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As Aprendizagens Essenciais para a disciplina de Formação Musical


do ensino especializado da Música: uma oportunidade perdida

Joaquim Lourenço Fragoso Branco


jlfbranco@ua.pt

Resumo

O presente artigo apresenta uma crítica ao documento das Aprendizagens Essenciais (AE) para a disciplina de
Formação Musical (FM) dos cursos artísticos especializados, publicado pela Agência Nacional para a Qualificação
e o Ensino Profissional (ANQEP). Apresenta também uma crítica ao modelo pedagógico da disciplina, generalizado
nos conservatórios e escolas de música. Tendo em conta fatores, como: a ausência de uma definição consensual
quanto ao objetivo geral da disciplina de FM e o seu papel nos estudos de música; as lacunas, em termos de com-
preensão do objeto musical, demonstradas pelos alunos em estudos superiores; assim como pressupostos inadequa-
dos em que assenta a conceção tradicional dos estudos de música; considera-se neste texto que urgia aproveitar o
momento para encetar uma revisão e reforma curricular da disciplina. Tal não só não aconteceu, como se viu
aquela tradição corroborada por aquele documento. Considera-se esta uma oportunidade perdida.

Palavras-chave: Aprendizagens essenciais, formação musical, ensino da música em Portugal.

A Formação Musical e os seus problemas

N o livro Aural Education: Reconceptualising Ear Training in Higher Music Learning, a autora,
Monika Andrianopoulou, faz o diagnóstico dos estudos em música da tradição ocidental, no âmbito do
que seria, em Portugal, a disciplina de FM. Depois de referir as raízes de algumas das principais tradições
pedagógicas, nomeadamente a solmização, o ditado, o canto coral, entre outras, e de traçar o caminho
percorrido até aos dias de hoje, detém-se numa questão essencial: qual é o papel da FM1 nos estudos da
música?
A pergunta não é de somenos importância. Poderá parecer linear, pela prática comum, vincular a
aprendizagem das disciplinas de matemática, de geografia, da poesia, de um instrumento musical, das
línguas, aos saberes que lhes correspondem – saber matemática, saber geografia, saber poesia, saber tocar
um instrumento musical, saber línguas – na medida em que estes saberes se desvendam na dimensão do
saber ser que os operacionaliza e legitima. Já a pergunta “Para que serve a Formação Musical?” costuma

1 Traduzo aqui, livremente, ear training por Formação Musical.

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convocar, antes de uma de várias respostas possíveis, a perplexidade de não se encontrar nenhuma real-
mente convincente, incontestável. Nem, na melhor das hipóteses, uma tão abrangente que torne as outras,
também possíveis, dispensáveis.
O livro acima mencionado elenca alguns dos principais problemas afetos à disciplina de Ear
Training: “Especificamente, o seu foco limitado nas alturas (pitch) e no ritmo [...]; a abordagem descon-
textualizada e atomística dos elementos musicais estudados [...]; o uso ineficaz do ditado [...]; a pouca
relevância atribuída a instruções específicas sobre o imaginário auditivo [...]; o foco em atividades de
reprodução [...]; a ênfase dada ao conhecimento explícito, verbalizável e testável, em detrimento do
conhecimento implícito e a aspetos físicos de compreensão musical [...]; e a imobilidade dos métodos de
ensino, não obstante os desenvolvimentos na investigação cognitiva e na tecnologia” (Andrianopoulou,
2020, p. 20)2.

As Aprendizagens Essenciais

Segundo as diretrizes da Direção-Geral da Educação, “as Aprendizagens Essenciais são documentos


de orientação curricular base na planificação, realização e avaliação do ensino e da aprendizagem, e visam
promover o desenvolvimento das áreas de competências inscritas no Perfil dos Alunos à Saída da
Escolaridade Obrigatória”. Realçam-se dois conceitos chave: o caráter essencial das aprendizagens, e a
inscrição destas em domínios de competências. A interseção destes dois conceitos reclama toda uma revi-
são da perspetiva do processo ensino-aprendizagem, concretamente nos estudos de música, por forma a
responder aos problemas atrás anunciados, entre outros. Deveria, pois, incitar uma atitude crítica e refle-
xiva, de questionamento da prática comum neste domínio específico, nomeadamente em relação aos
pontos que este artigo de seguida abordará.

A música universal

A introdução do documento das AE oferece-nos uma perspetiva geral da música: “uma linguagem
universal, comum a diferentes civilizações e culturas e que serve como meio de união e diálogo intercul-
tural”. No entanto, esta perspetiva não é consensual: para Hallam et al. (2016, p. 5), por exemplo, “a
música varia de sociedade para sociedade em tal medida que a música de uma cultura pode nem ser
reconhecível enquanto tal por membros de outra cultura. Isto aplica-se tanto às características estruturais
da música quanto às funções que pode desempenhar”.
Tomando como verdadeira a segunda asserção, resulta não ser verdadeira a primeira. Nem inócua.
Efetivamente, a tradição da disciplina de FM assenta na convicção de que existe uma linguagem univer-
sal da qual se podem extrair os seus constituintes e, ensinados estes, tendencialmente toda a música se
torna inteligível. Efetivamente, “se ‘música’ é definida como ‘som organizado no tempo, entendido como,
ou percebido como, experiência estética’, e ‘universal’ é definido como uma caraterística que aparece em

2 As traduções foram elaboradas pelo autor deste artigo.

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todos os sistemas musicais, é bastante claro que não há universais sonoros na música, além do trivial de
que a música deve envolver som de alguma forma” (Patel, 2008, p. 11).
A música é, pois, uma emergência cultural, marca identitária e, nessa medida, persistentemente
divergente; intrinsecamente imbuída da especificidade de estilos e contextos. E, como construção cultu-
ral, é-lhe inevitável erigir as fronteiras do que é (familiar) do que não é (familiar).
Como se sugerirá à frente, a presunção da universalidade, de que esta Formação Musical se arvora
como representante, é o caminho seguro para a irrelevância: sem universal, - linguagem comum – porque
não existe; sem particulares, – estilos – porque os não teve em conta.

Um problema de contexto

Ao cabo de vinte anos de lecionação da disciplina de Formação Auditiva na Universidade de Aveiro,


posso afirmar com segurança que o nível médio dos alunos e alunas que ali chegam, chegados de prati-
camente todo o país, após oito a doze anos de estudos de música, padece de vários sintomas de formação
deficiente. Os indícios são, entre outros, sem ordem de prioridade: competências de memória diminutas;
presumivelmente, estruturas cognitivas de suporte à compreensão musical frágeis; erros de escrita, ao
nível melódico, que revelam uma correspondência débil entre características de lógica da música tonal e
o correspondente pensamento (e.g.: alterações à armação de clave que resultariam em uma sonoridade
bizarra que o próprio aluno ou aluna reconhece não existir; nenhuma alteração quando o aluno ou aluna
reconhece que existe uma perturbação da estabilidade tonal; indiferença pela hierarquia dos graus tonais);
erros de escrita, ao nível rítmico, que revelam problemas sérios de perceção deste domínio, assim como
uma correspondência débil entre esta – a escrita – e o pensamento correspondente (e.g.: insensibilidade a
pormenores e contextos rítmicos menos comuns; inexistência de argumentos para os racionalizar; redução
de nuances rítmicas a meras proporções imprecisas de valores longo/curto entre figuras; insensibilidade
para características como a anacruse, a síncopa, métricas mistas; insensibilidade à ordem estrutural do
compasso e outras unidades estruturais); acentuada rigidez de interação; quase total ausência de critérios
de perceção harmónica; incapacidade de gerar frases melódicas ou rítmicas simples – em processos de
criação que envolvem composição, adotam quase sempre processos de escrita meramente gráficos, sem
qualquer critério observável de relação com um universo sonoro de valor musical; indisponibilidade
quase total para a improvisação.
As razões para este enquadramento estão associadas ao conceito geral que tem pautado o ensino da
FM e que está plasmada no documento das AE para a disciplina. Justifico de seguida.
O problema pode ser colocado do seguinte modo: quais são os elementos constituintes do discurso
musical que, uma vez compreendidos – compreensão aqui entendida de um modo geral, englobando todos
os processos envolvidos na apreensão da realidade musical, desde a sensação, a categorização, a perce-
ção, a associação simbólica, o conceito – capacitam a inteligibilidade na abordagem ao discurso musical?
Considerados intrínsecos a um discurso musical de um dado contexto cultural, hão de corresponder e
aderir às estruturas cognitivas concomitantes que permitirão, a cada pessoa que se relaciona com o objeto
musical e aculturada no mesmo, a construção do processo de compreensão. Portanto, os elementos de
inteligibilidade são, simultaneamente, propriedades intrínsecas do objeto musical, e das estruturas cogni-
tivas que o descodificam e significam. Aqui se percebe que, falhando a definição dos elementos consti-
tuintes para a inteligibilidade, falhará toda a construção curricular e todo o processo de ensino-aprendi-
zagem. Pois os objetivos, os conteúdos, as estratégias, enfim, toda a construção curricular e todo o
processo daí decorrente, se subordinará à correção maior ou menor na definição daqueles elementos
constituintes.

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O documento das AE apresenta uma perspetiva desses elementos:


“Toda a aprendizagem é cumulativa, evolutiva e sempre aberta a novas informações, sendo obser-
vável uma gradual complexificação, tanto na componente oral como na escrita:

• das células rítmicas;


• dos intervalos melódicos;
• dos intervalos harmónicos;
• dos conceitos teóricos”

Portanto, estes itens são referidos, em alinhamento com o que vem sendo a tradição do ensino de
música em Portugal, como elementos de construção do discurso musical que concorrem para a sua inte-
ligibilidade. Estas serão uma espécie de estruturas mínimas de significado que, em complexidade cres-
cente, se constituem como o repositório de recursos que prepararão o estudante de música para uma
prática fluída e eficiente. As abstrações da música que, uma vez entendidas, permitirão abrir as portas das
especificidades possíveis.
Estes elementos padecem, contudo, de uma deficiência determinante: ignoram as dimensões de
contexto que as envolvem. E, na medida em que são estas que conferem significado aos elementos, estes,
por consequência, são desprovidos de significado concreto musical: parecem-se com algo, mas não são
nada. Quando os estudantes se vêm confrontados com a tentativa de compreensão de um objeto musical
específico, convocam as categorias que aprenderam, mas não encontram acordo com as características,
mais ou menos complexas, da música concreta e real. Vejamos os casos das células rítmicas e dos inter-
valos:

• as células rítmicas3
Quanto à sua função, “o ritmo organiza o tempo, [...] assume um papel sintático central ao organizar
os eventos musicais em padrões e formas coerentes e compreensíveis. Num outro extremo do processo
de comunicação, o ritmo também modula a atenção do ouvinte na relação da perceção dos eventos musi-
cais. O ritmo guia o ouvido e o cérebro no sentido de tornar coerentes os padrões e formas acústicos,
direcionando o foco para momentos importantes da música que se desenvolve” (Thaut, 2008, p. 6) (itálico
meu).
O estudo de ritmo decorrente do conceito de célula rítmica, com frases que se fazem como coleções
delas, nem produz padrões e formas coerentes, nem direciona o foco.
O ritmo torna-se inteligível na confluência das propriedades consentâneas entre o objeto musical e
as estruturas cognitivas, em função de duas dimensões distintas, tanto na sua génese, como na sua função,
ou nos respetivos processos percetivos:
a) a codificação métrica, que decorre da “sensibilidade do ouvinte para com certas regularidades de
tempo musical,” (Hallam et al., 2016, p. 125), e deriva da propriedade de entrainment,4 caracte-
rística quase exclusiva dos seres humanos, e que consiste na construção da estrutura de pulsos
isocrónicos, múltiplos e submúltiplos, que, se e quando racionalizados, denominamos de tempo,

3 (Não pretendo aqui uma definição final de ritmo. Procedo apenas à abordagem do conceito mais geral, consensual, enquanto
estudo do ritmo no nosso ambiente cultural, comummente chamado de “tradição ocidental”, ainda assim extremamente rico e
variado. Além disso, refiro-me apenas ao ritmo mensurado, para reduzir o âmbito da problemática à dimensão deste texto).
4 À falta de tradução direta que retenha o significado preciso, aqui imprescindível, mantenho o termo sem tradução. A descrição
no The Oxford Handbook of Music Psychology, esclarece: “Entrainment is a biological process involving adaptative synchrony
of internal attending oscillations with an external event” (Hallam et al., 2016, p. 128).

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divisão, subdivisão, compasso, semi-frase, frase, período, e estabelecem o terreno da previsibili-


dade, da antecipação, da surpresa, enfim, de todos os parâmetros do movimento musical que lhe
conferem significado.
b) o nível propriamente rítmico, cuja perceção “presumivelmente, [...] depende de princípios de
agrupamento, aplicados à dimensão do tempo, incluindo proximidade, similaridade, continuidade
(Hallam et al., 2016, p. 133). Estes princípios são esclarecidos no âmbito da psicologia Gestalt.

Thaut (2008, p. 8) refere-se à codificação métrica usando o termo pulso: “A perceção do


pulso, criando modelos temporais, deve ser considerada uma componente fundamental na formação
do ritmo. [...] Os eventos rítmicos são referenciados e sincronizados contra uma sensação subjacente de
padrões de pulso. Qualquer perceção ou produção de ritmo metricamente estruturado em música –
mesmo ritmos irregulares – deverá basear-se em algum processo de sincronização contra estruturas
subjacentes de pulso (itálico meu). Os pulsos são, portanto, componentes cruciais em música”.
O conceito das células rítmicas, preconizado no documento das AE, assenta nos seguintes preceitos:
a sua conceção é em função de um tempo abstrato, como se o pulso tempo fosse o valor absoluto de
referência para geração das possibilidades rítmicas; o estudo é fundamentalmente assente em leituras e
ditados. Em qualquer destes casos, a configuração é como a deste exercício, constante num teste escrito
do 5º grau do Conservatório de Música do Porto, em 2016:

Este tipo de abordagem desconsidera ostensivamente a codificação métrica, que promove a lógica
estrutural, inexistente nestes exercícios. Por outro lado, menospreza igualmente a emergência de células
rítmicas orgânicas, portadoras de significado musical, uma vez que as possibilidades reais em música
estão para além do preenchimento dos tempos, e reclamam uma lógica que contém, entre outras caracte-
rísticas, repetição, previsibilidade e expectativa. Negar estas propriedades é negar o ritmo. Não admira,
pois, que, no final dos estudos de música, as subtilezas de ritmo sincopado da bossa-nova, por exemplo,
ou de outros estilos de música popular e tradicional, de tradição oral, sejam um mistério inacessível para
tantos alunos e alunas.
As características implícitas e necessárias numa rítmica saudável são contrariadas na abordagem do
estudo do ritmo preconizada no documento das AE, materializada no conceito de célula rítmica, compro-
metendo seriamente as competências rítmicas:
a) contrariando o impulso ressonante da codificação métrica, na medida em que o estudante se vê
obrigado à reconstrução permanente de uma referência de pulso/tempo para resolver a complexi-
dade;
b) destruindo a fluência, característica implícita na realização rítmica;
c) destruindo a característica da antecipação, pela manutenção de uma diversidade constante;
d) reduzindo a um acervo assético as possibilidades reais de “células, palavras e motivos rítmicos”,
constantes nos estilos rítmicos, acervo esse sem aplicação para além dos exercícios da disciplina
de Formação Musical;
e) redução da coordenação motora, intimamente coexistente com a realização rítmica, a uma inex-
pressiva articulação mecânica do pulso;
f) destituição de direção e emoção da frase rítmica, pela ausência de acentos e dinâmica, incom-
preensivelmente monotímbrica ao piano.

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• os intervalos
Tipicamente, o estudo dos intervalos percorre todo o percurso académico musical. Talvez seja mesmo,
dos estudos de música, o assunto que mais obsessão gera. Curiosamente, não convoca a discussão o facto
de, apesar do tempo de estudo dos intervalos e de horas intermináveis de escrita, na forma de ditado, as
competências de escrita melódica dos alunos e alunas deixem tanto a desejar. Aparentemente, a sugestão
de que algo pode estar mal equacionada na abordagem pedagógica não faz parte das preocupações, nem
de professores, nem de alunos, que aceitam pacificamente o dano com a convicção de que a eficácia só
pode ser exequível para quem tem a memória dos nomes vinculados às alturas, vulgo ouvido absoluto.
No entanto, dentro da linguagem tonal, seria de esperar, feita luz sobre a consistência da perceção
melódica, uma correspondência com a lógica da escrita: a escrita devia traduzir, ainda que com alguma
margem de erro, a coerência da perceção. Realço esta nota: verifico, depois de anos de observação de
tarefas escritas, de alunas e alunos que terminaram o percurso de oito a doze anos em conservatórios de
música, que a escrita das alturas não traduz a consistência dos contornos da perceção; antes funciona
como uma resultante de cálculos não sustentados no escrutínio sobre a perceção. Por exemplo, um aluno
ou aluna percebe que não existiu modulação, no entanto escreve uma alteração que implicaria modular.
Se é convidado ou convidada a explicar a opção, normalmente não sabe o que responder, ainda que tenha
alguma compreensão teórica sobre a implicação da alteração que usou.
Porquê este equívoco? Entre outras razões, deriva da indiferença pelo contexto, enquanto sistema de
referências. Segue-se uma explicação plausível:
“Uma característica determinante da música ocidental é a sua organização hierárquica […] a possi-
bilidade de organizar eventos musicais numa hierarquia de importância estrutural tem implicações pro-
fundas no ouvinte. [...] a presença da hierarquia confere qualidades dinâmicas às peças musicais que têm
implicações psicológicas profundas” (Hallam et al., 2016, p. 95). Em experiências realizadas para o
esclarecimento das hierarquias, Krumhansl (1990) determinou o que chamou de “força de pertença” das
alturas dentro das tonalidades, a que chamou hierarquias “intra-tonalidade”. Na tonalidade maior, a maior
“força de pertença” recai na tónica, seguida da 5.ª, depois da 3ª e da subdominante. Seguidamente surgem
os outros graus - 2º, 6º e 7º - e, por último, as alturas que não fazem parte da tonalidade. No modo menor
há uma diferença: a 3ª surge antes da 5ª, e esta surge juntamente com a 6.ª.
Supõe-se, a propósito, que a preferência cultural por escalas assimétricas se prende precisamente
com a função de proporcionar uma hierarquia, que implica por sua vez a possibilidade de construção de
eventos dinâmicos entre tensão e repouso.
Seguramente, o carater dinâmico e as implicações psicológicas são indissociáveis do fenómeno
percetivo. Acresce que, “quando nós experienciamos alturas5 em música, não experienciamos alturas
isoladas, ou coleções arbitrárias de alturas isoladas; nós experienciamos padrões de alturas (Hallam et al.,
2016, p. 71).
Por outro lado, a função tonal de cada altura e a sua disposição temporal e rítmica afetam a perceção
dos padrões de alturas. A título de exemplo, entre a imensidade das possibilidades – no universo incomen-
surável da expressão musical, não obstante a obsessão pela racionalização dos intervalos nos querer
provar o contrário – ouça-se este motivo:

5 Uso aqui “alturas” como tradução de “pitch”. O conceito de “nota”, também aparentemente aceitável, implica, no entanto, uma
conotação com a escrita, que não é aqui adequada.

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Temos quatro quartas perfeitas; não obstante o caráter subjetivo na sua perceção, podemos especular
sobre as seguintes sonoridades:
a) a 4.ª entre o 5.º e o 1.º grau soa declarativa, resoluta
b) a 4.ª entre o 1.º e o 4.º grau soa expansiva, reclama continuidade
c) a 4.ª entre o 2.º e o 6.º grau soa contida, estável, algo ambígua
d) a 4.ª entre o 2.º e o 5.º grau soa expansiva, reclama uma resolução

É de supor que o estudo dos intervalos tenha como finalidade estabelecer as identidades de cada
inter-valo (identidade intervalar, doravante: IDINT). A realidade musical, no entanto, demonstra que,
por um lado, não existe uma IDINT fixa para cada intervalo. Por outro lado, não se afigura possível
percorrer as IDINT possíveis, tendo em conta fatores como: o lugar de cada intervalo na tonalidade; o
lugar dentro da estrutura, com momentos mais acentuados, outros menos; a existência de harmonia
implícita ou explícita, entre outros. Também o registo, ou o caráter ascendente ou descendente, afetam a
perceção dos intervalos.
Se não se pode dizer que o estudo dos intervalos seja completamente inútil, é seguro afirmar que o
seu estudo como base fundamental para o trabalho sobre a perceção melódica demonstra fragilidades e
carece, por essa razão, de comprovação. Entretanto, outras abordagens deviam ser tidas em conta, nomea-
damente, a consolidação de mecanismos de memória, perceção das funções tonais, ou intervalos em
ambientes harmónicos variados.
• Os acordes
Curiosamente, os acordes não são apresentados na mesma linha das células rítmicas e dos intervalos.
Não obstante, surgem como conteúdo a lecionar, a começar logo no 5.º ano, no organizador das compe-
tências sensoriais.
O corolário deste estudo consta do 12.º ano. No domínio sensorial é suposto “reconhecer
auditivamente qualquer acorde de 3 sons, no estado fundamental ou em qualquer inversão; acordes de 4
sons, sétima da dominante em qualquer inversão, sétima menor, sétima diminuta, sétima da sensível,
sétima maior e acordes de 5 sons, nona maior e nona menor”. Quanto à escrita, temos a expetativa do
domínio das cadên-cias clássicas, a serem reconhecidas e escritas.
A pobreza desta disposição relativamente à dimensão da harmonia é tal, que se pode considerar
praticamente inexistente o seu estudo. O estudo da harmonia é reduzido ao estudo de acordes, suas cons-
tituições e características, ou pretensamente subsumido em modelos de cadências respeitantes a um
repertório específico e limitado.
Também neste domínio, o conhecimento da música não pode prescindir do contexto e das relações
intra-tonalidade, tornando-as ainda mais complexas. A um acorde não basta ser deste ou daquele tipo,
antes tem que assumir uma identidade relativa à função que exerce dentro da tonalidade. Fator decisivo
para a construção de informação estrutural, do conteúdo emocional da música, impulsionador do movi-
mento, gerador de espectativas. O ambiente natural dos acordes são os encadeamentos, praticamente
ignorados neste documento.
Um facto é que, depois de anos a estudar acordes isolados, sofisticados até à 9.ª, e cadências
clássicas, os alunos e alunas são frequentemente incapazes de percecionar a fórmula mais simples
possível, de encadeamentos com os graus tonais (I – IV – V), nos modos maior ou menor, em exemplos
musicais reais. Isto é nada menos que bizarro. No entanto, aparentemente, não causa embaraço ou
questionamento no sistema de ensino especializado da música.

Em resumo: o racional que sustenta as opções deste sistema, reconduzido agora no documento das
AE, consiste na abstração de elementos constituintes do discurso musical, retirados do universo concreto

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da música e, consequentemente, dos seus estilos e práticas específicos. Presume-se que, estudando-os
com base em exercícios tipificados, se caminha no sentido da compreensão e domínio das matérias musi-
cais. A prática comum e a investigação demonstram que as coisas não sucedem assim. Os alunos e alunas
aprendem com graus variáveis de eficácia a responder aos exercícios e testes da disciplina de FM, ao
mesmo tempo que se vão alienando, mais e mais, do fascínio da música (das músicas) real (reais).

O aluno solitário e passivo

Hallam et al. (2016, p. 54), elencam as quatro funções mais plausíveis da música:
1. Regulação do estado emocional, cognitivo e fisiológico dos indivíduos (a partir dos impactos ao
nível fisiológico, a música afeta também os estados emocional e cognitivo)
2. Mediação entre o eu e o outro (refere-se aos processos de comunicação estabelecidos com a
mediação da música, nomeadamente em situações em que a linguagem comum se mostra inade-
quada)
3. Representação simbólica (refere-se ao processo de referenciação por parte da música, como meio
semiótico de alta eficácia, nomeadamente no âmbito do cinema e da publicidade)
4. Coordenação da ação (refere-se à disponibilidade dos seres humanos para a sincronização ativa
das suas ações físicas, reforçando o sentimento de pertença e os laços de emoções partilhadas)

A música é, presumivelmente, uma das manifestações mais complexas e específicas dos seres huma-
nos. Talvez uma demonstração dessa peculiaridade seja o facto de resistir à determinação definitiva da
sua relevância enquanto fator de adaptabilidade e homeostase e, como tal, de características decisivas
para a manutenção da sobrevivência. Essa complexidade prende-se com o facto de ser uma atividade
vinculada a faculdades mentais tão variadas quanto distintas nos seus atributos, desde processos de coor-
denação motora, passando por processos de socialização, até processos de significação e outros de alto
nível cognitivo.
Qualquer uma das funções mencionadas obedece a modelos de ação. Decorrente destes modelos de
ação, ainda que mais diretamente vinculado à primeira, reconhece-se, para a maior parte dos seres huma-
nos, o prazer de fazer ou partilhar música. Parece razoável, pois, sugerir que o simples prazer de sentir a
música é o maior fundamento da sua existência, independentemente de ser determinante como fator de
sobrevivência, ou não. O prazer da criatividade em ação.
Quanto ao documento que define as AE: “no ensino artístico especializado de música, a Formação
Musical tem como objetivo a formação gradual ao nível das competências associadas à audição e leitura
musical, sem comprometer, no entanto, a formação prévia e imprescindível de competências sensoriais”.
O modelo de aluno/a passivo/a faz-se evidente nos verbos que circunscrevem os conhecimentos, capaci-
dades e atitudes expectáveis por parte dos alunos, no documento do 5.º ano: reconhecer, comparar, dis-
tinguir, entoar, reconhecer, reconhecer, associar, conhecer, conhecer, ler, ler, ler e entoar, realizar
ditados, atribuir [...] o ritmo, escrever, escrever e classificar, reconhecer, escrever, imitar, improvisar,
criar. Em itálico estão os verbos que configuram atitudes passivas.
Também relevante, quanto ao papel reservado à criatividade: os organizadores de configuração pas-
siva têm, para o 5.º ano, vinte entradas, contra três entradas para atividades criativas. O ensino da música
ideado como um terreno árido, sonolento, sem espaço para a expressão individual em interação social.

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No entanto, é de uma evidência inegável o impacto da criatividade, nomeadamente a improvisação/


composição, e a interação social, com resultados diretos na aprendizagem: numa experiência em que usou
a improvisação no currículo dos estudos de música, “Azzara descobriu que alunos do 5.º ano que recebe-
ram treino com ênfase na improvisação atingiram níveis de realização performativa mais altos que os de
alunos sem esse treino específico (Hargreaves, & Lamont, 2017, p. 124).
Por todas as razões ostensivamente demonstradas, “Educadores de música estão cada vez mais
empenhados em cultivar os processos criativos envolvidos no performance musical e composição, e a
criatividade colaborativa tem emergido como um campo de estudo distinto de pleno direito: não apenas
na música, mas também em outros domínios...” (Hargreaves, D., & Lamont, A. 2017, p. 118).

Uma oportunidade perdida

Conforme consta da página da Direção-Geral da Educação (DGE), as Aprendizagens Essenciais


(AE) expressam “a tríade de elementos – conhecimentos, capacidades e atitudes – ao longo da progressão
curricular, explicitando:
a) o que os alunos devem saber (os conteúdos de conhecimento disciplinar estruturado, indispensá-
veis, articulados concetualmente, relevantes e significativos);
b) os processos cognitivos que devem ativar para adquirir esse conhecimento (operações/ações
necessárias para aprender);
c) o saber fazer a ele associado (mostrar que aprendeu), numa dada disciplina – na sua especifici-
dade e na articulação horizontal entre os conhecimentos de várias disciplinas -, num dado ano de
escolaridade” (Direção-Geral da Educação)
O momento, de singular importância, dado o seu caráter excecional, e determinante para o futuro da
disciplina, rogava uma dedicação reformadora.
O que aconteceu, porém, foi ter-se vertido neste documento novo a perspetiva de ensino da Música
cristalizada na grande parte dos conservatórios e escolas do ensino especializado de música. Por cristali-
zada designo a perspetiva que tem pautado orientações tomadas como paradigmas de orientação dos
estudos da disciplina. Efetivamente, confrontados os conteúdos do documento das AE, constata-se que
são praticamente idênticos a currículos já estabelecidos em alguns conservatórios e escolas de música.
Na opinião do autor deste artigo, a solicitação da ANQEP resultou, dramaticamente, para a
disciplina de FM do ensino artístico especializado, na validação dos preceitos cujos resultados nocivos,
alguns dos quais assinalados por Monika Andrianopoulou, tanto urgia resolver. ara além destes, outros
problemas persistem no documento:
• o caráter vago do conceito de “competências sensoriais”, e a concomitante e estranha ausência do
conceito de perceção, decorrente dos fenómenos da categorização das sensações;
• a falta de esclarecimento sobre o processo dinâmico de aprendizagem, dialético, estabelecido
entre as relações empírica e conceptual com a realidade sonora/musical;
• a falta de articulação geral entre as dimensões da atividade chamada sensorial, de leitura e escrita,
e a dimensão criativa, que são apresentadas como estanques, sem precedentes entre si nem rela-
ções de dependência;
• ausência de explicitação sobre a articulação no processo ensino-aprendizagem entre o som e a
escrita;
• caráter acentuadamente prescritivo, oposto à expectável promoção da autonomia das escolas;
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Conclusão

A teoria de aprendizagem musical de Edwin Gordon assenta fundamentalmente no conceito de


audiação. Para o autor, “a audiação está para a música como o pensamento está para a linguagem”.
(Gordon, 2007, p.9)
A asserção é eloquente, na medida em que não é possível imaginar linguagem sem pensamento.
Extrapolando, pode dizer-se que a educação em música teria como principal objetivo geral potenciar os
atributos de audiação.
Para além deste contexto de capacitação técnica, a educação em música devia percorrer, implícita e
indiscutivelmente, os atributos acima descritos que, numa dimensão de prazer em comunicação, funda-
mentam a sua própria existência. Refiro-me, fundamentalmente, às dinâmicas da criatividade e da expe-
riência social.
Basta assistir às massivas desistências dos alunos de música, logo nos primeiros anos de estudo,
assim como às carências de compreensão da música para quem resiste aos estudos e chega a níveis supe-
riores, para inferir que não tem sido aquele o caminho percorrido: capacitação técnica e prazer existencial.
Para mais, a serem perenes os sinais, estamos num momento de transformação social que faz perigar
mais ainda os modelos vigentes do ensino da música; num momento que, por todas as razões, se rogava
uma reflexão inteligente e profunda neste domínio, é nada menos que dramático para os estudos de
música que se tenha perdido esta oportunidade, sancionando num documento oficial a penúria intelectual
e pedagógica que se tem disfarçado de tradição.
Uma oportunidade perdida.

Referências

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Revista Portuguesa de Educação Musical, n.º 148, janeiro-dezembro 2022, pp. 7-16

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