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Usos e costumes do psicanalista e “transcendência da transferência”

Paulo de Carvalho Ribeiro

“Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo

descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma

apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se

desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna

na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados

pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do

tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes.”[1]

Este parágrafo introdutório do texto de Freud sobre o início do tratamento poderia ser

reconfortante para os que buscam se iniciar na prática psicanalítica se pudéssemos

identificar com facilidade os mestres da clínica psicanalítica. Freud deveria ser o maior

deles e, no entanto, basta ler os casos do pequeno Hans, do Homem dos Lobos e de

Dora, para mencionar apenas alguns dos mais conhecidos, para que constatemos os

tropeços, os equívocos e os arrependimentos muitas vezes admitidos pelo próprio Freud,

outras vezes perceptíveis apenas à luz dos desenvolvimentos da teoria e da técnica ao

longo dos mais de cem anos de existência da psicanálise. Atualmente, a existência de

diferentes correntes psicanalíticas dificulta mais ainda o estabelecimento de mestres

amplamente reconhecidos: dificilmente os mestres lacanianos seriam reconhecidos com

tal pelos bionianos ou winnicottianos; da mesma forma que os expoentes de cada uma

dessas duas últimas correntes dificilmente seriam reconhecidos mutuamente ou pela

primeira corrente aqui mencionada. Partimos, portanto, desta constatação de que a

existência de mestres tornou-se incerta, para abordarmos o tema dos usos e costumes do

analista.
A prática da psicanálise tem como um de seus fundamentos mais bem estabelecidos o

caráter altamente individual da escuta, das interpretações e demais intervenções

realizadas no curso de uma análise. Esta especificidade do atendimento clínico convive,

no entanto, com a constância de certos usos e costumes que cada psicanalista incorpora

à sua forma de ser e de se apresentar diante de seus pacientes, o que o expõe a

determinados riscos de cristalização da conduta ou de ritualização de alguns aspectos

dos atendimentos. Mesmo as práticas clínicas instruídas pelas teorias mais críticas dos

aprisionamentos imaginários e dos riscos da sugestão e dos efeitos hipnóticos não se

encontram imunes ao desenvolvimento de usos e costumes, com seus eventuais efeitos

danosos na condução das análises. Na verdade, as próprias teorias têm o poder de


engendrar cacoetes e rituais, de tal forma que não seria tarefa difícil identificar a

orientação teórica de um analista pela simples observação de seu modus operandi.

Diante da inevitável adoção de usos e costumes pelo psicanalista, torna-se

imprescindível refletir sobre o papel da formação do analista no estabelecimento e

controle dos mesmos. Questões como o manejo da remuneração das sessões, as

maneiras de cumprimentar e de despedir-se dos pacientes, as formas de lidar com

eventuais encontros entre analista e paciente fora do consultório, entre outras, têm

também sua importância na formação de psicanalistas pelo simples motivo de que elas

têm uma incidência sobre o desenrolar da análise e podem ser determinantes de seu

sucesso ou fracasso. Discutir os usos e costumes dos analistas significa, portanto,

explorar uma das vertentes do tema mais amplo que é a formação do analista e, ao

mesmo tempo, retomar sob uma perspectiva ainda pouco explorada a reflexão sobre a

técnica da psicanálise.

Até que ponto um psicanalista pode permitir-se adotar modos, usos e costumes que se

mantenham os mesmos independentemente das características particulares de cada

paciente? A rigidez na manutenção desses usos e costumes tenderia, em última

instância, a produzir um efeito seletivo sobre a clientela, de tal forma que a cada estilo
de psicanalista corresponderia um determinado tipo de paciente. Se por um lado é
verdade, como dissemos, que não é possível fazer o expurgo total dos efeitos

imaginários relacionados a determinadas características do analista (que vão desde

sua aparência física até os objetos de decoração de seu consultório); por outro lado é

também verdade que o analista deveria ter uma boa consciência desses efeitos e alguns

recursos para impedir que eles produzam ou alimentem resistências. Deveríamos, então,

ficar atentos aos cacoetes que balizam nossa conduta nas entrevistas preliminares?

Deveriam nossos usos e costumes sofrer alguma variação de acordo com o quadro

clínico que se apresenta, com o diagnóstico que fazemos e com os "usos e costumes"

sintomáticos de nossos pacientes? Diante, por exemplo, de um obsessivo que faz da

pontualidade no comparecimento às sessões e no pagamento mensal das mesmas uma


forma de cultivar seu sintoma, deveria o analista produzir atrasos premeditados ou

solicitar pagamento em dias não previstos?

Ao lançar mão desses recursos, ele estaria certamente tentando evitar essa espécie de

efeito hipnótico que muitos pacientes insistem em produzir no analista na tentativa de

desarmá-lo, para assim preservar as cristalizações egóicas com as quais se protege. Por

outro lado, esses recursos não poderiam se tornar uma forma reativa de mostrar

susceptibilidade às investidas paralisantes do paciente? O que poderia ser, afinal, uma

conduta técnica capaz de assegurar ao psicanalista uma definitiva superação da

confrontação imaginária de “eus”?

Esta questão nos conduz a uma outra, mais abrangente, sobre a qual precisamos refletir

antes de apresentarmos nossas conclusões sobre os usos e costumes do psicanalista.

Até que ponto podemos, ainda hoje, esperar que o desenlace de uma análise coincida,

como preconizava Lacan[2], com a consumação das miragens narcísicas que alimentam

o eu e alienam o sujeito de seu desejo inconsciente? O manejo do tempo das sessões de

acordo com uma lógica que respeita o percurso do significante e não o dos ponteiros do

relógio; a instituição do imprevisto e do inusitado, na forma de um ato analítico; a

arbitrariedade ao estipular o valor e a forma de pagamento da análise; todos estes e

outros recursos técnicos, que pretendiam substituir a falácia hermenêutica das


interpretações convencionais, já não convencem nem seduzem tanto quanto o fizeram
nos meios psicanalíticos brasileiros nas décadas de oitenta e noventa do século passado.

Entre a seriedade da proposta técnica coerente com as elaborações teóricas e sua

transformação num festival de malabarismos e “firulas” inconseqüentes, a distância

revelou-se muito pequena. Além disso, numa época, como a atual, em que a ocorrência

de cristalizações egóicas e engessamentos adaptativos das identificações tornaram-se

quase um luxo nos consultórios de psicanálise, numa época, portanto, de subjetividades

à deriva, as preocupações com o combate às miragens narcísicas, pelo menos aquelas

dos pacientes neuróticos, tendem a se tornar anacrônicas.

Não se trata então de reduzir o problema dos usos e costumes do psicanalista à questão

dos efeitos imaginários que eles podem produzir na análise. Trata-se de reconhecer que
os obstáculos ao bom andamento de uma análise são muito mais complexos e que as

marcas pessoais do analista poderão trabalhar contra ou a favor desse bom andamento.

Os efeitos imaginários são inevitáveis e podem inclusive ser desejáveis em

determinadas circunstâncias, já que o endereçamento transferencial ao outro,

indispensável para que uma análise aconteça, não requer que a alteridade em questão se

sustente na ausência absoluta de uma personalidade (ou “pessoalidade”), o que seria

impossível; nem na obstrução obstinada da emergência dessas marcas pessoais, o que é

possível até certo ponto, porém passível de produzir um paradoxo: a transformação de

tal obstinação na própria personalidade, na marca superlativa do aprisionamento

imaginário do analista. A preservação da alteridade independe, ou depende muito

pouco, das pequenas abstinências relacionadas ao eu do analista. Ela depende, no

entanto, de uma grande abstinência relacionada à dimensão transcendente da

transferência, tal como explicitaremos em seguida. Em outras palavras, pouco ou nada

importa para a preservação do lugar da alteridade na análise que o paciente saiba, por

exemplo, se o analista é casado ou solteiro, homo ou heterossexual, mineiro, argentino

ou paulista, etc. Importa muito, por outro lado, que o analista saiba evitar que esses

dados, que podemos chamar de biográficos, impeçam ou perturbem sua própria abertura

à alteridade. Tratemos então da transcendência da transferência afim de clarearmos


nossas proposições.
Ao tomar o analista como suposto-saber na transferência, o sujeito encontrar-

se-á diante de duas grandes possibilidades que definirão as condições de sucesso ou

fracasso da análise. Existe uma sólida concordância, pelo menos na psicanálise francesa,

quanto à existência desta encruzilhada no início de todo processo analítico e quanto às

duas direções possíveis: ou bem o analista é capaz de sustentar uma abertura ao

desconhecido e neste caso uma análise torna-se possível; ou bem ele resvala para uma

posição de detentor de um saber sobre o candidato à análise, tornando-a inviável. São

várias as formas de se teorizar sobre estas alternativas e vários os nomes e conceitos

criados em torno desta questão. Tomaremos aqui as contribuições de Jean

Laplanche[3] sobre este tema, para destacar a idéia de transcendência da transferência,


que nos parece particularmente esclarecedora das vicissitudes da transferência e,

consequentemente, dos destinos do processo psicanalítico.

Laplanche denomina transcendência da transferência a capacidade do

psicanalista de sustentar uma abertura irrestrita aos enigmas que se originam em sua

própria sexualidade e na dimensão de alteridade que esses enigmas conferem ao

inconsciente. Laplanche propõe que se supere a falsa idéia de neutralidade absoluta do

analista, apontando para o fato de que ele jamais poderá livrar-se do trauma resultante

de uma sedução inerente às condições originárias do sujeito psíquico. Sua tarefa na

condução de uma análise seria então assegurar que a transferência se dê neste nível:

uma transferência do paciente com o enigma do psicanalista[4], enigma este oriundo do

que lhe foi transferido pela sedução involuntária e generalizada da qual nenhuma

criança escapa. Isto significa uma transcendência daquilo que funda a relação

transferencial. Contrariamente ao que poderia ser considerado uma transferência

“plena”, na qual o analista se tornaria o depositário daquilo que o paciente supõe poder

encontrar ou adquirir, interessa à analise a transferência “oca”, ou seja, aquela em que o

paciente identifica no analista o mesmo buraco, a mesma abertura para a dimensão de

alteridade.

Podemos então concluir que os usos e costumes do analista devem ser


avaliados a partir desta perspectiva. Nenhum uso ou costume traz em si mesmo a
definição do efeito particular que ele poderá produzir na análise de cada paciente. Cabe

ao analista a vigilância dos efeitos de suas marcas pessoais, não no sentido de querer

liquidá-las, mas no sentido de conhecer os eventuais vínculos dessas marcas com seus

próprios enigmas e as vicissitudes particulares desses usos e costumes na transferência

gerada em cada análise. Quanto mais eles puderem alimentar o enigma, maiores as

chance de que a transcendência da transferência seja assegurada.

[1]
S. Freud, (1913) “Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise I)” in Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XII, Rio de
Janeiro, Imago, 1969, p. 164.
[2]
J. Lacan, (1954-1955) O seminário – livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
[3]
J. Laplanche, « Du transfert : sa provocation par l’analyste », in La révolution copernicienne
inachevée, Paris : Aubier, 1992.
[4]
Cf. J. Laplanche, « The drive and its source-object : its fate in the transference » in Essays on
otherness, Londres : Routledge, 1999.

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