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MÚ LTIPLOS
MUNDOS ANTIGOS
(Das origens ao século xvm )
!
Cidades grandes
Antes da revolução industrial, dezoito cidades reuniram, pelo menos, um
milésimo da população pbnetária total (*) ; algumas passaram mesmo dos
três milésimos (**). Ref énda à população total do seu próprio mundo, a pro -
-
porção é muito maia elevada.
Circa 1700 a.C. Babiló nia (**) Circa 1100 d .C. Kaifeng (*)
450 a.C. Atenas (*) Séc. xm /xrv Tsiuan-tcheu (*)
300 a.C. Alexandria (*) Circa 1300 d.C. Linan (*)
100 a.C. Louiang (*) 1350 d .C. Cairo (*)
100 a 200 a.C. Roma (**) 1500 d.C. Hampi (*)
1700 d .C. Agra (*)
Do séc. v ao X! Constantinopla (**) 1700 d .C. Istambul (*)
Circa 700 d.C. Xi'an (Sian) (**) 1700 d.C. Tóquio (*)
950 d.C. Bagdade (**)
1000 d.C. Có rdova (*)
Fontes: Para a população: 30; para as populações urbanas: 4; para as denominações urbanas, ver
16 e 31.
todo o Sudeste Asiá tico. O avanço árabe-muçulmano em direcção
à Espanha , e depois em direcção à Insul í ndia, agita diversos
povos, sobretudo no Irão e na índia. Os impérios pré-colombia-
nos têm o mesmo efeito no México e nos Andes. Por toda a
parte, as errâncias se propagam em cascata.
Frequentemente, também, as migrações amalgamam povos
variados. Os germanos dos séculos v e vi e os eslavos dos sécu-
los viu e x são tão heteróclitos quanto o eram os gauleses quan-
do da conquista romana. Os á rabes que penetram na Espanha,
nos começos do século vm , contam muitos mais contingentes
recrutados no Egipto e no Magrebe que árabes de cepa directa.
Os povos migrantes são, por diversas vezes, sobejos de avalan-
cha , nunca puras correntes de neve.
:: O efectivo dos invasores toma sempre proporções grandiosas
entre os povos assolados. No entanto, as estimativas sérias que têm
podido ser estabelecidas reduzem as hordas imensas a alguns
milhares ou, mais raramente, a algumas dezenas de milhar de
migrantes. Um pouco mais, talvez, para os visigodos instalados na
Aquitânia e em Espanha, no começo do século v. Uns 30 000 ape-
nas, para os árabes que se apoderaram da Espanha visigótica no
começo do século VIII, antes de serem reforçados, ao correr dos
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séculos, por um fluxo de povoamento berbere (8-1, 61) . Mas é pre- tadas: a sua famí lia, a sua actividade, o seu habitat e todas as
1
ciso ainda distinguir, em cada povo , a minoria combatente , dos outras necessidades da sua vida prática, como todos os outros
milhares de mulheres, de crianças, de velhos e de escravos que a hábitos comuns da sua vida social (costumes, ritos, festas, etc.)
6 acompanham - e por vezes a reforçam. Em todas as épocas, os inscrevem-nos em múltiplos grupos de convivência que se im-
povos errantes que se aventuram em zonas densamente sedentari- põem a eles, com a força inerte dos usos tradicionais. Tomados
zadas, são neles muito minoritários. A força deles é a da necessida- nesta rede de grupos entreligados, os homens vivem todos jun-
de que os agita, da brutalidade que por vezes manifestam; mais tos, estão ligados num mesmo povo. Localmente , a interligação
ainda, ela resulta do temor dos povos já instalados. De tal maneira opera-se de facto, à escala dos grupos de trabalho e de habitat.
que , um pouco por toda a parte, os impérios bem estabelecidos A curta distância, ela é prolongada pelos laços de vizinhança e de
combatem a errância dividindo os bárbaros, recrutando entre eles permuta entre as comunidades sedentárias ou nómadas. A dis-
mercenários ou disseminando-os em terras livres, como os francos tância mais longa, formas de sociabilidade mais episódicas, mas
na Gália Setentrional. Ou, de maneira mais refinada, estendendo as igualmente constrangedoras, estabelecem, com fins cerimoniais,
marcas fronteiras, emalhadas de cidades e de campos militares; mercantis ou outros, ocasiões de encontros ou de permutas.
convertendo os recém-chegados a qualquer religião pacificadora O povo inscrito em tal rede de convivência só pode ir para
(n.° 5) ; ajudando mesmo os que chegavam tarde a fazerem amadu- além dos limites da vizinhança rural se sólidos pontos de apoio
recer os seus próprios Estados na órbita do império (n.° 5) . permitirem que se prendam redes múltiplas mais ou menos
semelhantes, umas às outras. As cidades oferecem a este respei-
to as melhores junções: cada uma constitui em torno de si uma
2 - OSPOVOS região - no sentido do latim pagus - que , por seu turno, pode ser
ligada, de cidade em cidade, a todo um cacho de regiões. Mas,
Os povos, cuja instalação é tão caótica, parecem constituir uma desde então, os povos espalhados numa região com uma cidade
medíocre unidade histórica. No entanto, eles são os mais resis- por centro ou num conjunto mais vasto, sustentada por toda uma
tentes dos agrupamentos humanos, apesar das transformações armadura urbana, requerem outros apoios para garantirem a sua
que sofrem. unidade. Por detrás das cidades, um Estado e diversos aparelhos
Cada povo é um agrupamento singular, um conjunto de ideológicos operam e contribuem para novas extensões da rede
homens co-detentores de uma mesma cultura e portadores de í dos grupos de convivência em que um povo se desdobra (n.° 6) .
uma identidade comum. A sua identidade colectiva pode ser rica E Salvo lacunas maiores da documentação sociológica, histórica
em ilusões e a sua cultura pode ser mais ou menos partilhada, 1; ou arqueológica, qualquer rede pode ser objecto de uma investi-
gação empírica e, portanto, qualquer povo pode ser devidamente
nos seus diversos aspectos materiais e intelectuais, por diversos
povos aparentados. Convém, por isso , fixar solidamente a refe- 1' referenciado e circunscrito, contanto, porém, que as distorções
renciação de cada povo, antes de reconhecer os seus emparelha- I de que a rede possa sofrer sejam, também elas, inventariáveis.
mentos ou de observar as suas transformações. I A mais importante destas distorções é de ordem linguí stica: a
Falando de modo estrito, um povo é o conjunto dos homens IE convivência, garante da unidade de um povo, supõe uma comuni-
reunidos numa mesma formação ideológica, quer dizer, numa cação permanente e completa, a qual se estiola por falta de lin-
estrutura tão pregnante como um Estado ou um modo de produ- guagem comum . Mas a comunicação não é apenas linguística:
ção, mas tendo outros traços distintivos e, na maior parte das í
usos e costumes insólitos, hábitos estranhos, ritos desconheci-
vezes, uma outra extensão. Em cada formação ideológica, todos dos, etc., provocam cortes, também eles. Assim, dois povos - ou
os homens estão ligados por uma rede de malhas muito aper- dois fragmentos de povos - justapostos ou misturados num
í
quer catástrofe - avalancha migratória, epidemia, guerra, etc. -
se separam logo que o perigo passa. indestrutíveis mas, afora as grand íssimas avalanchas de povos e as
O ideal seria poder reconstituir, para os mundos antigos, as for- guerras de extermínio - propriamente etnocidas os povos que
mas de convivência dos povos antes de eles entrarem em relação cresceram até este grau identitário e cultural não conhecem mais
uns com os outros, a fim de melhor dosear as respectivas colabora- que dois destinos: ou fundem-se em qualquer nação mediante um
ções nas suas amálgamas ulteriores. Gostaríamos, por exemplo, de I trabalho de dominante estatal ou escapam a este trabalho e são
reduzidos ao estado de fragmentos esparsos, num mundo progres-
seguir em pormenor a formação dos povos galo-romanos, ao norte
da Narbonesa, do século i ao século m; depois, a adjunção àqueles, sivamente cheio de Estados-nações (n.° 34) .
do século ui ao século v, dos povos francos alojados entre Seine e 1 Qualquer sistema mundial é um viveiro de povos desigual-
mente desenvolvidos. Enquanto o povoamento permanece dis-
Meuse, antes de outros povos germânicos terem vindo enriquecer I‘
essa mistura. Mas o principal documento, hoje disponível para se perso e os recursos permitem, esses povos podem proliferar
ajuizar destas transformações, não é suficientemente pormenoriza- espalhando-se. O afastamento distende ou rompe as redes, a
do: é, muito simplesmente, o velho fundo da língua francesa, antes sucessão das gerações deforma as linguagens e as tradições. Em
da sua depuração nos séculos clássicos. poucos séculos, os parentescos antigos dos povos apagam-se da
Os povos apresentam todos uma identidade forte e distintiva, lembrança deles e enterram-se no coração dos mitos, dos ritos e
a qual se exprime por uma denominação e por muitas outras 1 das palavras de que ulteriormente sábias pesquisas podem desa-
lojá-los. Mas novos parentescos se criam por efeito das relações
características: uma memória comum, uma história lendária, um 1 que os Estados mais vastos frequentemente favorecem: assim
feixe de normas e de ritos e assim de seguida, até cobrir toda a i
vida real e imaginá ria do povo assim identificado, em todos os aconteceu com os impérios romano e chinês, vastos congregan-
seus aspectos correntes. 3 tes de povos heteróclitos que as suas administrações e os seus
Podemos aproximarmo-nos desta identidade - ou desta cultu- exércitos impregnaram pouco a pouco de características comuns,
ra - através de duas vias principais. Uma, que é prática corrente ; nisso ajudados pelos sacerdotes e pelos mercadores. Ao longo do
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em etnologia, é a de prestar atenção aos próprios conteúdos da cul- tempo, estes parentescos novos manifestam-se primeiramente no
tura-identidade, de discernir os seus costumes e os seus sonhos jogo das trocas económicas e nos domínios especializados que os
originais, de a especificar na sua própria singularidade. A outra, aparelhos ideológicos e estatais lavram regularmente - justiça,
menos poética, mas não menos científica, é propriamente macros- religião, fiscalidade, etc. Eles afectam assim a linguagem corren-
sociológica, e é a de situar a identidade de um dado povo na escala te e, através deste vasto canal, revolvem pouco a pouco nos usos
dos desenvolvimentos culturais observáveis em sociedade, não e costumes menos especializados.
í
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uso fenício do alfabeto, dá uma melhor consistência às línguas, de
início pouco numerosas, que dela beneficiam. Este privilégio mani- 4 - EXÉRCITOS E DOMINAÇÕES
festa-se sobretudo pela propagação dos seus sinais para além da
sua á rea de origem. Assim , os Coreanos , os Japoneses e os Nos mundos antigos, as guerras foram frequentemente trava-
Anamitas receberão sucessivamente da China os seus ideogramas, das por guerreiros pouco numerosos, mas alguns bandos bastam
tal como os povos da Europa adoptarão o alfabeto romano. para dizimar ou submeter um povo exíguo. Daí o terror que pude-
O escrito é posto em relevo pelos escribas dos Estados e pelos ram causar os exércitos muito grandes, como o que Alexandre
sacerdotes das religiões do Livro , qualquer que seja este livro. conduziu à conquista da Pérsia {circa 330 a. C.) e que contava tal-
Deste modo se fixam as probabilidades de uma longa sobrevivên- vez 40 000 homens1, ou seja um efectivo superior ao de muitos
cia para o sâ nscrito, o hebraico , o latim, o á rabe e, de modo povos migrando por inteiro. O terror foi por vezes aumentado
menos religioso, para o grego dos pedagogos romanos e dos pelo carácter estranho e pela crueldade dos assaltantes. Assim foi
administradores bizantinos e para o chinês dos mandarins, lín- com os Mongóis, descendo para a Pérsia e para a Rússia, com
guas todas elas que beneficiam, além disso, de contribuições eru- quatro a oito montadas por cavaleiro, para renovarem os seus
ditas. As igrejas, com efeito, não hesitam em traduzir os seus tex- assaltos, e percorrendo imensas etapas: Temudjin torna-se
tos em todas as lí nguas que as suas ovelhas actuais ou potenciais Gengiscão em 1206; 15 anos mais tarde, ele é senhor de Cabul, a
falam, indo mesmo até inventarem para tal novos alfabetos, tal 3500 km das suas bases; dois anos mais lhe bastarão para dobrar
como sucedeu com o cirílico que adapta o grego de Bizâncio às esta distância estendendo as suas conquistas até Tabriz e Kiev.
necessidades das lí nguas eslavas e que, pela via dos impérios búl- Massas tais sã o , no entanto, raras. Os exé rcitos antigos
garos, se espalha na Rússia, a partir do século xi. engrossam sobretudo quando um povo, em perigo extremo, emi-
Em compensação, as elites cultas, que se formam muitas vezes gra em bloco e surpreende por vezes os exércitos dos impérios
na esfera de influência das igrejas, utilizam de maneira duradoura bem assentes dando-se por inteiro ao combate, até mesmo as
as lí nguas sagradas que elas tornam eruditas, quer dizer, aptas a mulheres e os velhos. Mas uma sociedade bem regulada, como a
tratar matérias que excedem as capacidades das línguas corren- repú blica romana, podia, em crise aguda, reunir até 10 por cento
tes. Algumas lí nguas tornam-se assim em vectores universais, à da população total no seu exército de cidadãos, ou seja 30 por
escala dos mundos respectivos. Algures onde mundos distintos cento mais ou menos de homens adultos1.
se entremeiam por algum tempo, a alta cultura reconhece-se nas Na maior parte das sociedades antigas, a participação no comba-
grandes bibliotecas e nas oficinas de tradutores e de copistas, te é um dever para todo o homem válido e livre. Ela marca a sua
sobretudo em Alexandria (até o último incêndio de 645) , em pertença à comunidade: daí a exclusão dos escravos, que tem pou-
Córdova (até à reconquista espanhola de 1236) , em Bagdade (que cas excepções. Em compensação, os Estados mais extensos substi-
um filho de Gengiscão pilhará em 1258), etc. Assim, uma hierar- tuem o chamamento de todos os homens pelo alistamento de con-
quia móvel estabelece-se entre lí nguas que sempre abundam: de tingentes, de tal modo que o serviço das armas se assemelha então
toda a palha dos dialectos usuais sai uma elite de línguas escritas ao tributo ou ao imposto. Um passo mais é dado no sentido da pro-
em que a preeminência caberia incontestavelmente às línguas fissionalização dos exércitos pelos impérios que recorrem aos ser-
promovidas pelo funcionamento dos impérios, se não fosse a per- viços mercenários de bandos vindos do exterior. Este método que
severança de algumas línguas sagradas e eruditas, mantidas por tenta moderar bárbaros marca também a desconfiança dos domina-
diversos aparelhos ideológicos. A isto se juntam, como se verá dores em relação aos povos submetidos de mais longa data.
(n.° 16) , algumas outras línguas privilegiadas pelos mercadores, Em todas as sociedades antigas, a verdadeira dificuldade está
para as suas próprias necessidades. em disciplinar de modo duradouro os exércitos. Frequentemente
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valorizam-se os homens de armas, nobilitam-se os seus chefes, A natureza das guerras torna-se mais clara quando se tê m
cantam-se as virtudes guerreiras dos prí ncipes. Assim louvada, a simultaneamente em conta as relações sociais internas dos
guerra torna-se num desporto primaveril, uma caça em que a Estados e as relações internacionais* em que estes estão empe-
matança, a violação e o saque, devidamente santificados, supri- nhados. R. Aron, autor avisado de Paix et Guerre entre les nations,
mem os interditos da vida corrente. A outorga de terras aos solda- não pode operar esta junção. Fiel a Weber, ele pensa que cada
dos-colonos ou o pagamento regular de um soldo são ainda melhor Estado tende a reservar para si o monopólio da violência na sua
garantia contra as frequentes deserções. Deste modo, a guerra pró pria á rea, enquanto as relações entre Estados comportam, por
conduz a uma invenção plena de futuro: o salariado (n.° 28). essência, a alternativa da guerra e da paz: da í « uma diferença
As raras inovações técnicas dos mundos antigos são frequen- essencial entre polí tica interna e política estrangeira».
temente estimuladas pela guerra. Os construtores de muralhas e Na realidade, Aron projecta sobre os mundos antigos uma
de fortes, os forjadores de armas e armaduras, mais tarde os
arquitectos navais e os engenheiros das máquinas de cerco, são
I diferença que talvez se tenha tornado essencial no seu tempo
(n.° 39) . Para todas as sociedades, até aos começos do século xx,
favorecidos pelos prí ncipes. Mas as verdadeiras inovações na
inclusivamente, a função primeira dos Estados, na ordem interna
arte da guerra têm mais que ver com a organização do que com
os instrumentos. Entre muitas outras invenções exploradas pelos tal como nas relações internacionais, é garantir a sua á rea de
estrategas, o emprego dos besteiros n ú bios pelos faraós, a utiliza- dominação e, se for possível, estendê-la. A sua área de domina-
ção dos hoplitas, da cavalaria pesada e dos carros pelos Gregos e ção, quer dizer, o espaço - ainda móbil ou já fixado -, do qual as
:
Maced ónios e depois a formação das legiões romanas ou a utili- classes dominantes no Estado considerado tiram os seus pode-
: zação da cavalaria rápida e ligeira pelos Árabes e Mongóis fize- res, o seu prestígio e os seus recursos; o espaço onde, de modo
; ram época. muito geral, estão situadas as suas propriedades, os seus domí-
De resto, os combates, as tácticas, os armamentos e as tropas nios, a sua gente, eventualmente os seus escravos. Esta área é
dão uma visão fenomenal das guerras, mas não explicam a perpé- para dominar, tanto quanto for necessário, contra as revoltas dos
povos recentemente submetidos e das classes dominadas de toda
tua repetição delas. O exame das causas imediatas dos conflitos
pouco mais é esclarecedor. As grandes jogadas dos príncipes que
alargam os seus domínios, dos herdeiros que disputam as suas
s a espécie, contra as dissen ções que poderiam enfraquecer a
ordem estabelecida, contra as incursões de povos do exterior
heranças, dos usurpadores desapossando as suas dinastias, são ainda não submetidos e contra os eventuais apetites de Estados
ricas em personagens e em incidentes pitorescos, mas conduzem vizinhos. Manutenção da ordem interna, defesa dos povos guar-
facilmente a uma sabedoria escassa em que a imutabilidade da dados pelo Estado, extensão da sua autoridade: deste modo, as
natureza humana e o eterno retorno das coisas sociais disputam guerras provêm de uma vigilâ ncia estatal, enfeitada de comove-
a palma entre si. A protecção dos povos sedentários e a errância doras variações sobre a glória dos prí ncipes, sobre a terra dos
dos povos desenraizados conduzem igualmente a uma curta evi- antepassados, e sobre a alma dos povos.
dência: os nómadas não têm nenhuma necessidade das cidades e : A natureza indissociavelmente internacional e interna das
incomodam os agricultores. A prevenção das revoltas internas, a guerras permite que se compreenda bem o que são os espaços e
reconquista dos Estados invadidos e a reconstrução dos impérios ;
desmembrados escapam a esta dialéctica simplista, mas insistem * De modo estrito, só pode haver relações internacionais entre nações ou
unilateralmente nas consequências de acções cujas origens per- Estados-nações, mas estabeleceu-se o uso de chamar internacionais ao todo
ou a parte das relações entre as sociedades ou os Estados do mesmo sistema
manecem brumosas. Em suma, as causas das guerras falam ape- mundial . De futuro , emgregarei pois este termo sem aspas, mas com reservas
nas das suas circunstâncias, não da razão de ser delas. que a discussão teórica eliminará pouco a pouco (n . ° 39) .
Após milénios de um trabalho religioso, rico em inovações lações frequentemente tardias - são interpretados pelos doutores
- entre elas o monoteísmo que sela a aliança das tribos judai- da fé, em hierarquias diversas, mas por toda a parte reconheci-
cas -, o Próximo Oriente produz, pelo seu lado, uma religião que dos, salvo cisma ou heresia. Os novos monges e sacerdotes são
se espalha pouco a pouco no universo romano. Esse cristianismo, formados e validados segundo procedimentos explícitos.
tú rgido de heresias diversas, cinde-se após o desaparecimento do Os Estados jamais ignoram estes aparelhos eclesiais. Muitas
império do Ocidente. Com diferença de alguns grupos isolados, vezes, incorporam-nos ao lado dos seus exércitos, quer em posição
ele desaparece da África e da Ásia, ao mesmo tempo que Roma e exclusiva e preeminente - a teocracia a tanto obriga - quer compe-
Bizâ ncio dali são expulsas pelos Árabes, seguidos dos Otomanos. lindo-os a uma certa tolerância, se a diversidade dos povos domina-
Na Europa, onde penetra lentamente, a partir do perímetro medi- dos o impõe. Pelo menos, os assuntos religiosos são vigiados de
terrâ neo, a sua sobrevivência e a sua divisão são consagradas, no bastante perto , incidindo a desconfiança sobretudo nas seitas
Oriente, pela conversão bizantina dos Búlgaros e, depois, dos novas. Uma das evoluções mais interessantes a este respeito é a de
Russos, e , no Ocidente, pela autoridade do Papado sobre os Roma, onde as igrejas cristãs, por vezes perseguidas, são firmemen-
impérios carolí ngio e romano-germâ nico dos séculos IX a xi e te proibidas no começo do século rv, mas se tornam dominantes e,
sobre os seus sucessores. Após isto, os mercadores da Hansa e depois, exclusivas, antes de terminar esse século atormentado.
os monges-soldados da Prússia e da Estónia asseguram a sua As conversões maciças e súbitas, a subsistência de cultos
penetração, até aos confins da Rússia. arcaicos, os sincretismos e as heresias atestam que a religião da
O islame, outro rebento do monoteísmo do Próximo Oriente, maior parte dos povos, em todas as é pocas, não é uma fé corres-
conhece uma aventura um pouco diferente, a contar do século vn. pondente ao ideal dos teólogos. No entanto, em todos os mundos
O í mpeto muçulmano começa por soldar muitos elementos de antigos, uma religião - ou uma gama de religiões - torna-se na
: impérios anteriores, da Síria à Pérsia e do Egipto à Espanha, para própria forma do vínculo social, na norma comum, no sistema
!' das referências que permitem ajuizar da vida corrente tal como
construir, em pouco mais de um século , um império que, de
resto , se cindirá logo que constru ído, mas que se prolongará pela dos acontecimentos excepcionais. De tal modo que, nos dias de
extensão perseverante de uma rede mercantil pela qual o islame revolta, as indignações e as esperanças trazem um traje religioso.
atingirá a índia, a Insulíndia e até as Filipinas. Uma religião envolve o universo mental dos homens. Ela subme-
Consideradas devidamente todas as variantes, são surpreen- te à sua hegemonia as suas raras actividades intelectuais especia-
dentes as conexões entre os impérios e as religiões universais. As lizadas e a sua vida prática.
religiões suficientemente depuradas, para convirem a povos
diversos, ganham terreno nos impérios em formação ou já forma-
dos, antes de se projectarem pelos povos vizinhos, vassalos,
clientes ou mesmo assaltantes a pacificar. As diferenças, de uma
propagação religiosa para outra, explicam-se por parte pelos
sobressaltos das políticas imperiais, mas dependem ainda mais
dos próprios aparelhos eclesiais.
As religiões universais são todas sustentadas por um clero
especializado cuja formação e cuja actividade dependem de um
aparelho constrangedor. Os santuá rios , igrejas, mosteiros e
outros lugares de culto são geridos por esse clero. Os textos
sagrados que instituem a sua doutrina - e que provêm de compi-