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COMO A MÍDIA CONTRIBUIU PARA O CRESCIMENTO DA TORCIDA DO

FLAMENGO

Luís Gustavo Schuh Bocatios

RESUMO

Nos anos 1960, ocorreu a primeira pesquisa de torcidas no Brasil. Ela foi realizada em âmbito
nacional e estadual, e os resultados em cada estado mostravam que, com apenas uma exceção,
todos os times que tinham as cinco maiores torcidas do estado eram locais. Em uma pesquisa
divulgada em 2023, a única região que não é liderada por times do sudeste é a região sul —
que, mesmo assim, tem três times sudestinos completando o top 5. Essa disparidade entre o
resultado das pesquisas pode ser visto como algo natural, ou simplesmente um reflexo da
globalização, mas ela também guarda um significado de imposição cultural do centro do país
em relação às outras regiões, que evidencia como a televisão pode ser uma ferramenta política
e de disseminação de ideias. Esse não é um processo único ao esporte, mas que envolve a
cultura e costumes das regiões mais abastadas do Brasil, que são mostradas na mídia com um
viés positivo, fazendo as pessoas de outros centros julgarem-na como correta. Apesar dessa
conjuntura ter beneficiado a todos os times grandes do sudeste, o Flamengo foi o clube com o
maior crescimento de torcida, saindo de ter muitos adeptos no Rio de Janeiro para uma torcida
gigante no país inteiro, especialmente na região nordeste, que passou a ter um acesso mais
amplo à televisões no início dos anos 80. As teorias do Agendamento e do Gatekeeper,
frequentemente citadas na área da comunicação, ajudam a entender esse fenômeno, visto que,
tanto a figura do Gatekeeper — aquele que decide o que será publicado ou televisionado —
quanto a do editor que, segundo a teoria do Agendamento, nos diz o que e como pensar sobre
algo, podem ser aplicadas ao magnata Roberto Marinho, dono e fundador da Rede Globo, e
flamenguista fanático, que cuidava de como o clube era tratado por sua televisão. Esse
fenômeno resultou em um apagamento dos clubes da região, e, por consequência, enfraqueceu
a identidade nordestina como um todo. Atualmente, isso é combatido por movimentos e
indivíduos, que se conscientizaram da situação e buscam muda-lá.

Palavras-chave: Flamengo; mídia; televisão


HOW THE MEDIA CONTRIBUTED TO THE GROWTH OF FLAMENGO’S
CROWD

ABSTRACT

In the 1960s, the first fan survey took place in Brazil. It was held at the national and state
level, and the results in each state showed that, with only one exception, all the teams that had
the top five fanbases in the state were local. In a survey released in 2023, the only region that
is not led by teams from the southeast is the southern region — which, even so, has three
teams from the southeast completing the top 5. This disparity between the results of the
surveys can be seen as something natural , or simply a reflection of globalization, but it also
holds a meaning of cultural imposition of the center of the country in relation to other regions,
which shows how television can be a political tool and a tool for the dissemination of ideas.
This process isn’t unique to sport, but one that involves the culture and customs of the more
affluent regions of Brazil, which are shown in the media with a positive bias, making people
from other centers judge it as correct. Despite this situation having benefited all the big teams
in the southeast, Flamengo was the club with the biggest growth in supporters, going from
having many supporters in Rio de Janeiro to a huge crowd all over the country, especially in
the northeast region, which started to access televisions in the early 1980s. The theories of
Scheduling and the Gatekeeper, often cited in the area of communication, help to understand
this phenomenon, since both the figure of the Gatekeeper — the one who decides what will be
published or televised — as well as that of the editor who, according to the theory of
Scheduling, tells us what and how to think about something, can be applied to the tycoon
Roberto Marinho, owner and founder of Rede Globo, and a fanatical Flamengo supporter,
who took care of how the club was handled by his television. This phenomenon resulted in
the erasure of clubs in the region, and, consequently, weakened the northeastern identity as a
whole. Currently, this is fought by movements and individuals, who have become aware of
the situation and seek to change it.

Keywords: Flamengo; media;. television.


1. INTRODUÇÃO

Esse artigo científico buscará explorar como o tratamento da mídia influenciou no


crescimento meteórico da torcida do Flamengo, a partir da década de 80.
A torcida do Flamengo sempre foi grande. Na primeira pesquisa de torcidas
divulgada pelo jornal O Globo e realizada em parceria com o IBOPE, em 1969, o clube
aparecia como o segundo mais popular do Brasil, atrás apenas do Santos. Na ocasião, a
pergunta feita para os entrevistados não foi o time que eles torciam, e sim o time que
julgavam ser o mais “querido” do país e de cada estado.
A pesquisa foi realizada no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande
do Sul, Pernambuco, Bahia, Pará, Paraná, Distrito Federal, Ceará e Mato Grosso. Todos os
times citados na pesquisa são dos próprios estados, com a exceção do Cruzeiro, que aparece
como o segundo colocado em Minas Gerais, mas também como o terceiro no Distrito Federal.
Em contraponto, na pesquisa de 2023, a única região que não é liderada por
times do sudeste é a região sul, que tem Grêmio e Internacional como as duas maiores
torcidas. Mesmo assim, os três times que completam o top 5 são paulistas: São Paulo,
Corinthians e Palmeiras. No centro-oeste e no norte, os cinco primeiros são todos de São
Paulo ou do Rio de Janeiro, enquanto, no nordeste, o único clube que foge à regra é o Bahia,
e, no sudeste, apenas o Cruzeiro figura no top 5. Agora, como isso aconteceu?
É fato que o mundo está cada vez mais globalizado, mas esse é um fenômeno
de décadas que vem se consolidando cada vez mais. Nos anos 80, com a democratização do
acesso à televisão, a Rede Globo passou a chegar em lugares que antes recebiam muito pouca
informação.
O período coincidiu com um dos grandes times da história do Flamengo, que
foi campeão brasileiro nos anos de 1980, 82 e 83, e campeão da Libertadores e da Copa
Intercontinental em 1981. Sua popularidade no Rio de Janeiro, a boa fase do time e o carinho
de Robert Marinho, dono da Globo, fizeram com que quase todos os jogos do clube fossem
transmitidos quase toda semana para o país inteiro, o que levou à perda de popularidade,
inclusive local, de times regionais, ou a um fenômeno de pessoas que têm o Flamengo como
segundo time, que também são contabilizadas na pesquisa.
Mas não foi apenas o fato de transmitir os jogos: a mídia sempre se mostrou
simpática pelo rubro-negro carioca, e isso se refletiu na construção de uma boa imagem que
muito pouco tem a ver com o clube em si, mas sim com a boa-vontade da mídia em retratá-lo
de forma positiva, e é isso que será analisado neste artigo.
1.1 A TELEVISÃO COMO FERRAMENTA DE DISSEMINAÇÃO CULTURAL

Mestre e doutorando em tecnologia pela UTFPR, Carlos Debiasi conta que a


televisão, assim como qualquer meio de comunicação, pode ser uma ferramenta política e
cultural, de disseminação de ideias e mensagens. Na América Latina, o meio encontrou
facilidade de penetração nas massas por sua facilidade de entendimento, levando em conta o
alto índice de analfabetismo da região, o que exclui várias pessoas da possibilidade de
acompanhar um jornal impresso, por exemplo.
Para o pesquisador, a televisão foi usada no Brasil de modo a promover a
integração nacional. “É uma ideia que vem desde os anos 50, com a modernização do país. A
ideia de que o brasileiro é um povo festeiro, trabalhador, que gosta do carnaval, do futebol...
isso foi promovido pela televisão”, conta.
Debiasi explica que a informação é algo muito importante na sociedade que passa
a se formatar a partir dos anos 50, e, por isso, a televisão passou a ser vista pelas pessoas
como um eletrodoméstico de extrema necessidade. “As pessoas faziam consórcio para ter uma
televisão, tinham uma em preto e branco e sonhavam com uma colorida. Isso sempre foi
vendido pela publicidade — que é um dos braços do sistema capitalista — e isso se traduz até
hoje em dia, período em que dados apontam que 96% das casas no Brasil possuem um
aparelho televisivo.” A democratização do acesso à televisão veio a acontecer durante os anos
70. Pesquisas demonstram que, no início da década, 27% dos lares brasileiros possuíam uma
televisão, enquanto, no início dos anos 80, o número era de 55%.
Ele também conta que várias pesquisas sobre comunicação indicam que muitas
pessoas assistem televisão como parte de um processo de socialização. “Quando você está
conversando, até com pessoas aleatórias, você pode usar o conteúdo televisivo pra conversar.
Em época de Copa do Mundo, por exemplo, está passando um jogo em um restaurante e tem
pessoas desconhecidas assistindo aquilo, e você comenta algo com o cara do lado. Você usa
isso pra comentar, com amigos, família, colegas de trabalho, desconhecidos. O futebol é um
ponto importante nesse processo de socialização, pra que a pessoa se sinta parte daquele meio
social.”
Ele continua falando sobre o futebol, e explica que o processo de midiatização em
cima do clube é tão ou mais importante quanto o desempenho esportivo. “O Santos, por
exemplo, teve uma relevância muito grande nos anos do Pelé, de forma a chamar a atenção do
mundo inteiro. Onde o Santos ia, o povo ia assistir, por causa do Pelé. Isso tudo em uma
cidade praiana, que nem é das mais importantes do estado de São Paulo. Isso se deve ao
midiatismo que o clube gerava. Por exemplo, quantos torcedores tem o Mazembe, que tirou o
Internacional no Mundial de Clubes, ou o Raja Casablanca, que tirou o Atlético Mineiro?
Muito provavelmente nenhum. Por quê? Porque não passa pela midiatização, apareceu pra
nós em apenas um jogo aqui no Brasil. Se você midiatiza a imagem do clube, você tem
torcedores do Barcelona ou do PSG no mundo inteiro. Você está tornando aquilo atrativo para
as pessoas gostarem, e acaba influenciando culturalmente as pessoas.”
O período mais vitorioso da história do Flamengo ocorreu no início dos anos 80,
quando os aparelhos televisivos já estavam presentes em mais de metade dos lares brasileiros.
Na primeira metade da década, o clube foi tricampeão brasileiro, campeão da Libertadores e
Intercontinental. As transmissões massivas de jogos foram fundamentais para o crescimento
da torcida do clube, especialmente fora do Rio de Janeiro.
Isso se reflete nas pesquisas de torcida dos anos 60, quando contrapostas às atuais.
Na primeira pesquisa, divulgada pelo jornal O Globo e realizada em parceria com o IBOPE,
em 1969, o Flamengo aparecia como o segundo mais popular do Brasil, atrás apenas do
Santos. No âmbito nacional, o Santos foi citado como o mais querido por 49% dos
entrevistados, enquanto o Flamengo ficou em segundo lugar, com 20%. Em seguida, aparecia
o Corinthians, com 14%, o Vasco da Gama, com 5% e a última posição do top 5 consistiu em
um empate entre São Paulo, Botafogo e Palmeiras, com 3% cada.
Mas os resultados que mais chamam a atenção são os estaduais: todos os times
citados na pesquisa são dos próprios estados, com a exceção do Cruzeiro, que aparece como o
segundo colocado em Minas Gerais, mas também como o terceiro no Distrito Federal.
Em contraponto, na pesquisa de 2023, a única região que não é liderada por times
do sudeste é a região sul, que tem Grêmio e Internacional como as duas maiores torcidas.
Mesmo assim, os três times que completam o top 5 são paulistas: São Paulo, Corinthians e
Palmeiras. No centro-oeste e no norte, os cinco primeiros são todos de São Paulo ou do Rio
de Janeiro, enquanto, no nordeste, o único clube que foge à regra é o Bahia, e, no sudeste,
apenas o Cruzeiro figura no top 5.
Isso não aconteceu apenas pelo fato da televisão transmitir os jogos, mas também
pela simpatia que a mídia sempre demonstrou ao Flamengo, que refletiu na construção de uma
boa imagem que muito pouco tem a ver com o clube em si, mas sim com a boa-vontade da
mídia em retratá-lo de forma positiva.
2.1 O TRATAMENTO QUE A MÍDIA DEU AO FLAMENGO

Há duas teorias jornalísticas que podem ser analisadas ao se tratar desse assunto. A
primeira delas é a Teoria do Gatekeeping, termo que foi cunhado em 1947 pelo psicólogo
alemão Kurt Lewin, que versava sobre os hábitos alimentícios da população. Três anos
depois, em 1950, o pesquisador David Manning White importou esse termo para uma teoria
da comunicação. Ele buscava entender como ocorre o filtro das notícias dentro das redações.
Para ilustrar sua teoria, White criou a figura metafórica do Sr. Gates, um jornalista
experiente que atua como editor em um jornal e, diariamente, tem de selecionar as notícias
publicadas em seu jornal, dentre as milhares que recebia de uma agência. Na metáfora, Gates
representa a figura do gatekeeper, aquele que decide o que será veiculado ou não. O
pesquisador afirmou que a ação pessoal era o fator determinante na seleção das notícias.
Basicamente, a teoria defende que não apenas as notícias, mas também o viés com o
qual são publicadas, passam por um filtro pessoal, que, por sua vez, torna utópica qualquer
suposta imparcialidade.
O gatekeeper em questão é Roberto Marinho, dono e fundador da Rede Globo. Por ser
torcedor fanático do Flamengo, Marinho escolheu o clube como o carro-chefe das
transmissões esportivas da emissora, o que causou um crescimento enorme na torcida rubro-
negra em regiões que, anteriormente, não tinham como acompanhar o clube, especialmente o
nordeste.
A postura do magnata também bate com a Teoria do Agendamento, que foi formulada
por Donald Shaw e Maxwell McCombs na década de 70. Ela defende que o público
consumidor de notícias tende a tratar como mais relevantes os assuntos que estão em pauta
pela mídia.
A teoria pressupõe que os veículos de comunicação nos dizem em quê e como pensar,
agendando os assuntos que tratamos em nosso cotidiano, em conversas com amigos,
familiares e conhecidos.
Logo, se observarmos o espaço que a mídia dá ao Flamengo, é fácil entender como o
clube se tornou tão popular. Em sua autobiografia, Fala, Galvão!, o lendário narrador Galvão
Bueno conta que foi cobrado pela direção da Globo por proferir elogios ao Vasco da Gama
em uma partida contra o Flamengo, e apenas continuou como o principal narrador da emissora
porque provou ser flamenguista fanático.
Armando Nogueira foi tão especial para mim que uma vez me tirou de uma saia justa
com ninguém menos que doutor Roberto Marinho. Todos sabíamos da paixão de
doutor Roberto pelo Flamengo. Não foram poucos os domingos em que ele vinha à tv
com amigos para assistir aos jogos em circuito fechado, quando não havia
transmissões ao vivo dos jogos do Maracanã. Pois um desses jogos foi narrado por
mim, um Vasco x Flamengo. Mal começa o jogo, Vasco 1 x 0. Ainda no primeiro
tempo, Vasco 2 x 0. “Só dá Vasco”, disse ao microfone. Minutos depois, Armando
ligava para a cabine com um recado do patrão: “Diga ao meu speaker que ninguém
quer ouvir a opinião dele, que ele se restrinja a narrar o jogo”. Ele estava irritado
porque eu dizia que o Vasco estava arrasando o Flamengo. No dia seguinte, Armando
levou à sala dele uma gravação de várias vitórias do Flamengo narradas por mim,
inclusive a do Mundial de Clubes no Japão. “Doutor Roberto”, disse Armando,
“ninguém é mais rubro-negro do que o senhor, mas o Galvão chega perto”. Doutor
Roberto aceitou o argumento.

2.2 O FUTEBOL COMO IDENTIDADE CULTURAL

Ao longo da última década, vem crescendo no Nordeste um movimento contra


torcedores chamados de “mistos” — que torcem para times do Nordeste e ao mesmo tempo
para times do eixo Rio-São Paulo. Campanhas desse tipo foram criadas e aderidas até por
clubes.
Em 2019, o Fortaleza lançou uma campanha contra torcedores-mistos na véspera de
um jogo contra o Flamengo. Jornalistas do centro do país rotularam a campanha como
“preconceituosa”, ignorando toda a questão identitária que se construiu em torno do assunto
ao longo dos últimos anos.
Em sua dissertação de mestrado, o sociólogo Artur Alves de Vasconcelos afirma que
os clubes do eixo Rio-São Paulo exercem um papel de dominância em relação aos
nordestinos.

As principais emissoras de TV do país são sediadas nos estados de Rio de Janeiro e


São Paulo. Através de sua rede de afiliadas pelo território nacional, diariamente levavam aos
fãs de futebol por todo país considerável quantidade de informações sobre os clubes daqueles
estados, incluindo transmissões ao vivo de suas participações em torneios brasileiros e
internacionais. Essa presença constante na mídia ajuda esses clubes a se tornarem
simbolicamente muito próximos do dia a dia do torcedor nordestino, mesmo que
geograficamente distantes.

O jornalista Iago Maia atua como Coordenador de Comunicação da Secretaria


Municipal da Fazenda de Salvador, e é aluno do Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Cultura Contemporâneas. Ele também é formado em Comunicação Social,
com Habilitação em Jornalismo, pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge) e pós-
graduado em Mídias Sociais, pela mesma instituição.
Ele faz parte de um movimento que busca combater os torcedores “mistos”,
especialmente os do Flamengo. Aponta que, apesar dos indivíduos não serem seres amorfos,
não há como desvincular a construção da torcida do clube das transmissões das rádios Tupi e
Globo, e, posteriormente, das antenas parabólicas, que, por anos, foram os únicos sinais que
chegavam em várias localidades do Nordeste.
O jornalista ainda ressalta a desigualdade econômica entre as regiões, que também
reflete nos clubes de futebol nordestinos. “As instituições mais ricas são mais atrativas por
conta das conquistas, idolatria por algum atleta ou exposição quase diária na mídia. Isso limita
o crescimento dos times locais tanto no âmbito financeiro quanto no desportivo e amplia o
abismo no futebol.”
Ele também ressalta que esse é um tema importante não apenas para o futebol, mas
para a sociedade nordestina como um todo, pois trata-se de uma questão identitária de uma
região que sofreu por décadas com o silenciamento de sua sua cultura, seus costumes e seus
clubes esportivos. ”O futebol moldou a identidade cultural brasileira, e vice-versa. Para além
do brasão dos nossos times, quando torcemos para Bahia, Vitória, Sport, etc, estamos
exaltando nossas culturas e expressões e lutando pela valorização da região. Nossa campanha
anti-misto é um grito de protesto e valorização daquilo que amamos”, completa.

2.3 A TORCIDA DE FUTEBOL COMO PERTENCIMENTO A UMA REGIÃO

A questão da identidade nordestina no futebol é muito importante para Pedro Henrique


Nascimento. Hoje estudante de Jornalismo, Pedro nasceu na Bahia e foi criado em Sergipe.
Quando criança, dividia sua paixão futebolística entre Confiança, Bahia e Flamengo.
Ele conta que a regionalidade foi muito importante para que escolhesse torcer para os
times do Nordeste, inclusive em termos de laços afetivos construídos no Batistão, estádio em
que o Confiança manda suas partidas. “O Confiança é o time da cidade. Frequento o estádio
desde que me entendo por gente, construí e ainda construo grandes memórias com meu pai e
meus amigos na arquibancada do Batistão. Não foi uma escolha, e sim uma paixão que foi
passada para mim e que eu aceitei de corpo e alma!”, reflete Pedro.
Em relação ao Bahia, ele diz que é uma relação parecida. “É o time do estado em que
nasci, é o time de coração do meu pai, que eu cresci acompanhando, mesmo que de longe, e
que faço de tudo para estar presente no estádio sempre que posso”, conta.
Quando criança, Pedro considerava o Flamengo como seu terceiro time. “Eu sempre
fui muito apaixonado por futebol, e os times de Sergipe sempre tiveram um calendário muito
reduzido, sobretudo porque não disputavam muitas competições nacionais. A solução era
sempre recorrer à televisão, e aí não tinha outra saída: era sempre Flamengo na Globo, toda
quarta e domingo. Na escola, todo mundo só comentava sobre o Flamengo, na rua a mesma
coisa. Então eu fui levado nessa onda e gostava muito do Flamengo”, relembra.
Ele garante que esse fenômeno é muito comum em seu círculo social: “No meu
período de formação infantil, a predominância do conteúdo era sobre times do eixo Rio-São
Paulo, tanto que a imensa maioria dos meus amigos sergipanos da minha faixa-etária não
torcem para nenhum time aqui do estado”.
Pedro acredita que esse desprezo da mídia aos times locais está começando a mudar, e
ressalta a importância da democratização do acesso à internet, que diminuiu o controle da
mídia sobre o que é veiculado. “Hoje em dia as coisas estão bem diferentes do que eram dez
anos atrás. A mídia local está, aos poucos, dando mais importância para os times da região.
Há vários canais no Youtube e portais que fazem a cobertura dos times locais”, ressalta.
Aos doze anos de idade, o garoto foi morar no Rio de Janeiro, e, quanto mais próximo
chegou do clube geograficamente, mais distante se sentiu emocionalmente. “Tomei mais
consciência sobre o impacto que a mídia tinha na minha decisão de torcer para o Flamengo, e
era algo que me incomodava muito. Quando me mudei para o Rio, percebi que a relação que
os cariocas possuíam com o clube era algo que eu simplesmente não conseguia ter. Uma
relação de pertencimento que eu não sentia. Acabei percebendo que ali não era meu lugar e
aquele não era meu time, o que acabou me aproximando ainda mais do Confiança e do
Bahia”, conta.
Por essas e outras questões, Pedro conta que deixar de torcer para o clube se tornou
uma questão de princípios. “Aos poucos fui percebendo o quão moldado pela visão midiática
do eixo eu tinha sido, e aquilo era um pesadelo, porque eu me sentia menos nordestino do que
meus amigos de outros estados, como Pernambuco e Ceará, que torciam para times dos seus
estados. Foi uma questão de reafirmação da minha identidade como nordestino, e como
alguém que possui orgulho das suas raízes”, completa.

4. CONCLUSÃO

O crescimento meteórico da torcida do Flamengo não pode ser analisado sem citar
a mídia, especialmente a televisão. Frequentemente usado com fins políticos e culturais, o
meio foi fundamental para que o clube penetrasse no interior do Brasil, especialmente nas
cidades do Nordeste, que, em via de regra, passaram a ter acesso aos televisores no início da
década de 80, período em que o clube teve a melhor fase de sua história.
A escolha de transmitir os jogos do Flamengo, no entanto, não foi por acaso:
Roberto Marinho, dono e fundador das Organizações Globo, não apenas optou por uma
cobertura massiva aos eventos do clube, mas também cuidou para que ele fosse tratado de
forma positiva pelos seus contratados.
Esse contexto implicou em um enorme crescimento da torcida flamenguista,
especialmente na região nordeste. Isso gerou um fenômeno que hoje é conhecido como o dos
“torcedores mistos”, que torcem para um time da região e também para o Flamengo.
Ao longo do tempo, alguns nordestinos passaram a ver o fenômeno com maus-
olhos, alegando que a adesão em massa de seus conterrâneos a um time do centro do país
enfraquece não apenas o cenário esportivo da região, mas também sua identidade cultural
como um todo — o que sempre foi comum em relação aos costumes e tradições nordestinas.
Nos últimos anos, nasceu um movimento chamado de “anti-misto”, que chegou a
ser aderido por alguns clubes, e visa a valorização do futebol nordestino. Isso foi mal-visto
por jornalistas do centro do país, que estigmatizaram a causa como “preconceituosa”,
ignorando o contexto social na qual ela está inserida.
Esse movimento fez com que alguns torcedores se conscientizassem em relação ao
impacto que a mídia teve em sua escolha de torcer para o Flamengo. Alguns deles deixaram
de torcer para o clube, e relatam que uma maior aproximação aos times de sua região
reafirmou sua identidade como nordestino.

REFERÊNCIAS

BUENO, Galvão. Fala, Galvão!. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2015.


AA, Vasconcelos. Identidade Futebolística: Os Torcedores “Mistos” do Nordeste.
Dissertação de Mestrado: UFC, 2011
Bruns, Axel. Gatekeeping, Gatewatching, Realimentação em Tempo Real: novos desafios
para o jornalismo. SBPjor: Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, 2014.
Castro, Davi. Agenda-setting: hipótese ou teoria? Análise da trajetória do modelo de
Agendamento ancorada nos conceitos de Imre Lakatos. UFRGS, 2014.
Machado, Thales. Há 53 anos: pesquisa de torcidas do Ibope de 1969 aponta Santos de
Pelé como o clube mais querido do Brasil. O Globo, 2022. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2022/08/ha-53-anos-pesquisa-de-torcidas-doibope-
de-1969-aponta-santos-de-pele-como-o-clube-mais-querido-do-brasil.ghtml. Acesso em: 12
mai. 2023.
Murito, Bruno, Zarko, Raphael. Maiores torcidas do Brasil: pesquisa Atlas mostra
Flamengo, Corinthians e São Paulo no top 3. Globo Esporte, 2023. Disponível em:
https://ge.globo.com/futebol/noticia/2023/04/25/maiores-torcidas-do-brasil-pesquisaatlas-
mostra-flamengo-corinthians-e-sao-paulo-no-top-3.ghtml. Acesso em: 25 abr. 2023.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer aos meus familiares pelo apoio que sempre me deram em
todas as minhas empreitadas, à minha namorada Isabela Lobianco por todo o apoio que me
deu durante esse complicadíssimo semestre, aos meus amigos pelo companheirismo
(especialmente ao meu grande amigo Ivan Cintra), e ao professor Daniel Pala Abeche, por
toda a compreensão, amizade e orientação durante a disciplina.

Data de entrega: 21/06/2023.

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