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Aos estudantes,

A história que o Coletivo Memória e Luta reconstrói, com aquarelas e vídeos, é a da UFRGS
durante a Ditadura, numa época em que vocês ainda não tinham nascido. Aquele período de
falta de liberdade de pensamento e de expressão, de opressão e violência, é também
responsável pela fragilidade da democracia de hoje e pelas incompreensões que sofrem as
universidades onde vocês estudarão e nós ensinamos. Nossa sociedade foi levada a crer que
esquecer seria o mesmo que resolver e jogou esse passado de injustiças e repressão para
“debaixo do tapete”. Por isso, até hoje somos assombrados pela possibilidade do retorno da
ditadura. Nós queremos ajudar a não esquecer o que foi feito com os nossos colegas, com os
estudantes e com os servidores técnicos desta universidade nos anos de chumbo de 1964 e
1969.
As aquarelas de nossa exposição resgatam a história da Ditadura 1964-1985*. Elas têm uma
sequência que conta uma história que começa em 1961, quando, menos de um ano após tomar
posse como presidente, Jânio Quadros renuncia. Setores conservadores da sociedade,
insatisfeitos com as reformas propostas pelo governo, tentaram impedir que o vice-presidente
João Goulart, o Jango, assumisse. Mobilizada pelo governador Leonel Brizola, a população
do RS foi às ruas exigir a posse do vice-presidente, na Campanha da Legalidade.
Mas é importante se situar no tempo: (2) em 1959, a Revolução Cubana pôs fim ao domínio
dos EUA sobre seu território. Em 1962, Jango Goulart se recusou a votar contra Cuba na
OEA, no episódio da crise dos mísseis, e se opôs à instalação de armas nucleares na América
Latina. Essas demonstrações de autonomia não agradaram ao “grande irmão”, e setores da
classe dominante se organizaram nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade,
criando um ambiente propício para o Golpe de Estado de 1964, apoiado pelo governo de John
Kennedy.
(3) A crise política gerada pela resistência à posse de João Goulart foi se agravando, pois ele
desejava um desenvolvimento econômico autônomo, propondo uma Reforma Agrária que
proporcionasse justiça no campo e a existência de sindicatos que defendessem os
trabalhadores. Em 31 de março de 1964, um Golpe de Estado civil-militar depôs o presidente
e teve início a destruição do Estado Democrático de Direito por meio da interferência dos
militares na política nacional, a serviço dos interesses dos setores conservadores da elite e da
classe média brasileira e dos EUA. Com o Golpe, os militares assumiram a presidência do
país por 21 anos, e a força substituiu a política no debate das ideias. Milhares de pessoas
foram presas nos primeiros dias do Golpe. Muitas tentaram, corajosamente, resistir; outras
fugiram para escapar à prisão.
Todos os opositores ao Estado de exceção foram perseguidos e silenciados. Em 9 de abril de
1964, entrava em vigor o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que legalizava a “limpeza” dos
adversários: mais de cem civis e militares tiveram seus direitos políticos cassados, dezenas de
oficiais das Forças Armadas foram mandados para a reserva, e milhares de funcionários
públicos foram demitidos, como muitos professores. Na resistência, João Goulart, Leonel
Brizola, Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro, entre muitos outros.
(5) A Operação limpeza atingiu toda a sociedade, e um dos seus alvos preferenciais foi a
universidade, espaço de pensamento crítico e autônomo e de produção de conhecimento. Na
UFRGS, 18 professores foram sumariamente expurgados em setembro de 1964, a partir das
“investigações” realizadas pela Comissão Especial de Investigação Sumária (CEIS),
coordenada pelo Gen. Jorge Cesar Garrastazu Teixeira.
(6) Alguns setores da sociedade, como os professores, os funcionários e os estudantes
universitários resistiam à repressão. Em Porto Alegre, logo após o Golpe de Estado, os
estudantes ocuparam a Reitoria e a Rádio da UFRGS para mostrar seu repúdio ao Estado de
exceção. Em novembro de 1964, os alunos da Faculdade de Economia convidaram para
paraninfo o Prof. Cláudio Accurso, recém-afastado da universidade, mas o Diretor da
Faculdade propôs uma cerimônia a portas fechadas, o que não foi aceito. Homenagearam
então seu professor no saguão do prédio da Faculdade.
(7) Passado o impacto inicial provocado pelo Golpe e a repressão, a sociedade civil e os
movimentos de esquerda, sobretudo na universidade, reorganizaram-se para defender a
democracia. Em POA, os alunos da UFRGS organizavam a Passeata dos Bixos: em um
desfile dos calouros no centro da cidade, eles se fantasiavam e carregavam alegorias com
sátiras sociais que divertiam, mas, sobretudo, criticavam o sistema. Milhares de pessoas
assistiam aos desfiles.
Muitas vezes, os estudantes da UFRGS lideraram a luta contra a opressão e a violência do
Estado e defenderam a universidade pública. Em POA, a Faculdade de Filosofia era o centro
dessa resistência democrática. Em 1964, logo após o Golpe, uma intervenção militar extinguiu
a Federação dos Estudantes da URGS e a substituiu pelo DCE. Em 1966, o reitor José
Carlos F. Milano ordenou a retirada à força das lideranças estudantis da sede do DCE. Em
março de 1967, 200 estudantes ocuparam o RU e a Casa do Estudante para fazer ouvir suas
reivindicações, mas foram desalojados à força. Logo depois, criou-se a “Comissão de
Inquérito Administrativo” para processar as lideranças, e o estudante João Carlos Alberto
Pinto Vieira foi expulso da UFRGS.
Em junho de 1968, o assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, por
policiais militares, foi o estopim para uma manifestação contra a repressão, liderada por
jovens, estudantes e artistas, que reuniu milhares de pessoas no Rio de Janeiro. Foi a maior
manifestação de protesto desde 1964 e ficou conhecida como Passeata dos Cem Mil.
Em 1968, a resistência dos jovens universitários à repressão, à falta de liberdade, à
subserviência aos interesses de potências estrangeiras também acontecia no restante do
mundo: protestos contra a Guerra do Vietnã, luta contra o racismo do Movimento dos
Panteras Negras e Movimento pelos Direitos Civis. Na Europa, a revolta estudantil de
Maio de 68 e a Primavera de Praga na Tchecoslováquia. No México, mais de 300
estudantes foram mortos no massacre de Tlatelolco, por protestarem contra a intervenção
armada na Universidade Nacional do México e a prisão de seus colegas.
(11) Em 1968, os movimentos de resistência se intensificaram. Na universidade, os setores
progressistas lutavam contra sua elitização, e os estudantes filiavam-se à União Nacional dos
Estudantes (UNE), proibida após o Golpe; por isso, decidiram realizar seu 30º Congresso
clandestinamente em 1968. Foram todos presos e encarcerados. Entre eles, os líderes
estudantis José Loguercio e Raul Pont.
O Ato Institucional no 5 (AI-5), promulgado pelo presidente Costa e Silva, em dezembro de
1968, foi a mais brutal intervenção jurídica no Estado de Direito e na normalidade
constitucional. As prisões se intensificaram, a tortura tornou-se recorrente, o governo
intervinha em Estados e municípios sem nenhuma proteção jurídica, parlamentares eram
cassados e as garantias constitucionais desapareceram. Na UFRGS, na gestão do reitor
Eduardo Zácaro Faraco, nomeado por Costa e Silva, criou-se uma Comissão de Investigação
Sumária do MEC, que expurgou 23 novos professores.
O jornalista Vladimir Herzog morreu em 25 de outubro de 1975 numa cela do DOI-Codi, em
São Paulo, sob tortura. Os militares alegaram suicídio, mas um colega também preso
desmentiu essa afirmação e denunciou o assassinato. O cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o
Pastor Jaime Wright e o rabino Henry Sobel realizaram na Catedral da Sé um culto ecumênico
para Herzog, que era judeu. Milhares de pessoas foram homenageá-lo na Praça da Sé sitiada.
Foi o primeiro protesto popular após o AI-5. O assassinato de Herzog e a revolta que se
seguiu marcaram o início do fim do regime ditatorial.
Promover a “abertura” do regime, mesmo que lenta e gradual, não foi uma decisão
consensual. Até 1981, a extrema-direita, inconformada, promoveu vários atentados. No de
abril de 1981, uma bomba explodiu num carro com dois militares no Centro de Convenções
do RioCentro, onde milhares de pessoas assistiam a um show no Dia do Trabalhador.
Acabava assim, tragicamente, a farsa dos atentados para impedir a redemocratização do país.
Com a Anistia, os exilados retornaram ao país, os presos recuperaram sua liberdade, e a
sociedade criou novos partidos políticos. Criaram-se mecanismos para reparar as vítimas da
violência do Estado, mas a maioria dos corpos dos desaparecidos não foi localizada e
devolvida às suas famílias, nem os acusados de tortura foram incriminados.
Em junho de 1978, alguns professores da UFRGS fundaram a Associação dos Docentes da
UFRGS (ADUFRGS). Em 1979, cinco dias antes da promulgação da Lei de Anistia, a
ADUFRGS lançou o livro Universidade e repressão: os expurgos da UFRGS como autora
para proteger seus autores. Somente 30 anos depois, os professores que corajosamente haviam
escrito a história dos expurgos, denunciando as injustiças da ditadura na UFRGS, puderam
assumir sua autoria: Ligia Averbuck, Maria Assunta Campilongo, Lorena Holzmann, Luiz
Alberto Oliveira Ribeiro de Miranda, José Vicente Tavares dos Santos e Aron Taitelbaum.
Em 1978, um novo movimento sindical emergiu no país – a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) – a partir das grandes mobilizações dos trabalhadores, unidos na luta contra a carestia,
por melhores salários e condições de trabalho e pelo direito de organização. Em março de
1979, cerca de 200 mil operários aderiram a uma greve no ABC paulista por melhorias
salariais e pela manutenção de seus empregos. Também nas universidades a luta continuava.
Em julho de 1986, a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES)
lutou contra a tentativa do governo de monitorar as atividades nas universidades.
Esse processo de redemocratização influenciou o movimento sindical docente. Os professores
se filiaram em massa aos sindicatos e associações, representantes legítimos de defesa da
categoria. Simultaneamente, Fernando Henrique Cardoso adotava uma economia neoliberal
que mercantilizava todos os serviços e provocava arrocho salarial. O exercício da democracia
ampliou a politização dos professores que, em defesa de suas condições de trabalho e da
própria universidade pública, organizaram várias greves.
(18) Em 1988, a nova Constituição Federal valorizou os direitos sociais e trabalhistas e elevou
a cidadania a um novo patamar. A partir de 2007, ampliou-se o número de vagas nas
universidades, e um maior número de jovens teve acesso à universidade pública, gratuita,
laica e de qualidade. Em 2012, as lutas dos movimentos sociais levaram à adoção de um
Sistema de Cotas sociais e étnicas para acesso às universidades públicas, como ocorreu na
UFRGS. Essa política de ações afirmativas busca minimizar as desigualdades étnico-raciais
que fazem do nosso país um dos mais desiguais do mundo. As universidades públicas estão
mais plurais e coloridas, mas há ainda muito a fazer para que o ensino superior esteja a
serviço de seu povo.
*Aqui expomos apenas 8 das 18 aquarelas.

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