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COLÔNIA DE BARBACENA (Nome provisório)

ENTRADA DO PÚBLICO

Música: Recordando (Lenine)

(A encenação inicia-se na entrada do público. O público avista os atores e atrizes dispostos no


palco de forma separada, seus corpos balançam como se estivessem dentro de um trem... Luz
contra predomina a cena, azul é a cor predominante. No palco há fumaça e bacias de alumínio
dispostos nas laterais e fundo do palco, dentro das bacias roupas iguais aos dos internos de
Barbacena/atores e atrizes submersos num líquido avermelhado, na mesma direção das bacias
e presos nas varas do teatro cordões de sisal com ganchos, este é o cenário. Toca-se o primeiro
sinal… o segundo… o terceiro. Este é o Início da encenação.

CENA 1 - Porque eu vim parar em Barbacena?


Música: The Cycle of Violence

Louis: O que vocês estão olhando? Vocês acham que é errado? A igreja autorizou! O Estado
autorizou! A Família autorizou! Todos vcs sabem que esses indesejados são invisíveis… Escória
da Sociedade. Lixo do Mundo. Putas… Viados… Drogados… Filhas… mães e pais… crianças…
Crianças!!! Merecem ficar entre eles. Isolados, em colônia, na Colônia.

Hospital Psiquiátrico Colônia de Barbacena fundado em 1903 funcionou até 1994… Matou
mais de 60 mil pessoas… as vezes morriam 16 pessoas por dia… dia após dia…dia após dia… dia
após dia. A morte era certa. Como eles poderiam viver entre nós? Frequentando os mesmos
lugares que eu, que você? Você se sente confortável ao lado de uma puta? Não? Manda pro
Colônia. Você se sente confortável ao lado de um viado? Não? Manda pra Barbacena. E você…
se sente confortável ao lado de uma esposa traída?... de uma criança agitada?... de um usuário
de maconha?... de um preto?...de um pobre? de alguém que perdeu os documentos?... Manda
pro Hospital Psiquiátrico Colônia de Barbacena. Imagina só, sua amante caminhando com sua
indesejada prole na rua. O que sua esposa pensaria? Ou pior o que a sociedade iria pensar em
ver um casal do mesmo sexo andando de mãos dadas, ou um drogado, um drogado vivendo
livre como nós? O que leva um ser decente a querer viver com loucos? O que leva alguém a
loucura? Não… não somos más pessoas. Somos pessoas do bem…de bem. Somos todos uma
família. Pela pátria… pela Moral… Pelos costumes… Por Deus! Por Deus!

Liz: ficou 34 anos preso.

Theo: 34 anos.

Tiburcio: 34 anos.
Gui: 34 anos preso por conta da caneta de um delegado.

Liz: Culpado.

TodEs: CULPADO!

Filó: Podem envergonhar sua família.

Rafael: Ela é uma vergonha para a família.

Lara: Eu não posso envergonhar minha família.

(TodEs olham para Lara)

Gy: Mas ela não é louca

TodEs: (murmurando e criando o corpo de louco): Para por favor! para por favor.

Gy: Mas ela não é louca.

Todos: MAS EU NÃO SOU LOUCA(O).

Louis: Ela é louca SIM!

TodEs: CULPADO!

Gi: Que horas apagam as luzes?

Theo: 18hrs

(Ao mesmo tempo, TodEs: Tic, tic).

Gui: 19h30

Fê: 20h

Débs: Apaga às 21hrs!

TodEs: (Tic, tic).

(Pausa de alguns segundos, ainda com o som de tic.)

Theo: Tá chegando mais um trem de doido.

(Algumas pessoas se dirigem para frente das bacias com os elementos. Os outros formam as
posições de quatro cenas distintas. Marido e esposa. Pai e Delegado de Polícia. Homem e
Amante. Mãe e Padre. São quatro locais diferentes.)

Subcena: Marido e Esposa

Letícia/esposa: Você não pode fazer isso com a nossa filha!

Gabriel/ Marido: Ela envergonhou a família…


Letícia: Mas não foi ela. O que ela poderia fazer?

Gabriel: Está decidido e pronto.

Letícia: E o que eu vou fazer aqui sozinha sem a nossa filha?

Gabriel: Você pode cuidar da casa…Tem muita coisa para se fazer aqui.

Letícia: Mas ela é apenas uma menina!

Gabriel: (Gritando) Uma mulher! Uma vagabunda que se engraçou com um homem.

Subcena: Mãe e Padre

Gyovana/Mãe: Mas Padre… A menina só fica pelos cantos. Não conversa com ninguém. Ela
está triste como se a vida não valesse nada.

Filó/ Padre: Qual a idade da menina?

Gyovana: Vai fazer 15 padre.

Filó: É uma idade muito perigosa. Não é mesmo?

Gyovana: Perigosa porque Padre?

Filó: É quando as meninas deixam de ser meninas. E as mulheres que surgem dentro delas
passam a sentir determinadas coisas. Ela tem namorado?

Gyovana: Não… Quer dizer. Um rapazinho começou a se engraçar para o lado dela, mas o pai
já deu um basta. O menino era até boa gente.

Filó: Melhor. O Coronel é um homem precavido.

Gyovana: Mas padre. Porque será que ela não tem vontade para nada, nem pra viver? Fica
trancada no quarto o dia inteirinho.

Filó: Você já pensou que isto pode ser um problema com a cabeça dela?

Subcena: Pai e Delegado

Louis/Delegado: O senhor quer que eu abra a cela para ele sair?

Theo/Pai: Não. Não seu Delegado. A lei é para todos. É um arruaceiro de merda e tem que
pagar pelas suas atitudes. Porra. Maconha?

Louis: Sim… ele foi preso por portar…

Theo: (interrompe) Por portar maconha! Eu sei. Ele simplesmente envergonha a mim, a sua
mãe… e a irmã dele. O que ela vai pensar quando crescer e souber que tem um irmão… um
irmão drogado. Mas eu vou resolver isso.

Subcena: Homem e amante

Godoy: Mas como você pode engravidar?


May: Eu estou grávida! E pronto. Como que a gente engravida se não é f…

Godoy: Mas eu tenho uma mulher… quero construir uma família. Você é só uma…

May: Sou uma o que?... Fala! Eu não posso ficar com esta criança sozinha. O que vão pensar de
mim. O que vão pensar de você?

Godoy: Ué… se embarraca com homem casado e não quer ser mal falada?

May: Olha aqui seu Filho da Puta! Se você quiser eu posso abrir o bico e…

Godoy: Não!!! Tudo menos isso. Eu tenho que dar um jeito.

May: Esta mulher nem pra te dar filho presta. Interna essa praga.

Letícia/esposa: (exaltada) Não chama nossa filha de vagabunda!

Gabriel/ Marido: (Gritando) É uma vagabunda sim… Só me faltava estar prenha. O que vão
falar de nós.

Theo: O que vão falar de mim?

Filó: O que vão falar da sua família?

Letícia: Foi o seu irmão quem abusou da nossa filha.

Gabriel: Mas ela quem deu moral para ele. Que menina que se preza, de família, fica
brincando em frente a um homem adulto.? A culpa é dela.

Theo: A culpa é dele. Vai ter que pagar pelos seus atos.

Gyovana: Padre… O senhor acha que isto é coisa da cabeça dela?

Letícia: Isso é coisa da sua cabeça!!! Você está louco.

Gabriel: (dá um tapa na cara da mulher) Quem manda aqui sou eu. Ela envergonhou a nossa
família.Ela é uma vergonha.

Godoy: Não posso envergonhar a minha família.

Filó: Pense que ela pode estar assim por conta desse rapazinho. Pode envergonhar a sua
família.

Louis: Temos um lugar especial que costumamos deixar gente arruaceira.

Filó: Já pensou em levá-la para o Colônia?

Gyovana: Colônia?

Gabriel: Ela vai para Barbacena e pronto

Letícia: (Exaltada) Mas ela não é Louca!

Louis: Hospital psiquiátrico Colônia de Barbacena.


CENA 2 - COREOGRAFIA-TREM DE DOIDOS

Música: O Cortejo (Lenine)

(O Coro se junta e realiza movimentos coreografados. No ponto certo da música existe um jogo
de duplas… alguém tenta fugir e a outra pessoa a puxa pelas pernas… e isso se repete
sucessivamente e repetidas vezes. Ninguém quer ir à Colônia. Os corpos se cansam)

CENA 3 - Enfermeira
(No foco central uma atriz/enfermeira/Lara se arrumando para seu primeiro dia de trabalho.
O som de trem dá uma camada sonora. Enquanto os textos são ditos o coro de loucos fazem
movimentos)

Rafael: O antigo Arraial da Igreja Nova de Nossa Senhora da Piedade da Borba do Campo
amanheceu especialmente frio naquela segunda-feira de 1975. Uma espiada pela janela azul
de madeira indicava que a neblina típica dos meses de julho tomava conta da rua Demétrio
Ribeiro, no bairro Santo Antônio. Lá dentro da casa rosa, Marlene Laureano se preparava para
sair...

(coro de loucos olham para atriz/enfermeira/Lara. O foco se acentua)

Theo: Filha de mãe italiana e pai descendente de índios, a moça de vinte anos estava
apreensiva. Antes das 5 horas da manhã, ela deixou o quarto e seguiu em direção a cozinha,
onde a mãe esquentava o leite no fogão à lenha... (Lara/enfermeira vai em direção a mãe
seguindo em direção a o lado esquerdo do palco... mãe entrega uma caneca de alumínio
vermelha)

(Coro de loucos se movimentam sempre para o lado oposto de onde vai a enfermeira)

Filó: Vestida com calça de linho roxo e blusa rosa de algodão, roupa que só usava em ocasiões
especiais, tomou o rápido café, despedindo-se em seguida...

(Mãe beija a testa da filha. )

Tibúrcio: Já na rua o ar gelado cortava o rosto da jovem. Fazia uns 8 graus, mas a sensação era
de temperatura negativa. O clima de temperaturas para os padrões brasileiros ainda é uma das
características de Barbacena, cidade encravada na Serra da Mantiqueira, o maciço rochoso de
Minas Gerais.

Guilherme: O barulho que o sapato de solado de aço fazia ao tocar as ruas de pedra
confirmava que Marlene tinha pressa. Trinta minutos de caminhada, e lá estava ela de frente
ao pontilhão que separava aquele lugar do resto da vila.

Godoy: Apesar do tamanho, o complexo não poderia ser visto do lado de fora, por causa da
muralha que cercava todo o terreno. Lá dentro, a dimensão daquele espaço asperamente
cinza, tomado por prédios com janelas amplas, porém gradeadas, impressionava. Marlene
ainda pôde perceber no pátio alguns bancos cinzentos. Ao final do trajeto, ela parou em frente
ao Afonso Pena, um dos sete pavilhões com cerca de 1.5000 metros quadrados. Fechada por
fora, a porta de madeira que dava acesso aos dormitórios começava a ser aberta.

Lara: Meu nome é Marlene Laureano da Silva e eu tinha apenas 20 anos quando conheci o
inferno na terra, o Colônia de Barbacena. Antes de entender tudo que eu iria presenciar pensei
que a aprovação naquele concurso como atendente psiquiátrica era uma benção, seria uma
baita ajuda pra minha família, mas isso foi antes, antes de eu entender o que era aquele lugar.

Apesar da minha pouca idade eu já vi sim muita maldade e escassez, mas absolutamente nada
se compara ao Colônia. Tudo naquele ambiente parecia um pesadelo, a fome dos internos, o
descaso com a sua saúde. Eu nunca vou esquecer aquela imagem das pessoas peladas se
arrastando no chão e bebendo água do esgoto.

No final do primeiro dia de trabalho, quando recebi a tarefa de lavar o pavilhão e colocar pra
secar o capim onde eles dormiam, eu tive a certeza de que não ficaria lá.

Cheguei em casa ainda em pânico com o que vi, mas quando minha mãe perguntou sobre meu
primeiro dia, eu não tive coragem de contar. Passei aquela primeira noite acordada dizendo
pra mim mesma que nunca mais pisaria lá. Eu pensei em desistir mas eu não queria
decepcionar meu país, numa família grande e simples como a nossa, passar num concurso era
impensável. Eu não podia sair dali. Então no dia seguinte eu voltei. E voltei no outro dia…e no
outro…e no outro… e no outro. Todo dia de trabalho revivendo esse pesadelo eu só pensava
na minha mãe dizendo:

Liz: Filha… como foi seu dia?

Débora: Filha… Que orgulho de você.

Fefa: Filha… Você foi aprovada num concurso… Que orgulho!

Letícia: Filha… Você é o pilar desta família!

Gyo: Filha… você vai se atrasar para o trabalho…!

Gio: Filha… Você seja grata pelo seu emprego.


May: Filha… é isso mesmo que você quer?

Lara: Não! Não! Não!... Eu não quero isso… nunca quis. (Gritando) NÃO!

(Marlene grita em Silêncio)

Lara: Um dia eu entrei e evitei pisar naqueles seres desfigurados, mas eram tantos, tantos…
tantos… que não havia como desviar. Só tive tempo de pensar que o mundo havia acabado e
não tinha sido avisada. Ainda com os pensamentos descoordenados avistei… lá longe… um
cadáver misturado entre os vivos. Observei quando dois homens de jaleco branco
embrulharam o morto no lençol, o décimo sexto naquele dia.

Pensando em ajudar, eu decidi que, com parte do meu salário, eu compraria latas de leite, e
fui guardando cada vez mais latas. Com as latas entocadas, consegui aos poucos levar algumas
até o Colônia, era óbvio que aquilo não iria salvar os internos, mas pelo menos as crianças não
morreriam de fome.

A cada momento vivido ali, eu sentia minhas forças indo embora e pedia socorro a Nossa
Senhora. Quando achei que já tinha visto toda maldade possível, as enfermeiras me
apresentaram a terapia de choque e eu só pensava em desespero: “Meu deus, eu não vou dar
conta. Eles vão morrer”. Eles vão morrer…eles vão morrer!!!! (Sai e se coloca na cena de
eletrochoque)

CENA 4 - ELETROCHOQUE
(Atores e atrizes se posicionam em frente as bacias… retiram as roupas… molham e a
penduram novamente… o som da água escorrendo é perceptível… )

Filó: Antonio Gomes da Silva, ou Cabo como era chamado, foi levado para o hospital aos vinte
e cinco anos. Por quê? Ele nunca soube. Cada um fala uma coisa. Dizem que o desemprego se
somou à "bebedeira", levando-o à prisão. Da prisão para o Colônia. Antes de entrar no
hospital, onde permaneceu por 34 anos, como um animal (Atores e atrzis fazem movimento de
coice no ar) foi classificado pelo seu sexo, idade e características físicas. Suas roupas foram
retiradas, seu cabelo raspado, passou por um banho gelado e foi levado ao Departamento B,
ao lado de outros homens. 34 anos!

Gabriel: 34 Anos!

Filó: 34 anos!

Theo: 34 Anos!

Filó: 34 anos por conta de uma bebedeira! 34 anos impostos pela caneta de um delegado!

TodEs: C.U.L.P.A.D.O!
Filó: 34 anos nu! Dos 34 anos, 21 ficou calado, porque ninguém sequer se importou em ouvir
sua voz. “Uai ninguém perguntou!”.

(TodEs olham para ele)

Filó: assinava os documentos com a digital, mesmo sabendo escrever. “Uai ninguém
perguntou!”.

(TodEs olham para ele)

Filó: Mesmo liberto do cativeiro “Que horas se apagam as luzes aqui?”

Gui: 19h30

Fê: 20h

Débs: Apaga às 21hrs!

Filó: Cabo continuou acordando todas as noites com o suor umedecendo o pijama e sempre
com a mesma sensação de terror. O pesadelo do eletrochoque o mantinha prisioneiro do
Colônia. Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos
pés para que fosse amarrado ao leito. Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada
à força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cortada durante as
descargas elétricas. Aplicado a seco. Sem anestesia. O que acontecia com ele depois da
sessão? Ele nunca soube. Perdia a consciência.

(Atores e atrizes pegam as pontas do tecido imersos na água… conectam ao Filó que reluta…
Retornam aos seus lugares… enquanto isso alguns atores e atrizes usam um equipamento de
choque…. Filó Dança até o fim da música).

CENA 5 - Grávidas

(Enquanto Liz e Gio retiram os nós de Filó… Um a um… o grupo de atores e atrizes estão
posicionados em frente as bacias e cantam. Inicia baixo e tranquilo e vai se tornando agressivo
e violento… A canção vai até colocar os tecidos vermelhos em Liz e Gio)

TodEs: "Ô seu Manoel, tenha compaixão

Tira nóis todas desta prisão

Estamos todas de azulão

Lavando o pátio de pé no chão.


Lá vem a bóia do pessoal

Arroz cru e feijão sem sal

E mais atrás vem o macarrão

Parece cola de colar balão (...)

e Depois vem a sobremesa

Banana podre em cima da mesa

E logo atrás vem as funcionária

Que são as putas mais ordinária"

(Liz e Gio dizem o texto e ao decorrer vão pendendo com o corpo para frente… Os tecidos a
seguram)

Liz: Meu nome é Sueli Rezende, uma vez fui impedida de ser mãe, mas antes disso não me
permitiram ser filha. Desde pequena sofro com crises de epilepsia que me afastaram do
convívio dos meus pais. No grupo em que eu estudava tive que trocar favores sexuais por
merenda.

Gio: Meu nome é Geralda Siqueira, com 11 anos fui levada para trabalhar em uma casa de
família. O chefe da família era advogado e tinha um escritório no andar superior. Com 14 anos
eu era responsável por tudo lá e quando sobrava tempo brincava escondida com a boneca de
pano que eu mesma costurei. Um dia enquanto eu lavava o banheiro principal de casa, ele
chegou. Estava diferente. Seus olhos eram assustadores. Não falou nada, apenas me agarrou.
Começou beijando meu pescoço e me pressionando na porta.”

(Os atores que seguram as pontas do tecido começam a girar os panos como uma
engrenagem… Uma máquina que fabrica loucos)

Liz: (enquanto fala a dupla de atores se junta…e traz Liz para perto) Devolvi com violência toda
a crueldade que sofri. Agi sem piedade comigo mesma e com os outros. Usei grampos para
ferir os pulsos, enfiei um cabo de vassoura na vagina, arranquei meu próprio dente. A cada
sessão de eletrochoque, eu espalhava o mesmo terror que me era imposto. Fui espancada
várias vezes, inclusive pelas minhas colegas de pavilhão, e colocada nua na cela apesar do frio
que cortava a minha pele. (Vira de costas… segura o pano vermelho como se fosse o filho)

Gio: Eu estava tão assustada que eu não consegui gritar. Não consegui me mexer. Não
consegui fazer nada. Simplesmente não consegui. Depois eu tentei pedir ajuda as filhas dele e
elas me disseram:

(Atrizes com corpo de loucas)

Fefa: Ele é assim mesmo, esqueça isso.

Débora: Meu pai já fez isso comigo… Eu contei pra minha mãe mas ela não acreditou em mim.
Letícia: Ele já passou a mão em mim… aqui. (passa a mão nos lugares que o pai já violentou) E
eu contei pra minha mãe… meu pai não gostou e me trouxe pra cá.

Gyo: Meu pai me trancava no quarto… Eu fiquei com medo e contei pra minha mãe. Eu só
contei pra minha mãe.

May: Pai… não!!! Não faz isso comigo. Por favor! Pai… eu prometo que não vou contar pra
minha mãe!

(Todas as atrizes começam a pedir para parar com a violência… Enquanto isso os atores que
seguram a Gio se juntam e a puxam)

Gio: Um ano depois ele fez de novo. Na cozinha. Ele chegou, bateu a porta, puxou meu cabelo
e me jogou na mesa. Ele deitou por cima de mim e me estuprou. Pela segunda vez. Eu estava
machucada, minha alma estava destroçada, como se houvesse um milhão de gritos presos
dentro do meu peito, mas tenho que mantê-los presos lá dentro, para que gritar se não tem
ninguém para escutar? Pela primeira vez, eu desejei a morte, ele poderia ter a bondade de me
matar. (Se vira… e segura o tecido como se fosse uma criança)

(Todos os atores e atrizes apenas murmuram a canção… Liz e Gio se viram para frente
segurando as crianças nas mãos… Dois atores vão até elas…e tiram… imagem de cordão
umbilical)

CENA 6 - Projeção

(Atores e atrizes pegam tecidos transparentes que estão dispostos ao fundo e nas
laterais do palco. Se posicionam em dois coros nas bocas de cena - direita e esquerda.
Theo e Gabs pegam um tecido e estendem. Inicia uma projeção do documentário. O
documentário é longo e faz parte da encenação.)

CENA 7 - Venda de Cadáveres.

(Atores e atrizes que estão com o tecido transformam os tecidos em corpos… os


carregam. Fazem uma imagem de uma pilha de corpos no centro e depois fazem um
círculo. É a dança da morte)
Samuel/ INVANZIR: (de forma épica) Me chamo Ivanzir Vieira e sou professor na
Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Numa
segunda-feira, sai de casa e caminhei para minha aula que estava marcada às
9h10min. Sou um professor extremamente pontual. Onde estão os meus alunos?…
Será que hoje não é dia de aula? . Não…é segunda! Estou correto!
Exatamente onde eu deveria estar, quando eu deveria estar, na hora que eu
deveria estar.

FILÓ: Naquela madrugada, uma camioneta chegou à UFJF lotada de


cadáveres, vinda de Barbacena. Ao diretor de medicina foram ofertados cada
corpo por mil réis! O que hoje valeria 365 reais. Se acaso recusasse,
interessados no Rio de Janeiro estavam apostos para adquirir o lote. Os corpos
supririam as necessidades do ano inteiro.
May: Intimidade desnudada. Os corpos das mulheres tinham as saias ou as
camisolas erguidas, suas pernas abertas! As fisionomias eram pálidas e
esquálidas. O cheiro não deixava dúvida: estavam mortos há dias!

Samuel/ INVANZIR: O cheiro não deixa dúvida de que estavam mortos há dias.

THEO: Intimidade desnudada. Os homens de calças e cuecas baixadas. Umas


sujas, outras imundas. Baixadas. Barbas crescidas, cabelos desgrenhados,
parecia a debandada de um manicômio. As fisionomias eram pálidas e
esquálidas. O cheiro não deixava dúvida: estavam mortos há dias!

Samuel/ INVANZIR: O cheiro não deixa dúvida de que estavam mortos há dias.

May: Além daqueles trinta cadáveres, outros 1.823 corpos foram vendidos pelo
Colônia, entre 1969 e 1980, para 17 faculdades de medicina do Brasil.

THEO: Subnutrição. Condições subumanas de higiene. Cuidados


subvalorizados. As mortes no Colônia eram em massa, onde segundo registros
do próprio hospital, dezesseis seres humanos, por dia, encontravam como
destino a morte.

Godoy: (Como num leilão) Vendido!


TodEs: Vendido!
(O círculo é feito. Professor no centro.)
Samuel/ INVANZIR: Ah! Vocês estão aqui. Achei que não vinham pra aula.

Theo: 2 corpos por 1500 Réis.


TodoEs: Vendido.
May: 1 Corpo por 950 Réis
TodEs; Vendido
Theo: 5 Corpos por 2300 Réis
TodEs; Vendido
May: 3 Corpos por 1700 Réis
TodEs; Vendido
Theo: 600 Reais
TodEs; Vendido
May: 2502 Reais
TodEs; Vendido
Theo: 930 Reais
TodEs; Vendido
May: 50 reais

(Inicia uma dança da morte. Todos os corpos caem)

CENA 8 - Fim
(Enquanto os corpos continuam dançando May diz o texto)
May: Barbacena não foi o início.
Rio de Janeiro, 18 de julho de 1841. Nesta data, há 181 anos, foi assinado pelo imperador D.
Pedro II o decreto da fundação do primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, que serviu de asilo
para os "alienados", os quais já eram muito numerosos para as cadeias e para as enfermarias
das Santa Casa de Misericórdia darem conta.

A Irmandade de Misericórdia, juntamente com o apoio das famílias abastadas da cidade,


uniram esforços para a criação do primeiro depósito de loucos pobres, e então, em 1852, o
Hospício D. Pedro II foi inaugurado.

Depois disso vieram outros, outros tantos que é possível se perder nas contas. O mesmo
horror continuou.

Os alienados, ao saírem do convívio social, deixavam de ser um estorvo para as suas famílias e
comunidade, e assim, eram facilmente esquecidos. Deixados para apodrecer no esgoto à céu
aberto que cortava o pavilhão, sentenciados à própria morte pelo azar de não nascerem como
lhes fora esperado.

Barbacena não foi o início, mas foi lá que renasceu uma esperança no Brasil.

Quase 100 anos após a fundação do nosso primeiro manicômio, veio ao país um homem
chamado Franco Basaglia, que inspirou uma revolta há muito silenciada. Ele carregava consigo
a revolucionária ideia de não tratar os invisíveis como mercadorias de lucro, mas sim como
seres dignos de viver em comunidade.
Os porões da loucura foram finalmente abertos, e o que conhecemos como a Reforma
Psiquiátrica começou a se instituir aos poucos. Hoje, 21 anos após a Lei da Reforma
Psiquiátrica ser aprovada, ainda vemos que o Holocausto brasileiro está longe de ser superado.

Uma notícia datada em abril de 2022 diz que o Ministério da Cidadania lançou um edital para
destinar cerca de R$ 10 milhões de reais a hospitais psiquiátricos em todo o Brasil, portaria
que descumpre a determinação da OMS, que visa tirar as pessoas das longas internações, do
isolamento, maus tratos e tortura.

Tragédias como a do Colônia nos colocam frente a frente com a intolerância social que
continua a produzir massacres: Candelária, Vigário Geral, Favela da Chatuba e Carandiru; que
recentemente completou 30 anos. Esses são apenas novos nomes para velhas formas de
extermínio. Ontem foram os judeus e os loucos, hoje os indesejáveis são os pobres, os negros,
os dependentes químicos, transexuais, prostitutas. Nascer fora da linha é uma sentença de
morte em vida.

(Após finalizar a fala cada pessoa diz o porque iria para a colônia nos dias atuais)

May: E você? por qual motivo iria para o Colônia?

FIM

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