Você está na página 1de 100

2023_PU_ADO_UFRGS.

indd 1 31/07/2023 08:55:36


SAS – PLATAFORMA DE EDUCAÇÃO

Direção de Conteúdo Pedagógico Georgia Marinho, Thais Pereira, Caê Lavor


Gerência de Conteúdo Ensino Médio João Pinhata

Coordenação de Conteúdo Pedagógico Rodolfo Marinho, Tatyanne Pereira, Ana Rebouças

Supervisão de Conteúdo Pedagógico Ana Beatriz Barbosa, Cintya Duarte, Claudielly Araújo

Edição de Texto
Equipe Camila Leite, Camila Vieira, Charlene Ximenes, Davi Xerez, Glenda Moura, Ítalo Bezerra, João Paulo Lima, Lara
Cecília Serafim, Letícia Blanco, Lídya Monteiro, Luana Freire, Luciana Holanda, Hellainy Ribeiro, Paola Teixeira,
Tayanne Magalhães

Revisão
Responsáveis Mary Lourenço, Raynna Benevides
Equipe Allícya Pereira, Bárbara Cavalcante, Emilly de Araújo, Francisco José Chaves, Juliano Gadêlha, Lissane Sales, Iná
Barbosa, Naara Souza, Shéllida Dias, Taynara Quércia

Núcleo de Arte e Diagramação


Responsáveis Mariana Cavalcante, Sarah Rêgo
Diagramação Bruno Barbosa, Jocicleiton Lopes, Juliana Lustoza, Kelly Melo, Larissa Rodrigues, Letícia Maia, Ravel Anderson,
Robson Marques, Stone Nobre, Thayna Cavalcante

Edição de Arte Jonhathan Rodrigues, Maurício Pires, Rossini Rabelo


Ilustração Bianca Tavares, David Arruda
Cartografia Danilo Fernandes

Capa
Conceito Jazi Oliveira
Imagem da Capa Shutterstock/Samuel Ericksen
Projeto Gráfico Letícia Maia

Gerência de Projetos Editoriais Laís Tubertini


Especialistas Carlos Tesch, Dani Ingui
Analista de Projetos Editoriais Bruna Alves

Gestão da Produção de Conteúdo Bárbara Monteiro, Paulo Mota, Rodolpho Meschgrahw


Iconografia
Responsável Thiago Fontana
Equipe Amanda Moura, Jaqueline Lima

Qualidade Editorial
Revisão
Especialista de Revisão Andrezza Albuquerque
Equipe Clara de Castro, Laura Juliana Cavalcanti, Yara Rocha
Diagramação Antonio Paiva, Marcos Lima, Wilton Miranda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


P654v

Pinhata, João Eduardo Watanabe.


Análise de Obras UFRGS / João Eduardo Watanabe Pinhata /
Carlos Eduardo Gois Ribeiro de Lavor / Georgia Fabiana Mendes
Marinho (org.). – 8. ed. – Fortaleza : Sistema Ari de Sá de
Ensino, 2023. (Coleção Pré-Universitário).
100p.

Todos os direitos reservados


ISBN 978-65-5856-649-6 (CL)
SAS – PLATAFORMA DE EDUCAÇÃO
ISBN 978-65-5856-955-8 (LA)
Atendimento ao Cliente
Contato: 0800.275.3000 | (85) 3461.3525
1. Pré-Universitário. 2. Educação. I. Título. atendimento@saseducacao.com.br
CDD – 373 www.portalsas.com.br

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 2 31/07/2023 08:55:37


APRESENTAÇÃO
Caro(a) Aluno(a),

O texto literário é particular no universo de circulação social


dos gêneros textuais. Sua especificidade reside no modo como abre
possibilidades de interpretação e diálogo em relação a assuntos cuja
representação é polêmica. Assim, o ensino de Literatura é um desafio
constante, pois demanda metodologias capazes de manter vivas a
interpretação e as possibilidades de leitura.

A cada vez que se lê uma obra literária, podem surgir novas ideias,
outras emoções, diferentes impressões, as quais se unem às já existentes
e se expandem em significação para o leitor. Esse novo sentido pode
modificar, inclusive, a visão que se tem do mundo circundante, reforçando
e ampliando o senso crítico.

Este livro foi elaborado com o objetivo de analisar as obras literárias


de leitura obrigatória da UFRGS. Nele, são apresentados a estrutura de
cada obra, o modo como seu contexto sócio-histórico foi recriado e as
possibilidades de leitura que podem ser projetadas por meio de cada texto.

Os estudos apresentados aqui não eliminam a necessidade da leitura


das obras indicadas; eles foram concebidos como roteiro de preparação
para o exame e como guia para uma compreensão mais profunda,
matizada e complexa da bibliografia obrigatória.

Bons estudos!

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 3 31/07/2023 08:55:37


2023_PU_ADO_UFRGS.indd 4 31/07/2023 08:55:37
SUMÁRIO
Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo �������������������������� 07
Análise e ensaio de Rochele Bagatini

Construção, de Chico Buarque �������������������������������������������������������������������������� 14


Análise e ensaio de Guto Leite

Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo���������������������������������������������������������� 21


Análise e ensaio de Lígia Balista

Deixe o quarto como está, de Amílcar Bettega�������������������������������������������� 30


Análise e ensaio de Rafael Prudêncio

Coral e outros poemas, de Sophia de Mello Breyner Andresen ������������������ 39


Análise e ensaio de Guto Leite

Lisístrata, de Aristófanes������������������������������������������������������������������������������������ 47
Análise e ensaio de Rafael Prudêncio

A falência, de Júlia Lopes de Almeida���������������������������������������������������������������� 55


Análise e ensaio de Pedro Manica

Várias histórias, de Machado de Assis����������������������������������������������������������� 62


Análise e ensaio de Guto Leite

Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas ������������������ 72


Análise e ensaio de Guto Leite

Água funda, de Ruth Guimarães ���������������������������������������������������������������������� 79


Análise e ensaio de Guto Leite

A terra dos mil povos, de Kaká Werá Jecupé ������������������������������������������������ 85

Análise e ensaio de Vinícius Prusch

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez ��������������������������������������� 92


Análise e ensaio de Elisa Hubner

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 5 31/07/2023 08:55:37


2023_PU_ADO_UFRGS.indd 6 31/07/2023 08:55:37
Análise de Obras – UFRGS

Caderno de memórias coloniais


Isabela Figueiredo

Contexto histórico
Caderno de memórias coloniais trata de um período de, aproximadamente, dez anos, compreendido entre
as primeiras memórias da autora, nascida em 1963, na Moçambique colonial, até quando é enviada pelos pais
para Lisboa, na condição de retornada. Esse período é conhecido como a Guerra de Independência de Mo-
çambique ou Luta Armada de Libertação Nacional, conflito armado entre as forças da Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo) e as Forças Armadas de Portugal.
O continente africano foi colônia das nações europeias até a metade do século XX. Depois da Segunda Guerra
Mundial, e após a criação da ONU em 1945, a maioria dos países europeus iniciou o processo de independência
de suas colônias, exceto Portugal, que desejava manter as suas. Em 1961, teve início a Guerra Colonial Portuguesa,
que compreendia as Forças Armadas Portuguesas contra as guerrilhas organizadas em movimentos de libertação
das colônias conhecidas como ultramarinas, entre elas Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, por isso também de-
signada Guerra do Ultramar – denominação extraoficial, pois Portugal não considerava a existência de um conflito
armado, e sim de atos terroristas.
Muitas ideias anticolonialistas estavam sendo disseminadas por toda a África, e esses movimentos mostravam
que políticas de desenvolvimento elaboradas pelas autoridades eram voltadas para beneficiar exclusivamente a po-
pulação portuguesa que vivia em Moçambique e não beneficiavam em nada o desenvolvimento das comunidades
nativas, tratadas com preconceito e violência. A taxa de analfabetismo entre os nativos era alta, portanto, as oportu-
nidades de bons empregos e as posições na administração e no governo eram escassas para essas populações, não
havendo espaço para elas na vida urbana. Muitos moçambicanos sentiam sua tradição e cultura serem oprimidas
pela cultura vinda de Portugal e, frustrados pelo servilismo de sua nação às regras da metrópole, tornaram-se nacio-
nalistas. Os brancos portugueses que viviam em Moçambique, integrados ao sistema social colonizador, sobretudo
os que viviam em centros urbanos, reagiram negativamente à vontade de independência dos nativos.
A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) foi criada em 25 de junho de 1962, em decorrência de uma
conferência realizada por alguns políticos forçados ao exílio, por meio da união de grupos nacionalistas: União Nacio-
nal Africana de Moçambique (MANU), União Africana de Moçambique Independente (Unami) e União Democrática
Nacional de Moçambique (Udemano), promovida por Eduardo Mondlane, que foi eleito seu primeiro presidente. Em
setembro de 1964, a Frelimo deu início à luta armada contra o governo português. A organização recebeu apoio da
União Soviética, da China e de Cuba, por meio do fornecimento de armamentos e de revolucionários que encabeça-
ram o movimento e levaram a uma situação de violência que perdurou por muito tempo depois da independência.
O exército português concentrava o controle militar nos centros urbanos, enquanto as guerrilhas se espalhavam
pelas zonas rurais, mais especificamente no norte e oeste do país (Lourenço Marques, que depois da independência
passou a chamar-se Maputo, cidade onde se passam as memórias de Isabela, fica no extremo sul do país). Samora
acabou sendo o sucessor de Mondlane após seu assassinato em 1969, uma morte pouco esclarecida e com muitas
possibilidades de autoria. Diante desse cenário, teve início um protesto dos colonos portugueses contra o governo de
Lisboa; os brancos sentiam-se desmoralizados e abandonados. “Percebi que os colonos desejaram a independência,
mas sob poder branco. Eventualmente ocorria a partilha de funções administrativas com um ou outro mulato maleável.
A Frelimo era indesejada” (FIGUEIREDO, 2018, p. 97). Três guerras aconteciam, concomitantemente, em Moçambique:
uma guerra contra a Frelimo; uma guerra entre o exército e a polícia secreta; e uma guerra entre o exército, a polícia
secreta e o governo central. Em um trecho de Caderno de memórias coloniais, Isabela retrata o que se falava à época
sobre esse fato:
Em português escrevíamos histórias sobre o colonialismo, a exploração do homem pelo homem, a luta armada, o
fim do lobolo, da religião, da suruma, da candonga; a denúncia dos xiconhoca; a Frelimo como salvação metafísica,
os salvadores do povo, Samora Machel, Graça Simbile, Eduardo Mondlane, esse sim, que era ‘casado com uma branca
porque fora educado na Europa; nem era bem negro, era mais mulato’ – com esse havia ‘a porca de torcer o rabo, por
isso o assassinaram; foi o Samora’ – e o Chissano, ‘falso como Judas’.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 121)

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 7 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

Após dez anos de guerra, e devido ao retorno da democracia em Portugal, por meio de um golpe militar de
esquerda que derrubou o Estado Novo (1926-1974), a Frelimo assumiu o poder em Moçambique, após 400 anos da
presença portuguesa na África. O projeto anticolonial da Frente teve grandes complicações, principalmente pela
falta de coordenação operacional da reestruturação social pretendida, o que a levou, gradativamente, a perder o
apoio e o reconhecimento popular que tinha angariado com os moçambicanos, pela recente assunção do poder
das mãos dos portugueses.
[...] eles [Frelimo] foram incapazes de pensar a construção da nação sem apagar ao mesmo tempo a diversidade e
a heterogeneidade concretas e históricas dos grupos sociais que pretendiam unir e integrar sob o signo de uma iden-
tidade única, a cidadania moçambicana. [...] Assim, pouco importavam as diferenças históricas e sociais regionais,
pouco interessavam igualmente as motivações e aspirações reais das populações em nome das quais — e para quem
— o projecto fora concebido.
(GEFFRAY, 1991, p. 15-16)

Já em Portugal, a partir de 1968 até 1974, Marcello Caetano chefiou o governo e tentou certa modernização eco-
nômica e social do país, criando a expectativa de uma reforma, que acabou sendo inócua. Sobre esse período, Isabela
Figueiredo recorda em um trecho de Caderno: “Matar um preto, no marcelismo, começava a ser chato; a polícia, se
descobrisse vinha fazer perguntas. [...] Matar um preto a certa altura começou a dar chatice” (FIGUEIREDO, 2018, p. 89).
Após a independência, cerca de 250 mil portugueses deixaram o país, sendo expulsos ou tendo fugido por
medo de serem mortos, e voltaram a Portugal na condição de retornados. Moçambique foi tomada por uma longa
guerra civil. Em um trecho do livro de Isabela se pode perceber a violência da virada proporcionada pela indepen-
dência, na qual os nativos se voltaram contra os brancos:

Nos dias que se seguiram ao 7 de setembro a negralhada perdeu o freio, e na Machava, no Influente, na Matola, na
Malhangalene, e em todo o lado, chacinou cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os gatos, cães, ga-
linhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram-nos agonizando sobre a terra, empapando sangue, salvam-se as escuras
galinhas cafreais de pescoço pelado. E os gatos pretos.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 113)

A Guerra Civil Moçambicana (1977-1992), conflito ocorrido após a Guerra de Independência de Moçambique,
foi marcada por violações de direitos humanos. Os ideais da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e da
Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) eram opostos. Devido à eclosão das minas terrestres, cinco milhões
de civis sofreram amputações e foram deslocados, além de um milhão que morreu em consequência da fome ou
em combate. Em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz pelo presidente da república e Afonso Dhlakama e
sofrendo forte influência do totalitarismo, além de recessão econômica e corrupção, o conflito foi encerrado.

Vida e obra
Isabela Figueiredo, pseudônimo de Isabel Figueiredo Almeida Santos, nasceu em Lourenço Marques (atual Mapu-
to), na Moçambique colonial, em 1o de janeiro de 1963, e foi para Lisboa em 1975, após a independência de Moçam-
bique. É jornalista, escritora e professora. Licenciada em Línguas e Literatura Lusófona pela Universidade de Lisboa,
possui especialização em Estudos de Gênero pela Universidade Aberta de Lisboa. Publicou seus primeiros trabalhos
no DN Jovem, em 1983, um suplemento extinto do Diário de Notícias. Em 1988, foi premiada na Mostra Portuguesa de
Artes e Ideias, por sua novela Conto é como se diz, publicada com o nome de Isabel Almeida Santos. A autora traba-
lhou como jornalista no Diário de Notícias, de 1989 a 1994, e foi professora de Língua Portuguesa de Ensino Médio na
Margem Sul de Lisboa, de 1985 a 2014.
Em 2009, Isabela publicou Caderno de memórias coloniais, recebido pelo público e pela crítica como uma obra-
-prima. Foi eleita, em 2010, pela escritora Maria da Conceição Caleiro e pelo ensaísta Gustavo Rubim, da Revista
Ípsilon, uma das obras mais relevantes da década. Caderno ainda recebeu, em 2010, o prêmio Monstro de melhor
livro do ano, pela Angelus Novus.
No ano de 2016, a autora lançou o romance A gorda, uma sátira a respeito da autoimagem e do preconceito,
que foi considerado pela revista Espalha-Factos um dos dez melhores livros do ano. Além disso, A gorda ganhou o
Prêmio Literário Urbano Tavares Rodrigues. Nesse romance, assim como em Caderno, a autora parte de uma história
pessoal e aborda temas como identidade, gênero, sexo e padrões estéticos.

Apresentação e análise da obra


Caderno de memórias coloniais é formado por 51 pequenas crônicas, abarcando um conjunto de textos que trata
das relações de gênero, de colonialismo e de nacionalismo, com alto teor poético. A obra conta a história de uma
menina, a autora e narradora, a caminho da adolescência, na cidade de Lourenço Marques, vivendo os anos que
antecederam a independência.

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 8 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

O livro começa com palavras prévias da autora e com um poema do português Manuel António Pina chamado
“A um homem do passado”. Também é Manuel que encerra a obra, com outro poema, do livro Aquele que quer
morrer. Caderno de memórias coloniais é dedicado ao pai de Isabela e conta com outros dois prefácios, da escritora
moçambicana Paula Chiziane e do ensaísta José Gil. No posfácio intitulado “O meu corpo e o dele” a autora conta
sobre quase ter se tornado brasileira, já que, antes de ir para Moçambique, o pai tentou migrar para o Brasil, mas
teve o visto rejeitado.
Isabela Figueiredo nos traz nesse livro sua experiência na África colonizada, desde que nasceu, ou desde quando
lembra. Seus pais, vindos de Portugal, criaram para ela um lar na Moçambique colonial. Não é apenas a história de
uma infância rica de experiências, mas de uma infância povoada de incoerências e violências, características da co-
lonização. O colonialismo era baseado no catolicismo e no patriarcado, e a imagem do pai racista, por meio da qual
transcorriam todas as ideologias e práticas coloniais, era uma representação clara desse sistema. Filha única, Isabela
tinha uma relação de paixão e ódio, atração e repulsa, afeto e raiva do pai, um colono branco, que vivia entre a elite que
administrava Moçambique em conjunto com a metrópole portuguesa e os negros, de quem se servia para executar
seu trabalho. Era uma família de remediados, embora para Isabela, comparado ao que ela observava do povo negro
com quem dividia a vida, eram ricos:
A nossa vida de remediados, que eu julgava de ricos, deslizava. Só muitos anos depois, tendo desconstruído mil
vezes a figura do meu pai, percebi que ele tinha razão. Vivíamos do rendimento do seu trabalho, e quando após o 25
de abril veio o período sem lei e sem trabalho da descolonização, as economias duraram o tempo suficiente para me
comprarem um bilhete para Portugal, tentar arranjar o motor de Bedford [...] e subir até o Songo para arranjar emprego
em Cabora Bassa. Nós sempre fomos remediados. Agora é claro.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 58)

O livro também conta de sua chegada em Lisboa, enviada pelos pais para contar a “verdade” dos brancos, da
vingança dos negros contra os brancos, como uma espécie de mensageira. Essa obra não é apenas sobre a rea-
lidade da colonização e da descolonização ocorrida em Maputo, conta também a relação da autora com o pai, o
verdadeiro protagonista dessa história, do amor filial conturbado e indestrutível. Intenso e adaptado à terra na qual
chegou cedo, antes de Isabela nascer, o pai sonhou em fazer de Moçambique a sua pátria, ainda que desprezasse o
povo africano. Via o povo nativo como inferior, vagabundo, que precisava aprender a trabalhar, por isso não empre-
gava brancos em sua empresa, apenas negros, a quem tratava com extrema violência e racismo.
Era absolutamente necessário ensinar os pretos a trabalhar, para seu próprio bem. Para evoluírem através do
reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e com dinheiro poderiam prosperar,
desde que prosperassem como negros.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 75)

Além disso, pelas mulheres negras, o pai tinha outro tipo de tratamento, mais brando, dando-lhes dinheiro em
troca de relações íntimas. A mãe de Isabela, apesar de saber das escapadas do marido, aceitava a situação, assim
como muitas mulheres que eram expostas ao poder das relações machistas. Nesse cenário, Isabela vai crescendo,
desenvolvendo uma relação quase incestuosa com o pai, pelo corpo do pai, ao mesmo tempo que desenvolvia um
ódio pelo tratamento que ele dava aos negros.
Caderno também conta o percurso sensual e iniciático da menina que descobre o seu próprio corpo e o dos outros,
tudo isso permeado pelas questões de raça. Sozinha, ela vai descobrindo sua feminilidade e seus equívocos. Achou es-
tar grávida do vizinho negro com quem a mãe não queria que ela tivesse contato, só porque gostava dele, e acreditava
que se um homem e uma mulher se gostavam, tinham bebês. Depois de descobrir um livro com posições sexuais em-
baixo da cama dos pais, ela passou a desejar conhecer o sexo, e com outro vizinho começou os trâmites, porém, muito
antes de se efetivar, foi pega nua pelo pai, o qual deu-lhe uma surra forte e espalhada por todo corpo. Sem nunca falar
sobre o assunto, ouviu apenas ele dizer sobre o caso em tom anedótico com a mãe. Conta do dia em que se irritou
com uma colega de aula e, premeditadamente, bateu-lhe, e o fez porque “podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era
mulata” (FIGUEIREDO, 2018, p. 78). Isabela produzia a mesma violência física que sofria, era vítima e algoz. A primeira
menstruação aconteceu em um dia em que estava, como de costume, toda vestida de branco: “Usava um vestido de
popelina branca, curto, liso, cintado, e meias de renda dentro de sapatos rasos, de verniz. Tudo era branco, como um
cordeiro que há de sacrificar-se” (FIGUEIREDO, 2018, p. 92).
Para além das histórias da menina, o livro é um retrato sem meios-termos, cru, visceral, do racismo português às
vésperas da descolonização, que se dizia brando nas histórias levadas pelos brancos no retorno a Portugal. A queda
de um velho poder, um velho mundo que chega ao fim, confrontado com uma nova Era, contingente, “se havia algo
certo, era o incerto” (FIGUEIREDO, 2018, p. 150), em que os negros assumem o poder por meio de um totalitarismo
de esquerda, influenciado pela mão forte da Rússia, da China e de Cuba. Coube a Isabela uma missão difícil: gritar
sobre o que se calou, sobre o que não era honrado falar. A história de uma guerra entre colonizadores e colonizados,
brancos e negros, não indígenas e indígenas, imperialistas e comunistas.
Isabela conta a história pelo seu próprio tempo, o tempo da escritura do caderno, pois é a partir desse momento
que ela revive as memórias que passou em Moçambique, tentando elaborar o que não entendia. São cerca de dez anos,
sendo que a primeira lembrança remete à idade de quatro anos. Em todo o período em que Isabela conta a sua história,
alguns tempos se alargam e outros se comprimem, e ela não conta linearmente, há um vai e vem de acontecimentos.

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 9 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

Sobre o espaço, é uma cidade com diversos prédios e ruas, como aparece nas fotos que acompanham a narrati-
va. Do centro para os bairros a cidade vai ficando pobre, de terra batida e vermelha. “Lourenço Marques, na década
de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril” (FIGUEIREDO, 2018, p. 42).
Nos bairros, há predomínio das machambas, parte de terra plantadas e ocupadas com famílias que vivem dessa
terra. Isabela descreve com visceralidade a terra em que habitou a infância e adolescência: “Era África, inflamante,
sensual e livre. Sentia-se crescer por debaixo dos pés. Tremia. Um coração inchado. Era vermelha. Cheirava a terra
molhada, a terra mexida, a terra queimada, e cheirava sempre” (FIGUEIREDO, 2018, p. 52). Por diversas vezes há des-
crições de como viviam os negros, como eles se mesclaram à paisagem, tornando-se essencial no espaço descrito
pela autora, ocupando uma parte importante de suas memórias:
Os pretos da casa vizinha cozinhavam na rua, em grandes panelões enegrecidos que colocavam sobre o carvão.
Num tacho largo, mexiam farinha com peixe seco. Pilavam milho. Assavam maçarocas. Às vezes, carne. Sobretudo
galinhas. Pelo quintal havia inúmeras à solta. Debicavam aqui e acolá, enchendo o papo de restos, como os cães.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 107)

Depois de setembro de 1974, as descrições do espaço da narrativa ficaram cada vez mais chocantes e descre-
viam um cenário de guerra. Os negros matavam a esmo, prendiam, humilhavam, esquartejavam, brincavam com os
mortos. O que se via era uma vingança generalizada e sem freios.

As cabeças dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos e os miolos, e o que restava
da carne amolgada e dos maxilares partidos. A negralhada remendava as bolas com trapos já engomados de sangue
seco, rasgados aos cadáveres, e assim sustinham a estrutura que se desfazia a cada pontapé, até já não restar senão
uma mão cheia de ossos moídos, moles, que depois se chutavam para o mato.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 99)

Caderno tem um apanhado de fotografias. Muitas delas ajudam a perceber o espaço em que se passam as
memórias: instantâneos da vida moçambicana, fotos urbanas e rurais de Lourenço Marques, cenas de negros tra-
balhando, mas, sobretudo, fotos de Isabela sozinha, uma menina alegre, de cabelos longos e louros, bem vestida,
com suas roupas claras.

Personagens principais
 O pai: eletricista, remediado, ficava entre a elite e os negros. Era violento com os negros que trabalhavam para ele,
não contratava brancos, “porque a um branco não se podia dar porrada” (FIGUEIREDO, 2018, p. 43). No prefácio,
o ensaísta José Gil fala sobre o pai: “[...] um eletricista branco sentia o peso dos brancos que detinham o poder
real do colonialismo português. A violência aberta que o pai de Isabela exprimia, era a que ele recebia dos brancos
e expulsava nos negros” (p. 23). Além disso, o pai era mulherengo, “ia às pretas” (p. 34), gostava de sexo. Não
retornou a Portugal e foi preso pela Frelimo em 1978.

 A filha: Narradora que conta a história a partir da contemporaneidade, em Portugal. Isabela revela os desejos
confusos de colona branca, solitária, fascinada pelo pai, pelo primo, pelo vizinho, pela amiga. Era branca, mas
identificava-se com a negritude, tendo em vista que era a terra africana a única que conhecia:

[...] descalçar-me às escondidas no mato, e caminhava clandestinamente, sem sapatos, a ver se conseguia que meus
pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e de sola dura, rachada. E gingava como uma preta, para ex-
perimentar o que era ser preta.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 123)

 A mãe: Racista passiva, tinha medo que os negros fizessem mal a Isabela ou a roubassem, já que ela gostava de
andar com eles. “Minha mãe desconfiava de mim, adivinhando minha alma preta” (FIGUEIREDO, 2018, p. 93). Víti-
ma da violência de gênero dentro de casa, vitimizava as mulheres negras por não acreditar haver dignidade nelas.

 A família de vizinhos negros: Tinham um cachorro branco que vivia na casa de Isabela, ela o alimentava. O pai
dela e o vizinho eram amigos, trocavam ofertas, conversavam e gracejavam, coisa rara entre branco e negro. Foram
eles que salvaram a família de Isabela quando se deu o 7 de setembro.

Quando se deu o 7 de setembro, e nos escondemos no corredor da casa, para nos proteger dos vidros partidos, de
pedras que atirassem, de coquetéis molotov, da morte muito certa, sabíamos lá nós qual, na gratuita e raivosa, foi o
preto do cão branco que nos salvou.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 109)

 Domingos e Domingas: Domingos criava porcos e galinhas em um local mais afastado do centro da cidade. Depois
do dia 7 de setembro a casa foi invadida, saqueada, queimada, e o gado foi levado ou morto, mas Domingos salvou
a mulher e a filha. Domingas, a filha, era muito amiga de Isabela. Depois da Independência, ambas conseguiram
manter as famílias a “salvo” do comitê, pois davam aulas aos negros.

10

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 10 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

[...] durante doze meses, eu e Domingas alfabetizávamos, com autorização do comité, os negrinhos do Vale do
Infulene. Era um trabalho verdadeiro, honesto, e não só os ensinávamos a ler e escrever como limpávamos a cara e os
assoávamos. Nem eu nem Domingas tínhamos outra terra ou outro povo.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 119)

 O primo: Foi a primeira paixão de Isabela, moreno, bonito e soldado. “Meu primo tinha sido educado no mais
profundo desprezo pelo negro. Quando fez dezenove anos, e o mandaram para Niassa, partiu contente. Ia lutar
pela Califórnia portuguesa” (FIGUEIREDO, 2018, p. 90). Ia guerrear e voltava, cada vez mais mudado, mas nunca
falava da guerra. Ninguém falava da guerra. Isabela costumava espreitá-lo em seu quarto, fumando e fantasiando
momentos eróticos com ele. “O meu primo acordou o meu primeiro desejo, e, uns anos mais tarde, matou-se”
(FIGUEIREDO, 2018, p. 91).
 A avó: Acolheu Isabela, a quem não conhecia, em Lisboa. Morava pobremente no meio de muitas galinhas com
acesso a toda a casa. Parte delas era vendida e aquelas com defeito eram alimentadas e cuidadas com zelo. A casa
era coberta de fezes das aves, era a mesma em que viveu o pai, Isabela passou a viver no quarto que fora dele,
dormindo em seu colchão de palha. Não havia banheiro, as necessidades e o banho eram feitos ao lado do tanque,
no lado de fora, sem água quente, sem telha, tudo era levado ao mesmo e único ralo, esgoto de toda a casa. Foi
na casa da avó que entendeu quando o pai dizia que eram pobres, embora ele nunca falasse do passado. Um dia,
Isabela ficou doente e a avó teve vergonha de chamar um médico, além disso, ela não gostava que a adolescente
andasse na companhia de meninas mais velhas, então Isabela foi morar com o tio.
 O ti Gusto: Fazia terrinas em barro decoradas com flores. Empregava moças na idade de Isabela, “o ti Gusto
talvez gostasse de barro, mas do que ele gostava mesmo era de ter na garagem, à sua disposição, um ramalhete
de meninas com peitos duros e fresquinhos, umas mimosas de face rosada e pele branca” (FIGUEIREDO, 2018,
p. 155). Cheirava a suor e vinho misturados, a roupa exalava odor velho, ácido, pastoso, o cabelo era gorduroso,
e costumava coçar os órgãos sexuais. Tinha mulher e uma filha entrevada. Era conhecido como um homem bom,
pois, tendo uma filha incapaz, não a mandava para um asilo, “o ti Gusto era a lamentada fina flor do drama e virtu-
des provincianas. Eu e as cabritinhas das terrinas conhecíamos-lhe outra missa, e, nela, o oficiante era um suíno de
patilhas” (FIGUEIREDO, 2018, p. 155).

Orientações de leitura
Caderno de memórias coloniais interliga esfera individual e coletiva o tempo todo, tratando desses aspectos de
forma que sejam reflexo um do outro. Segundo a crítica brasileira Anita Martins Rodrigues de Moraes, essas esferas
são articuladas por meio de algumas estratégias de composição da autora, como: “linguagem crua e por vezes
elíptica; a construção de metáforas e metonímias; o recurso a situações emblemáticas; o destaque do corpo; a meta-
linguagem” (MORAES, 2010, p. 241-242). Isabela também é uma narradora abrangente, que não ocupa uma posição
onisciente de saber, mas faz ecoar várias vozes e observa vários ângulos. Suas frases têm um ritmo repetitivo, “um
vem e vai que é um lamento” (FIGUEIREDO, 2018, p. 179).
A edição brasileira (2018) é a mesma da última edição portuguesa (2015), e, portanto, as palavras são em português
de Portugal, o que pode dificultar a fluidez da leitura, embora não seja algo que comprometa o entendimento do que
está sendo exposto. Como Isabela não fala apenas o que ela pensa, mas mescla sua voz com outras, coloca essas ou-
tras em primeiro plano, ocasionalmente. Isso pode ser demonstrado pela escolha do léxico, por exemplo, quando diz
“as pretas tinham as conas largas, mas elas diziam as partes baixas ou as vergonhas ou a badalhoca. As pretas tinham
a cona larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão, onde quer que
fosse, como os animais” (FIGUEIREDO, 2018, p. 34), em uma forma de se afastar e demarcar o que é seu e o que é do
outro, costurando um discurso que parte do individual, mas se amarra ao coletivo, demarcando uma adesão, ou não, a
esse discurso. Ela chama o leitor a refletir sobre seus próprios posicionamentos com relação aos léxicos.

Perguntas orientadoras
1. O corpo é uma palavra recorrente em todo o livro. O que pode significar trazer à tona o corpo do pai, da mãe?
Ou como Isabela se questiona: há uma relação entre o corpo geográfico e o corpo humano?
2. Brancura: as camisas do pai eram sempre brancas, ela mesma sempre de vestido branco, sapatos brancos,
preocupada em não se sujar na terra vermelha. Essa brancura é tratada por diversas vezes. De que tipo ou tipos
de brancura se trata? Da raça, da castidade, da moralidade?
3. O genocídio dos indígenas nas Américas e dos negros na África é efeito da interferência estrangeira em terras
nativas. O que ganhamos ou perdemos com o colonialismo? Para construir uma civilização é preciso matar, violentar
e torturar?
4. A violência em relação a gênero, ocorrida tanto na colonização quanto na descolonização, foi sofrida pelas
mulheres, independentemente da raça dos homens. Por que mulheres, brancas ou negras, são as principais
vítimas dessa violência? Quais tipos de violência essas mulheres sofreram em ambos os períodos?

11

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 11 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

Conteúdos complementares
 Partes de África, Helder Macedo.
 Nós matamos o cão tinhoso, Luís Bernardo Honwana.
 O retorno, Maria Dulce Cardoso.
 Terra sonâmbula, Mia Couto.
 Moçambique, terra queimada, Jorge Jardim.

Ensaio
O corajoso grito da mulher que rompeu o silêncio
Insultavam-me por já ser mulher. Isso bastava.
Isabela Figueiredo

Em Caderno de memórias coloniais, Isabela Figueiredo mostra de forma explícita uma série de cenas de mu-
lheres, brancas e negras, e expõe os tentáculos do machismo de forma ampla, como raras vezes se pôde ver na
literatura. Embora essas mulheres sejam tratadas muitas vezes de formas diferentes, com especificidades de raça,
em outras, são medidas com igual subalternidade, orientadas como objetos pela utilidade, subjugadas pelo colo-
nialismo católico e patriarcal. Se olharmos a biografia de Isabela, seus estudos de gênero, fica fácil perceber que as
nuances apresentadas em Caderno acabam permitindo que qualquer mulher se identifique em algum momento e
entenda diferenciações geracionais que vão para além dos períodos abordados nas suas memórias coloniais. É um
livro feminista, no sentido de que “o feminismo não nos dá apenas uma análise sobre a opressão das mulheres. Ele
vai além da opressão, fornecendo materiais que permitem que as mulheres entendam sua situação sem sucumbir a
ela” (LUGONES, 2019, p. 363). Sua voz literária é de protesto e resistência.
Destacam-se, na medida em que aparecem nas memórias da autora, momentos que demonstram o status rebai-
xado das mulheres, trechos em que isso aparece com clareza e, em outros, sutis, porém que igualmente demons-
tram o poder brutal exercido pelos homens. Isabela usa a figura do pai, macho agressor, também como metáfora
desse poder masculino que não conhece limites. Esse ensaio começa por falar das cenas que envolvem mulheres
brancas – criança, adolescente, a mãe –, posto que, nos itens anteriores, trata mais particularmente das questões
raciais; em um segundo momento, é destacado o tratamento auferido exclusivamente às mulheres negras. São
apontadas cenas, opiniões, reflexões da autora que, agrupadas, dão um panorama amplo que perpassa o tempo e
o espaço abarcados pelo livro e nos remete ao dia a dia das mulheres de todos os lugares.
A autora buscou dar voz a outras experiências de mulheres que não as suas próprias. Na imagem da mãe, por exem-
plo, a violência do machismo colonial é expressa por meio de um corpo seco, sem rega – o pai regava as pretas –, no
qual não se deve sequer tocar, para que não haja prazer, o corpo é simples objeto, reificado, e vale apenas como uso,
assim como a mãe África:
O corpo da mãe era geométrico e seco. Não tinha autorização para lhe tocar. No corpo da minha mãe apenas me
interessava o seu peito grande e mole. Que delícia haveria de ser ter autorização para lhe mexer [...]. Apalpar com força.
Sacudia-me, está quieta. Tocar na minha mãe era uma atitude pouco própria.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 161)

Em outro trecho do livro, a autora expõe como as mulheres brancas interiorizavam um discurso masculino sobre
as mulheres negras, que camuflava a poligamia dos homens brancos em terras africanas, reafirmando estereótipos
coloniais ouvidos dos próprios maridos. Neste trecho é possível perceber as escolhas lexicais que diferenciam a voz
de Isabela de outras vozes femininas e sua não aderência ao discurso:
As pretas tinham a cona larga, diziam as mulheres dos brancos, ao domingo à tarde, todas em conversa íntima
debaixo do cajueiro largo, com o bandulho atafulhado de camarão grelhado, enquanto os maridos saíam para ir dar
a sua volta de homens, e as deixavam a desenferrujar a língua, que as mulheres precisavam desenferrujar a língua
umas com as outras. [...] A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas
fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha chegado a do marido, e pouco, e com dificuldade; eram muito
estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isso das outras.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 34)

Excluídas, enganadas, reprimidas, invisíveis e silenciadas, um dos poucos direitos que tinham era o de se reunirem
em círculo, para falarem mal de outras mulheres. Seu sexo era casto, não havia direito à sexualidade, não podiam es-
colher os parceiros, “[...] um homem branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e
passaria a ser aceite, com reservas, mas aceite. Para uma branca, implicava proscrição social” (FIGUEIREDO, 2018, p. 35).
Em eventos públicos, as mulheres brancas se sentavam em mesas separadas de seus maridos.
Isabela também era uma menina branca e, portanto, era tocada pela violência sexual imanente ao machismo,
dessa vez, pelo homem negro. Ela conta que, após a independência, quando os negros se rebelavam contra os
brancos, sua brancura e seu gênero foram alvo do ataque de um jovem negro, que

12

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 12 31/07/2023 08:55:38


Análise de Obras – UFRGS

[...] abraçou-me com o braço esquerdo. Esmagou o meu corpo contra si, arrebanhando com a mão direita o meu
monte de Vénus, apertando-o com força, como espremeria um caju para sumo. Olhou-me nos olhos, muito perto, sem
temor, sem culpa. Largou-me sem palavra, e continuou rápido, sem se voltar.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 111)

A certa altura, retrata outra extrema violência sexual sofrida por Candinha de Jaquim, que foi empalada simples-
mente por ser branca, neste mesmo período, em terras moçambicanas. Retrato cruel da revanche dos negros que
aconteceu na descolonização, homens brancos não foram poupados, mas as mulheres sofreram muito mais crimes
de orientação sexual. No caso de Moçambique, do colonialismo à descolonização, a vítima sexual não teve raça,
mas sempre teve gênero.
Recém-chegada a Lisboa, o fato de ser mulher não diminuiu o assédio que já ocorria em território africano. Quando
Isabela tinha treze anos, insultaram-na na rua porque era grande e já apresentava traços de mulher madura. “Insulta-
va-me por evidenciar mamas, cona e rabo, não percebendo eu o desmerecimento. Insultavam-me por já ser mulher.
Isso bastava” (FIGUEIREDO, 2018, p. 153). Ainda em Lisboa, e tendo ido viver na casa dos tios, fora assediada pelo ti
Gusto, que não cansava de aproximar-se dela com a desculpa de ensinar-lhe sobre o trabalho com barro e falar como
era parecida com a mãe, porém mais bonita porque era “cheinha” (p. 155). Porém, ti Gusto era tido como um homem
bom, pois tendo uma filha entrevada, não largou a mulher, “que nem barriga tivera para lhe dar um filho macho e são”
(p. 152). Como no julgamento das brancas sobre as negras, novamente aqui Isabela expõe como o julgamento está
arraigado aos preceitos machistas. Curioso que o pai, o colono opressor, tem alguma consciência sobre a necessidade
de libertação da filha e trata de insistir com ela para que estude e nunca tenha que depender de um homem, “tens que
ter uma profissão que te permite viver a tua vida, com teus filhos, ou não, sem depender de nenhum homem” (p. 102).
As mulheres negras eram também exploradas, mas de outra forma. O processo de colonização elaborou uma
tentativa de redução dos colonizados “a algo menos que humanos primitivos, possuídos pelo diabo, infantis, agres-
sivamente sexuais e necessitados de transformação” (LUGONES, 2019, p. 364), eram as cadelas, como as brancas as
chamavam, ecoando o discurso do homem branco. A escritora Paulina Chiziane, no prefácio de Caderno, sugere,
com razão, que o luso-tropicalismo de Gilberto Freire tratou de reafirmar a superioridade do colono, macho, dando
“carta-branca para a violência sexual contra as mulheres negras” (FIGUEIREDO, 2018, p. 17).

Os brancos iam às pretas. As pretas eram todas iguais e eles não distinguiam a Madalena Xinguile da Emília Ca-
chamba, a não ser pela cor da capitania ou pelo feitio da teta, mas os brancos metiam-se lá para os fundos do caniço,
com caminho certo ou não, para ir às contas das pretas. Eram uns aventureiros. Uns fura-vidas.
(FIGUEIREDO, 2018, p. 34)

Para os brancos, todas as negras eram iguais, e davam dinheiro a elas para alimentarem os filhos. Era uma forma
de humilhar os negros, gostavam de fazer isso na frente destes, para vingar-se, castigando-os, castrando-os. Dei-
xando transparecer como internalizaram o mito da virilidade do homem negro, eles os consideravam uma ameaça
e humilhá-los era uma forma de feminizá-los. Também as negras não podiam reclamar a paternidade aos brancos,
não lhe dariam crédito, e, portanto, estavam totalmente desamparadas. Exploradas e abandonadas, inclusive pelos
homens negros. Mas o corpo das mulheres, brancas ou negras, o corpo feminino em Moçambique, era de domínio
do homem branco.
Esse inventário de memórias é também uma compilação de denúncias que Isabela orquestra, o que não agradou
a um grupo saudosista de retornados. É um grito sobre um silêncio do que não era honrado falar. Não importa se o
homem é negro ou branco, colonizador ou colonizado, a violência sexual contra a mulher ocorre independentemen-
te da raça. Ocorre independentemente dos limites geográficos, europeus ou africanos, tanto nas questões de assé-
dio quanto no que tange os julgamentos preconcebidos sobre o papel da mulher. Como diz José Gil no prefácio, Ca-
derno é “um meio violento de expressão e um manifesto político, um grito existencial e um trabalho literário” (p. 24).
É isso, e pode ser mais, se suas personagens sucumbem ou não, a autora chama as leitoras para que não sucumbam.
Ela grita poeticamente, sendo capaz de reverberar em muitas mulheres, não poupando leitores de nenhum gênero.

13

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 13 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Construção
Chico Buarque

Contexto histórico
Construção (1971), de Chico Buarque, é o quinto LP – abreviação para long play, disco produzido em vinil – de
canções inéditas do compositor, então com 27 anos. Se somadas as três coletâneas – duas delas lançadas na Itália –
e os quatro compactos, discos com somente duas canções, uma de cada lado, é uma produção que chama atenção
para alguém tão jovem, ainda mais se aferir a celebridade de Chico no começo dos anos 1970.
Sua aparição para o grande público aconteceu no II Festival da Música Popular Brasileira, no qual sua canção, “A
banda”, interpretada por Nara Leão, dividiu o primeiro lugar com “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros,
interpretada por Jair Rodrigues. Naquela época, sobretudo na segunda metade dos anos 1960, os festivais de música
ocupavam lugar de destaque na programação das televisões, antes da hegemonia das telenovelas, e por consequên-
cia também tinham protagonismo na opinião pública. Em entrevista à revista Manchete, em 1966, Sergio Buarque de
Hollanda, pai de Chico e figura de renome entre os intelectuais brasileiros do século XX, disse que, então, Chico não
era seu filho, mas ele que era o pai de Chico, dado o eminente reconhecimento e fama que o compositor começara a
ter. Em outubro de 1966, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues, escritores consagrados, também produ-
ziram textos, no calor da hora, sobre “A banda” e a recepção privilegiada do jovem compositor.
Não só a veiculação dos festivais de música em horário nobre conferia importância à disputa. A Ditadura Civil-
-Militar brasileira tinha começado em 1964 e inicialmente poupado parte da intelectualidade considerada socialista
e outros agentes progressistas, interceptando aqueles que foram pontos de contato com operários, camponeses,
marinheiros e soldados. O resultado é chamado por Roberto Schwarz (1978) de “relativa hegemonia de esquerda”,
que muitas vezes tinha nos festivais de música popular um amplificador de seus posicionamentos políticos. Castello
Branco, primeiro presidente do período ditatorial, governou até março de 1967. Em seguida, Costa e Silva foi
presidente até 1968, quando o regime endureceu. Com o passar do tempo, as intervenções, sobretudo a tortura,
tornaram-se cada vez mais públicas, radicalizando as posições.
Esse é o momento do III Festival da Música Popular Brasileira, em 1967 – recomenda-se o documentário Uma
noite em 67, presente nas referências deste capítulo, para aprofundamento da temática –, no qual Chico ficou em
terceiro lugar, com “Roda Viva”, interpretada por ele e pelo conjunto MPB4. No mesmo final de semana, no dia se-
guinte, a canção “Carolina” alcançou o 3 o lugar no II Festival Internacional da Canção. No ano seguinte, um segundo
lugar na I Bienal do Samba, com “Bom tempo”; em junho, o primeiro lugar no III Festival Internacional da Canção;
em outubro, com “Sabiá”, em parceria com Tom Jobim; e em nove de dezembro, um sexto lugar, mas primeiro no
júri popular, no IV Festival da Música Popular Brasileira, com “Benvinda”. Para muitos, não houve maior vencedor dos
festivais de música dos anos 1960 no Brasil do que Chico Buarque.
A vitória de Chico no II FIC foi recebida por vaias da plateia do Maracanãzinho, que preferia “Pra não dizer que
não falei de flores”, de Geraldo Vandré, que consideravam mais engajada. É possível encontrar no YouTube o áudio
de Vandré, no qual há o trecho: “Sabe? Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem nosso respeito.
A nossa função é de fazer canções e a função de julgá-las, neste momento, é do júri, que ali está”. O acontecimento
era prova do alto grau de polarização política da sociedade brasileira naquele momento, o que culminou no AI-5,
em 13 de dezembro de 1968 – quatro dias após a final do IV FMPB –, decreto que, entre outras medidas autoritárias,
instaurava a censura prévia das manifestações artísticas. Caetano Veloso e Gilberto Gil, intérpretes e composito-
res contemporâneos de Chico, foram presos pela ditadura em 27 de dezembro do mesmo ano e expulsos do país
no começo do ano seguinte. Chico se autoexilou na Itália em janeiro de 1969, vivendo uma série de dificuldades no
estrangeiro e voltando ao Brasil somente no fim de março de 1970, quando o país já estava sob a presidência do
general Médici, período que durou até março 1974.

14

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 14 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Vida e obra
A contextualização do momento de Ditadura Civil-Militar para a história do Brasil e para a classe artística busca
conduzir o ouvinte para alguns aspectos da obra e da biografia de Chico: 1) o compositor é oriundo de uma família
referencialmente letrada e, por meio do pai, conhecia as altas esferas da música popular brasileira; 2) antes do exílio,
Chico era famoso e reconhecido como cancionista virtuoso, sambista e forte concorrente nos festivais de música;
3) ao mesmo tempo que Chico ainda não é um grande intérprete do Brasil, o que se tornará ao longo das décadas
seguintes – o disco Construção é exatamente esse ponto de virada (precedido por um compacto em que constava
“Apesar de você”, canção que critica diretamente o regime ditatorial e que posteriormente seria recolhido e proibi-
do pelos militares); e 4) há um aumento exponencial de tensão social e política no Brasil desde o começo dos anos
1960 que afeta diretamente Chico Buarque, acarretando agruras consideráveis em sua vida pessoal e em seu hori-
zonte como artista. Esses aspectos ajudam a compreender Chico de 1971 como aquele que viria a ser um dos maio-
res artistas do século XX, e a produção de Construção como um dos principais discos da música popular brasileira.
Dali em diante, o compositor lançaria mais uma dezena e meia de discos autorais, entre eles Chico canta (1973),
que se chamaria “Calabar”, mas foi censurado pela ditadura, e Caravanas (2017). Se contados os compactos, discos
ao vivo, discos em parceria com outros artistas etc., são quarenta e nove, onze deles “ao vivo” e trinta e oito grava-
dos em estúdio.
Dois aspectos da análise desse conjunto de obras precisam ser destacados. O primeiro deles diz respeito ao
quanto Chico sofreu com a censura prévia ao longo da década de 1970, a ponto de gravar um disco apenas como
intérprete, Sinal fechado (1974), e criar o nome fictício Julinho de Adelaide, com que assinava canções para evitar
que fosse censurado assim que vissem seu nome como autor. Há um longo debate sobre em que medida a censura
prévia teria alterado ou não parte importante do cancioneiro nacional. A fim de escapar de terem canções vetadas
ou modificadas, muitas vezes os cancionistas usavam metáforas, alegorias e outras figuras de linguagem como
forma de despistar a censura, ao passo que em outros cancioneiros, como o britânico, os desvios ao sentido literal
teriam menor incidência. Vale ressaltar que canções cifradas pertencem à tradição brasileira desde os cantos dos
escravizados, quando se comunicavam e zombavam de seus opressores em letras inacessíveis aos brancos.
O segundo aspecto importante remete à razão de Chico ser conhecido como um grande leitor do Brasil por
meio de suas canções, uma espécie de intérprete do país. Isso se deve à presença de uma série de questões da
vida pública brasileira, mais explícitas ou implícitas, que figuram nos discos, tornando possível que acompanhemos
certas histórias da nação pelas canções. Ilustrativamente, lá estão o exílio, o clima de conspiração, a hipocrisia e a
corrupção do Estado brasileiro em Meus caros amigos (1976), a anistia (volta dos exilados pela ditadura) e a miséria
em Chico Buarque (1978), o subdesenvolvimento e a condição periférica do país em Vida (1980), e assim por diante.
Não significa, entretanto, que os limites da perspectiva do compositor não sejam perceptíveis. Dois exemplos disso
são o debate de igualdade de gênero, que acusa aspectos misóginos nas canções do artista – o “eu lírico” feminino,
isto é, uma canção cuja voz seja de uma mulher, é uma das marcas de Chico –, e as canções que têm por matéria a
periferia, que se distanciaram da realidade com o surgimento do rap no final dos anos 1980. Esse ponto será reto-
mado no ensaio ao final do capítulo.
No teatro, Chico Buarque estreou com Roda Viva (1967), peça dirigida por José Celso Martinez Corrêa que teve
seus atores agredidos pelo grupo paramilitar Comando de Caça aos Comunistas (CCC) em uma apresentação na
cidade de São Paulo, em 1968. Em seguida, escreveu, com Ruy Guerra, Calabar (1973), peça e disco homônimos que
sofreram com a censura. Depois, com Paulo Pontes, Gota D’Água (1975), e, sem coautoria, a Ópera do malandro
(1978), em forte diálogo com a obra de Brecht; essas últimas são as duas grandes obras dramáticas de Chico Buar-
que. Também merece menção a obra adaptada do poeta Jorge de Lima, O Grande Circo Místico (1983), cuja trilha
sonora é de Chico e Edu Lobo. Em 2018, a história ganhou uma versão cinematográfica.
É importante também ressaltar o sucesso de Chico Buarque no mundo da narrativa. Após uma primeira iniciati-
va nos anos 1970 com Fazenda modelo (1974) e uma incursão na seara do infantojuvenil com Chapeuzinho amarelo
(1979), além do livro de poesias escrito quando era estudante de arquitetura, entre 1963 e 1964, resgatado e ilustrado
por Vallandro Keating (então colega de faculdade): A bordo do Rui Barbosa (1981), Chico se tornou um romancista
regular e premiado a partir dos anos 1990. Desde então são seis romances: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Buda-
peste (2003), Leite derramado (2009), O irmão alemão (2014) e Essa gente (2019).
Para uma boa parte da crítica e de historiadores da música popular, Chico é o maior cancionista da história do
país, esclarecendo que o arco da canção popular vai, razoavelmente, de Noel Rosa aos cancionistas contemporâ-
neos, embora muitos críticos já falem em pós-canção para alguns artistas do século XXI e haja muitos gêneros, como
o rap, que não cabem nessa denominação.
Na literatura, seu destaque é mais modesto, mas não menos notável. Recebeu o Prêmio Jabuti por Estorvo, Bu-
dapeste e Leite derramado, o Prêmio Casa de Las Américas por Leite derramado, o Prêmio da Associação Paulista
de Críticos de Arte por O irmão alemão e, mais recentemente, o Prêmio Camões, que é dado pelo conjunto da obra
a um autor de língua portuguesa a cada ano. Desde que Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2016,
abrindo espaço para compositores populares ambicionarem a distinção, Chico Buarque está cotado como um pro-
vável vencedor do prêmio.

15

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 15 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Apresentação e análise da obra


Construção (1971) é o primeiro LP lançado com Chico de volta ao Brasil, após autoexílio de mais de um ano na
Itália. O disco anterior foi gravado nos dois países; as bases com os instrumentos foram inseridas no Brasil, e as vozes
de Chico, na Itália. Em 1970, ele havia lançado um compacto recebido positivamente pela crítica com “Apesar de
você” no lado A e “Desalento”, que estará em Construção, no lado B, mas ninguém esperava o sucesso do disco
que seria lançado no ano seguinte.
Construção tem dez canções. Algumas delas – todas do lado A e duas canções do lado B – serão aqui analisadas
pormenorizadamente. De antemão, é imprescindível observar que se está em contato com um formato, o LP, que
não tem mais a mesma tradição de outros tempos. O LP é um conjunto ordenado de canções, em que o artista e/
ou o produtor musical – no caso da obra, o bossa-novista Roberto Menescal – escolhem como contar a “narrativa”
daquele disco, isto é, a ordem das canções e a necessária troca de lado do LP sugerem uma relação que ultrapassa
a unidade da canção. Com o advento do CD, que não precisa ter o lado trocado, e do MP3, que permite misturar as
faixas de música, essas condições se tornaram mais raras. Para ouvir este LP, portanto, é necessário estar atento à
ordem das canções e a como elas foram organizadas entre os dois lados do disco.
Com base nisso, é possível observar que a história contada pelo lado A do disco é muito mais cerrada do que
aquela contada pelo lado B. O lado A tem, pela ordem, “Deus lhe pague”, “Cotidiano”, “Desalento” e “Construção”,
sendo que, ao fim desta, retorna à canção que abre o disco, em uma espécie de medley. A pauta desse lado do disco
são os operários, os peões, a camada popular e trabalhadora da sociedade, além de figuras comumente abordadas
na obra de Chico, como o “malandro”. “Desalento” é a canção mais dolente das quatro, embora as demais também
sugiram certo espírito de confrontação das desigualdades e injustiças.
O lado B do LP traz “Cordão”, “Olha Maria”, “Samba de Orly”, “Valsinha”, “Minha história” e “Acalanto”. Nelas, a
luta cede espaço à melancolia, e a energia do disco cai notavelmente em relação ao lado A, o que não significa ne-
cessariamente dizer que sejam canções com menor qualidade; Walter Garcia (2013), em uma análise da permanência
dos pregões de rua em canções de Dorival Caymmi e Chico Buarque, sugere que a falta melancólica de um tempo
passado, no qual as relações não estavam atravessadas pela mercadoria, é uma das marcas sensíveis na obra de Chico.
No que diz respeito à produção técnica, o disco não disponibiliza todas as informações técnicas explicitadas em
seu encarte. Sabe-se que a direção musical é de Magro, integrante do MPB4, que faz participações especiais no
disco, como na primeira faixa, e que alguns arranjos são certamente de Rogério Duprat, como o de “Construção” e
“Deus lhe pague”. Por inferência, pode-se arriscar que o maestro escreveu também outros arranjos do disco, espe-
cialmente o lado A (os outros arranjos seriam de Magro). Não há indicação, por exemplo, dos músicos que tocaram
nas faixas, a não ser quando se trata de uma participação especial, como a de Tom Jobim ao piano e do Trio Mocotó
na percussão em “Olha, Maria” e a de Toquinho ao violão em “Samba de Orly”.

FAIXA 1, LADO A: “Deus lhe pague” (Chico Buarque)


Para aprofundamento na análise de “Deus lhe pague”, é necessário, antes, entender, mesmo que brevemente, a
relação entre entoação e canção. Canção não é apenas letra unida à melodia, o que levaria a crer que quanto mais
bonita uma ou outra, melhor a canção. Ela está mais para uma entoação, como na voz falada, porém estabilizada no
tempo e estilizada. Por isso, a riqueza do universo cancional brasileiro não sofre com os baixos índices de letramento
no país até o final do século XX. Dito isso, ao analisar uma canção, um dos focos importantes deve ser a maneira
como a letra está sendo entoada. Em livro de referência para o campo, Luiz Tatit (1996) explica como vários tipos de
entoação estão vinculados a determinados afetos da voz que canta na canção, que se costuma chamar de “eu can-
cional”. Em geral, por exemplo, quando a melodia vai mais para o agudo, há um investimento passional desse “eu”
da canção, o que pode significar amor, aflição, angústia etc. ou raiva, como é o caso em “Deus lhe pague”.
A faixa 1 é uma das canções do disco em que o arranjo tem grande função no sentido geral da música. O berim-
bau da abertura, os instrumentos de percussão, os instrumentos de sopro, o piano, o contrabaixo; todos equilibram
uma entoação relativamente repetitiva, que tem basicamente dois movimentos, um até a metade da canção e outro
da metade da canção em diante. É certo dizer que o arranjo aqui é central, mas não se pode esquecer os movimen-
tos entoativos, em geral cíclicos e na altura normal da fala, que sobem drasticamente a partir do 1'45", materializan-
do certa disposição que antes estava apenas insinuada.
“Deus lhe pague” lembra, ritmicamente, outras canções da época, como “Arrastão” (Edu Lobo & Vinicius de
Moraes) ou “Ponteio” (Edu Lobo & Capinam), entoada semelhante a um arrasta-pé ou outro ritmo binário. O caxixi
acentuado evoca também a dimensão indígena ou cabocla do arranjo. A ambiência sugerida é popular e se segui-
rá por todo o primeiro lado do disco. Poeticamente, são quartetos que se encerram sempre com o mesmo verso,
“Deus lhe pague”, expressão comum de agradecimento. Desde o início, contudo, percebemos a ironia, já que o
eu cancional, que é coletivo, representando várias pessoas diferentes, mas pertencentes a um mesmo lugar social,
agradece por uma série de coisas a que teria direito e não precisaria agradecer: “pão pra comer”, “chão pra dormir”,
“respirar”, “existir” etc. Essa percepção de uma ironia vai se intensificando pela própria repetição da expressão,
que parte do tradicional uso inócuo – um clichê, que na maioria dos casos não quer dizer mesmo o desejo literal de
quem diz – rumo a um misto de agonia e ameaça. A mudança de entoação torna evidente que a canção não pode
ser tomada literalmente, e o arranjo é o responsável pelo desenvolvimento desse contínuo até a última repetição,
em coro, da expressão popular e os últimos segundos de arranjo.

16

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 16 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

FAIXA 2, LADO A: “Cotidiano” (Chico Buarque)


“Cotidiano” juntamente a “Construção” são as canções mais conhecidas do disco. É um samba em que todos os
elementos cancionais – letra, entoação e arranjo – sugerem o cotidiano de um trabalhador. Não se sabe se é preci-
samente um operário, mas que “pega” cedo no trabalho, tem horário fixo de almoço, jornada extensa diária e vive
um relacionamento mais tradicional, o mais esperado nos anos 1970, no qual a mulher ainda ocupa um papel de ad-
ministradora do lar. A letra se desenvolve em quartetos com paralelismos, como “boca de hortelã”, “boca de café”,
“boca de feijão”, “boca de paixão” e “boca de pavor”; a entoação desenvolve curvas ascendentes e descendentes,
indicando sempre a mesma figura; e o arranjo reforça a presença de um relógio, uma batida marcando o tempo,
dominando a vida do eu cancional e de sua esposa.
A faixa, contudo, não é só ciclo e repetição. Há algumas diversidades que merecem ser apontadas. A primeira
delas está no arranjo. Apesar dos elementos de repetição, na combinação de violão, percussão e instrumentos de
sopro da segunda volta da letra na estrofe “Seis da tarde, como era de se esperar / Ela pega e me espera no portão /
Diz que está muito louca pra beijar / E me beija com a boca de paixão” (BUARQUE, 1971), surge um arranjo de cor-
das, em escala ascendente, sugerindo, mais do que o encantamento desse “eu” da canção quanto a encontrar a
esposa ao fim do dia, um desafogo de sua vida íntima em relação ao cotidiano de trabalho. O equilíbrio entre desejo
(amor, paixão, vontade, cheiros etc.) e trabalho está no cerne dessa canção. O universo do trabalho determina tudo,
ou quase tudo, construindo também uma força que silencia as pessoas naquele cotidiano.

FAIXA 3, LADO A: “Desalento” (Chico Buarque e Vinicius de Moraes)


Primeira canção em parceria do disco, “Desalento” traz a marca do poeta Vinicius de Moraes na concisão da le-
tra. Aparentemente, trata-se de um pedido de desculpas de um homem à mulher que ele teria magoado, em samba
lento. Ao prestar um pouco mais de atenção, ao menos na versão dele, é ela quem teria errado: “Diz que eu estive
por pouco / Diz a ela que eu estou louco / Pra perdoar” (BUARQUE, 1971), em uma passagem devidamente sublinha-
da no arranjo por instrumentos de corda. Avançando um pouco mais na análise, é possível perceber os negaceios
dessa voz, que hesita, delonga, usa termos “pomposos” e linguagem figurada para confessar sua culpa somente
na parte final da canção: “Diz assim / Que eu rodei / Que eu bebi / Que eu caí [...]” (BUARQUE, 1971). Indo além na
compreensão, percebe-se que na verdade ele nem mesmo está pedindo perdão, mas sim pedindo para alguém o
fazer por ele: “Sim, vai e diz”, verso inicial da canção. Esse primeiro verso, aliás, deixa a sinceridade do eu cancional
sob suspeita e insere uma dose de cálculo em seu pedido de desculpas.
Chico Buarque é célebre por expandir a perspectiva “malandra” no universo da canção popular brasileira.
Malandro aqui entendido de maneira vasta: o boêmio, o músico popular, o trambiqueiro e até mesmo o praticante
de crimes menores, ao que se chama “malandro da leve”. “Desalento” é um exemplo de canção que se ergue na
voz de um desses malandros, o boêmio. Na canção, as possíveis leituras, com maior ou menor malícia, incorporam
a situação performática do pedido de perdão à pessoa amada. A ideia é enganar audições mais ingênuas, posto
que, certamente, o malandro não pretende se redimir e mudar seu comportamento, caso sejam aceitos seus pe-
didos de desculpas.
É importante dizer que o malandro relativamente inofensivo é uma construção que remota ao começo do sé-
culo XX e será incentivada pelo Estado Novo como possível identidade nacional. Muitas vezes vai ser caracteriza-
do como figura de resistência ao trabalho imposto e, por diversos motivos, o malandro como figura de resistência
começará a perder força nos anos 1970 e 1980.

FAIXA 4, LADO A: “Construção” (Chico Buarque)


“Construção” foi eleita como a melhor canção da música popular pela revista Rolling Stone, em 2009, e em se-
gundo lugar, atrás de “Águas de março” (Tom Jobim), por uma enquete similar feita pela Folha de S.Paulo, em 2002.
Apesar de seus seis minutos e meio de duração e por meio de incentivos financeiros às emissoras de rádio, a canção
ficou entre as mais pedidas do ano de 1971.
Em síntese, a canção narra a história de um operário que sai de casa com destino a uma construção, onde traba-
lha, e ao chegar lá, após uma sucessão de acontecimentos, cai do alto da edificação e morre. Assim como em “Deus
lhe pague”, que retorna ao fim da canção, o arranjo é essencial para compreensão do sentimento do eu cancional.
Alguns pesquisadores, como Gil Jardim, professor do Departamento de Música da USP, elegem “Construção” como
um exemplo de canção que não pode ser entendida fora do arranjo. Em “Construção”, na repetição da letra, com a
troca das palavras finais de cada verso, fica patente que não se trata da história de um único operário, mas de muitos.
Chico escolhe a tragédia para contar a história desses operários e, assim, constrói um contracanto em relação
aos arranha-céus que se erguiam no país na esteira do desenvolvimentismo militar – alta intervenção estatal, de-
senvolvimento do mercado, fetiche da tecnologia e empobrecimento das camadas populares (OLIVEIRA, 2013). Em
1971, o INPS registrou 1 325 410 acidentes de trabalho, número que atingiu quase dois milhões quatro anos depois,
estatísticas sociais motivadoras para a composição da faixa.

17

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 17 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Sempre se comentam os versos proparoxítonos de “Construção”, e essa observação precisa ser entendida em uma
concepção maior de rima e de certa orientação clássica que guia a letra. Primeiramente: os versos aparentemente são
brancos, isto é, não rimam; mas ritmo e rima são fenômenos contíguos e têm mais a ver com constância do que com a
definição do que seja cada um. A rima pode ser tomada como um fenômeno do ritmo – a cada tempo um determina-
do som se repete – e o ritmo também pode ser tomado como um fenômeno da rima – sentimos aquela repetição do
ritmo como uma repetição de sons; em suma: Chico não rima palavras, mas acentos. Adiante, no Grego antigo, língua
em que são escritas as tragédias clássicas, o foco está na duração da sílaba, e não na sua tonicidade ou atonicidade.
Movimentar-se nesse espaço significa se valer de outras possibilidades poéticas que não foram as hegemônicas nas
línguas românicas. Essa ligação com o trágico também se dá noutros aspectos importantes da canção, como o anún-
cio do inescapável destino: “Amou daquela vez como se fosse a última”, a dimensão coletiva do herói e a purificação
coletiva e social pela narrativa (catarse). A substância trágica abastece “Construção” de várias formas, mas sempre com
um desvio em relação à matriz, como se aquela condição não pudesse ser superada catarticamente, e os operários,
fadados a subir e cair de arranha-céus e ainda agradecer por isso: que “deus lhe pague”.

FAIXA 3, LADO B: “Samba de Orly” (Chico Buarque, Toquinho e


Vinicius de Moraes)
Paris-Orly é um aeroporto ao sul de Paris por onde entrava parte dos exilados pela Ditadura Civil-Militar brasilei-
ra. Toquinho, quem fez a música da canção, tinha ido à Itália a convite de Chico, para shows que, ao fim, não aconte-
ceram. Prestes a retornar, mostrou a melodia ao compositor, que colocou a letra: “Vai, meu irmão / Pega esse avião
/ Você tem razão / De correr assim desse frio / Mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro lance
mão”. O arranjo é de um samba bem cadenciado, e o ouvinte consegue perceber a diferença em relação às canções
do lado A, já que agora quem arranja é Magro, um dos componentes do grupo vocálico MPB4.
A perspectiva da canção é de quem permanece no exílio e canta ao amigo que está voltando à cidade amada.
Nesse caso, tem-se uma entoação mais marcante, quase de samba-enredo, e outra um pouco mais sentimental,
quando é entoado “Mas não diga nada / Que me viu chorando” e nos versos seguintes. É nesses versos, aliás, que
se revela a aflição desse eu cancional, carente de notícias boas e que vai levando a vida como pode.
Vinicius de Moraes, outro parceiro na criação da canção, teria proposto um único verso, que, depois teria sido
vetado pela censura: “pela omissão, um tanto forçada” em vez de “pela duração dessa temporada”. Vinicius alegou
que não tinha culpa e exigiu a manutenção da parceria, ao que foi atendido pelos outros dois.

FAIXA 5, LADO B: “Minha história” (Lucio Dalla e Paola Pallotino,


versão de Chico Buarque)
“Minha história” é a única versão do disco. Uma versão tem sempre um lugar especial na história da canção,
porque geralmente significa a colocação de outra letra em uma melodia original. No caso particular dessa versão
de Chico, o conteúdo da letra é quase uma tradução da canção “Gesù Bambino”, a música original – as rimas do
brasileiro são mais sofisticadas, como se pode ver nos versos finais da primeira estrofe: “Sei que tinha tatuagem no
braço e dourado no dente / Minha mãe se entregou a esse homem perdidamente” –, mas o compositor carioca fez
algumas modificações: a presença do vocalize “Laiá laiá”, ausente na canção original, e a transformação da rumba
sutil de Lucio Dalla em balada.
Na canção do disco, o filho adulto de uma mãe solo, engravidada por um marinheiro, conta do relacionamento
de sua mãe, da espera vã dela durante a gestação, de seu nascimento, quando a mãe resolve lhe batizar com o nome
de Menino Jesus e, por fim, após um salto no tempo da narrativa, agora no presente, de seu mau comportamento,
dando a entender que há uma ligação entre sua história e como ele se porta: “Minha história, esse nome que ainda
hoje carrego comigo / Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo”. A entoação dolente tende a causar
no ouvinte muita simpatia por esse narrador desajustado. Um passo atrás, contudo, na versão de Chico, pode fazer
questionar os motivos que levaram esse narrador a contar sua triste história.

Orientações de leitura
A primeira orientação diz respeito a como, de fato, uma canção pode ser cobrada em um exame vestibular.
Canções como “Construção”, “Valsinha”, “Minha história” e “Samba de Orly”, por exemplo, mais centradas na letra,
ganham força em detrimento daquelas cuja força também se encontra muito na maneira como os versos são entoa-
dos, nos arranjos e nos outros elementos não verbais, ou seja, a análise verbal da canção se torna o direcionamento
central para o exame. Por mais que Chico repetidas vezes tenha dito que não é poeta, salvo no livro de poemas
recuperado, escrito em sua juventude, há elementos poéticos sofisticados em suas canções, como a qualidade das
rimas “todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode às seis horas da manhã / me sorri um sorriso pontual / e me
beija com a boca de hortelã”; as imagens poéticas “pelos andaimes, pingentes [...]”; as figuras de linguagem: anáfora

18

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 18 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

“que eu rodei / que eu bebi / que eu caí [...]”, ironia: “deus lhe pague” etc. Também são notáveis as variações formais
nas narrativas – narradores em primeira pessoa, narradores em terceira pessoa, vozes individuais, vozes coletivas,
focos narrativos variados – e a riqueza intertextual, seja com provérbios, ditados etc., seja com outros gêneros, como
a fala para o amigo em “Samba de Orly” ou a história quase lendária de “Valsinha”. Visto isso, perguntas sobre as
letras das canções são certamente as mais esperadas, tratando-se do disco.
A segunda orientação de análise da obra vem da observação de que as dez canções compõem um conjunto
ordenado de formas, com ordem e com a disposição em lados diferentes do disco. Assim, a estrutura fechada e cir-
cular do lado A, por exemplo, pode ser observada, bem como uma comparação entre o caráter coletivo e combativo
da canção “Deus lhe pague”, que abre o lado A, e o voto de resistência e persistência individual do artista em “Cor-
dão”, que abre o lado B. Ainda é possível que as canções sejam comparadas a canções de outros compositores. Uma
dessas relações, bastante conhecida, é entre “Cotidiano” e “Você não entende nada” (1972), de Caetano Veloso. As
duas canções seriam gravadas juntas no disco Chico e Caetano juntos e ao vivo (1972), no qual o verso “todo dia” do
final da canção de Caetano combinaria com o verso “todo dia” que abre a canção de Chico. Outra relação não tão
conhecida é entre “Construção” e “Águas de março” (GARCIA, 2010): esta teria sido inspirada por “Construção”, e
o destaque que é dado à palavra nas canções de Chico pode ter se convertido na sucessão de termos que marca a
canção famosa na voz de Elis Regina e Tom Jobim.
Por fim, a última orientação fundamental de análise diz respeito ao momento do disco e à sua crítica contrária a
qualquer perspectiva de progresso, de crescimento, de “milagre brasileiro”, que era então carro-chefe da propa-
ganda militar no país. A crise do petróleo, em 1974, que revelaria a fragilidade do projeto econômico dos militares,
ainda não estava no horizonte. Na contracorrente, portanto, Chico escancarava a pobreza, a opressão dos trabalha-
dores, as vítimas das construções, a censura e o exílio.

Perguntas orientadoras
1. Quais as relações possíveis entre a temática das letras do disco e o contexto sócio-histórico pelo qual passava o Brasil?
2. Como a ordem das canções no disco ajuda a compor a experiência estética do ouvinte?

Conteúdo Complementar
 O site de Chico Buarque, www.chicobuarque.com.br, tem informações sobre discos, canções, além de vasta docu-
mentação, como crônicas, entrevistas e reportagens sobre o artista.

Ensaio
Chico Buarque: intérprete do Brasil
Tradicionalmente, quando se fala em “intérpretes do Brasil”, refere-se a um conjunto de intelectuais que pu-
blicaram ensaios importantes nos anos trinta e quarenta do século passado, sobretudo, Gilberto Freyre, com seu
Casa-grande & senzala (1933), Sergio Buarque de Hollanda, com Raízes do Brasil (1936), e Caio Prado Júnior, com
Formação do Brasil Contemporâneo (1942). Nesses casos, são visões de conjunto que buscam na história as razões
de nossa formação como nação. A partir deles, pode-se mencionar, na virada do século XIX para o XX, Euclides da
Cunha como um intérprete do país. Também, em meados do século XX, é possível citar Celso Furtado, Raymundo
Faoro, Antonio Candido e Paulo Emilio Salles Gomes. Mais tarde, tem-se Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia
de Carvalho Franco e Roberto Schwarz, entre outros.
Artistas de ofício também podem figurar como intérpretes do país. Costuma se tratar, entretanto, como esperado
pela brevidade de algumas formas estéticas, menos de recuperação histórica e mais de identificação dos aspectos
definidores de nossa constituição. No caso de Chico, que parece perturbadoramente ter herdado a condição de in-
térprete de seu pai – perturbador posto que um dos aspectos nefastos da composição nacional é o poder herdado e
mantido sempre na mão de uns poucos –, a expectativa sobre sua obra era de que mostrasse aspectos não evidentes,
propusesse encaminhamentos, provocasse e confrontasse os poderosos etc. E assim foi por muito tempo: a sociedade
brasileira lia o país pelos olhos desse compositor, que parecia um leitor mais agudo e ainda capaz de transformar sua
leitura em canção de excelência. Ali estava, em “Feijoada completa” (1977), o comentário em primeira hora da anistia,
que seria promulgada em 1979, trazendo militantes exilados, mas também anistiando todas as pessoas acusadas de
crimes políticos. Ali estava, em “Pelas tabelas” (1984), um comentário sobre o processo da redemocratização brasileira,
que elegeria de maneira indireta o primeiro presidente após a Ditadura Civil-Militar em 1985.
Ao longo de dezenas de discos, Chico Buarque demonstrou versatilidade para compor em diversos gêneros mu-
sicais, além de uma variação incrível de tons, modos, procedimentos, perspectivas etc. Não obstante, desde então,
algumas movimentações na sociedade brasileira e no universo da música popular colocaram em xeque o lugar de
Chico. De um lado, uma nova onda do feminismo, fruto dos debates identitários do fim do século XX, questionava as
canções do compositor nas quais o “eu cancional” era uma voz feminina, dizendo que havia ali uma falsa perspectiva

19

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 19 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

feminina. De outro, gêneros que surgiram nas periferias dos grandes centros urbanos, mormente, rap e funk, traziam
a perspectiva desses sujeitos, colocando em questão até que ponto Chico poderia ser também um intérprete das
periferias. Em síntese, ficou evidente que os intérpretes do Brasil do século XX interpretavam um Brasil, deixando
outros “brasis” de fora, como, em muitos casos, o Brasil das mulheres, o Brasil dos negros, o Brasil dos indígenas etc.
Cabe mencionar que essa tensão é muito mais complicada do que algumas poucas linhas poderiam sumarizar.
A começar pelo fato de Chico nunca ter se colocado em uma condição confortável em relação aos limites de sua
própria interpretação. Em 1976, em parceria com Augusto Boal, Chico escreveu a canção “Mulheres de Atenas”, ho-
mônima à peça do diretor carioca – que explicita a condição coadjuvante, mas importante, dos homens na luta pela
emancipação das mulheres na sociedade. Bem mais tarde, em 2011, o rapper Crioulo fez uma versão para “Cálice”
(1973), de Chico Buarque e Milton Nascimento. O compositor incorporou a versão ao show da turnê do disco Chico
(2011), saudando o rapper e, em certa medida, a produção dos artistas populares das periferias brasileiras.
Estabelecidas as questões do que fora um “intérprete do Brasil” e dos limites recentes enfrentados, não só
por Chico, mas pela própria categoria de “intérpretes”, esse arco ganhou um novo momento em 2017/2018 com o
lançamento do disco Caravanas (2017) e o show que sucedeu o álbum. Contemporâneo ao show Ofertório, em que
Caetano Veloso, outro cancionista considerado intérprete do país, acompanhado dos filhos, fazia uma espécie de
recapitulação emocionante de seu legado, Chico lançou um trabalho em que novamente abordava as mazelas na-
cionais e os limites de sua própria dicção.
A canção-título, “As caravanas” (Chico Buarque), uma habanera rápida misturada em alguns momentos com
bases de passinho, é exemplar no que se pretende propor, conforme segue o trecho:

É um dia de real grandeza, tudo azul


Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba


A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas


Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa


A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné [...]
(BUARQUE, 2017)

Apesar de sua idade, em 2017 Chico tinha mais de setenta anos, é difícil dizer que a canção se trata de uma visão
conservadora de mundo. O movimento de fundir a chegada da população das periferias às praias cariocas da Zona
Sul a uma sensação de invasão dos bárbaros e, com isso, desvelar o racismo da “gente ordeira” e pacata é certeiro
e cumpre com o propósito. É evidente que a obra do compositor se distancia do “passinho”, fenômeno que se
celebrizou na década de 2010, mas isso não impede que seja capaz de criar uma grande canção com essa matéria.
Grande, aqui, como realização estética e como realização crítica.
Ao que parece, o gesto de interpretação segue constante na obra de Chico Buarque, que poderia ser tra-
duzido por: conhecimento da história brasileira, análise aguda do que foi recebido desse passado, intervenção
estético-crítica no presente e vislumbre, por muitas vezes pessimista, melancólico ou cético, de como as coisas vão
se seguir a partir de então. Por diversos fatores, é possível que não nos voltemos mais, como sociedade, para esse
tipo de interpretação social. Como parâmetro interessante, Caetano parece acompanhar essa transformação em
sua trilogia – Cê (2006), Zii e Zie (2008) e Abraçaço (2012) –, adaptando-se, digamos, ao fim dessa concepção de in-
térpretes e se transformando em uma voz importante de uma nova fusão da MPB com o rock. Há dez anos, Caetano
parecia mais jovem do que nunca. Chico parece saudosista desde sempre, desde “A banda” e “Olê, olá” (1966).
Trata-se de uma coerência indestrutível.

20

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 20 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Ponciá Vicêncio
Conceição Evaristo

Contexto histórico
Ponciá Vicêncio foi o primeiro romance publicado por Conceição Evaristo. O livro saiu em 2003 e, apesar de ter
ganhado um estudo crítico de maior fôlego somente em 2007, hoje é uma das obras mais conhecidas da autora,
tendo diversas leituras críticas já produzidas desde então. Traduzido para o inglês e para o francês, o romance conta
também com alguns estudos literários fora do Brasil.
Segundo reconhecimento da própria autora, inicialmente seus textos circularam entre o público do movimento
social negro, especialmente de mulheres. Foi esse grupo que primeiro legitimou sua escrita, que em seguida passou
a atingir públicos mais diversos. Hoje, a autora encontra-se entre os nomes de mulheres escritoras mais pesquisadas
dentro dos estudos literários que abordam produções contemporâneas. Uma das buscas de Conceição Evaristo
em sua obra é criar textos literários que fujam do estereótipo do negro como uma figura única. A autora afirma que
pretende, em seu trabalho, reverter um imaginário redutor que já existe sobre a representação do negro na literatu-
ra. Sua postura enquanto escritora seria de estar sempre vigilante nesse sentido, para tentar criar outro imaginário
diferente do construído através do tempo.
Nesse sentido, um dos aspectos a ser destacado na literatura dessa autora, em geral, e no romance Ponciá
Vicêncio, em particular, é a importância da memória. A própria autora afirma em sua pesquisa de mestrado como
“a literatura negra é um lugar de memória” (EVARISTO, 1996, p. 24). A produção literária afro-brasileira depende-
ria, portanto, do resgate de sua própria história e memória. A escrita da autora busca, então, a afirmação de uma
identidade negra, vista com orgulho, assim como o fazem também outras escritoras negras que produzem contem-
poraneamente. Dessa forma, a produção literária de Conceição disputa sempre um lugar em meio à literatura já
canônica, diante da produção hegemônica histórica.
Recentemente, Conceição Evaristo ganhou destaque por conta de alguns posicionamentos políticos públicos,
especialmente como mulher negra na sociedade brasileira, em um momento de contexto social complexo, com
fortalecimento de lutas feministas e antirracistas, ao mesmo tempo em que crescem posturas conservadoras e de-
claradamente preconceituosas. Foi uma das figuras marcantes ao se posicionar publicamente após o assassinato da
deputada Marielle Franco, no início de 2018.

Vida e obra
A escritora Conceição Evaristo tornou-se, nos últimos anos, um dos nomes mais comentados da produção literá-
ria brasileira contemporânea. Conceição nasceu em 1946, na cidade de Belo Horizonte (MG), em uma comunidade
próxima à avenida Afonso Pena, região hoje valorizada da capital mineira. Sua mãe trabalhava lavando roupa para
fora e tinha o costume de contar histórias para ela e para seus oito irmãos. Além do apreço por contar e ouvir narra-
tivas, Conceição relembra o esforço da mãe para que os filhos estudassem.
Junto ao período de sua formação básica na escola, do qual a autora destaca o marcante contato com livros e
leituras na sua adolescência, Conceição trabalhava como empregada doméstica até o início da década de 1970,
quando se formou como professora no antigo Curso Normal, aos 25 anos (em 1971). Na sequência, ela mudou-se
para o Rio de Janeiro, onde mora até hoje. Como ela mesma aponta ao comentar sua biografia, toda sua trajetória
profissional é construída na cidade do Rio de Janeiro: é onde entra para o magistério público após um concurso,
onde cursa Letras (na Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, mais tarde, defende seu mestrado (pela PUC/RJ),
em 1996. Em 2011, termina seu doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), também sobre literatura.
Foi na década de 1980 que se engajou com revistas e publicações afro-brasileiras, a partir do Grupo Quilombhoje,
de São Paulo. Sua primeira publicação data de 1990, na série Cadernos Negros – passa a ser então, como ela mesma
diz, uma escritora publicada, porque antes já escrevia, mas a publicação a torna reconhecida nesse lugar de autora.
Vale lembrar que o momento no país é de efervescência de alguns movimentos sociais e mobilizações que incluem
a luta por igualdade social. Até o final da década de 1990, a escritora tem outros contos e poemas publicados nas
antologias dos Cadernos Negros, assim como algumas de suas obras publicadas fora do Brasil (Berlim, Londres, Co-
lorado, Baltimore).

21

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 21 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Como abordado anteriormente, foi em 2003 que Conceição Evaristo publicou seu primeiro romance: Ponciá
Vicêncio, pela editora Mazza, com uma tiragem pequena e com a própria autora de parceira na divisão dos custos.
Posteriormente, uma tiragem maior foi lançada pela mesma editora, com reimpressão de mais exemplares, após a
obra entrar para a lista de livros de exames vestibulares em Minas Gerais. Em 2007, esse romance foi traduzido para
o inglês pela editora Host, dos Estados Unidos, com tradução de Paloma Martinez-Cruz; mais recentemente, em
2015, ganhou tradução para o francês, pela editora Anacaona (com o título L’histoire de Poncia, a partir da tradução
de Patrick Louis e Paula Anacaona). Em 2006, publicou outro romance: Becos da memória, pela Pallas Editora. Uma
antologia de contos saiu publicada em 2014, também pela Pallas Editora, levando como título um dos contos que a
integra: Olhos d'água. Essa reunião de textos traz quinze contos que abordam a pobreza e a violência enfrentada
pela população afro-brasileira construída, principalmente, a partir de narradoras femininas. Em 2016, a autora pu-
blicou outro livro de contos, Histórias de leves enganos e parecenças, pela Editora Malê. Atualmente, Conceição
Evaristo tem diversas de suas criações traduzidas para outras línguas.
A escritora foi uma das ganhadoras de um dos maiores prêmios literários do Brasil: o Prêmio Jabuti de Literatura,
em 2015, pelo livro Olhos d’água. Em 2017, ganhou o Prêmio Faz a Diferença, na categoria Prosa. Ainda em 2017,
venceu o Prêmio Cláudia na categoria Cultura. Em 2018, concorreu a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras
– era especialmente a cadeira do patrono Castro Alves, autor de textos fundamentais para a história literária sobre
a escravidão do negro no Brasil, mas a escritora não foi a escolhida. Em 2019, ela foi a homenageada da Bienal do
Livro de Contagem, em Minas Gerais.
Atualmente, Conceição Evaristo é professora convidada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já
realizou diversas palestras sobre sua obra fora do Brasil, o que contribuiu para seu reconhecimento internamente no
país, sendo hoje, uma das autoras mais reconhecidas nos debates sobre literatura contemporânea ou sobre literatura
afro-brasileira. Todavia, ela ainda está por ser mais popularizada como referência pública da cultura.

Apresentação e análise da obra


O enredo centra-se na história da protagonista – que dá nome ao romance – e de sua família: Ponciá, mulher
negra, recorda passagens de sua vida de menina na roça, o trabalho com o barro, as brincadeiras e reflexões sobre
o arco-íris, a imagem do avô e as comparações que sempre faziam dela com ele, a saída do pai e do irmão para
trabalhar na terra, as relações entre a mãe e o pai, a morte do pai, sua partida para a cidade aos 19 anos, os sete
filhos que perdeu e a tentativa de sobrevivência na cidade. Apresentadas para o leitor de maneira não linear, essas
recordações de sua infância e juventude são dispostas ao longo de várias passagens, misturadas ao tempo da pro-
tagonista já adulta, na cidade.
Quando menina, pensava que se passasse debaixo do arco-íris poderia virar menino. Agora sabia que não viraria
homem. Por que o receio então? Estava crescida, mulher feita. Olhou firmemente o arco-íris pensando que se virasse
homem, que mal teria? Relembrou-se do primeiro homem que conhecera em sua vida.
(EVARISTO, 2003, p.10)

Os primeiros capítulos são colados à perspectiva da protagonista, mas já apresentam algumas das outras perso-
nagens, a partir do olhar dela. Outros capítulos são mais próximos da perspectiva de outras personagens. E assim,
nesse vai e vem temporal e espacial, com variações dos pontos de vista, vai-se construindo ao leitor a trama daque-
las vidas no recorte narrado. Os inícios de capítulos reproduzidos a seguir dão um pouco essa dimensão:
Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda sua
infância. [...] Como passar para o outro lado?
(EVARISTO, 2003, p. 9)

Ao limpar os últimos degraus da porta da delegacia, Luandi parou um pouco para permitir que o Soldado Nestor
passasse. Luandi admirava o Soldado Nestor.
(EVARISTO, 2003, p. 68)

A mãe de Ponciá Vicêncio pensava nos filhos, mas relutava em tomar o rumo da cidade. A cidade era para os no-
vos, para os que aguentava qualquer aventura.
(EVARISTO, 2003, p. 76)

O vilarejo onde Ponciá cresceu chama-se Vila Vicêncio e fica na zona rural, no interior do Brasil. Próximo a sua
casa de pau a pique vivem outras famílias de descendentes de escravizados.
As casas das terras dos negros, para o olhar estrangeiro, eram aparentemente iguais. Chão batido, liso, escorrega-
dio, paredes de pau-a-pique e cobertura de capim.
(EVARISTO, 2003, p. 59)

Seu pai e seu irmão trabalham nas plantações, a mãe se ocupa das tarefas domésticas e produz obras de arte-
sanato a partir do barro. Entre os outros negros do espaço da roça, para além do núcleo familiar de Ponciá, a per-
sonagem mais relevante para a narrativa será Nêngua Kainda, que aparecerá em momentos diversos do romance.

22

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 22 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

Na cidade, com Ponciá adulta e morando em uma pequena casa no morro, a narrativa traz seu marido, do qual
não sabemos o nome, referido textualmente por “o homem”. Ela cuida da casa e sofre violências desse homem
com quem mora. As recordações continuam marcando suas reflexões, inclusive no contraste do reconhecimento de
como antes gostava de ser mulher.

Ponciá Vicêncio interrompeu os pensamentos lembranças, levantou-se endireitando as costas que ardiam pelo
soco recebido do homem e foi vagarosamente arrumar a comida.
(EVARISTO, 2003, p. 21)

Nos tempos da roça de Ponciá, nos tempos da casa de pau-a-pique, de chão de barro batido, de bonecas de espiga
de milho, de arco-íris feito cobra coral bebendo água no rio, a menina gostava de ser mulher, era feliz. [...] Ponciá Vi-
cêncio sorria. O pai era forte, o irmão quase um homem, a mãe mandava e eles obedeciam. Era tão bom ser mulher!
(EVARISTO, 2003, p. 24)

É por meio das recordações que se sabe também da história do avô paterno de Ponciá, vô Vicêncio, que traz
no corpo a marca da violência e do desespero: ele havia nascido com os braços e pernas; seu braço amputado foi
resultado de um momento de indignação e tentativa extrema de acabar com o sofrimento dele e de sua esposa.
O escravizado não aguentou as dores da situação de sua família, que mesmo após a Lei do Ventre Livre precisou
vender alguns dos filhos para sobreviver. Ele ataca e mata a esposa, e se automutila no braço. Não consegue pôr fim
à própria vida porque é impedido antes, “a vida continuou com ele independente do seu querer” (EVARISTO, 2003,
p. 50). E o riso-choro que aparece em diversas passagens do livro também marca essa cena. O avô se acalma, mas
fica com as marcas da loucura e do braço amputado. Ponciá, além da semelhança física, tinha o hábito de imitar a
postura do avô. Constrói um boneco de barro semelhante a ele, mesmo tendo sido muito pequena quando convive-
ram, “criança de colo ainda” (EVARISTO, 2003, p. 51), gerando espanto na mãe e no restante da família.
Depois da morte de seu pai, Ponciá sai com destino à cidade, sem muitas despedidas. “Quando Ponciá Vicêncio
resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. [...] Nem tempo
de se despedir do irmão teve” (EVARISTO, 2003, p. 32). Ela viaja de trem com incertezas a esperando na cidade e passa
a primeira noite na escada de uma igreja, junto a pessoas em situação de rua que ali dormiam. Consegue um trabalho
de empregada doméstica e aos poucos junta dinheiro, que usa como quantia de entrada em uma pequena casa no
morro. Ponciá conhece na periferia o homem a quem adiante terá como companheiro, morando em sua casa: ele tra-
balha em uma construção ao lado do emprego da mulher e a trata com violência dentro de casa – agride Ponciá mais
de uma vez. “Ela teve um ligeiro tremor de medo. Ele iria bater-lhe novamente?” (EVARISTO, 2003, p. 110).
Na segunda metade do romance, a narrativa sobre a partida do irmão e da mãe de Ponciá também para a ci-
dade vai ganhando espaço, e alguns capítulos passam a ser mais focados na perspectiva deles. Luandi, irmão da
protagonista, também deixa a roça acreditando poder viver uma história de sucesso na cidade, como é narrado em:
“‘Para que eu vim pra cidade?’, se perguntou novamente. Achar minha irmã, juntar dinheiro e ficar rico. Dizem que
na cidade as pessoas trabalham muito, mas ficam ricas” (EVARISTO, 2003, p. 70). O rapaz quer ser soldado, casar e
ter uma casa ali para encontrar a irmã e trazer a mãe. Ele consegue emprego na limpeza de uma delegacia, ademais
conhece e se apaixona por uma moça prostituta, com quem pretende se casar. Ela é tragicamente assassinada pelo
cafetão, em mais uma marca de violência direcionada às mulheres negras. Luandi entra em um ciclo de tristeza pro-
funda. Tempos depois da saída do filho, a mãe parte do vilarejo na esperança de encontrar sua prole. A chegada da
matriarca na cidade grande é talvez a mais acolhida, comparada à dureza e ao desamparo com os quais chegaram
os dois filhos antes. Por um agrado do destino, a mãe encontra o soldado Nestor, colega de trabalho de Luandi na
delegacia, que reconhece a própria letra no endereço anotado em um papel, mostrado a ele pela senhora, e a leva
para o encontro do filho.
Antes desses reencontros finais, tanto Ponciá quanto o irmão haviam retornado mais de uma vez para a casa de in-
fância, mas em nenhuma das vezes juntos. Encontram-na vazia, mas com marcas do passado e vestígios de que alguém
havia estado ali. Em um desses retornos, Ponciá pega o boneco de barro do avô no fundo do baú e o guarda consigo.

Continua procurando e remexendo nos objetos tão conhecidos. Foi ao velho baú de madeira, tirou de lá algumas
palhas secas e viu, então, lá no fundo, o homem-barro. Vô Vicêncio olhava para ela como se estivesse perguntando tudo.
(EVARISTO, 2003, p. 48-49)

No retorno de Luandi ao vilarejo, ele traja a farda do amigo soldado, no intuito de ser visto como alguém de
poder. “Soldado Nestor não tinha uma farda velha para dar para ele? Queria chegar ao povoado feito gente impor-
tante, gente de mando!...” (EVARISTO, 2003, p. 79). Esses desencontros repetidos são mesclados com conselhos da
velha Nêngua Kainda, que reforça a ideia de que Ponciá vai receber a herança do avô, questiona a intenção torta de
Luandi em relação a um poder individual e os ajuda a compreender que o tempo de reencontro ainda está por vir
“[...] foi advertida que o tempo não havia desenhado ainda o encontro dos três. Maria Vicêncio ouviu as palavras de
Nêngua Kainda e concordou. Por que desafiar o tempo?” (EVARISTO, 2003, p. 109). De fato, somente depois de a
velha Nêngua dizer à mãe que o tempo agora permitia o encontro é que ela se encaminha para a cidade e consegue
reencontrar o filho. Mais tarde, também na estação, ambos encontram Ponciá, que já apresenta sinais de loucura,

23

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 23 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

como os do avô. Os momentos de vazio e ausência, junto ao riso-choro como o do avô, passaram a aumentar na
vida de Ponciá. O marido havia percebido que ela estava doente, até se arrepende de ter agredido a moça: “Sentiu
remorsos por já ter batido na mulher tantas vezes. Não, ela não ficava assim longe, assim lerda por preguiça. Estava
doente, muito doente” (EVARISTO, 2003, p. 110).
Nas cenas finais, a mãe de Ponciá rememora os choros da menina ainda no ventre.

Maria Vicêncio, agora de olhos abertos, contemplava a filha. A menina continuava bela; no rosto sofrente, feições
de mulher. Por alguns momentos, outras faces, não só a de Vô Vicêncio, visitaram o rosto de Ponciá. A mãe reconhe-
ceu todas, mesmo aquelas que chegavam de um outro tempo-espaço. Lá estava a sua menina única e múltipla. Maria
Vicêncio se alegrou, o tempo de reconduzir a filha à casa, à beira do rio estava acontecendo. Ponciá voltaria ao lugar
das águas e lá encontraria a sustância, o húmus para o seu viver.
(EVARISTO, 2003, p. 129)

No reencontro dos três, a protagonista, seu irmão e sua mãe, o romance se encerra: “Ponciá, elo e herança de
uma memória reencontrada pelos seus” (EVARISTO, 2003, p. 132).
O romance se constrói em uma estrutura narrativa não cronológica, não linear. À primeira vista, o texto parece ter
uma estrutura fragmentada; porém, como será abordado adiante, não se trata exatamente de tanto. O narrador de
fato constrói a narrativa em torno da família de Ponciá, com saltos no tempo e no espaço, mas não chega a ter uma
fragmentação completa do texto nem na estruturação das sentenças, nem mesmo na lógica do vai e vem entre as
memórias sob o qual a narrativa é construída.
Sobre os elementos narrativos de tempo e espaço, o romance não identifica nem um nem outro com precisão. Há
diversas descrições sobre o ambiente rural (as terras, o rio, a casa de pau a pique, o vilarejo), sobre a transição (o trem
e as estações) e o ambiente urbano (a igreja, a delegacia, a zona, os barracos no morro, obras de construção civil); há
menções a tempo da escravidão (do Vô Vicêncio), a um tempo imediatamente posterior (do pai de Ponciá) e a um tem-
po mais distante, de personagens na cidade (Ponciá adulta e o irmão). Todavia, todas as menções a marcas espaciais se
dão sem um nível de detalhe que nos permita localizar especificamente onde e quando se passa a narrativa.
Sabe-se, porém, que tempo e espaço se relacionam com a história dos negros no Brasil. Como aponta Claire Wil-
lians, os cenários do romance “são altamente simbólicos da experiência afrobrasileira: a roça e a favela” (WILLIANS,
2012, p. 60). Da mesma forma, é possível situar temporalmente que o enredo do romance se passa em momento
pós-abolição da escravatura e com marcas da escravidão ainda próximas. Na herança que Ponciá recebe do avô,
pode-se incluir o sofrimento mesmo após o fim da escravidão. Nesse sentido, é como se o tempo tivesse parado.
A Vila Vicêncio é mostrada como uma espécie de família estendida do pequeno núcleo familiar de Ponciá, daí
a relação homônima entre o local e a família. Todavia, apesar dessa marca “invisível, mas poderosa” do poder do
branco, o grupo negro consegue ainda manter “vestígios da cultura que os antepassados trouxeram da África: a lín-
gua que só os mais velhos entendiam, as canções (de trabalho, de despedida), os remédios (garrafadas, benzeduras)
e a sabedoria da anciã Nêngua Kainda” (WILLIANS, 2012, p. 60).
O narrador se constrói, inclusive, como porta-voz da etnicidade daquele grupo. Nesse sentido, a história de Pon-
ciá e de sua família recontam parte da história coletiva do Brasil: as relações coloniais de exploração, a escravidão
dos negros, relações marcadas pelo machismo, a desigualdade social na cidade. As poucas personagens brancas
de quem o narrador também se aproxima, como o sinhô que maltrata o pai de Ponciá e o delegado, já ao fim do
romance, também apontam para essas relações de opressão em relação aos negros.
A narrativa é de cunho realista, com alguns elementos de caráter mitológico. O narrador onisciente acompanha
os pensamentos íntimos de cada personagem e apresenta ao leitor, além das ações e vivências pelas quais passam,
essa interioridade: sabe-se, por meio do narrador, o que sonham, o que desejam, por que se entristecem etc. Poucas
vezes falas ou pensamentos das personagens vêm marcados textualmente com aspas; em geral, misturam-se aos
trechos narrados.
O título do romance constitui-se do nome da protagonista, que se questiona sobre esses termos. Ela estranhava
seu primeiro nome: o acento agudo era como “uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo” (EVARISTO, 2003, p. 27). Seu
sobrenome traz as marcas da violência da história da escravidão: as relações de poder a que estavam submetidos
em relação aos brancos (na figura do Coronel Vicêncio). A ausência de um sobrenome próprio já questiona o tipo de
“libertação” ocorrida para os negros ex-escravizados. “Vicêncio” é para Ponciá marca pessoal, mas ao mesmo tempo
coletiva, social. “Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor” (EVARISTO, 2003, p. 27). Dessa forma, a
junção dos nomes Ponciá + Vicêncio já condensa, com base nessas reflexões, desde o título do romance, muitos dos
dilemas que a narrativa apresenta.
Nas ambivalências entre memória e esquecimento, vão se constituindo as identidades do grupo negro repre-
sentado na narrativa. Há uma luta pelo espaço físico (nas terras e na cidade), mas também uma disputa pelo espaço
simbólico de preservação da memória e da história da cultura negra (VALIM, 2019). Ler e escrever aparecem no en-
redo como saber relacionado ao poder do branco e do urbano – o pai aprendeu as letras com o sinhô, Ponciá, com
os padres missionários de passagem na roça. Há, portanto, um confronto com os saberes populares e a tradição
oral “O saber que se precisa na roça difere em tudo do da cidade” (EVARISTO, 2003, p. 25). Na tradição cultural
negra, estariam as marcas de cantos, cheiros, barulhos e até das repetições de gestos. O corpo de Ponciá recupera,

24

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 24 31/07/2023 08:55:39


Análise de Obras – UFRGS

involuntariamente, os gestos de herança do avô; é pelo laço afetivo que os gestos se repetem entre os familiares: o
gesto dela repete o do avô, o canto do irmão repete o do pai, a filha aprende com a mãe a escolher o melhor barro
a moldar a terra. Há uma valorização da ancestralidade nas marcas da cultura negra, que passam também pelo tra-
balho com o barro: as mãos das mulheres criam tanto utensílios quanto arte, do barro da natureza elas criam cultura.
Por fim, um ponto destacado pela crítica sobre Ponciá Vicêncio é como a obra se enquadra na linha iniciada por Ma-
ria Firmina dos Reis, com a publicação de Úrsula, em 1859. Para o professor Eduardo de Assis Duarte, a narrativa criada
nos anos 2000 por Conceição Evaristo se liga a um “veio afrodescendente que mescla história não oficial, memória
individual e coletiva com invenção literária” que teria se iniciado nas letras brasileiras com o romance de Firmina. Na
vertente inaugurada por ela, o “resgate de uma memória coletiva apagada pelo discurso colonial” ganha sequência
posteriormente, em faturas diversas, na prosa afro-brasileira, passando inclusive por Carolina Maria de Jesus.
É por essa marca da voz negra na literatura brasileira, revelando criticamente marcas fundamentais de nossa
história, que Ponciá Vicêncio pode ser lido.

É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que
no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contra-
ponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial.
(DUARTE, 2006)

Personagens principais
 Ponciá: protagonista do romance. Mulher negra e pobre que viveu a infância e parte da juventude na roça, onde
aprende a trabalhar o barro e ouve histórias do seu povo e do passado, incluindo do avô com quem todos afirmam
se parecer. Na cidade, trabalha de doméstica e mora em uma favela, no morro; casa-se com um homem que a
agride, e perde todos os filhos de sete gestações.

 Maria, mãe de Ponciá: também mulher negra e pobre que vive maior parte de sua vida na roça, onde faz artesanato
com barro. Tinha boa relação com o marido e sofre com sua ausência após a morte dele. Já idosa, também sofre a
ausência dos filhos e vai para a cidade buscando reencontrá-los.

 Luandi: trabalhava com o pai na roça e vai para a cidade depois da ida da irmã. Lá, trabalha de faxineiro em uma
delegacia, mas sonha em ser soldado, inspirado no amigo Nestor. Planeja voltar a viver junto com a mãe e a irmã, a
quem tenta reencontrar. Ele passa por mudanças importantes na segunda metade do romance, quando se apaixona
por Bilisa, com quem planejava se casar, mas ela tem sua vida repentinamente interrompida.

 Pai de Ponciá (filho de vô Vicêncio): parece ter boa relação com a esposa, apesar de mais calado, e relação tensa
com seu pai, o avô de Ponciá. Um dia, morre no meio da plantação em que trabalhava.

 Vô Vicêncio: ex-escravizado, é a grande referência familiar ancestral para Ponciá, que “guardava mais a imagem
dele do que a do próprio pai” (EVARISTO, 2003, p. 12). A história de como vô Vicêncio mutilou o próprio braço e
do seu choro-riso marcam a narrativa das memórias da família de Ponciá e o destino da menina, que receberá como
herança dele o mesmo riso-choro e o olhar vazio da loucura.

 Nêngua Kainda: mulher negra, velha e sábia, responsável por parte importante da tradição oral dos negros da
Vila Vicêncio, além das rezas e orientações de ordem prática. Sua primeira aparição no romance é em oposição às
práticas dos padres católicos, como se a tradição deles, vinda da cidade e da lógica colonial, se opusesse à dela,
rural e de ancestralidade. Aconselha Luandi e Maria antes de eles se reencontrarem e encontrarem Ponciá na ci-
dade. Morre já bem idosa: “Parecia congregar a velhice de todos os velhos do mundo” (EVARISTO, 2003, p. 117).

 Soldado Nestor: homem negro que trabalha como soldado na cidade, é admirado por Luandi, servindo de exem-
plo para ele, de quem se torna amigo. Acaba sendo elo importante para ajudar Luandi tanto a aprender a ler e a
escrever quanto a tornar-se soldado e a reencontrar a mãe.

 Bilisa: mulher negra que aparece no romance por meio da narrativa de Luandi na cidade. Ela havia feito a mesma
migração da roça para a cidade após ter sido roubada em uma casa onde trabalhava. Acaba indo trabalhar como
prostituta e se relacionando com o irmão de Ponciá. É “mulher-dama” por quem Luandi se apaixona e com quem
pretende se casar, mas é assassinada por Negro Climério antes de oficializar a relação.

 Negro Climério: homem negro, dono do prostíbulo onde Bilisa trabalha. Mantém relação de violência e poder
com as mulheres que trabalham no local, incluindo o assassinato de Bilisa. Segundo o que conta o soldado Nestor,
é preso logo em seguida do crime.

25

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 25 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Orientações de leitura
Um dos primeiros aspectos a se destacar na leitura de Ponciá Vicêncio é, como aponta Fernanda Miguel, a ten-
tativa da construção de uma identidade negra positivada, carregada de sentido político, capaz de fazer frente ao
racismo estrutural dominante. Assim, a linguagem do romance constrói uma forte relação entre corpo, memória e
violência. O corpo do avô de Ponciá traz as marcas do desespero e da exploração pela escravidão. O pai de Ponciá,
apesar de já livre, cresceu levando a mesma vida de seus pais, feito pajem do menino branco. Como é possível ver na
cena em que o branco urina na boca dele – passagem que retoma “de forma ampliada e crua a cena do menino Brás
Cubas de Machado de Assis, reposicionando-a em um nível inédito de violência”, apontado por Eduardo Duarte.
Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do
pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem
abriu. A urina do outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava
e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas.
(EVARISTO, 2003, p. 14)

A humilhação não consegue ser verbalizada e é expressa pelo choro, salgado como o que vem do corpo do ou-
tro para violentar o seu. O riso de um e o choro do outro revelam as posições entre as classes sociais, em uma espé-
cie de tortura sádica realizada pelo menino branco, que faz do corpo do outro menino um objeto a seu dispor. Essa
violência é marcada pelo mesmo riso-choro antagônico que o avô internaliza em seu corpo. As marcas da escravidão
não são, portanto, somente da exploração econômica, mas são humilhação e desumanização.
Para Fernanda Miguel, o romance de Conceição Evaristo revela criticamente aspectos da desumanização dos
corpos negros, que sofrem diversas tentativas de apagamento da sua história e das suas marcas ancestrais. Ponciá
se inscreve, portanto, como território de memória, de retomada dessa história – também do campo literário con-
temporâneo.
Parte da crítica classifica esse livro de Conceição como um romance de formação. O próprio prefácio de Maria José
Barbosa o identifica assim, termo que é retomado por alguns críticos depois. Para o professor Eduardo Assis Duarte,
nesse romance a autora retoma o procedimento que ele denomina “brutalismo poético”, ao narrar em “linguagem
concisa e densa de sentido, a vida de uma mulher oriunda do mundo rural, desde a infância até a ‘maturidade’ des-
territorializada na favela em que vegeta junto ao companheiro” (DUARTE, 2006). A narrativa seria, assim, um romance
de formação feminino e negro, ao dramatizar a busca da protagonista por “recuperar e reconstituir família, memória,
identidade” (DUARTE, 2006). Todavia, haveria grandes diferenças em relação ao modelo europeu, que seria aqui rasu-
rado a fim de “conformá-lo às peculiaridades da matéria representada” (DUARTE, 2006). Dessa forma, para o professor,
essa apropriação desse tipo de romance feita por Conceição Evaristo teria ganhado
[...] contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e
tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triun-
fante do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e presente,
recordação e devaneio.
(DUARTE, 2006)

Essas relações tensas entre passado e presente se notam desde o sobrenome da família de Ponciá, que é de des-
cendentes de escravizados africanos, mas traz o nome “Vicêncio” como “marca de subalternidade” que acompanha
a história destes no Brasil – marca do poder do antigo dono da terra, Coronel Vicêncio. Para Eduardo Duarte, essa
marca denuncia “a ausência entre os remanescentes de escravizados dos mínimos requisitos de cidadania” e entra
como parte de um “penoso circuito de vazios e derrotas” em que a protagonista é afastada dos seus familiares e “de
tudo o que possa significar enraizamento identitário” (DUARTE, 2006). Nesse caminho de perdas, contrário às glórias
clássicas de um romance de formação, Ponciá perde, inclusive, todos os filhos que gera; e acaba por perder a si própria.
Apesar de esse aspecto ser pouco desenvolvido no romance, as sete vidas que a protagonista gerou e não foram
adiante, ele pode ser lido como muito significante para a trajetória de Ponciá e de sua família: dela não seguirão
descendentes; a vida que tenta crescer a partir do corpo dela não segue adiante. Mesmo que o leitor não saiba os
motivos precisos dessas perdas ou mais detalhes que permitam aprofundar as leituras sobre esse ponto, a reafir-
mação de que nenhuma das sete vidas geradas foi adiante marca essa ausência que passa a dominar o corpo de
Ponciá adulta.
De todo modo, é preciso observar que há sim gestos de resistência, até mesmo na figura do avô e em sua vio-
lenta história de mutilação do próprio braço após matar a esposa. Essas histórias evocadas na narrativa, de maneira
descontínua, mas constante, formariam “uma rede discursiva pela qual se recupera a memória de uma dor que é
física e moral, individual e coletiva” (DUARTE, 2006). Toda a narrativa de Ponciá Vicêncio e de sua família mostra o
entrelaçamento de experiências individuais, íntimas, e uma vivência coletiva, social.
Nesse sentido, como aponta Dejair Dionísio, alguns aspectos do romance ajudariam na revisão e na descons-
trução do conceito de uma identidade nacional única. A ideia de história e de identidade do grupo retratado, na
narrativa criada por Conceição Evaristo, não estaria ligada a conceitos clássicos de nacionalidade, como vista pela
história hegemônica. Dionísio contesta, assim, com base nesse romance, a ideia de que nossa literatura é uma só – a
brasileira. Daí a importância de demarcar territórios específicos, como o étnico ou de gênero, que fragmentariam
essa ideia de unidade na tradição literária.

26

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 26 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

A questão da ancestralidade, estudada por Dionísio e relevante para as comunidades de matriz africana, ajuda
a compreender a ligação dos afro-brasileiros à terra de seus ancestrais. O romance de Evaristo parece se esforçar
para colocar em primeiro plano essas raízes (familiares e sociais), essa marca ancestral que por vezes é silenciada na
história oficial, pelas forças de um discurso hegemônico que tenta traçar um fio de identidade único – ou melhor,
que apague as violências da opressão ao povo negro.
Mesmo o traço da loucura – herança deixada pelo avô para Ponciá –, que a princípio pode ser visto como alie-
nação, é lido por alguns pesquisadores como resistência a essa história de violência. A loucura marca o tema do
passado escravocrata a que se ligam as personagens do romance, “homens e mulheres que resistiram à escravidão
e se mostraram conscientes diante dos maus tratos e injustiças sofridas” (ARRUDA, 2009, p. 81).
Apesar de o narrador estar muitas vezes colado à perspectiva de Ponciá, não é por um discurso desconexo que a
narrativa se apresenta, mesmo nas passagens que narram os momentos de ausência e vazio dela e do avô: como já
apontado, a ideia de fragmentação dessa narrativa precisa ser olhada com cuidado. Apesar de não seguir um fio cro-
nológico e parecer juntar estilhaços de memória, o enredo pode ser reconstituído linearmente, “à medida que mon-
tamos o quebra-cabeça vindo da memória das personagens e, ainda, da história a que todo o romance nos remete”
(ARRUDA, 2009, p. 81). As associações não lineares que caracterizam a memória nos remetem à história ancestral de
Ponciá e marcam esse romance, contudo também são recursos de outros textos de escritores afrodescendentes.
Durante todo o romance, a personagem de Ponciá vai confirmando sua descendência escravizada “nos sonhos
apagados pela discriminação e pela marginalização que tanto ela quanto os outros da sua família sofrem” (ARRUDA,
2009, p. 81). A protagonista encara, na cidade, uma invisibilidade diante da sociedade. Como aponta Aline Arruda,
sua condição social continua “sendo regida pelo passado africano”. O trem que a leva para a cidade pode ser asso-
ciado aos navios que transportavam seus ancestrais na diáspora negra. Dessa forma, a “trajetória do espaço rural
para o urbano representa sua condição diaspórica. Assim, mesmo que a viagem feita pela menina em sua procura
não seja a viagem transnacional citada pelos estudiosos da diáspora, ela se constitui numa metáfora desta” (ARRU-
DA, 2009, p. 81). Em uma espécie de “diáspora interna”, a viagem de Ponciá se assemelha à de tantos outros brasi-
leiros “dentro do seu próprio país em busca de uma vida melhor” (ARRUDA, 2009, p. 81).

Perguntas orientadoras
1. Como a reconstrução da memória da personagem dialoga com as relações sociais e a representação da socie-
dade na obra?
2. De que maneira pode-se situar a obra de Conceição Evaristo no seu contexto social?

Ensaio
A questão racial no romance de Conceição Evaristo
A primeira linha de Ponciá Vicêncio apresenta a imagem do arco-íris, referido na sequência como “cobra celeste”
e “colorida cobra do ar”. A importância desse elemento da natureza para a vida e para as memórias da protagonista
já indica, de certa forma, a tônica do romance. Recordações e reconstruções sobre seu próprio passado e sua história,
muitas vezes a partir de um elemento visto ou de algum estímulo que chega por outro sentido (pelos cheiros, pelo
calor), marcam a estrutura da obra. Ponciá vê o arco-íris e recorda medos da sua infância. Rememora histórias que con-
tavam sobre aquele arco colorido no céu e relembra como conferia se ainda continuava menina após o contato com
aquela cobra colorida dos ares. Reflete sobre o que é ser mulher e como “naquela época”, no seu passado de criança,
“gostava de ser menina”. O verbo “gostar”, conjugado no pretérito, já indica que talvez esse prazer não tenha se man-
tido. E as repetições do verbo indicam outros prazeres que talvez tenham também ficado no passado: “Gostava de ser
ela própria. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras [...]” (EVARISTO, 2003, p. 9).
Nesse romance cheio de entrecortes como os típicos do funcionamento da memória, há uma aparente fragmen-
tação no ir e vir entre os tempos e espaços. A narrativa inicial, construída de memórias da infância e das primeiras
caracterizações sobre a família da Ponciá, mescla-se com retornos ao tempo presente de Ponciá adulta, ao lado do
marido, já na cidade. Apesar do movimento narrativo, é possível reconstruir um fio sequencial sem muitos problemas
– não há quebras maiores nesse sentido, que deixem, por exemplo, sequências narrativas incompletas ou totalmen-
te fragmentadas.
É pelo movimento dessa narração e pelos pulos entre lembranças que o leitor vai conhecendo as reflexões que
a protagonista apresenta sobre si e sua própria condição. Na consciência de que sua ida para a cidade não trouxe a
felicidade com a qual ela sonhava nem resolveu sua condição de pobreza, ela se compara com porcos e chega a se
questionar se o que tem é digno de chamar de vida: “Seria isto vida, meu Deus?” (EVARISTO, 2003, p. 32). Nesse tipo
de construção, bem como em passagens que apontam os episódios de fome vividos por variados personagens da
família, é possível notar proximidades com a narrativa de Carolina Maria de Jesus, quando, em Quarto de despejo,
reflete sobre a pobreza que enfrenta e sua própria condição naquele contexto social. Todavia, vale lembrar que,
apesar da aproximação possível, no romance de Conceição não se tem uma escrita autobiográfica, mas de prosa
ficcional, que, por mais que tenha aspectos de memorialística, apresenta um narrador: marca um ponto de vista so-
bre a construção do romance, por vezes se aproxima dos pensamentos da protagonista ou de outras personagens.

27

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 27 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

A obra ocupa um espaço importante na literatura contemporânea brasileira e para os estudos literários, tendo-se
em vista a necessidade de ainda dar a voz a uma parte da produção cultural que não está incorporada ao cânone. É
contribuindo para dar visibilidade a uma literatura que está no esquecimento que esse livro ganha espaço. Assim, os
dramas pessoais das personagens, em especial da protagonista, constroem na obra uma visão crítica à condição so-
cioeconômica e geográfica dos negros no Brasil.
As personagens centrais do livro, nos quais o narrador se cola para apresentar o enredo do romance, são
todas negras. Os brancos aparecem como coadjuvantes daquelas personagens: é preciso atravessar a terra dos
brancos para chegar à lavoura delas; é preciso contar dos senhores brancos (do passado, na vila, e do tempo da
cidade, dos patrões) para explicar as violências sofridas por elas; é preciso mostrar que a maioria dos soldados
eram brancos, mas o foco é no negro que inspira Luandi; é preciso mostrar a oposição com a limpeza e a cor dos
religiosos na igreja da cidade para contar um pouco da tradição religiosa da qual vem Ponciá. Fica evidente que
o foco nessa narrativa não são homens e mulheres brancos – que tantas narrativas já ocupam no cânone da litera-
tura, tanto mundial quanto brasileira.
Compreender o homem branco como “o outro” nesse romance é uma alteração relevante em relação a uma voz
hegemônica constante na história oficial e na literatura canônica. Alteração, portanto, de grande impacto. Todavia,
isso não significa que o negro retratado nesse romance ocupe posição vitoriosa ou com final de solução dos proble-
mas todos apresentados para as personagens.
Nesse sentido, parece acertada a leitura de Claire Willians:
A ficção de Conceição Evaristo narra a herança da escravidão na sociedade brasileira contemporânea, sobretudo os
efeitos nas vidas de mulheres negras. As personagens de Conceição representam a experiência de sujeitos afro-brasileiros
tentando sobreviver digna e honestamente, lutando para serem felizes, apesar de preconceitos de profunda raiz.
(WILLIANS, 2012, p. 59)

Trazer o povo negro e sua experiência para o foco do romance não significa exaltação sem críticas de sua con-
dição. O arco-íris retomado nas linhas finais do livro, a partir da imagem da serpente angorô, não traz uma beleza
mítica que apaga todas as rememorações sofridas expostas na narrativa. A imagem que vai se diluindo não apaga a
dor da imagem daquela mulher que fica andando em círculos, em postura física similar à de seu avô no fim da vida.
Nesse sentido, a importância da similaridade da protagonista com o avô: ela retoma traços familiares, “dos seus”,
como posto no romance, mas isso não é solução para as condições de exclusão que vivia. O reencontro com sua
ancestralidade não é reconciliação que consiga apagar as dores da condição vivida.
Vale ainda observar algumas das oposições que o romance de Conceição Evaristo constrói, como roça/cidade,
passado/presente, homem/mulher, riso/choro, que vão estabelecendo comparações que agregam aos sentidos
compostos na narrativa feitas de memórias intercaladas. Por esse lado, a casa na roça e as casas da cidade marcam
como a mudança de espaço (e tempo) afetam as personagens, mas não garantem saídas ou soluções – mesmo que
esse tenha sido o sonho e a expectativa das personagens por algum tempo. Sonho que se reflete também no desejo
de possuir uma casa própria, comum em narrativas de autores marginalizados, como representação de segurança e
ancoragem para as angústias daquele indivíduo retratado.
A casa da família de Ponciá na roça é outro elemento marcante da estruturação da obra: apesar dos desencon-
tros e da separação espacial, é pela casa que existe uma espécie de comunicação entre os familiares, na segunda
metade do romance. É ainda pela casa da roça que a narrativa sinaliza ao leitor a passagem do tempo.
[...] quando Ponciá visita a casa, há uma cobra no fogão; quando Luandi entra na casa algum tempo depois, só
resta a pele da cobra no fogão; quando Maria entra na casa vai pela última vez reacender o fogão, antes de reencon-
trar seus filhos. Mesmo não estando presentes, a entrada de uma das pessoas provoca uma corrente de lembranças
e sensações estranhas.
(WILLIANS, 2012, p. 64)

Dessa forma, apesar de haver alguma esperança e sonhos variados da protagonista em relação a si própria e
aos seus, as dificuldades que vão se apresentando mostram-se maiores, capazes de dissipar seus desejos e não
impedindo-a de cair na grande ausência e nos momentos de vazio. As lembranças da protagonista – boas da infân-
cia na roça e duras na adolescência como empregada doméstica, mulher que é violentada pelo marido e sofre sete
abortos – estão intimamente ligadas à memória coletiva de Ponciá.
Sobre os setes filhos que Ponciá gerou e perdeu, ela também expõe momentos de reflexão. Avalia, ao passar
de cada gestação, que o destino trágico foi o melhor que poderia lhe acontecer: “Valeria a pena pôr um filho no
mundo?” (EVARISTO, 2003, p. 82). E completa “Foi bom os filhos terem morrido. Nascer, crescer, viver pra quê?”
(EVARISTO, 2003, p. 83). Ela se questiona sobre o que adianta a coragem de muitos que conseguiram fugir e viveram
o ideal dos quilombolas, de que valeu o desespero do seu avô – que chama de “ato de coragem-covardia”–, se “a
vida escrava continuava até os dias de hoje” (EVARISTO, 2003, p. 83). Assim, a protagonista aponta a perpetuação de
uma exclusão e opressão e se reconhece também como escrava: “Escrava de uma condição de vida que se repetia”
(EVARISTO, 2003, p. 84).

28

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 28 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Apesar, portanto, do deslocamento enfrentado pela personagem e das alterações que sofre ao viver em seu
corpo a herança do avô, é nesse sentido que sua reflexão segue – reconhecendo a permanência das marcas de
injustiça para o povo negro. Mesmo com o reencontro com seus familiares, a estruturação do romance de Evaristo
não se aproxima de um “final feliz” – diferentemente do que alguns ensaios críticos sugerem ao comentar o retorno
dela aos seus ou o alcance de uma condição de sujeito.
Por fim, destaca-se a construção em torno de uma personagem que parece secundária ao fio principal do roman-
ce, porém que, analisando, condensa nas poucas linhas em que aparece um dos cernes críticos do livro de Concei-
ção Evaristo. A narrativa sobre Bilisa resume e apresenta de forma dura e crítica muitas das violências que a mulher
negra é obrigada a enfrentar, historicamente, no Brasil, e ainda hoje. A alternativa de sobrevivência da mulher se dá
por meio da prostituição de seu corpo, com todas as dificuldades que isso implica. A moça que escolhia não cobrar
de seus clientes quando conseguia encontrar algum prazer em meio à sua condição extremada de opressão social,
que chegou a vislumbrar um amor e um casamento, acaba sendo assassinada por um homem – assim como a avó
de Ponciá foi (com as diferenças e aproximações de cada narrativa). A personagem de Bilisa é mais uma das marcas
de denúncia social, com especial direcionamento à mulher negra, que Ponciá Vicêncio e a literatura negra trazem.

29

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 29 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Deixe o quarto como está


Amílcar Bettega

Contexto histórico
Deixe o quarto como está (2002), de Amílcar Bettega, pode ser posto como herdeiro de uma longa tradição
brasileira de contistas que reflete sobre a instabilidade do indivíduo urbano, proveniente dos anos 1960 e 1970,
quando o Brasil ainda sofria os efeitos da Ditadura Civil-Militar. Segundo o crítico literário Antonio Candido (1989),
esse período foi crucial para a nova narrativa brasileira, pois não só a repressão e a censura assombraram o país,
mas também uma inflação incontrolável, a superpopulação das cidades, a multiplicação das favelas e o aumento da
desigualdade social. Como é possível perceber no trecho a seguir:
Frente a tais transformações, os escritores captam uma experiência coletiva de esfacelamento e pulverização da
realidade, quando não de caos. A velha ordem desaba, e um mundo instável e inseguro ocupa o seu lugar. Todas estas
mudanças influenciaram decisivamente a prosa de ficção das últimas décadas na direção de uma temática urbana.
(MELLO, 2007, p. 86)

Tendo que deixar seus posicionamentos políticos escondidos, o escritor volta-se para a busca de novos recursos
e técnicas. Nesse sentido, o jornalismo moderno, o cinema, as propagandas, as vanguardas poéticas, influenciam os
novos autores, gerando uma pluralidade de narrativas. Um dos traços característicos da nova narrativa brasileira, de
acordo com Candido, é a hibridização de gêneros. Logo, os anos 1960 e 1970 seguiram uma linha “experimental re-
novadora” que permitiu também a reflexão sobre o que veio depois na literatura brasileira. Dois nomes que devem
ser evocados, segundo Candido, são o de Clarice Lispector e o de Guimarães Rosa. Ambos conseguiram, por meio
de um investimento na linguagem, construir um universo literário muito rico.
É nessa época também que o conto se torna a forma literária escolhida pelos escritores, representando o
melhor da ficção brasileira da época. Dois contistas importantes são João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço,
1963) e Rubem Fonseca (Os prisioneiros, 1963), considerados os propulsores do intitulado “realismo feroz” ou ul-
trarrealismo1. João Antônio apresenta, em seus contos, uma prosa que acessa todos os níveis da realidade graças
ao uso do monólogo, das gírias, da abolição das diferenças entre falado e escrito e de um “ritmo galopante” de
escrita que descreve a brutalidade de uma vida de crimes e prostituição. Rubem Fonseca traz, em sua prosa, uma
violência ainda mais crua que se realiza não só pela temática, mas também pela linguagem. Trata-se de uma nar-
rativa veloz que apresenta, em boa parte de seus contos, um narrador em primeira pessoa considerado, por boa
parte da crítica, a grande força dos seus contos.
Outra tendência literária que deve ser observada é a ruptura com o pacto realista que se dá com a quebra da
linearidade narrativa e com uma pretensão de explicar o mundo de maneira lógica. É assim que o fantástico brasi-
leiro surge para traduzir a inquietude de um mundo contemporâneo intraduzível. Nesse sentido, Murilo Rubião e
J.J. Veiga se consolidam como os propulsores dessa narrativa fantástica, influenciando também autores que vieram
depois, como Moacyr Scliar, Sergio Sant'Anna e Ignácio de Loyola Brandão. Uma fala de Murilo Rubião permite a
compreensão de seu modo de pensar a literatura por fornecer uma definição possível do que é a literatura fantás-
tica. Segundo Rubião, “a literatura é sempre uma transformação/deformação da realidade” (1981, p. 3-4). Em outras
palavras, Rubião mostra que o escritor é aquele que vê sentido onde não há.
Outra característica dessa ruptura com o pacto realista é o uso frequente do narrador em primeira pessoa, um
recurso que, segundo Antonio Candido, pode ser utilizado para confundir autor e personagem. Além do mais, o
uso da primeira pessoa pode ser utilizado para inserir na narrativa um jogo importante e que já havia sido utilizado
por autores do passado: o jogo da não confiabilidade do narrador. Para citar dois bons exemplos, um francês e um
brasileiro, a novela O Horla (1887), de Guy de Maupassant, e o romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis,
ambos jogam com esse narrador a quem devemos ler e desconfiar.
1
Ultrarrealismo ou realismo feroz é uma tendência da prosa contemporânea que ressalta a violência como objeto narrativo e o predomínio do cenário urbano.

30

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 30 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Desde sua publicação, além dos prêmios recebidos, Deixe o quarto como está (2002) logo chamou a atenção da
crítica especializada, projetando o autor gaúcho como uma das promessas da literatura brasileira contemporânea.
Entre os pontos destacados e apresentados pela crítica encontram-se:

 o tratamento do banal misturado ao fantástico;


 a verossimilhança dos contos;
 o domínio da técnica.
A obra apresenta um conjunto de quatorze contos que descrevem um mundo urbano em que o cotidiano e o
estranho se misturam, oferecendo um espaço de mobilidade praticamente inexistente às personagens, que acabam
conformando-se aos seus destinos. O título da obra faz referência a uma frase do livro Rosas amarelas, do autor
estadunidense Raymond Carver (1938-1988), considerado um dos mestres no gênero conto e um dos seguidores do
célebre contista russo Anton Tchekhov.
Ambos os autores deram lições importantes aos contistas contemporâneos, entre elas a importância do poder
de síntese do conto; outra delas é que a literatura pode retratar pessoas comuns. A seguir, podemos ver a carta de
Tchekhov que inspirou profundamente Carver e que, de certa forma, também inspirou Bettega:
Anos atrás li uma carta de Tchekhov que me impressionou. Era um conselho para um de seus muitos correspon-
dentes, e dizia mais ou menos o seguinte: Amigo, você não precisa escrever sobre gente extraordinária que realiza fei-
tos extraordinários e memoráveis. (Entendam que na época eu estava na faculdade e lia peças sobre príncipes, duques
e sobre a derrubada de reinos. Buscas do cálice sagrado e coisas do gênero, grandes façanhas com o objetivo de pôr os
heróis em seus devidos lugares. Romances com heróis exagerados e fora da realidade.) Mas ler o que Tchekhov tinha a
dizer naquela carta, bem como em outras cartas, e seus contos me levou a ver as coisas de modo diferente.
(CARVER, 2010, p. 641)

Dessa maneira, além da concisão, os contos de Amílcar também apresentam as situações cotidianas de perso-
nagens comuns herdeiras de Carver. Além do mais, Bettega faz nos seus contos o uso do fantástico, em um diálogo
com o autor tcheco Franz Kafka (1883-1924) e o autor argentino Júlio Cortázar (1914-1984), dois autores importantes
para a literatura fantástica contemporânea.

Vida e obra
Nascido em 1964 na cidade de São Gabriel, Rio Grande do Sul, Amílcar Bettega Barbosa é formado em Enge-
nharia Civil, mas foi na literatura que encontrou seu caminho. Em 1992, participou da Oficina de Criação Literária
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul coordenada pelo professor e autor Luiz Antonio de Assis
Brasil, que teria papel decisivo em sua vida. Em 2000, concluiu seu Mestrado em Letras pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e, em 2012, concluiu seu Doutorado em regime de cotutela em Études du Monde Lusophone
(Estudos do Mundo Lusófono), pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e em Escrita Criativa pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul. Além de escritor, foi professor universitário e tradutor literário.

Obras do autor
 O voo da trapezista (Movimento/IEL, 1994 – Vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura de 2015);
 Deixe o quarto como está (Companhia das Letras, 2002 – Vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura de 2003 e
Menção honrosa do Prêmio Casa de Las Américas, Cuba);
 Os lados do círculo (Companhia das Letras, 2004 – Vencedor do Prêmio Portugal Telecom de 2005);
 Barreira (Companhia das Letras, 2013 – Resultado do Projeto Amores Expressos organizado pela editora Companhia
das Letras);
 Prosa Breve (Zouk, 2019).

Apresentação e análise da obra


Autorretrato
Esse conto introduz o leitor ao universo da obra. Em suma, ele apresenta a história de uma mulher e um homem
– ambos não nomeados, característica de todos os contos do livro –, em um jardim de uma casa grande. Ela, “a
gorda”, está deitada ao sol, sem se mexer. Ele, “o homem-cão”, está à sombra da árvore de vigia. “São duas pedras.
Com peso de pedra, com frio de pedra, a espalhar um olhar mineral sobre tudo”. Embora estejam no mesmo jardim,
eles ocupam lugares diferentes – a gorda ao sol, o homem à sombra – o que já indica uma hierarquia, embora não
saibamos o tipo específico de relação deles. Quando dois meninos pulam o muro da casa e, sorrateiros, tentam in-
vadir a casa é que a narrativa ganha movimento. O homem-cão vai até os meninos, pega-os pelo pescoço antes que
eles consigam entrar na casa e leva-os até a gorda, que continua estática. “É evidente que ele quer um olhar dela,
apenas um olhar de aprovação”, diz o narrador, mas a gorda o despreza totalmente. Em seguida, o homem pega a

31

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 31 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

cabeça dos dois meninos, fazendo-as se chocarem e, com um “ar paternal”, aguarda que se recuperem para levá-los
até a gorda pela mão. Talvez o evento mais importante da narrativa é o que acontece a seguir: a gorda, de maneira
muito sutil, movimenta-se. “Sem mexer o resto do corpo, a gorda espicha o braço, assume um ar compungido, e
roça os nós dos dedos sob o queixo de cada um dos garotos, lentamente”. É por pouco tempo e é um movimento
rápido, mas esse gesto da gorda coloca uma grande interrogação, principalmente com o que vem a seguir, o que
o narrador talvez tenha visto: um possível choro da gorda. A gorda volta ao seu estado estático, o homem leva os
meninos até o portão, entrega uns doces a eles e os deixa partir. Em seguida, caminhando para o final do conto,
acompanhamos somente o homem, que pega um saco de areia e começa a socar. É importante prestar bem aten-
ção nesse narrador. Embora em terceira pessoa – o que parte da teoria da literatura poderia chamar de “narrador
câmera” –, ele jamais se coloca na narrativa de maneira neutra. Ele se aproxima da mulher de uma maneira bastante
perversa, ressaltando sua gordura, e se aproxima do homem com mais afeição, apiedando-se dele.

Exílio
O conto inicia com o dono de uma loja anunciando que vai fechar o negócio e ir embora da cidade. Embora não
revele o real motivo de sua partida, podemos supor que seja a falta de fregueses. O conto se passa no presente, mas
apresenta um flashback que nos mostra quem é a personagem, qual é sua rotina e como é a sua loja. É a partir de sua
rotina que se pode enxergar, ainda que com uma visão turva, pois jamais se consegue de fato alcançar a visão do todo,
algo dessa personagem. O homem abre a loja, coloca-se atrás do balcão à espera de fregueses. Não tendo fregueses,
logo, não tem dinheiro. Ele não liga o ventilador e nem acende a luz, permanecendo o dia todo atrás do balcão estático
e no escuro. É ali que almoça rápido, apresentando preocupações triviais que o humanizam, como a de não sujar seus
dentes para o caso de os clientes chegarem. Outra atitude da personagem é a de se esconder do sol. A sensação pós-
-almoço, causada pelo calor e pela digestão, é a de quem está ao mesmo tempo sonolento e em estado de alerta per-
manente. E é nesse estado que ele vê crianças invadindo sua loja e descobre, em uma das vezes, que eram cães. Até
então, não há outras personagens, como se as pessoas e a cidade estivessem desaparecendo. “É como se uma grande
borracha estivesse fazendo esse trabalho de apagar a cidade, principalmente as pessoas, os clientes, deixando-a cada
vez mais parecida com uma cidade fantasma.” É importante perceber algumas passagens muito bem trabalhadas na
construção do mistério do conto, como na definição de silêncio como uma “massa sólida de nada” ou na descrição das
“fachadas sombrias e caladas” o observando. Quando finalmente os clientes aparecem, não estão interessados nos
produtos, mas sim tomados por uma curiosidade, um interesse que nós não podemos identificar, apenas talvez supor.
O aparecimento deles e, sobretudo, da mulher que o furta e que ele simplesmente deixa sair só realça a passividade da
personagem. Quando cai a tarde, ele fecha a loja e cumpre o que prometeu no anúncio no início do conto. O trem em
movimento é o único momento de alegria da personagem. Porém, o homem dorme, acorda e continua atravessando a
cidade, até que decide, sem nenhuma resignação para tentar fugir, retornar para a cidade e a loja.

Aprendizado
A primeira cena do conto se passa no quarto de motel fedendo a mofo com o narrador descrevendo uma mulher
sentada se penteando na cama. Nos dois primeiros parágrafos, após uma descrição da mulher, somos apresentados
a duas informações essenciais para a narrativa: a personagem é um homem que será despedido e a mãe dele está
morrendo. Com uma narração de tom oral – nesse sentido, é importante perceber o ritmo acelerado e o léxico mais
informal da personagem – acompanhamos um dia dessa personagem. Aos poucos, vamos percebendo uma de suas
características marcantes: a incapacidade para solucionar seus problemas, como quando a personagem reconhece
a necessidade de levar a mãe ao hospital, mas não tem dinheiro, pois gastou seus últimos trocados no motel. A ca-
minhada da personagem do motel para a casa revela um aspecto estranho sobre esse homem, de que nunca tem
sono e nunca dorme e essa característica é assumida com naturalidade por ele. Ao mesmo tempo, a consciência
que tem de si mesmo, a de que é apenas parte da rua, mostra que vive como se estivesse dormindo. Nesse sentido,
ele está tão distante de tudo que consegue se ver como se fosse uma personagem. Ao chegar em casa, é possível
perceber sua realidade social. Dentro da geladeira apenas uma sopa aguada e sem cor, e o único alimento para ele
são uns farelos de pão sobre a toalha e que, com a ajuda dos dedos e a companhia do pai, ele divide. O pai revela
que a mãe está pior. O máximo que a personagem consegue é pedir ajuda para um homem que trabalha em uma
farmácia veterinária e ficar alguns minutos na fila de um posto de saúde. A personagem logo revela um desejo que
se estende até o final do conto: precisa tomar café. Contudo, o homem não consegue realizá-lo, pois, segundo ele,
sua mãe não o ensinou a preparar e, como está morrendo, ela não pode preparar para ele.

Insistência
Esse conto narra a história de um grupo que tenta invadir uma propriedade vigiada por seguranças. Aqueles que
estão fora, entre eles o narrador do conto, estudam estratégias de como entrar na propriedade. Eles se dão conta,
por exemplo, de que não adianta conversar com os seguranças e de que, embora tivessem direito de estar ali, o
resultado seria sempre o mesmo: o grupo que queria entrar apanharia dos seguranças que querem impedi-los de
entrar. Aos poucos, os que estão do lado de fora vão ficando numerosos, mas ainda assim a estratégia adotada – a de
ir em grupos e partir para o enfrentamento – é vista como equivocada pelo narrador. Ele propõe alterá-la, mas a ideia

32

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 32 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

não é bem quista por um dos líderes pois ”[...] aquela hipótese era inadmissível porque a briga ali não era uma coisa in-
dividual, mas que todo mundo estava empenhado naquilo e aquilo era uma luta do grupo e aquela insistência toda para
ter alguma validade tinha de ser exercida pelo grupo interior [...]”. Contudo, cansado de sempre apanhar, o narrador, em
uma das pancadarias, acaba batendo em um dos “caras” do seu grupo e acaba mudando de lado. Por um momento,
a personagem central se sente realizada, pois ali do outro lado há momentos de descanso, momentos que o fazem se
sentir bem. No entanto, após um comando que não se sabe de onde vem, ele e seu grupo precisam sair rapidamente
atrás dos “caras”. É importante perceber como o único desejo da personagem – e que é satisfeito, mas por um tempo
muito curto – é o de descansar. Ao desacatar a ordem, a personagem acaba sendo excluída de sua função e perdendo
o direito de descanso. Do ponto de vista formal, é muito importante reparar em como o texto, ao apresentar parágrafos
longos, com pouquíssimos pontos finais, apresenta uma narração contínua e acelerada que parece acompanhar o ritmo
da história. Do ponto de vista temático, temos um conto que mostra as dificuldades de organização de grupos e como
certas brigas assumem uma circularidade e nunca mudam, como o narrador mesmo percebe. “Pensei nos caras, que
àquela altura deveriam estar por ali recebendo e dando pancada. Eu continuava achando tudo aquilo uma grande bo-
bagem que não ia dar certo nunca, mas eu já tinha decidido que não ia ter mais sossego na vida, e já ouvia a gritaria dos
caras por ali.” O conto apresenta alguns mistérios que não se propõe a resolver, mas sobre os quais vale a pena pensar:
que propriedade é aquela? Por que o grupo quer entrar nela? Por que o outro grupo quer expulsá-lo?

Hereditário
Esse conto, narrado em primeira pessoa, apresenta a história de um homem que perdeu o pai e que como heran-
ça ganhou uma caixa com uma esfera pequena e maleável que ele chama de “geleia”. A caixa não era um segredo.
Seu pai quase tinha aberto para ele uma vez e outras tantas vezes andou com ela, prestes a mostrar para ele, mas seu
filho não o levava a sério. “Com o tempo, acho que ele desistiu. Eu também fui cuidando de outras coisas.” Alguns
elementos para os quais é possível chamar atenção dizem respeito à relação que passa a ter com a geleia, como se
aquele objeto estivesse dentro dele. “A geleia, de fato, não larga as minhas mãos.” É importante perceber como
não é a personagem que não larga a geleia, mas sim a geleia que não se desgruda da personagem. Aos poucos, a
personagem começa a apresentar sentimentos ambíguos em relação à geleia, tanto o prazer em experimentá-la em
suas mãos quanto o desejo de se livrar dela. Suas tentativas de jogá-la no rio são em vão, uma vez que ela não caía.
Logo percebe-se sua grande preocupação, o que fará o homem se esconder: o que as pessoas iriam pensar se o vis-
sem com a geleia nas mãos? “Escolhi um quarto que já ninguém usasse, no porão (ainda vivíamos na mesma casa), e
fui para lá. Ficamos muito tempo, eu e a geleia, naquele quarto.” É importante perceber o espaço da narrativa – um
quarto que fica dentro de um porão – mostrando a clausura da personagem. Assim, o homem nos diz que passava
maior parte do tempo deitado. Quando consegue levantar-se da cama, decide mostrar a geleia às pessoas, mas a
pessoa para quem ele mostra, o primeiro que viu passar na rua – e aqui poderíamos nos perguntar por que ele não
mostrou para nenhum conhecido – não conseguia enxergar a geleia. “Não sei se me entendem, mas o fato de que
ninguém mais percebia a existência da geleia em mim era o mesmo que dizer que ela jamais me deixaria.” A partir
de então, a personagem começa a pensar no pai e em como ele tentara, muitas vezes, conversar sobre a geleia.
Teria o pai falado com outras pessoas? Por que não insistiu mais com ele? Podemos retomar o título e pensar que
hereditário era a geleia deixada pelo pai, a geleia que causa não só a vergonha, o isolamento e as dores internas,
mas também a incapacidade de conversar com alguém sobre um problema ou até mesmo de pedir ajuda.

O crocodilo
O conto, narrado em primeira pessoa, inicia com um homem recebendo a visita de um crocodilo. Ainda que a
chegada seja estranha para ele, jamais se assusta com a presença do animal, pois associa aquela visão a uma loucura
inevitável. “Nunca tive dúvidas de que acabaria louco.” Inevitável obsessão, uma vez que ele já pensou sobre ela outras
vezes, tendo certeza de que ficaria louco, por exemplo, no verão. Isso porque – e deve-se atentar bem a isso – o calor
é um elemento importante do conto, uma vez que a personagem passa boa parte do conto sentindo calor e tentando
se refrescar. “Devia fazer uns cinco dias que eu estava no colchão, com nojo de mim. Só levantava dali para ir à parede
oposta à da janela e grudar as costas nela.” Um aspecto importante para a composição da personagem diz respeito
a seus movimentos restritos, pois revelam os únicos movimentos feitos pelo homem, o de se deitar e o de se levantar.
Não demora à personagem apresentar uma relação contraditória com a presença do animal. Se de início parece indi-
ferente ao crocodilo, pensando que, se o ignorasse, ele iria embora rapidamente, o homem não tem certeza de que
gostaria que ele partisse. Se de início parece gostar da sua companhia, em seguida começa a se sentir incomodado,
principalmente quando o calor aumenta e a personagem é impedida de fazer a única coisa que parece lhe dar prazer:
ir até a parede para se refrescar. A personagem, em um dos únicos momentos em que não é passiva, acaba chutando
a barriga do crocodilo, que chora. Após o seu choro – e podemos pensar na expressão “lágrimas de crocodilo”, que
denota um choro fingido, um choro de um animal que chora ao devorar sua caça –, o crocodilo passa a se aproximar
da personagem cada vez mais, ficando preso a ela. “Quando acordei, ele já estava em mim.” E não só estava nele, mas
faz as coisas por ele, como atender o interfone, ajudá-lo a se levantar, partir com ele quando a personagem é expulsa
por não pagar as contas. E assim, pode-se identificar uma dependência da personagem pelo animal quando está na
rua e decide comprar um cinto para amarrar o crocodilo. À medida que caminha, com a ajuda do crocodilo, o narrador
passa a ver outros animais nas costas das pessoas.

33

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 33 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

A cura
Esse conto traz a história de um grupo de doentes, contaminados por uma doença desconhecida, que se man-
tém isolado da cidade. Não é possível saber exatamente onde fica o lugar em que as personagens estão, pois os
leitores estão limitados à consciência do narrador em primeira pessoa. Só se sabe que há uma cidade de onde o
Doutor e sua equipe médica vêm e o hospital para onde os doentes vão. Sobre o Doutor e sua equipe, é possível
notar, desde o início do conto, uma confiança depositada de que eles os ajudarão. Não se sabe a origem do vírus,
e o único sintoma que ele causa é o cansaço. “[...] o vírus não afeta nenhum órgão determinado, o corpo se mantém
clinicamente saudável, apenas cai sobre nós o cansaço.” Não se trata de um cansaço normal, mas um cansaço que
aniquila, um cansaço que os deixa jogados no chão. “Somos há muito uma gente cansada, que se deixa ficar.” Mas
antes que a ajuda de que eles necessitam chegue – e ela até o final do conto não chegará –, muitas pessoas morrem.
Da janela do hospital pode-se ver os corpos se empilhando e aumentando ainda mais a insalubridade do lugar. E os
problemas não cessam. Além das mortes e da solução que não chega, outro problema os assola: quando chove, o
lixo transborda. A solução – essa sim, vinda muito rápida – é a de construir um rio. O rio tanto afasta o lugar dos en-
fermos quanto evitaria que o vírus se espalhasse. É importante mencionar que o narrador fala em nome dos doentes,
admitindo que se trata de um drama coletivo e não espaço para apenas a história de um “eu”. Ainda que o título do
conto indique a solução do problema, ela não virá, e as personagens, cansadas demais, só podem aguardar. Logo,
o conto é sobre a espera e, nesse caso, uma espera, pois os doentes não podem fazer nada, a não ser torcer para
que o Doutor e sua equipe venham com a notícia boa. É interessante ver como as personagens apresentam uma
memória incerta e vaga de que já foram a um bairro da cidade, mas elas não têm certeza disso. Assim, podemos
pensar no conto como uma alegoria das metrópoles contemporâneas que iluminam o contraste visível e desigual
entre centro e periferia.

O crocodilo II
Esse conto é a comprovação de algo que qualquer leitor atento, antes mesmo de ter terminado a obra, já deve
ter percebido: a relação que é possível estabelecer entre os contos. Ainda que não seja possível afirmar com certeza
que “O crocodilo II” seja a continuação de “O crocodilo”, uma vez que não é possível notar quase nada sobre a
personagem do primeiro conto, pode-se estabelecer a relação – e até supor que talvez seja a mesma personagem
– graças a um elemento em comum entre os dois contos: a presença do crocodilo em suas costas. Além do mais, o
narrador do conto – em primeira pessoa – parece se comportar como se soubesse que os leitores já conhecem o
crocodilo. O conto mostra um homem que ganhou um cargo importante em uma instituição, segundo o narrador,
porque o homem responsável pela promoção – o Doutor – também tem um crocodilo já “velho” e “esquelético” nas
costas. Em seguida, o narrador está na praia quase deserta com a esposa grávida e o filho. Enquanto caminha com
o filho, escuta de seu herdeiro que ele gostaria de ter um crocodilo como o pai. “Mas eu digo que ele terá o seu
crocodilo, que é preciso paciência, que um dia ele terá, e nem lhe falo nada – porque acho que é muito cedo – sobre
o pequeno ovo que já se faz perceber nas costinhas dele”. Em seguida, como se estivesse tendo uma visão quase
onírica, o narrador descreve o filho correndo na beira do mar ”[...] mas lá vai ele, alegre e infantil, sem desconfiar que
já leva de arrasto um rabinho jovem e incipiente que se agita como vigor dos músculos novos”. Sentado na areia,
enquanto observa o filho brincar, ele anuncia “é uma explosão de vida que se prepara dentro daquele corpinho.
Não consigo deixar de imaginar um futuro grandioso para ele, e meus olhos se enchem d'água”. O narrador parece
deixar uma ambiguidade proposital, pois “daquele corpinho” e “para ele” podem se referir ao filho ou ao crocodilo
prestes a se desenvolver no menino. Logo, ele pode estar falando do futuro grandioso do filho ou do futuro gran-
dioso do crocodilo. O final do conto assume um tom melancólico, com o crocodilo soltando “seu riso asmático” que
se transforma em um “acesso de tosse rouca e meio catarrenta” e o narrador anunciando que será uma noite difícil.

O rosto
Esse conto apresenta a história de um homem em sua casa perseguindo um rosto. Narrado em primeira pessoa
pela personagem, estamos presos a sua consciência e a sua perseguição. Trata-se de uma perseguição difícil, pois
o rosto pode facilmente camuflar-se em qualquer objeto, como em um dos quadros, em uma folha de caderno, na
fotografia de uma revista, na estampa de uma toalha de mesa etc. Contudo, o narrador diz conhecer a casa como
ninguém. “Somente esse convívio íntimo que mantenho com a casa há anos me permitiu descobrir a infinidade de
passagens, atalhos, as portas falsas, as peças falsas.” Antes era o rosto que o perseguia e agora é o narrador quem o
persegue. O motivo? De acordo com o narrador, para ter o domínio da casa. Contudo, percebemos que o narrador
não pode ter esse domínio. “Fui aprendendo aos poucos que a casa gosta de brincar com as coisas que são e que
não são. Ela inventa cômodos, por exemplo, que às vezes logo desaparecem, mas que outras vezes se fixam dura-
mente à sua estrutura, como uma peça capital, algo sem o que a casa não existiria.” Pode-se pensar no conto como
uma alegoria do indivíduo enclausurado em uma casa que, na verdade, representa a sociedade do consumo e da
acumulação em que os objetos se multiplicam e do qual não se consegue escapar, um mundo em que tudo se torna
objeto. Deste modo, não seria estranho pensar que essa perseguição é ao seu próprio rosto. Primeiro, porque o nar-

34

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 34 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

rador diz ser ele quem mais conhece a casa, logo, ele também saberia exatamente como se esconder; segundo, por-
que quando o narrador se coloca em frente à janela, consegue ver por meio do reflexo os cômodos e objetos atrás
de si e mundo exterior, mas jamais o seu próprio reflexo. Terceiro, porque quando ele finalmente captura o rosto,
um rosto de criança que prende dentro de uma gaiola e alimenta, o narrador descreve a alegria do rosto da criança
que reflete na alegria dele próprio. Quando o rosto foge da gaiola e deixa apenas um buraco na janela, no narrador
surge a dúvida: teria ele fugido para fora ou ainda estaria dentro da casa? A partir de então, tentando reencontrar
o rosto e talvez estabelecer uma relação amigável, o narrador decide agir exatamente como o rosto, atirando-se
da escada e, no final do conto, colocando a cabeça entre o buraco do vidro da janela. “Agora sei que estou preso,
que minha cabeça está lá fora. Cada movimento que faço complica as coisas. Mas não estou desesperado. Estou
triste, cansado, mas não me sinto derrotado.” Essa imagem final mostra-o transformando-se em um objeto da casa.
A janela como moldura e o seu rosto como a pintura.

A visita
Esse conto descreve a visita do narrador à casa da Duquesa. O motivo da visita não é revelado ao leitor de ime-
diato, só se sabe que a personagem principal – que também é o narrador – está substituindo o seu irmão. Antes de
se saber o que ele foi fazer, é possível caminhar junto com o narrador e lá encontrar uma casa enorme e uma série
de situações estranhas. Outras personagens que aparecem são o Capitão, a filha da Duquesa, um pianista bêbado
e um jovem “afeminado”. Eles jantam, mas nem esperam a sobremesa, pois a Duquesa tem pressa para lhe mostrar
a casa. Trata-se de uma casa ampla e bem decorada, como a das revistas de interiores, uma casa em que o narrador
se depara com diferentes situações a cada porta que é aberta, como homens e mulheres comendo e bebendo em
uma festa ou um grupo de homens nus se exercitando. Enquanto atravessam a casa, o narrador vai percebendo uma
mudança nela, como se o luxo fosse diminuindo “[...] e enveredamos por um corretor mais escuro e menos largo,
depois por cômodos que tinham cheiro de mofo, onde as paredes – aqui e ali – começavam a descascar”. Segundo
a Duquesa, eles se aproximavam de uma zona da casa que era “uma das falhas dos arquitetos”. Em seguida, chegam
à cozinha, o espaço da casa silencioso, com menos luminosidade e de onde sai das paredes uma fuligem espessa
e negra. Da mesma cor que a pele, as saias e o lenço na cabeça das cozinheiras. É importante mencionar como o
narrador tem consciência do significado da violência do que via. “O que mais me chamou a atenção foi que do olhar
de todas elas emanava uma grande melancolia. Como se padecessem de uma dor antiga, pensei. Depois, só depois,
é que percebi a obviedade do meu pensamento.” Ainda assim, apesar de ser tomado por um sentimento de sufoca-
mento, apesar de desejar reclamar algo à Duquesa, ele continua caminhando até passar por um pátio descampado,
um galpão e finalmente chegar ao lugar que veio visitar: uma espécie de arena onde um homem magro com uma
coleira e “com o aspecto de debilidade mental” e que, segundo o narrador, “me olhava como um bicho acuado e
de um jeito que a mim era assustadoramente familiar”, a quem ele precisa bater com um chicote. Se no começo ele
parece demonstrar alguma reação, não demora até que ele aceite seu destino. “Confesso que meu primeiro impul-
so foi o de avançar no pescoço da Duquesa e esganá-la até a morte, mas logo entendi que eu já estava derrotado,
que o morto era eu”. Mas depois de começar a bater e a pegar jeito pelo que fazia, a personagem passa a se adaptar
àquela prática de violência e o final do conto revela bem isso. “O capitão teve de chamar sete dos seus homens para
me arrancarem o chicote das mãos.” Esse conto funciona como o retrato de um mundo de aparências que se revela,
à medida que se avança por ele, como um mundo cruel de exploração e crueldade.

O encontro
Esse conto traz a história de um casal recém-chegado em uma cidade misteriosa. O motivo da viagem já é re-
velado no início do conto: eles vieram para “o encontro”, que segundo o narrador “não deveria tardar”. Trata-se de
um conto que aos poucos vai revelando sua atmosfera labiríntica e claustrofóbica. A primeira caminhada deles já
revela uma pista muito sutil: eles são tomados por uma sensação desconfortável e uma dificuldade de se orientar.
“Parece que andamos, andamos e não saímos do lugar. Olhe essa casa, nós já passamos por aqui.” Diferentemente
da maioria dos contos, esse é narrado em terceira pessoa e apresenta um tom de conto de fadas. Um exemplo
disso é o nome dado pelo narrador às outras personagens da história: Velha Que Se Dizia Cantora, Homenzinho
Sorridente Que Vendia Bugigangas na Calçada, Jovem Com Olhar de Espanto, Mulher de Meia Idade e Ar Distraído.
Apesar de conseguirem caminhar todos os dias, seus passos são sempre desorientados. Quando, com dificuldades,
acham a casa em que “o encontro” seria realizado, descobrem que devem voltar na semana seguinte. Aos poucos,
os habitantes da cidade vão desaparecendo e os lugares também. A casa do “encontro” já não existe mais, nem um
café para que eles se aqueçam. Quando, pela manhã, o homem vai comprar pão, não encontra nem habitantes nem
lugares. “Não encontrou a padaria, não encontrou ninguém nas ruas. Andou muito e em todas as ruas por onde se
enfiou deu sempre com a sombra da muralha.” A partir de então, ele se depara com uma muralha, não encontrando
mais o caminho de casa, sozinho e sem a mulher que, a essa altura, não sabe onde está. É importante mencionar
como, aos poucos, a muralha vai ficando perceptível, mas somente para o homem, antes de tomar conta da cidade.
Assim, por ser tão decisiva na narrativa, podemos considerá-la também como uma personagem. No final do conto,
o único encontro que se concretiza é o que ocorre entre a personagem e a muralha, a personagem e a solidão.

35

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 35 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Correria
Esse conto é sobre a corrida de uma personagem. Narrado em primeira pessoa, desde o início sabe-se que ele
está sofrendo e deseja parar. “Me ardia o flanco, uma dor fininha me rasgando a cada puxada do ar.” Seu amigo Ze-
zinho, ao seu lado, que não apresenta nenhum sinal de cansaço, motiva-o a continuar. O narrador está tão cansado
que não tem forças para xingar o amigo, nem outro homem que surge, a quem o narrador chama de “gordo Soares”
e por quem nutre um sentimento de ódio e que igualmente tenta motivá-lo: “Vamos lá, campeão”. Ao seu entorno,
percebe-se uma torcida formada por famílias que gritam e agitam bandeirinhas. Aos poucos, outras vozes – as quais
o narrador não reconhece – começam a surgir ao seu lado na corrida com gritos de apoio. “Não aguento mais essa
merda”, anuncia o narrador. A partir de então, ele toma uma decisão: irá correr o máximo que pode até que algo
aconteça com ele. “Comecei a acelerar, queria me arrebentar o quanto antes, cair ali mortinho, com as veias incha-
das, os olhos saltando. E à medida que eu acelerava, o pessoal ia à loucura.” Quando ele finalmente tropeça e cai,
quando finalmente parece que irá realizar seu desejo de parar de correr, ele é colocado novamente na corrida por
uma mão que o segura. Ainda que não se saiba que corrida é realizada durante o conto, o que se pode tirar do conto
é o sentimento do narrador em relação à corrida: o desejo e a impossibilidade de parar, mesmo quando ele tropeça
e cai. Mais uma vez, enxerga-se o elemento estranho do conto, nesse caso a corrida, como uma alegoria; pode-se
pensar no modo de vida contemporâneo, um modo de vida que exige dos indivíduos que se mantenham correndo
e competindo uns com os outros.

Espera
Esse conto traz a história de um homem que revela escutar da cama uma mulher cantando no banheiro. As
primeiras frases do conto já demonstram a ambiguidade entre delírio e realidade. “Ela canta. Mas nem parece
que está logo ali, atrás daquela parede. Sua voz está tão longe.” Essa ambiguidade, aos poucos, dissolve-se e se
torna a certeza de que o narrador está delirando. É importante ressaltar que esse narrador passa o conto todo
deitado, logo, o que ele descreve é algo que não está ao alcance de sua visão. Além do mais, frequentemente
ele dorme e sonha ou enxerga a mulher de olhos fechados, outros sinais de que a presença se materializa somen-
te em sua cabeça. “Quase sempre sou obrigado a prestar tanta atenção que acabo adormecendo de cansaço.
Quando acordo, sua voz vem misturada ao ruído da água na banheira.” Assim, é muito importante perceber o
recurso do contista ao usar o presente do indicativo (“ela canta”, “estendo o braço”) no conto, pois ele é capaz de
passar o efeito de realidade, presentificando, com descrições ricas, seu delírio. Vale destacar também o desejo da
personagem em se manter pensando na mulher, revelada nos momentos de desespero em que o narrador não a
escuta cantar.

Para salvar Beth


O conto que encerra a obra traz a história de um homem – sem nome, ao contrário das outras personagens
do conto – que conseguiu um emprego novo: o de levar, todos os dias, a cachorrinha Beth para o pet shop. O
animal está doente e precisa fazer um tratamento. A personagem, além de levá-la e trazê-la, precisa ficar es-
perando. O porquê de a personagem ter aceitado o emprego, de acordo com o narrador – um narrador em
terceira pessoa muito próximo da personagem – deu-se pelo fato de a vida da personagem ter entrado “na
descendente”. O homem estava desempregado havia mais de um ano, estava endividado, teve que se mudar
com a esposa para uma “kitchenette minúscula e malcuidada” e estava com problemas no casamento. De início,
o homem se mostra surpreso com a quantidade de serviço que um pet shop pode oferecer. Aos poucos, en-
quanto espera Beth, a personagem vai se sentindo bem naquele lugar a ponto de conseguir dormir lá e brincar
com os brinquedos destinados para os cachorros. Em um dia de folga da esposa, o homem a leva para visitar
seu trabalho. É importante ver a reação que ela tem, achando engraçado que ele consiga ficar bem ali apenas
esperando. Mais graça ela acha quando ele se deita em um colchonete e quando ele a convida para jogar bola
com ele. Pode-se perceber que, na relação entre ele e a esposa, é ela quem traz dinheiro para casa, é ela quem
cuida dele. Quando o estado de Beth se agrava e ela precisa ficar por mais tempo no pet shop, o homem se
sente responsável pela cachorrinha e não consegue mais esquecê-la. “Eu não estava preparado para deixar de ir
lá assim, de uma hora pra outra. Você compreende? Eu não tava preparado. Preciso saber como tudo vai correr
com a Beth.” É então que ele acorda no meio da noite, lembrando que falaram a ele que a cachorrinha ficaria
24 horas sob supervisão, e ele decide ir, tarde da noite, até o pet shop. A imagem final é como se ele, sentindo-se
abandonado, fosse um cachorro querendo estar dentro daquele lugar em que ele tanto se sentia bem. “Subiu
outra vez os degraus que levavam à porta e, já sem esperança nenhuma, encostou o ombro à porta e a roçou com
a ponta dos dedos, suavemente, como quem pede socorro baixinho.”

36

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 36 31/07/2023 08:55:40


Análise de Obras – UFRGS

Orientações de leitura
 Relação entre o conto e a fotografia
Para o autor argentino Júlio Cortázar, o conto é como uma fotografia. Por isso, tanto o fotógrafo quanto o con-
tista precisam trabalhar com o recorte de um fragmento da realidade com limites fixados, de tal modo que o frag-
mento seja ampliado, por uma explosão, e torne essa realidade mais ampla. Nesse sentido, o fotógrafo e o contista
têm a necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento que sejam significativos para alcançar essa
explosão. O contista, diferentemente do romancista, que tem um espaço muito maior, não pode proceder acumu-
lativamente. Trata-se de um trabalho em profundidade, de baixo para cima. De acordo com Cortázar, “um conto é
significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente
algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta” (CORTÁZAR, 2008, p. 153). Há duas
características essenciais para o que Cortázar considera um conto excepcional: a intensidade e a tensão. Assim, ao
comparar o ato de escrita como uma luta de boxe, o autor argentino mostra que, enquanto o romancista venceria
por pontos, o contista venceria por nocaute. E mais, Cortázar mostra que o conto excepcional está, desde o início,
socando o leitor ou, utilizando a linguagem do boxe.

 O subtexto
Por se tratar de um gênero curto, uma de suas características é a concisão e brevidade, como podemos ver a
partir das reflexões de Anton Tchekhov (2007). Logo, um conto não pode dizer tudo, apenas o necessário. Apesar
de econômico, os bons contos não deixam de ter profundidade. Para captá-la, é importante perceber também
o que o conto não diz, seu subtexto. O subtexto não é o que está dito explicitamente, mas sim implicitamente,
aquilo que só o leitor, em sua leitura, pode mergulhar para trazer à superfície, o que o autor argentino Ricardo
Piglia (2004) chamará de “segunda história” do conto e que, segundo ele, será a verdadeira história do conto. Uma
imagem que pode ajudar a compreender essa questão é a do iceberg. Enquanto a parte para fora dele seria o
explícito, a parte submersa dele seria o implícito, aquilo a que não temos acesso, mas podemos vir a ter por meio
de nossa interpretação do conto.

 O fantástico
O fantástico ocorre em uma narrativa quando a realidade se mistura com o imaginário, causando uma estra-
nheza. No fantástico clássico, o estranhamento é do autor e do leitor. Contudo, há uma série de obras – sobretudo
contemporâneas – em que o fantástico pode ser naturalizado ao universo da obra, fazendo parte da narrativa.
Como trabalha com mistério e dúvida, muitas narrativas costumam trazer um narrador em primeira pessoa. Além
do mais, como busca construir seu universo próprio e causar a impressão de estranhamento no leitor, é importan-
te para esse tipo de narrativa a construção de uma atmosfera bem desenhada, por isso, além da construção de um
bom conflito, as descrições de espaço são importantes e costumam se relacionar com a personagem.

Perguntas orientadoras
1. De que forma o fantástico se coloca nos contos?
2. De que forma os contos dialogam com a sociedade contemporânea?
3. O que a imobilidade das personagens diz sobre elas e sobre a cidade construída por Amílcar Bettega?
4. O que a predominância da narração na primeira pessoa indica sobre os contos?
5. Como são apresentados os espaços e a atmosfera de cada conto e como eles se relacionam com as personagens?
6. O que a falta de nomes das personagens (ou o nome apenas de alguns) indica sobre as personagens?
7. Quais relações podem ser feitas entre os contos?

Ensaio
O cansaço em Deixe o quarto como está ou estudos para composição
do cansaço, de Amílcar Bettega
O cansaço é um traço comum das personagens de Deixe o quarto como está ou estudos para composição do
cansaço (2002), de Amílcar Bettega. Ele não só está presente, manifestando-se de forma mais explícita ou de forma
mais sutil sobre as personagens, mas a existência dele as conduz ao mesmo destino de estagnação. Os contos tra-
tam, portanto, de uma impossibilidade que se dá pela relação entre cidade e indivíduo. Uma cidade que oprime não
por criar barreiras para que se avance, mas justamente por abri-las, oferecendo uma falsa impressão de liberdade,
que nada mais é que a sensação de impotência e fracasso ao qual estamos todos condenados. Para este ensaio,
analisaremos os contos “Exílio” e “Aprendizado”, tentando mostrar como essas personagens, apesar de se movi-
mentarem, estão cansadas demais para sair do lugar.

37

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 37 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Em Sociedade do cansaço (2014), o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han define a era contemporânea pelo “ex-
cesso de positividade”. Os discursos, marcados por mensagens positivas e por metas a serem cumpridas, fazem par-
te do que o filósofo chama de sociedade do desempenho. Essa sociedade faz parte de uma lógica da produtividade
em que o sujeito é empresário de si mesmo, ou seja, ele mesmo se vigia e ele mesmo se pune. Dessa maneira, o
cansaço seria resultante do esforço e da entrega do indivíduo de ser sempre “produtivo”, “autêntico” e “inovador”.
Trata-se de uma autoexploração, uma vez que esse excesso de positividade é causador de uma fadiga geral, que
podemos identificar nas personagens dos contos de Amílcar Bettega.
O conto “Exílio” traz uma personagem trabalhando em uma loja sem clientes. Ainda que reconheça a necessi-
dade de atraí-los, modernizando mais a loja, não percebemos nenhum movimento dele para tal mudança. Apesar
de nos dizer – e repetir inúmeras vezes – que está à espera de clientes, o homem está apenas à espera. Cansado
e conformado demais, busca apenas se manter onde está: dentro da loja, atrás do balcão, no escuro. O fato de o
homem preferir se manter no escuro pode ser para economizar, como ele mesmo diz, mas também pode ter outros
significados, como o de esconder a loja, afastando, assim, os clientes, e o de ajudá-lo a dormir. Ainda assim, seu
sono jamais será tranquilo, e por isso delira com crianças invadindo a loja. Mesmo que tente se esconder da cidade,
ele se faz prisioneiro, exatamente o que se revela no final do conto quando ele, que havia anunciado sua decisão de
partida da cidade, vê o seu trem se movimentando, mas nunca atravessando a cidade, o que faz com que ele, sem
nenhuma resistência, desça do trem e retorne para a loja, no dia seguinte, para seu descanso.
Ainda assim, para essa mesma sociedade do desempenho, uma sociedade que promete a liberdade ao indi-
víduo, estimulando-o a acreditar que é capaz de ser produtivo, mas que na verdade se mostra como a causadora
de uma exaustão, o cansaço é o grande inimigo. Jonathan Crary, em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono
(2014), aponta o sono como a última barreira que o capitalismo ainda não conseguiu derrubar. O tempo em que a
personagem, em sua loja, está dormindo é um tempo em que as pessoas poderiam estar comprando os produtos
dela e ela poderia estar comprando os produtos de outras pessoas. O sono seria um inimigo, uma vez que seria o
espaço-tempo do indivíduo em que ele não está produzindo e consumindo. 24/7 seria uma forma de existir o tempo
inteiro, em um movimento contínuo. A personagem do conto “Aprendizado” é um exemplo de quem está em cons-
tante movimento. Uma de suas características é a de nunca sentir sono e a de nunca dormir. Essa característica até
poderia ser considerada uma qualidade, não fosse o personagem um fracasso total. Desempregado, endividado,
com a geladeira vazia, a mãe morrendo, durante a narrativa toda ele caminha, mas sem encontrar nenhuma solução
para seus problemas. Caminhando à noite, sente-se alheio a tudo como se estivesse fora de si, como se sua vida no
automático, sua existência 24/7, revelasse sua não existência, seu dormir, mesmo 24 horas acordado. Essa sensação
de “estar fora de si” causada pelo cansaço é uma constante da obra de Amílcar Bettega e pode ser aplicada às per-
sonagens dos outros contos. Um cansaço latente que aniquila, conforma e não dá nenhuma esperança.

38

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 38 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Coral e outros poemas


Sophia de Mello Breyner Andresen

Contexto histórico
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foi uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX.
Os poemas selecionados para a coletânea Coral e outros poemas perpassam um arco temporal que vai da metade
ao final do século passado, sendo contextualizados no período Pós-Segunda Guerra, no salazarismo – governo
ditatorial de António de Oliveira Salazar, um dos mais duradouros do século XX – e nos impasses da sociedade con-
temporânea portuguesa após a redemocratização.
O contexto ditatorial se fez presente na vida de Andresen e, consequentemente, em suas obras. A poeta era
contra o regime autoritário de Salazar e fez parte de um importante grupo que se formou em Portugal denominado
Catolicistas Progressistas. Além de resistir ao fascismo no país, o grupo se colocava contra os ideais do governo
vigente, diferentemente da Igreja Católica conservadora, que, até então, apoiava-os. Essa marca histórica aparece
nos poemas da autora, pelos quais ela procurava denunciar o controle vivido pela população portuguesa, em es-
pecial escritores, que tiveram suas obras confiscadas e eram submetidos a julgamentos por serem encarados como
ameaças ao governo.
Coral e outros poemas estabelece um diálogo com os primeiros escritores modernistas portugueses, como
Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) e Almada Negreiros (1893-1970). Em seus poemas,
Andresen promove uma intertextualidade com os poetas, em especial Fernando Pessoa, a quem homenageia no
poema homônimo. Contudo, os escritores anteriores se voltavam contra aspectos oitocentistas, isto é, apoiavam o
rompimento com o que era considerado clássico na poesia portuguesa e, para tal, mobilizaram formas poéticas mais
vanguardistas. Por sua vez, a geração da poeta e sua obra se diferenciavam dos primeiros modernistas por meio
de uma produção poética mais clássica e equilibrada, embora, ao mesmo tempo, lidassem menos com a herança
academicista do século anterior.

Vida e obra
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu em Portugal, na cidade do Porto, em 1919. O sobrenome “Andresen”
advém de sua família paterna de origem dinamarquesa; já sua mãe era filha do Conde de Mafra e neta de um em-
presário belga radicado em Portugal. Portanto, a poeta pertencia a uma família aristocrata e de posses; a exemplo
disso tem-se a compra, pelo pai de Sophia, das terras onde hoje se localiza o Jardim Botânico do Porto.
A escritora foi educada segundo os valores tradicionais da moral cristã e recebeu a formação escolar mais sofisti-
cada disponível naquele período em seu país. Cursou Filologia Clássica na Universidade de Lisboa e, apesar de não
ter concluído o curso, foi dirigente de movimentos universitários católicos durante o período universitário. Foi tam-
bém colaboradora nos Cadernos de poesia, junto a autores reconhecidos, como os poetas Jorge de Sena (1919-1978)
e Ruy Cinatti (1915-1986). Sophia foi apoiadora do movimento monárquico e crítica da ditadura salazarista. Seu poema
“Cantata da paz”, musicado por Rui Paz (1949-2014) e interpretado por Francisco Fanhais (1941), tornou-se um impor-
tante hino dos Católicos Progressistas contra o regime autoritário.
Veja, a seguir, o refrão da canção e utilize o QR Code para ouvir a versão na íntegra.
[...]
Vemos, ouvimos e lemos.
Não podemos ignorar.
Vemos, ouvimos e lemos.
Não podemos ignorar.
[...]
FANHAIS, Francisco. Cantata da paz. Lisboa: 1994. CD (4 min).

39

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 39 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Em 1947, Sophia casou-se com o jornalista, advogado e político Francisco Sousa Tavares (1920-1993), com quem
teve cinco filhos, quase todos ligados à arte ou à literatura. O casal se divorciou no final dos anos 1980. Após a
Revolução dos Cravos, em abril de 1974, e com a queda de Salazar, ela foi eleita deputada pelo Partido Socialista
na Assembleia Constituinte. A autora seguiu produzindo seus livros de poemas até o final dos anos 1990. Sophia de
Mello Breyner Andresen faleceu aos 84 anos em 2004, com grandes honras e reconhecimento.
Em 1964, a escritora foi condecorada com o Grande Prêmio de Poesia, pela Sociedade Portuguesa de Escritores,
por sua obra Livro sexto. Foi reconhecida como doutora honoris causa pela Universidade de Aveiro, em 1998. Foi a
primeira mulher a ganhar o principal prêmio em língua portuguesa, o Prêmio Camões, em 1999. Recebeu, também,
o Prêmio Rainha Sofia, em 2003. A escritora ainda se distinguiu como contista e autora de livros infantis. Foi também
tradutora de Shakespeare e Dante e membro da Academia de Ciências de Lisboa.

Principais obras da autora


 Poesia (1944)
 Dia do mar (1947)
 Coral (1950)
 No tempo dividido (1954)
 Mar novo (1958)
 O Cristo cigano (1961)
 Livro sexto (1962)
 Geografia (1967)
 Dual (1972)
 O nome das coisas (1977)
 Navegações (1983)
 Ilhas (1989)
 Musa (1994)
 O búzio de Cós e outros poemas (1997)

Apresentação e análise da obra


O livro Coral e outros poemas faz parte de uma coletânea de poemas selecionados e apresentados por Eucanaã
Ferraz. Os textos apresentados por Ferraz receberam um novo senso crítico, possuindo novos objetivos da parte do
antologista brasileiro. Os poemas foram dispostos cronologicamente com o intuito de apresentar ao público uma
outra face da obra da autora.
Eucanaã Ferraz atua como professor de Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de tam-
bém ser poeta. Na apresentação da coletânea redigida por ele, o antologista esclarece que o volume foi composto
após anos de leitura dos livros de Andresen, fazendo pequenas compilações pessoais, as quais foram expandidas
quando recebeu o convite para a produção da obra. Ferraz comenta, ainda, que precisou contar não só com seu gosto
pessoal, que o fizera selecionar os poemas que lhe provocavam fortes emoções (definidos por ele como “espanto”),
mas considerar as linhas gerais decisivas da poética de Sophia Andresen e a riqueza crítica sobre a obra da escritora.
O conjunto apresenta uma poeta de vocabulário simples, sintaxe direta, mas que manifesta intensidade em sua
expressão. O léxico e as construções sintáticas acessíveis indicam a modernidade de sua poesia, ainda que esta
apresente uma sofisticação e um equilíbrio formal que denotam uma influência clássica. Sendo assim, embora a ex-
pressão seja clássica, é decididamente moderna, como explica Eucanaã (2018). Também compõe o aspecto clássico
a economia dos poemas, que dispensa a sobra, a redundância e o exagero.
Outra importante característica é a atemporalidade de sua poética, que versa sobre o mar, o amor, a morte,
dentre outros temas universais da poesia. Tal atributo é combinado com eventos circunstanciais e episódicos, como
o destino de dois amantes ou a maneira como se comporta a natureza em um determinado momento. A poesia
de Andresen consegue ser, ao mesmo tempo, assertivamente cristã e mobilizar substratos mitológicos, pagãos
e de apreciação direta da natureza, aspectos que indicam a personalidade poética vasta que caracteriza a autora
(ZENITH, 2013).
O livro buscou valorizar a capacidade da escritora de trabalhar as imagens poéticas que surgem à mente do leitor
por meio das palavras, o que Pound (2002) designou como fanopeia: uma atribuição de imagens à imaginação visual
do leitor. Essas imagens, segundo Eucanaã Ferraz (2018), continuamente trabalham com certa dose de risco, desa-
fiando a expectativa de leitura. A melodia – designada por Pound (2002) como melopeia –, por sua vez, é econômica,
polirrítmica e possui marcações de intervalos rítmicos pouco acentuadas. A combinação de modernidade, orientação
clássica, exuberância imagética e precisão sonora são características que a compilação feita por Ferraz quis sublinhar.

40

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 40 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Os primeiros textos selecionados para a coletânea pertencem à obra de estreia de Andresen, o livro Poesia
(1944), e retratam, por meio de metáforas, um mundo arruinado pela guerra. Nos versos, o lugar solar e harmonioso
onde Sophia vive é ameaçado por monstros, como explica Ferraz; posteriormente, tais metáforas passam a ganhar
conotações políticas. Dessa forma, a poeta encontrou, por meio da lírica, um modo de criticar a política imperialista
de Salazar empregada em Portugal.
Na sequência, as obras Dia do mar (1947) e Coral (1950) reforçam a importância da natureza na organização do
universo de Sophia Andresen. O catolicismo é a base da visão de mundo expressa nos poemas, que pendem a um
certo panteísmo, e acaba por conferir, também, o aspecto de transcendência às obras (CRUZ, 2014). No livro Coral,
há um conjunto de poemas, dentre eles aquele que intitula a obra escrita em 1950 e tem destaque no título da cole-
tânea atual feita por Ferraz, Coral e outros poemas.
Já no livro No tempo dividido (1954), a poeta aprofunda-se em temas como a divisão, o dissenso, a discórdia
e o desencontro, os quais culminam na obra seguinte, que traz o tema da transformação desde o seu título: Mar
novo (1958). O elemento mar é recorrente em sua poética, funcionando como um caminho e um “auxiliar” para a
transcendência e para a revelação do mundo (GUSMÃO, 2013). A centralidade do mar é crucial e será retomada
posteriormente para uma análise mais aprofundada, a fim de promover uma comparação dos poemas de Andresen
com aspectos das obras do poeta português Fernando Pessoa.
Vale ressaltar que os dois livros (No tempo dividido e Mar novo) foram editados como um só a partir de 1985,
conforme a preferência da autora, que os considerava pertencentes a um mesmo ciclo. Esse é o período mais exis-
tencialista da obra de Andresen, a qual foi influenciada principalmente pela leitura da obra O ser e o nada (1943), de
autoria de Jean-Paul Sartre – importante filósofo francês conhecido pelos ideais existencialistas e por acreditar no
papel ativo dos intelectuais na sociedade. Resumidamente, o existencialismo nos poemas de Sophia diz respeito à
responsabilização total do sujeito por suas escolhas e ações e, consequentemente, leva a uma liberdade incondi-
cional, mas trágica, uma vez que essa liberdade depende do entendimento das consequências dos próprios atos.
A próxima obra inserida por Eucanaã na coletânea é O Cristo cigano (1961), a única a ser trazida integralmente ao
volume, pois, de acordo com o antologista, não poderia ser seccionada, já que se trata de uma história com começo,
meio e fim. O poema conta a história de um escultor que, aflito para conseguir uma imagem de Cristo agonizante,
desferiu um golpe em um cigano para copiar sua expressão ao morrer e depois a transpôs, usando carvão, para o
entalho. Tanto os críticos quanto a própria poeta consideram o livro mais distante tematicamente das demais obras
de Andresen, seja por seu caráter mais barroco e sombrio, centrado em um crime, seja por seu caráter formal, com
a maneira como os versos são escritos. Ferraz incluiu O Cristo cigano como um contraponto no volume, construindo
uma versão mais complexa da obra da autora.
A seguir, é apresentado o Livro sexto (1962) na coletânea, o qual, cronologicamente, corresponde ao sétimo
trabalho da poeta. A escolha de Andresen em intitulá-lo dessa forma ocorreu devido ao fato de ela não considerar
o livro anterior, O Cristo cigano, no conjunto geral de sua obra. Desde o título, o Livro sexto é apresentado como
uma produção clássico-moderna, na qual se destacam a ordenação, a brevidade e a dosagem de certa impessoali-
dade. Eucanaã Ferraz (2018) explica que os temas abordados na obra prolongam-se no livro Geografia (1967), sendo
alguns de caráter mais estritamente formal, como concisão, contraposições rítmicas em par com liquidez melódica,
sobreposições de tempo e espaço, imagens perturbadoras e indeterminação entre concreto e abstrato. Nesse
livro há, também, uma série de poemas sobre o Brasil, o conjunto “Brasil ou do outro lado do mar”, reproduzida na
coletânea.
Na década de 1970, a autora produziu o livro Dual (1972), o qual está presente também na coletânea de Ferraz.
Na obra, a poeta dialoga diretamente com a poética de Fernando Pessoa, sobretudo no poema “Hydra, evocando
Fernando Pessoa”. Novamente a temática mar, primordial em sua produção, é restaurada; contudo, a obra também
conta com um confronto entre a estética moderna de ruptura de Pessoa e a estética clássica de Sophia, que retoma
o nome “Dual” do livro.
A centralização do tema mar e a intensificação do diálogo com Fernando Pessoa possivelmente encaminharam a
escritora para a produção de Navegações (1983), voltado à ultramarina lusitana e tendo o poeta Luís Vaz de Camões
(1524-1580) como figura recorrente. O livro é considerado por muitos críticos como um ponto de chegada na obra
da poeta, com poemas curtos, sintéticos, plásticos e, sobretudo, expressões acabadas do gesto clássico e moderno
de seu estilo. A viagem, o mar, as nações, os viajantes e as paragens são também temas predominantes em Ilhas
(1989), editado anos mais tarde.
As duas obras finais, Musa (1994) e O búzio de Cós e outros poemas (1997), constituem, conjuntamente, um gesto
de encerramento do trabalho poético de Andresen. A limpidez, a brevidade, a quietude e o despojamento dos ver-
sos – ou seja, uma poética sem excessos – marcam esses dois livros finais. A coletânea apresenta, ainda, um conjunto
de poemas denominados “Artes poéticas”, “Poemas dispersos”, publicados pela autora em jornais e periódicos; e,
por fim, dois poemas inéditos.

41

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 41 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

“Coral”
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas. Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Poema sucinto de apenas três versos e um período, com rimas entre o primeiro e o terceiro versos (vinha e tinha).
O seu título não está explicitamente presente nos versos, mas parece ser uma espécie de sujeito oculto das ações.
O poema é aberto com “Ia e vinha”, que indica movimento, mas, ao pensar no coral, trata-se também de uma ondu-
lação constante, provocada pelo movimento do mar. Recentemente, cientistas descobriram que há corais na Terra
com mais de quatro mil anos de existência; contudo, na construção poética da autora, a longevidade dos corais já
era conhecida e usada como metáfora. Portanto, no campo metafórico, há algo de eterno no movimento de vaivém
do coral, embora continue parado no mesmo lugar.
Mesmo que, de início, não haja nada de não natural na imagem criada por Andresen, pois o poema poderia
ser sobre a simples observação de um coral no fundo do mar, a sequência dos versos indica que a poesia não é só
sobre o ir e vir do movimento parado do coral. A partir do segundo verso, há uma prosopopeia (ou personificação)
em que o animal pergunta o nome a cada coisa que lhe chega, fazendo com que o leitor perceba que o coral possui
características humanas ao reler o primeiro verso. Por um lado, a sensação é de paz e calma, evocada pela natureza,
pelo mar e pela eternidade do coral. Por outro, é possível entender que se trata de uma ação perpétua, remetendo
a essa imagem uma conotação penosa (aqui pode-se traçar uma alusão ao mito grego de Sísifo). Assim como o mar
é o principal lócus da poética de Sophia, outro conteúdo frequente é a mitologia greco-romana.
Sísifo foi o fundador e primeiro governante de Éfira, antiga cidade grega, e, na mitologia, era considerado o mais
astuto dos mortais. Porém, após desobedecer ao deus Apolo, foi condenado à Terra dos Mortos e como punição
deveria empurrar uma pedra para o alto de um monte. Entretanto, assim que colocada no pico do monte, essa pedra
novamente rolava para baixo, e Sísifo deveria empurrá-la mais uma vez para cima, repetindo o movimento por toda
a eternidade. Em relação ao poema, a infinita calma do fundo do mar está em tensão com a possibilidade da leitura
de um coral preso a uma ação, como Sísifo. Sendo assim, o poema expressa uma interpretação dúbia: o equilíbrio
da perenidade do coral ou sua condenação a esse equilíbrio angustiado de perguntar a cada coisa o seu nome.
O mito de Sísifo é frequentemente relacionado com a vida de um poeta, que sempre levaria a pedra para cima do
morro ao começar um poema. Com base nesse contexto, é possível inferir que o poeta teria o trabalho de “nomear
todas as coisas”, sendo assim, a imagem do coral representaria o papel de poeta, ou, ainda, seria a autoimagem
poética de Andresen.
A leitura minuciosa de “Coral” se justifica para demonstrar os efeitos da concisão da poética de Sophia de Mello
Breyner Andresen, de como, em sua poesia, o movimento de leitura é especialmente vertical. A poeta conseguia
ser, concomitantemente, clássica e moderna: como clássica, a temática universal, a mitologia grega e o equilíbrio da
forma; como moderna, a fusão do natural e do mitológico, o trabalho com as imagens e a possibilidade de entender
o poema como um autorretrato. Toda essa complexidade de interpretação é percebida na obra, ainda que possua
apenas três versos.

“Meditação do duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”


O próximo poema é uma produção menos sintética e que explora outros aspectos da literatura de Andresen.
A centralidade da natureza e a possível leitura mitológica do poema anterior, “Coral”, dão lugar para a história da
nobreza portuguesa.
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

42

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 42 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Nunca mais amarei quem não possa viver


Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas.
Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

O poema trata, pela voz de Francisco de Borja (1510-1572) – evocado pela poeta –, da morte de Isabel de Portugal
(1503-1539). Oficialmente como seu vassalo, o duque teria dito a frase que serve de refrão ao poema: “Nunca mais
servirei senhor que possa morrer.”. Andresen toma liberdade para sugerir que a relação do duque com sua senhora
poderia ser de amantes, remontando às canções de amor medievais.
O uso de refrão, de forma similar às canções, marca uma constância para a qual o poema sempre volta, funcio-
nando como um refreamento das vozes. A primeira estrofe está carregada de nostalgia, presente na fala do eu lírico
“nunca mais”, quase sempre referindo-se a Isabel ainda viva, exceto o último verso, que se volta ao próprio eu lírico:
“E nunca mais darei ao tempo a minha vida”.
O tempo da manhã dos primeiros versos vira tarde na segunda estrofe: tempo dos “destroços do teu ser”. A es-
tância parece acontecer quando o duque tem que reconhecer o corpo de sua senhora, já em um estado avançado de
decomposição. A terceira estrofe, mais longa do que as duas primeiras, realiza a síntese, uma espécie de explicação
de por que ele nunca mais servirá a senhor que possa morrer. É perceptível, aliás, como as duas primeiras estrofes
são compostas por imagens, enquanto a terceira é constituída, sobretudo, por argumentos e declarações explícitas
de amor. Por fim, a quarta estrofe é composta somente pelo refrão: “Nunca mais servirei senhor que possa morrer.”.
Tal como se sugere em “Coral”, a rima no poema não é um esquema, mas uma disposição natural da recorrência
de sons, como se na natureza, de tempos em tempos, as coisas rimassem. Na primeira estrofe há rimas toantes – em
que o final não é exatamente o mesmo, mas tem as mesmas vogais – nos versos dois, três e cinco: viva, fugitiva e
vida. Na estrofe seguinte, rimam-se o segundo e o quarto versos (destroços e ossos) e o terceiro e o quinto (podri-
dão e mão). Na terceira estrofe há outra disposição de rimas no primeiro, quarto e oitavo versos (viver, ser e ver) e
quinto e sexto (transparência e ausência). Todos os demais versos são brancos, ou seja, sem rimas; porém, pode-se
inferir que eles, na verdade, rimam com versos de outras estrofes no poema.
A naturalidade das rimas reforça a sensação de que o leitor está diante da voz de um homem desesperado, ou
seja, caso o poema fosse cuidadosamente esquemático, poderia soar artificial e não como o produto de um lamen-
to feito em momento de dor. Em vez disso, a poeta buscou uma maneira de pulsar a voz do eu lírico e elaborar um
poema que encontrasse forma nessa humanidade enlutada. A escolha por esse princípio de composição confere
ainda mais verdade em relação ao poema, como se o próprio duque de Gandia o tivesse escrito, e aponta para a
naturalidade do uso dos recursos poéticos por parte da autora. Ainda que tão rigoroso quanto um soneto ou um
madrigal, o rigor está em encontrar uma forma que dê coerência, mas sem um padrão fixo de métrica e de rimas, ou
seja, há um esforço da poeta em organizar os versos e as estrofes, porém, esse esforço não se prolonga à construção
de rimas e outros recursos poéticos clássicos que iriam configurar certa artificialidade ao texto.

Orientações de leitura
A poesia de Andresen é marcada pelos períodos de conflitos vivenciados por Portugal. Ao selecionar suas obras
e ordená-las em ordem cronológica, essa característica se torna latente, assim como também é possível observar seu
domínio técnico com o passar dos anos. Por mais que temas universais como o mar, a espiritualidade e o existencialismo
sejam primordiais em sua escrita, esses se mostram atrelados ao sentimento de justiça da poeta. Sendo assim, são criados
signos em sua poética, que passam a ganhar novos significados e aludem ao momento político no qual foram escritos.
O modernismo português se caracterizou como uma “epopeia negativa”, provocada pelas crises no mundo e
no ideário burguês do começo do século XX (LOURENÇO, 1987). Os signos do impasse, da ruína, da morte e da
incompletude marcaram muitas das poéticas da primeira geração modernista portuguesa, como Mario de Sá-Car-
neiro e Cesário Verde. Fernando Pessoa foi um pouco distinto de seus colegas de geração ao figurar também em
seus poemas a “consciência do mistério de existir” (LOURENÇO, 1987, p. 188), não só de sua própria existência, mas
de seu entorno e da sua história. Em outras palavras, há um traço metafísico na poética modernista de Pessoa, que
pode ser tomado muito mais facilmente como ponto de partida por Andresen do que as visões de mundo e poéticas
mais agnósticas dos outros modernistas da primeira leva – considerando não somente a obra de Fernando Pessoa
ortônimo, mas também de seus heterônimos, como Ricardo Reis e Bernardo Soares.

43

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 43 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Em Mensagem (1934), de Fernando Pessoa, a metafísica é traduzida, por exemplo, pelos termos de promessa
do sebastianismo e de encontro do mar – lugar de alto significado na poesia de Andresen, como no icônico verso
de “Mar português”, autoria de Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”. Mesmo sem
avançar na leitura do poema ou do livro, é perceptível que o mar, para Pessoa, transcende o natural e dialoga com
a relação entre a nação portuguesa e o oceano, assim como em Camões, com quem a autora também dialogou
em Navegações (1983). Para o autor de Os Lusíadas, mar é espaço de domínio, de luta, de lágrimas e de glória. A
agitação do mar português, em termos também de espaço de guerra e de conquista, foi domada pela poesia de
Sophia; mesmo que se possa ler um espaço de tensão, como fica subentendido em “Coral”, toda a grandiosidade
do mar – seja ela física ou metafísica – parece contida pelo gesto equilibrado da poeta.
Em termos de história literária, nos anos 1940 e 1950, surgiu uma nova geração de poetas modernistas portu-
gueses, menos interessada no exercício de uma linguagem-limite e no exercício da vanguarda e mais voltada para
a função social dos poetas e da poesia. Questionavam-se e buscavam uma lucidez maior sobre sua própria atuação.
É em torno dos Cadernos de poesia, referidos na biografia de Sophia Andresen, que surgiu a obra da autora. Para
ela, seus contemporâneos não estavam mais compromissados com a experimentação, mas queriam uma poesia
equilibrada, sóbria, que refletisse uma visão de mundo compromissada com a transformação social: “a pressão da
Modernidade é detida no limiar da porta” (LOURENÇO, 1987, p. 198).
Para Andresen, portanto, Pessoa era autor de uma poética ao mesmo tempo incontornável e que se contrastava
com a sua. Um diálogo intenso com o poeta atravessa a poesia da autora, primeiro de maneira implícita, na visita por
outro ângulo a temas semelhantes, especialmente o mar, depois, nos poemas que ela lhe dedica, em que a impor-
tância e os limites da influência de Pessoa são elaborados pela poeta, como se nota nos versos a seguir.

Teu canto justo que desdenha as sombras


Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas.
Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.

Fernando Pessoa possuía a inquietude como marca de sua poesia, uma vez que vivenciou as desilusões burgue-
sas do começo do século e as intensas mudanças da vida urbana daqueles anos e era contra a estética academicista
ou institucionalista do século XIX, mesmo seus heterônimos mais meditativos. Por sua vez, Andresen viveu em um
período da consolidação da ruína, da ubiquidade da guerra e do estabelecimento dos regimes autoritários. Con-
sequentemente, percebe-se uma poesia que precisava sair de si para figurar no mundo e intervir nas questões de
seu tempo, mesmo dentro de um gesto clássico e místico. É provável que a somatória dessas características tenha
promovido uma perspectiva mais plena, capaz de dar forma apascentada a um mundo irrequieto. Eduardo Lourenço
(2014) afirma que Andresen representa um mundo anterior e externo a tudo o que Pessoa promoveu. Com efeito,
trata-se de um achado crítico, visto que, com Pessoa, o leitor sempre se sente no presente de seu tempo, vivendo as
agruras contemporâneas. Já na poesia de Andresen há a sensação de estar em um tempo anterior, ou em um mundo
à parte, em que a claridade do gesto é capaz de impor sua ordem à matéria atribulada.

Perguntas orientadoras
1. A obra de Sophia de Mello Breyner Andresen atravessou quais marcos históricos importantes da sociedade
portuguesa e ocidental?
2. A qual movimento literário português a poeta está associada?
3. Que cuidado se deve ter ao lidar com uma coletânea, como é o caso de Coral e outros poemas, e não com um
livro ou com a obra completa de um autor? Cite alguns livros presentes na coletânea organizada por Eucanaã
Ferraz.
4. O que singularizaria O Cristo cigano na obra Coral e outros poemas?
5. Quais os temas e características de linguagem mais recorrentes na poesia da autora e também sublinhados pela
coletânea?
6. Como a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen se relaciona com a poesia de Fernando Pessoa?

44

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 44 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Conteúdos complementares
Livros
 AREAS, Vilma. Poemas escolhidos: Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 ANDRESEN, Sophia Mello Breyner de. A menina do mar. São Paulo: Sesi-Sp, 2017.

 ANDRESEN, Sophia Mello Breyner de. A fada Oriana. São Paulo: Sesi-Sp, 2017.

 PEREIRA, Luis Ricardo. Sophia de Mello Breyner Andresen: inscrições na terra. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

Filmes
 O NOME das coisas: Sophia de Mello Breyner Andresen. Direção de Carmen Inácio. Realização de Pedro Clérigo.
Lisboa: Panavídeo, 2007. Son., color.

 AS ARMAS e o povo. Lisboa: Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, 1975. (81 min.), son., color.

Ensaio
Ler poesia e ler Sophia
Na obra Que é a literatura (1942), Sartre explica que poesia é quando a linguagem não só chama a atenção para
a matéria de que trata, mas também joga luzes sobre si mesma. Nesse sentido, a sonoridade ganha um significado
além do seu habitual, uma vez que, na poesia, o ritmo e som são utilizados como recursos que transmitem aquilo que
o poeta deseja. Se no mundo da lexicologia existe a discussão se há ou não palavras sinônimas, na poesia certamen-
te não há, porque o desenho, o som, a composição e a história de uma palavra indicam sua singularidade, mesmo
que no uso comum ela tenha um significado próximo.
É parte da poesia fazer com que o leitor não faça uma leitura corrida como a da prosa, cuja natureza é estar mais
próxima da história e dos significados que estão sendo trazidos pelo texto. Na prosa, mesmo que o leitor perca
uma ou outra palavra na leitura, ele não perde a história que está sendo contada ou o argumento que está sendo
construído. Por outro lado, na linguagem poética, isto é, o poema como manifestação artística e não somente a
construção do texto “poesia”, cada palavra seria imperdível, pois figura em determinada poesia como a escolha
precisa para aquele verso.
A definição de Sartre abre portas para que a poesia seja um modo de ser da linguagem, e não uma disposição do
texto, um verso embaixo do outro. Assim, muitas prosas podem ser poéticas e muitos poemas podem ser prosaicos.
A poesia pede, portanto, um outro movimento em relação à prosa. Nele, o leitor precisa recusar o fluxo cotidia-
no, das conversas, dos compromissos, e afinar seu tempo subjetivo – seu tempo interior – com a linguagem poética.
A leitura de um poema precisa ser feita no presente do texto, com atenção a cada palavra e sensibilidade a cada
recurso que vai sendo mobilizado – aliás, os recursos estão no poema justamente para dar densidade e opacidade
à sua linguagem. No geral, a leitura de um poema precisa ser vertical, enquanto a prosa permite uma leitura mais
horizontal. Ao pensar na poesia como uma forma da linguagem, essas características e o tipo de leitura são uma
marca do gênero, comuns aos objetos chamados de poéticos.
A fim de exemplificar a linguagem poética e suas particularidades, a seguir tem-se um texto em prosa de Sophia
de Mello Breyner Andresen.
O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez
ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido – quase me cega a perfeição como um sol
olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e
rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene, mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer
e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta
promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos
pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na
superfície das águas lisas como um chão. [...]
“As grutas”, Livro sexto.

Percebe-se que, mesmo a disposição do poema sendo típica dos textos em prosa, não há dúvidas de que o
tipo de linguagem o encaminha para o poético; como exemplo disso tem-se o uso da personificação de imagens
poéticas, o ritmo cadenciado, a seleção lexical etc. Mesmo na descrição da cena que encerra o trecho, o leitor
tem sua atenção prendida mais pela maneira como os acontecimentos são contados do que propriamente pelo
que é contado.

45

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 45 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Em Coral e outros poemas, o leitor rapidamente se depara com a concisão da poeta e a necessidade de uma
leitura que se detenha a cada termo, a fim de que surja a significação do poema. Esse traço estético se repete em
“Coral”, poema analisado anteriormente, além de haver outros poemas curtos que atravessam do início ao fim a co-
letânea de Ferraz. O que o antologista denominou de “espanto” também tem a ver com tal especificidade, ou seja,
a capacidade de, em poucos versos, elaborar uma síntese, uma imagem, um pequeno ponto de luz sobre as coisas.
Essa peculiaridade, porém, não se limita somente a seus poemas curtos; os textos mais longos igualmente pedem
uma leitura atenta e detida, como é possível ver no caso a seguir.
Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
27 de abril de 1974
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner.
Coral e outros poemas. Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

A data incluída no final do poema (27 de abril de 1974) marca dois dias após a Revolução dos Cravos, que
destituiu Salazar como chefe do Estado português. A partir do diálogo direto com esse contexto, o poema, possi-
velmente, é orientado na utilização de versos diretos e simples, assim como a escolha lexical é preocupada com a
mobilização de vocabulário comum; em suma, o poema parece preocupado em não soar como “pedante” ou como
especialmente “poético”.
Ao mesmo tempo, desde o primeiro verso, que inicia com uma comparação (“Como casa limpa”) implícita, o
poema apresenta registro coloquial, mas não se trata de uma estrutura prosaica. No quarto verso (“Como puro
início”), a comparação é continuada e seguida por outras até o desfecho da terceira estrofe. Em algum ponto perce-
be-se o mecanismo de revolta, em que as comparações se referem à revolução, que é tanto iniciática quanto natural
para o povo que a promove.
Com base na análise do poema anterior é demonstrado como sua poética, ao mesmo tempo espiritual e social,
pode ser construída. De um lado, não são poucas as palavras e expressões de feições abstratas ou transcendentes,
como início, tempo, mancha ou “voz do mar”, as quais são as principais; do outro lado, a parte concreta e cotidiana
da vida das pessoas é a principal matéria desse poema: as casas, as construções, a edificação de um tempo futuro.
Esse equilíbrio entre o abstrato e o concreto, o espiritual e o material, o transcendente e o imanente e o mitológi-
co e o histórico parece um princípio estrutural que organiza toda a sua poesia e é possível inferi-lo na maneira como
as imagens parecem: aparições iluminadas e absolutamente tangíveis, como se fossem retiradas da vida comum.
O equilíbrio também é manifestado na maneira como os versos mantêm o recurso das rimas, mas sem transformar
a coincidência das terminações em um esquema rígido – varrido, início e vício, novo e povo, emerge e ergue, to-
mando como exemplo principal as rimas externas ou finais.
Se fosse necessário elaborar uma hipótese sobre as origens do “espanto” que move a poesia de Sophia de Mello
Breyner Andresen, citado por Eucanaã, poder-se-ia supor que a maneira como seus versos equilibram essas nature-
zas parece profundamente contraditória, uma prova do quão clássica e sóbria é sua poética. A vertente espiritual e
transcendente de sua poesia são, justamente, as qualidades que funcionam como forças que descolam aquilo que
pertence ao mundo cotidiano rumo à condição perpétua.
A poesia de Andresen permite esse movimento, mas impede a desconexão. Trabalha, portanto, nos limiares en-
tre uma e outra ponta, fazendo notar o imanente no transcendente e vice-versa. Certamente, seria redutor atribuir
sua poética à origem nobre e católica sendo lançada à luta política e popular. Não obstante, é preciso considerar
esse olhar voltado ao eterno para se habituar com a poesia da autora. Como podem esses poemas serem tão mun-
danos e tão sagrados? Quais as implicações dessa ambivalência na maneira como a religião e a luta popular figuram
em sua poesia? As respostas a essas perguntas podem encaminhar a boas hipóteses de leitura e, mais ainda, formar
admiradores do trabalho e da inspiração da poeta.

46

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 46 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

Lisístrata
Aristófanes

Contexto histórico
Aristófanes foi um dramaturgo e poeta grego reconhecido por muitos como maior representante da comédia
antiga. Suas peças apresentam elementos universais e atemporais que permitem que elas sejam estudadas, lidas
e reinterpretadas na modernidade. Portanto, compreender o contexto histórico no qual o autor estava inserido é
essencial para um estudo mais qualificado dessas obras. O autor viveu no século V a.C., conhecido também como
Período Clássico. A cidade de Atenas se tornou a principal cidade grega sob o governo de Péricles, um célebre
estadista e um dos principais líderes democráticos da Grécia Antiga. Seu governo foi marcado pela prosperidade e
o período ficou conhecido como Idade de Ouro de Atenas. Foi sob esse contexto que Aristófanes viveu e produziu
sua obra.
Sobre o desenvolvimento da cidade de Atenas, é importante destacar que ele ocorreu em diversos âmbitos:
cultural (política, teatro, artes plásticas, arquitetura, filosofia, literatura), social e urbanístico (obras públicas, forma-
ção de um exército bem-preparado). Essas mudanças resultaram no aumento da qualidade de vida dos atenienses.
Dentro desses avanços, na área política, houve a consolidação da democracia (origem etimológica: demos signifi-
cando “povo” ou “muitos”; kracia significando “governo” ou “autoridade”) em oposição aos modelos de monarquia
(governo de um sobre todos) e oligarquia (governo de poucos sobre muitos). Embora a democracia ateniense fosse
uma forma de governo que engajasse uma participação de muitos cidadãos nas decisões políticas da sociedade,
ainda assim ela excluía boa parte do povo, como as mulheres, os escravos e os trabalhadores braçais.
Lisístrata, ou A greve do sexo, retoma esse momento de prosperidade em meio ao fato histórico concreto apre-
sentado pelo enredo da obra: a derrota de Atenas para Siracusa em 415 a.C. Aristófanes utiliza esse evento, junto à
ameaça externa dele decorrente, para manifestar alguns medos latentes: a ameaça interna, os complôs e as mano-
bras políticas contrários à democracia – responsáveis pela desestabilização do Estado – e o perigo de uma guerra
civil. Assim, a obra assume uma posição pacifista, pois visa impedir a guerra e restabelecer a estabilidade social e
política. A peça foi encenada na cidade de Atenas, no ano de 411 a.C., em um dos festivais atenienses dedicados a
Dionísio, divindade relacionada às festas, à fertilidade e ao vinho.

Contexto de produção
Para realizar um estudo eficiente da obra de Aristófanes, deve-se atentar ao seu contexto de produção. Nesse
sentido, é fundamental compreender a importância do teatro, visto que ele foi uma manifestação artística essencial
para o desenvolvimento da cultura grega. O teatro grego teve origem em meados de 550 a.C., na cidade de Atenas,
com base nas celebrações realizadas ao deus Dionísio (que, inclusive, é mencionado no início de Lisístrata). Nessas
celebrações dionisíacas, as pessoas bebiam, cantavam e dançavam; contudo, com o passar do tempo, essas festi-
vidades foram se estruturando em forma de teatro, com atores, texto, plateia, encenações e elementos cênicos. A
construção dos teatros em Atenas permitiu o surgimento de um gênero novo, que já não representava heróis em
grandes batalhas (como o gênero épico), mas sim dava abertura a temas terrenos, seja em sua forma trágica, seja
em sua forma cômica, procurando representar, sempre com algum exagero (o sofrimento na tragédia e o ridículo na
comédia), o conflito entre o homem e o seu tempo.
É importante ressaltar que, nessa época, não existiam escolas em Atenas e que o teatro servia, então, como um
espaço que cumpria a função de instruir (com os recursos oferecidos pela arte) o povo. Desse modo, Aristófanes
exercia, ao mesmo tempo, os papéis de poeta, político e professor. Era poeta, pois, em suas obras, encontra-se um
rico trabalho com a ficção. Era político, já que seu posicionamento conservador está posto de maneira muito clara e
combativa. Era também professor, pois suas obras visavam à instrução do povo.
O termo teatro (theatron) significa “lugar para olhar”; logo, os textos dramáticos nascem para a encenação, ou
seja, o leitor originário do texto não era um leitor-comum, mas sim os atores da peça. O elenco era composto apenas
por atores homens que interpretavam todos os papéis usando máscaras.

47

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 47 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

O gênero cômico
A comédia passou a fazer parte das festas dionisíacas por volta de 488 a.C., meio século após a tragédia. Apesar
de os dois gêneros apresentarem estruturas muito semelhantes, a comédia se diferencia pela matéria de que está
tratando: seres inferiores em situações ridículas. Se o efeito visado pela tragédia é levar o público ao sentimento de
compaixão por meio da representação do sofrimento do herói, o objetivo pretendido pela comédia é o de levar o
público ao riso por meio da comicidade.
O filósofo Aristóteles, em sua conhecida obra Poética, define a tragédia como um gênero maior que representa
seres elevados, enquanto a comédia seria um gênero menor que representa seres inferiores. Embora Aristóteles
conferisse ao gênero cômico um aspecto de inferioridade em relação ao seu gênero irmão, sabe-se que a comédia
grega tinha um apreço popular, principalmente pelas temáticas e pela maneira como elas eram retratadas, causan-
do a diversão e a instrução do público, como é o caso das comédias de Aristófanes, únicas obras do gênero que
sobreviveram até a contemporaneidade.
Como não se tem material suficiente sobre a comédia na Grécia Antiga, há apenas a divisão do gênero em três
fases: a comédia antiga, a intermediária e a nova. A comédia antiga, da qual fazem parte as peças de Aristófanes,
estrutura-se em quatro partes: prólogo, párodo, episódios e êxodo. Enquanto na primeira parte, o prólogo, fazia-se
a exposição do tema da comédia em forma de diálogo entre personagens, o párodo é o momento que correspondia
à entrada do coro. Já o episódio é o incidente que compõe uma progressão ou uma sequência maior da trama. Por
último, o êxodo é o episódio final da peça.

Vida e obra
Atribui-se a Aristófanes a alcunha popular de “Pai da comédia” e “Príncipe da comédia antiga”. Em virtude da
falta de documentação, pouco se sabe sobre a vida dele. O poeta nasceu na cidade de Atenas em 444 a.C., momen-
to em que ela estava no auge de seu desenvolvimento econômico, político e cultural, caracterizando a citada Idade
de Ouro de Atenas. É importante mencionar que, além do teatro, ele também atuou na política, fazendo parte do
grupo político aristocrático de Atenas, em oposição aos demagogos Hipérbolo e Cléon.
É provável que, devido ao conhecimento cultural presente em suas obras e ao seu posicionamento conservador,
Aristófanes tenha tido origem nobre. Os temas abordados se configuram como importantes e universais porque
são passíveis de debate ainda hoje, tais como as críticas às instituições políticas, aos costumes bélicos dos homens
e à representação do papel da mulher na sociedade. Entre as mais de quarenta obras escritas por ele, apenas onze
estão disponíveis de forma integral.
Dentre as principais características de suas obras, é possível notar críticas políticas e sociais feitas por meio de
sátiras, paródias, exagero, linguagem obscena, uso recorrente de ironia e duplo sentido, construção de diálogos
simples e ricos, pouco apreço pelas inovações sociais e políticas, além da presença de personagens que defendiam
os valores do passado (virtudes cívicas, democracia tradicional, solidariedade).

Principais obras do autor


 Lisístrata, ou A greve do sexo (411 a.C.)
 As vespas (422 a.C.)
 As nuvens (422 a.C.)
 Os acarnianos, ou Os acarnenses (425 a.C.)
 Os cavaleiros (424 a.C.)
 A paz (421 a.C.)
 As aves (414 a.C.)
 As tesmoforiantes, ou As mulheres que celebram as tesmofórias (411 a.C.)
 As rãs (405 a.C.)
 As mulheres na Assembleia, ou Assembleia de Mulheres (392 a.C.)
 Pluto ou Um deus chamado Dinheiro (388 a.C.)

Apresentação e análise da obra


A obra tem como personagem principal uma mulher chamada Lisístrata, a qual dá nome à comédia. A perso-
nagem se encontra cansada da ausência do marido em decorrência das sucessivas guerras e arquiteta um plano
infalível para restaurar a paz: privar os homens de sexo e depois tomar a Acrópole, lugar em que ficavam guardados
os tesouros da cidade. Contudo, para alcançar o efeito pretendido, ela precisa convencer as outras mulheres a aderir
ao plano.

48

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 48 31/07/2023 08:55:41


Análise de Obras – UFRGS

De início, há certa resistência; no entanto, graças aos argumentos de Lisístrata, lembrando a elas como é ser
mulher em uma sociedade comandada por homens, resolvem se unir para enfrentá-los. Ao chegarem à Acrópo-
le, elas recebem resistência dos homens, representados pelo comissário e pelos soldados, que tentam prender a
personagem principal, mas as mulheres se unem para impedir que isso aconteça. A partir desse momento, ocorre
um debate acalorado entre o comissário e Lisístrata. Com boas justificativas e uma postura combatente, ela não só
consegue convencer as mulheres a concretizar o plano, como também os homens, que não veem uma alternativa a
não ser aceitar que o único caminho é a paz.
A comédia apresenta uma forte crítica às transformações sociais causadas pela guerra, ressaltando o papel das
mulheres na sociedade grega por meio da protagonista Lisístrata. Ainda que se trate de uma obra escrita por um
homem conservador, as discussões suscitadas contribuem para refletir tanto sobre a situação das mulheres da épo-
ca quanto sobre o contexto feminino contemporâneo.

Personagens principais
 Lisístrata: personagem principal da peça, é a mulher ateniense que arquiteta o plano para acabar com a Guerra
do Peloponeso.

 Cleonice: mulher ateniense, tem papel secundário e é vista como a humorista do grupo em alguns momentos.

 Mirrina: mulher ateniense, é semelhante à Cleonice, apresentada em situações humorísticas, tendo destaque no
episódio que tenta colocar o plano de Lisístrata à prova.

 Cinésias: guerreiro e marido de Mirrina, ele tenta, a qualquer custo, convencer a esposa a interromper a greve de sexo.

 Lampito: mulher espartana, ela deseja restaurar a paz assim como Lisístrata. Pode-se pensar em Lampito como a
Lisístrata de Esparta.

 Coro de Velhos: é um grupo de homens mais velhos que se contrapõe à tomada da Acrópole feita pelas mulheres
e que tenta retirar Lisístrata à força.

 Coro de Mulheres: é um grupo de mulheres mais velhas que irá apoiar e ajudar Lisístrata e as demais mulheres na
tomada da Acrópole.

 Um comissário: é um homem que tenta solucionar os problemas causados por Lisístrata e pelo grupo de mulheres.
Sua retórica deixa clara a posição masculina de que as mulheres não são capazes de resolver “problemas sérios”
como a guerra.

Estrutura narrativa
Em termos de estrutura, a trama de Lisístrata divide-se em quatro partes, assim como as peças da comédia anti-
ga: prólogo, párodo, episódios e êxodo.
No prólogo, tem-se a exposição, por meio do diálogo entre Lisístrata e Cleonice, do problema e do plano para
acabar com a guerra, enquanto, no párodo, entram em cena Corifeu e Corifeia, representando os respectivos coros,
sendo Corifeu o responsável por evocar a voz coletiva dos homens e Corifeia a responsável por evocar a voz coletiva
das mulheres.
Nos episódios, os homens tentam impedir as mulheres de dar continuidade ao plano, e há embates argumen-
tativos entre homens e mulheres. A cena com Mirrina e seu marido Cinésias serve como o exemplo do plano de
Lisístrata colocado em ação, mostrando a resistência das mulheres. Tudo isso até se chegar ao êxodo, em que há o
desfecho da trama com os homens selando a paz.
Além da estrutura indicada, por apresentar um texto que é para ser encenado e que é dirigido aos atores da
peça, Lisístrata traz cenas, diálogos e didascálias (estas últimas são a voz direta do dramaturgo). A obra igualmente
contém uma cena, apresentada no começo, cuja função se assemelha a uma espécie de moldura. Ela não só constrói
o espaço da obra, mas também introduz ao leitor o encontro decisivo entre as personagens Cleonice e Lisístrata,
que revelará o descontentamento de Lisístrata e o plano dela para resolver de vez o problema da guerra.
Cena
No primeiro plano, de um lado a casa de Lisístrata, do outro a de Cleonice. Ao fundo, a acrópole. Um caminho
estreito e cheio de curvas conduz até lá. No meio dos rochedos, em segundo plano, a gruta de Pã. Lisístrata anda pra
lá e pra cá, diante da casa.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 9)

Sobre os diálogos, deve-se perceber que é por meio deles que o enredo e as personagens se constroem. No
diálogo presente logo após a apresentação da cena, pode-se ver a oposição entre as personagens Lisístrata, mais
séria e disposta a recusar os prazeres da carne, e Cleonice, mais alegre e disposta a ceder a eles.

49

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 49 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Lisístrata — Pois é. Se tivessem sido convidadas para uma festa de Baco isso daqui estaria intransitável de mulhe-
res e tamborins. Mas, como eu disse que a coisa era séria, nenhuma apareceu até agora. Só pensam em bacanais. Hei,
Cleonice! Bom dia, Cleonice!
Cleonice — Bom dia, Lisístrata. Magnífico dia para um bacanal.
Lisístrata — Cleonice, pelo amor de Zeus: Baco já deve andar cansado.
Cleonice — Que aconteceu, boa vizinha? Tens a expressão sombria, um olhar cheio de repreensão, a testa franzida.
O avesso de uma máscara de beleza.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 9)

Como já mencionado, deparar-se com um texto dramático da Antiguidade é estar diante de uma situação in-
completa, um documento que perde parte constitutiva dele: o desempenho dos atores em cena. Mesmo assim,
esses textos trazem consigo marcas que dão conta de recuperar uma pequena parte dessa performance, as orienta-
ções dadas pelo dramaturgo aos atores sobre como eles devem se comportar em cena. Logo, tais marcas permitem
que o leitor imagine o ator em cena, tudo sob a voz que se pretende ausente do dramaturgo, mas que em alguns
momentos acaba escapando. Por esse motivo, embora haja uma inteligência ficcional por trás da elaboração da his-
tória, não se pode falar que exista um narrador, ao menos não como se conhece e se analisa em um romance, uma
novela ou um conto.
As didascálias diferenciam-se visualmente do resto do texto por estarem escritas entre parênteses ou impressas
em itálico, ou de qualquer outra forma que evidencie se tratar de um texto à margem das falas das personagens.
Essas indicações cumprem uma dupla função: primeiro, situam o diálogo e a ação em um contexto imaginário, no
nível do acontecimento ficcional (aproximando-se do papel da descrição no gênero narrativo); segundo, no nível da
representação, fornecem instruções àqueles que transformam o texto em espetáculo (encenadores, atores, cenó-
grafos, entre outros).
A seguir, é apresentado um trecho do momento em que as mulheres bebem vinho e fazem o juramento de não
romper a promessa.
Cleonice — (Avançando para a taça). Basta, amiga, basta: acreditamos na tua convicção. Agora beberemos todas,
consolidando assim nossa amizade. (A taça passa de mão em mão. Todas bebem. Ouvem-se gritos a distância.)
(ARISTÓFANES, 2018, p. 32)

Orientações de leitura
Em primeiro lugar, é preciso localizar Aristófanes como um artista que era envolvido diretamente com a política
de seu tempo e que buscava propor uma reflexão filosófica e política particular. Utilizando o teatro como forma de
instrução, suas peças buscam ao mesmo tempo divertir e moralizar. Ao contrário do que se possa imaginar, não se
trata de uma obra progressista, mas sim conservadora. A luta de Lisístrata não é, portanto, pela igualdade entre ho-
mens e mulheres, embora toque nessas questões por expor a situação das mulheres, mas sim se centrava no retorno
de uma sociedade grega que não tinha seus valores ameaçados.
Ainda assim, ao colocar as mulheres como protagonistas de uma história e dar voz a elas, Lisístrata examina a
condição das mulheres na sociedade, tocando, portanto, em uma temática atemporal, embora a obra se restrinja
a um contexto mais específico da Grécia Antiga. Isso ocorre porque, conquanto o tempo passe e muitos avanços
sejam alcançados, as mulheres seguem reivindicando condições mais igualitárias. Nesse sentido, o uso da comédia
como gênero, tanto para criticar a sociedade quanto para expor tais questões, é de suma importância, pois usufrui
de maior liberdade que a tragédia, por exemplo. No caso de Lisístrata, são as mulheres que estão na linha de frente e
assumem para si decisões importantes (decisões que não estão relacionadas apenas com questões do lar), ao passo
que os homens estão na posição agora subalterna de não ter outra escolha a não ser ceder.
Tendo isso em vista, Aristófanes encontra nas mulheres uma forma de elaborar uma crítica mordaz à sociedade
do seu tempo, por isso a recorrência delas em outras de suas obras, como no caso de As mulheres na Assembleia e
As tesmoforiantes. A primeira peça gira em torno da líder Praxagora, que quer convencer os homens a dar às mulhe-
res o controle de Atenas. Já a segunda se concentra em uma série de mulheres atenienses reunidas que planejavam,
no tempo de Deméter e Perséfone, vingar-se da maneira que o tragediógrafo Eurípedes retrata as figuras femininas
em suas peças. Percebe-se, nessas duas obras mencionadas, o mesmo movimento de Lisístrata: a união das mulhe-
res e o plano para tentar assumir o controle de decisões sérias, desde sempre assumido pelos homens.
Ao propor a inversão de papéis e colocar as mulheres à frente acaba sendo uma “maneira ridícula” de mostrar
ao público como os homens estão enfraquecidos e se desviando dos valores de uma sociedade que ele considera
ideal. Portanto, a obra não se propõe a ser uma defesa do que poderá um dia vir a ser, mas sim do que um dia foi.

50

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 50 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Perguntas orientadoras
1. Como a comédia de Aristófanes dialoga com a sociedade da Grécia Antiga?
2. Onde está localizado o cômico na obra de Aristófanes e qual finalidade o autor visa atingir debruçando-se sobre o
gênero?
3. Por que há o entrecruzamento entre guerra e sexo como temáticas que estruturam Lisístrata?
4. Como os homens retratam as mulheres ao longo da peça?
5. Quais passagens de Lisístrata evidenciam a real condição da mulher na sociedade grega?
6. Quais são as discussões mais pertinentes que a obra suscita aos leitores contemporâneos?

Conteúdos complementares
Para ampliar o conhecimento dos estudos em poesia grega, do autor estudado e do gênero cômico, indica-se
algumas leituras complementares.
 De início, uma leitura fundamental para o estudo do teatro grego antigo é a obra Poética (escrita entre 335 a.C. e
323 a.C.), de Aristóteles. Nela, pode-se ver pela primeira vez uma sistematização de estudos sobre a estética dos
gêneros literários gregos. Apesar de a obra de Aristóteles priorizar o gênero trágico, ela oferece bons recursos teó-
ricos para estudantes de Literatura, uma vez que apresenta de maneira didática o funcionamento de cada gênero.
Em suma, Aristóteles mostra que toda arte é imitação e que as diferenças entre os estilos artísticos seriam os meios,
os objetos e os modos de imitação. O livro dedicado ao gênero cômico supostamente seria feito em um segundo
volume, que até o presente não foi encontrado.
 A respeito do gênero cômico em si, a primeira indicação é do livro O nome da rosa, escrito pelo autor italiano
Umberto Eco. Ainda que não seja uma comédia, e sim um romance policial que se passa na Itália no Período Me-
dieval, ele ajuda a compreender o papel subversivo da comédia na sociedade. Nessa obra, em meio a investigações
sobre uma série de crimes, há a descoberta de uma biblioteca secreta com livros e escrituras que colocavam em
risco os dogmas da Igreja Católica. É importante notar que a obra de Umberto Eco resgata uma reflexão sobre a
comédia e o riso como profanos, como elementos que desvirtuavam a sociedade.
 Outra sugestão é o filme Melinda Melinda, do cineasta estadunidense Woody Allen. O filme se propõe a discutir
sobre a dualidade do drama humano, mostrando uma mesma história contada sob duas óticas diferentes: a primei-
ra, com a estrutura de tragédia; a segunda, com a estrutura de comédia. É interessante ver como o filme discute a
maneira que os elementos trágicos e cômicos se misturam nas duas versões.
 Já para um estudo teórico mais aprofundado sobre a comédia recomenda-se a leitura da obra O riso, do filósofo
francês Henri Bergson. A obra, que é fruto de três ensaios publicados pelo autor em 1899 pela revista Revue de Paris,
propõe-se a fazer uma reflexão sobre o cômico em sua relação com aquilo que é da natureza humana. Em síntese,
o autor mostra que alguém só ri porque reconhece no que provocou o riso gestos que pertencem ao humano.
 Seguindo as criações de Aristófanes, têm-se as obras As mulheres na Assembleia e As tesmoforiantes. Ambas as
obras dialogam diretamente com Lisístrata, uma vez que apresentam uma discussão sobre o lugar das mulheres na
sociedade, apresentando-as como protagonistas, com voz ativa.
 Por fim, uma última sugestão é a canção “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque e Augusto Boal, que retrata de
maneira crítica a sociedade patriarcal da democracia ateniense defendida por Aristófanes.

Ensaio
Os fios tecidos pelas mulheres de Lisístrata
Ler os clássicos é sempre entrar em uma máquina do tempo e fazer uma longa viagem. Como toda viagem que
se preze, é preciso ao viajante conhecer bem o lugar de chegada para usufruir das melhores experiências. Desse
modo, após se deparar com um mundo novo, o viajante do tempo pode interpretá-lo e reinterpretá-lo, atento a
tudo que assimilou ao longo do caminho, que são as marcas que ficam da travessia. Entretanto, não se deve deixar
de fora toda sua bagagem, que são as marcas que se levam para essa passagem. Sobre a leitura dos clássicos, Italo
Calvino revela que:
[...] é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as
repele para longe.
(CALVINO, 1993, p. 12)
Sobre o anseio do poeta e o poder irruptivo da literatura, Mircea Eliade observa que:
De modo mais intenso que nas outras artes, sentimos na literatura uma revolta contra o tempo histórico, o desejo
de atingir outros ritmos temporais além daquele em que somos obrigados a viver e trabalhar.
(ELIADE, 1972, p. 165)

51

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 51 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Hoje em dia, Lisístrata, de Aristófanes, pode soar como uma peça ultrapassada. E talvez seja. Em seu contexto,
enquanto esteve no teatro e podia contar com a performance dos atores, a obra não só divertiu o seu público como
o instruiu. A diversão ocorreu porque Aristófanes utilizara os recursos que o gênero cômico oferece: personagens
comuns, situações ridículas, atuações exageradas. Já a instrução decorre do verdadeiro plano do autor, que, ciente
do papel do teatro como escola e do poeta como professor, utiliza a obra como artifício para reforçar princípios
conservadores e reivindicar o retorno do que está sendo deturpado em seu presente. Mas quais efeitos essa obra
pode ainda ter hoje?
Antes de tentar responder a essa questão, é preciso compreender a sociedade defendida por Aristófanes. Nesse
sentido, a canção “Mulheres de Atenas”, composta por Chico Buarque e Augusto Boal, faz o exercício de recompô-la:
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas, cadenas
MULHERES de Atenas. Intérprete: Chico Buarque.
Compositores: Chico Buarque e Augusto Boal.
In: MEUS caros amigos. Intérprete: Chico Buarque.
[S. l.]: Universal Music, 1976. 1 CD, faixa 2.

A canção, composta para a peça Lisa, a mulher libertadora (adaptação feita por Augusto Boal de Lisístrata),
nasceu em 1976, dentro do contexto da Ditadura Civil-Militar. Para compreender a crítica formulada pela canção e
evitar os equívocos de taxá-la como machista, é preciso entender que existe a presença da ironia do eu-cancional
ao entoar o destino servil dessas mulheres. A figura de linguagem permite que se diga algo buscando seu efeito
contrário, saída estilística ideal para quem quer falar algo em um período histórico de repressão artística. Acusada
de apologia à exaltação das mulheres atenienses na época de circulação, a canção ganha o efeito contrário ao ser
compreendida em um tom irônico: o de fazer uma crítica à condição das mulheres atenienses. Da mesma maneira,
a obra de Aristófanes parece transmitir uma mensagem de maneira irônica ao mostrar que as mulheres são capazes
de se dedicar a uma empreitada tão séria; ele, na verdade, não parece dizer que elas sejam mesmo capazes disso.
Desse modo, zomba-se de uma situação tão absurda. O problema é que, entre a intenção do autor e a transmissão
da mensagem, a história se transforma, inclusive com alguns avanços sociais, e os efeitos de leitura mudam.
Se a canção de Chico Buarque e Augusto Boal propõe o retorno ao passado distante de Atenas, não é para
exaltá-lo, mas sim temê-lo em seu presente. Embora não esteja formulada nem em sua entoação contida nem nas
imagens utilizadas na canção, sua chave é crítica e combativa. Já a obra de Aristófanes propõe o avanço ao futuro,
uma sociedade em que os valores foram invertidos, inserindo mulheres guerreiras e combatentes. Como mostra
Lisístrata, em conversa com Cleonice, no início da peça:
Acho que nenhuma de nós jamais encarou nada tão grande. Ou nos reunimos e enfrentamos juntas ou ela nos
devora.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 11)

Assim como Chico, Aristófanes compartilha do mesmo temor ao presente. Ambas as obras miram o futuro, mas
de modos distintos. Enquanto o de Chico é um futuro de um tempo que não existe em seu presente, o futuro de
Aristófanes é um passado que já existiu, mas que em seu presente já não existe mais.
O que pode soar como revolucionário em Lisístrata, ou seja, a possibilidade de emancipação feminina em uma
sociedade que a reduz a uma condição muito específica (dar prazer aos homens, gerar filhos, ocupar-se das tarefas
domésticas) é um meio encontrado por Aristófanes para aplicar sua pedagogia pacifista, que na verdade visa anular
toda e qualquer transformação, pois selada a paz na peça tudo voltará a ser como sempre foi. Apresentar as per-
sonagens mulheres como protagonistas e colocar na boca delas seus dilemas pode causar a impressão de que se
trata de uma obra progressista, mas não se pode ignorar que Lisístrata é uma comédia grega. Aristóteles, em Poética
(1990), ao contrapor tragédia e comédia, mostra que a primeira imita seres superiores, enquanto a segunda imita
seres inferiores; em outras palavras, ao dar protagonismo às mulheres (seres inferiores da polis grega), o efeito de-
sejado por Aristófanes é o do riso. Para a sociedade grega, é engraçado que as mulheres se unam, teçam um plano
e sejam capazes de tomadas de decisões importantes para a polis. Se a tragédia eleva e exalta, a comédia rebaixa
e oprime. Henri Bergson mostra que:
O riso é, antes de tudo, um castigo. Feito para humilhar, deve causar à vítima dele uma impressão penosa. A socie-
dade vinga-se através do riso das liberdades que se tomaram contra ela. Ele não atingiria o seu objetivo se carregasse
a marca da solidariedade e da bondade.
(BERGSON, 1987, p. 99-100)

52

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 52 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Além do absurdo da história para a época, imaginar como a peça foi encenada contribui ainda mais para o efei-
to cômico pretendido por Aristófanes. Homens vestidos de mulheres e falando por elas gera o riso de um público
exclusivamente masculino. Ainda que Lisístrata possa chegar aos dias de hoje com desgastes de séculos, ela parece
sim ser capaz de comunicar questões importantes. Segue-se um diálogo entre Lisístrata e Lampito.
Lisístrata – Ó, sexo dissoluto, ao qual me envergonho de pertencer! Não é à toa que nos fazem personagens centrais
de tudo que é comédia sem-vergonha. Só prestamos para o leito e para suas variações. (A Lampito) Mas vocês, queri-
da, eu sei que eu posso contar com vocês criada na dureza da vida espartana. Se você me apoiar, tudo ainda poderá
acabar bem. Me ajuda, me segue... eu imploro.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 21-22)

Lampito – É penoso, ó, Zeus, uma mulher dormir sozinha sem algo a que se agarrar se lhe acontecer um pesadelo.
Mas aí... (Pausa, suspense) ... a paz deve vir primeiro.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 21-22.)

Nos trechos, diante da dificuldade das mulheres em aceitar ceder ao sexo, Lisístrata reflete sobre a represen-
tação delas nas comédias. Essa fala serve como um recurso de Aristófanes para tentar justificar o porquê de as
mulheres serem castigadas pelo riso. Contudo, esse trecho também oferece ferramentas para que se reflita como as
mulheres são retratadas na literatura.
Quanto à resposta de Lampito, além de expor a dificuldade de aceitar o plano de Lisístrata, reforça um argu-
mento de dependência da mulher. Nesse sentido, a dificuldade de “dormir sozinha” pode ser compreendida de
diferentes maneiras: 1) deitar-se na cama sem um homem à noite é muito difícil; 2) dormir sozinha sem um homem
para protegê-la é muito difícil.
Por outro lado, a obra de Aristófanes, embora busque como um todo reafirmar uma condição de restrita liber-
dade das mulheres, oferece a elas mobilidade narrativa para que se leia e se reflita com a ótica moderna. Talvez seja
isso que possibilite retirar da viagem experiências que façam sentido ao presente. O poema “eu durmo comigo”,
da poeta brasileira Angélica Freitas, é um exemplo que reforça isso. Ele apresenta como temática a dependência
da mulher, mas em um sentido afirmativo, mostrando que a mulher pode sim dormir sozinha, pois, além de ter sido
escrito por uma mulher, ele faz parte de um momento histórico que já acompanhou lutas e conquistas do movimen-
to feminista.
eu durmo comigo / de bruços deitada eu durmo comigo / virada pra direita eu durmo comigo / eu durmo comigo
abraçada comigo / não há noite tão longa em que não durma comigo / como um trovador medieval agarrado ao alaúde
eu durmo comigo / eu durmo comigo debaixo da noite estrelada / eu durmo comigo enquanto os outros fazem ani-
versário / eu durmo comigo às vezes de óculos / e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo / e quem quiser
dormir comigo vai ter que dormir do lado
(FREITAS, 2013, p. 55)

Talvez o poema de Angélica Freitas não tenha nascido para ser um diálogo direto com esse trecho específico
de Lisístrata, mas ainda assim acaba sendo. Por quê? Ao dar autonomia às suas personagens, na busca por verossi-
milhança, a peça de Aristófanes constrói uma rede de situações que acabam permitindo tocar outras mulheres de
tempos diversos. Se a obra não pode ser considerada feminista, ela serve como um acervo de situações utilizadas
pelos estudos feministas posteriormente. Se o texto, em seu sentido etimológico, remete às palavras tecer e tecido,
o texto das mulheres de Aristófanes é capaz de chegar e se aglutinar a outros textos de outras mulheres como um
tecido costurado a muitas mãos.
O tecer na literatura não é um tema raro para a reflexão sobre a condição da mulher na sociedade. Na obra
Odisseia, Helena tece uma colcha de dia, mas de noite a desmancha, a fim de retardar que os homens, na ausência
do seu marido Odisseu, a desposem. Em mil e uma noites, Sherazade tece uma colcha de histórias incompletas para
que seu marido não a assassine. Para citar um exemplo contemporâneo, a história em quadrinhos Bordados, de Mar-
jane Satrapi, mostra que, enquanto os homens estão na sala, as mulheres lavam a louça e tecem suas histórias mais
íntimas, situações que só podem ser contadas por elas e para elas. Já em Lisístrata, o que é tecido pelas mulheres é
capaz de chegar até as mulheres espartanas (inimigas dos homens, mas nas peças, suas aliadas), uma vez que tratam
de experiências compartilhadas, assim como é capaz de chegar às mulheres do presente, um público que na Grécia
Antiga não era aquele visado, mas que agora pode se apropriar delas. Nesse sentido, a fala de Cleonice, tentando
defender as mulheres de não terem atendido prontamente ao chamado de Lisístrata, recupera bem o lugar de todas
essas mulheres, mostrando as dificuldades delas em se envolver em “assuntos sérios” pelo excesso de atividades
domésticas.
Cleonice – Calma, Lisinha! Você sabe como é difícil para as donas de casa se livrarem dos compromissos domés-
ticos. Uma tem que ir ao mercado, outra leva o filho à academia, uma terceira luta com a escrava preguiçosa que às
6:00 da manhã ainda não levantou. Sem falar no tempo que se perde limpando o traseiro irresponsável das crianças.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 10)

53

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 53 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Outro momento da peça interessante de ser resgatado é anterior às mulheres terem assumido a posição de
combate e tomado a Acrópole: a demonstração do temor das mulheres, que é coletivo (e atemporal). Ainda resoluta
ao plano de Lisístrata, Cleonice revela o medo do abandono.
Mas suponhamos que nossos maridos mais do que nós, nos abandonem.
(ARISTÓFANES, 2018, p. 23)
Há ainda o medo da violência.
Uma última hipótese. Se nos pegarem à força? E se nos baterem?
(ARISTÓFANES, 2018, p. 24)
Milena Nobre chama atenção para um momento em particular:
Na peça a protagonista diz que para colocar ordem na cidade elas farão de modo muito simples “como um fio,
quando está embaraçado, como este, tomando-o, puxando-o com fusos deste lado e daquele outro, assim também esta
guerra acabaremos” (versos 567-569), evidenciando uma estreita relação com as Moiras, que em grupo se organizam
para estabelecer a ordem.
(NOBRE, 2013, p. 19)

A autora resgata também o mito de Ariadne, em que o fio é um elemento importante, uma vez que a filha do rei
Minos, apaixonada pelo herói ateniense Teseu, preso no Labirinto, em Creta, deu a ele de presente um novelo de
fios que ele precisava desenrolar para encontrar o caminho de volta. Quanto à obra de Aristófanes, se o fio tecido
pelas mulheres visa ser desenrolado apenas até acabar com a guerra, o que acontece, no final da peça, são as pon-
tas soltas – enquanto as mulheres se unem, expõem suas dificuldades e fragilidades e se organizam para assumir
posições de combate – que chegam do passado e podem tocar o presente, unindo-se a outros fios tecidos e ema-
ranhados ao longo da história.

54

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 54 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

A falência
Júlia Lopes de Almeida

Contexto histórico
Júlia Lopes de Almeida viveu grande parte de sua vida durante a Primeira República Brasileira (1889-1930). Para
compreender sua obra, é importante entender como ocorreu a transição política e econômica da monarquia, que
imperava desde a Independência (1822), à república no país, uma vez que o romance A falência, produzido em 1891,
situa-se nesse contexto histórico. A sociedade nesse período, principalmente se tratando do Rio de Janeiro, cenário
da obra, reproduzia a estrutura social herdada do Período Colonial, utilizando o trabalho escravo, cuja produção era
destinada à exportação.
Enquanto em outras nações, em que a escravidão foi menos duradoura que no Brasil, predominava o traba-
lho assalariado livre, ou seja, o trabalho remunerado sem vínculos obrigatórios a um patrão específico, em terras
brasileiras o trabalho era realizado majoritariamente por escravizados, sem qualquer remuneração, pois eles eram
considerados propriedades de seus donos. Com base nisso, é possível pensar nas correspondências culturais que
essa diferença produzia na vida dos brasileiros. Um exemplo disso, que é central para o romance de Júlia Lopes
de Almeida, é a crença na ascensão pelo mérito do trabalho individual. Nos países liberais, no século XIX, era
possível considerar a possibilidade de ascensão social pelo esforço individual. Já na sociedade escravista carioca
do século XIX, os escravizados eram explorados de tal forma que, independentemente de seus esforços, não
conseguiam ascender socialmente.
Após a abolição da escravatura em 1888, os senhores de escravos, desagradados pela falta de indenização à
perda da mão de obra barata, voltaram-se contra a monarquia de Dom Pedro II e passaram a apoiar a Proclamação
da República, que se efetivou em 1889. Esse processo de abolição, marcado por avanços e regressos, não conse-
guiu favorecer a integração do negro na sociedade por meio do assalariamento. Durante as primeiras décadas da
república, houve uma forte política de imigração europeia, com a vinda em massa de trabalhadores estrangeiros
que passaram a disputar força de trabalho com os negros, levando-os, muitas vezes, a manter posições análogas às
do período de escravidão.
Ao londo desse período, a cidade do Rio de Janeiro, mesmo fora do centro do poder político, passou por um
processo intenso de modernização, o qual se concentrou nas elites paulistas e mineiras. Com as políticas raciais
de imigração europeia e o fluxo contínuo de ex-escravizados de outras localidades, a população da metrópole
quase triplicou no intervalo de poucos anos. Reformas nos centros urbanos, que acompanharam o surgimento
das favelas e de cortiços na cidade, marcaram uma expansão urbana desordenada. O agente financiador dessa
expansão, que também é central para o romance de Júlia, foi a burguesia do café, principal produto de exporta-
ção do Brasil na época.
Nesse contexto de cultivo e exportação do café, o fato que contextualiza o período em que se passa o romance
é a crise do Encilhamento, que perdurou durante toda a República da Espada (1889-1894). Trata-se de uma crise
econômica advinda do choque entre a política de Rui Barbosa, que buscava estimular o crescimento econômico,
sobretudo do setor industrial, ocasionando protestos dos cafeicultores contra essa política econômica, e a baixa
internacional dos preços, o que provocou inflação e uma bolha econômica especulativa, além de ondas de fraudes
que se aproveitaram da completa desregulamentação da bolsa. A crise gerou falências e, na obra analisada, afeta a
família da protagonista.
Esse é o cenário da prosa realista brasileira do fim do século XIX, que tem como principais representantes Ma-
chado de Assis, Lima Barreto, Adolfo Caminha, Aloísio de Azevedo, Euclides da Cunha e Júlia Lopes de Almeida.
Toda essa geração de romancistas é notória por expor os dilemas e as contradições do processo de consolidação
republicana no Brasil.

55

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 55 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Vida e obra
Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, em 1862. Filha de portugueses de origem burguesa que imi-
graram para o Brasil na década de 1850, mudou-se aos sete anos de idade para Campinas, cidade que cresceu a
partir do boom do café entre 1860 e 1870. Essa expansão foi marcante para as obras da autora. Durante esse perío-
do, Júlia passou por uma formação intelectual e artística exigente, incentivada pelo pai: estudou piano, inglês e as
literaturas portuguesa (Almeida Garret, Camilo Castelo Branco e Júlio Diniz) e francesa (Gustave Flaubert e Émile
Zola). Sua família não era propriamente rica, mas tinha uma vida confortável e moralmente reconhecida na sociedade
paulista, o que fez com que Júlia Lopes de Almeida convivesse com a intelectualidade da época no interior de sua
casa desde muito cedo.
Aos 19 anos, após sua irmã delatá-la à família por estar compondo versos, única atividade literária permitida às
mulheres, ainda que pouco aceita socialmente, Júlia é convidada por seu pai a escrever para o Gazeta de Campinas.
A colaboração com o periódico durou de 1881 a 1886.
Durante uma temporada no Rio de Janeiro em 1885, Júlia Lopes de Almeida foi apresentada ao escritor luso-
-brasileiro Filinto de Almeida (1857-1945), com quem se casou em 1887, tornando-se Júlia Valentim Silveira Lopes
de Almeida, e permaneceu unida até o final de sua vida. No ano de 1886, a família deixou Campinas e foi para
Portugal, onde residiu até 1888. Após o início do regime republicano brasileiro, Filinto de Almeida foi promovido
a redator-chefe do jornal Estado de São Paulo, e a família mudou-se novamente para o Brasil, permanecendo na
capital paulista.
Em paralelo a esses acontecimentos, Júlia se lançou como escritora e publicou, em coautoria com a irmã Adelina
Lopes, o livro Contos Infantis (1887), o qual fez da autora uma das pioneiras da literatura infantil brasileira. Já em
1888, publicou sua segunda obra, intitulada Traços e iluminuras.
De volta ao Rio de Janeiro com a família em 1895, a autora alcançou notoriedade impulsionada pela colaboração
com a revista feminina A Mensageira (1897-1900), para a qual escreveu diversos artigos sobre os mais variados temas,
incluindo a defesa constante da emancipação feminina. Essas publicações renderam-lhe comparações a George
Sand, pseudônimo de Amantine Aurore Lucile Dupin, importante escritora francesa do século XIX. Entretanto, o
grande destaque desse período é a maturidade literária alcançada por Júlia e que resultou na publicação de três
importantes romances: A Viúva Simões (1897), Memórias de Marta (1889) e A Falência (1901), sequência que a fez
reconhecida, na época, como uma das grandes romancistas de sua geração.
Em 1896, reconhecida por sua produção literária, a escritora foi indicada à fundação da cadeira de número 3 da
Academia Brasileira de Letras (ABL), contudo não foi escolhida para a lista oficial de imortais da ABL, pois a acade-
mia brasileira seguiu o modelo da francesa e não aceitou mulheres entre seus membros. Então, a cadeira indicada a
Júlia foi destinada a seu marido, Filinto de Almeida. A presença de mulheres na ABL passou a ser permitida tardia-
mente, em 1977, com a indicação de Rachel de Queiroz para a cadeira de número 5.
Seguindo a sua carreira literária com grande sucesso, Júlia teve reconhecimentos em Paris e na Argentina. Ela e o
marido ainda residiram em Paris durante os anos 1920, em função de uma bolsa de aperfeiçoamento em artes con-
cedida à filha do casal. Voltando ao Brasil, a autora morreu em 1934, vítima de febre amarela. Após seu falecimento,
sua obra caiu no esquecimento, apagada do cânone literário durante quase meio século.

Principais obras da autora


 A Família Medeiros (1893)

 Memórias de Marta (1899)

 A Viúva Simões (1897)

 A Falência (1901)

 A Intrusa (1908)

 Cruel Amor (1911)

 A Silveirinha (1914)

 A Casa Verde (1932)

 Pássaro Tonto (1934)

 O Funil do Diabo (póstumo – 2015)

56

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 56 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Apresentação e análise da obra


O romance A Falência (1901) se passa em 1891 e acompanha a família e os negócios da personagem Francisco
Teodoro, grande comerciante de café. Narrado em terceira pessoa, o enredo tem início com uma descrição da Rua
São Bento, localidade dos vários armazéns de café do Rio de Janeiro, próxima aos portos onde a mercadoria era
distribuída. A narrativa de Júlia Lopes de Almeida apresenta um estilo capaz de elaborar imagens e panoramas que
enfatizam a paisagem do comércio do café:
E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica, atirar as sacas para o fundo do caminhão, le-
vantando no baque nuvens de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal cobertos pela camisa de
meia enrugada de algodão sujo: outros negros, nus da cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados.
Ao cheiro do café misturava-se o do suor daqueles corpos agitados, cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas
do pescoço e dos braços.
(ALMEIDA, 2019, p. 23)

Em seguida, a autora apresenta o cenário do armazém de Francisco Teodoro, onde estão Joaquim, gerente do
estabelecimento, e o principal faz-tudo, responsável por organizar a distribuição das sacas de café. Na descrição do
armazém, a primeira sala ao subir as escadas é a dos escritórios, em que trabalham os ajudantes da administração,
em especial o velho Mota, figura que terá destaque na história. Por fim, após toda a descrição do funcionamento do
armazém, a autora apresenta o protagonista, Francisco Teodoro:
Ele ali estava, acabando de fechar uma carta. Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai vito-
rioso de teimosa luta. Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos garços tranquilos e os dentes
brancos e pequeninos, tinha um belo ar de burguês satisfeito. Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a
firmeza dos seus passos pesados. Um ou outro empregado vinha de vez em quando fazer-lhe uma pergunta, a que ele
respondia com paciência, indicando claramente as coisas, com minúcias, para evitar confusões. Francisco Teodoro, à
sua larga secretária de peroba, dava a face para o cofre de ferro, de trincos e fechaduras abertas. Tinha ele por hábito,
tornado já em cacoete, remexer com a mão curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas no bolso direito das calças.
No começo da sua vida, dura de trabalho e de áspera economia, aquilo seria feito com intenção; agora representava
um ato maquinal, alheio a qualquer pensamento de avareza ou de orgulho de posse.
(ALMEIDA, 2019, p. 27)

Após a apresentação do protagonista na cena anterior, ele se prepara para tomar café em seu escritório particu-
lar com seus colegas de negócio, entre eles Inocêncio Braga, recém-integrado ao grupo. Inocêncio tece comentá-
rios sobre a ascensão do novo comerciante Gama Torres, que tinha acabado de entrar no ramo do café e já era um
dos maiores comerciantes do Rio de Janeiro, rendendo-lhe comparações com a família Rothschild, grande dinastia
bancária europeia. A informação abala profundamente Francisco Teodoro, pois vai de encontro à sua pretensão de
ser o maior comerciante de seu ramo. Nesse momento é estabelecido o conflito principal do núcleo de negócios,
que o levará à ruína no final do romance.
Na volta do trabalho para casa, Francisco Teodoro reflete sobre sua trajetória de vida, questionando-se sobre
o sentimento de competição em relação a Gama Torres. Ao acompanhar o devaneio da personagem, o leitor é in-
troduzido ao passado e ao núcleo familiar do romance e toma conhecimento de que, antes do sucesso, Francisco
Teodoro era um pobre português imigrado que passou toda sua juventude como caixeiro.
Ao ascender socialmente, tornando-se um comerciante de sucesso e alcançando o título de Comendador, Fran-
cisco Teodoro decide se casar, movido pelo pragmatismo e pelo desejo de ter um filho para assumir seus negócios
e convencido pelo amigo português Matos. Casa-se, então, com a bela Camila, moça pobre que reside com a família
no morro do Castelo. Depois que o casal consuma a união, a família de Camila muda-se para Sergipe e deixa a moça
e o seu esposo no Rio de Janeiro como responsáveis por Nina, filha do irmão de Camila.
A partir do casamento de Francisco Teodoro e Camila, o ambiente doméstico é introduzido no enredo e as per-
sonagens desse núcleo entram em cena. A família reside em um belo palacete, localizado no centro de um parque
em Botafogo. Em seguida, são apresentados os filhos do casal: Lia e Rachel, gêmeas de seis anos; Ruth, de quatorze
anos, jovem esperta, sensível para as artes e apoiadora da emancipação feminina; e Mário, filho mais velho, de deze-
nove anos, que é a decepção do pai devido ao seu comportamento irresponsável e seu vício em jogos.
Fechando o núcleo doméstico da narrativa estão as criadas da casa, entre as quais a única com falas na obra
é Noca, ex-escravizada. O cenário da casa é importante para a história, pois deixa claro que dentro do núcleo da
família burguesa há relações que remontam à escravidão. Existem, ainda, outros dois frequentadores da residência
com destaque na narrativa: o capitão Rino, marinheiro apaixonado por Camila, e o médico Gervásio, intelectual com
modos e gostos franceses, motivo do conflito doméstico do livro. Ele passa a frequentar a casa da família Teodoro
após salvar Mário, ainda criança, da morte por tifo. Camila e Gervásio acabam se apaixonando, romance sabido por
todos, menos pelo marido de Camila, que continua confiando no médico até o final da história.

57

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 57 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

A pedido da pequena Ruth, Rino convida a família para passar uma tarde a bordo do Netuno, navio comandado
por ele. O foco da passagem está em Gervásio, que sente ciúmes de Rino, por imaginar olhares e sentimentos ine-
xistentes de sua amada pelo capitão.
Nesse contexto, o doutor descobre uma estante com os livros clássicos do capitão: “— Virgílio... Homem... Dan-
te... Camões... Gonçalves Dias... Shakespeare... bravo!” (ALMEIDA, 2019, p. 104). Ao perceber que Rino é um homem
muito culto, Gervásio é ainda mais tomado pelo ciúme, o que o levará a provocar um embate de ideias durante o
jantar, momento em que o discurso feminista da autora entrará de forma bastante complexa na obra. Francisco Teo-
doro é questionado por Catarina, irmã de Rino, que o ajudou a montar o almoço oferecido à família, se ele é a favor
da emancipação feminina e afirma que:
— Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe de família. Crie os seus filhos, seja fiel ao
seu marido, dirija bem a sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi sempre o meu juízo, e não me dei mal com
ele, não quis casar com mulher sabichona. É nas medíocres que se encontram as Esposas.
(ALMEIDA, 2019, p. 111)

Ao ver que Camila concorda com a opinião de Francisco Teodoro, Gervásio, após uma troca de olhares com capi-
tão Rino, discorda cordialmente do comerciante e defende o caráter hipócrita da diferença da moralidade aplicada
a homens e mulheres:
Suponhamos, por exemplo, que a nossa honestidade é um casaco preto e que a das senhoras é um vestido branco. Tudo
é roupa, têm ambos o mesmo destino, mas que aspectos e que responsabilidades diferentes! Assim, o nosso casaco, ora o
vestimos de um lado, ora de outro, disfarçando as nodoazinhas. O pano é grosso, com uma escovadela voa para longe toda
a poeira da imundície; e ficamos decentes. A honestidade das senhoras é um vestido de cetim branco, sem forro. Um pouco
de suor, se faz calor, macula-o; o simples roçar por uma parede, à procura da sombra amável, macula-o; uma picadela de
alfinete, que só teve a intenção de segurar uma violeta cheirosa, toma naquela vasta candidez proporções desagradáveis...
Realmente, deve ser bem difícil saber defender um vestido de cetim branco que nunca se tire do corpo. Eu não sei como elas
fazem, e, francamente, não me parece que a vida mereça tamanho luxo.
(ALMEIDA, 2019, p. 112)

Em seguida, um terceiro núcleo é introduzido no enredo: a residência das senhoras Rodrigues, tias de Camila,
que continuam pobres e vivem no morro do Castelo. Dona Itelvina é a tia sovina, que não sai de casa e acha todo
o luxo da família Teodoro um grande desperdício, contrastando seu caráter de poupadora com a ética capitalista
expansiva de Francisco Teodoro. Já dona Joana é religiosa e se ressente pela falta de assiduidade no catolicismo da
família de Botafogo. Há, ainda, a criada Sancha, ex-escravizada que fugirá da casa por sugestão de Ruth, devido aos
maus-tratos que sofre constantemente de dona Itelvina.
Esse acontecimento é narrado durante uma visita de Ruth à casa das tias, que foi até o local com intenção de
ver as estrelas no observatório do morro do Castelo, por recomendação de Gervásio. Enquanto dorme com sua tia
Joana, Ruth é acordada por gritos vindos da cozinha, e, ao aproximar-se, vê dona Itelvina espancando Sancha. No
outro dia, Ruth sugere que a criada fuja, o que acontecerá na manhã seguinte. Durante uma visita às igrejas do Rio de
Janeiro com a tia Joana, Ruth se questiona sobre o incidente com Sancha, em uma reflexão com traços de racismo:
E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali
havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso,
porque a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio
da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra.
(ALMEIDA, 2019, p. 200)

Mais à frente no livro, é possível perceber outro traço histórico marcante da obra: as mudanças que ocorriam
na cidade, como o surgimento dos morros e das comunidades. Essas transformações são introduzidas por meio do
olhar de Dr. Gervásio; o médico visita, a pedido de Teodoro, o empregado Mota, que havia quebrado a perna e
precisaria de auxílios. O capítulo consiste na perambulação de Gervásio, guiado por Ribas, funcionário de Teodoro,
por um bairro pobre:
Tinha a impressão de atravessar por meio de ruínas; parecia-lhe que em toda aquela rua não haveria um único
caixilho com vidros, uma única chave sem ferrugem, uma única dobradiça perfeita. Era o resto de uma cidade, toma-
da de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza
avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lajedos brutos, entre ratazanas e águas servidas.
(ALMEIDA, 2019, p. 85)

Interrompendo as observações de Gervásio, dona Joana, saindo de casa para uma peregrinação, vem ter com ele
um momento de reconhecimento público do adultério. A tia, religiosa, além de condenar o ateísmo do médico, afirma
que ele está empurrando Camila para o inferno, o que provoca a fúria de Gervásio. Ele não suporta ser confrontado
publicamente, o que levará à diminuição de suas visitas à casa dos Teodoro durante algum tempo.
Estabelecidos os focos da narrativa, os conflitos se desenvolverão entre as reuniões de negócios de Francisco
Teodoro e os dramas domésticos, entre bailes e passeios, em função do adultério de Camila.

58

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 58 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Em um conflito entre Mário e Francisco Teodoro, Camila intervém, pedindo que o filho deixe de encontrar sua
amante francesa. Mário acata, porém, revela para a mãe que sabe de sua traição, além de não suportar o seu aman-
te, razão pela qual ele não janta com a família na presença, quase diária, de Gervásio. Camila desespera-se de ver-
gonha, passando a evitar, por um tempo, seu amante. A certa altura do enredo, Francisco Teodoro, aborrecido com
as atitudes do filho, que havia saído para visitar uma de suas amantes, ordena que as criadas tranquem as portas
do palacete, impossibilitando a volta de Mário. Nina, ao ver o primo tentando desesperadamente abrir o portão,
sob forte chuva, desce de seu quarto e abre a porta para ele, gerando uma interação na qual a paixão e o recato se
entrelaçam de maneira literariamente interessante:
Nina quis subir logo, mas uma lufada de vento obrigou-a a proteger a chama da vela com a mão, e com o gesto des-
prendeu-se-lhe uma ponta do chale que a envolvia. Na meia escuridade do vestíbulo, Mário percebeu-lhe a doçura do
ombro nu, pequeno, redondo, um pouco de carne virginal guardada até aí em um recato que nem o baile afugentará
nunca. E já ele não viu senão a pureza daquele ombro acetinado, saindo do meio das lãs, como um desafio aos seus
sentidos, num assalto impudico e voluptuoso. Acudiu-lhe então a ideia perversa de haver um propósito malicioso
naquela história. Não lhe afirmara Noca tantas e tantas vezes que a prima o amava? A filha da mulher de má vida aí
estava agora, como devia ser: livre de hipocrisias. Mário estendeu-lhe os braços. Nina compreendeu. Uma onda de
sangue subiu-lhe ao rosto; segurou o chale com força e subiu correndo.
(ALMEIDA, 2019, p.143)

A situação de Mário se resolverá apenas com o casamento dele com Paquita, moça da alta sociedade carioca,
filha do comerciante português Meireles. Consumado o matrimonio, Mário e sua nova família se mudam para a
Europa, fazendo uma grande festa de despedida. Meireles promete a Francisco Teodoro endireitar o rapaz, ensi-
nando-lhe a trabalhar.
Outra personagem que parte do cenário carioca é Rino, após sofrer pela paixão sem reciprocidade por Camila.
Em visita à sua irmã Catarina, que mora em um casebre simples no morro, a conversa entre os dois revela fatos sobre
a vida pregressa. Os irmãos perderam a mãe, que foi assassinada pelo pai após ele descobrir que ela era adúltera.
O pai, após o assassinato, também morreu. O trauma ainda pesa sobre os irmãos, e Catarina tem de conviver com a
madrasta Hermengarda, segunda esposa do pai, senhora doente com quem divide a residência. Ao longo da con-
versa, Rino confessa que está indo procurar outro lugar para recomeçar a vida, por conta de sua paixão por Camila,
e a irmã responde já saber do romance entre ela e Gervásio. Aliás, todos parecem saber.
Em relação à trama dos negócios, Francisco Teodoro, que vê os preços do café subirem extraordinariamente no
início da narrativa, é convencido por Inocêncio Braga a entrar no mercado de ações, investindo toda sua fortuna
nisso. Logo após o investimento, Teodoro recebe a notícia de uma baixa internacional nos preços que o fará perder
toda a sua fortuna.
Francisco Teodoro, ao encontrar-se sem posses, sem dinheiro e sem fôlego para refazer sua vida, sente tanta
vergonha que se suicida. Depois de perder o palacete, a família se muda para uma pequena casa que Francisco Teo-
doro havia dado à Nina, local onde Camila entra em uma profunda depressão pela perda de todo luxo e pela morte
de seu companheiro, a quem amava, mesmo traindo-o. Após uma visita de Mário, Camila é convencida a mandar
suas filhas gêmeas para morar com a sogra e a propor um casamento com Dr. Gervásio. Decidida pelo casamento,
Camila confronta Gervásio com a ideia e tem a surpresa de que ele não poderia se casar com ela, pois já era casado
com uma mulher adúltera, que o perseguia e não aceitava o divórcio. Sentindo-se enganada pelo amante, que a
julgava por trair Francisco Teodoro, Camila resolve que não há necessidade de marido. Ela decide, então, trabalhar,
apresentando um desfecho surpreendente para o romance:
As onze horas da manhã seguinte, Camila sentou-se a um canto da sala de trabalho. O sol entrava pela janela, esten-
dendo no chão uma toalha de ouro. Debruçada sobre a mesa, Ruth escrevia em papel de pauta, preparando lições para
duas discípulas novas. Toda a sua indolência antiga se transformara em atividade. Nina cosia à máquina e, no meio da
casa, Noca borrifava a roupa para o engomado. Ela olhou para todos. Ruth estava feiosa, muito magrinha; mas a sua co-
ragem iluminava-lhe a fronte, uma fronte de homem, vasta e pensadora; as outras pareciam até mais bonitas naquele afã.
Estavam na sua atmosfera. Com voz pausada e clara, Camila pediu que lhe dessem trabalho. Olharam-na com espanto.
— Mamãe, quer mesmo fazer alguma coisa?! — Sim, minha filha... Tudo acabou, devo começar vida nova!
(ALMEIDA, 2019, p. 295)

Perguntas orientadoras
1. Como o contexto de transição social – passagem do império para a república brasileira – impacta a construção do
enredo?
2. Como a visão da autora, com fortes influências do pensamento feminista, impacta a construção das personagens
femininas do livro? Qual é a diferença entre a mentalidade de Camila e a de Ruth?
3. O romance parece ter duas linhas de desenvolvimento mais fixas: o núcleo doméstico e o dos negócios de Francisco
Teodoro. Como ambas estão relacionadas?

59

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 59 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Ensaio
Júlia Lopes de Almeida e o realismo francês
Dentre os vários aspectos temáticos e de composição que renderiam uma boa discussão sobre A falência, é
possível destacar o modo como a obra trabalha e responde aos problemas do realismo francês, que serviu de mol-
dura exemplar para os escritores brasileiros do século XIX. Esses autores alteraram ou assumiram de maneira mais
próxima as características do realismo francês, cada um ao seu modo e com resultados diversos. No caso de Júlia
Lopes de Almeida, intui-se que haja duas fontes que serviram de referência para a composição do romance: os pro-
cedimentos realistas de Balzac e o romance moderno de Flaubert. No aspecto do funcionamento dos negócios de
Francisco Teodoro e da pequena política doméstica da burguesia, há uma exploração do funcionamento das coisas
que parece dever às descrições de Balzac, exemplificadas em O pai Goriot, por mais que relativizada, em outro polo,
por aspectos mais românticos na construção das imagens. Assim, a trajetória de ascensão e queda de Teodoro,
finalizada em um pessimismo de morte, deve-se a um diálogo com a tradição realista.
No entanto, no espaço doméstico, centro real do livro, parece haver um diálogo crítico com a literatura de Flau-
bert, em especial com o romance Madame Bovary (1856). Essa referência aparece não só na própria estrutura do
livro, mas também é mostrada implicitamente em uma cena. Ao ser convidada por Gervásio para ler um romance,
que, segundo o médico, é muito parecido com o amor dos dois, Camila tem um impulso:
Então não leio. Sei que está cheio de injustiças e de mentiras perversas. Os senhores romancistas não perdoam às mulhe-
res; fazem-nas responsáveis por tudo - como se não pagássemos caro a felicidade que fruímos! Nesses livros tenho sempre
medo do fim; revolto-me contra os castigos que eles infligem às nossas culpas, e desespero-me por não poder gritar-lhes:
hipócritas! hipócritas! Leve o seu livro; não me torne a trazer desses romances. Basta-me o nosso, para eu ter medo do fim.
(ALMEIDA, 2019, p. 61)

A referência da autora nesse trecho é interessante, e o próprio andamento do livro fará uma crítica ao romance
francês: enquanto Madame Bovary, adúltera e endividada, mata-se ingerindo arsênico após se ver em um beco sem
saída, Camila, após empobrecer e perder tudo, decide trabalhar e dispensar a presença masculina. É uma forma de
fuga ao mesmo tempo feminista e burguesa, defendendo a integração da mulher ativamente na estrutura de classes
e emancipando-a ao alcançar independência financeira.
Na história, quem morre é o marido de Camila, único responsável pela falência da família. Em nenhum momento da
narrativa o adultério, drama doméstico, é apontado como causa do problema financeiro e da falência do negócio de café.
A partir disso, está constituído um problema de composição do livro que não deixa de ser interessante e merecia ser
explicado com maior fôlego. Enquanto há um otimismo feminista contraposto a um pessimismo em relação ao mundo
dos homens, certas contradições da sociedade burguesa em formação ficam de fora, como a brutalidade do trabalho.
A questão é que as duas principais linhas do enredo, armadas de maneira excepcional pela autora, não se encon-
tram em nenhum momento, como seria esperado: após falir em função do erro no negócio, Francisco Teodoro des-
cobriria a traição e se mataria pelo acúmulo dos dois dramas, ou alguma variante desse desenlace, que relacionasse
os dois planos. Porém, no livro não há esse choque, gerando, talvez, uma quebra de expectativa.
Especificando um pouco essa intuição, é possível entender, a partir desse final, algumas características da obra. Em
primeiro lugar, o romance tira a protagonista adúltera de uma posição de culpa, pois seu comportamento não foi causa-
dor de nenhum mal prático e não resultou em nenhum desastre. Talvez a pessoa mais afetada da situação tenha sido a
própria Camila, em seu sofrimento. Além disso, em outro momento, há a ponderação de que o marido também a traía:
— Remorsos... remorsos de quê? Pensa, Gervásio, que, desde o primeiro ano de casado, o meu marido não me traiu
também? Qual é a mulher, por mais estúpida, ou mais indiferente, que não adivinhe, que não sinta o adultério do
marido no próprio dia em que ele é cometido? Há sempre um vestígio da outra, que se mostra em um gesto, em um
perfume, em uma palavra, em um carinho... Eles traem-se com as compensações que nos trazem...
(ALMEIDA, 2019, p. 61)

Nesse trecho, é formulada uma crítica à moral sexual aplicada de forma distinta para mulheres e homens, com a
culpa direcionada a uma e a tolerância ao outro, que retornará em outros momentos do romance com maior com-
plexidade.
No plano dos negócios do enredo, pode-se entender que Francisco Teodoro foi à falência por incompetência
e que transformou a inveja do vizinho em sua própria ruína, além de se poder entrever a situação social instável da
economia de mercado. É uma crítica feita tanto à situação social e sua moralidade quanto às fórmulas conhecidas do
romance. Ao comentar os impasses da chegada do romance realista ao Brasil, o crítico Roberto Schwarz observa que:
Trazer às nossas ruas e salas o cortejo de sublimes viscondessas, arrivistas fulminantes, ladrões ilustrados, ministros
epigramáticos, príncipes imbecis, cientistas visionários, ainda que nos chegassem apenas os seus problemas e o seu tom,
não combinava bem. Contudo, haveria romance na sua ausência? Os grandes temas, de que vem ao romance a energia e nos
quais se ancora a sua forma - a carreira social, a força dissolvente do dinheiro, o embate de aristocracia e vida burguesa, o
antagonismo entre amor e conveniência, vocação e ganha-pão - como ficavam no Brasil? Modificados, sem dúvida.
(SCHWARZ, 2017, p. 37)

60

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 60 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Quer dizer, em relação àquela sociedade imperial carioca, o inventário de temas e as estruturas do romance
europeu não cabiam com exatidão na sociedade. Acontece que a obra em questão já se passa em um período inter-
mediário do romance brasileiro. Enquanto o comentário de Robert Schwarz tinha em mente os inícios do romance
brasileiro, A falência está classificado na segunda geração de romancistas em solo nacional. Ou seja, é de se imagi-
nar que, no nível da tradição e da relação entre textos, já existiam formas de trabalhar o romance mais adequadas à
realidade social específica, ao mesmo tempo que ficam claros os limites dessa aclimatação. Uma hipótese é de que
o romance de Júlia Lopes de Almeida situe-se no meio de uma série de transições.
Dessa maneira, fica a impressão de que há uma crítica de gênero bem formulada, mas que não é relacionada
às contradições mais profundas da sociedade em formação. Permanece, também, a ideia de que bastaria a mulher
adquirir independência financeira para que as contradições de gênero estivessem encaminhadas, o que não deixa
de ser uma ideologia, com uma perspectiva de classe bastante clara.

61

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 61 31/07/2023 08:55:42


Análise de Obras – UFRGS

Várias histórias
Machado de Assis

Contexto histórico
As obras literárias e as intervenções de Machado de Assis na cultura brasileira se tornaram mais notórias princi-
palmente na segunda metade do século XIX. Conhecido pela crítica que fazia à sociedade burguesa de sua época,
o autor vivenciou momentos históricos turbulentos, os quais serviram de arcabouço para sua escrita. É o que se ob-
serva em Várias histórias, que reúne contos publicados por Machado em jornais e selecionados pelo próprio autor.
A coletânea foi publicada em 1896, entre o final do Império e o início da República, período de várias contradições,
as quais se refletiram em seus escritos.
Como um panorama geral, é importante retomar o contexto prévio à publicação do referido livro, no qual a fa-
mília real portuguesa e sua corte desembarcaram no Rio de Janeiro, em 1808. Com isso, houve diversas transforma-
ções sociais e políticas que culminaram na Independência do Brasil em 1822. A existência de uma nação autônoma
ocorreu nesse ano; contudo, parte da população já não se via como colônia subordinada de Portugal.
No ano da Independência, iniciou-se o Primeiro Reinado, com D. Pedro I assumindo o trono; entretanto, ele
renunciou abruptamente em 1831, retornando à Europa. Após o Período Regencial – os nove anos que separaram o
Segundo Reinado do Primeiro –, D. Pedro II atingiu a idade mínima para governar e deu início ao mais longo governo
da história do país. As revoltas que ocorreram ou começaram no Período Regencial, como a Cabanagem (1835), a
Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Sabinada (1837-1838), refletiram o ambiente conturbado herdado por D. Pedro
II. O imperador, por sua vez, detinha o Poder Moderador, reconhecido pela primeira Constituição brasileira, de 1824,
o qual lhe permitia intervir em questões dos outros poderes. Assim, ele designou os “presidentes” (governadores)
das províncias, os senadores, então cargos vitalícios, e os ministros e nomeou 36 gabinetes, entre liberais e conser-
vadores, nos cinquenta anos de governo.
Apesar das dificuldades, D. Pedro II manteve o país unificado por muitas décadas. O panorama mudou, contudo,
com a Guerra do Paraguai (1864-1870), que trouxe dívidas importantes para o Estado, intensificou o debate sobre a
substituição do trabalho escravista por mão de obra livre (por pressão inglesa) e diminuiu o apoio militar ao governo,
fatores que se combinaram com problemas econômicos que afetavam o país naquele momento, sobretudo agríco-
las. O Segundo Reinado, então, chegou ao fim com a Proclamação da República, em 1889.

Vida e obra
Machado de Assis foi um escritor negro nascido em 1839 no Morro do Livramento, próximo à região portuária e ao
então centro do Rio de Janeiro. Sua mãe, que trabalhava como lavadeira e era imigrante portuguesa da Ilha dos Aço-
res, morreu quando ele tinha nove anos de idade. Seu pai, pintor de paredes e filho de escravizados libertos, casou-se
novamente após a morte da esposa, em 1854, vindo, porém, a falecer em 1864. Os pais de Machado eram agregados
de uma poderosa senhora da região, o que permitiu a ele ter acesso a estudos mais sofisticados, provavelmente de
maneira autodidata. Assim, Machado aprendeu francês e, razoavelmente, latim, grego clássico, inglês e alemão.
Sua primeira publicação foi um soneto no Periódico dos Pobres, em 1854, quando tinha quinze anos. Aos de-
zessete, aprendeu seu primeiro ofício, tipógrafo, com uma importante figura da tipografia e da imprensa negra
pioneira: Francisco de Paula Brito. Paula Brito reunia em sua loja-livraria um grupo de pessoas ilustres, integrantes
da Sociedade Petalógica, a qual introduziu o jovem Machado no meio intelectual da cidade. Nesse período, ele se
tornou revisor da Imprensa Nacional, onde foi orientado pelo romancista de Memórias de um sargento de milícias,
Manoel Antônio de Almeida, com quem trabalhou entre 1856 e 1858.
Com vinte anos, Machado passou a colaborar para o Correio Mercantil como cronista e revisor. Frequentador de
teatro, escreveu, nessa época, suas primeiras peças e críticas teatrais. Já entre 1860 e 1867, trabalhou no Diário do
Rio de Janeiro como repórter e jornalista, a convite de Quintino Bocaiuva, importante jornalista e político do perío-
do. Nesse momento, também escreveu para o Jornal das Famílias e para a Semana Ilustrada.

62

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 62 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

A obra Crisálidas foi seu primeiro livro de poemas, escrito em 1864 e dedicado à memória dos pais. Três anos
depois, Machado foi promovido a diretor-assistente do Diário Oficial por D. Pedro II e, em 1876, nomeado chefe da
seção pela Princesa Isabel, momento em que o autor se mudou para uma casa mais confortável no centro da cidade.
Já em 1888, foi condecorado com a Ordem da Rosa, alta distinção conferida pelo imperador.
Uma mudança decisiva na vida de Machado aconteceu na segunda metade dos anos 1860, quando conheceu
a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, com quem se casou em novembro de 1869. Em 1872, mudaram-
-se para a Rua do Cosme Velho, endereço mais célebre de Machado, o qual o fez ser posteriormente chamado de
“Bruxo do Cosme Velho” por Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas. Lá, o casal morou até o fale-
cimento da esposa, em 1904. Eles nunca tiveram filhos.
Com as áreas pessoal e financeira estáveis, Machado de Assis possuía condições para escrever uma vasta litera-
tura, que se desdobra em cerca de seiscentas crônicas, dezenas de textos críticos, dez peças de teatro, cinco livros
de poesia, além dos célebres romances e contos, que são suas produções mais conhecidas.
Em 1897, foi criada a Academia Brasileira de Letras, que teve Machado de Assis como um de seus fundadores,
além de seu primeiro presidente. Enquanto, no mundo da cultura erudita, ele era considerado um dos maiores au-
tores brasileiros ainda em vida, na cultura popular, havia a anedota de que a ninguém era permitido estar de cartola
ao longo dos dias de carnaval, a não ser a Machado de Assis. O autor faleceu em 1908, mas sua importância para a
literatura brasileira perdura até hoje.

Principais obras do autor


Coletâneas de contos Romances Dom Casmurro (1899)
Contos fluminenses (1870) Ressurreição (1872) Esaú e Jacó (1904)
Histórias da meia-noite (1873) A mão e a luva (1874) Memorial de Aires (1908
Papéis avulsos (1882) Helena (1876)
Histórias sem data (1884) Iaiá Garcia (1878)
Várias histórias (1896) Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)
Páginas recolhidas (1899) Casa velha (1885)
Relíquias da casa velha (1906) Quincas Borba (1891)

Apresentação e análise da obra


Várias histórias (1896) é um livro de dezesseis contos, todos publicados entre 1884 e 1891 na Gazeta de Notícias.
Esse periódico foi fundado em 1875 e apresentou uma série de inovações na imprensa brasileira, sendo, por isso,
considerado um jornal moderno. Vale destacar que importantes autores, como Euclides da Cunha, João do Rio e
Eça de Queirós, também publicaram textos literários na Gazeta.
A seguir, será feita uma síntese dos dezesseis contos, com maior profundidade nos principais aspectos dos tex-
tos de maior relevância.

“A cartomante”
Um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, “A cartomante” traz, em seu início in media res (técnica
literária em que a narrativa começa no meio da história), um diálogo entre Rita e Camilo enquanto se dirigem para
visitar uma cartomante. Eles são, na verdade, amantes traindo a confiança de Vilela, esposo de Rita e amigo de Ca-
milo. Na abertura do conto, conversam na casa em que se encontram, na Rua da Guarda Velha.
O narrador, em terceira pessoa, recupera, então, a história pregressa dos três. Camilo e Vilela são amigos de
infância; enquanto o primeiro é funcionário público, o segundo é magistrado. Ao retornar da província, ou seja, do
interior, Vilela, casado com Rita, apresenta a esposa ao amigo, que logo reconhece seus encantos. O narrador, to-
mado pelo tom da confidência e da malícia, sugere, então, o começo do adultério.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que
o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou
especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
(ASSIS, 1994, p. 3)

Após falar do desenvolvimento das relações – em que meses são sintetizados em um parágrafo –, o narrador
explicita, mesmo sem demonstrar saber de todos os detalhes, que Camilo e Rita estão vivendo um romance secreto.
Um dia, porém, o rapaz recebe uma carta acusando-o de traição e, por esse motivo, começa a diminuir a frequência
das visitas à residência do casal – que percebe o distanciamento –, até cessá-las completamente. O comportamento
é encarado com angústia por Rita, que recorre à cartomante para saber, por meio do método de adivinhação, se
Camilo a esqueceu ou não, sendo, contudo, acalmada pela vidente. Enquanto isso, Camilo recebe mais cartas amea-
çadoras. Com a ajuda de Rita, passa a investigar a respeito, mas não obtém sucesso.

63

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 63 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

Vilela, por sua vez, muda de comportamento, aparentando estar desconfiado. Diante disso, os amantes combi-
nam que o melhor é se separarem por um tempo e encontrarem outros meios de se comunicarem, caso seja neces-
sário. Porém, Camilo é surpreendido ao receber um bilhete de Vilela solicitando sua visita. Nesse momento, o ritmo
do conto se torna bem mais lento e o foco da narração fica restrito a Camilo. O leitor passa, então, a acompanhar de
perto as aflições do rapaz a caminho da casa do amigo.
Enquanto está dentro de um tílburi (uma carruagem), refletindo sobre o bilhete de Vilela, Camilo reconhece a
casa da cartomante que visitou com Rita anteriormente. Por causa de um obstáculo na rua, a carruagem caminha
mais devagar, e Camilo, sem perceber, anda em direção à casa da adivinha. Ainda que seja um homem cético, o
protagonista decide se consultar com a vidente. Esta, assim como adivinhou as dúvidas amorosas de Rita, adivinha
que Camilo está lá por um grande susto; também o tranquiliza, assim como tranquilizou Rita, dizendo-lhe que nada
acontecerá a ele. Como o amante revela haver uma mulher na história, com quem se preocupa, a adivinha insiste que
nada acontecerá a nenhum dos dois e que a terceira pessoa envolvida ignora tudo.
Uma vez que a narrativa passa a acompanhar os pensamentos e as sensações de Camilo, o leitor é capaz de sentir
com ele o alívio ao retomar o caminho para a casa de Vilela e Rita após a consulta com a cartomante. Até a censura
que fez a Rita anteriormente, por ela acreditar em adivinhações, agora foi esquecida. A narrativa toma seu rumo
final quando Camilo chega à casa dos amigos. Bate à porta, é recebido por Vilela, e eles adentram a residência. Ao
seguirem para uma saleta interior, Camilo vislumbra a tenebrosa cena de Rita caída já sem vida no aposento; logo
em seguida, é surpreendido e morto por Vilela, assim terminando o conto.
“A cartomante” é um dos textos de maior relevância do autor, e sua forma abrupta de encerrá-lo, além de sur-
preender o leitor, quebra qualquer expectativa de final feliz, característica comum das obras do período artístico
anterior, o Romantismo. No conto, realista, Machado procurou evidenciar um dos temas mais recorrentes de suas
obras, o adultério, sendo um meio de trazer à tona a hipocrisia da elite burguesa. O final trágico é o resultado dos
desejos pessoais e do complexo funcionamento da mente humana – característica explorada pelos escritores realis-
tas – que culminam em atitudes passionais.

“Entre santos”
O conto, narrado em primeira pessoa, apresenta o relato de um padre idoso que relembra sua época de capelão.
Ele conta o que ocorreu em uma noite, quando, antes de ir embora da capela, foi conferir se a porta estava trancada
e viu uma luz acesa por baixo dela. Ao entrar no templo, encontrou, em tamanho natural, as estátuas de alguns santos
conversando entre si, sem notarem a presença do então capelão. As conversas se centravam em Sales, um homem
que, em razão de sua avareza, não conseguia terminar de proferir ao santo sua promessa de fazer uma perna de cera
em troca da cura de sua mulher, acamada com erisipela. O custo da perna de cera faz com que Sales nervosamente
transforme a promessa em mil padres-nossos e mil ave-marias, para riso dos santos. O capelão, nesse momento, diz
que não foi capaz de ouvir mais nada, pois logo em seguida desmaiou e acordou no dia seguinte dentro da capela.

“Uns braços”
Narrado em terceira pessoa, “Uns braços” conta a história de Inácio, um jovem de quinze anos que mora nos
fundos da casa do ríspido Borges, para quem trabalha há cinco semanas. O conto também tem início in media res,
com a cena do jantar em que o patrão grita com Inácio na presença de D. Severina, esposa de Borges e dona dos
braços que dão nome ao título – objetos de fixação do jovem empregado. Embora ele se sinta preso à casa por
aqueles braços, promete a si mesmo ir embora o quanto antes. A narração, que a princípio é focada em Inácio, se
desloca para D. Severina, que percebe os sentimentos do jovem e se vê em conflito por ser mais velha e já casada.
Não sabendo o que fazer, decide manter a situação como está.
Em um domingo, o garoto adormece na rede enquanto lê um folhetim. D. Severina, que também nutre sentimen-
tos por Inácio, vai ver se ele precisa de algo e o encontra dormindo. Ela percebe seu desejo pelo jovem e o beija; o
menino, porém, pensa tratar-se de um sonho. D. Severina, então, se arrepende do que fez e passa a estar sempre
distante nos jantares, cobrindo seus braços. Por fim, Borges avisa ao pai de Inácio que não ficará mais com ele, o que
não entristece o jovem, que volta para casa. Posteriormente, Inácio, mesmo vivendo relacionamentos de fato, sem-
pre se lembra dos braços de D. Severina e de seu sonho com ela, sem saber que o beijo, na realidade, aconteceu.

“Um homem célebre”


Esse conto, em terceira pessoa, narra a história de Pestana, famoso compositor de polcas, mas que tem por
ambição compor música erudita. A polca e a valsa, ambas instrumentais, foram as primeiras danças de par enlaçado
da tradição ocidental burguesa. Elas fizeram grande sucesso no século XIX nos salões urbanos, como o salão da
viúva Camargo, onde o conto se inicia com Pestana tocando uma de suas composições famosas, “Não bula comi-
go, Nhonhô”. As polcas eram consideradas músicas de entretenimento para a população em massa, similares aos
gêneros musicais pop e rock and roll dos dias atuais. Portanto, eram vistas de forma inferior às músicas clássicas,
consideradas mais complexas e apreciadas por um grupo de pessoas mais seleto.

64

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 64 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

Desde o início da narrativa, Pestana se mostra descontente com o sucesso de suas músicas, uma vez que quer
ser reconhecido por produzir obras eruditas de alta qualidade, as quais, contudo, não consegue compor. Ao sair do
salão em que se comemorava o aniversário da viúva, o músico evita os pedidos feitos para que tocasse mais um de
seus sucessos e fica aborrecido quando encontra pessoas na rua assobiando ou tocando a polca que ele lançou há
vinte dias. Quando o músico já está em casa, a narrativa descreve que nela há pinturas dos importantes mestres da
música clássica, como Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach e Schumann, bem como de um padre, o qual havia
educado a personagem e que, de acordo com certos rumores, se tratava de seu pai.
A narrativa segue com Pestana tocando algumas músicas clássicas ao piano, mas absolutamente incapaz de fazer
uma composição nesse estilo. Embora a personagem se esforce, passando horas tocando, compondo canções e
sacrificando o próprio sono, quando lhe surge inspiração, ele senta-se ao piano e acaba produzindo mais polcas. A
temática do conto, portanto, é a luta entre a vocação e a aspiração: para Pestana, não basta seu talento para compor
polcas, pois elas têm fama passageira, ou seja, são efêmeras. O músico deseja se elevar à categoria de gênio e se
tornar imortal por meio da música.
Como forma de ganhar inspiração e assim ser capaz de compor sua almejada obra-prima, Pestana decide se
casar com uma jovem cantora chamada Maria, já viúva, que se encontra com a saúde comprometida – está tísica.
Segundo o músico, talvez o celibato lhe tornasse infrutífero em suas composições, uma vez que as produzia de forma
solitária; o casamento seria um meio de gerar novas músicas, profundas e trabalhadas. Por esse motivo, ele compõe
em segredo uma canção para sua nova esposa. Contudo, ao apresentá-la para Maria, ela reconhece ser, na verdade,
uma peça de Chopin. Posteriormente, com a morte da mulher, Pestana tenta compor um réquiem, estudando a
fundo a música de Mozart; porém, não consegue terminá-lo, mesmo com meses de trabalho.
Após dois anos sem produzir nenhuma obra, Pestana reencontra o editor que comercializava suas canções, o
qual lhe propõe um contrato para compor vinte polcas. Sete anos mais tarde, o músico chega a ocupar o primeiro
lugar entre os compositores de polca, mas tal feito ainda não supre suas ambições profissionais. No desfecho do
conto, ele passa a também produzir polcas com intuitos políticos, como a encomendada pelo editor sobre os libe-
rais que estão subindo ao poder. Por fim, quando mais uma dessas encomendas aparece, dessa vez de uma polca
para os vitoriosos conservadores, é mostrado que Pestana se encontra doente e febril. Contudo, ele responde à
solicitação com uma pilhéria (zombaria):
“Olhe, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subi-
rem os liberais.”
(ASSIS, p. 8)
No que arremata o narrador:
“Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro
horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”
(ASSIS, p. 8)
O conto retrata a busca pela perfeição e pelo reconhecimento artístico. Embora Pestana tivesse um claro talento
para criar polcas, essa capacidade ainda não era o bastante para ele, pois sua música era voltada à massa, não perten-
cendo ao que se considerava culto e erudito. O músico lutou contra sua aptidão e, de forma ambiciosa, se esforçou
para se consagrar na música clássica, porém sem obter o êxito que desejava. A busca para se tornar imortal por meio
da música não permitiu a Pestana viver o reconhecimento que possuía pelas polcas, morrendo ele infeliz por não ter
se tornado o que sonhou.

“A desejada das gentes”


Esse conto é desenvolvido por meio de diálogos nos quais o conselheiro conta a curiosa história de seu casa-
mento com Quintília a um interlocutor de identidade desconhecida. Quintília era uma mulher de trinta anos – idade
avançada para uma moça solteira naquela época – que atraía a atenção de todos os partidos da cidade, mas que
recusava todas as propostas de casamento. Em razão de uma aposta com o sócio e também advogado Nóbrega, o
conselheiro passou a cortejá-la; entretanto, apaixonou-se pela moça, passando horas em sua companhia e estreitan-
do com ela, assim, os laços de amizade.
Após ambos vivenciarem perdas de pessoas próximas, o elo entre os dois se tornou cada vez mais forte, fazen-
do com que posteriormente o rapaz tomesse coragem e a pedisse em casamento. Contudo, a moça permaneceu
irredutível e recusou o pedido, propondo-lhe continuarem amigos e prometendo-lhe jamais se casar. Pouco tempo
depois, Quintília ficou doente, o que levou o conselheiro a intensificar sua presença na vida da amada. Às vésperas
de sua morte, a personagem decidiu aceitar a proposta de casamento do amigo e eles se casaram; dois dias depois,
ela faleceu. Ao final do conto, o narrador revela que só foi capaz de abraçar sua amada quando ela já estava sem
vida. A aversão de Quintília ao casamento, segundo o conselheiro, era física; tal característica ia na contramão do
desejo das moças da época, que era o de contrair matrimônio.

65

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 65 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

“A causa secreta”
Mais um célebre conto do volume, “A causa secreta” é considerado um dos precursores dos contos de horror da
literatura brasileira, pois, por tratar de sadismo, se afasta dos temas sociais normalmente abordados pelos escritores
realistas. A história se inicia, de forma abrupta, com uma cena em que três personagens são apresentados: Fortu-
nato, sua esposa, Maria Luísa, e o amigo do casal, Garcia, os quais estão calados e constrangidos em uma sala de
estar. A fim de explicar como a história chegou àquele ponto, o narrador recupera os primeiros encontros entre os
dois homens: Fortunato era um médico que trabalhava na Santa Casa, enquanto Garcia era estudante de Medicina.
Após dois encontros triviais, eles estreitaram a relação quando Garcia passou a cumprir a função de enfermeiro
auxiliando Fortunato a cuidar de um paciente ferido gravemente em uma briga. Durante os cuidados do médico,
o estudante, curioso, observava seu comportamento. Embora Fortunato se mostrasse extremamente dedicado,
demonstrava, também, ser frio diante do sofrimento do enfermo.
Tempos depois, com Garcia já formado e Fortunato casado, eles passaram a se ver com certa frequência, fa-
miliarizando-se. Fortunato convidou Garcia para um jantar em sua casa, e lá o novo médico conheceu a esposa de
seu anfitrião, Maria Luísa, por quem ficou encantado. As visitas se tornaram cada vez mais frequentes, e eles então
decidiram se tornar sócios em uma casa de saúde (clínica médica), na qual Garcia exercia o ofício de médico, e Fortu-
nato, o de administrador. Com a convivência, o jovem médico começou a sentir afeição por Maria Luísa, que sempre
estava solitária em seus afazeres. Foi quando outro evento curioso aconteceu: Fortunato, que havia começado a
estudar anatomia em cães e gatos e não podia fazer isso na casa de saúde, pois os barulhos dos animais assustavam
os pacientes, mudou o laboratório para sua casa.
A esposa ficou aterrorizada ao escutar o sofrimento dos animais e suplicou a Garcia que conversasse com o ami-
go e lhe pedisse que interrompesse os atos. Nesse ponto, a narrativa volta à cena inicial, na qual o trio discute as
ações perturbadoras de Fortunato. O clímax do conto ocorre com a descrição do castigo que o médico aplica a um
rato que teria roído importantes documentos: no gabinete, Fortunato segura o animal com um barbante e amputa
uma a uma de suas patas, cauterizando-as posteriormente com a chama de um líquido flamejante contido em um
prato sobre a mesa.
Em todas as cenas do conto, é apresentada a natureza sádica de Fortunato, que sente prazer em infligir dor e
busca produzir situações dramáticas ou colocar-se nelas para se aproximar desses sentimentos negativos. Maria
Luísa então adoece e recebe o diagnóstico de tuberculose. O marido permanece todo o tempo ao lado da esposa,
o que, de acordo com o narrador, indica os sentimentos dele por ela; contudo, pode-se inferir que o médico está
atraído pelo sofrimento. A mulher piora de sua doença e morre. Na cena final, Fortunato flagra Garcia beijando a
testa da já falecida Maria Luísa, tentando beijá-la uma segunda vez, mas caindo em lágrimas. Eis, então, o ápice da
atração de Fortunato pela dor: ele não se incomoda com o fato de que Garcia nutria sentimentos por Maria Luísa;
ele apenas aprecia o luto de seu colega ao perder a amada.

“Trio em Lá menor”
“Trio em Lá menor” é um conto narrado em terceira pessoa e dividido em quatro movimentos musicais, apresen-
tando estrutura de uma sonata: adagio cantabile (lento e cantável), allegro ma non troppo (rápido, mas não muito),
allegro appassionato (rápido e apaixonado) e minuetto (forma francesa marcada por leveza e solenidade). Na primei-
ra parte, é informado ao leitor que a protagonista, Maria Regina, possui dois pretendentes e não consegue decidir
com qual deles deve ficar. O primeiro é Maciel, que tem 27 anos, e o segundo, Miranda, já mais velho, com 50 anos.
Em uma tarde, a moça recebe ambos em casa e, na companhia deles e da avó, toca uma sonata. Após a visita,
Maria Regina fica pensativa sobre qual dos pretendentes escolher. No dia seguinte (já na segunda parte), a carrua-
gem na qual Maria Regina e a avó voltam da Tijuca quase atropela um menino que corre pela rua. O acidente é evi-
tado por Maciel, que salva o garoto, mas acaba se ferindo. O jovem, que se mostra mais preocupado com as vestes
do que com o próprio machucado, é convidado à casa de Maria regina, onde conversa com a avó dela sobre as
novidades da cidade de forma detalhada. Na terceira parte, quando a conversa se desenrola, Maria Regina percebe,
então, que o jovem é materialista e fofoqueiro.
Ao longo da conversa, a moça perde parte de sua admiração pelo jovem, chegando a imaginar o rosto dele, mas
com a voz de Miranda. Aparece, então, o segundo pretendente, e Maciel sai em seguida. Embora o rosto duro e
velho de Miranda não a atraia, há algo no espírito dele que traduz muito do que Maria Regina pensa das coisas; além
disso, os dois compartilham os mesmos gostos pela arte. De novo, a moça passa a fantasiar e imaginar Miranda, mas
com o rosto de Maciel.
Na quarta e última parte, cerca de três meses se passam, e, sem conseguir escolher um, Maria Regina acaba por
perder ambos os pretendentes. O conto termina com a moça sonhando que morria e que sua alma voava em direção
a uma bela estrela dupla. O astro então se desdobrava e cada porção ia para uma direção diferente. Maria Regina
perseguia, uma após a outra, as porções de estrela, mas sem nunca se sentir como quando havia contemplado a es-
trela completa. Ao final do sonho, uma voz misteriosa lhe informou que ela estava fadada a orbitar entre dois astros
incompletos, uma vez que procurava incessantemente a perfeição.

66

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 66 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

“Adão e Eva”
Narrado em terceira pessoa, o conto “Adão e Eva” se passa na casa de uma senhora de engenho do século
XVIII, D. Leonor, quando ela está reunida com seus amigos ao redor da mesa, os quais convidou para experimentar
um doce em particular. Um carmelita, chamado frei Bento, lhe questiona de qual doce se trata, e D. Leonor, então,
chama-o de curioso, o que inicia uma discussão sobre a curiosidade ser um atributo masculino ou feminino e se foi
culpa de Adão ou de Eva a perda do paraíso.
Sr. Veloso, um juiz de fora (juiz nomeado pela Coroa para atuar em uma localidade diferente da de seu nascimen-
to), começa, então, uma divertida paródia sobre a história bíblica da criação do mundo. Segundo ele, a Terra teria
sido criada pelo diabo – chamado de Tinhoso no conto –, e não por Deus, que só havia contribuído com alguns ajus-
tes ao longo do processo: o diabo criou as trevas, e Deus, por consequência, criou a luz; ao ver que o Tinhoso havia
criado Adão e Eva, Deus lhes deu consciência e sentimentos, também criou um paraíso e manteve ali o casal resguar-
dado. Contudo, avisou a eles que não deveriam comer da árvore proibida. Por sua vez, o Tinhoso se enfureceu por
não ser capaz de entrar no paraíso e mandou uma serpente tentar convencer Adão e Eva a comer o fruto proibido.
Porém, eles não caíram na tentação, e Deus, como recompensa, pediu ao anjo Miguel que os levasse aos céus.
Ao final do conto, todos olham surpresos para Sr. Veloso, que é acusado por D. Leonor de ter enganado os
presentes com a versão contada. Ele assume que a história poderia não ter acontecido, mas que, se tivesse, não
estariam ali saboreando o doce. Essa curta narrativa discorre sobre como acontecimentos passados e a forma como
são contados influenciam a visão das pessoas no presente.

“O enfermeiro”
No conto, o enfermeiro Procópio José Gomes Valongo, às vésperas de sua morte, narra a história do período em
que cuidou de um coronel velho e doente no interior. O paciente o insultava e o agredia, até que em uma noite eles
acabam se desentendendo e brigando, o que leva o coronel à morte (“arrebentara o aneurisma”).
Assombrado pelo assassinato, Procópio cuida dos preparativos do enterro com medo de ser descoberto. Em se-
guida, retorna ao Rio de Janeiro sentindo-se culpado, mas descobre que, em testamento, o coronel o designou seu
herdeiro universal e que está rico. De posse do dinheiro e com o passar do tempo, convive melhor com seu crime. A
história é finalizada com a irônica frase, a qual o narrador gostaria que estivesse em sua lápide:
“Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”.
(ASSIS, p. 7)

“O diplomático”
Narrado em terceira pessoa, “O diplomático” conta a história de Rangel, um homem de 41 anos que buscou em
toda a sua juventude achar a esposa ideal, mas, não tendo sido capaz de achá-la, acabou por se manter solteiro.
Muito fantasioso, em sua imaginação era capaz de conquistar aquilo que almejava, porém, na realidade, era um
homem de poucas ações.
A narrativa se passa em uma noite de São João de 1854, em uma reunião festiva na casa do escrivão João Viegas
e de D. Adelaide, amigos próximos de Rangel e pais de Joaninha – moça de dezenove anos que o protagonista está
cortejando. O homem considera aquele momento uma ótima oportunidade de investida, uma vez que é íntimo da
casa e conhece a jovem desde criança. No começo da noite, Rangel está lendo o livro de sortes para alguns convi-
dados, mas espera que, quando iniciar o Jogo de Prendas, fique livre para entregar uma carta à moça.
Todavia, um novo convidado chega: um amigo de João Viegas, que é acompanhado de um jovem chamado
Queirós, bonito e desenvolto. No jantar, Rangel, conhecido por falar eloquentemente, é requisitado por todos a
fazer um brinde, porém fica abalado ao perceber os olhares entre Joaninha e Queirós e não atende às expectativas
dos presentes. Três minutos depois, o belo jovem o complementa e é aclamado. Rangel fica indisposto, mas é cha-
mado pela própria Joaninha a jogar cartas como sua dupla. Ao cabo do jogo, já havia esquecido o contratempo.
No desfecho da noite, porém, Rangel percebe que Joaninha e Queirós desenvolveram afeto um pelo outro e
decide, então, voltar para sua casa, onde desaba em lágrimas de tristeza e culpa. Seis meses depois, Queirós e Joa-
ninha se casam, e o protagonista se mantém o mesmo.

“Mariana”
“Mariana” é um conto relativamente longo, narrado em terceira pessoa e dividido em três capítulos. A narrativa
se inicia com a volta de Evaristo, que até então estava na cidade de Paris, ao Rio de Janeiro. O ano é 1890 e a per-
sonagem estava ausente desde 1872. No passado, ele havia se apaixonado por Mariana, que lhe correspondia os
sentimentos, mas estava comprometida com outro homem, chamado Xavier. Por causa do amor impossível, os dois
haviam jurado amor eterno, e Evaristo tinha se mudado para a Europa, onde pretendia ficar por apenas dois anos,
porém só voltou ao Brasil dezoito anos depois. Agora Mariana tinha quase cinquenta anos e estava casada com
Xavier, que estava doente à beira da morte.

67

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 67 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

Já no capítulo 2, Evaristo decide reencontrar Mariana, indo à sua casa, onde ocorre um flashback. Ao entrar na
sala, encontra tudo como era há dezoito anos e se depara com o retrato de sua amada aos vinte e cinco anos de ida-
de. Ela então “desce do retrato” e eles revivem uma cena de décadas atrás, de declaração mútua de amor, embora
a moça, na época, já fosse casada havia sete anos com Xavier. A cena de carinho entre os amantes é interrompida,
pois o criado de Mariana entra na sala.
No terceiro capítulo, é informado que, na realidade, a mãe de Mariana é quem havia interrompido a relação entre
Evaristo e a jovem anos atrás e que, por não poder ficar com o amado, Mariana havia chegado a tomar veneno em
um ato de desespero. Na época, Evaristo decidiu sair do país, mas nem sequer conseguiu vê-la antes de seguir para
a Europa. Agora, após o reencontro, Xavier falece e todos os encontros de Evaristo com Mariana ocorrem por meio
dos eventos fúnebres, aos quais o protagonista faz questão de comparecer.
A reunião entre os dois, entretanto, diferentemente de como acontece no flashback do capítulo anterior, ocorre
de forma distante e fria, o que mostra a diferença entre a idealização de Evaristo e a realidade. Por fim, o sentimento
jurado entre os dois é esquecido diante das circunstâncias da vida, pois Mariana havia se apaixonado pelo marido
durante os anos em que Evaristo esteve fora. Este, após essa constatação, volta à França, momento em que a narra-
tiva promove um paralelismo entre a vida amorosa de Evaristo e o teatro. Ao consolar um amigo após sua comédia
ser retirada do teatro, Evaristo lhe diz que algumas peças de teatro ficam, porém outras caem; assim, pois, acontece
na vida: alguns amores ficam e outros se vão.

“Conto de escola”
O bem-humorado “Conto de escola” é narrado em primeira pessoa por Pilar, um menino que gosta de faltar
às aulas, embora seja um aluno inteligente. A história trata da vez em que Raimundo, filho do professor Policarpo,
tentou, durante a aula do pai, pagar uma moeda de prata a Pilar para que ele lhe ensinasse secretamente uma lição
de sintaxe, matéria com a qual tinha dificuldades.
O conto reproduz a atmosfera da negociação entre os meninos e do medo de serem pegos no ato da cola. O
medo se justifica porque Policarpo é, além de pai de Raimundo, um mestre rigoroso. Outro menino, Curvelo, vê tudo
e delata as crianças ao professor, que joga pela janela a moedinha de prata e dá doze bolos com palmatória (castigo
comum à época, 1840) em cada um. Na saída da aula, Pilar tenta se vingar de Curvelo, mas ele desaparece. No dia
seguinte, já com o humor melhorado e de calças novas, Pilar tenta chegar mais cedo à escola para reaver a moeda
de prata, mas é desviado do caminho por uma companhia do batalhão de fuzileiros. O menino passa a segui-los e
começa a caminhar pela cidade, terminando na Praia da Gamboa. O conto se encerra com uma breve reflexão de Pi-
lar, que, embora não tivesse recuperado a moeda e agora estivesse com as calças desarrumadas, não se arrependia
de ter faltado à aula e tinha aprendido com os dois colegas uma lição sobre a corrupção e a delação.

“Um apólogo”
“Um apólogo” é um dos mais famosos contos da coletânea. Narrado em terceira pessoa, como se fosse uma
fábula, traz como personagens uma agulha e um novelo de linha, que conversam sobre qual dos dois é mais impor-
tante na confecção de vestidos. Enquanto a primeira argumenta que ela é essencial, pois fura o pano e puxa a linha,
o segundo rebate argumentando que, embora a agulha vá adiante, é a linha quem prende, liga e ajunta.
Nesse momento, entra a costureira da baronesa e começa a costurar um vestido. A agulha, entre os dedos ágeis
da mulher, provoca a “senhora linha” dizendo que somente com ela a costureira se importa; contudo, a linha não diz
nada. Passado algum tempo, o vestido fica pronto, e, enquanto ele é ajustado no corpo da ama, a linha responde à
provocação da agulha, perguntando-lhe quem vai ao baile e quem vai voltar para a caixinha da costureira. A agulha
não responde, mas um alfinete decide repreendê-la, dizendo-lhe que é tola por abrir caminhos para a linha, a qual
aproveitará a vida enquanto a agulha ficará presa dentro de uma caixa; por isso, deve ser como ele e permanecer no
lugar onde lhe espetam. Ao final do conto, o narrador cita que contou a história para um “professor de melancolia”,
que havia balançado a cabeça tristemente ao escutar a narrativa e confessado já ter servido de agulha a “muita linha
ordinária”.

“D. Paula”
Narrado em terceira pessoa, esse conto trata da história de D. Paula, uma senhora que vai acudir a sobrinha,
Venancinha, após uma briga conjugal com Conrado. Na casa da sobrinha, D. Paula descobre que a briga foi causada
por ciúmes do marido em relação a um rapaz com quem a esposa havia dançado em um baile na noite anterior.
Como resposta, o marido a ameaçou com a separação. Sendo assim, D. Paula decide ir até o escritório de Conrado
e lá estabelece um acordo com ele: levar a sobrinha até sua casa na Tijuca, por alguns meses, onde falará com mais
calma com a moça e a aconselhará.
Conrado informa à D. Paula o nome do moço que havia causado a briga: Vasco Maria Portela. Ela fica em choque,
pois se trata do filho de um embaixador que foi um caso amoroso seu na juventude. Já na Tijuca, a tia ouve toda
a história da sobrinha com reações ambíguas, porque também o depoimento de Venancinha lhe traz lembranças
saborosas da juventude.

68

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 68 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

D. Paula percebe, então, que as acusações de Conrado tinham fundamento e que a sobrinha havia vivido só o
prólogo do adultério. Vasco chega a ir à Tijuca, mas Venancinha se esconde do rapaz. Dessa forma, o possível caso
entre os dois não tem continuidade, uma vez que a tia aconselha a jovem e esta se desfaz em lágrimas, aceitando
suas palavras de sabedoria. O conto se encerra com D. Paula, à noite, acordada diante da janela e pensando sobre
seu passado. Enquanto isso, as negras escravizadas esperam impacientemente a senhora adormecer para que pos-
sam se retirar e descansar também.

“Viver!”
Outro conto que mobiliza figuras míticas/bíblicas e que se desenvolve pelo diálogo é “Viver!”, que apresenta es-
tilo similar ao de uma peça de teatro. Trata-se de uma conversa entre Ahasverus, o judeu errante, e Prometeu, o titã
da mitologia grega, em relação ao fim dos tempos. Enquanto o primeiro foi condenado a viver para sempre vagando
sem rumo por não ter tido misericórdia com Cristo, o segundo foi também condenado pela eternidade, mas por ter
roubado o fogo dos deuses e dado aos humanos (no conto, Prometeu aparece também como criador dos homens).
Viver é um conto filosófico sobre a natureza dos homens e da vida.

“O cônego ou a metafísica do estilo”


Esse é um dos mais peculiares contos da obra machadiana. Narrado em terceira pessoa, “O cônego ou a me-
tafísica do estilo” passa-se, em parte, dentro da cabeça do Cônego Matias, enquanto escreve um sermão que lhe
foi solicitado. De maneira muito inventiva, o narrador fala da busca das palavras por um par, como homens ou mu-
lheres, da maneira como se encontram ou se perdem dentro da cabeça do Cônego a construir o estilo do sermão
que está escrevendo. É um conto metalinguístico sobre o que seja “escrever” e de amor à literatura e às palavras.

Orientações de leitura
Com base nas sínteses dos contos, não apenas lendo-as individualmente, mas observando-as em conjunto, é
possível avaliar que certos temas se tornam recorrentes na literatura machadiana, o que pode auxiliar o leitor a com-
preender melhor Machado de Assis como autor. De modo similar, podem-se atribuir novos significados às obras, se
analisadas sob uma ótica geral.
Ao observar as narrativas de forma mais detalhada, percebe-se que há certas histórias importantes que trazem
a temática de triângulos amorosos, como “A cartomante”, “A desejada das gentes”, “A causa secreta”, “Trio em Lá
menor” e “D. Paula”. Outro assunto abordado são os desejos não realizados, que acabam por ser figurados como
sonho ou memória, o que se vê em “Um homem célebre”, “Uns braços”, “A desejada das gentes”, “Trio em Lá me-
nor”, “O diplomático” e “Mariana”. Narrativas que contêm o substrato bíblico ou mítico também são frequentes
nas obras machadianas; em Várias histórias, essa característica é demonstrada em “Entre santos”, “Adão e Eva”
e “Viver!”.
Há, também, contos que realizam certos estudos sobre a natureza humana, como “O enfermeiro”, “Conto de
escola” e “Viver!”. Por fim, alguns contos podem ser caracterizados como precursores do horror na literatura brasi-
leira, como “A causa secreta”, “O enfermeiro” ou mesmo “A cartomante”. Vale ressaltar, ainda, o viés metalinguístico
singular de “O cônego ou a metafísica do estilo”, embora a literatura machadiana, em geral, apresente, junto da
matéria que narra, toques sobre a composição do estilo, isto é, traços metalinguísticos.
Outra possível forma de aproximar os contos, além de por meio de seus temas, é por aspectos formais. A maio-
ria dos contos é narrada em terceira pessoa, mas é preciso pontuar que a terceira pessoa machadiana, em geral, é
pessoalizada, ou seja, apresenta características que a aproximam de um narrador em primeira pessoa, como interlo-
cução direta com o leitor, confidências, ironias etc. Pode-se dizer que o narrador em terceira pessoa da obra madura
de Machado de Assis, muitas vezes, não é confiável. Quanto aos gêneros dos contos, há aqueles menos comuns que
se destacam dentre os demais da obra, como o diálogo e a fábula. Tem-se um conto dividido como os movimentos
de uma música clássica, a sonata, e, também, um conto dividido em capítulos.
Cabe dizer que, em Várias histórias, percebe-se Machado de Assis no ápice de seu domínio de estilo, com no-
tável agudeza e profundidade na leitura do mundo. A variação de recursos, formas e ângulos com que compõe o
conjunto de contos demonstra a maturidade do autor.

Perguntas orientadoras
1. Os contos de Várias histórias foram escritos especialmente para compor o conjunto ou já haviam sido publicados
antes em periódicos?
2. Qual é o papel da cartomante no conto “A cartomante”? As ações dessa personagem influenciam o desfecho da
trama? Se sim, como?
3. Em “Um homem célebre”, qual é o grande dilema de Pestana?

69

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 69 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

4. No final do conto “A causa secreta”, é possível saber as motivações de Fortunato. Como você leria as primeiras
cenas do conto à luz das revelações finais?
5. Em “Um apólogo”, a fala final do alfinete repreende a agulha, por ser tola e abrir caminho para a linha. Levando em
conta que o narrador machadiano pode não ser confiável, você consideraria a moral dessa fábula irônica? Por quê?

Conteúdos complementares
Livros
 CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1977. cap. 1. p. 13-33.

 GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2012.

 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

Periódicos
 WISNIK, José Miguel. (2003). Machado Maxixe: o caso Pestana. Teresa, (4-5), 13-79. Recuperado de: https://www.
revistas.usp.br/teresa/article/view/116360. Acesso em: 11 jun. 2022.

 WISNIK, José Miguel. Machado Maxixe: o caso Pestana. Teresa, v. 4, n. 5, p. 13-79, 2004. Disponível em: https://
www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116360/113949. Acesso em: 15 jun. 2022.

Filmes
 A CARTOMANTE. Direção: Wagner de Assis e Pablo Uranga. Rio de Janeiro: Cinética Filmes, 2004, 1 DVD (90 min).

 A CAUSA secreta. Direção: Sergio Bianchi. [S.I.]: Versátil Filmes, 1994. (93 min), son., color.

Ensaio
Caminhos da recepção machadiana
Inicialmente, cabe retomar o que já foi mencionado: Machado de Assis é um dos principais autores brasileiros
de conto. Trata-se de um mestre no gênero, tal como no romance e na crônica, por conseguir notável resultado
com essas narrativas curtas, como se observa em Várias histórias. No âmbito internacional, Machado assemelha-se a
Maupassant e Tchekhov, primeiros grandes autores do conto moderno, os quais, diferentemente de como se cons-
truía o conto clássico, trabalham com um processo de extrema concisão, como em uma fotografia, que acaba por
expandir, e não reduzir, aquilo que está sendo representado (PIGLIA, 2004). Assim, um corte ficcional específico na
verdade amplia o alcance de leitura.
Essa modernidade presente nos contos machadianos, contudo, não foi percebida pelos leitores de seu tempo
– segundo Os leitores de Machado de Assis, de Hélio de Seixas Guimarães. Em um primeiro momento, os traços
mais salientes na produção de Machado foram seu sofisticado humor e sua habilidade na criação das personagens,
duas características facilmente encontráveis nos contos de Várias histórias. Em um momento seguinte, aspectos
biográficos da figura do autor foram sublinhados, em um contexto de valorização da mestiçagem. Nesse ponto, sua
trajetória social ascendente, sua importância na vida cultural brasileira do século XIX, todas as ações que realizou
para a formação de uma sociedade culta e emancipada construíram a figura de um “homem de letras” exemplar.
Contudo, o movimento modernista, a partir de 1922, tinha uma leitura ambivalente da obra machadiana: por um
lado, tomava-a como parâmetro de literatura, mas, por outro, lamentava a falta nela de um nacionalismo mais posi-
tivo (ANDRADE, 1974).
Nos anos 1970, por meio de uma série de estudos e textos que seriam publicados pelas duas décadas seguintes,
Roberto Schwarz, valendo-se também de ensaios de outros pesquisadores e pesquisadoras, chegou a uma síntese
da modernidade machadiana. Isso ocorreu após a leitura de Memórias póstumas de Brás Cuba, por meio da qual
Roberto considerou revelar como a elite brasileira tratava arbitrariamente as regras de uma sociedade burguesa
que, por meio de convenções e do imaginário cultural, tecia uma imagem de bons costumes e heroísmo à qual, na
verdade, não era fidedigna. Mas como pensar sob esse viés para ler os contos de Várias histórias?
Um caminho para essa leitura é perceber como vários dos contos jogam com a expectativa do leitor ou das per-
sonagens ao quebrar algumas regras, como se o caminho seguro pelo qual determinada história pudesse ou não
seguir fosse interrompido ou continuado pelo narrador, que, por vezes, até comenta isso, gerando uma espécie de
resultado contrário às expectativas. Em “A cartomante”, por exemplo, todas as pistas do conto, a princípio, sugerem

70

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 70 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

que tudo terminará bem. Por outro ponto de vista, menos ingênuo, percebemos que os amantes se comportam
cada vez mais descuidadamente e que, portanto, as chances de ocorrer uma tragédia ficam maiores. A advertência
do narrador, contudo, está na primeira frase do conto: “Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na
terra do que sonha a nossa vã filosofia.”, já que a personagem é conhecida pelo seu fim trágico. De forma similar,
em “Mariana”, a história indica um final feliz para Evaristo e Mariana, uma vez que o marido da protagonista acaba
falecendo, abrindo espaço para que se restaure o antigo amor entre ela e Evaristo. Porém, o leitor descobre que ela
havia mentido quando eles eram jovens, dizendo que não amava o marido. Mas o que levaria o leitor a acreditar em
Mariana? Esses pequenos, mas decisivos, deslizes estão por todo o livro.
Outro caminho é observar como as personagens subalternas (escravizados, servos, empregados etc.) estão a
todo momento dando contrapontos às vozes e às figuras que protagonizam os contos. O “preto velho” de “Um
homem célebre”, o agregado servil de “Uns braços”, a cartomante, o enfermeiro, as pretas “que espalham o sono
contando anedotas”, impacientes que D. Paula demora a deitar; todos esses multiplicam os pontos de vista presen-
tes no conto e conferem uma afiada dialética ao estilo machadiano. No andar de cima, as traições, os casamentos,
os santos, as figuras míticas, os herdeiros; no andar de baixo, relativizando os desmandos, uma infinidade de figuras
se esgueira pelas frestas da ordem estabelecida com muita violência pelos de cima. Retomando, então, o começo
deste ensaio, a modernidade de Machado de Assis se apresenta como grande intérprete do Rio de Janeiro e da
sociedade brasileira.

71

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 71 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

Um útero é do tamanho de um punho


Angélica Freitas

Contexto histórico
A poeta contemporânea Angélica Freitas (1973) nasceu em Pelotas, uma cidade do interior do Rio Grande do Sul
com cultura e valores tradicionais. Começou a escrever durante um momento literário brasileiro caracterizado pela
experimentação, pela ruptura com os clássicos e pela crítica, heranças do Modernismo, porém com uma nova abor-
dagem, influenciada tanto por eventos históricos de escala nacional – como a Ditadura Civil-Militar –, quanto por
eventos globais, como a terceira onda feminista. Esses eventos abriram novas discussões que refletiram no cenário
literário brasileiro, especialmente na virada do século XXI, quando o acesso à informação se tornou mais democrá-
tico, principalmente devido aos avanços tecnológicos.
Ser um escritor contemporâneo implica escrever sobre o mundo presente, abordando temas sensíveis e reinter-
pretando o contexto em que se está inserido. De acordo com o filósofo italiano Giorgio Agamben, o contemporâ-
neo é “aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo para perceber não apenas as luzes, mas também as sombras”
(AGAMBEN, 2009, p. 62). Isso significa ter uma visão atenta às contradições, às opacidades e ao que não está evi-
dente. Portanto, ser um escritor contemporâneo requer sensibilidade para captar e expressar as complexidades do
mundo presente.
Ao ler os poemas de Angélica Freitas, o leitor é convidado a refletir a respeito do mundo com o qual já está fami-
liarizado, enxergando também suas contradições e limitações. Dessa forma, a poeta se destaca por sua habilidade
em desconstruir estereótipos, desafiar normas e revelar as complexidades da existência humana, com uma escrita
marcada, principalmente, por humor ácido, ironia e sensibilidade. A poesia de Angélica Freitas busca desmistificar
as expectativas sociais em relação ao papel da mulher, explorando sua identidade de gênero, seu corpo e as rela-
ções de poder. A partir de uma perspectiva pessoal, a poeta apresenta uma visão crítica da sociedade, destacando
as desigualdades de gênero.
O contexto histórico e contemporâneo, tanto do Brasil quanto do mundo, é colocado sob reflexão, abrangendo
temas como desigualdade social, opressão, corrupção, racismo e outras questões relacionadas aos direitos huma-
nos. A escrita de Angélica Freitas também incorpora o conceito contemporâneo da interseccionalidade, que busca
compreender as formas complexas e interligadas de opressão e discriminação que ocorrem em diferentes catego-
rias sociais, como etnia, gênero, classe social, orientação sexual, entre outras; tais diversidades foram sublinhadas
por pensadoras como as estadunidenses Audre Lorde e bell hooks.
A escrita e a posição de Angélica Freitas no debate de gênero são influenciadas por autoras como Ana Cristina
César, Sylvia Plath e Ledusha Spinardi. Além disso, a música pop e o cinema também exerceram uma influência
significativa na obra da poeta. Transparecem ainda na escrita de Angélica Freitas influências da literatura beatnik,
conferindo-lhe uma sensibilidade contemporânea e uma visão que desafia as normas estabelecidas. Surgido nos
Estados Unidos na década de 1950, esse movimento literário caracterizava-se por uma abordagem não conformista e
contracultural e explorava temas como a liberdade individual, a sexualidade, a espiritualidade e o inconformismo social.

Vida e obra
Além de ser escritora e poeta, Angélica Freitas também atua como tradutora. Aos 18 anos ingressou na faculdade
de Letras, mas interrompeu seus estudos para fazer um intercâmbio em Glasgow, na Escócia, experiência que foi
fundamental para sua carreira de tradutora, pois teve a oportunidade de trabalhar com a tradução de poemas e
ensaios na língua inglesa.
Ao retornar ao Brasil, formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tra-
balhando na área até 2006 – primeiro em Porto Alegre e depois em São Paulo, no jornal O Estado de S. Paulo.
No entanto, após participar de uma oficina ministrada pelo poeta, tradutor e crítico Carlito Azevedo, em 2005, An-
gélica Freitas decidiu focar exclusivamente na sua carreira literária. Desde então, ela tem se dedicado à escrita e
participado de oficinas e residências artísticas em países como Holanda, Argentina e Bolívia. Atualmente, reside em

72

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 72 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

Berlim, na Alemanha, com sua companheira Juliana Perdigão, que é cantora, instrumentista e compositora e com
quem desenvolveu sua obra mais recente, uma coleção de poesias intitulada Canções de atormentar (2020), inicial-
mente concebida como uma performance musical.
Os primeiros poemas publicados por Angélica Freitas foram durante sua estadia na Argentina, na coletânea de
poemas Cuatro Poetas Recientes del Brasil (Quatro poetas recentes do Brasil, em tradução livre), organizada pelo
poeta e crítico argentino Cristian de Nápoli, em 2006. No ano seguinte, Angélica Freitas lançou seu primeiro livro
autoral, intitulado Rilke Shake, que foi publicado originalmente na coleção de poesia contemporânea “Ás de colete”,
organizada por Carlito Azevedo. No mesmo ano, foi uma das editoras da revista de poesia Modos de Usar & CO, jun-
tamente com Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck. Na revista, eram publicadas traduções de poetas
contemporâneos e Angélica Freitas contribuía com traduções de poemas hispano-americanos.
Nos anos seguintes, Angélica Freitas foi convidada para diversos festivais importantes, como a Festa Literária
Internacional de Paraty (FLIP), o Festival de Santiago do Chile, o Festival da Cidade do México e o Festival de Berlim.
Além disso, teve seus poemas publicados em diversas coletâneas no Brasil e no exterior. Em 2012, lançou a obra Um
útero é do tamanho de um punho, que lhe trouxe reconhecimento significativo na cena literária brasileira. O livro foi
elogiado pela crítica e se tornou um clássico contemporâneo, ficando como semifinalista no Prêmio Portugal Tele-
com no ano seguinte. Ainda em 2012, colaborou com o ilustrador Odyr Bernardi para criar a história em quadrinhos
Guadalupe: uma roadtrip fantástica, que narra a jornada de uma neta pelo México carregando o caixão de sua avó
para realizar seu último desejo.
Há pelo menos uma década, Angélica Freitas tem ministrado oficinas presenciais e on-line em vários países, nas
quais promove exercícios poéticos. Em 2022, o compositor Vitor Ramil lançou o álbum de canções intitulado Avenida
Angélica, no qual ele compõe músicas com base em diversos poemas da poeta, incluindo obras como Rilke Shake
e Um útero é do tamanho de um punho, demonstrando assim como a musicalidade é uma característica trabalhada
por ela em suas produções. As obras de Angélica Freitas já foram traduzidas para diversos países, como Argentina,
Espanha, México, Estados Unidos, Alemanha e França.

Apresentação e análise da obra


Então para meu segundo livro [Um útero é do tamanho de um punho], não queria pegar todas as coisas que já
tinha escrito nos últimos anos e fazer como se fosse uma antologia, como no primeiro. Queria escrever sobre algum
assunto importante para mim. E a coisa da mulher sempre foi um assunto para mim, por eu ser do interior do Rio
Grande do Sul, por eu ser lésbica, por eu ter consciência disso desde muito pequena e por eu nunca ter me encai-
xado no modelo de mulher que era esperado, sempre me senti muito esquisita e questionava isso (FREITAS, 2019).
Esse trecho destaca que Um útero é do tamanho de um punho é uma obra conceitual, que tem a mulher como
tema central. O conceito principal do livro é explorado por meio de elementos simbólicos, experimentação com
a linguagem, recursos visuais e até mesmo a ruptura de ideias e de expectativas. O livro traz suas concepções de
maneira não convencional, desafiando as expectativas do leitor e buscando uma abordagem inovadora. Além disso,
os poemas presentes na obra foram organizados em seções, criando assim um arco narrativo.
Um útero é do tamanho de um punho foi concebido como um projeto, e é possível observar a progressão que ele
apresenta. A obra inicia com uma série de poemas focada e impactante, que é seguida por outra mais abrangente,
que traz uma variedade de questões relevantes relacionadas ao tema das mulheres na sociedade. A obra tem início
com uma série de poemas intitulada “uma mulher limpa”, na qual são exploradas diversas características atribuídas
às mulheres, como: mulher boa, mulher limpa, mulher braba, mulher mansa, mulher feia, entre outras. A seguir, o
poema que abre a obra.

porque uma mulher boa porque uma mulher braba


é uma mulher limpa não é uma mulher boa
e se ela é uma mulher limpa e uma mulher boa
ela é uma mulher boa é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos há milhões, milhões de anos


pôs-se sobre duas patas pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja não ladra mais, é mansa
braba e suja e ladrava é mansa e boa e limpa
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

As séries de poemas presentes no livro relacionam-se criticamente com o modo de produção em série do capi-
talismo industrial moderno, em que os produtos são fabricados com poucas diferenças entre si, visando manter o
consumo contínuo por parte dos consumidores, mesmo que sejam produtos de marcas distintas. Nesse contexto,
são utilizadas variações em torno de um eixo comum como recurso de representação. Além disso, é necessário

73

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 73 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

destacar que as posições expressas nas séries dos poemas não representam as opiniões do eu lírico nem da autora,
mas refletem posições misóginas comuns na sociedade, as quais são apropriadas de forma crítica.
A primeira seção do livro é composta por catorze poemas que destacam o moralismo ao qual as mulheres estão
sujeitas na sociedade, esperando-se que sejam limpas, sóbrias, mansas e bonitas, entre outras expectativas. Essas
imposições são sustentadas por um intenso processo de objetificação, que trata as mulheres como objetos das ações
e dos desejos dos homens. Dois dos poemas possuem título: “uma canção popular (séc. XIX-XX)” e “alcachofra”,
que é o poema mais extenso da série. O humor está presente de forma evidente, como quando as pesquisadoras
decidem nomear um grupo de estudos com o nome de um homem ou quando adaptam a canção do elefante que
incomoda muita gente para “uma mulher gorda”. No entanto, esse humor é acompanhado por um amargor devido
à posição de desigualdade vivenciada por mulheres, o que atribui ao poema certo sarcasmo. Além disso, há traços
de horror presentes, como na comparação da mulher com as carnes de um açougue ou na descrição do método
de internar até a morte mulheres independentes em sanatórios (o que pode ser observado em “interna, enterra”).
A seção seguinte do livro, intitulada “mulher de”, é composta por onze poemas que abordam questões rela-
cionadas à violência contra as mulheres, apresentando uma visão crítica sobre o assunto. Os poemas exploram
variações criativas, como “mulher de vermelho”, “mulher de valores”, “mulher de posses” e outros. Essa abordagem
dinâmica revela grande inventividade ao explorar, com humor e melancolia, diversas facetas da violência de gênero.
Já a terceira seção do livro, “a mulher é uma construção”, trata-se de uma variação bem-humorada da conhecida
passagem do livro O segundo sexo (1949), da escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986): “Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher. [...]” (BEAUVOIR, 2009, p. 312). No primeiro poema, que tem o mesmo nome da seção, é
explorada a ideia de construção, destacando que o masculino é considerado o sexo padrão, enquanto o feminino,
como o sexo secundário, precisa ser construído; ao mesmo tempo, a palavra “construção” é interpretada literalmente:

a mulher é uma construção


deve ser
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
[...]
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Ao interpretar literalmente a abstração de Simone de Beauvoir, não se ignora o cerne da ideia da filósofa, que
continua sendo objeto de debate. A questão da identidade da mulher, seja individual, seja coletiva, como uma con-
quista constante, perpassa os demais poemas. O poema denominado “Ítaca”, contudo, se diferencia dos demais
por não abordar de forma tão explícita a identidade da mulher. Em vez disso, dialoga diretamente com o poema
homônimo escrito pelo poeta grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933):

Se partires um dia rumo à Ítaca,


faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Poseidon te intimidem
[...]
KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (Col. Poesia de todos os tempos)

O termo Ítaca remete à terra natal de Odisseu, o herói de guerra e protagonista do poema épico de Homero,
a Odisseia. Considerado um clássico para a literatura ocidental, o poema narra o regresso do rei guerreiro após o
fim da Guerra de Troia. Dessa forma, ao estabelecer uma intertextualidade com o poema de Konstantinos Kaváfis,
Angélica Freitas estabelece também um diálogo com uma das narrativas fundamentais do homem clássico, que re-
forçou um ideal de masculinidade e influenciou a estrutura narrativa conhecida como a jornada do herói, presente
em diversas obras clássicas e que permanece na literatura contemporânea. No entanto, na “Ítaca” de Um útero é
do tamanho de um punho, a poeta aborda a gravidade da epopeia de modo irreverente, subvertendo a ideia do
heroísmo masculino. O poema de Konstantinos Kaváfis é retratado quase de forma paródica, com uma clara ironia,
inclusive na alusão ao medicamento grego para assaduras na pele, em uma referência humorística ao grande clás-
sico literário grego.

74

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 74 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

[...]

mande fotos digitais

torre no sol

leve hipoglós

em ítaca compreenderá

para que serve

a hipoglós.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

A próxima seção do livro recebe o título de “um útero é do tamanho de um punho”, que também é o nome do
poema que compõe a seção e do próprio livro. Essa seção pode ser considerada o ápice do livro – uma vez que é
retomada a ideia de arco –, para onde as seções anteriores se direcionaram. O primeiro verso do poema repete a
mesma frase que nomeia o livro, a seção e o poema em si, estabelecendo uma conexão entre ser mulher e sua ex-
periência de luta. Em seguida, o poema apresenta uma estrofe argumentativa, na qual o eu lírico explora, entre idas
e vindas, aspectos corporais centrados na importância do útero e da mão.
Já na estrofe seguinte, é tomada outra direção, e a brincadeira da língua do i, presente também na epígrafe do
livro, é retomada:

im itiri i di timinhi di im pinhi

quem pode dizer tenho um útero

(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)

i midici

o medo de que não funcione

para que serve um útero quando não se fazem filhos

para quê

piri qui

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

O poema “um útero é do tamanho de um punho” levanta questionamentos acerca da validação da identidade
feminina, uma vez que a palavra final é atribuída ao médico (“i midici”). O trecho aborda como certas declarações e
o uso de argumentos biológicos podem desvalorizar as mulheres em termos sociais. O humor irreverente, a lógica
das seções e das listas, a violência contra as mulheres, a crítica à infantilização deliberada e a presença de elementos
perturbadores estão presentes.
A seguir, uma série de quadras infantis são adaptadas por Angélica Freitas e reúne parte desses aspectos. Essas
quadras são interrompidas por um discurso satírico: “prezadas senhoras, prezados senhores/excelentíssimo minis-
tro, querida rainha da festa da uva [...]”. Esse discurso é seguido por outras duas evocações (formando mais uma
série): “querida amiga” e ”caros alunos”. O poema se encerra com um “apêndice”, que lembra uma enciclopédia,
apresentando “alguns fatos que rimam sobre o útero”, “monossílabos empregados/em literatura sobre o útero”, de-
pois dissílabos, trissílabos e polissílabos, entremeados de informações biológicas, e conclui: “i piri qui”. Ao analisar
o poema, é possível perceber que ele condensa os recursos utilizados ao longo do livro, sintetizando-os desde a
epígrafe da obra. Embora aparente ser diverso e heterogêneo em sua estrutura, o poema representa uma concen-
tração dos elementos desenvolvidos ao longo do livro.

75

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 75 31/07/2023 08:55:43


Análise de Obras – UFRGS

A quinta seção do livro, intitulada “3 poemas com o auxílio do Google”, apresenta um formato mais breve em
comparação com as outras seções. Nessa parte, a poeta simula uma pesquisa na plataforma digital, inserindo
frases como “a mulher vai”, “a mulher pensa” e “a mulher quer” na barra de pesquisa e observando as sugestões
automáticas. Essa abordagem revela estereótipos e pensamentos comuns que permeiam a sociedade em relação
às mulheres. Pode-se notar que muitos desses pensamentos tendem a colocá-las em situações de fragilidade,
inferioridade e limitação, possivelmente sob uma perspectiva masculina e com ênfase em relações heteronorma-
tivas. O recurso de busca é utilizado como forma de ressaltar tais problemáticas de forma bem-humorada, radical
e crítica.
A sexta seção, denominada “Argentina”, pode ser interpretada como um único poema com dez partes numera-
das (de ”I“ a ”X“) ou como uma seção composta por dez poemas curtos. Angélica Freitas tem uma conexão próxima
com o país, uma vez que já viveu lá, e há uma afinidade cultural entre o Rio Grande do Sul e a Argentina – tal afini-
dade foi reconhecida pelo crítico e estudioso uruguaio Ángel Rama (2008), que propôs a noção de “Comarca do
Pampa“ para reunir Argentina, Uruguai e o sul do Brasil como unidade de características comuns. Na obra, a poeta
constrói, a partir de um elemento comum, o churrasco (asado, em espanhol), as diferenças entre as culturas argenti-
na e sul-rio-grandense. No entorno desse tema central, o poema trabalha com uma série de relações entre mulheres
e homens, como ”os churrascos são de marte/e as saladas são de vênus“ (II), entre outros exemplos.
A sétima e última seção do livro é intitulada “o livro rosa do coração dos trouxas”. Assim como na seção anterior,
pode ser considerado um poema com doze partes (de “I” a “XII”) ou uma seção composta por doze poemas curtos.
O tema predominante dessa seção são os relacionamentos e os desentendimentos, como é possível observar no
poema I (“eu quando corto relações/corto relações”) e no poema II, que aborda a paixão pelo cheiro de acetona de
uma namorada que pinta as unhas. O humor presente nos desacertos permanece, assim como o recurso de colocar
os poemas em série, mantendo os núcleos e as variações. Por exemplo, a frase “eu tive uma namorada” abre os
poemas IV, V e VI, enquanto “o fim do dia” é o início dos poemas VII e VIII e, por fim, a frase “não devias te casar”
abre os poemas X, XI e XII. Essa estrutura em série contribui para a coesão da seção e para a continuidade temática
ao longo dos poemas.
O desfecho da seção e do livro apresenta um tom singular. O crescente romantismo, com cenas entre lençóis e
ofertas de caramelos na Dinamarca, culmina com o casamento de “angélica” consigo mesma na Catedral São Fran-
cisco de Paula, em Pelotas. O poema final do livro estabelece um diálogo com o poema “Canto nupcial”, da poeta
argentina Susana Thénon (1935-1991), mencionada nos versos. Por um lado, a representação do amor entre duas mu-
lheres está presente e é afirmada ao longo da seção; por outro, o casamento consigo mesma é uma representação
coerente e irônica da autossuficiência. O poema dialoga com os temas explorados anteriormente, porém de forma
crítica, ao evidenciar as diferenças entre homens e mulheres.

Orientações de leitura
Perguntas orientadoras
1. Qual o tema principal do livro Um útero é do tamanho de um punho? Quais aspectos dessa temática são abordados
na obra?
2. Como a poeta aborda esse tema? Crítica ou acriticamente? Com ou sem ironia?
3. Onde e quando nasceu Angélica Freitas? Em que medida o lugar e o momento em que nasceu a poeta influencia
na constituição da obra analisada?
4. Ao afirmar que Um útero é do tamanho de um punho é um livro contemporâneo, o que isso significa?
5. A obra em análise é um livro conceitual. Como é possível perceber essa qualidade do livro em sua construção?
6. De que modo as séries e as variações incorporadas pela poeta como procedimento em Um útero é do tamanho de
um punho dialogam com as demais artes contemporâneas? E com as dinâmicas do mundo contemporâneo?

Conteúdos complementares
Entrevistas
 RESENDE, Beatriz et al. ”O poeta é a antena da raça: entrevista com Angélica Freitas”. Revista Z Cultural, Rio de
Janeiro, ano XVI, n. 2, 2021. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-poeta-e-a-antena-da-praca-entre-
vista-com-angelica-freitas/. Acesso em: 6 jun. 2023.

 SILVA, Eduarda Rocha Góis da; SILVA, Susana Souto. ”Angélica Freitas, leitora de Susana Thénon“. In: Anais do
Congresso da ABRALIC, 2016, p. 5 946-5 955.

76

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 76 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Ensaio
Incômodo e inquietante: os poemas não domesticados de Um útero
é do tamanho de um punho.
É possível identificar pelo menos três abordagens que permitem ao leitor compreender os significados de Um
útero é do tamanho de um punho.
A primeira abordagem está relacionada à crítica em relação ao papel da mulher na sociedade, principalmente na
brasileira. Angélica Freitas ressalta uma cultura que ainda subestima e restringe o espaço das mulheres em várias es-
feras sociais. Nesse sentido, a poeta apresenta uma interpretação alternativa em relação à representação tradicional
da mulher. Seus poemas buscam ampliar as percepções e compreensões sobre as mulheres, promovendo uma visão
mais inclusiva e valorizando a sua diversidade de papéis e contribuições para a sociedade.
A segunda abordagem de leitura é o humor, ou seja, a ironia, especialmente em seus tons mais radicais, como o
sarcasmo, a paródia, a zombaria e o nonsense. Esse conjunto de humor se forma, principalmente, a partir da obser-
vação do absurdo da condição das mulheres na sociedade e do ceticismo em relação à possibilidade de encontrar
soluções práticas para os problemas. O nonsense reflete a própria condição da mulher em uma sociedade patriarcal
e, diante disso, é necessário ridicularizar os preconceitos e as superstições que são considerados verdadeiros. O
pano de fundo dessa construção irônica traz a presença da melancolia, característica central de uma situação que
não tem uma resolução clara.
A terceira abordagem de leitura é a escolha de procedimentos que trabalham com as noções de seriação e
variações, comuns na literatura contemporânea. Procedimento refere-se ao caminho percorrido pelo artista ao se-
lecionar um determinado tema e repetir sobre ele aproximações análogas. Trata-se de uma noção advinda das artes
visuais e culmina em múltiplos resultados feitos em geral com o mesmo material ou com materiais afins, obtidos de
modo semelhante pelo artista, ao aplicar certo procedimento. Em Um útero é do tamanho de um punho, Angélica
Freitas usa esses procedimentos para explorar e amplificar as temáticas abordadas. Por meio da repetição de certos
temas, elementos visuais e estruturas narrativas, ela cria variações que aprofundam e expandem o significado des-
ses elementos. Essa abordagem contribui para a construção de uma narrativa aparentemente fragmentada, porém
coesa, que ressalta, de forma impactante, as experiências e as perspectivas das mulheres.
Para além dessas e outras possíveis abordagens de leitura, é necessário que o leitor consiga identificar a espe-
cificidade de cada seção de poemas, observando em especial as temáticas centrais e o tipo de seriação que cada
uma delas desenvolve, bem como seja capaz de acompanhar a linha argumentativa da obra, isto é, a maneira como
o livro desenvolve, por meio dos poemas e das seções, um percurso pela temática que explora. Sendo assim, o livro
tem um caminho, realiza um desenho, que parte da primeira seção e encontra seu ápice na seção homônima à obra,
“Um útero é do tamanho de um punho”, depois continua seu caminho e se encerra com o diálogo mais próximo com
a poesia de Susana Thénon e no casamento de Angélica com ela mesma.
Uma vez que o escritor contemporâneo é aquele que revela as fraturas e o que está obscuro em seu tempo
(AGAMBEN, 2009), é possível compreender que Um útero é do tamanho de um punho aborda uma questão estru-
turante da sociedade, que tende a ser, em muitos momentos, patriarcal e misógina. Ao ler o livro, o leitor é con-
frontado com a realidade de que, mesmo que haja posicionamento contra essas máculas sociais, é improvável que
não haja, de certa forma, conivência com essas posições em relação aos familiares, amigos, conhecidos, colegas
de escola e de trabalho, entre outros. O livro coloca o leitor diante desse desconforto, fazendo-o refletir sobre as
próprias cumplicidades e contradições em relação à desigualdade de gênero. Mesmo após uma década de sua pu-
blicação, o livro de Angélica Freitas não se tornou mais fácil de ser lido, já que o tema central abordado ainda não foi
dissipado ou combatido de forma efetiva. Essa constatação revela a importância contínua da obra, que demonstra
a necessidade de confrontar e transformar tais estruturas sociais.
O neurologista e psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) apresenta o conceito de estranho (1976), que pode tam-
bém ser traduzido como ”inquietante“ ou ”incômodo“, o qual pode ser aplicado à obra de Angélica Freitas a fim
de auxiliar a compreensão do efeito provocado pelo livro. O estranho diz respeito a algo que se entende como do
outro e como não reconhecível, mas que se revela familiar subitamente. Também é utilizado para o processo inverso:
algo que é tomado como familiar e que subitamente é vislumbrado como irreconhecível. Para Freud, esse processo
é profundamente central para a formação como indivíduo, tem origem ainda na infância – ao perceber, por exemplo,
que a mãe não é uma extensão do corpo – e está no funcionamento dos traumas, isto é, a fim de evitar sofrimento,
a memória ou a experiência passam a ser desconhecidas e tratadas como estranhas.
Seguindo essa lógica, a sociedade convive com a desigualdade de gênero e seus resultados, o que torna es-
sas questões menos impactantes no cotidiano. A poeta escolheu um registro épico, objetivo e distanciado, para
confrontar diretamente com as situações mais absurdas, sem permitir que o leitor se esquive das problemáticas
apresentadas. Frases como “uma mulher sóbria é uma mulher limpa, uma mulher ébria é uma mulher suja” são ina-
ceitáveis e, ao mesmo tempo, comuns na sociedade atual. Esse paradoxo absurdo é o que gera o humor, chamado
de “chiste” por Freud. O chiste é caracterizado por provocar risos ao revelar uma discrepância entre a forma como as

77

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 77 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

coisas são esperadas e a maneira como elas são apresentadas. É uma maneira de expressar o absurdo ou lidar com
questões difíceis de uma forma engraçada por meio de jogos de palavras, trocadilhos ou situações inesperadas.
Um útero é do tamanho de um punho repõe a cada leitura aquilo que incomoda e que não gostaria de ser reco-
nhecido. Por meio desse estranhamento, que se refere principalmente às condições das mulheres, é possível com-
preender por que segue sendo um livro incômodo e inquietante. Enquanto os cenários que o livro critica permane-
cerem postos acriticamente, Um útero é do tamanho de um punho continuará questionando sobre por que e como
tais situações ainda são aceitas. Por isso, os poemas permanecem não domesticados e não se amansam: domus em
latim é ”lar”, “domesticar”; portanto, pode ser traduzido como “trazer para casa” e ”doméstico”. Abre-se, então,
uma cisão entre essa poética e o doméstico, que, na sociedade brasileira, é especialmente de domínio patriarcal.
Domínio a que Angélica Freitas se opõe desde a primeira página do livro, de diversas maneiras, em diversos tons,
sob variados prismas, até ”casar-se consigo mesma” na última página. O êxito formal do livro está conectado ao
atual fracasso em obter uma sociedade equalitária.

78

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 78 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Água funda
Ruth Guimarães

Contexto histórico
Água funda, romance de estreia da escritora paulista Ruth Guimarães, foi publicado em 1946. O contexto de pro-
dução da obra está conectado à modernização do Brasil e ao desenvolvimento dos grandes centros urbanos. O crí-
tico literário Antonio Candido (1918-2017) chama atenção para como esse período se distinguia do anterior, quando
somente os filhos de pessoas da elite tinham condições de receber uma educação formal: a partir de 1930, cada vez
mais orientada por uma educação prática, laica, cidadã e influenciada pelas transformações provocadas pela Escola
Nova (movimento de renovação do sistema educacional organizado por educadores europeus e estadunidenses no
final do século XIX), surge uma sociedade mais aberta ao moderno do que a anterior.
Ao longo de sua vida, a escritora acompanhou de perto a transformação do país, impulsionada pelo crescimento
exponencial da cidade de São Paulo. Quando Ruth Guimarães nasceu, em 1920, a cidade tinha cerca de 600 mil ha-
bitantes; quando morreu, em 2014, havia cerca de 11,9 milhões. O aumento da população urbana em tais proporções
provocou a intensificação da vida comercial, a expansão da vida cultural e a diversificação das atividades econô-
micas. Além disso, essas transformações também foram acompanhadas, em certa medida, pelo restante do país.
Até o final da década de 1920, mais da metade das riquezas exportadas pelo Brasil eram oriundas da cafeicul-
tura. Nesse período, o centro da vida econômica brasileira não era a cidade, e sim o campo; portanto, as estruturas
sociais desse ambiente tinham protagonismo no imaginário nacional. O romance que será analisado toma por ma-
téria o ambiente rural, um mundo que estava diminuindo de tamanho e de importância na época em que o livro foi
escrito. Uma década mais tarde, a balança comercial brasileira indicaria, pela primeira vez, uma exportação maior
de produtos industrializados do que de produtos agrícolas, e, desse momento em diante, o Brasil torna-se um país
majoritariamente urbano e industrial.
Cabe ainda destacar a importância do movimento negro na vida e na obra da autora. Socialmente, nas primeiras
décadas do século XX, a ideia de que o negro era um ser inferior e de que a mestiçagem teria condenado a nação
brasileira ao insucesso ainda era muito presente. Essa concepção foi transformada a partir da contribuição de intelectuais
modernos, catalisada pelo ensaio de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala (1936). A partir desse momento, a
valorização da mistura como uma característica nacional passou a acontecer. Ruth Guimarães não ficou imune a
essas ideias, como é possível notar no trecho a seguir, um depoimento dado no evento “Encontro de gerações”,
organizado pelo Museu Afro Brasil em 2007:

[…] assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda
feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali. Não há nada que nos torne inteiriços, inteiros. Minha literatura
é isso também. Eu conto a história da roça, de gente da roça, do caipira. Eu também sou caipira, modéstia à parte. Eu
não me importei muito se havia uma tendência, ou se havia uma inclinação para contar a história do preto; como eu
também sou misturada, o meu livro é misturado. […].
GUIMARÃES, Ruth. Literafro, 30 nov. 2020. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/434-ruth-guimaraes. Acesso em: 28 jun. 2023.

A valorização da mestiçagem no Brasil foi embasada no conceito da "democracia racial", que propunha igual-
dade entre diferentes grupos raciais. No entanto, essa definição não considerava as problemáticas históricas da
miscigenação decorrentes da escravidão, o que levou movimentos negros a criticarem essa suposta valorização. A
União dos Homens de Cor (1943), associação fundada em Porto Alegre, e o Teatro Experimental Negro (1944), no Rio
de Janeiro, foram importantes contrapontos à ideia da democracia racial.
Para a leitura do romance Água funda, é importante perceber que sua literatura assume uma postura mais radica-
lizada, isto é, que considera, sim, importante conhecer a “raiz negra” da sociedade brasileira (expressão usada pela
própria Ruth Guimarães), e que suas preocupações também se estendem às tradições populares de maneira geral.
Ao mesmo tempo, não cabe criticá-la por aderir à valorização da mistura como componente da sociedade brasileira.

79

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 79 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

As críticas à “democracia racial” eclodiram nos anos 1980 e 1990, diante dos dados patentes de extermínio da
população negra e periférica brasileira, além dos indícios sociais de preconceito: média de salários mais baixa, pre-
sença minoritária nas universidades, presença majoritária na população carcerária, entre outros. Quando o ideal da
mestiçagem se revelou como um tipo diferente de exploração racial, a autora já tinha entre 60 e 70 anos de idade.
A partir disso, é interessante refletir sobre como a leitura de um texto literário está atrelada ao seu contexto de
produção e distribuição. Essa leitura varia de acordo com o período histórico em que é realizada. Cada época traz
consigo diferentes contextos culturais, sociais e ideológicos, que moldam a interpretação e a compreensão da obra.
Sendo assim, compreender as mudanças na leitura de um texto literário ao longo dos períodos é essencial para
apreciar e contextualizar adequadamente toda e qualquer obra analisada.

Vida e obra
Ruth Guimarães Botelho nasceu no dia 13 de junho de 1920, em Cachoeira Paulista, cidade do interior do estado
de São Paulo, mas passou a infância em uma fazenda administrada pelo pai no sul de Minas Gerais. Aos 10 anos,
publicou seus primeiros poemas nos jornais de sua cidade, A região e A notícia. Aos 18 anos, mudou-se para a capital
paulista e continuou publicando em jornais, agora de São Paulo. Formou-se em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP). Mais tarde graduou-se também em Letras Clássicas e estudou Dramaturgia e Crítica nos anos 1950.
Trabalhou como professora de Língua Portuguesa na rede pública de ensino por mais de trinta anos e como jornalista
colaborou regularmente para a imprensa paulista e a carioca. Em depoimento para o “Encontro de gerações” de
2007, a autora refletiu sobre sua formação:

Minha formação é totalmente anônima, mergulhada na literatura brasileira, uma literatura sem escolha. Aliás,
todos nós brasileiros estudamos literatura de uma maneira desorganizada; a gente lê o que quer, o que gosta, os pro-
fessores dão um texto aqui, outro ali, nada sistematizado, com um sentido e programação. Quando nós chegamos ao
fim, se é que a gente pode dizer ao fim, temos uma espécie de formação mista [...].
GUIMARÃES, Ruth. Literafro, 30 nov. 2020. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/434-ruth-guimaraes. Acesso em: 28 jun. 2023.

Ruth Guimarães casou-se com um primo e teve nove filhos e, como muitas outras autoras, sua produção literária
também foi afetada pelas questões familiares. Estudiosos de sua obra afirmam que o fato de ela ser mulher e ter se
dedicado mais à família do que à sua produção literária fez com que ela fosse ainda mais desvalorizada pela acade-
mia. No ensaio Um teto todo seu, a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941) aborda as condições desfavoráveis
enfrentadas pelas mulheres na escrita. Ela destaca que, ao longo da história, as mulheres foram excluídas dos es-
paços de produção literária devido às restrições sociais, econômicas e educacionais impostas a elas. Além disso, a
autora ressalta a importância de as escritoras terem independência financeira e um espaço físico próprio, para que
possam desenvolver sua criatividade e expressar sua voz. Woolf argumenta que a liberdade de escrita e a possibili-
dade de explorar seu potencial artístico são essenciais para que as mulheres possam superar as barreiras impostas
e alcançar uma voz autêntica e significativa na literatura.
A obra Água funda foi considerada à época o primeiro romance de grande repercussão escrito por uma mulher
negra, antecedendo autoras como Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Conceição Evaristo (1946-), Cidinha da Silva
(1967-), Ana Maria Gonçalves (1970-). Importante citar que após a recuperação, nos anos 1970, da obra Úrsula (1859),
sua autora, a maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), é considerada a pioneira entre as escritoras brasileiras
negras. A produção literária de Ruth Guimarães seguiu-se com livros ficcionais, poéticos, jornalísticos, etnográficos e
folcloristas, além de reuniões de crônicas produzidas para jornais. Como pesquisadora de folclore, seguiu os passos
do escritor e intelectual modernista Mário de Andrade (1893-1945), que conheceu na juventude. O objetivo da au-
tora era a construção de um “fabulário brasileiro”, reunindo histórias não só do povo negro, mas do povo brasileiro
de maneira geral. Ao acervo mais autoral e de pesquisa somou-se, desde os anos 1960, um conjunto relevante de tra-
duções de autores como Honoré de Balzac (1799-1850), Alphonse Daudet (1840-1897) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
Além disso, Ruth Guimarães também é autora de um reconhecido dicionário de mitologia grega. No começo dos
anos 1970, a escritora fundou e passou a presidir a Associação Cachoeirense de Letras, pioneira no Vale do Paraíba,
e em 2008 passou a ocupar uma cadeira da Associação Paulista de Letras. Faleceu em 2014, aos 94 anos.
Cabe frisar que Ruth Guimarães não teve o devido reconhecimento em vida. Apesar de seu romance inaugural
ter sido saudado por críticos importantes e das mais de duas dezenas de livros publicados ao longo da vida, sua
produção, em geral, é quase apagada da história literária brasileira recente.

80

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 80 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Principais obras
 Os filhos do medo (1950)

 Lendas e fábulas do Brasil (1972)

 Dicionário da mitologia grega (1972)

 Crônicas valeparaibanas (1992)

 Contos de cidadezinha (1996)

Apresentação e análise da obra


A história contada em Água funda se passa na Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água entre o período da
escravidão e a primeira metade do século XX. Os fatos narrados até o terceiro capítulo se distanciam cinquenta anos
daqueles narrados nos capítulos seguintes. O mundo rural representado na obra está permeado pela cultura caipi-
ra, os trabalhadores da fazenda, os tropeiros, os festejos com moda de viola, as religiões e as crenças (como santos,
benzedeiras, fantasmas, feitiços). A narrativa não acompanha propriamente uma personagem, mas um lugar, onde
algumas personagens constroem suas vidas. O romance é mediado por um narrador que conta as histórias ao leitor
com uma estrutura muito marcante de causo (narrativa oral tradicional no sertão brasileiro) e relato de memória.
A obra é dividida em quinze capítulos que cobrem um longo arco temporal. Por vezes é possível acompanhar em
um ritmo mais compassado alguns eventos e observar bem os seus detalhes; já em outras, o movimento narrativo se
acelera e rapidamente o tempo passa diante dos olhos do leitor.
Inicialmente, é contada a trajetória de sinhá Carolina, dona de Olhos d’Água, uma fazenda localizada no sul de
Minas Gerais, e que se apresenta como o ponto central da trama. Carolina é uma jovem de família abastada, bela,
orgulhosa e autoritária, que se casa contra a vontade dos pais, sofrendo em segredo quando o marido se revela infiel.
Esse sofrimento a transforma em uma mulher fria, que administra sua propriedade de forma autoritária. Após a morte
do marido, dedica-se à criação de sua filha, sinhazinha Gertrudes, cujo temperamento se assemelha muito ao da mãe.
Gertrudes se apaixona pelo filho do capataz e foge com ele, pois sua mãe não aceita o relacionamento entre os
dois. Carolina fica sozinha na fazenda, até a chegada do filho do proprietário da Fazenda Limoeiro, que havia sido
expulso pelo pai. Contrariando a opinião de todos, Carolina o acolhe em sua fazenda como o novo capataz. Tempos
depois, Carolina decide se casar com o rapaz e vender sua propriedade para partir com ele, sem destino certo. No
entanto, é abandonada na estação de trem, encontrando-se mais uma vez sozinha e agora desprovida de recursos
financeiros. Sendo excessivamente orgulhosa para retornar e pedir ajuda aos familiares e conhecidos, ela se entrega
ao próprio destino e, devastada, acaba perdendo a sanidade. Esquece quem foi e tudo o que viveu, regressando à
região da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água como Choquinha, uma pessoa em situação de rua que é motivo
de zombaria para as crianças e de espanto para os adultos.
O outro núcleo da história concentra-se na vida dos habitantes da região da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos
d’Água, que agora se transformou em uma usina de açúcar. Nessa ambientação, as personagens principais são Joca
e Curiango. Curiango é retratada a partir de elementos da natureza, que revelam sua simplicidade e alegria. Joca se
apaixona por ela à primeira vista, em uma festa da família. Após ter alucinações envolvendo Curiango, Joca começa
a vê-la como uma feiticeira e busca curar seus sentimentos com a ajuda de uma benzedeira. Nesse processo, ele
acaba se aproximando de Mariana. No entanto, Curiango não desiste de Joca, e os dois se casam.
Adentrando ao universo mítico explorado na obra, Joca demonstra desprezo pelos poderes da Mãe de Ouro,
entidade do folclore brasileiro responsável por proteger os rios e as montanhas, e como resultado disso, passa a
sofrer surtos dos quais não consegue escapar. Seu primeiro surto ocorre no casamento da personagem Cecília e
depois no noivado com Curiango. Apesar de desfrutar de um período feliz com sua esposa após o casamento, Joca
começa a trabalhar na usina de Olhos d’Água e seus surtos se tornam mais frequentes. Mãe de Ouro chama Joca
para cumprir seu destino trágico e ele se torna um errante. Assim como Joca, outras personagens também encon-
tram seus destinos trágicos. O narrador justifica esses acontecimentos como resultado de uma maldição lançada por
um homem que tentou levar os caboclos para trabalhar no sertão, mas que os tratava de forma cruel.
Em Água funda, as personagens assumem uma postura indiferente, sendo obrigadas apenas a cumprir seu des-
tino, e essa é a filosofia subjacente ao romance: a crença primitiva de que nada na vida é fruto de mera casualidade
e que os eventos são explicados por meio de maldições, feitiços e outras forças misteriosas, sendo o destino a força
suprema.
O narrador da obra se apresenta todo o tempo como um contador de causo – a utilização de narrador, no masculino,
é por convenção, pois não há marcação de gênero na obra. Justamente pelo traço de dar voz à história, seu compro-
misso é manter o leitor atento ao que está sendo contado. Para isso, vários recursos da contação de histórias estão
presentes e precisam ser destacados. O primeiro desses recursos é criar uma espécie de presencialidade no texto, de
corpo, como se fosse uma personagem, e estabelecer o leitor como um interlocutor também presente, como no trecho:
“Pois ele bateu a pé, moço, bateu a pé, com sapicuá de farinha nas costas” ou “Antigamente isto aqui não era assim”.

81

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 81 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Essa mesma corporeidade permite que o narrador manipule o tempo da narrativa com grande agilidade: “Mas
é melhor contar do começo” (GUIMARÃES, 2018, p. 17), e envolva componentes dramáticos da própria contação
do causo: “Que frio! Sentiu? É a morte. Passe, morte, que estou bem forte.” (GUIMARÃES, 2018, p. 18). É como se o
narrador dissesse “falando nisso, tem outra história parecida” e pudesse tomar outro caminho. Todos os capítulos
têm alguma modificação na narrativa linear, seja intercalando uma cena que não necessariamente tem a ver com
o enredo (e que exemplifica algum costume da região), seja recuperando alguma história antiga, de personagens
que não estão em foco naqueles momentos, mas que têm alguma relação, de proximidade, de parentesco ou uma
história semelhante.
Outro recurso importante é que o narrador se apresenta como uma espécie de testemunha da história. Embora
ele não seja uma personagem – e é importante frisar isso, porque se trata de um narrador em terceira pessoa e eles
não têm existência dentro do espaço ficcional, senão como uma perspectiva –, a voz parece acompanhar o leitor
ao longo da história, tecendo comentários de dentro daquele mundo, dando pequenos spoilers de como a história
vai prosseguir e, principalmente, como um conhecedor daqueles costumes. Ao se observar a força do conteúdo
etnográfico e folclórico do livro, é possível compreender a importância da autoridade construída por esse narra-
dor.

Personagens principais
 Sinhá Carolina: primeira personagem apresentada no romance, é proprietária da Fazenda Nossa Senhora dos
Olhos d’Água.

 Sinhazinha Gertrudes: filha de Sinhá Carolina, o centro de sua história é a paixão entre ela e o filho do capataz
Joaquim Dias.

 Seu Inácio Bugre: funcionário da fazenda, protetor de Sinhazinha Gertrudes. Vai confrontar Sinhá Carolina e deixar
a fazenda, voltando somente quando Carolina vai embora. Sua história seguirá à margem das histórias centrais até
o final do romance.

 Joca: um dos protagonistas do romance, trabalhador de origem humilde. Após breve romance com Mariana, casa-se
com Curiango. Com a piora de sua doença, e a maior frequência dos surtos, é internado ao fim da narrativa
e se torna um andarilho.

 Curiango: sobrinha-neta de Sinhá Carolina e neta de Miro, que tinha perdido sua propriedade. É uma mulher comum,
mas com certa nobreza de espírito. Resiste com firmeza à tragédia vivida por Joca.

 Vicente Rosa: amigo e compadre de Joca e Curiango, em diversas passagens ajuda o casal de amigos.

 Pedro Gomes: morador mais antigo da região.

 Antônio Olímpio e Cecília: Antônio é tropeiro; Cecília, sua esposa e dona de casa.

Orientações de Leitura
A primeira orientação que o leitor deve seguir é entender que em Água funda há, inicialmente, a apresentação
de um mundo – o mundo caipira –, e não propriamente a apresentação de uma ou mais personagens, ou mesmo
de um lugar. Assim, o leitor precisa sentir-se à vontade para aproximar-se e distanciar-se das personagens apresen-
tadas e até mesmo perder de vista, relativamente, a Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água, que embora seja o
ambiente principal da narrativa, não é necessariamente seu centro.
Após entender esse ponto, fica mais fácil assimilar que, em meio à apresentação de sinhás, trabalhadores e
tropeiros, entra outras personagens, o que compõe de fato a matéria do romance são as práticas e os costumes
desse povo: a lida dos escravizados, o mutirão, a tropa, a presença do sobrenatural, as venturas e desventuras amo-
rosas características da vida caipira, a moda de viola, entre outros. Há também alguns indícios de transformação do
mundo dessas personagens, como a chegada da Companhia e a instalação da usina, além da internação de Joca
na Santa Casa ao fim do romance. As personagens têm a fibra necessária para emocionar com suas histórias, mas
também existem como representantes daquele mundo e de suas tradições. Essa leitura do romance é muito im-
portante, porque conecta a Ruth Guimarães pesquisadora da matéria popular brasileira à Ruth Guimarães escritora.
No limite, forçando um pouco a leitura, Água funda poderia ser lido como a elaboração da matéria caipira de modo
romanceado.
É comum que se localize o romance como precursor de narrativa, como Cem anos de solidão (1967), de Gabriel
García Márquez (1927-2014), mas é importante notar que, no romance do escritor colombiano, o foco no destino
da família Buendía e da cidade de Macondo é mais claro do que no romance da escritora paulista. Ou seja, é uma
aproximação possível, mas a comparação requer algum cuidado para que se distinga a diferença de princípio entre
as duas obras.

82

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 82 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

A segunda orientação a ser seguida é não perder de vista a figura do narrador, que se comporta como uma
espécie de anfitrião e guia em relação ao universo caipira. Esse narrador se comunica diretamente com o leitor
(normalmente usando a expressão “moço” ou “seu moço”), presentifica a situação de comunicação (chega a co-
mentar que está fazendo frio, por exemplo) e é capaz de ir e vir na sua contação de histórias. Dizendo de outro
modo, há muito da narrativa oral nessa história escrita por Ruth Guimarães, que valoriza fortemente a cultura
oralizada em suas obras. O narrador está imbuído da autoridade de conhecedor privilegiado daquele mundo e
abre as portas desse universo possivelmente exótico ao leitor interessado. Isto é, os objetos da cultura caipira,
eminentemente oral, tendem a circular só dentro dessa cultura. O narrador se coloca na condição de mediador
entre aquele mundo e o presumido mundo letrado do leitor, por isso o acerto na escolha da figura do contador
de histórias ou causos.
É preciso tecer aqui outras duas comparações eloquentes. A primeira, com o clássico da literatura sul-rio-gran-
dense Contos gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto (1865-1916). Nele, na abertura do livro (uma coletânea
de dezenove contos), uma voz apresenta ao leitor a personagem Blau Nunes, o vaqueano, e é Blau quem vai contar
as histórias que se seguem. A sensação de um contador de causo é bem mais sutil, até porque Blau é um vaqueano,
mais compenetrado, sem o caráter mais falante e simpático do narrador de Água funda. A segunda comparação é
com a obra-prima do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), Grande sertão: veredas (1956). Nesse livro, Riobaldo é um
contador de histórias tão eloquente quanto o da obra de Ruth Guimarães, conversando com o leitor, pedindo para
se ajeitar, intervindo quando o leitor faz menção de ir embora, mas o centro de sua narrativa é a própria história, e
não o mundo do sertão, que aparece com exuberância, na linguagem e na trajetória do narrador.

Perguntas orientadoras
1. Qual cultura, característica do mundo rural brasileiro, marca presença no romance? Cite algumas características
dessa cultura representada na obra.
2. Qual o destino de Sinhá Carolina que o leitor conhece somente no desfecho do romance?
3. Como se dá a presença do sobrenatural na narrativa?
4. Em que medida o destino de Joca se parece ou não com o destino de Sinhá Carolina?
5. O que caracteriza o narrador (ou a narradora) de Água funda? Como suas características são importantes para o
tipo de narração que se estabelece?
6. A linguagem do romance se desenvolve em um registro mais oral ou mais escrito? Justifique sua resposta indicando
aspectos ou passagens da obra.

Conteúdos complementares
A primeira leitura sugerida é da obra musical Caipira (2017), da intérprete Mônica Salmaso. Embora a cantora
não seja uma representante tradicional da música caipira, foi realizada uma pesquisa para a produção do álbum,
inclusive com a gravação de músicas de compositores tradicionais do interior paulista e do sul de Minas Gerais.
Recomendam-se especialmente as músicas “Baile Perfumado”, cuja matéria é um amor infortunado, e “Leilão”, que
trata da vida dos escravizados.
Uma segunda leitura complementar é o documentário Terra deu, terra come (2010), dirigido por Rodrigo Siquei-
ra. Trata-se centralmente da história do último cantador de vissungo, que é um canto caboclo, herdado da África,
utilizado para afastar espíritos maus depois que alguém morre. Além disso, o filme mostra também a cultura do
sertanejo, do garimpo e da religião. O documentário é importante porque é possível conhecer muito de perto a
estrutura do causo e a figura do contador de causo, auxiliando no entendimento do narrador de Água funda.
Por fim, recomenda-se a leitura de um dos mais importantes estudos sobre a cultura caipira: Os parceiros do Rio
Bonito (1964), tese escrita por Antonio Candido em seus estudos de sociologia. A pesquisa organiza e sintetiza diver-
sos aspectos da vida caipira que podem ser observados no romance. Antonio Candido sublinha a vida de flagrante
carência que os trabalhadores rurais levam, submetidos a uma relação espoliadora com a casa-grande ou marcada
pela pobreza de subsistência, no caso de pequenos proprietários. Essa carência é relativizada por estratégias comu-
nitárias, como o mutirão; por uma religião intensamente devota, permeada por benzedeiras, assombrações; e por
um código de conduta muito rigoroso, que em alguns momentos descamba para a violência. Em certa medida, mui-
to do que se encontra aos moldes da sociologia no livro de Antonio Candido é representado de maneira estética,
ficcional e romanceada em Água funda.

83

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 83 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Ensaio
As escolhas de linguagem
Pode parecer algo simples, mas o registro do tom da voz do outro é sempre um desafio em uma sociedade tão
dividida. Como os letrados são a minoria da população até 1950, não são os iletrados que escrevem os romances
sobre a própria cultura, caracteristicamente oral, mas sempre alguém de uma cultura outra. Levando em conside-
ração que até o final do século XIX havia escravidão no Brasil, a distância entre a população letrada e o outro (o
escravizado, o homem do campo etc.) se torna ainda mais marcante. Por mais que Ruth Guimarães se reconhecesse
como caipira, seu progressivo letramento a afastava do mundo representado em seu livro.
Antes de revelar como outros autores resolveram uma distância parecida, cabe explicitar um pouco a organiza-
ção das vozes em Água funda. A primeira voz é a do narrador. O romance é narrado em terceira pessoa, mas a voz,
às vezes, se comporta como um habitante daquele lugar, que conhece as histórias e as reconta. Uma segunda voz,
ainda pertencente à voz do narrador, são os ditados, mas não é propriamente uma voz dele; é uma voz da comuni-
dade, é a compilação de uma sabedoria que ressoa pela voz das pessoas daquele lugar (CANDIDO, 1972). Há uma
terceira voz, que é quando o narrador recua e conta de maneira quase objetiva a história; nesses momentos, ele se
despersonaliza e foca em narrar os fatos. Também é possível aproximar-se dessa objetividade quando as passagens
estão centradas nos diálogos das personagens daquela comunidade. Por fim, uma quarta voz, sempre marcada
entre aspas, é quando uma personagem faz um longo monólogo, falado ou pensado, às vistas do leitor; um recurso
que se intensifica do meio para o final do livro.
A linguagem da obra, portanto, é uma combinação dessas quatro vozes. Às vezes o narrador toma a frente; às
vezes ele recua e as personagens se sobressaem. Às vezes elas tomam a palavra por algum tempo, uma ou duas
páginas; às vezes os ditados aparecem como se cristalizando uma sabedoria coletiva e não pessoal pela voz do nar-
rador. Ao fundo dessas vozes, está uma consciência letrada que não pertence àquele modo de viver (caipira) e fez
várias escolhas para conseguir conceber essa linguagem da obra.
Quando se compara a linguagem escolhida por Valdomiro Silveira (1873-1941) na obra Lereias (1945), ficam mais
claras as escolhas feitas por Ruth Guimarães. Observe a seguir uma passagem do conto “Força escondida”:
Eu tuda a vida fui um home’ quieto, como vassuncê bem sabe; nunca deixei de não trabucar a minha obrigação
nas horas certas; respeitei sempre o alheio; cuida da minha casa c’o maior carinho: e quis o quanto se pode querer à
Ogusta e ao Belisário.
(SILVEIRA, 2007, p. 111)

Pensando na linguagem de Água funda, fica patente que Ruth Guimarães escolheu não estilizar o dialeto caipira
na linguagem. Em Valdomiro Silveira, as estilizações acontecem em algumas palavras (“tuda”, “home’”, “vassuncê”
e “c’o”), marcando uma diferença entre o registro caipira e o utilizado na cidade. Outra escolha a ser considerada é
a de João Simões Lopes Neto em Contos gauchescos. Observe:
Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim
varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
(LOPES NETO, 2008, p. 23)

Nesse caso, não há uma marcação no modo como o gaúcho fala, mas há uma ênfase no vocabulário próprio do
outro (“tropear”, “guaiaca”, “me ficar”, “abombado” e “troteada”), enquanto no primeiro caso essa marcação apa-
recia somente com “trabucar”. Do mesmo modo, há a palavra do vaqueano Blau Nunes, mas a marca da diferença
se dá na linguagem.
Todas essas ponderações servem para mostrar que a organização da linguagem do livro de Ruth Guimarães parece
convergir para uma aproximação entre o leitor urbano (pressuposto nos anos 1940) e a cultura caipira. As pessoas e as
vozes dos arredores da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água não são apresentadas ao leitor como algo distante,
algo diferente o bastante para ser tomado como estranho. Pelo contrário, o esforço da obra é por aproximação, como
se argumentasse que, apesar das diferenças, o urbano e o caipira pertencem a uma unidade comum. Há algum voca-
bulário próprio do mundo caipira, e que pode causar estranhamento, mas não acontece como em Valdomiro Silveira e
João Simões Lopes Neto, em que essas particularidades marcam a existência de um outro.
Essa hipótese, como leitura da forma do livro, vai ao encontro da leitura que Ruth Guimarães faz de seu romance,
quanto a seu sentido mais profundo. A autora diz que a metáfora da “água funda” diz respeito a como a vida de
cada pessoa é profunda e as histórias são como canoas que passam e formam somente linhas na superfície. A autora
acredita que a beleza do livro consiste na riqueza de cada vida concebida naquelas histórias.

84

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 84 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

A terra dos mil povos


Kaká Werá Jecupé

Contexto histórico
A obra A terra dos mil povos teve sua 1a edição publicada em 1998, momento em que as discussões e as ações
relacionadas aos direitos dos povos indígenas estavam avançando no cenário nacional. Para fortalecer a representa-
tividades desses povos, já haviam sido criadas a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), em 1967, e a União
das Nações Indígenas (UNI), em 1980. Com a Constituição de 1988, os indígenas foram oficialmente reconhecidos
como cidadãos plenos, com direitos originários sobre suas terras. No entanto, apesar dos avanços nesse sentido,
esses povos continuaram, e continuam, enfrentando desafios na luta pela sobrevivência e pela conquista de espaço
na sociedade, devido, entre outros motivos, à persistência de estereótipos que afetam suas realidades.
A sequência de eventos descrita é traçada em uma linha do tempo na obra de Kaká Werá, abrangendo o período
que vai de 1 500 até os dias atuais. Ao longo das últimas décadas, algumas conquistas se mesclam a tragédias, como
massacres, exploração ilegal de terras indígenas, missões de catequização e biopirataria. Em diversos aspectos,
o autor mostra que a humanidade não avançou tanto quanto se esperava e que um passado repleto de violência
permeia o presente. Em outras palavras, a própria noção de contexto histórico é abalada, tornando igualmente re-
levante falar tanto do passado do Brasil quanto do seu presente.
Durante o período de publicação da obra, o país passava por mudanças econômicas e políticas relacionadas ao
processo de abertura da economia e à adoção de medidas de liberalização, como a redução de barreiras comerciais
e a privatização de empresas estatais. É importante destacar que essas medidas tiveram impactos no estrato social,
reforçando a vulnerabilidade das camadas sociais menos privilegiadas, como indígenas e negros. Além disso, devi-
do ao estilo de vida ocidental, cada vez mais voltado ao consumo e à exploração de recursos naturais, uma nova era
geológica surgiu (denominada, no final da década de 1990, Antropoceno), despertando novas preocupações, como
a percepção de que as ações humanas poderiam levar ao fim do mundo. Na obra A terra dos mil povos, é possível
notar uma perspectiva indígena que contrasta com o estilo de vida consumista contemporâneo. O autor busca va-
lorizar os saberes indígenas e a relação harmoniosa entre os seres humanos e a natureza.

Vida e obra
Kaká Werá Jecupé nasceu em fevereiro de 1964, na cidade de São Paulo. Filho de pais tapuias, povo de tradi-
ção nômade, durante sua infância se distanciou das tradições indígenas e recebeu o nome de Carlos Alberto dos
Santos. Já nos anos 1980, viveu na aldeia Morro da Saudade, com o povo guarani, tendo sido então nomeado Werá
Jecupé pelo cacique da tribo. Além disso, o autor se reconhece como txucarramãe, um guerreiro sem armas. Duran-
te a mesma década, peregrinou por várias aldeias guaranis em busca de aprendizado e autoconhecimento. Foi na
mesma aldeia onde foi batizado que ele participou de um projeto de resgate cultural com Karaí Mirim e o cacique
Guyrá Pepó, entrando em contato com livros como Aspectos fundamentais da cultura Guarani, do antropólogo e
pesquisador Egon Schaden (1913-1991), e Ayvu Rapyta (ou Os fundamentos da linguagem humana), do etnólogo
León Cadogan (1899-1973).
Kaká Werá já compartilhou elementos da cultura indígena em diversos lugares, como no Museu do Universo
(no Rio de Janeiro), na Universidade Católica de Nossa Senhora de Assunção (no Paraguai) e na Universidade de
Oxford (na Inglaterra). Em relação às crenças indígenas, o autor revelou uma profecia sobre o renascimento do cír-
culo do novo tempo Tupã no coração estrangeiro e a necessidade de divulgação dos ensinamentos sagrados. Em
1994, fundou a Nova Tribo, a primeira editora indígena do Brasil, que posteriormente se transformou no Instituto
Arapoty, com o objetivo de difundir as tradições dos povos originários brasileiros. Kaká Werá também foi o primeiro
indígena a se candidatar ao Senado no Brasil. Desde a publicação de A terra dos mil povos, escreveu vários outros
livros, incluindo uma coletânea de cantos tradicionais com tradução para o português e outra de fábulas indígenas.

85

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 85 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

Principais obras
 A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio (1998)

 Tupã Tenondé: a criação do universo, da Terra e do homem segundo a tradição oral guarani (2001)

 Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus (2002)

 As fabulosas fábulas de Iauaretê (2007)

 O trovão e o vento: um caminho de evolução pelo xamanismo tupi-guarani (2016)

 A águia e o colibri. Carlos Castañeda e ancestralidade tupi-guarani: trilhas com coração (2019), (co-autoria de
Roberto Crema)

 Menino trovão (2022)

Apresentação e análise da obra


O livro A terra dos mil povos está dividido em quatro partes, cada uma formada por capítulos curtos, geralmente
de uma a duas páginas. A escrita de Kaká Werá possui como característica o modo de ensinamento oral, uma tra-
dição dos povos indígenas. Suas narrativas são breves, mas demonstram profundidade no tratamento dos assuntos
abordados. Ao começar a leitura da obra, logo na seção de agradecimentos, é possível traçar algumas distinções
ao compará-la com a leitura de origem europeia, com a qual o Ocidente está mais familiarizado: nestas publicações,
os agradecimentos do autor normalmente são uma formalidade; em A terra dos mil povos, no entanto, o autor ex-
pressa gratidão não somente a pessoas, mas também à tribo Yvy Mora Ey, à Lua, ao Sol, ao Conselho das Estrelas,
aos quatro cantos sagrados e às árvores sacrificadas para que o livro pudesse ser publicado. Esta abordagem cria
uma sensação de acolhimento e destaca a importância da coletividade em sua escrita, à semelhança de um rapper
que dá um salve aos seus.
A seção de apresentação do autor também se destaca em relação às das obras mais convencionais. Ao contrário
do que geralmente se encontra nessa parte, em A terra dos mil povos não é feito apenas um resumo da carreira do au-
tor, mas uma narrativa sobre sua trajetória de vida e sua relação com a cultura e as tradições indígenas. Antes de apre-
sentar uma breve autobiografia, há um esclarecimento sobre como a cultura guarani encara a atribuição de nomes:

Kaká é um apelido, um escudo. De acordo com nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa;
o poder de uma palavra na boca é o mesmo de uma flecha no arco, e por isso às vezes usamos apelidos como patuás.
[…]
Werá Jecupé é meu tom, ou seja, meu espírito nomeado. […]
Para a cultura guarani […] o ato da nomeação é a manifestação da parte céu de um ser na parte terra. O céu é o
mundo espiritual, a raiz de todos nós. A terra é a contraparte material do espírito […].
(JECUPÉ, 1998, p. 11)

Antes de adentrar no conteúdo principal de sua obra, o autor dedica uma seção para discorrer sobre a denomi-
nação índio. Kaká Werá explica que essa designação foi uma imposição externa construída por grupos dominantes,
mas que ele não se desvincula totalmente dela. Em seguida, ele explora o significado de ser um índio de fato. Se-
gundo o autor, os indígenas passam por cerimônias de aprendizado do conhecimento ancestral, começando pela
nomeação das coisas, pois cada palavra possui um espírito.

[...] Espírito, para o índio, é silêncio e som. O silêncio-som possui um ritmo, um tom, cujo corpo é a cor [...] Antes de
existir a palavra “índio” para designar todos os povos indígenas, já havia o espírito índio espalhado em centenas de
tons. Os tons se dividem por afinidade, formando clãs, que formam tribos, que habitam aldeias, constituindo nações. [...]
(JECUPÉ, 1998, p. 13)

O índio mais antigo do Brasil se autodenomina Tupy, que na língua sagrada significa “o som do pé” (tu = som;
py = pé). Dessa forma, ser índio seria uma qualidade de espírito posta em harmonia de forma. Contudo, todos os
elementos entoam e, para existir uma harmonia, entidades da natureza trabalham incessantemente dirigidas por ou-
tras entidades anciãs chamadas de Nanderus, pela própria Mãe Terra e por antigos antepassados que se tornaram
estrelas. A cultura indígena reverencia seus ancestrais por meio de danças, cerimônias e ritos, expressando gratidão
pelos ensinamentos recebidos.

86

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 86 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

As culturas e as tradições indígenas estão ligadas intrinsecamente à natureza. De acordo com o Censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no Brasil 305 etnias indígenas. Estes povos são orga-
nizados em três grandes tradições: do Sol, da Lua e do Sonho. Ao atravessar três estações cósmicas, eles agora es-
tão na quarta estação, conhecida como Tradição da Grande Mãe, na qual buscam a síntese das tradições anteriores.
Na primeira parte do livro, que tem o mesmo nome da obra, “A terra dos mil povos”, Kaká Werá apresenta
informações sobre as culturas indígenas que habitaram e ainda habitam o solo brasileiro. O autor aborda essas in-
formações de forma abrangente, destacando o que essas culturas têm em comum, ao mesmo tempo que comenta
particularidades de algumas delas. Kaká Werá explica que os Filhos do Sol, da Lua e do Sonho correspondem aos
tupinambá, tupi-guarani e tapuia, respectivamente. Em um passado remoto, as tradições eram uma só, ensinadas
pelos anciãos da raça vermelha como Ayvu Rapyta, que pode ser traduzido como “fundamentos do ser” ou “fun-
damentos da palavra habitada”.
Os anciãos da raça vermelha detinham uma ciência chamada Arandu Arakuaa, que trata das leis dos ciclos da
terra, do céu e da humanidade. Existem quatro ciclos da natureza cósmica, cada um regido por um Nande Ru, divin-
dades que comandam os quatro cantos do espaço e os principais elementos naturais. O primeiro ciclo foi regido por
Jakairá; o segundo, por Karai Ru Ete; o terceiro, por Tupã; e o quarto e atual ciclo é governado por Namandu, a Gran-
de Unidade. Durante o primeiro ciclo, surgiram a era das Tribos-Pássaros e a dos Povos Arco-Íris. No segundo ciclo,
Karai Ru Ete introduziu a agricultura para o desenvolvimento do Homem-Lua e da Mulher-Sol, dando origem à Tribo
Vermelha. O terceiro ciclo foi o mais desafiador para a Mãe Terra, uma vez que a humanidade quase se extinguiu.
Mais adiante, Kaká Werá destaca novamente a importância da linguagem, especialmente na forma oral, para os
povos indígenas. Segundo o autor, os tubuguaçu, ancestrais dos tupinambá e dos tupi-guarani, concebem o espírito
como música e o corpo como uma flauta. Na visão indígena, existem sons considerados essenciais, que formam os
espíritos e são conhecidos pela civilização não indígena como vogais. Dos sete tons mencionados, quatro estão re-
lacionados aos elementos e três à dimensão espiritual do ser. Esses tons são: ÿ, u, o, a, e, i, além do “som insonoro”,
que é pronunciado com os sons mb. Em ordem, os sons de ÿ a i estão localizados na base da coluna, no umbigo, no
plexo solar (região do abdômen associada ao centro de poder pessoal e autenticidade), no coração, na garganta e
na cabeça. Essa perspectiva reforça a profunda conexão entre a linguagem, a espiritualidade e o corpo humano na
visão dos povos indígenas.
Aprofundando-se no tema da memória cultural e dos ancestrais nas culturas indígenas, Kaká Werá ressalta no-
vamente que essa memória é transmitida principalmente pelo ensinamento oral, mas também é expressa por meio
de desenhos em argila, cestaria, paredes e até mesmo no corpo. De acordo com a cosmologia indígena, a origem
da humanidade está intrinsecamente ligada à formação da Terra e ao Tempo. A formação da Terra está associada
ao coração do Sol, da Lua e das Estrelas, seres que fazem parte do grande conselho dos ancestrais, conhecidos
como trovões criadores, anciões arco-íris ou pássaros guerreiros. Cada nação possui a própria ancestralidade dentro
do reino da natureza. Por exemplo, os tupinambá descendem do Sol, o que os torna mais expansivos, enquanto os
tupi-guarani descendem da Lua e praticam o culto à Mãe Terra. Os ancestrais habitam o mundo espiritual, que é
dividido em quatro moradas, abaixo das quais está a Terra sem Males, o local de residência dos antepassados tupis,
tupis-guaranis e tapuias.
Kaká Werá também aborda a história dos povos indígenas do Brasil aproximando-se da perspectiva antropo-
lógica ao fornecer informações e datas aproximadas sobre a trajetória dessas comunidades. Os primeiros povos a
habitar o território brasileiro estiveram presentes entre 16 mil e 14 mil anos atrás, e suas práticas foram descobertas
por meio de vestígios como fogueiras, artefatos de cerâmica e marcas escritas. Na região de Lagoa Santa, no estado
de Minas Gerais, foi identificado um sítio arqueológico que evidencia a presença de um grupo humano entre 11 mil
e 7 mil anos atrás, antecedendo os indígenas da etnia puri. Além disso, encontram-se vestígios de povos que habi-
taram os campos do sul do país há aproximadamente 6 mil anos, provavelmente caçadores que contribuíram para
disseminação das boleadeiras, bem como do arco e flecha. O autor também menciona outros fatos históricos, como:
 nas áreas litorâneas do atual Brasil, havia povos que dependiam dos recursos marinhos e deixaram enormes montes
de conchas, conhecidos como sambaquis;
 foram encontrados vestígios da prática da agricultura no território brasileiro datados de aproximadamente 4 mil anos;
 por volta de 3,5 mil anos atrás, o povo ananatuba (considerado o mais antigo povo marajoara) habitava a região da
foz do Rio Amazonas, na Ilha de Marajó;
 em torno de 1,8 mil anos atrás, desenvolveu-se a cultura do povo marajoara, uma importante civilização que cons-
truiu montes artificiais com aterramento chamados tesos;
 entre 3 mil e 2 mil anos atrás, existia a cultura de Itararé, que se alimentava principalmente de pinhões, cultivava
milho e praticava a caça. Suas habitações tinham até 22 metros de diâmetro.
A próxima seção do livro recebe o título de “A invenção do tempo”. Como o nome sugere, Kaká Werá busca
destacar os eventos que ocorreram após a chegada dos portugueses no Brasil, explorando suas ações colonizado-
ras e as práticas indígenas daquela época. Antes de começar, no entanto, o autor tece comentários sobre a visita de
outros povos às terras brasileiras no período anterior à chegada dos portugueses, mencionando egípcios, cananeus,
tártaros, babilônios, fenícios, hititas e hebreus. Kaká Werá relata também que, há cerca de 3 mil anos, ocorreu uma

87

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 87 31/07/2023 08:55:44


Análise de Obras – UFRGS

expansão dos povos tupi pelo Brasil. Eles passaram a dominar as demais tribos, doutrinando-as e escravizando-as
para disseminar sua cultura e seus costumes, considerados mais avançados do que os das outras tribos, às quais eles
genericamente chamavam de tapuia, denominação que pode ser traduzida como “bárbaro”.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a língua tupi já dominava boa parte do território e, a fim de facilitar
a comunicação com os demais povos, os padres jesuítas organizaram a gramática tupi e reuniram os dialetos dos
demais povos indígenas para compor uma língua artificial que ficou conhecida como nheengatu, cuja tradução é
“língua boa”. Com o tempo, a língua foi disseminada e virou uma espécie de língua geral, sendo proibida em 1757
por ordem real, uma vez que a cultura tupi se tornava nacionalmente reconhecida. Mesmo com as investidas que vi-
savam tornar a cultura portuguesa totalmente predominante, ainda hoje há influências do tupi em diversas palavras,
além da presença de suas fábulas, suas lendas e seus mitos na cultura brasileira.
Em relação ao processo de colonização, Kaká Werá explica que este teve início nas regiões da Bahia, de Pernam-
buco e de Cabo Frio (município do estado do Rio de Janeiro), locais onde inicialmente foram estabelecidas feitorias,
as quais tinham o objetivo de obter recursos para a corte portuguesa, como o pau-brasil, por meio do comércio ou
de trocas com os indígenas. No entanto, com a chegada, em 1531, do militar português Martim Afonso de Souza, o
sistema passou a ser dividido em capitanias hereditárias. Os colonos nessas capitanias hereditárias se dedicavam
às plantações de cana-de-açúcar e de algodão. Além disso, tiveram início expedições conhecidas como bandeiras,
com a finalidade de apreender indígenas e escravizá-los para posteriormente exportá-los. Os bandeirantes, como
ficaram conhecidos os responsáveis por essas expedições, eram muitas vezes indígenas aliciados ou mestiços (filhos
de pai português e mãe indígena). Os colonos tentaram se aproveitar das rivalidades entre diferentes tribos para
facilitar a captura de indígenas, mas não foram bem-sucedidos. A partir de 1549, iniciaram-se as missões jesuíticas,
cuja principal tarefa era a catequização dos indígenas e a substituição de suas culturas pela cultura portuguesa.
Kaká Werá explica que, no início dos tempos, os seres-espíritos da natureza e os antepassados eram visíveis,
e todos os seres humanos podiam se comunicar com eles. No entanto, com o passar do tempo, esses mundos se
distanciaram, e a conexão entre eles passou a ocorrer apenas por meio de sonhos. Assim, somente algumas pessoas
conseguiram manter essa ligação, atuando como ponte entre os dois mundos: essas pessoas eram os pajés. Na épo-
ca de Pedro Álvares Cabral, havia diversos tipos de pajés. A maioria deles já estava distante das antigas tradições,
enquanto outros utilizavam a memória cultural para estabelecer relações de poder. Havia aqueles que interpretavam
de forma distorcida as visões que tinham. Contudo, também existiam pajés silenciosos e reclusos, que viviam afasta-
dos, mas estavam dispostos a ensinar a arte de caminhar pela noite quando solicitados. Essa época marcou o início
da grande noite da Terra, e os descendentes de Tupy passaram a se afastar da tradição.
O povo xavante, considerado parte dos chamados tapuia, foi aquele que conseguiu preservar de forma mais
significativa a Tradição do Sonho. Kaká Werá relata que o avô do futuro cacique teve um sonho sobre a pacificação
dos europeus justamente quando o tenente José Rodrigues Freire estava se preparando para emboscar e capturar
o povo xavante. No entanto, devido a uma queda de cavalo, o tenente passou o comando ao alferes Miguel de
Arruda e Sá, que prosseguiu com a perseguição aos indígenas com uma tropa de 98 soldados. Mas os soldados não
conseguiram encontrar a aldeia xavante, que estava protegida pelo sonho e pela magia dos pajés. Somente com a
ajuda dos caiapó, que haviam sido catequizados, os soldados conseguiram localizar os xavante, o que levou a tribo
a mudar de região. Ao longo do século XVIII, as terras indígenas continuaram a ser saqueadas e cada vez mais povos
foram escravizados.
Kaká Werá aborda o fim do Império e o início da República, destacando que os pajés continuaram a ter seus
sonhos e que a relação com os descendentes europeus passou a ser menos violenta, embora ainda houvesse um
interesse em aculturar os povos nativos. Surgiram ideias um pouco menos violentas em relação aos povos indígenas.
No entanto, pacificar a presença branca era um desafio, e, na metade do século XX, iniciou-se mais um período de
exploração abusiva da terra e de catequização, embora de forma menos violenta do que antes. Nesse contexto, foram
estabelecidos espaços de preservação, como o Parque Nacional do Xingu, na Amazônia, e partes de Mato Grosso.
Anos mais tarde, um pajé yanomami teve um sonho no qual a Terra tinha buracos no céu, que seriam posteriormente
descobertos pela ciência ocidental como “rompimento na camada de ozônio”. A partir de uma perspectiva mais
recente, os povos nativos começaram a ser reconhecidos pelos estudiosos como culturas distintas, com as próprias
contribuições para a humanidade.
No trecho seguinte do livro, são apresentados alguns mitos indígenas que retratam o início do mundo. A escrita
foi cuidadosamente adaptada para refletir as visões das diferentes culturas. De acordo com o povo dessâna, por
exemplo, uma mulher surgiu quando não havia nada e pensou o mundo futuro. Para os tupi-guarani, o Criador, cujo
coração é o Sol, soprou seu cachimbo sagrado e, a partir da fumaça, fez-se a Mãe Terra. Os xavante acreditam que
dois homens foram colocados na Terra por meio do arco-íris, e a Voz do Alto criou mulheres para eles. Por sua vez,
os yanomami possuem uma narrativa de criação poética, de difícil parafraseio. Leia um trecho a seguir:

88

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 88 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Omam — O Pai Grande —


Teperesi — pai, filha — que ainda não
A mulher grande, bonita que ainda não
Na cachoeira moravam.
A roça. A roça imensa.
A tainha, a mandioca, a banana pacovi, a tainha.
O Pai Grande enormes plantas criou,
Ofereceu roça,
Tanga
Tanga bonita
O pai vem chegando, mudas de bananeiras pacovi trazendo
Anzol pescou Omam pelos pés na casa.
(JECUPÉ, 1998, p. 67)

A seção seguinte do livro, intitulada “Pequena síntese cronológica da história indígena brasileira”, apresenta uma
linha do tempo que abrange desde a chegada dos portugueses até 1998, ano em que o livro foi publicado. Essa
seção tem como objetivo apresentar os acontecimentos da história indígena brasileira, tanto os positivos quanto
os negativos, de maneira direta, focando na narrativa dos fatos em vez de realizar uma análise aprofundada. Kaká Werá
oferece uma breve explicação de que, para os povos indígenas, o tempo, conhecido pelos xavante como Wahutedew’á,
é uma divindade sagrada responsável por manter a Lei dos Ciclos, que engloba as estações da Terra e do céu.
A partir da chegada dos portugueses, a contagem do tempo passou a ser feita de forma diferente e é nesse momen-
to que a linha do tempo do livro se inicia. Veja alguns momentos importantes a seguir.
 No século XVI: as primeiras feitorias, em 1501; a proclamação dos indígenas como criaturas de Deus iguais a todos
pelo papa, em 1537; as reações dos tupi à conquista, em 1540; e a dizimação de 70 mil indígenas na Bahia por
epidemias de fome e varíola, em 1563.

 No século XVII: o reconhecimento da liberdade dos indígenas, exceto dos prisioneiros de guerra, pela legislação
portuguesa, em 1611; a derrota de bandeirantes pelos guarani, em 1639; o extermínio dos povos paiaia por ban-
deirantes, em 1671; o início do ciclo do ouro, em 1674; o extermínio dos tremembé, em 1679; e o tratado de paz
dos janduí com a coroa portuguesa, em 1692.

 No século XVIII: o extermínio de populações indígenas do Rio das Velhas, em 1701; a reintrodução da escravização
dos indígenas, em 1718; a guerra de extermínio dos timbira do Maranhão, em 1727; a proibição do cativeiro indí-
gena pelo papa, em 1744; o ataque aos guarani pelo exército luso-espanhol, em 1750; e a extinção do cativeiro
indígena legal, em 1755.

 No século XIX: a reedição da escravização por “guerra justa”, em 1808; a revogação da escravização por “guerra justa”,
em 1831; a Cabanagem, em 1835; e a autorização da catequização de indígenas por padres capuchinhos, em 1843.

 No século XX: a fundação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910; a pacificação de diversas tribos, entre 1912 e
1960; a extinção do Serviço de Proteção ao Índio e a criação da Funai, em 1967; a previsão em lei da demarcação de
terras indígenas, em 1973; a fundação da UNI, em 1980; a resistência dos pataxó hã hã hãe à expulsão e a eleição
de Mário Juruna à Câmara Federal, em 1982; o assassinato de 14 ticunas do Alto Solimões, em 1988; a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992; e a denúncia da presença de missões
americanas catequizadoras e aliciadoras de povos indígenas na Amazônia pelo Instituto Nova Tribo, em 1998.
A última parte do livro, intitulada “Contribuição dos filhos da terra à humanidade”, destaca o aspecto antropo-
lógico da história indígena. Kaká Werá ressalta a importância da contribuição dos povos indígenas para a cultura
brasileira, incluindo o desenvolvimento de biotecnologias que promovem o equilíbrio da natureza. Um exemplo
citado é a técnica de cultivo do solo desenvolvida pelos caiapó, na qual eles identificam depressões no terreno e
as preenchem com palha, cupinzeiros, pedaços de formigueiro e organismos vivos, como cupins e formigas. Além
disso, muitas das principais plantas utilizadas na dieta brasileira e na indústria foram descobertas e domesticadas
pelos indígenas das Américas, como a batata-inglesa, o milho, a mandioca, o mamão e o cacau.
Os povos nativos também são responsáveis por diversas descobertas e por conhecimentos no campo da me-
dicina, uma vez que muitos medicamentos utilizados atualmente têm origem nas plantas curativas indígenas. Os
povos originários já conheciam corantes, plantas estimulantes como o guaraná e o tabaco, além de plantas usadas
na confecção de tecidos e vassouras, como o algodão e a piaçava. No que diz respeito à culinária, receitas de igua-
rias como pamonha, cuscuz e canjica são de origem indígena e fazem parte da diversidade gastronômica brasileira.
Além disso, os indígenas também possuem práticas e conhecimentos relacionados aos cuidados com a saúde, como
os banhos frequentes e a prática de exercícios moderados desde a infância. O jejum é utilizado como uma forma de
higiene interna e o consumo de carne bem assada é considerado importante para eliminar toxinas.

89

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 89 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

A filosofia guarani ensina importantes princípios de autodomínio, distinguindo entre alimentação adequada e
excessos. Os guarani defendem uma abordagem não punitiva em relação à criação dos filhos e a boa convivência a
fim de evitar combates. Vem do povo guarani a utilização de veneno de cobra no tratamento de picadas, conheci-
mento que é fundamental para o desenvolvimento do soro antiofídico. Por fim, a língua tupi deixou um legado no
vocabulário do português brasileiro, com a incorporação de palavras como peteca, amendoim, maracujá, caatinga,
pipoca, samambaia, pitanga e caipira. Essas palavras são apenas algumas contribuições linguísticas dos povos in-
dígenas para a cultura brasileira. Ao final do livro de Kaká Werá, há uma lista dos povos indígenas contemporâneos
que habitam o Brasil, com informações sobre a língua que falam e a região em que estão localizados.

Orientações de leitura
É possível questionar se o livro A terra dos mil povos pode ser categorizado como literatura, uma vez que em várias
ocasiões ele se aproxima da história e da antropologia. No entanto, é importante lembrar que já se tornou comum
considerar a Carta a el-Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil (de Pero Vaz de Caminha) como literatura de
informação. Nesse sentido, A terra dos mil povos poderia ser visto como uma espécie de “anti-carta de Caminha”,
pois apresenta uma visão indígena da história brasileira e comenta o descobrimento sob essa perspectiva. Essa
abordagem já seria suficiente para justificar a inclusão de A terra dos mil povos em uma lista de obras literárias.
Além do enfoque histórico e antropológico, o livro de Kaká Werá possui elementos estéticos que o tornam ainda
mais literário do que a própria carta, que foi publicada somente em 1817 e passou a ser considerada literária somen-
te muitos anos depois de sua produção. O autor demonstra um interesse em divulgar narrativas sobre a criação do
mundo, por exemplo, embora de forma um pouco menos condensada. Segundo a compreensão de Antonio Candi-
do sobre o que é literatura, o livro de Kaká Werá certamente estaria incluso nessa definição, mesmo que a ideia de
“grandes civilizações” utilizada pelo autor possa não ter muita validade atualmente, assim como sua visão do que é
mais ou menos complexo:
Chamarei de literatura, de maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático
em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até
as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.
(CANDIDO, 2004, p. 174)

Além da discussão sobre a classificação da obra como literatura ou não, é importante dar atenção tanto à forma
quanto ao conteúdo do livro. Ao considerá-la como literatura, é necessário adotar uma abordagem que leve em
conta tanto a linguagem e a estrutura utilizada quanto as informações apresentadas. Somente por meio do diálogo
entre esses dois aspectos é possível compreender o potencial de significados de A terra dos mil povos.

Perguntas orientadoras
1. Como a importância da ideia de coletividade, que se nota nos agradecimentos do livro, toma forma no restante de
seu conteúdo?
2. Qual a importância social e histórica de livros como A terra dos mil povos?
3. O que você entendia por índio antes de ter contato com o conteúdo do livro e o que entende agora?
4. O que faz uma narração poética, em versos, no meio do livro de Kaká Werá Jecupé?
5. A cultura indígena é majoritariamente transmitida oralmente. Que significado tem a publicação de um livro a partir
dela? Quem é seu público-alvo? Quem pode se beneficiar desse livro e como?
6. Em vistas do Antropoceno, a era geológica marcada pela crise ecológica, o que se pode aprender com o livro de
Kaká Werá Jecupé?

Conteúdos complementares
Livros
 KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
 MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros. São Paulo: Global, 2004.

Filmes
 MARTÍRIO. Direção: Tatiana Almeida, Ernesto de Carvalho e Vincent Carelli. Brasil, 2016. Streaming (160min)
 O ABRAÇO da serpente. Direção: Ciro Guerra. Brasil, 2016. Streaming (2h04min)
 A FEBRE. Direção: Maya Da-Rin. Brasil, 2020. Streaming (1h38min)

90

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 90 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Ensaio
Sobre saídas possíveis
É preciso destacar a importância de ter cautela ao abordar o conceito de índio. Como enfatizado por Kaká Werá,
essa é uma ideia construída pelos europeus e, embora o termo seja amplamente utilizado, é crucial estar ciente de
que não existe apenas uma forma de ser indígena, mas sim uma diversidade de povos indígenas. O livro A terra dos
mil povos não se limita a expressar a visão de apenas um povo. Diante dos problemas ambientais e da crescente
radicalização do modo de vida ocidental, torna-se necessário coletar o conhecimento e as práticas indígenas, a
fim de sobreviver e nutrir projetos que se contrapõem a essa tendência, adiando, possivelmente, o que pode ser
chamado de fim do mundo. Resgatando a perspectiva de Antropoceno, conforme descrito pelo historiador indiano
Dipesh Chakrabarty:

O Antropoceno exige que pensemos em duas escalas de tempo vastamente diferentes que a história da Terra e do
mundo respectivamente envolvem: as dezenas de milhares de anos que uma era geológica geralmente abrange (o Ho-
loceno parece ter sido uma era particularmente curta se a tese do Antropoceno estiver correta) contra os quinhentos
anos no máximo que se pode dizer que constituem a história do capitalismo.
(CHAKRABARTY, 2021, p. 156, tradução livre)

O nome Capitaloceno foi proposto justamente porque, para alguns autores, atribuir a culpa das mudanças cli-
máticas ao ser humano como um todo seria um equívoco. Em vez disso, a culpa recairia especificamente nas conse-
quências de um consumo desenfreado. Essa visão talvez ajude a compreender melhor a divisão tão marcante que
existe entre o período pré e pós “descobrimento” do Brasil em A terra dos mil povos. De certa forma, esse momento
marca o fim de um mundo. Certamente, também evidencia o início de outro mundo, de outra forma de encarar o
tempo, entre outros aspectos, mas, acima de tudo, o fim de um mundo. Isso não se deve apenas às epidemias que
dizimaram os povos indígenas devido ao contato com os colonizadores nem apenas ao fato de muitos terem sido
subjugados como escravizados. Tudo isso faz parte da questão, mas o ano de 1500 marca o início, em termos de
Brasil, de uma era na qual o mundo começa efetivamente a acabar. Embora isso não seja expresso de maneira tão
clara por Kaká Werá, essa visão parece estar respaldada por seu livro.
Diante disso, as ideias presentes no livro parecem constituir um reservatório de conhecimento que, nos tempos
contemporâneos, possui uma relevância imediata. Caso as vozes de pessoas como Kaká Werá Jecupé não sejam
ouvidas, a perspectiva de um futuro habitável torna-se incerta. O enfoque dado pelo autor à questão do culto à
Grande Mãe talvez seja uma resposta parcial a essa preocupação, além de estar alinhado às tradições indígenas. O va-
lor de uma cultura que coloca a Mãe Terra como o elemento mais central é de importância inestimável atualmente. No
entanto, é igualmente relevante ter em mente as diferenças entre as visões condensadas em A terra dos mil povos e
o modo de vida ocidental. Uma diferença fundamental reside na não separação entre natureza e cultura, conforme
mencionado por Ailton Krenak:

[…] Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — en-
quanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar
que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza.
Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.
(KRENAK, 2019, p. 10)

Essa visão, na qual não existe uma separação entre o que é e o que não é natureza, pois tudo é, revela-se
fundamental para o entendimento daquilo que é compartilhado por Kaká Werá. As narrativas que ele se vê na posi-
ção de transmitir são narrativas de um mundo que tem essa ideia como base, sobre a qual tudo o mais é construído.
A conexão dos povos indígenas com o espírito e com a Grande Mãe tem suas raízes nesse princípio, e é a partir dele
que tudo o mais se desdobra.
Por fim, é relevante abordar a estrutura do livro. Sua divisão em pequenas partes apresenta-se como cáp-
sulas de conhecimento nesse contexto. Assim como um pajé que se torna uma ponte entre dois mundos, essas
cápsulas proporcionam uma conexão entre a cultura ocidental e a cultura dos povos indígenas. A divisão entre
literatura, história e antropologia perde um pouco de sentido, pois assim como aqueles que não separam nada,
os povos indígenas não precisam de religião no sentido que se dá a ela, e a divisão em categorias culturais pode
ter pouco significado para eles. E é justamente nesse ponto que há muito a aprender.

91

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 91 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Cem anos de solidão


Gabriel García Márquez

Contexto histórico
A obra Cem anos de solidão foi publicada em 1967, no período designado como boom latino-americano (dé-
cadas de 1960 e 1970), período em que foram publicados, internacionalmente, muitos exemplares de autores da
América Latina. O termo boom tem origem “na terminologia do marketing moderno norte-americano para designar
uma alta brusca nas vendas de um determinado produto nas sociedades de consumo” (RAMA, s/d, p. 268), não
estando relacionado a uma estética específica, mas, sim a um fenômeno editorial, como afirma o escritor peruano
Mario Vargas Llosa.
Um dos motivos que impulsionou o mercado das editoras foi a “repentina curiosidade” que surgiu em função da
Revolução Cubana, provocando um foco de atração sobre a América Espanhola. Se, por um lado, as publicações em
massa ampliaram, de maneira positiva, o número de leitores, por outro, geraram um problema em relação à crítica,
que criou “rótulos apressados” para designar as obras, colocando autores muito diferentes dentro do mesmo grupo
e gerando certa confusão, pois as obras eram rotuladas entre realismo mágico, realismo fantástico e realismo mara-
vilhoso, sem haver uma definição clara e homogênea entre os diferentes tipos de realismos.
Com uma tiragem de 25 mil exemplares no ano de publicação, Cem anos de solidão atingiu, posteriormente,
cem mil exemplares, expandindo consideravelmente o círculo de leitores. A obra é um dos livros que rompe a he-
gemonia europeia na literatura e contribui para o debate sobre a identidade latino-americana que estava em pauta
desde o fim do século XIX. Gabriel García Márquez constrói suas representações de forma abrangente ao escrever
uma narrativa para revelar nações em formação, antes colonizadas por monarquias ibéricas.
No romance, é perceptível a agitação social que ocorre na terra de Macondo e se relaciona com episódios histó-
ricos: no início do século, ocorrera a Guerra dos Mil Dias (1899-1902), contemplada com a representação de uma das
personagens-chave da trama: o Coronel Aureliano Buendía. Outros eventos históricos e de destaque foram o cultivo
de banana, que esteve no seu auge durante a década de 1920, o surgimento dos movimentos sindicais e a abertura
de “conflitos sociais e lutas trabalhistas em todo o continente” (LLOSA, 1971, p. 17), encontrados no romance na
resistência à Companhia Bananeira.
O realismo mágico emerge na obra como forma de representar um imaginário que já percorria a América Latina
desde as navegações. Mesmo após a independência do domínio espanhol, ainda restavam fenômenos estruturais
que assolavam o território, como a economia “apoiada no passado e presente comuns de exploração e submissão
a interesses externos às suas necessidades” (SILVA, 2016, p. 162). García Márquez procura construir em Cem anos
de solidão um registro de memória da cultura local e realizar uma denúncia, por meio de sua expressão literária, da
violência e da exploração.

Vida e obra
Gabriel García Márquez nasceu em 1927, em Aracataca, município localizado no norte da Colômbia. Des-
de pequeno, teve contato com histórias e anedotas contadas por seus avós, que permaneceram em sua me-
mória e que seriam, mais tarde, reinventadas em seus escritos. O escritor, inclusive, inspirou-se na proprie-
dade de banana que havia ao lado da casa onde passou parte da infância para desenvolver a narrativa de
Cem anos de solidão: a fazenda se chamava Macondo, nome que será dado à fictícia cidade onde se passa a
história do romance.
García Márquez entrou para a faculdade de Direito em Bogotá no ano de 1947, mas perdeu interesse no curso
rapidamente. Em 1954, começou a escrever críticas de cinema e notas editorais, além de reportagens para o
El espectador, jornal no qual publicou seu primeiro conto. Depois disso, trabalhou como correspondente e como
escritor, recebendo muitos prêmios por sua produção literária. Destes, o que lhe deu maior visibilidade foi o Nobel
de Literatura, em 1982, prêmio que recebeu com um discurso acerca da solidão da América Latina:

92

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 92 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

[…] Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde
então com mais ímpeto que nunca as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa
pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se
confunde com a lenda. […]
(NETO, 2016)

O escritor foi um dos intelectuais que lutou “contra a situação de ‘dependência’ econômica e política da Amé-
rica Latina em relação a potências centrais” (SILVA, 2016, p. 168) e defendeu abertamente a Revolução Cubana
(1953-1959). Márquez escreveu também roteiros de cinema e trabalhou como redator publicitário na empresa Walter
Thompson, em Nova York, passando por um período de quatro anos sem produzir obras novas: de 1961 a 1965, o
escritor atravessou um momento de autocrítica e procurou mudar seu estilo literário, que considerava muito objetivo
e “verista”, isto é, que se propõe a representar a realidade de forma fiel. Cem anos de solidão, no entanto, apresenta
uma ficção que coexiste com a história documentada.

Principais obras
 Ninguém escreve ao Coronel (1958)
 Cem anos de solidão (1967)
 Crônica de uma morte anunciada (1981)
 O amor nos tempos do cólera (1985)
 Memória de minhas putas tristes (2004)

Apresentação e análise da obra


Cem anos de solidão é um romance que conta a história da cidade de Macondo, uma terra ficcional criada por
Gabriel García Márquez e fundada pela personagem José Arcadio Buendía e seus companheiros. O povoado é
descoberto após José Arcadio Buendía decidir que ele e sua esposa, Úrsula Iguarán, deveriam sair de sua antiga
cidade, pois estavam sendo atormentados pelo espírito de Prudêncio Aguilar, um homem que ele matara em duelo:
Prudêncio Aguilar havia ofendido José Arcadio Buendía e espalhado que ele não consumara seu casamento por ser
impotente. O casal de fato não havia consumado o casamento, pois Úrsula e José Arcadio Buendía eram primos e
ela temia que, por isso, seus filhos nascessem com partes animais, como um rabo de porco. O espírito de Prudêncio
Aguilar aparecia na residência do casal e passava o tempo lavando suas feridas em bacias de água, ou ainda parado
na chuva, enquanto ambos sentiam culpa pela sua morte.
Durante o trajeto de Úrsula e José Arcadio Buendía para a nova terra, no entanto, nasce o primeiro filho do casal,
chamado de José Arcadio, inteiramente humano. Algumas famílias os acompanhavam na procura de uma nova terra
para habitar, que seria batizada de Macondo por conta de um sonho de José Arcadio Buendía.
José Arcadio Buendía e Úrsula têm mais dois filhos biológicos. O segundo é Aureliano, que mais tarde se tornaria
o Coronel Aureliano Buendía, líder da revolução liberal. A terceira filha natural dos Buendía é Amaranta, e a última
é Rebeca, filha adotiva que o casal recebe e que traz com ela a peste da insônia. A doença se espalha pela cidade e
provoca esquecimento gradual nos habitantes, até que não se recordem nem do próprio nome:

[…] quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se


da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por
último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa
espécie de idiotice sem passado.
(MÁRQUEZ, 2003, p. 28)

José Arcadio Buendía assume uma posição de liderança diante da desgraça. Ele decide se prevenir e diz aos
companheiros que, para resistir aos efeitos da praga, devem colar papéis com os nomes dos objetos da casa na
tentativa de retardar a perda de memória. O pai da família Buendía também reúne outros líderes para assegurarem
que a peste não se espalhe, organizam uma quarentena no povoado e espalham bilhetes para lembrar os habitantes
de memorizar os nomes dos objetos e dos sentimentos, anotando também a função das coisas na tentativa de se
manterem na realidade:
Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente cap-
turada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da
letra escrita. […] Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos
e os sentimentos.
(MÁRQUEZ, 2003, p. 30)

93

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 93 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

A solução da peste é encontrada por Melquíades, cigano amigo de José Arcadio Buendía, que possui um re-
médio para o esquecimento e é convidado a viver com a família, pois abandonara a sua tribo, que fora dizimada
por ter “conhecimento demais”. O cigano voltara dos mortos para viajar a Macondo, já que era uma terra ainda
desconhecida pela morte. Ele e José Arcadio Buendía trabalham juntos, dia e noite, em uma oficina de alquimia,
enquanto Úrsula, a matriarca, procura manter a organização da casa e trabalha sem cessar nas vendas de seus doces.
Tão ocupada era que se surpreende ao perceber que Amaranta e Rebeca já são adolescentes, portanto na idade de
casar. Isso a faz ficar preocupada com o tamanho da casa. Úrsula, então, planeja a expansão da casa dos Buendía, a
fim de que pudessem morar todos os futuros netos e os cônjuges de seus filhos.
A partir de então, muitos acontecimentos ocorrem dentro da família Buendía. Casamentos, nascimentos, adul-
térios e mortes se sucedem com o passar dos anos, durante os quais os meninos que nascem são batizados sempre
com variações dos nomes Aureliano e José Arcadio, como Arcadio, Aureliano José, Aureliano Segundo, José Arcadio
Segundo, e assim até a última geração, somando pelo menos vinte e um Aurelianos Buendía. A casa da família, que
expandira com a iniciativa de Úrsula, abriga a maioria de seus integrantes alternadamente e passa por sucessivas
reformas e deteriorações do tempo, do abandono, das chuvas ou, ainda, provenientes de causas sobrenaturais.
Passados meses desde a peste da insônia, Melquíades morre uma última vez e é o primeiro a ser enterrado
em Macondo, onde antes não havia cemitério. Prudêncio Aguilar, o espírito que afastara os Buendía de seu antigo
vilarejo, reaparece e conversa com José Arcadio Buendía. Ambos dialogam agora como amigos, mas sua presença
desequilibra José Arcadio Buendía, fazendo-o sucumbir à insanidade, de tal forma que é amarrado a um castanhei-
ro onde permanecerá, mesmo depois de morto, sendo visitado por Úrsula. O cigano Melquíades se torna invisível
depois de morto e ocupa um quarto na casa dos Buendía junto de seus pergaminhos secretos, os quais os Buendía
tentam decifrar por várias gerações, mas que só são decodificados pelo último Aureliano pouco antes de sua morte.
O segundo filho de José Arcadio Buendía, o primeiro Aureliano da estirpe, torna-se coronel após lutar pelos
ideais liberais e liderar grupos rebeldes do país. Figura importante em Macondo, passa por trinta e duas revoluções
e perde todas, sem nunca, porém, ser ferido por ninguém além dele mesmo:

Embora lutasse sempre à frente dos seus homens, a única ferida que recebeu foi pro-
duzida por ele mesmo […] Desfechou um tiro de pistola no peito e o projétil saiu-lhe pelas
costas sem ofender nenhum centro vital.
(MÁRQUEZ, 2003, p. 61)

Após se desencantar com a revolução, Aureliano luta para acabar com as guerras e tenta se matar, sem êxito.
Decide então morar na casa de sua família e trabalhar na produção de peixinhos de ouro na oficina de alquimia,
onde passa tempos com seu pai antes deste enlouquecer.
Enquanto isso, Macondo passa por um gradativo processo de modernização: uma estrada de ferro é construída
com o apoio financeiro do neto do Coronel Aureliano Buendía, Aureliano Segundo, além do surgimento das lâm-
padas elétricas e do cinema. Alguns habitantes não acreditavam nos inventos, como o cinema, que consideravam
“artifícios de cigano”, mas outros ficavam empolgados pelo entretenimento trazido pelas inovações. Certo dia surge
na cidade um estrangeiro, Mr. Herbert, dono de um negócio de balões, empreendimento que não atraiu a popula-
ção, por já terem visto os tapetes voadores dos ciganos.
Por não ter encontrado quarto no hotel da cidade, Aureliano Segundo convida o estrangeiro para se hospedar
em sua casa. Na hora da refeição, levam à mesa um cacho de bananas para o convidado e ele demonstra profundo
interesse, examinando com cuidado o cacho e a fruta:

Então, tirou da caixa de ferramentas [que] sempre trazia consigo um pequeno estojo
de aparelhos óticos. Com a incrédula atenção de um comprador de diamantes, minou
meticulosamente uma banana, seccionando as suas partes com um estilete especial,
pesando-as numa balancinha de farmacêutico e calculando a sua envergadura com um
calibrador de armeiro.
(MÁRQUEZ, 2003, p. 128)

O interesse de Mr. Herbert se transforma em um investimento colossal que mudaria Macondo para sempre.
Muitos forasteiros chegam e formam-se vilas: “— Olhem a confusão em que nos metemos — costumava então dizer
o Coronel Aureliano Buendía — só por termos convidado um americano para comer banana” (MÁRQUEZ, 2003,
p. 129). A Companhia Bananeira é instituída na cidade, onde José Arcadio Segundo, irmão gêmeo de Aureliano
Segundo, torna-se capataz.
José Arcadio Segundo trabalha na companhia por algum tempo, até que começa a perceber os problemas da
empresa. Ele organiza manifestações com os trabalhadores para melhorar as condições de trabalho, uma vez que
“não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar presunto de Virgínia nos
armazéns da companhia” (MÁRQUEZ, 2003, p. 166), além de terem falso atendimento médico – recebiam a mesma
pílula para todos os tipos de enfermidades.

94

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 94 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

As revoltas terminam em tragédia na estação de trem de Macondo. José Arcadio Segundo, no meio da multidão
que estava na manifestação, ouve o anúncio do decreto que faculta ao exército o direito de intervir nas greves dos
trabalhadores, chamados de “quadrilha de malfeitores”. Seus companheiros grevistas são então fuzilados sob os
olhares de crianças e mulheres que faziam parte da aglomeração.
Após presenciar o horror, José Arcadio Segundo desperta em meio a um vagão cheio de cadáveres, dispostos
“na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de banana” (MÁRQUEZ, 2003, p. 170). O neto do Coronel
Aureliano Buendía foge do trem e retorna a pé a Macondo, desolado, e encontra abrigo na casa de uma moça
que lhe oferece café. José Arcadio Segundo relata que havia cerca de três mil mortos, ao passo que ela responde que
não, não ocorrera nenhum fuzilamento, nenhum morto, nenhuma novidade em Macondo.
Já em casa, Aureliano Segundo lê para José Arcadio Segundo a notícia de que os operários haviam desistido
da greve em função de um acordo com os militares; portanto, não havia ocorrido mortes, como o irmão afirmava.
Enquanto isso, um a um os líderes sindicais foram assassinados e José Arcadio Segundo teve de se esconder no
quarto antigo de Melquíades, no qual ficou também invisível diante dos olhos dos oficiais que foram procurá-lo na
casa da família Buendía.
Quando finalmente a Companhia Bananeira deixa Macondo, a cidade está em ruínas: “Nas valas das ruas
restavam móveis espedaçados, esqueletos de animais cobertos de vermelhos, últimas lembranças das hordas de
imigrantes tinham fugido de Macondo” (MÁRQUEZ, 2003, p. 183). Macondo volta então a ser um lugar simples, onde
os ciganos levam seus ímãs para vender, os habitantes continuam a negar o ocorrido do massacre e até mesmo
deixam de acreditar na antiga figura do Coronel Aureliano Buendía, como se este tivesse sido apenas uma lenda.
Aureliano Babilônia, neto de Aureliano Segundo e penúltimo Aureliano dos Buendía, tem um romance com sua
tia Amaranta Úrsula e geram o último Aureliano da estirpe, que nasce com um rabo de porco. Após o parto, Ama-
ranta Úrsula morre de hemorragia e o pai da criança foge de tristeza para procurar conforto, mas se lembra do filho
e retorna, na esperança de que sua esposa houvesse ressurgido dos mortos. Encontra, então, o cadáver da amada
transformado em pedras, e seu filho Aureliano sendo devorado por formigas, uma visão terrível que desperta nele
as respostas para os pergaminhos de Melquíades, nos quais o cigano conseguira predizer cada passo da família
Buendía: “Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de an-
tecipação” (MÁRQUEZ, 2003, p. 218). Aureliano Babilônia descobre que seu filho era o fim anunciado dos Buendía,
“o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe” (MÁRQUEZ, 2003, p. 219).
Enquanto lia abismado os escritos de Melquíades, a destruição assolava Macondo com ventos sobrenaturais.
Conforme chega ao final dos pergaminhos, Aureliano Babilônia, o último Buendía, lê sobre si mesmo, decifrando-se,
e vê a data de sua morte.
Assim, é decretado o fim da cidade de Macondo e da família Buendía, uma vez que as profecias de Melquíades
se concretizam ao serem decifrados os pergaminhos. O leitor acompanha a família ao longo de sete gerações e
aqueles que fazem parte do seu convívio, e presencia o desaparecimento do povoado e dos Buendía, que deixam
de existir permanentemente e sem deixar vestígios.
Árvore genealógica da família Buendía

Nicanor Rebeca José Arcadio Úrsula


Ulloa Montiel Buendía Iguarán

José Pilar Remedios


Rebeca Aureliano Amaranta
Arcadio Ternera Moscote

Santa Sofia Aureliano 17 Fernando Renata


Arcadio del Carpio Argote
de la Piedad José Aurelianos

José Arcádio Petra Aureliano Fernanda


Remedios
Segundo Cotes Segundo del Carpio

Amaranta José Renata Mauricio


Gastón
Úrsula Arcádio Remédios Babilonia

Aureliano Babilonia

Aureliano

95

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 95 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Personagens principais
 José Arcadio Buendía: líder da expedição que deu origem à cidade de Macondo. Casado com a prima Úrsula
Iguarán, pai de sangue de José Arcadio, Aureliano e Amaranta e pai adotivo de Rebeca. Homem empreendedor,
de grande imaginação e de bom caráter. Era um curioso no que dizia respeito à física, à astronomia e à alquimia.
Suas tentativas frustradas na busca de grandes invenções provocavam-lhe acessos de fúria, tendo sido assim con-
siderado louco. Apesar do insucesso de suas investidas, ele faz descobertas importantes (mesmo que já tivessem
sido comprovadas muito tempo antes), como a forma redonda da Terra.

 Úrsula Iguarán: esposa de José Arcadio Buendía, era responsável pela ordem e o equilíbrio da casa, uma figura
“ativa, miúda, severa […] de nervos inquebrantáveis, a quem em nenhum momento da vida se ouviu cantar, parecia
estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada” (MÁRQUEZ, 2003, p. 9). O único momento
que Úrsula deixa José Arcadio Buendía é para procurar o filho que fugira com ciganos e que ficara desaparecido
por meses, o que causou um desequilíbrio na casa dos Buendía.
Depois de muitos anos, Úrsula começou a ficar cega, mas resistia ao envelhecimento, continuava lúcida e sabia de
cor cada canto da casa, assim como os hábitos de seus moradores. Ninguém soube quando perdeu a visão, pois
memorizou tudo “descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos,
os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas” (MÁRQUEZ, 2003, p. 139). Escondeu
a cegueira de todos, porque não queria que a achassem inútil.

 Melquíades: um dos ciganos que visita Macondo, responsável por levar à cidade as descobertas do mundo e es-
crever em pergaminhos indecifráveis as profecias sobre a família Buendía. Morreu diversas vezes, mas ressuscitou
em uma última ocasião para ajudar Macondo a acabar com a peste da insônia.

 José Arcadio: filho mais velho do casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán. Quando jovem, era grande para a
sua idade. Enamorado de uma cigana, fugiu com um grupo de ciganos, voltando tempos depois e casando-se com
Rebeca, sua irmã adotiva. Falece depois de um tempo e sua morte é envolta em mistérios.

 Coronel Aureliano Buendía: segundo filho do casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán. Foi uma criança curiosa e
compenetrada que seguia seu pai até a oficina de alquimia para aprender a ourivesaria. Apesar da grande diferença
de idade, casou-se com Remédios Moscote, filha de uma autoridade local.
Apesar de Aureliano não se envolver em assuntos políticos, passa a participar da política quando o exército invade
Macondo com violência. Reúne então seus amigos e juntos tomam a cidade. Desde então, ele passa a organizar as
revoltas espalhadas por todo o país, levando assim o título de Coronel e tornando-se uma figura pública perseguida
pelo governo, famosa dentro e fora de Macondo. Morre encostado ao castanheiro onde seu pai fora enterrado.

 Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo: gêmeos nascidos do casamento entre Santa Sofia de la Piedade e
Arcadio. Fazem parte da quarta geração dos Buendía.

Forma e processo narrativo


A narrativa é feita em terceira pessoa e o narrador é onisciente – conhece o passado, o presente e o futuro das
personagens, chegando, por vezes, a decretar o fim delas antes que o fato ocorra na história, o que contribui para
a descontinuidade temporal.
O livro é dividido em capítulos e apresenta uma série de personagens que podem ser facilmente confundíveis
entre si, caracterizando uma narrativa circular na qual os indivíduos carregam a herança de seus antepassados
e repetem muitos de seus atos ou de suas personalidades. Um dos procedimentos usados por García Márquez
para construir a obra Cem anos de solidão é o seu “caráter cíclico”, que anuncia um acontecimento posterior
ao tempo da narrativa para depois voltar a ele. Um exemplo é a citação sobre o Coronel Aureliano Buendía na
primeira frase do livro: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia
de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo” (MÁRQUEZ, 2003, p. 5).
Como aponta Ciarlini (2019), a expressão “diante do pelotão de fuzilamento” no trecho citado indica um tempo
muito à frente no romance, mas que irá se concretizar em algum momento, pois o foco da citação está no tempo
histórico de Aureliano.
O narrador em terceira pessoa remonta aos primeiros anos da cidade de Macondo, um mundo recente onde as
coisas ainda não tinham nome e as descobertas mais simples despertavam o assombro dos habitantes. Esse aspecto
de descoberta implica em um caráter mítico, pois explicita o início de tudo, como se Macondo fosse um novo mundo
e o narrador contasse sua origem.

96

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 96 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Orientações de leitura
É importante observar no romance Cem anos de solidão as particularidades e as repetições das personagens da
família Buendía e do espaço de Macondo na narrativa. O povoado de Macondo é também uma espécie de perso-
nagem, criado pelas histórias e pelas vivências relatadas pelo narrador.
O insólito aparece no romance como parte do mundo, sem que haja um choque com a perspectiva das perso-
nagens pela sua ocorrência em si, ainda que provoque todo tipo de emoções nos habitantes de Macondo. É preciso
notar também o que choca as personagens, quais são os limites daquilo em que acreditam ou não – como as “inven-
ções” trazidas pelos ciganos – e também daquilo que se perde de sua memória, como a figura do Coronel Aureliano
e os assassinatos na Companhia Bananeira.

Perguntas orientadoras
1. Como são apresentados os membros da família Buendía? De que maneira eles participam da realidade de Macondo?
2. De que modo a Companhia Bananeira altera a vida dos habitantes de Macondo? No decorrer da história, quais
personagens mudam sua postura em relação à companhia?
3. O Coronel Aureliano Buendía é uma personagem que expressa as lutas pela independência, mas sua trajetória se
transforma em vários momentos da narrativa. Como se dá essa transformação? O que caracteriza a figura dessa
personagem?
4. Vários episódios da narrativa trazem marcas da solidão das personagens. O que desperta esse sentimento de solidão?

Ensaio
O insólito no realismo mágico
Cem Anos de Solidão é um marco na literatura latino-americana e um dos grandes romances do chamado rea-
lismo mágico, ou, ainda, realismo maravilhoso. A classificação do gênero se difere do que é conhecido como
literatura fantástica, que apresenta elementos com uma “ruptura de uma ordem lógica e racional que estrutura o
mundo” (PETROV, 2016, p. 96). O fantástico está atrelado à crítica literária europeia, mais particularmente à anglo-
-saxã, e se aplica à narrativa em que há elementos incompatíveis com o que é entendido por real (como fantasmas,
demônios e figuras sobrenaturais que provocam temor ao invadir e ameaçar a realidade).
Pode-se afirmar, ainda, que o fantástico não provoca apenas o medo, mas também uma inquietação proveniente
de um acontecimento “impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar” (TODOROV, 1994, p. 15), o
mundo real. No entanto, em Cem anos de solidão, o insólito não é explicado, mas está presente na terra de Macondo
como algo compatível com a realidade, e até mesmo recorrente: nenhuma personagem se surpreende com ressur-
reições; ou com a idade avançada de Pilar Ternera, que chega aos 145 anos; nem com a possibilidade de crianças
nascerem com partes animais (é possível que um bebê nasça como uma criatura quimérica por ser fruto de uma
relação entre primos; é um fato temido, mas perfeitamente compatível com a realidade do romance); ou quando,
por exemplo, Aureliano Babilônia percebe que o filho havia sumido:

Ao amanhecer, depois de um sono ruim e breve, Aureliano recobrou a consciência da sua dor de cabeça. Abriu
os olhos e se lembrou da criança. Não a encontrou na cestinha. No primeiro impacto, experimentou uma explosão de
alegria, pensando que Amaranta Úrsula tinha despertado da morte para se ocupar da criança. Mas o cadáver era uma
montanha de pedras sob a manta.
(MÁRQUEZ, 2003, p. 217)

No trecho, é evidente que a personagem não se choca com a possibilidade de a esposa ter ressuscitado; ao
contrário, anseia por tal acontecimento. Além disso, o fato de o cadáver ter se transformado em pedras provoca nele
apenas frustração e, com isso, não se torna um evento sobrenatural que subverte a lógica de seu mundo familiar.
Visto isso, é possível dizer que Cem anos de solidão não faz parte do realismo fantástico, e sim do maravilhoso ou
mágico.
Há também um curioso “jogo de inversão” dentro da narrativa, como no deslumbramento que os moradores
de Macondo tiveram com os objetos trazidos pelos ciganos – a lupa do tamanho de um tambor, os instrumentos de
navegação e ímãs –, itens de uso comum ou muito já ultrapassados. Tais objetos despertam o assombro, ao passo
que os eventos insólitos não provocam estranhamento.
Não é estranho para Úrsula ou para José Arcadio Buendía que Prudêncio Aguilar perambule entre os vivos, mas,
sim, desagradável, pois o casal foi culpado por sua morte. É mais surpreendente (e inaceitável) para Úrsula que a Ter-
ra seja redonda, ou para José Arcadio Buendía que os ímãs existam e possam atrair metais, o que o encanta assim
como o invento do gelo, que ele afirma ser “o grande invento do nosso tempo” (MÁRQUEZ, 2003, p. 15).

97

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 97 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Referências
de Janeiro, 1996.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2. ed. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2003.

Caderno de memórias coloniais


MIGUEL, Fernanda. O corpo como território de memória em
Ponciá Vicêncio. Comunicação oral - Abralic. 2019.
FIGUEIREDO, Isabela. Caderno de memórias coloniais. São Pau- OLIVEIRA, Margarete Aparecida; SILVA, Pedro Henrique. Rese-
lo: Todavia, 2018. nha de: DIONÍSIO, Dejair. Ancestralidade bantu na literatura
GEFFRAY, Christian. A causa das armas: antropologia da guerra afro-brasileira: reflexões sobre o romance “Ponciá Vicêncio” de
contemporânea em Moçambique. Porto: Edições Afrontamento, Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Nandyala, 2013.
1991. WILLIAMS, Claire. Não existe lugar como a nossa casa, ou o re-
LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOL- torno de Ponciá Vicêncio. Revista Iberic@l, n. 2, p. 59-70, 2012.
LANDA, Heloísa Buarque de (org). Pensamento feminista: con- Disponível em: http://iberical.paris-sorbonne.fr/numeros/nume-
ceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. ro-2-automne-2012/http://iberical.paris-sorbonne.fr/numeros/
numero-2-automne-2012/. Acesso em: 27 abr. 2020.
MORAES, Anita Martins Rodrigues de. Caderno de memórias
coloniais, de Isabela Figueiredo. Via Atlântica, São Paulo, n. 17,
p. 241-245, jun. 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/
Deixe o quarto como está
viaatlantica/article/view/50564. Acesso em: 26 abr. 2020. BETTEGA, Amílcar. Deixe o quarto como está ou estudos para
OLIVEIRA, Ana Rita Veleda. Entrevista a Isabela Figueiredo. composição do cansaço. São Paulo: Companhia das Letras,
Academia.edu, 2010. Disponível em: https://www.academia. 2002.
edu/4126599/Entrevista_a_Isabela_Figueiredo. Acesso em: 23 abr. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios.
2020. São Paulo: Ática, 1989.

Construção
CARVER, Raymond. 68 contos de Raymond Carver. Tradução
Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Tradução David Arriguc-
BUARQUE, Chico. Construção. Intérprete: Chico Buarque. Rio de ci Jr. e João Alexandre Barbosa; organização Haroldo de Cam-
Janeiro: Philips, 1971. 1 disco de vinil. pos e David Arrigucci Jr. São Paulo: Perspectiva, 2008.
CALIL, Ricardo; TERRA, Renato. Uma noite em 67. Documentá- CORTÁZAR, Julio. Bestiário. 4. ed. Tradução Paulina Wacht e Ari
rio. Bretz Filmes. Cor, 93 min. Brasil, 2010. Roitman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
GARCIA, Walter. Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chi- CRARY, Jonathan. 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono.
co Buarque, o Pregão de Rua e a Canção Popular Comercial no Tradução Joaquim Toledo Júnior. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Brasil. Cotia: Ateliê Editoral, 2013. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo
Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
GARCIA, Walter. A construção de “Águas de março”. Rivista di KAFKA, Franz. Metamorfose. Tradução Modesto Carone. São
Studi Portoghesi e Brasiliani (Testo Stampato), v. XI, p. 39-61, Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2010.
MELLO, A. M. L. Um mundo sem promessas em ‘Dei-
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São xe o quarto como está’. Letras de Hoje (Impresso), v. 42,
Paulo: Ed. 34, 2003. p. 85-98, 2007.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Tradução José Marcos Mariani
São Paulo: Boitempo, 2013. de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. 3. ed. Tradução Oscar
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. O pai de fa- Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 1999.
mília e outros estudos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
RUBIÃO, Murilo. Os dragões e outros contos. Belo Horizonte:
SILVA, Fernando de Barros e. Folha explica: Chico Buarque. São Movimento – Perspectiva, 1965.
Paulo: Publifolha, 2004. RUBIÃO, Murilo O pirotécnico zacarias (contos). 13. ed. Pref. de
TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Ática, 1988.
Paulo: Edusp, 1996. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica.
3. ed. Tradução Maria Clara Correa Castello. São Paulo:

Ponciá Vicêncio Perspectiva, 2004.

ARRUDA, Aline Alves. Ponciá Vicêncio e Becos da memória: me- Coral e outros poemas
mória e olhar coletivo na prosa afro-brasileira. Terra roxa e outras
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas.
terras – Revista de Estudos Literários, v. 17-B, p. 77-84, dez. 2009.
Seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. São Paulo:
ISSN 1678-2054. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/ter-
Companhia das Letras, 2018.
raroxa. Acesso em: 27 abr. 2020.
CRUZ, Gastão. Prefácio. In: ANDRESEN, Sophia de Mello
DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Con-
Breyner. Dia do mar. Lisboa: Assírio Alvim, 2014.
ceição Evaristo. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 305-308,
abr. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?scrip- GUSMÃO, Manuel. Prefácio. In: ANDRESEN, Sophia de Mello
t=sci_arttext&pid=S0104-026X2006000100017&lng=en&nrm=iso. Breyner. Coral. Lisboa: Assírio Alvim, 2013.
Acesso em: 27 abr. 2020. LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: ANDRESEN, Sophia de
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa Mello Breyner. Dual. Lisboa: Assírio Alvim, 2014.
afro-brasilidade. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Lisboa: Relógio d'água,
– Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica, Rio 1987.

98

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 98 31/07/2023 08:55:45


Análise de Obras – UFRGS

Várias histórias
MARTINS, Fernando Cabral. Prefácio. In: ANDRESEN, Sophia de
Mello Breyner. O nome das coisas. Lisboa: Assírio Alvim, 2015.
PAGOTO, Cristian; MACHADO, Rodrigo Vasconcelos. Fernando
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São
Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen: a ‘epopeia do
Paulo: Martins, 1974.
negativo’ versus a unidade. Terra roxa e outras terras: Revista de
Estudos Literários, v. 36, dez. 2018. ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Agui-
lar, 1994. v. 2.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2016.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis.
POUND, Ezra. O ABC da Literatura. Trad. de Augusto de Campos
e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2002. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2012.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. de Carlos Felipe PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Le-
Moisés. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. tras, 2004.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 24. ed. São Paulo: Editora SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Duas
Vozes, 2015. Cidades, 1992.
ZENITH, Richard. Uma cruz em Creta: a salvação sophiana. In: SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Ma-
TAVARES, Maria Andresen Sousa. Sophia de Mello Breyner chado de Assis. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000.
Andresen. Actas do colóquio internacional. Porto: Porto Editora, WISNIK, José Miguel. Machado maxixe: o caso Pestana. Teresa,
2013. v. 4, n. 5, p. 13-79, 2004. Disponível em: https://www.revistas.usp.

Lisístrata
br/teresa/article/view/116360/113949. Acesso em: 15 jun. 2022.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. 2. ed. Um útero é do tamanho de um


Brasília, DF: Imprensa Nacional; Rio de Janeiro: Casa da Moe-
da, 1990. (Série Universitária. Clássicos de Filosofia).
punho
ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de Millôr Fernandes. Porto ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. Tradução:
Alegre: L&PM, 2018. de Juba Elisabeth Levy. São Paulo: Paz & Terra, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros en-
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comici-
saios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos,
dade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
2009.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson ARANTES, Paulo. “1964: Tempos de exceção”. In: ___________.
Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fon- BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução: Sérgio Mil-
tes, 1991. liet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. São CURITIBA. Biblioteca Pública do Estado do Paraná. “Um escritor
Paulo: Perspectiva, 1972. na biblioteca”. Revista Cândido, n. 89, dez. 2018. Disponível em:
https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Um-Escritor-na-Bi-
FREITAS, Angélica. O útero é do tamanho de um punho. São blioteca-I-Angelica-Freitas. Acesso em: 22 jun. 2023.
Paulo: Cosac Naify, 2013.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São
MULHERES de Atenas. Intérprete: Chico Buarque. Composi- Paulo: Cosac Naify, 2012.
tores: Chico Buarque e Augusto Boal. In: MEUS caros amigos.
FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: ____________. Obras psi-
Intérprete: Chico Buarque. [S. l.]: Universal Music, 1976. 1 CD,
cológicas completas de Sigmund Freud. Tradução: Jayme Salo-
faixa 2.
mão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 275-314.
NOBRE, Milena. Tecendo o universo feminino em Lisístrata: en- ________________. “Os chistes e sua relação com o inconscien-
tre guerreiras divinas e mortais. 2013. Dissertação (Mestrado te”. In: _____________. Obras completas de Sigmund Freud, v. 8.
em Letras) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Rio de Janeiro: Imago, 1995.
Ceará, Fortaleza, 2013.
GHAZZAOUI, Fátima. “As vozes do feminino na voz de Angélica

A falência
Freitas”. in Magma, 26(15), 2019, p. 305-310. Disponível em: ht-
tps://doi.org/10.11606/issn.2448-1769.mag.2019.174057. Acesso
em: 22 jun. 2023.
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Falência. São Paulo: Companhia das
JUNKES, Diana Bueno Martha. “ ‘Desmallarmando’: a irreve-
Letras, 2019.
rência poética de Angélica Freitas”. Nueva Revista del Pacifico,
BALZAC, Honoré de. O pai Goriot. Porto Alegre: L&PM, 2006. Valparaiso, n. 65, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4067/
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Companhia S0719-51762016000200006. Acesso em: 22 jun. 2023.
das Letras, 2011. KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. Tradução: José Paulo Paes.
LUCA, Leonora de. O “feminismo possível” de Júlia Lopes de Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Almeida. Cadernos Pagu, n. 12, 1999. NODARI, Alexandre. “De onde vem a poesia?”. Disponível em:
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora https://www.academia.edu/34918777/De_onde_vem_a_poesia.
34, 2017. Acesso em: 22 jun. 2023.
STOWE, Harriet Beecher. A cabana do Pai Tomás. São Paulo: RAMA, Ángel. Transculturação narrativa na América Latina. Bue-
Amarilys Editora, 2016. nos Aires: Andariego, 2008.

99

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 99 31/07/2023 08:55:46


Análise de Obras – UFRGS

RESENDE, Beatriz et al. “O poeta é a antena da raça: entrevista INDÍGENAS. IBGE Educa Jovens. Disponível em: https://
com Angélica Freitas”. Revista Z Cultural: revista do programa educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/20506-
avançado de cultura contemporânea, Rio de Janeiro, ano XVI, n. indigenas.html. Acesso em: 30 jun. 2023.
2, 2021. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/o-poeta- JECUPÉ, Kaká Werá. A terra dos mil povos: história indígena bra-
-e-a-antena-da-praca-entrevista-com-angelica-freitas/. Acesso em: sileira contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998. (Série
22 jun. 2023. Educação para a paz)
SAFFIOTI, Heleieth Iara. Gênero, patriarcado, violência. São Pau- ______. Tupã Tenondé: a criação do universo, da Terra e do
lo: Expressão Popular/Fundação Perseu Abramo, 2015. homem segundo a tradição oral guarani. São Paulo: Peirópolis,
SILVA, Eduarda Rocha Góis da; SILVA, Susana Souto. “Angélica 2001.
Freitas, leitora de Susana Thénon”. In: Anais do Congresso da KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
ABRALIC, 2016, p. 5 946-5 955. Disponível em: https://abralic.org. Companhia das Letras, 2019.

Cem anos de solidão


br/anais/arquivos/2016_1491524737.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.

Água funda
CIARLINI, Daniel Castelo Branco. Cem anos de solidão: algumas
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de chaves de leitura. RELACult – Revista Latinoamericana de
Nikolai Leskov”. In: _________. Magia e técnica, arte e política. Tra- Estudios en Cultura y Sociedad, v. 5, n. 1, jan.-abr. 2019. Disponível
dução: Sergio Paulo Rouanet. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 2008. em: https://www.researchgate.net/publication/334556573_Cem_
Anos_de_Solidao_Algumas_Chaves_de_Leitura. Acesso em: 20
CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 1930 e a cultura”. Novos Es-
jun. 2023.
tudos Cebrap, v. 2, n. 4, São Paulo, 1984, p. 27-36. Disponível em:
https://novosestudos.com.br/produto/edicao-08/#58d49d3b72af5. ELIAS, Alice. “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez,
Acesso em: 28 jun. 2023. é publicado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH), 22 nov. 2022. Disponível
_________. Os parceiros do Rio Bonito: estudos sobre o caipira pau- em: https://www.fflch.usp.br/41167. Acesso em: 21 jun. 2023.
lista e a transformação dos seus meios de vida. 11 ed. Rio de
ESTEVES, Antonio R; FIGUEIREDO, Eurídice. Realismo mágico
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
e realismo maravilhoso. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Con-
_________. “Mundo-provérbio”. Língua e literatura, v. 1, 1972, p. ceitos de literatura e cultura. 2. ed. Niterói: EdUFF; Juiz de Fora:
109-121. EdUFJF, 2010. p.393-414. Disponível em: https://www.eduff.com.
GUIMARÃES, Ruth. Água funda. São Paulo: Editora 34, 2018. br/produto/conceitos-de-literatura-e-cultura-e-book-pdf-481.
Acesso em: 21 jun. 2023.
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 2008. LAZARIN, Morgana Wittmann. Murilo Rubião e a literatu-
ra latino-americana: um autor do boom? Trabalho de con-
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução: Eric
clusão de curso (Graduação em Letras). Instituto de Letras,
Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
CAIPIRA. Intérprete: Mônica Salmaso. Caipira [CD]. São Paulo: 38 p., 2019. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/hand-
Biscoito Fino, 2017. le/10183/241992. Acesso em: 21 jun. 2023.
MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: LLOSA, Mario Vargas de. García Márquez: historia de um deici-
Difusão Europeia do Livro, 1970. dio. Barcelona: Barral Editores, 1971. p. 13-84.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, 53. ed. Rio de
São Paulo: Boitempo, 2003. Janeiro: Record, 2003.
PRADO JR., Caio. Histórica econômica do Brasil. 26 ed. São Pau- NETO, Antonio P. A solidão da América Latina – Discurso de García
lo: Brasiliense, 1977. Márquez no Nobel de Literatura. Tradução: Eric Napomuceno.
Homo Literatus, 6 ago. 2016. Disponível em: https://homoliteratus.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova
com/solidao-da-america-latina-discurso-de-garcia-marquez-no-
Fronteira, 2006.
nobel-de-literatura/. Acesso em: 19 jun. 2023.
RUTH Guimarães. Literafro, Belo Horizonte, 30 nov. 2020. Dispo-
PETROV, Petar. Representações do insólito na ficção literária: o
nível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/434-ruth-
fantástico, o realismo mágico e o realismo maravilhoso. Porto
-guimaraes. Acesso em: 28 jun. 2023
Alegre, Nonada: Letras em Revista, 2016, 2(27). p. 95-106. Dis-
SILVEIRA, Valdomiro. Lereias: histórias contadas por eles mes- ponível em: https://shorturl.at/FKST4. Acesso em: 21 jun. 2023.
mos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. RAMA, Ángel. O boom em perspectiva. Tradução: Susana Kers-
TERRA DEU, TERRA COME. Direção: Rodrigo Siqueira. Produ- chner. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/
ção: Rodrigo Siqueira. 1h29min. Brasil: Videofilmes, 2010. view.php?id=29214. Acesso em: 21 jun. 2023.

A terra dos mil povos


SILVA, Bruna Ferreira da. A identidade latino-americana em
“Cem anos de solidão” (1967), de Gabriel García Márquez. Epí-
grafe, São Paulo, v. 3, n. 3, pp. 157-170, 2016. Disponível em: ht-
ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal do Brasil (Collor, tps://www.revistas.usp.br/epigrafe/article/view/111490/118460.
FHC e Lula). 2. ed. São Paulo: Autores Associados, 2005. Acesso em: 19 jun. 2023.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: _________. Vários TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2. ed. São
escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro Paulo: Perspectiva, 1994.
sobre Azul, 2004. TV BRASIL. Literatura latino-americana no Trilha de Letras.
CHAKRABARTY, Dipesh. Anthropocene Time. In: The Climate of 26min18s. 26 out. 2017. Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.
History in a Planetary Age. Chicago/Londres: The University of br/trilha-de-letras/2017/10/literatura-latino-americana. Acesso
Chicago Press, 2021. em: 21 jun. 2023.

100

2023_PU_ADO_UFRGS.indd 100 31/07/2023 08:55:46

Você também pode gostar