara quando se tê m
cantam-se as virtudes guerreiras dos prí ncipes. Assim louvada, a simultaneamente em conta as relações sociais internas dos
guerra torna-se num desporto primaveril, uma caça em que a Estados e as relações internacionais* em que estes estão empe-
matança, a violação e o saque, devidamente santificados, supri- nhados. R. Aron, autor avisado de Paix et Guerre entre les nations,
mem os interditos da vida corrente. A outorga de terras aos solda- não pode operar esta junção. Fiel a Weber, ele pensa que cada
dos-colonos ou o pagamento regular de um soldo são ainda melhor Estado tende a reservar para si o monopólio da violência na sua
garantia contra as frequentes deserções. Deste modo, a guerra pró pria á rea, enquanto as relações entre Estados comportam, por
conduz a uma invenção plena de futuro: o salariado (n.° 28). essência, a alternativa da guerra e da paz: da í « uma diferença
As raras inovações técnicas dos mundos antigos são frequen- essencial entre polí tica interna e política estrangeira».
temente estimuladas pela guerra. Os construtores de muralhas e Na realidade, Aron projecta sobre os mundos antigos uma
de fortes, os forjadores de armas e armaduras, mais tarde os
arquitectos navais e os engenheiros das máquinas de cerco, são
I diferença que talvez se tenha tornado essencial no seu tempo
(n.° 39) . Para todas as sociedades, até aos começos do século xx,
favorecidos pelos prí ncipes. Mas as verdadeiras inovações na
inclusivamente, a função primeira dos Estados, na ordem interna
arte da guerra têm mais que ver com a organização do que com
os instrumentos. Entre muitas outras invenções exploradas pelos tal como nas relações internacionais, é garantir a sua á rea de
estrategas, o emprego dos besteiros n ú bios pelos faraós, a utiliza- dominação e, se for possível, estendê-la. A sua área de domina-
ção dos hoplitas, da cavalaria pesada e dos carros pelos Gregos e ção, quer dizer, o espaço - ainda móbil ou já fixado -, do qual as
:
Maced ónios e depois a formação das legiões romanas ou a utili- classes dominantes no Estado considerado tiram os seus pode-
: zação da cavalaria rápida e ligeira pelos Árabes e Mongóis fize- res, o seu prestígio e os seus recursos; o espaço onde, de modo
; ram época. muito geral, estão situadas as suas propriedades, os seus domí-
De resto, os combates, as tácticas, os armamentos e as tropas nios, a sua gente, eventualmente os seus escravos. Esta área é
dão uma visão fenomenal das guerras, mas não explicam a perpé- para dominar, tanto quanto for necessário, contra as revoltas dos
povos recentemente submetidos e das classes dominadas de toda
tua repetição delas. O exame das causas imediatas dos conflitos
pouco mais é esclarecedor. As grandes jogadas dos príncipes que
alargam os seus domínios, dos herdeiros que disputam as suas
s a espécie, contra as dissen ções que poderiam enfraquecer a
ordem estabelecida, contra as incursões de povos do exterior
heranças, dos usurpadores desapossando as suas dinastias, são ainda não submetidos e contra os eventuais apetites de Estados
ricas em personagens e em incidentes pitorescos, mas conduzem vizinhos. Manutenção da ordem interna, defesa dos povos guar-
facilmente a uma sabedoria escassa em que a imutabilidade da dados pelo Estado, extensão da sua autoridade: deste modo, as
natureza humana e o eterno retorno das coisas sociais disputam guerras provêm de uma vigilâ ncia estatal, enfeitada de comove-
a palma entre si. A protecção dos povos sedentários e a errância doras variações sobre a glória dos prí ncipes, sobre a terra dos
dos povos desenraizados conduzem igualmente a uma curta evi- antepassados, e sobre a alma dos povos.
dência: os nómadas não têm nenhuma necessidade das cidades e : A natureza indissociavelmente internacional e interna das
incomodam os agricultores. A prevenção das revoltas internas, a guerras permite que se compreenda bem o que são os espaços e
reconquista dos Estados invadidos e a reconstrução dos impérios ;
desmembrados escapam a esta dialéctica simplista, mas insistem * De modo estrito, só pode haver relações internacionais entre nações ou
unilateralmente nas consequências de acções cujas origens per- Estados-nações, mas estabeleceu-se o uso de chamar internacionais ao todo
ou a parte das relações entre as sociedades ou os Estados do mesmo sistema
manecem brumosas. Em suma, as causas das guerras falam ape- mundial . De futuro , emgregarei pois este termo sem aspas, mas com reservas
nas das suas circunstâncias, não da razão de ser delas. que a discussão teórica eliminará pouco a pouco (n . ° 39) .

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os períodos pacíficos. São áreas onde, por algum tempo, a ordem nenhum ganho de produtividade. Com efeito , ela converte os
estabelecida por um império não é contestada no seu seio e onde senhores de escravos em outros tantos soberanos locais que asse-
as guerras ocasionais são repelidas para a sua periferia, fora da guram, à sua escala, a ordem pú blica que lhes convém, desviando
experiência comum . Então, a paz chinesa, a paz romana ou a paz uma parte dos seus produtos para a manutenção de um pr íncipe e
mongol podem reinar, por vezes durante séculos, sobre exten- de uma administra çã o cujo exército é precioso: os seus combates
sões imensas. fornecem novos escravos, a sua presença protege o comércio dos
A dominação exercida pelos Estados só garante a sua duração produtos e dos escravos e, se necessário, a sua intervenção abafa
se estiver de harmonia com os principais arranjos internos, a as revoltas destes últimos. Mesmo quando a escravatura se des-
começar pelos da produção. Deixando provisoriamente de parte gasta, por distanciação das guerras ou por evolução dos costumes,
os modos de produção ligados ao artesanato que se desenvolvem as suas derivações de servilismo e os seus substitutos latifundiá-
nos mundos mercantis (n.° 13) , podem-se ordenar as sociedades rios podem fornecer ainda um enquadramento local que reveza
antigas em duas categorias principais: umas são formações tribu- mais ou menos o do pr íncipe e da sua administração.
tá rias ou escravistas que podem adquirir uma dimensão muito Mas nenhum vasto império pode durar sem fortalecer o seu
grande; as outras, geralmente pequenas, dispõem apenas de exército por meio de outros aparelhos que particularizam os seus
modos de produção servistas ou rurais, até mesmo comunitários. constrangimentos e adoçam a sua dominação.
A solidez e a extensão das sociedades tributárias provêm dos
apertos múltiplos que asseguram a sua coerência. O lançamento
de um tributo maciço à produção permite estabelecer diversas 5 - APARELHOS E RELIGIÕES
redistributes: aos representantes e servidores dos príncipes; ao
exército, guardião da ordem estabelecida; e também tendo em Os mundos antigos, mesmo os mais favorecidos, são pouco
vista trabalhos - sobretudo de irrigação - que, se forem bem con- produtivos. A agricultura, a criação de animais e os ofícios absor-
cebidos e regularmente mantidos, podem aumentar fortemente a vem quase toda a população em idade de trabalhar. No máximo,
produção e a população e, portanto, a incidência do tributo. Além restam três a quatro por cento da força de trabalho para outras
3 disso, a colecta do tributo em géneros pode ser prolongada por actividades, a começar pelo exército. No entanto, os homens
um alistamento de homens, para os grandes trabalhos produti- libertos das servidões da produção parecem mais abundantes,
vos, tal como para guarnecer o exército, sem que esse alistamen- porque estão frequentemente concentrados nos palácios e nas
to prejudique a produção. Esta articulação tributá ria, fortalecida cidades ou nas pequenas sociedades que o progresso mercantil
por crenças proveitosas e enriquecida por sólidas experiências torna autónomas (n.° 14) .
administrativas e militares, pode ser alargada muito para além Nas sociedades tributá rias, e depois, pouco a pouco, em todas
das zonas onde a sua aplicação estimula a produtividade. Assim as sociedades em que um Estado ganha contornos, um aparelho
se verão os Mongóis estender à sua Rússia dos séculos xm e xrv, fiscal acaba por assegurar a despesa pública ao reunir os recur-
um sistema tributário vindo da China e que não é mais então que sos requeridos para este fim - ficando bem entendido que este
uma forma de imposto, associada ao avassalamento de pr íncipes vocabulá rio anacrónico é usado, aqui, por estenografia. De facto,
varegues ou russos, convertidos em intendentes dos cãos. o aparelho fiscal é formado de celeiros do prí ncipe que gerem o
O avassalamento é frágil. Os rituais da submissão e a fiscalida- tributo em géneros ou de um conjunto de caixas que colectam
" de colectiva de forma tributária perdem-se desde que a força arma- impostos que se tornaram monetários. Mais tardia ainda é a
da deixa de os impor. A escravatura substitui mais eficazmente o especialização de um aparelho judiciário, formado de juízes pro-
sistema tributá rio , nos casos em que este não pode fornecer fissionais e não de magistrados para todo o serviço. Daí, o privilé-

30 - O MUNDO NO SÉCULO XXI MÚLTIPLOS MUNDOS ANTIGOS - 31


gio duradouro do direito elaborado para estes juízes e por eles, As primeiras decantações religiosas são frustes. Elas deixam
tal como o direito romano, codificado por Bizâ ncio e a que a subsistir práticas que, mais tarde, se autonomizam, como astrolo-
Europa dará grande importância. gia ou magia, até mesmo como atracções de feira: assim foi com
Desde que os Estados antigos crescem, dois aparelhos neles o tauismo e com o xintoísmo, antes que a competição os depuras-
superam o judiciário e o fiscal. Um é formado pelos representantes : se mais. Ou então , elas confundem os deuses e os príncipes, a
do príncipe que velam pelos interesses dele em cada província. O igreja e o Estado , como ser á frequente no Egipto , na
outro constitui o n úcleo de todo o aparelho de Estado e cabe-lhe Mesopotâmia e na América pré-colombiana , entre outros. Depois,
sobretudo controlar a boa marcha de todos os assuntos locais. o refinamento faz-se mais subtil. Na sua variante hindu ísta, um
Quando uma chancelaria central se acha assim diante de um corpo panteão abre-se a todos os deuses locais e m últiplos ritos são
de intendentes, escolhidos não pelo seu parentesco com o pr ínci- aceites, desde que é garantido o respeito das duas castas predo-
pe, nem pela sua nobreza, mas devido ao talento - magistrados minantes: a dos brâmanes, guardiães das crenças e a dos guer-
romanos, mandarins chineses, etc. os dois aparelhos em questão reiros, especialistas nos assuntos políticos. Na sua variante chine-
tornam-se no fecho da abóbada de vastos impérios duradouros. No sa, inspirada por Conf úcio (563 a 483 a. C.) , os ritos e obrigações
entanto, é preciso que a informação circule bem - se não depres- reduzem-se à manutenção de uma moral social, liberta de qual-
sa - da periferia para o centro e de retorno: daí a fama do cursas quer metaf ísica. Neste caso, os letrados cultivam-se para servir o
publicas romano, da posta mongol ou dos corredores dos Incas.
r Estado, não para meditar em longínquos mosteiros. Mas esta
A força armada que sustenta, de perto ou de longe, todos os variante elí ptica - que requer do prí ncipe eminentes virtudes
aparelhos estatais, pode-se tornar mais discreta, quando o con- para bem cumprir o seu mandado celeste - só penetra nas profun-
sentimento dos sú bditos fortalece a dominação estabelecida, dezas populares ao misturar-se com as práticas menos altaneiras
sobretudo quando uma religião comum a numerosos povos os do tauismo ou do budismo. A menos que, como no Japão, o acen-
inclina a dar a César o que lhe pertence. Uma tal hegemonia reli- to tónico seja deslocado da virtude para a reverência devida ao
giosa coroa toda uma actividade ideológica, em que o aparato dos pai, ao senhor e ao pr íncipe (25) , o que converte Conf úcio num
príncipes, o evérgeto dos poderosos, os jogos dos truões, as his- mestre de submissão e não já de exigência.
tórias dos narradores, a educação dos preceptores, etc., enrique- Em outra variante derivada do Buda - quase contemporânea
cem o discurso comum das famílias, das vilas e das outras de Conf úcio - a sabedoria religiosa desencarna-se mais ainda.
malhas das redes de convivência (n.° 2).
Nos mundos antigos, as igrejas sobrepõem-se de muito alto a
estas actividades modestas. A escala dos séculos, o filme acelera-
i Ela perfaz-se num virtuoso afastamento do mundo e aproxima-se
segundo práticas de generosidade e de meditação que variarão
de país para país e de um século para outro, não sem m ú ltiplas
do da história religiosa deixa claramente ver a refinação que elas
operam. Por toda a parte, a sua matéria-prima é uma mistura ori-
ginal de crenças e de ritos, talhados por cada povo para dizer as
I transmissões sincréticas. Com efeito, o budismo, espalhado por
mosteiros e seitas múltiplas, ganha a índia quase inteira, sob o
império dos Maurya (séculos III e n a. C.) , mas envisca-se no
suas origens, organizar os seus deveres e garantir a sua sobrevi- meio das antigas religiões hindu ístas e jainistas, enquanto, por
vência colectiva. Reafeiçoada constantemente, ao sabor das expe- etapas, novas variantes do budismo atingem todo o Leste
f:
riências, esta sabedoria em acto tem os seus guardiães, com Asiático: ao norte, pela via do Tarim , do Tibete, da Mongólia e da
:
nomes e funções muito variados segundo os povos. As diversas I Coreia; ao sul, pela Birmânia, Ceilão e ilhas de Sunda. Depois, ao
igrejas decantam as crenças locais e esforçam-se por unificar as 1 sul como na índia, a concorrência muçulmana far-se-á sentir pro-
prá ticas de múltiplos povos. Por sua acção, os animismos e os gressivamente até penetrar no Turquestão e depois na Insulíndia
xamanismos são marginalizados. no século xrv.

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[

Após milénios de um trabalho religioso, rico em inovações lações frequentemente tardias - são interpretados pelos doutores
- entre elas o monoteísmo que sela a aliança das tribos judai- da fé, em hierarquias diversas, mas por toda a parte reconheci-
cas -, o Próximo Oriente produz, pelo seu lado, uma religião que dos, salvo cisma ou heresia. Os novos monges e sacerdotes são
se espalha pouco a pouco no universo romano. Esse cristianismo, formados e validados segundo procedimentos explícitos.
tú rgido de heresias diversas, cinde-se após o desaparecimento do Os Estados jamais ignoram estes aparelhos eclesiais. Muitas
império do Ocidente. Com diferença de alguns grupos isolados, vezes, incorporam-nos ao lado dos seus exércitos, quer em posição
ele desaparece da África e da Ásia, ao mesmo tempo que Roma e exclusiva e preeminente - a teocracia a tanto obriga - quer compe-
Bizâ ncio dali são expulsas pelos Árabes, seguidos dos Otomanos. lindo-os a uma certa tolerância, se a diversidade dos povos domina-
Na Europa, onde penetra lentamente, a partir do perímetro medi- dos o impõe. Pelo menos, os assuntos religiosos são vigiados de
terrâ neo, a sua sobrevivência e a sua divisão são consagradas, no bastante perto , incidindo a desconfiança sobretudo nas seitas
Oriente, pela conversão bizantina dos Búlgaros e, depois, dos novas. Uma das evoluções mais interessantes a este respeito é a de
Russos, e , no Ocidente, pela autoridade do Papado sobre os Roma, onde as igrejas cristãs, por vezes perseguidas, são firmemen-
impérios carolí ngio e romano-germâ nico dos séculos IX a xi e te proibidas no começo do século rv, mas se tornam dominantes e,
sobre os seus sucessores. Após isto, os mercadores da Hansa e depois, exclusivas, antes de terminar esse século atormentado.
os monges-soldados da Prússia e da Estónia asseguram a sua As conversões maciças e súbitas, a subsistência de cultos
penetração, até aos confins da Rússia. arcaicos, os sincretismos e as heresias atestam que a religião da
O islame, outro rebento do monoteísmo do Próximo Oriente, maior parte dos povos, em todas as é pocas, não é uma fé corres-
conhece uma aventura um pouco diferente, a contar do século vn. pondente ao ideal dos teólogos. No entanto, em todos os mundos
O í mpeto muçulmano começa por soldar muitos elementos de antigos, uma religião - ou uma gama de religiões - torna-se na
: impérios anteriores, da Síria à Pérsia e do Egipto à Espanha, para própria forma do vínculo social, na norma comum, no sistema
!' das referências que permitem ajuizar da vida corrente tal como
construir, em pouco mais de um século , um império que, de
resto , se cindirá logo que constru ído, mas que se prolongará pela dos acontecimentos excepcionais. De tal modo que, nos dias de
extensão perseverante de uma rede mercantil pela qual o islame revolta, as indignações e as esperanças trazem um traje religioso.
atingirá a índia, a Insulíndia e até as Filipinas. Uma religião envolve o universo mental dos homens. Ela subme-
Consideradas devidamente todas as variantes, são surpreen- te à sua hegemonia as suas raras actividades intelectuais especia-
dentes as conexões entre os impérios e as religiões universais. As lizadas e a sua vida prática.
religiões suficientemente depuradas, para convirem a povos
diversos, ganham terreno nos impérios em formação ou já forma-
dos, antes de se projectarem pelos povos vizinhos, vassalos,
clientes ou mesmo assaltantes a pacificar. As diferenças, de uma
propagação religiosa para outra, explicam-se por parte pelos
sobressaltos das políticas imperiais, mas dependem ainda mais
dos próprios aparelhos eclesiais.
As religiões universais são todas sustentadas por um clero
especializado cuja formação e cuja actividade dependem de um
aparelho constrangedor. Os santuá rios , igrejas, mosteiros e
outros lugares de culto são geridos por esse clero. Os textos
sagrados que instituem a sua doutrina - e que provêm de compi-

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Após milé nios de um trabalho religioso, rico em inovações lações frequentemente tardias - são interpretados pelos doutores
- entre elas o monoteísmo que sela a aliança das tribos judai- da f é, em hierarquias diversas, mas por toda a parte reconheci-
-
cas , o Próximo Oriente produz, pelo seu lado, uma religião que dos, salvo cisma ou heresia. Os novos monges e sacerdotes são
se espalha pouco a pouco no universo romano. Esse cristianismo, formados e validados segundo procedimentos explícitos.
túrgido de heresias diversas, cinde-se após o desaparecimento do Os Estados jamais ignoram estes aparelhos eclesiais. Muitas
impé rio do Ocidente. Com diferença de alguns grupos isolados, vezes, incorporam-nos ao lado dos seus exércitos, quer em posição
ele desaparece da África e da Ásia, ao mesmo tempo que Roma e exclusiva e preeminente - a teocracia a tanto obriga - quer compe-
Bizâ ncio dali são expulsas pelos Árabes, seguidos dos Otomanos. lindo-os a uma certa tolerância, se a diversidade dos povos domina-
Na Europa, onde penetra lentamente, a partir do perímetro medi- dos o impõe. Pelo menos, os assuntos religiosos são vigiados de
terrâneo, a sua sobrevivência e a sua divisão são consagradas, no bastante perto, incidindo a desconfiança sobretudo nas seitas
Oriente, pela conversão bizantina dos B úlgaros e, depois, dos novas. Uma das evoluções mais interessantes a este respeito é a de
f Roma, onde as igrejas cristãs, por vezes perseguidas, são firmemen-
Russos, e , no Ocidente , pela autoridade do Papado sobre os
.
impérios carolíngio e romano-germânico dos séculos ix a xi e te proibidas no começo do século iv, mas se tornam dominantes e,
sobre os seus sucessores. Após isto, os mercadores da Hansa e depois, exclusivas, antes de terminar esse século atormentado.
os monges-soldados da Prú ssia e da Estó nia asseguram a sua As conversõ es maciças e sú bitas, a subsistência de cultos
penetração, até aos confins da Rússia. arcaicos, os sincretismos e as heresias atestam que a religião da
O islame, outro rebento do monoteísmo do Próximo Oriente, maior parte dos povos, em todas as épocas, não é uma fé corres-
conhece uma aventura um pouco diferente, a contar do século vn. pondente ao ideal dos teólogos. No entanto, em todos os mundos
O ímpeto muçulmano começa por soldar muitos elementos de antigos, uma religião - ou uma gama de religiões - torna-se na
impérios anteriores, da Síria à Pérsia e do Egipto à Espanha, para pró pria forma do ví nculo social, na norma comum, no sistema
construir, em pouco mais de um século , um império que, de das referências que permitem ajuizar da vida corrente tal como
resto, se cindirá logo que constru ído, mas que se prolongará pela dos acontecimentos excepcionais. De tal modo que, nos dias de
extensão perseverante de uma rede mercantil pela qual o islame revolta, as indignações e as esperanças trazem um traje religioso.
atingirá a índia, a Insulíndia e até as Filipinas. Uma religião envolve o universo mental dos homens. Ela subme-
; Consideradas devidamente todas as variantes, são surpreen- te à sua hegemonia as suas raras actividades intelectuais especia-
dentes as conexões entre os impérios e as religiões universais. As lizadas e a sua vida prática.
religiões suficientemente depuradas, para convirem a povos
diversos, ganham terreno nos impérios em formação ou já forma-
dos, antes de se projectarem pelos povos vizinhos, vassalos,
clientes ou mesmo assaltantes a pacificar. As diferenças, de uma
i propagação religiosa para outra, explicam-se por parte pelos
! sobressaltos das políticas imperiais, mas dependem ainda mais
dos próprios aparelhos eclesiais.
As religiões universais são todas sustentadas por um clero
especializado cuja formação e cuja actividade dependem de um
aparelho constrangedor. Os santu á rios, igrejas, mosteiros e
outros lugares de culto são geridos por esse clero. Os textos
sagrados que instituem a sua doutrina - e que provêm de compi-

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