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Eu te odeio, eu te amo.
D o outro lado da
quadra
quando
vejo
ele
salta, o braço segue para cima, a mão cobre quase toda a bola e o
garoto ataca. Meu tênis desliza no chão da quadra e eu me jogo no
solo, é como se tudo passasse em câmera lenta, estou muito perto
da bola, mas de repente não estou mais. Sinto o impacto quando
caio de barriga no chão e vejo a bola quicar cerca de dois
centímetros de onde estou, ela quica e sai para fora. Abaixo minha
cabeça e fecho meus olhos, respiro profundamente tentando
encontrar o equilíbrio, com os meus braços eu me impulsiono para
cima.
- Você foi muito bem, Lucas. – Geovane se aproxima de mim,
balança levemente seus longos fios escuros para o lado e sorri.
- Eu não fui. – Respondo um pouco rude, mas percebo.
Suspiro e continuo. – Jogamos bem, mas eu queria ter vencido.
- Todos queriam. – Outro do meu time fala. – Qual é pessoal,
é um treino, relaxem. Precisamos tomar uma boa ducha.
- Eu concordo com Bernardo. – Geovane pisca para mim, dá
uma leve batida no meu ombro e prossegue junto com os demais.
Observo ele do outro lado da quadra, passa a mão no seu
cabelo loiro com tanta graciosidade, sorri como uma criança quando
ganha um chocolate. Seus olhos azul-escuros me fitam, ele retira
sua regata azul de número dez do time de vôlei, seu corpo
levemente definido surge. Coloca a regata no seu ombro e segue
em minha direção.
- Meu grande amigo, Lucas. – Miguel Moraes é sínico. –
Jogou muito bem a partida de hoje, talvez a técnica não o deixe no
banco de reservas durante o campeonato.
Reparo em seu sorriso perfeito e penso em como eu gostaria
de socá-lo.
- Imagino que se isso acontecer você vai ficar muito triste. –
Respondo no mesmo nível sarcástico que o seu. – Ou eu penso em
outra possibilidade.
- Me diga qual. – Ele coloca uma de suas mãos na cintura. –
Somos parceiros de time, se essa possibilidade for sobre nós creio
que deveria saber, sou o capitão, sabe como as coisas funcionam.
- Talvez alguém deva vestir essa regata. – Encaro o garoto. –
Pelo que eu reparo muitos daqui estão batalhando muito por ela,
não que você deva ficar preocupado.
- Eu não me preocupo. – Seu olhar segue para a técnica que
está ocupada preenchendo alguns papéis, então ele volta a me
encarar. – Mas, será que alguém quer vestir ela? Não está com um
cheiro muito agradável.
Só sinto quando a regata é jogada em meu peito e eu a pego
antes de cair. Antes que eu possa dizer algo Miguel passa por mim,
acena em minha direção, ri e fala:
- Bom garoto, pegou mais rápido que a última bola do jogo.
Ele vira de costas e prossegue rumo ao vestiário.
- Eu te odeio... – Sussuro.
Apresso um pouco o meu passo para tentar me aproximar de
Miguel, paro um pouco antes da entrada do vestiário, observo o lixo
ao lado, quando estou prestes a jogar a regata no lixo eu ouço a sua
voz:
- Lucas.
Me viro e encaro a figura de general da Técnica, a roupa
preta, o apito que cai em seu peito, o boné da escola com o rosto do
lobo-guará e escrito em cima, Colégio Alcateia do Sul.
- Técnica, Chika.
Abaixo minha mão com a regata e posiciono ao lado do
corpo.
- O que estava fazendo? – Seu olhar segue para à mão do
crime, depois para mim, ela semicerra os olhos. - Silveira...
- Estava apenas segurando para o meu amigo, Miguel. – Sou
rápido na resposta. – Acho que vou tomar uma ducha, realmente a
senhora pega pesado conosco, no bom sentido afinal nós
precisamos disso e...
- Fale um pouco menos. – Chika me interrompe e eu me calo.
– Só quero dizer que você vem jogado muito bem nos últimos
meses, é notável uma grande evolução comparada aos outros anos.
Estou pensando em seriamente colocá-lo no time principal.
- Sério? – Falo alto e a minha voz se expande pelo ginásio. –
Desculpe, isso é tudo o que eu queria Senhora Chika. O torneio é
daqui algumas semanas.
- Então continue se esforçando. – Ela pisca para mim, olha
para a regata e depois me encara novamente. – E, por favor devolva
essa regata para Miguel.
- Tudo bem. – Aceno. – Como a senhora quiser.
A técnica segue para um lado e eu sigo para outro.
Entro no vestiário e praticamente todos os jogadores já
tomaram banho, Miguel está sentado no banco ao fundo, eu me
aproximo dele e jogo a regata em seu colo, passo pelo garoto como
se ele não fosse digno da minha atenção, prossigo em direção ao
chuveiro.
- Ainda não está lavada. – Miguel caçoa.
- Peça para alguma das suas dez namoradas. – Respondo. –
Isso se você tem alguma, elas costumam te largar em menos de
duas semanas.
- Essa foi corte Tramontina. – Geovane ri.
Retiro minha roupa enquanto ouço os outros jogadores do
time rirem, Miguel permanece em silêncio. Entro no chuveiro e sinto
a água quente cair em meu corpo, eu posso ficar na defesa por
muito tempo, mas também sei atacar quando preciso. Miguel troca
de namorada toda semana, geralmente elas largam dele no primeiro
fim de semana alegando falta de atenção, porém, como o menino
mais popular da escola consegue dar atenção para elas? Ele está
preso em uma bolha de bajulações.
O ensino médio é uma experiência social perigosa, é como
uma pirâmide da cadeia alimentar, sempre tem os caçadores
correndo para pegar suas presas. No primeiro ano eu ouvi tanto por
ser um homem com sua sexualidade bem definida, aliado ao fato de
ser preto eu era o alvo certeiro. No entanto, no segundo ano eu
entendi que jamais devo pedir a ninguém por respeito, eu devo
exigir isso. Ninguém tem o direito de dizer a outras pessoas “eu te
aceito” ou “eu te tolero”, você não tem esse poder, eu tiro isso de
você. Nossa fundação é humana e não sexual, logo você vai me
respeitar. Isso me faz lembrar de um trecho marcante de Born This
Way, da incomparável Lady Gaga.
- I’m beautiful in my way ‘Cause god makes no mistakes. –
Canto no chuveiro, “Eu sou linda do meu jeito, pois, Deus não
comete erros.” – I’m on the right track, baby I was born this way. -
Estou no caminho certo, querido, eu nasci assim.
Saio do chuveiro e olho para a minha imagem no reflexo do
espelho, a pele escura, o cabelo marrom levemente ondulado. Eu
me considero um homem bonito, não como alguém que você olha e
diz “Oh! Meu deus é um deus grego” como quando eu olho para as
imagens do Caio Castro, eu era apaixonado por ele desde
Malhação. Ao lembrar disso eu sorrio para mim mesmo, acho que
nunca tive dúvidas quanto à minha sexualidade.
Pego o meu uniforme de vôlei com o número treze, é
estranho desejar tanto uma coisa e agora ver que ela pode se tornar
realidade. As pessoas costumam dizer que eu tenho uma alma
muito sonhadora, que muitas vezes vivo no mundo dos sonhos, mas
o que eu posso fazer se é um melhor lugar para se estar. Se eu não
acredito em mim mesmo não posso esperar que as outras pessoas
acreditem.
- Treze pode ser o meu número da sorte. – Digo.
Jogo o uniforme para dentro da mochila e prossigo pelos
corredores da Alcateia do Sul. A cor azul e roxo predomina nos
corredores, entrar no corredor de uma escola é como mergulhar em
universos distintos. Os rockeiros, adolescentes que se vestem de
preto e escutam Nirvana, mal sabem eles que Avril Lavigne é muito
melhor. Os esportistas, sempre com roupas que definem os seus
músculos ou com uma garrafa de suplemento na mão. Os nerds,
evitam o contato visual com muitas pessoas, os outros alunos fazem
brincadeiras com eles, porém, todos sabemos que eles vão ter o
futuro mais promissor e quem sabe os “valentões” sejam os seus
funcionários. As patricinhas, garotas que amam estar no último
estilo da moda, sempre bem maquiadas e é onde eu encontro minha
amiga, Caroline Bueno.
- Lucas. – Ela acena com sua mão e se despede das outras
meninas.
Caroline está quase sempre com seu longo cabelo preto
amarrado em um coque, hoje veste uma jaqueta jeans que ela
mesmo customizou, muitas lantejoulas e a imagem de Harry Styles
em caricatura. Minha amiga passa o seu braço no meu e
prosseguimos pelo corredor.
- Vão pensar que somos namorados. – Eu caçoo.
- Lucas. – Ela ri. – Você exala a cultura gay, sei que costumo
escolher garotas ou garotos complicados, mas namorar um
homossexual seria o meu fim, apesar de serem bem melhores do
que meninos héteros ainda sim preciso fazer sexo. Falando em
sexo, como está sua vida sexual?
Sim, está é Caroline, mais direta que uma seta.
- Digamos que eu parei de transar quando a Rihanna lançou
a sua última música. – Eu respondo com um suspiro.
- Isso foi no tempo dos Maias. – Caroline balança a cabeça
em reprovação. – Até o fim do inverno nós precisamos arrumar
alguém para você fazer amor.
- Fazer amor. – Não controlo um riso. – Parece minha mãe
falando.
- E sua mãe diria que.... – Caroline para de formular sua
frase.
No corredor da frente passa Miguel ao lado de dois outros
garotos, ele veste uma jaqueta preta, olha para nossa direção e sorri
até desaparecer no outro corredor. Ao meu lado Caroline entra em
transe com a boca aberta, estralo duas vezes meus dedos em sua
face até que ela desperta.
- Não acredito que você quer Miguel. – Falo.
- Sim, ele é gostoso. – Caroline sorri. – Ele vive respondendo
meus stories no Instagram, eu só curto. Sou uma vadia, mas uma
vadia valorizada. E, falando em Miguel, soube que ele vai fazer uma
festa na casa dos pais dele na Serra.
- Ouvi falar sobre isso. – Exclamo, reparo nas feições de
Caroline e volto a andar pelos corredores. – Não Carol, nem pense
que eu vou pedir por convite para Miguel, você sabe que eu odeio
aquele garoto desde o primeiro ano do ensino médio.
- O que ele te fez? – Ela questiona e apenas congelo minhas
expressões. – Sim, no primeiro ano ele cortou a bola em você o que
resultou em muito sangue e uma passagem no hospital, mas foi há
tanto tempo...
- Não foi só isso. – Eu me estresso. – Aquele garoto é
insuportável, se você quer ir tanto nessa festa peça para ele, não
vive respondendo seus stories?
- Não posso ser tão jogada assim. – Ela fala como se fosse
um absurdo. – Além disso, a festa é só para os escolhidos e eu sei
que não serei.
Minha amiga anda mais rápido e para na minha frente,
começa a balançar a cabeça de um lado para o outro, suas unhas
se encostam e fazem barulho, isso é um sinal que ela está
pensando em algo e quando Carol pensa demais eu não espero
algo bom.
- Se você conseguir convites para à casa dele eu arrumo uma
matéria no jornal da cidade falando sobre os seus doces
decorativos. – Ela lança o seu sorriso ardiloso. – Quem sabe assim
você saia daquele restaurante que não te valoriza.
Penso, eu não gosto do meu emprego atual, eles me pagam
muito pouco, não sou valorizado e muitas vezes minha decoração é
apresentada ao público como se fosse do dono e não minhas.
Caroline trabalha no jornal da cidade escrevendo sobre moda,
mesmo sendo uma área tão diferente eu sei que ela possui os seus
métodos.
- Está bem, espero não me arrepender. – Respondo. – Eu
consigo o convite e você arruma uma página inteira para mim no
Jornal de Nova Vinheira.
Caroline gira no lugar e me dá um abraço, olho para baixo e
encaro seu sorriso ardiloso que poderia te influenciar a matar
alguém e esconder o corpo.
- Fechado. – Ela diz. – Já vou até pensar em qual look vou
montar, algo que diga: eu quero muito ter uma noite quente, mas
também algo que demonstre que eu não preciso de ninguém.
- Por que eu sempre apoio suas loucuras? – Rio das minhas
palavras.
- Eu sou escritora, quero sempre as melhores histórias para
contar. – Ela diz. – Adoro ser uma agente do caos.
CAPÍTULO II
“O convite.”
M não
inha mão
oscila
em nenhum
momento, minha mãe diz que eu seria um ótimo cirurgião, mas o
que amo mesmo fazer é enfeitar e não cortar pessoas. Dou um leve
passo para trás e olho para o bolo, embaixo eu fiz uma camada de
glace que é semelhante a um gramado e na parte mais de cima criei
algumas rosas vermelhas, como um belo jardim. Coloco o último
enfeite, a senhora com um irrigador e finalmente está pronto.
- Está maravilhoso, Lucas. – Daniela, uma das funcionárias
da cozinha sorri para mim e para o bolo, ela é uma das únicas
pessoas gentis do local.
- Obrigado. – Suspiro e olho meu trabalho, é tão bom quando
você se sente realizado com algo e também saber que posso fazer
as pessoas mais felizes com isso.
A porta é empurrada com força, vestido em seu terno preto
entra o dono do restaurante “Coração ardente.” Seu cabelo loiro
metricamente ajeitado em um topete, o olhar julgador que passa
analisando tudo. Ele caminha até parar ao meu lado, olha o bolo e
acena para que o funcionário possa levar.
- Bom trabalho, Lucas. – Paulo Muzi, diz. - Nosso bolo ficou
incrível, e não esperava menos. A senhora aniversariante é uma das
nossas melhores clientes.
- Sim, o meu bolo decorado ficou ótimo. – Respondo com
ênfase na palavra “meu” o que não o agrada muito, mesmo assim
tenho coragem para prosseguir. – O Coração Ardente é sempre
elogiado pela sua culinária decorativa.
- Com uma boa administração tudo fica perfeito. – Paulo sorri
para mim e eu sei que é algo forçado. – Agora voltem ao trabalho
pessoal, há muito o que fazer.
Espero o homem deixar a cozinha e me escoro na bancada.
- Estou cansado dele. – Falo bem baixo para que só Daniela
escute.
- Todos estamos. – Ela sussurra enquanto corta um tomate. –
E nós só estamos aqui porque precisamos muito do trabalho,
preciso pagar o aluguel de onde moro porque meus pais não tem
condição, eles já pagam minha mensalidade na faculdade. Não
acho justo assumirem tudo.
Aceno para ela em concordância. A verdade é que estamos
acostumados com esse sistema, há pessoas que precisam muito de
uma renda, os empresários maiores que tem consciência disso
oferecem trabalhos quase que escravos porque sabem que há
pessoas que irão se sujeitar. Mesmo em uma situação dessas eu
não permito me abalar, eu quero estudar e sair daqui o quanto
antes.
Olho no relógio e são quase dez horas da noite. Deixo o
último doce enfeitado em cima da mesa, um doce de chocolate em
forma do personagem Nemo. Desato o meu avental e jogo dentro do
cesto com os itens sujos, limpo minhas mãos e suspiro porque foi
um dia cansativo.
- A senhora gostou muito da decoração do bolo. – Luís, o
entregador, entra na cozinha e fala para mim. – Disse que lembra
muito a casa dela, as plantas que ela cuida.
- Fico feliz por isso. – Respondo. – É sempre bom fazer
alguém sorrir, pelo menos alguém sorri, já que ninguém está
sorrindo aqui atrás.
- Ela pediu pelo confeiteiro... – Seu olhar desvia do meu. – Eu
iria te chamar, mas Paulo disse que você estava muito ocupado
então...
Me aproximo da porta e abro levemente, observo na mesa
perto da entrada onde há algumas pessoas. Reparo no bolo de
rosas que eu enfeitei, a senhora em frente a ele e conversando
com... Paulo Muzi. É como se todo o meu corpo esquentasse, me
deixa com muita raiva e eu simplesmente passo pela porta em
direção ao salão principal.
- Lucas. – Luís me chama e eu o ignoro. – Lucas.
Ainda há algumas pessoas pelo local, por mais que algo me
diga que eu devo me afastar eu prossigo. É como se Paulo sentisse
a energia, ele se vira para trás e contrai suas expressões ao me ver.
Apenas me aproximo da mesa da aniversariante e fico ao lado do
dono, encaro ele com um sorriso.
- Luís me disse que pediram pelo confeiteiro. – Exclamo e
olho para a senhora na cadeira principal, veste um belíssimo casaco
preto de pelos, a joia em seu pescoço deve valer uma fortuna. -
Espero que o bolo a tenha agradado, preparei com muito amor.
- Lucas... – Paulo sussurra e sinto o seu ódio.
- Oh! Pensei que... – A senhora dos cabelos brancos encara
Paulo por alguns segundos, olha em minha direção e sorri. – Gostei
muito meu querido rapaz, as flores são como a minha fonte de
juventude. Perto delas me sinto uma garotinha.
- Mas, a senhora ainda parece muito jovem. – Sou simpático.
– Certamente está completando uns trinta anos.
- Não devemos mentir, meu jovem. – A senhora ri com
graciosidade. – Gostei dele. – Ela fala olhando diretamente para
Paulo e após sua atenção volta-se para mim. - Quantos anos você
tem, meu querido?
- Lucas?
Quando ouço a voz atrás de mim, sinto os pelos do meu
corpo arrepiarem mesmo que eu me depile cem por cento. Apenas
me movo com cautela para trás até ver a figura, lá está ele usando
um casaco e um blusão no tom amarronzado.
- Miguel. – As palavras quase não saem da minha boca.
- Não sabia que trabalhava aqui. – Ele fala e soa tão
simpático.
- Vocês se conhecem. – A senhora aniversariante fala. – Ele
foi o garoto que fez o meu bolo de rosas, meu filho.
Reparo nas feições da mulher e nas de Miguel, sim eles
possuem características semelhantes, mas jamais iria pensar que
estava preparando um bolo para sua mãe, se fosse para o garoto
talvez eu erasse todo o enfeite.
- Ficou incrível! – Miguel diz.
- Agora peço licença. – Paulo acena. - Vamos deixar vocês
aproveitarem o restante da noite.
O dono toca em meu ombro e eu dou uma recuada, ele
prossegue na frente enquanto eu prossigo atrás, vejo que o olhar de
Miguel me segue, não sei mais o que pode piorar nesse dia.
Paulo entra na cozinha como um touro e nesse caso eu sou o
toureiro prestes a ser atingido. Quando passo a porta fecha, os
funcionários todos param nos olhando.
- Quero que todos aqui saibam que a partir de hoje. – Paulo
exclama. – Lucas Silveira não trabalha mais no Coração Ardente.
- O que? – Daniela diz.
- Amanhã passe aqui para acertamos as contas. – Paulo me
encara. – Talvez você aprenda a nunca mais desrespeitar um chefe
na frente dos clientes.
Controlo um riso por dentro porque ele acredita mesmo nisso.
- Será um prazer. – Apenas sorrio. – E, Paulo por favor pare
de pegar as criações dos outros e fingir que é sua, você pode ser
um bom administrador, mas nunca será um bom cozinheiro. Talvez
seja por isso que o seu pai não deixou você assumir o controle da
cozinha do restaurante.
- Como ous... – Ele tenta revidar.
- Você não é mais o meu chefe. – Aceno para Paulo.
Saio pela porta da frente da cozinha que dá direto no salão
principal, Paulo odiava quando os funcionários não saiam pela porta
de traz. Com todo o prazer eu passo pelo local até estar na parte
externa, o vento bate no meu corpo, mas estou aquecido dentro do
meu casaco de inverno. Prossigo pela estrada de madeira com as
luzes vermelhas guiando o caminho.
- Lucas.
Me viro para trás e dentro do restaurante sai Miguel, ele
caminha um pouco mais rápido até estar em minha frente. O garoto
coloca suas mãos dentro do bolso e diz:
- Aconteceu alguma coisa? Ouvimos Paulo falar um pouco
alto dentro da cozinha, mas não conseguimos identificar o que era.
- Fui demitido. – Quando eu respondo Miguel arqueia as
sobrancelhas. – Estou bem, apenas cansei de trabalhar para
pessoas que roubam minhas criações. Mas, por favor não diga nada
porque estou evitando mais conflitos nesta noite.
- Que droga. – Miguel olha para dentro do restaurante. –
Nunca vi minha mãe tão feliz vendo um bolo em sua frente. – Ele
sorri. – Você tem muito talento.
- Eu sei. – Não sou nada humilde e rio com ele, paro por um
instante porque nunca imaginei essa situação. – Tenham um ótimo
fim de noite.
- Há algo que eu possa fazer para retribuir aquele bolo tão
lindo? – Miguel diz. – Tirando é claro entregar minha regata número
dez.
- Esse é o Miguel que eu conheço. – Falo.
Olho para o restaurante ao fundo e depois para Miguel, eu
acabei de ser demitido e vou ficar sem dinheiro, se eu conseguisse
uma matéria no Jornal da cidade quem sabe poderia encontrar um
emprego melhor. Assim, eu encaro seus olhos azuis.
- A sua festa na Serra. – Exclamo. – Me dê o convite para
mim e uma amiga.
- Lucas. – Ele se espanta e ri. – Está bem, não era algo que
eu esperava ouvir, mas sim eu dou esses dois convites para você.
Por acaso está interessado em algum dos meus amigos? Soube
que Geovane vai.
- Eu preferia a morte do que beijar um de seus amigos. –
Respondo. – E, não estou fazendo isso apenas por mim. Há coisas
maiores em jogo, quem sabe um dia você descubra.
- Eu gosto de mistérios. – Ele me encara de um jeito tão sério
que por um momento eu esqueço quem ele é e reparo em quanto
soa tão...tão... esquece. – Amanhã na escola eu levo os convites.
- Não beba muito vinho. – Eu falo e me viro de costas. – Não
quero ter que ganhar de um bêbado amanhã no treino.
- Isso nunca aconteceria, Silveira. – Ele fala mais alto e me
chama pelo sobrenome o que é algo bem incomum, mas que retira
um sorriso natural meu. Não sei o que acabou de acontecer nesta
noite, porém, estou gostando dos movimentos que o universo está
fazendo.
CAPÍTULO III
“Eu nunca perco.”
O
lho pela janela e
lá fora as
árvores
balançam anunciando o vento frio do inverno, eu sempre gostei da
temperatura baixa, dos momentos para se reunir e tomar um vinho
com os meus amigos, é comum em Vila Vinheira esse tipo de
encontro afinal somos conhecidos pelos vinhos da cidade. Mas, por
enquanto para iniciar o dia tomo uma xícara de café. Caminho pela
sala, coloco os meus óculos redondos e pego uma das fotos da
minha família, observo que os cabelos do meu pai eram iguais ao
meu. Por mais que ele tenha se ido quando eu era criança, ainda
sim consigo me recordar de ótimos momentos. Os jogos de vôlei no
quintal, as noites montando quebra-cabeças, boas memórias.
- Eu também sinto saudade dele. – Minha mãe coloca a sua
maleta de professora em cima da mesa. – As pessoas dizem que
fica mais fácil com o tempo, mas para mim é como se fosse ontem.
Nós três embaixo de uma coberta vendo uma boa comédia.
- Sim... – Sorrio vagamente. – Eu fiquei muito revoltado no
começo porque pensei, como Deus poderia retirar uma pessoa que
eu tanto amo, mas depois entendi que cada um tem um tempo aqui
e nós aproveitamos o máximo possível. É claro que ainda penso
como seria se ele estive aqui, ver eu me formar, indo para à
faculdade.
Minha mãe se envolve no seu xale vermelho, empurra seus
longos cabelos preto para fora.
- São perguntas que nunca iremos ter respostas. – Isabel
responde. – Mas, eu confio que de onde ele estiver vai estar
torcendo por nós, me mandando energias positivas para não surtar
com mais de vinte crianças em uma sala de aula.
- Não sei como você consegue. – Eu rio. – Adoro crianças,
pena que duram.
- Não seja terrível. – Minha mãe não esconde o seu riso. –
Elas me levam presentes em datas especiais e até mesmo fazem
cartinhas com aqueles “belos desenhos.”
Coloco a foto novamente na prateleira e caminho pela casa
até estar na cozinha, ponho a xícara em cima da mesa e encaro os
olhos escuros dela.
- O que aconteceu? – Ela questiona. – Conheço quando não
está muito bem.
- Acredito que preciso ser direto. – Respondo. – Ontem de
noite quando cheguei não quis te acordar, mas o que tenho a dizer é
que fui demitido do restaurante.
Isabel fica parada em silêncio por cinco segundos.
- Por qual motivo? – Ela me questiona.
- Paulo, o dono, estava roubando as minhas criações e
dizendo para os clientes que ele era o responsável pela confeitaria.
– Ainda sinto raiva quando falo. - Não aguentei ontem e fui ao salão
principal quando uma cliente pediu pelo confeiteiro, resultado: o
desmenti na frente de alguém importante.
- Isso é um absurdo! – Minha mãe fica brava. – Como alguém
pode fazer isso? Pelos céus, ainda bem que pediu demissão.
Roubando suas criações... Estou com vontade de ir na frente
daquele restaurante e fazer um escândalo.
- Não será necessário. – Respondo. – Vou à tarde fazer o
acerto e nunca mais quero pisar naquele local, além do mais estou
trabalhando em algo para conseguir um novo emprego. Só que no
momento vou ficar um pouco sem dinheiro...
- Entendo. – Isabel me encara. – Não precisa se preocupar
com isso, consigo manter as contas principais da casa com meu
salário e a pensão do seu pai. Só quero que se algo como isso
acontecer novamente preciso que me informe, há muitas pessoas lá
fora que adoram explorar as pessoas. Nós temos direitos e
precisamos lutar por eles!
Minha mãe me faz sorrir.
- Obrigado. – Aceno. – Obrigado por ser a melhor mãe do
mundo.
Isabel vem e me abraça, recebo um beijo na testa, seu
perfume doce entra pelas minhas narinas.
- Te amo. – Ela diz. – Mas, agora eu preciso ir. Tenho que
enfeitar a sala de aula com a temática dos três porquinhos, eles
amam essa história.
- Tá bem, mãe. – Digo. – Também te amo.
Observo ela saindo da casa, minha mãe é um exemplo. Por
mais que os educadores não sejam valorizados ela está sempre lá,
lutando por seus direitos, exigindo melhores condições, e dando o
melhor para os seus alunos. Se tem alguém que eu sempre vou
valorizar são os professores e principalmente por ter uma referência
em casa, Isabel às vezes fica até a madrugada corrigindo trabalhos
e provas, criando planos de aula. Não é uma tarefa fácil, mas ela
ama o que faz. Seu brilho é como o meu para confeitaria.
M e olho
espelho,
casaco
marrom e estofado por dentro, a camiseta branca que realça minha
no
o
T udo
minha
gira em
mente,
aos poucos vou
acordando enquanto ouço alguns sons ao longe, quando abro os
meus olhos sou atingido por uma forte luz, coloco minha mão para
tapar o meu rosto, mas não adianta, enfim estou acordado. Com
minha mão vou apalpando as coisas até que acho os meus óculos.
Olho para o local de onde vem a luz do sol, uma grande janela de
madeira. Quando sento na cama sinto uma forte dor de cabeça, o
meu estômago dá sinais que eu fiz algo muito ruim ontem. Pelos
breves relances que tenho só penso em:
- Droga, eu deveria ter ouvido minha mãe.
- Deveria.
Miguel entra no quarto apenas vestindo um pequeno calção
de futebol, segura em sua mão esquerda uma xícara que sinto o
cheiro do chá. É um tanto difícil encarar o garoto, ao olhar pelos
lados eu compreendo que estou em seu quarto e aí sim entendo
que as coisas saíram totalmente do controle.
- Você está sem camisa. – Exclamo. – Está frio!
- O sistema da casa tem como regular a temperatura. –
Miguel responde e lança um riso que eu não gosto. – Talvez esteja
com frio porque também está sem camisa.
Quando ele fala isso eu olho para o meu peito nu e puxo as
cobertas para me tapar, mas sinto o meu corpo e sei que estou
apenas de cueca na cama, com certeza foi Miguel quem tirou elas,
nesse momento estou sofrendo a pior humilhação da minha vida.
- Me desculpe... – É a única coisa que penso em dizer.
- Tudo bem, imagino que eu fique melhor de cueca. – Miguel
lança o seu sorriso sarcástico, a memória vem em minha mente no
exato momento em que falei para ele sobre isso, tenho vontade de
me enterrar, mas tento fazer uma boa atuação, como uma Fernanda
Montenegro.
O garoto se aproxima da cama e fica bem ao meu lado, ele
me entrega a xícara e um remédio, pego os dois enquanto evito
contato olho a olho.
- O que é? – Questiono.
- Algo para você melhorar. – Ele responde. – Você não
vomitou o que às vezes é ainda mais desgastante para o corpo, o
remédio vai aliviar os sintomas.
Ingiro o remédio e após tomo um gole do chá que não é ruim,
sinto que há um gosto de laranja assim como de limão e me lembra
aqueles que minha avó fazia.
- Droga... – Enfim o encaro. – Não sei nem como pedir
desculpas por ontem, sai totalmente do controle, nesse momento
estou querendo desparecer.
- Eu entendo. – Ele fica posicionado em frente a janela
tapando um pouco a luz do sol e digamos que é uma boa vista. –
Estou acostumado com o pessoal extrapolando um pouco dos
limites na minha casa. Acho que imagino o que aconteceu com
você, tomou a famosa bebida de Bernardo.
Lembro de como peguei o copo do garoto e bebi tudo.
- Maldição! – Suspiro. – Sim, eu bebi. Naquele momento não
passou pela minha cabeça o que vocês tinham alertado. Sou um
idiota!
- Sim, você é. – Miguel responde com um riso, se ele não
tivesse sendo tão atencioso eu o responderia, mas não estou em
posição para isso. – Mas, para a sua sorte acabei o encontrando no
corredor. Te trouxe para o meu quarto porque achei mais seguro, lá
embaixo estava uma loucura. Tive que tirar suas roupas. – Me sinto
corar. – Mas, logo em seguida apagou como a bela adormecida.
- Que apelido para se ganhar em uma primeira festa em sua
casa. – Eu respondo.
Imediatamente rimos por alguns segundos até pararmos,
nossos olhos ficam fixados um no outro, meu coração acelera e eu
não sei formular uma próxima frase.
- Acho que eu precisava me desculpar. – Ele fala e eu
contraio minhas expressões.
- Se desculpar pelo que? – Eu questiono.
- Pelo acidente no primeiro ano. – Miguel ri. – Geovane me
contou que você ainda fica um pouco chateado com isso, mas quero
deixar claro que não foi minha intenção, jamais iria pensar: eu
preciso mandar aquele garoto para o hospital.
Ele consegue me fazer expressar um riso natural.
- Está tudo bem. – Eu olho para ele. – Sério, pretendo deixar
as coisas para trás e seguir daqui. Acredito que não precisamos ser
inimigos mortais... Pelo menos não fora de uma quadra, dentro creio
que ainda vamos ser.
- É uma boa ideia. – O garoto número dez concorda. –
Porque ainda sou melhor que você...
- O que? – Eu o encaro.
- Pode ficar mais um tempo aqui se recuperando. – Miguel
diz. – O pessoal está na piscina térmica no quintal, depois pode
descer e nos encontrar, é claro se estiver bem. Separei uma roupa
para você e deixei na cadeira.
- Tudo bem. – Aceno com a xícara em minha mão. –
Obrigado!
Miguel deixa o quarto e encosta a porta, por algum motivo eu
sorrio sozinho no quarto. Nem nos meus sonhos mais loucos eu
poderia pensar algo sobre isso, a forma atenciosa como ele me
cuidou é digna de uma boa pessoa. Talvez Miguel Moraes tenha
muitas outras coisas que eu ainda não conheço e confesso que
estou gostando de conhecê-las, mesmo que isso possa ser
arriscado.
Depois de ficar alguns minutos na cama e ter tomado o
remédio consigo levantar, não me sinto bem completamente, mas
estou melhor. Vou até a cadeira em frente ao notbook e pego a
muda de roupa que ele separou. Uma calça de abrigo cinza e uma
camiseta de manga longa, nós temos quase o mesmo tamanho
embora ele seja alguns centímetros mais alto.
Reparo em seu notbook branco e como ele parece ser
perfeito, me sento na cadeira e quando me aproximo a tela acende.
Contraio minhas expressões quando vejo o que há na tela principal,
está logada na Netflix.
- O que? – Sussuro.
Em “continuar assistindo como Miguel” há o vídeo com a tour
da Taylor Swift, a Reputation Stadium Tour. Me paro pensando por
um momento na possibilidade de Miguel não ser totalmente hétero.
Rolo mais para o lado e em assistir novamente está o documentário
de Swift, Miss Americana.
- Quem você é, Miguel? – Lanço o questionamento.
Acredito que héteros podem gostar da Taylor, visto que, ela
tem um talento incrível para composição e é uma génia para criação
de universos, mas com a minha experiência isso soa tão...Gay?
Talvez eu seja apenas um idiota ao pensar assim.
- Todos podem gostar de estilos musicais distintos. – Falo
para mim mesmo tentando me fazer compreender.
Caminho pelo quarto de Miguel, há um local só para o
uniforme azul do time de vôlei assim como a bola do primeiro
campeonato, reconheço a bola amarela. Eles ganharam no primeiro
ano enquanto eu estava na reserva, joguei uns quinze minutos
durante o jogo todo, mas foi ótimo porque fomos campeões. Agora
ao parar para refletir eu vejo que muitas vezes eu me afastei, mas
todos ali se apoiavam e eram importantes, titulares ou reservas.
- A senhora do restaurante. – Digo.
Olho para um pequeno quadro em cima da prateleira, Miguel
no meio, a senhora elegante de um lado e um homem do outro, o
que imagino ser o seu pai. Cabelo preto com os fios grisalhos, suas
expressões são duras.
- Você está aqui.
Caroline entra com um furacão no quarto e me agarra pelas
costas, ela me olha toda sorridente e observa o quadro na minha
frente, mas não parece se importar muito. Minha amiga se atira na
cama de Miguel.
- Está melhor? – Ela me questiona.
- Digamos que sim. – Respondo. – Miguel foi muito gentil, me
trouxe um chá e um remédio. É claro que fiquei morrendo de
vergonha por causa disso.
- Ele é um cavalheiro. – Caroline me encara, seus olhos
brilham.
- Aconteceu algo entre vocês? – Eu pergunto e me aproximo.
– Vi que durante a festa trocaram alguns beijos, estava beijando
Geovane na mesma hora. – Enfatizo minhas últimas palavras.
Ela desamarra o seu coque e o seu longo cabelo cai pelo seu
corpo, Caroline ri para o nada e depois me encara, nem preciso de
uma resposta oral.
- Vocês transaram... – Eu digo.
- Sim. – Ela grita e se levanta da cama como uma criança se
preparando para ir em um passeio da escola. – Transamos no
quarto de hóspede, ele é realmente muito bom.
- Legal... – Respondo e Caroline contrai suas expressões.
- Você não está bem. – Ela diz. – Se fosse em outro momento
estaria me perguntando qual a espessura, que posições fizemos
entre uma tabela inteira de pontos de análise. – Minha amiga ri.
- Apenas não estou bem. – Suspiro. – Acho que preciso
comer algo.
- Vamos descer. – Caroline me puxa. – O pessoal está lá
embaixo.
Saio do quarto com roupas e chinelo de Miguel, o corredor
como o esperado ainda reflete o que aconteceu na festa anterior, os
copos de bebidas, garrafas.
- Vamos precisar limpar isso? – Eu questiono.
- Miguel disse que não. – Caroline diz. – Pelo jeito há um
pessoal que cuida da casa então eles são os responsáveis por isso,
mas combinei com o pessoal de recolher pelo menos as garrafas,
ele deu a casa é o mínimo que podemos fazer.
Se eu convidasse essa gente para a minha casa certamente
minha mãe iria me expulsar no outro dia, eles são a própria
definição de caos. Não posso falar muito sobre isso porque também
fui responsável por algumas coisas. E, quando desço para o
primeiro piso olho para o centro da sala onde tomei a bebida de
Bernardo e apaguei, é como visitar monumentos históricos.
- Lucas.
Dentro da cozinha aparece Bernardo, ele para em frente à
porta.
- Bernardo. – Digo. – Que bom que está bem.
- Será que podemos conversar? – Ele me questiona.
Caroline olha para ele e depois para mim.
- Encontro vocês na piscina térmica.
Só vejo minha amiga saindo pela porta dos fundos enquanto
me deixa em uma situação meio constrangedora, eu entro na
cozinha e procuro por algum alimento, por sorte há uma banana no
recipiente das frutas. Pego uma delas e me escoro na bancada
enquanto do outro lado Bernardo me analisa.
- Sobre o que deseja conversar? – Eu questiono.
- Sobre ontem. – Ele coloca a mão atrás da nuca. – Me
desculpe por ter te dado aquela bebida, sei que ficou muito mal por
causa disso, Miguel brigou comigo hoje pela manhã por causa do
seu estado.
Miguel brigou por mim? Esse universo está muito
desalinhado.
- Não precisa pedir desculpas, Bernardo. – Eu respondo,
como um pedaço da banana e prossigo. – Fui eu quem pegou o seu
copo e bebeu tudo em um gole, além disso, estávamos todos um
pouco transtornados.
- Tudo bem. – Ele suspira e sorri. – Pensei que você fosse
me odiar.
- Não tenho motivos. – Exclamo. – Só se cuide porque isso o
que você usa é muito forte para alguém da sua idade, creio que há
coisas melhores do que apenas isso... Não estou te dando um
sermão, veja apenas como um conselho.
- Claro, eu compreendo. – Ele acena para mim.
Bernardo aos poucos se aproxima de onde estou, ele cruza
os braços bem na minha frente, sinto um arrepio porque lembro da
última festa.
- Você se lembra do que eu te falei? – Bernardo diz.
- Bernardo... – O encaro por alguns segundos. – Sei que é
complicado ainda mais para alguém como você, mas está tudo bem
em dizer que apenas queria beijar um garoto. O mundo é feito de
experiências. Pode ser que com tudo o que usou tenha te dado
coragem para fazer algo que tem vontade por dentro.
Lanço o questionamento para ele.
- Como também pode não ser. – Completo para não jogar um
peso muito grande em cima dele, meu primeiro beijo com um garoto
foi em uma festa do primeiro ano, ele também não era assumido e
correu quando terminamos, nunca mais me olhou na escola até que
finalmente saiu da Alcateia do Sul.
Bernardo dá um passo a frente e eu paro de comer minha
banana, seus olhos penetrantes me encaram, eu sinto sua
respiração ofegante, ele morde o lábio inferior.
- Sim, eu queria ter te beijado. – Bernardo diz.
- Não vão para à piscina?
Me inclino para o lado e vejo Geovane na porta nos
encarando, nesse exato momento Bernardo se afasta um pouco de
mim, Geo apenas sorri.
- Sim, estamos indo. – Respondo.
Deixo Bernardo dentro da cozinha e prossigo ao lado de
Geovane pelo corredor até sairmos da residência, o garoto me
encara com um grande sorriso.
- O que foi? – Pergunto.
- A tensão sexual estava alta demais. – Geovane responde. –
Sabia que Bernardo um dia iria descobrir sua sexualidade, mas não
pensei que fosse com você.
- Mas, eu e ele não ficamos. – Ressalto.
- Tudo bem. – Ele me encara como se não acreditasse. – Não
precisa responder como se me devesse uma obrigação, apenas
aconteceu alguns beijos, só isso.
Geovane sai sorrindo na minha frente enquanto eu caminho
mais atrás. Eu fiquei com Geovane e confesso que foi bom, mas
não é como se eu sentisse algo por ele. Com Bernardo foi uma
loucura ainda maior, eu ficaria com ele, é um garoto bonito, mas
descobrir sua sexualidade comigo me deixa aflito porque sei bem
como é esse momento. São tantos problemas ao mesmo tempo que
fico perdido, apenas queria esquecer o que aconteceu na festa
passada. Mas, ela me trouxe momentos bons como... Novamente
me pego pensando nele e isso me deixa tenso, tento colocar uma
imagem de Chris Hemsworth na minha mente para substituir, porém,
não adianta.
- Maldito seja o número dez... – Sussuro.
CAPÍTULO VI
“Qual é o seu desejo?”
Q
uando somos mais novos
tudo se transforma em um
grande drama, como agora,
certamente deveria estar pensando como irei me formar sabendo
um total de zero coisas sobre física, mas aqui estou eu dançando
com os meus sentimentos enquanto vários garotos aparecem para
confundir ainda mais a minha vida. Para quem estava reclamando
de interesses amorosos algumas semanas atrás isso parece um
paraíso, no caso comandado por Lúcifer.
O pátio da casa de Miguel é bem grande e rodeado por
árvores o que torna o clima bem aconchegante mesmo que seja
muito frio. Nos fundos há uma construção feita de madeira e vidro,
pela transparência do local já vejo a piscina térmica do outro lado,
quando entro reparo nas pessoas. Há uma garota deitada em uma
toalha, ela parece que está em coma. Há dois meninos bebendo na
beira da piscina, penso como ainda estão bebendo sendo que eu
nem posso ver as garrafas sem me causar ânsia.
- Você me traz sorte, é o meu talismã, sonho com você, quero
ter você todas as manhãs. – Uma garota se aproxima cantando a
música, Meu talismã, da Iza.
A menina usa um blusão colorido, um boné com várias cores
e virado para trás, seu lindo cabelo cacheado cai por seu corpo, seu
tom de pele é um pouco mais claro que o meu. Ela arqueia as
sobrancelhas e avança com sua mão em minha direção, na bandeja
há algumas linguicinhas, e por mais que eu ame, o cheiro faz meu
estômago embrulhar.
- Não estou muito bem. – Exclamo. – Foi mal...
- Eu entendo. – Ela soa simpática. – Garoto, você estava
quase em coma ontem. Mas, tenho que admitir que dança muito
bem, quando tocou movimento da sanfoninha sua bunda ganhou
vida própria.
Vejo Miguel no canto da piscina junto com outros meninos do
time, quando eles ouvem nossa conversa começam a rir, até mesmo
Caroline que está dentro da piscina ri.
- Nós dançamos ontem? – Sussuro e ela acena que sim. –
Perdão. – Fico envergonhado. – Já deve ter tido o seu nome.
- Não disse. – A menina ri. – Estávamos ocupados demais
curtindo à festa, mas prazer, eu me chamo Jordana Lima e você não
precisa se apresentar porque sei de onde é. Talvez saiba até o seu
CPF...
A menina passa por mim com a bandeja enquanto continua a
cantar. Tento esconder minha vergonha, mas creio que não é
possível. Dessa forma, apenas prossigo pelo local até chegar
próximo da borda da piscina.
- Tire a roupa e entre. – Caroline acena para mim com uma
taça em sua mão, quando ela vê o meu olhar logo responde. – Não
é bebida alcoólica, apenas suco de limão.
Retiro a blusa e depois as calças ficando apenas de cueca,
me lembro de um tempo difícil quando eu não conseguia ficar sem
camiseta nem mesmo em casa. Depois que entrei no time da escola
fui perdendo essa vergonha, hoje isso é bem natural para mim,
antes pensava que seria um problema maior ficar com um monte de
garotos em um vestiário, imaginava quanto bullying poderia sofrer, é
claro que no começo foi difícil ouvir alguns comentários, mas com o
tempo eles souberam que não é pelo fato de eu ser gay que desejo
qualquer garoto sexualmente, além disso, os meninos interessantes
do nosso time não ultrapassam de três sets.
- Isso é tão bom... – Exclamo com prazer quando sinto a
água quente em minha pele, depois do descanso e do remédio tudo
está ficando melhor.
- Eu só imagino o seu pai chegando agora. – Jordana se
aproxima com a bandeja em sua mão e senta na beira da piscina
apenas com os pés imersos.
- Meu pai iria surtar. – Miguel ri. – Ele é tão defensor das
regras que isso me irrita, imagina se soubesse que o filho dele é um
infrator.
Sim, a reputação de Miguel na Alcateia do Sul não é muito
positiva. Nem dá para contar quantas advertências levou por ficar
beijando garotas nos corredores, ou usar o vestiário para coisas
maiores..., mas, ao olhar para sua face angelical sei que há duas
pessoas ali. Acredito que todos tenhamos diferentes sujeitos dentro
de si, dependendo do ambiente um deles assume enquanto os
outros recuam.
- Ainda bem que ele viaja bastante. – Da cadeira ao lado
Bernardo fala.
- Seu pai trabalha com o que? – Caroline questiona.
- Ele administra nossa loja de vinhos. – Migue responde. –
Está sempre circulando pelo Brasil fechando negócios em diferentes
estados, muita gente ama vinho, mas nem tanta gente produz o que
é um negócio bom para nós. O vinho que produzimos é um dos
melhores, sem querer ser muito otimista.
- Se meu pai tivesse uma adega ele iria falir em poucos dias
porque com certeza iria beber todas as garrafas. – Geovane fala e o
restante do pessoal ri.
Depois de um tempo eu aceito beber um pouco do suco de
limão de Caroline.
- Meus pais com certeza gostariam que eu administrasse
uma loja de vinhos. – Jordana fala. – Mas, eu nasci com sérios
problemas, e o que pessoas problemáticas se tornam? Artistas. –
Ela me faz rir. – Escritores, músicos e pintores como eu.
- Só não vá cortar a orelha como Van Gogh. – Eu digo.
- Van Gogh que me proteja! – Jordana estanha as
sobrancelhas. – Eu amo demais minha orelha, mas se fosse pensar
entre uma orelha e uma mão, definitivamente eu optaria pela orelha.
Não me vejo não pintando.
- Tem alguma imagem de algum quadro? – Caroline
questiona.
Jordana retira do bolso da sua calça um celular com capa
rosa, vira em nossa direção e mostra a imagem de um quadro. São
duas garotas sentadas em um banco, identifico que seja outono
pelas folhas alaranjadas.
- Isso é tão gay. – Geovane fala ao ver a imagem.
- É muito bonito! – Miguel sorri. – Jordana é uma artista
incrível, quando nos conhecemos em uma festa na cidade fiquei
logo amigo dela e por quê?
- Porque nós tivemos um longo debate sobre esportes, ele
dizia que sabia jogar vôlei e eu respondi que também entendia de
jogos, mas eletrônicos. – Jordana ri ao contar, ela é muito simpática.
– Combinamos um outro dia para jogar pelo computador e eu
simplesmente o destruí em uma partida.
- Se tivesse acontecido em uma quadra real eu teria te
humilhado e você sabe bem disso. – Miguel responde.
- Será? – Todos me olham quando eu falo, inclusive Moraes.
– Pelo que eu fiquei sabendo, nas últimas partidas Miguel deu uma
diminuída no ritmo.
Os garotos do time riem e olham para Miguel que fica vidrado
em mim.
- Eu sou o capitão. – Miguel ressalta. – Sempre fui a regata
dez do time, não preciso dizer muita coisa. Vamos ver na próxima
semana quem será escalado para liderar o time no campeonato. Só
não pode ficar no banco desta vez, Silveira.
- A técnica já me colocou no time principal. – Respondo e
aprecio cada palavra. – Querendo ou não vai me ver muito em
quadra, Miguel.
- Sei que você vai amar me ver ainda mais. – Miguel ri.
- Eu gostaria de beber um gole da autoestima masculina. –
Jordana comenta.
- Definitivamente! – Caroline completa.
O garoto levanta da cadeira e abandona a toalha que o
cobria, olho de baixo para cima porque ele está com uma sunga
preta, no mesmo instante Caroline segura na minha mão como um
cachorro agarrando um inimigo. Ele entra com graciosidade na
piscina e nada um pouco até o outro canto.
- Eu preciso beijar ele novamente. – Caroline sussurra para
mim.
- Só não se apaixone. – Jordana que está perto ouve, ela
arruma o seu boné na cabeça e nos encara. – Miguel é um garoto
complicado por quem você pode se apaixonar.
Olho o seu cabelo loiro brilhante e agora molhado, aquele
sorriso intimidador, mas agora com a convivência tão... Acolhedor.
- O perigo às vezes é bom. – Eu comento.
- Eu amo o perigo. – Caroline ri conosco. – Já dizia Ariana
Grande: algo em você faz eu me sentir uma mulher perigosa.
- Você é hétero? – Jordana se espanta e questiona Caroline.
– Droga! O meu gaydar anda meio enferrujado.
- Não. – Caroline solta um riso espontâneo. – Apenas estava
com um objetivo em mente, Miguel é quente e é isso o que importa.
– Ela desliza pela água e se aproxima de onde a garota está. - Mas,
eu também poderia te beijar.
- Estou solteira. – Jordana levanta as mãos para cima. –
Porém, não devemos nos beijar porque com certeza em uma
semana iremos morar juntas.
As duas riem e eu posso sentir algo no ar, eu não iria achar
ruim as meninas ficarem e quando penso nisso me repreendo
porque sei o que está acontecendo.
- Falando em radar. – Caroline me encara e sussurra. –
Bernardo não para de olhar para você, é como se você fosse algum
daqueles bolos deliciosos que faz e ele o cliente que está com muito
desejo.
Olho para frente e ela não está mentindo, ele está fixado em
mim. Por um momento eu penso que deveria ficar com ele, mas há
algo que me impede.
- Eu sempre soube. – Jordana sussurra. – Mesmo vendo
Bernardo apenas em festas via que quando ele bebia e se soltava
um pouco, queria ultrapassar a barreira e entrar no vale, mas deve
ser complicado, ainda deve ter um pouco de preconceito com isso.
Me viro e encaro só elas.
- Mas, ele quase me beijou na cozinha. – Sussuro.
- O que? – Caroline fala alto e depois se encolhe. – Alguém
está apaixonado e isso é esquisito, só me apaixono depois de uma
bela noite amorosa.
- Eu só preciso de um selinho. – Jordana é dramática na
resposta, ela ri e coloca seus olhos fixos nos meus. – Fica com ele,
você vai ser com uma aeromoça.
- Como assim? – Eu questiono.
- Vai receber ele no avião com destino à Gaylândia. –
Jordana reponde.
Nós três não paramos de rir e isso é muito divertido, até
esqueço que algum tempo atrás estava quase em coma alcoólico.
Mesmo que eu tenha passado vergonha na festa ainda sim estou
conseguindo tirar muitas coisas boas daqui.
V ejo quando o
garoto levanta a
bola enganado
o time adversário, piso antes da linha e impulsiono meu corpo para
cima atacando, a bola vai com toda força para baixo e nossos
adversários não conseguem recuperar. Piso no chão e comemoro
com o meu time, bato em suas mãos e a última delas é a de Miguel,
ele apenas pisca em minha direção. Nunca havia jogado no time
dele e a experiência está sendo positiva, dentro de quadra ele
possui uma postura mais rígida, mas ainda sim consigo ver aquele
garoto que cuidou de mim em sua residência.
O som do apito da técnica ecoa pelo ginásio anunciando o
fim do treino, apenas me aproximo dos bancos e pego uma das
toalhas para me secar. Vejo quando Bernardo se aproxima de mim,
ele me oferece uma garrafa de água, confesso que fico um pouco
retraído devido aos últimos acontecimentos.
- Parece que estava morrendo. – O garoto ri.
- Sim. – Eu respondo. – Estou me esforçando o máximo que
posso.
- Todos estão vendo isso. – Geovane, que está um pouco
mais distante ouve nossa conversa e se manifesta. – Quem sabe
um próximo capitão.
- Um capitão... – Bernardo me encara por alguns segundos e
então desvio o meu olhar, tudo está tão nítido e eu não estou
gostando disso, mas ao mesmo tempo sim? Gosto de ver garotos
flertando comigo mesmo que eu não faça nada.
Apenas tomo a água e sorrio internamente, meu objetivo
desde o princípio foi esse e quando a técnica se aproxima com as
regatas o meu coração congela. Esse é o momento que ela define
os números da temporada, aqueles que vão nos acompanhar
durante os torneios interescolares, como também o capitão deste
ano.
- Parece que os lobos correram por um continente inteiro. –
Chika ri de nossas faces que vão do acabado até o mais derrotado.
– Estou com as novas regatas do time, vocês já sabem como
funciona então vai ser simples. Geovane.
Ela chama e o garoto levanta, Chika entrega a regata de
número 8.
- Grande novidade! – Geovane sorri. – Pelo menos gosto de
números pares.
- Pensei que você sempre gostasse de ser o ímpar da
relação. – Gustavo, um dos mais velhos faz uma piada interna e
todos riem porque Geovane tem fama de sair com casais que
gostam de apimentar um pouco a relação.
- O próximo é você e sua namorada? – Geovane rebate,
Gustavo levanta suas mãos recuando da sugestão. – Foi o que eu
pensei.
Os outros meninos são chamados enquanto aguardamos
sentados, um pouco distante de mim reparo em Miguel, com a
coluna ereta observando os nomes serem ditos. É impressionante
como ele soa e nem mesmo o seu cabelo se desmancha, quando vê
que estou olhando em sua direção o garoto me encara e eu viro
para frente.
- Bernardo. – Chika chama.
Bernardo pega a regata de número 11, quando vejo o que
está acontecendo o meu coração acelera. Há duas regatas na mão
da técnica, a de número 13 e a 10. Obviamente todos os anos eu
fico com a do número maior, mas desta vez eu sinto meu corpo
tremer como se fosse possível almejar o melhor posto. Os garotos
olham para nós dois, os únicos sentados e isso me deixa aflito.
- Como sabem todo ano precisamos de um capitão. – A
técnica diz. – Durante dois anos tivemos a excelência de Miguel
Moraes como capitão, e isso não tira o mérito de ninguém afinal
vocês são um time e não funcionariam com apenas um em quadra.
- Não fale isso que Miguel vai se achar. – Bernardo comenta
e alguns riem.
- Calado, Bernardo. – Chika o repreende e prossegue. -
Neste ano observei o incrível aperfeiçoamento de Lucas Silveira em
jogo. – Quando seus olhos pousam em mim eu travo. - Acredito que
todos tenham observado, quase sempre foi o destaque em pontos e
defesas, é por isso que hoje eu o escolho como capitão do time da
escola.
Meu corpo todo trava na arquibancada enquanto os outros
meninos me aplaudem, só vejo quando Miguel levanta do seu lugar
e segue em direção a técnica. Ele pega a regata de número 13 e se
junta aos demais.
- Venha buscar o seu uniforme, Lucas. – Chika diz.
Eu levanto e quase erro os passos, no entanto, respiro
profundamente e prossigo. Pego o saco com o uniforme azul com
roxo, viro ele e vejo o número 10 estampado, automaticamente
sorrio de orelha a orelha.
- Sei que vai fazer um ótimo trabalho. – Chika sussurra para
mim e após pega o apito em seu pescoço, o barulho ecoa por todos
os lados. – Agora vão tomar um banho e tirar esse cheiro
maravilhoso da quadra.
Prossigo com o time para o vestiário. Sinto quando um corpo
sobe em minhas costas e quase me derruba no chão, me viro e
encontro Geovane todo sorridente. Ele bagunça o meu cabelo como
uma criança.
- Parabéns! – Ele diz. – Sabia que iria conseguir, não quis
dizer nada muito provável antes porque quem sabe você ficasse
muito otimista.
- Mas, eu sou muito otimista. – Respondo.
- Essa é a primeira vez que teremos um gay como capitão. –
Geovane observa um detalhe que não tinha passado pela minha
cabeça. – Por favor, nos honre. Sei que vai fazer um ótimo trabalho
assim como Miguel fez nos últimos anos.
Me viro um pouco de lado e vejo quando Miguel passa, sei
que sou um pouco tolo por esperar isso, mas ele simplesmente
passa reto por nós e entra no vestiário. Por um instante penso se fiz
algo de errado, no entanto, sei que não fiz.
- Ele ficou irritado. – Eu comento.
- Obviamente. – Geovane responde com um riso. – Um
capitão perder o seu posto no último ano não é fácil, mas é assim
que a vida funciona. Uma hora ganhamos e outra perdemos, não dá
para vencer sempre.
- Mais do que nunca eu sei disso. – Rio da sua frase.
Quando entro no vestiário eu recebo empurrões, abraços e
petelecos por todas as partes do corpo, mas já estou acostumado
com o jeito dos meninos héteros expressarem os seus sentimentos.
- Nosso capitão. – Bernardo grita. – Lucas Silveiraaaa.
Os outros garotos uivam como lobos, por um momento paro
para olhar em volta enquanto eu estou no centro de tudo, a
sensação não é ruim, será que foi assim que Miguel sempre se
sentiu? Porque apesar de tudo isso dá uma força gigante para
seguir em frente. Mas, também lembro das responsabilidades.
- É melhor nós ganharmos esse campeonato, vadias. – Falo
com eles como se tivesse falando com os meus melhores amigos, e
eles correspondem.
Deixo a água quente escorrer pelo meu corpo enquanto
sorrio em silêncio, penso que meu pai iria gostar de me ver como
capitão. Uma vez ele me disse que eu poderia conquistar tudo o que
almejasse, eu almejei esse posto e aqui estou eu. É claro que isso
não é o meu foco principal porque meu sonho maior está em entrar
em uma faculdade, conseguir uma boa estabilidade e quem sabe
um grande am...
- Será que devemos esperar o capitão terminar o banho? –
Gustavo grita do lado de fora, por mais sério que fale sei que está
brincando.
- Dessa vez vai passar. – Eu respondo e depois rio.
Termino o meu banho, me seco e coloco roupas limpas.
Me olho na frente do espelho com a jaqueta preta da escola
onde bem ao lado há o símbolo do lobo, um animal que pode ser
visto como perigoso, mas a alcateia sempre se protege embora eu
acredite que isso não funcione na escola. Ela é um sistema onde um
está tentando devorar o outro, por isso é sempre bom ter a sua
alcateia.
- Parabéns capitão! – Seus olhos azuis me encaram pelo
reflexo do espelho, eu me viro e encaro Miguel Moraes que não
expressa nenhuma animação.
- Obrigado... – Respondo. – Você está bem?
- Por quê? – Ele rebate com outro questionamento. – Posso
ter perdido o meu posto como capitão, mas é assim que as coisas
funcionam. Você disse que conseguiria e agora tem a minha regata.
Contraio minhas expressões.
- Você fez um ótimo trabalho nesses últimos anos, ainda é
um dos melhores jogadores da escola e não estar no posto de
capitão não significa nada. – Falo tudo o que desejo. – Não precisa
ficar irritado.
- Irritado? – Miguel ri enquanto se aproxima. – Espero que
tenha tempo para lidar com o time e também procurar outro
emprego.
- O que disse? – Exclamo.
O garoto passa por mim com um sorriso sádico no rosto, sou
movido por um instinto felino e pego em seu braço, me aproximo do
seu corpo. Olho em seus olhos azuis e quase sinto sua respiração
de tão perto que ficamos.
- Você é um idiota! – Digo com raiva.
- Vai me beijar agora? – Ele continua a sorrir. – Aproveite o
posto como capitão, estou ansioso por esse momento em quadra.
Miguel vira de costas e prossegue para fora, eu fecho os
meus punhos e sinto meu sangue ferver. Quando eu acho que ele
vai mudar, Miguel se mostra o mesmo de sempre. Talvez eu tenha
me iludido porque ele foi legal comigo uma vez, mas sua máscara
caiu novamente, nem todo mundo consegue segurar por muito
tempo.
- Eu te odeio...- Sussuro.
Bato a porta do ginásio e saio, sinto o vento frio bater em
meu corpo e diminui a minha raiva. Coloco minhas mãos dentro do
casaco e prossigo pelo pátio, nem mesmo Miguel Moraes vai tirar a
minha felicidade nesse momento.
Tudo se torna melhor quando eu vejo Caroline mais distante,
ela está sentada em uma das mesas. Cada uma das espalhadas
pelo pátio é pintada de uma cor diferente, como um arco-íris, a
diretora pensou que seria uma ótima forma de representatividade e
não palestras falando sobre a sexualidade, mas mesmo assim é
algo bonito.
- Ainda bem que te encontrei.
Jogo minha mochila em cima da mesa e me sento no banco
na sua frente, Caroline empurra sua mecha para o lado e me
encara, vejo que seus olhos estão vermelhos.
- Droga! – Digo. – O que houve?
- Nada... – Ela me responde com um sorriso falso que logo se
apaga.
- Carol. – Exclamo. – Me fale o que houve.
Ela inclina sua cabeça para cima, suspira e depois volta a me
encarar, seu olhar ainda permanece como se tivesse recuando de
mim.
- A matéria que eu havia prometido conseguir. – Ela diz e sua
voz falha. – Infelizmente eles não aceitaram fazer ela, me desculpe
Lucas, eu disse que conseguiria, porém não tenho controle sobre
isso...
- Amiga! – Sorrio e pego em sua mão. – Está tudo bem, vou
encontrar outra forma de divulgar o meu trabalho, hoje em dia tem
as redes sociais, estava pensando em criar um Instagram e você
pode me ajudar com isso.
- É uma boa ideia. – Seus olhos voltam a brilhar. – Que bom
que não ficou chateado comigo, ainda mais depois de ter
conseguido aquele convite para a casa de Miguel, você foi perfeito.
Olho mais distante Miguel entrar em um carro, apenas sorrio
para a minha amiga tentando ignorar o fato que talvez ele seja o
garoto mais estúpido de Vila Vinheira e como eu sou ainda mais
idiota pelo fato de...de... quase me sentir atraído por ele.
- Eles disseram o motivo pelo qual não aceitaram? – Eu
questiono.
- Sim. – Caroline fica séria e engole em seco. – Eles me
falaram que eu só sei escrever sobre moda e qualquer matéria fora
desse eixo jamais iria ficar boa, é claro, se escrita por mim. – Ela ri
com ódio. – É assim que as pessoas me veem, como só a menina
que posta fotos bonitas nas redes sociais ou está preocupada com a
beleza. Eu me preocupo com isso, mas não sou apenas isso!
- Você pode ir muito além. – Eu contesto. – Não acredite no
que um idiota te diz, sei do seu talento para escrever coisas. Se
quiser pode escrever um livro de terror onde seu chefe será
perseguido por um assassino em série.
Minha amiga ri e me encara.
- Obrigada por me fazer rir. – Ela limpa suas últimas lágrimas.
– Mas, meu sonho é escrever sobre romances, amores verdadeiros,
é algo bem clichê como muitas pessoas chamam, mas acredito que
o amor deve ser valorizado. Posso sair com todos os garotos da
escola, mas isso é porque estou tentando encontrar o meu par.
- Com certeza. – Eu rio com ela. – Mas, falando sério. Se o
seu sonho é escrever romances o que eu posso dizer é: vá e se
arrisque. A Caroline que conheço jamais iria baixar a cabeça porque
um homem disse algo ao seu respeito, então nós dois temos a
tarefa de correr atrás dos nossos sonhos.
Abro minha mochila e coloco a regata dez em cima da mesa,
Caroline estanha os seus olhos e abre a boca. Ela pega na sacola e
sorri.
- Você é a regata dez da escola. – Minha amiga diz. – Isso é
tão incrível.
Caroline levanta do seu banco e vem correndo me abraçar, é
bom sentir o afeto de pessoas que torcem verdadeiramente por
você e que tudo no final é recíproco, não alguém tão mesquinho
como...como aquele garoto loiro super atraente.
- Como Miguel ficou? – Caroline me questiona. – Imagino que
nada bem, ele gostava de ostentar o título de capitão todo ano.
- Não deve ser mencionado. – Eu respondo. – Apenas
devemos comemorar.
- Tem razão. – Ela engancha o seu braço no meu. – Um
parque se estabeleceu na cidade por alguns dias, podemos ir de
noite, o que acha?
- Seria ótimo. – Sorrio para ela.
A credito que o
amor é uma
construção, não
acordamos em um dia e pensamos: eu vou amar aquela pessoa.
Nos apaixonamos aos poucos, seja por um sorriso, um gesto gentil,
com certeza as atitudes fazem a diferença. Para muitos há também
a parte da negação e posso dizer que compreendo, é difícil dizer
que você gosta de uma pessoa sem saber se aquele sentimento
forte é recíproco. Talvez um dos maiores medos da vida seja amar
sem ser amado, mas mesmo com tamanho medo precisamos ser
sinceros com nossos sentimentos.
Uma pessoa que eu conheço se encaixa perfeitamente na
minha descrição anterior, mas suponho que muitas outras que estão
lendo também vão se encontrar no que eu digo. Amar é complicado,
principalmente quando estamos em uma etapa da vida que
devemos escolher qual caminho tomar. E, se eu pudesse definir o
amor diria que é como uma montanha-russa de emoções, boas e
também ruins, mesmo que aqui tudo pareça perfeito nós sabemos
que a perfeição não existe, mesmo assim sonhamos com o amor
ideal e não estamos errados por isso. Mas, não vamos nos
prolongar muito afinal há uma história a ser contada.
– Anna Jane.
CAPÍTUO VIII
“Uma noite no parque com o garoto mais idiota do
mundo.”
A noite
iluminada pelos
brinquedos do
é
P ego a espátula
e vou tirando o
excesso
glace em volta do bolo, depois que termino eu provo e me sinto
de
ótimo porque está muito bom. Observo meu Picasso e fico contente
por isso, o bolo que é semelhante a um gato. Limpo minha mão e
pego o meu celular, posiciono bem à frente como Caroline me
ensinou e tiro uma foto.
- Não coloque muito efeito. – Repito os seus ensinamentos. –
Apenas de contraste e realce as cores. – Olho a foto e creio que
ficou perfeito. – Agora só postar.
Entro no meu instagram “@lucasarteeconfeitaria” e posto a
primeira foto em meu feed, a imagem de perfil sou eu em uma
caricatura criada por Caroline. Escrevo uma legenda bem fofa com
poucos emoji e enfim envio.
- Por favor! – Sussuro. – Eu preciso de um emprego.
Coloco o bolo na geladeira com a temperatura ideal e ouço o
meu celular vibrar, vejo as notificações e várias pessoas já curtiram
e comentaram.
Jordana: eu estou apaixonada, faça de um cachorro para
mim.
Caroline: simplesmente o melhor.
Nas curtidas da publicação me surpreendo quando vejo a foto
de Miguel Moraes.
- O ônibus. – Quase grito.
Abandono tudo na cozinha e sigo direto para o meu quarto,
pego a sacola com meu uniforme que estava em cima da prateleira
e jogo dentro da mochila, após coloco minhas joelheiras. Me olho no
espelho e creio que estou ótimo, tirando o fato que estou com o
cheiro de cozinha o que para mim é algo super agradável.
O dia está ensolarado, mas ainda sim frio. Coloco minhas
mãos dentro do casaco e prossigo pela rua, ainda bem que minha
casa não é muito longe da escola. Foquei tanto no bolo que esqueci
que minha mãe não iria vir para casa hoje porque há atividades
interdisciplinares na escola e ela comanda uma delas. Sei que
Isabel ama o que faz, mas às vezes é exaustivo porque é uma
profissão que você nunca para e mesmo assim as pessoas insistem
em desvalorizar esses profissionais, principalmente nosso belíssimo
governo que nem deve ser mencionado agora.
Chego em frente à escola quando o ônibus está parado,
quando me vê a técnica Chika coloca suas mãos na cintura e
balança sua cabeça em reprovação.
- Atrasado, Silveira. – Ela diz. – Vamos, entre!
- Me desculpe. – Eu sorrio um pouco envergonhado. – Estava
fazendo um bolo.
Não sei se essa é a melhor desculpa para utilizar, porém, é a
verdade. Eu aceno para o motorista que é um senhor de idade e
entro no ônibus. Os lugares já estão quase todos ocupados, mas os
jogadores estão inquietos.
- Finalmente. – Geovane levanta do banco e grita. – Nosso
capitão chegou.
- Pensei que teria que assumir o comando. – Gustavo brinca.
- Nada disso. – Eu contesto. – Nós vamos entrar naquela
quadra para vencer, então eu quero ver seu sangue em quadra,
pensem que nossos adversários são aqueles bonecos que vocês
tanto amam jogar online e eliminem eles.
Eles me encaram em silêncio e depois começam a gritar.
- É disso que eu falo. – Bernardo grita ao fundo e todos os
outros seguem.
- Sei que deseja animar eles, mas modere. – Chika semicerra
seu olhar para mim, mas eu sei que ela gosta quando nos
motivamos, no final vai acabar brigando mais do que a gente porque
é uma boa técnica e apaixonada por seus “filhos.”
Prossigo para o fundo do ônibus e o único lugar vago é ao
lado de Bernardo, quando ele nota isso acena para mim, não me
sinto confortável, porém, mesmo assim prossigo. Jogo minha
mochila na parte de cima do transporte e me sento ao lado do
garoto que me encara com um belíssimo sorriso.
- Pronto para acabar com eles? – Bernardo diz.
- Sempre estou. – Respondo. – É o primeiro jogo do
campeonato, estou nervoso por ser o meu primeiro dia como
capitão, mas vamos lá.
- Esse é o Lucas.
Bernardo me pega em seus braços e me dá um abraço
apertado e esfrega o meu cabelo, um cumprimento que os héteros
fazem, mas nesse momento eu me lembro que Bernardo está longe
disso e apenas sorrio porque está sendo gentil. Porém, não quero
dar muitas esperanças para ele que a gente vá se beijar.
- Boa sorte! – Me viro para o lado onde Miguel está, seus
olhos azuis me encaram, ele não sorri, suas expressões são sérias.
- Obrigado. – Digo. – Mas, eu não preciso de sorte. Sou o
melhor.
A postura séria do garoto é abaixada e outra sorridente se
coloca no lugar, ele apenas balança a cabeça, coloca os seus fones
e fecha os seus olhos. Ao meu lado Bernardo faz o mesmo. Pego os
meus fones e me sento na mesma posição enquanto o ônibus parte.
Na ida sempre combinamos de ir em silêncio, relaxar para chegar
bem no jogo, mas à volta é completamente diferente.
P asso a viagem
toda
pelo
olhando
vidro
enquanto a paisagem passa, aquele beijo que dei em Lucas foi uma
das coisas mais incríveis que já me aconteceu. Eu sabia que
desejava aquilo, porém, esperei o momento ideal. Acredito que seja
hora de parar de ter medo, mas quando chego em frente à minha
casa o sentimento retorna.
- Boa noite, Miguel, durma bem. – Valdir, o motorista, acena
pelo vidro.
- Para você também. – Respondo. – Tenha uma ótima noite.
Eu apenas desço do carro enquanto Valdir guarda o veículo,
abro a porta da casa e entro. Há um silêncio ecoando na mansão
Moraes e quase sempre está assim, tudo se torna mais agitado
quando convido alguns amigos para virem até aqui. Meu pai e
minha mãe nunca foram contra isso principalmente se eu trouxesse
uma garota. Durante todo esse tempo trouxe elas porque assim
sentia que estava dando orgulho para eles, no entanto, ao parar
para pensar agora eu vejo como isso acabou aos poucos comigo.
- Boa noite, Miguel!
Quando ouço sua voz os pelos do meu braço arrepiam, olho
para o lado, em sua poltrona em frente a lareira está o meu pai.
Uma perna cruzada na outra, bebendo uma taça de vinho, veste o
seu terno formal preto e me analisa.
- Oi pai. – Eu digo. – Pensei que fosse demorar mais uns
dias.
Me aproximo dele, mas ainda fico um pouco distante.
- Fechamos o contrato mais rápido do que esperávamos. –
Cassius responde. – Logo, vamos expandir ainda mais nossas lojas
e isso quer dizer mais dinheiro para nós.
- Fico contente por isso, sei que trabalha bastante. – Falo
sobre o assunto que não me deixa nada animado. – Preciso tomar
um banho, estou um tanto exausto.
- Sente-se um pouco comigo. – Meu pai acena.
Eu me surpreendo com o pedido porque ele quase nunca faz
isso, então decido aceitar o seu convite. Coloco a mochila em cima
do sofá e me sento na outra poltrona, sinto o calor da lareira
aquecer o meu corpo que já estava frio de tanto esperar naquela
escola, mas o calor de Lucas me salvou.
- Venceram os jogos? – Cassius pergunta.
- Sim. – Eu respondo com um sorriso. – Estamos na semifinal
agora, encontramos alguns gigantes pelo caminho, mas derrubamos
eles. – Brinco.
- É assim que os Moraes são. – Meu pai lança um riso que
fazia tempo que não via e os seus olhos brilham, ele tem olhos mais
claros que os meus. – Ainda mais com você comandando aquela
equipe.
Eu pego a taça ao lado e bebo um pouco do vinho, fico em
silêncio, observo as chamas e após tenho coragem de encontrar
seus olhos novamente.
- Pai. – O chamo e ele me encara. – Eu não sou mais o
capitão do time, a técnica escolheu outro menino para liderar, o
nome dele é Lucas, joga muito bem. Sei que você queria que eu
fosse o capitão, porém, não consegui. Me desculpe!
Meu pai balança sutilmente o vinho dentro da taça.
- Você foi o capitão por dois anos incríveis. – Ele diz. – Em
um deles foi campeão e isso já é uma grande conquista, é claro que
desejo ver você no melhor lugar sempre afinal é o meu único filho.
Mas, nem sempre conseguimos vencer. – Encaro sua boca e é
realmente ele quem está falando e não um robô. - Eu errei muito em
minha vida, perdi dinheiro em investimentos, tive que recomeçar, no
final entendi que tudo é um processo. Apenas precisamos encarar
isso de frente e nunca desistir.
Cassius acena com sua taça e bebe o vinho.
- Eu pensei que você fosse ficar furioso por causa disso. –
Desejo ser totalmente transparente agora. – Como se eu fosse uma
vergonha para o nosso sobrenome.
- Eu sei que já fui muito duro com você, Miguel. – Cassius
diz. – Me arrependo de muitas coisas, porém, sei que nunca será
uma vergonha para nós. Vejo o quanto você batalha pelas coisas,
seja no time da escola, estudando os negócios administrativos da
empresa mesmo eu sabendo que odeia isso. – Ele consegue fazer
com que eu ria um pouco e isso é estranho. – E, também a música.
Nesse momento eu quase derrubo minha taça, coloco ela em
cima da mesa ao lado. Encaro os olhos azuis do meu pai e me sinto
com medo por mais que nesse instante esteja sendo mais gentil do
que já conheci em toda sua vida.
- Como você sabe? – Eu questiono.
- Eu sei de tudo o que gastamos. – Meu pai responde. –
Quando comprou o violão escondido, eu soube. Às vezes no
silêncio da madrugada eu levantava e passava em frente ao seu
quarto e ouvia um som baixinho de música com sua voz e o violão.
A música, pensei que só eu soubesse sobre isso, sou
apaixonado por escrever canções e tocar no violão, é como se tudo
de ruim evaporasse. Comecei faz dois anos e a partir disso nunca
parei, me escondia dentro do meu quarto e nunca havia contado
para ninguém, mas parece que havia uma pessoa me observando.
- Fiquei com medo que você não aprovasse. – Falo. – Por
isso escondi.
- Se gosta disso eu quero que continue. – Cassius diz. –
Como também estudando para cuidar dos negócios da empresa,
porque quando eu e sua mãe não estivermos mais aqui será só
você e precisa disso para sobrevivência. Posso soar um pouco duro
com isso, mas nossos sonhos às vezes não nos sustentam, é bom
termos algo que é a nossa paixão, mas também precisamos ter um
pé preso na realidade. É isso o que eu espero de você, que saiba o
que está fazendo.
Sorrio olhando o fogo na lareira.
- Posso dizer que concordo em partes com tudo isso. – Digo.
– E, fico muito feliz de não me desencorajar a abandonar a música.
Quando escrevo, canto e toco me sinto a pessoa mais especial do
universo. É como um ponto que não me deixa enlouquecer.
- Todos precisamos disso. – Meu pai olha para o fogo. –
Infelizmente eu perdi o meu com o tempo, amava montar em meus
cavalos, mas fiquei tão preso ao trabalho que nem lembro qual foi a
última vez que fiz isso.
- Quem sabe um dia podemos fazer isso juntos. – Eu falo e
meu pai acena em concordância.
A última vez que cavalgamos eu ainda era uma criança,
naquela época eu não temia tanto o meu pai, mas quanto mais fui
crescendo, mais conheci a postura rígida de Cassius para as coisas,
me senti sobrecarregado em muitos momentos, porém, quando eu
precisava meu pai sempre estava lá, seja quando eu estava doente
ou para me ensinar a andar de bicicleta, meu pai não é alguém ruim,
ele teve atitudes ruins, mas que não o definem como um todo. Acho
que o seu pior erro foi aquela vez que ele deu um tapa em minha
mãe na estufa do jardim, foi um dos piores momentos que já
presenciei, seu excesso de raiva. Eles quase separaram-se na
época, Cassius pediu milhões de desculpas e no final minha mãe
aceitou, naquela situação não sei se eu perdoaria como ela
perdoou. Desde aquele momento eu o vi diferente, mas ainda sabia
que o meu pai que conhecia antes ainda estava ali, escondido, mas
estava, eu precisava acreditar que estava.
- Mas, estou curioso. – Cassius observa. – No momento em
que chegou estava com um sorriso no rosto e seus olhos estavam
brilhando, certamente creio que não seja apenas pela vitória. Há
alguma garota envolvida?
Meu coração acelera, o suor escorre pela minha testa, sinto
os meus lábios ressecarem. Contenho as lágrimas que desejam cair
e respiro profundamente. Ao olhar para o meu pai eu temo, mas
chega um momento em que não dá.
- Não há nenhuma garota, pai. – Eu exclamo. – Eu beijei um
garoto!
Seus olhos focam no solo enquanto ele toma o seu vinho, por
mais que eu espere uma resposta ruim me sinto aliviado, isso
precisava acontecer.
- É a primeira vez que isso acontece? – Cassius me encara e
questiona, eu esperava que ele fosse gritar, mas está calmo. – O
que sentiu em relação a isso?
- É a primeira vez. – Respondo sem olhar para ele e entendo
que não devo recuar, preciso mostrar segurança e então o encaro. –
Mas, eu queria fazer isso há muito tempo. Acho que estou
apaixonado por Lucas, corrigindo, eu tenho certeza disso. Desde
sempre me senti atraído por garotos, mas renegava esse lado
porque dizia para mim mesmo que estava errado, e o primeiro
pensamento que se passava era: meu pai vai me expulsar de casa e
nunca vai mais olhar para mim.
Cassius deixa o vinho em cima da bancada, ele levanta
enquanto eu permaneço sentado, seu corpo se ajeita em minha
direção.
- Eu fui criado desde pequeno pelo meu pai, ele tinha ideias
retrógradas e eu sei que acabei me tornando alguém similar. –
Cassius reflete. – Meus comentários em vários momentos devem ter
feito você sentir-se assim, não vou negar que não é fácil ouvir isso
porque ainda tenho muito daquilo que ouvia quando era pequeno.
Mas, o mundo muda, durante essas viagens eu convivi com muitos
homens homossexuais, no começo tinha muito mais preconceito,
porém, eu aprendi a respeitá-los, ouvi histórias de como foram
expulsos de casa. Então quando você me diz que...que...
Eu encaro o meu pai e vejo seus olhos encherem em
lágrimas, eu nunca havia visto isso antes. Me levanto e fico ao seu
lado enquanto ele me encara.
- Que você se sentiu assim por questões minhas eu não sei o
que dizer. – Ele prossegue. – Só o que eu tenho que falar é que
peço desculpas por isso, sei que não tem como apagar tudo em um
estralar de dedos, mas me perdoe meu filho. Eu te amo, sempre te
amei, não importa quem você é, é o meu único filho e eu sempre
vou te amar.
Deixo as lágrimas escorrem pela minha face e abraço o meu
pai, sinto o calor paterno e como me sinto seguro em seus braços.
Agora não sinto mais medo ou inseguranças, sinto que finalmente
somos eu e ele na nossa verdadeira essência.
- Também te amo pai. – Eu exclamo.
- Se algum dia quiser trazer um namorado para casa. – Ele
fala e pausa. – Nunca pensei que estaria dizendo isso. – Rio com
ele. - Mas você pode. Esta casa é tão sua quanto nossa, e aquele
que amar será bem recebido.
Abraço mais um pouco ele e aproveito do momento, sua mão
desliza pelo meu cabelo e ele me faz um carinho assim como
quando era criança.
- Obrigado pai. – Sorrio para ele. – É muito importante ouvir
isso.
- Prometo estar mais perto agora, por você e pela sua mãe. –
Cassius diz. – Vou tentar mudar. – Ele sorri delicadamente. - Mas,
agora vá tomar um banho e dormir. Sei que está exausto só por
essas suas expressões, são as mesmas de quando chegava em
casa depois de brincar por horas no jardim....
É uma ótima memória que ele tem.
- Sim, preciso descansar. – Digo. – Boa noite, pai!
Aceno para Cassius, pego minha mochila e subo as escadas.
Quando entro em meu quarto eu deixo as lágrimas rolarem e
não estou chorando de tristeza e sim de felicidade, aquilo que eu
nunca esperava aconteceu, meu pai me ama independente qual
seja minha orientação sexual. Eu ouvi da sua própria boca que ele
pretende mudar e eu confio nisso. O que me deixa ainda mais
contente é saber que finalmente posso ser o verdadeiro, Miguel
Moraes. Não preciso mais inventar mentiras porque sei que sou
amado no ambiente mais importante desde o meu princípio.
A credito que a
nossa vida é
como uma roda
gigante, uma hora estamos no topo vivendo os melhores momentos,
mas em instantes conhecemos a parte de baixo dessa felicidade, é
um momento doloroso parar, olhar e lembrar que um dia já esteve
no ponto mais alto da sua vida, mas nos mostra que precisamos
lutar com todas as forças para retornar à esse lugar, o processo é
um caminho lento, porém, podemos chegar lá novamente, e tudo se
torna mais fácil se não estamos sozinhos.
Quando comecei a contar esta história sabia que em um
momento seria doloroso, não apenas para escrever sobre, mas da
parte da pessoa que me contou cada detalhe, eu senti sua dor e
também compreendi o tamanho da sua força. Então obrigada
Moraes, por ser tão sincero quanto ao seu processo de aceitação.
Se posso chegar à uma conclusão ao analisar tudo é que o amor
pode nos salvar dos momentos obscuros, e não estou dizendo
apenas sobre aquele amor entre duas pessoas que se apaixonam, o
amor da família, dos amigos, eles assumem formas diferentes, mas
é algo que todos precisamos, o amor dá sentido a vida, nos mostra
que não estamos sozinhos, e Miguel nunca esteve.
- Anna Jane.
CAPÍTULO XI
“Preciso te contar algo.”
N ão tem como
esquecer
aquela noite, o
céu estrelado, aquele beijo intenso que eu e Miguel trocamos, ainda
sinto o cheiro do seu perfume em minhas narinas e também o seu
gosto em minha boca. Nem mesmo o melhor doce que eu já fiz tem
aquela sensação, é simplesmente inexplicável. Quando olho para o
celular anseio por uma notificação sua, porém, não quero ser o
primeiro a enviar mensagem para não soar um tanto desesperado.
Aliás, é complicado, para todos Miguel é um garoto hétero, ele criou
toda essa fama e se desvincular dela vai ser difícil, mas também
penso que talvez ele seja bissexual e não há nenhum problema. O
que eu preciso é apenas de uma mensagem ou uma explicação.
Coloco o bolo em cima da mesa e começo a preparar os
últimos detalhes, uma cliente minha pediu para fazer a decoração
de fadas, obviamente a minha primeira inspiração foi: O Clube das
Winx. É claro que não deixei tão infantil e trouxe elementos mais
obscuros e creio que ficou perfeito.
- Eu não sei de quem você puxou esse talento. – Minha mãe
diz. – Nem seu pai ou eu soube cozinhar tão bem quanto você.
- Minha inspiração de vida foi a Barbie cozinheira. – Eu falo e
minha mãe ri. – Não sei, apenas gosto de fazer as pessoas felizes e
parece que está dando muito certo.
- Certo? – Minha mãe aponta para as quatro tortas que tem
na geladeira com porta de vidro, na temperatura ideal para evitar
proliferação de bactérias. – Estou pensando como você vai dar
conta de fazer tantos bolos.
Sigo pelo lado da mesa e abraço minha mãe que está com
um avental todo sujo, embora ela não saiba a arte de confeitar é
uma excelente ajudante.
- Eu tenho a melhor parceira. – Eu digo.
- O que? – Caroline se aproxima com o celular na mão
enquanto grava. – Lucas acabou de dizer que eu não sou a melhor
parceira de negócios, lastimável.
- Você também é incrível. – Pisco para ela. – Mas, a mamãe
está no topo.
Caroline está gravando e postando fotos de todos os estilos,
confesso que sem a sua ajuda não iria conseguir expandir tanto nas
redes sociais. Ela já tem essa habilidade tanto que tem vários
seguidores que acompanham suas dicas de moda, mas Carol diz
que quer fazer muito mais que isso.
- Daqui a pouco com o lucro você aluga um local. – Caroline
diz. – Pensa a expressão de Paulo Muzi se isso acontecer.
- Mas, eu amava tanto o meu antigo chefe. – Sou irônico. –
Vamos falar apenas de coisas boas, e para recompensar minhas
ajudantes eu preparei algo bem especial.
- O que será? – Minha mãe fica instigada.
Eu sigo até a nossa geladeira “normal” onde guardamos
nossa comida e retiro dela dois potes de brigadeiro com pedaços de
morango, coloco em cima da mesa e abro minhas mãos enquanto
sorrio.
- Não. – Os olhos de Caroline brilham. – É o meu preferido.
- É o preferido de vocês duas. – Eu pisco para elas.
- Muito obrigada, filho. – Minha mãe fala.
Estou um pouco enjoado de muito doce então só observo
elas devorarem o pote, nem precisam me dizer nada porque só
pelas suas expressões já sei que está fantástico, na cozinha eu não
sou nada humilde porque sei que sou bom. As pessoas pensam que
não podem dizer que são boas em algo porque isso pode soar como
desumilde, porém, se é a realidade apenas se orgulhe do seu
trabalho.
Minha mãe deixa o avental pendurado na parede.
- Vou me deitar um pouco. – Isabel diz. – Estou exausta e
depois desse grande pote de brigadeiro quero apenas hibernar.
- Tudo bem, mãe. – Aceno. – Obrigado pela ajuda.
- Daqui a pouco também estou indo. – Caroline acena. –
Bons sonhos Senhora Silveira, vê se sonha com um homem bem
gato, tipo um Marco Pigossi.
- Eu sou da época do Tarcísio Meira minha filha. – Minha mãe
ri.
Eu me sento no banco, do outro lado da mesa está Caroline,
espero minha mãe fechar a porta para então encarar a minha
amiga. Ela percebe tanto que deixa o celular ao lado e sorri para
mim, coloca as mãos em cima da bancada.
- O que tem para me dizer. – Carol é direta. – Te conheço.
- Eu não sei como isso aconteceu. – Começo a falar e travo,
porém, continuo. – Mas, eu preciso te contar algo. É minha amiga
desde o primeiro momento que nos conhecemos e eu acho que
devemos ser transparentes.
- Está me dando medo. – Ela sussurra. – Conte logo.
- Aconteceu depois que chegamos do torneio. – Eu digo. –
Estávamos em frente a escola quando nos beijamos.
- Quem você beijou? – Ela abre a boca e sorri. – Geovane,
Bernardo?
- Carol, eu beijei... – Minha voz falha e prossigo. - Miguel,
Miguel Moraes. Eu beijei o maldito do Miguel Moraes.
As sobrancelhas da minha amiga arqueiam e seus olhos
esbugalham, ela fecha sua boca sem dizer nada, por um instante
penso que ela vai me xingar horrores por isso, mas após alguns
segundos ri.
- O que foi? – Pergunto. – Está braba?
- Não. – Caroline está calma. – Acredito que não posso dizer
que estou surpresa, quando vi vocês dois no parque já tinha
entendido que algo poderia acontecer e agora parando para pensar
melhor. – Ela balança a cabeça. - A forma como vocês se tratavam
era diferente. Até mesmo nas brigas, como aquele clássico que
você se apaixona pelo garoto que mais irrita você.
- Uau! – Rio. – Tem razão. – Coloco minhas mãos em meu
colo e fico calado por alguns segundos. - Por que não me falou
nada?
- Lucas. – Minha amiga diz. – Eu não estou apaixonada por
Miguel, na verdade nunca estive, a única coisa que eu queria era
transar com ele e só isso.
- Me sinto mais aliviado. – Exclamo. – Jamais deixaria um
menino estragar a nossa relação, nem mesmo por Moraes.
Ela meche na mecha do seu cabelo e morde seu lábio
inferior, é um gesto que faz quando também precisa me contar
sobre algo.
- Agora eu preciso te contar algo. – Caroline confirma o meu
pensamento. – Quando disse para você que havia transado com
Miguel eu tinha mentido porque nada aconteceu naquele dia, a não
ser vários beijos que não me despertaram nada.
Agora sou eu que estanho as sobrancelhas.
- Por que mentiu? – Pergunto. – Parecia tão feliz quando me
contou.
- Estava me sentindo fracassada. – Ela admite, abaixa a
cabeça e depois me encara. – Fracassada por não ter transado com
ele, sei que isso é ridículo, mas me fez mentir para você. Tinha
colocado toda aquela fantasia na mente que esqueci o que era real.
- Entendo. – Olho para ela. – Está tudo bem.
- Mas, o que você sente por ele? – Quando ela pergunta eu
sorrio espontaneamente. – Oh! Meu deus, você está apaixonado
Lucas, esse brilho no olhar, o sorriso. Meu amigo você está
ferrado...
- Eu sei. – Solto o ar profundamente. – Foi difícil admitir isso,
mas depois que eu o beijei tudo se confirmou e creio que é
recíproco porque foi Miguel quem deu a iniciativa. Todos os
comentários que ele fazia comigo nos últimos tempos me deixa com
mais certeza que ele queria isso.
Minha coloca o braço em cima da mesa e acena para mim,
eu faço o mesmo, ela pega em minha mão e esboça o seu melhor
sorriso.
- Amigo. – Ela diz. – Fico muito feliz por vocês, os dois
garotos mais gatos da Alcateia do Sul namorando vai ser o ponto
alto do último ano na escola.
- Mas, ninguém sabe. – Eu digo. – Não sei como isso está
sendo para ele, como está lidando com essa parte de aceitação.
Tenho medo de sonhar tanto e no final ser colocado para o lado
porque ele é muito novo nisso, entendo que Moraes tem o seu
tempo, mas é tudo muito complicado...
Ela dá duas batidinhas na minha mão e se escora no banco.
- Chegou a falar com ele? – Caroline questiona.
- Não desde que nos beijamos. – Respondo e rio porque
estou tenso. – Estou esperando-o me mandar mensagem porque
estou muito inseguro.
- Lucas! – Minha amiga me encara. - Foi Miguel quem te
beijou então agora tenha iniciativa, nunca ficou esperando por um
menino, principalmente alguém que deseja, e só de olhar eu sei que
você quer aquele corpo nu.
Ela me faz rir porque é uma verdade, mas de repente paro de
rir quando o meu telefone toca.
- Quem é? – Caroline é mais afobada do que eu.
Ela pega o celular em cima da mesa, vê a notificação e no
mesmo momento começa a rir, vira e mostra para mim, é Miguel
Moraes. Rapidamente pego o dispositivo da sua mão e fico com ele
na minha mão.
- Meu deus, o que será que ele me enviou? – Eu suspiro, o
suor escorre pela minha testa e minhas mãos quase não
conseguem segurar o celular.
- Veja logo. – Caroline grita e depois coloca a mão na boca. –
Vai, Lucas.
Olho para a tela do meu celular, suspiro e deslizo para cima a
tela de bloqueio. Entro no aplicativo de mensagem com a foto de
Miguel e leio a conversa. Nesse exato momento é como se minha
alegria fosse sugada, o sorriso se apaga assim como qualquer riso,
um sentimento de angustia é despertado.
Eu apenas encaro Caroline.
- O que foi? – Ela questiona.
Viro o celular e entrego para ela, minha amiga lê a
mensagem de Miguel:
- Lucas, meu pai morreu. – Seus olhos pousam nos meus. –
Não acredito!
CAPÍTULO XII
“Eu estive aqui, eu estou aqui.”
A morte
complicado,
quando
pessoa que a gente ama nos deixa sentimos o nosso mundo
é
uma
feliz, as coisas não tem mais sentido sem aquela pessoa, viver o
luto é uma coisa que não desejo a ninguém, podemos falar que é
uma parte natural da vida, mas quando estamos vivendo ele é difícil.
Para algumas pessoas elas conseguem superar rápido, já outras
demoram meses, anos, dias e não está errado se você superar isso
mais rápido do que outro, não quer dizer que aquele sentimento que
viveu não foi real, a vida é feita de encontros e desencontros,
precisamos aprender a lidar com isso.
Quando eu encaro Miguel ao lado do caixão não sei o que
dizer, se devo me aproximar ou ficar mais afastado, no entanto, só
de olhar em seus olhos eu já compreendo sua dor, aquele brilho
intenso se foi, já estive em seu lugar e talvez isso me deixe mais
recuado porque me lembro do meu pai. Eu fico ao lado do time de
vôlei, nós compramos uma coroa de flores que está ao fundo do
caixão, tudo como uma singela homenagem e apoio a Miguel, ele
vai precisar.
- Coitado de Miguel. – Bernardo sussurra. – Com certeza não
vai conseguir jogar o torneio, droga, tudo acontece em momentos
ruins.
- Não devemos nos preocupar com isso agora. – Respondo
ele. – Apenas temos que respeitar o espaço de Miguel e ajudá-lo
nesse momento.
- Lucas tem razão. – Geovane concorda. – Isso é muito maior
que um torneio.
- Me desculpem. – Bernardo diz.
Nós acompanhamos toda a cerimônia do corpo, o momento
mais difícil é quando estamos no gramado enquanto o vento bate
em nossos corpos, o caixão do pai de Miguel desce. O desespero
da sua mãe é algo cortante, meus olhos enchem em lágrimas
enquanto vejo Miguel abraçar a mulher, sei que está se controlando
por ela por mais difícil que esteja sendo.
No final da tarde quando o sol está se distanciando as
pessoas começam a ir embora, eu ainda não me aproximei do
garoto, só acenei de mais distante.
- Você vem? – Caroline me questiona.
- Não. – Encaro ela. – Eu sinto que ele precisa de ajuda.
- Tudo bem. – Caroline me abraça e segura minhas mãos –
Acredito que ele vai precisar do seu apoio, qualquer coisa me
chame.
Vejo minha amiga se distanciando junto com os demais.
Miguel está um pouco mais a frente parado em frente a lápide
do seu pai, eu coloco minhas mãos dentro do casaco e me aproximo
de Moraes. Quando ele me vê limpa as suas lágrimas rapidamente.
- Não precisa se conter. – Eu exclamo sem olhar em sua
direção. – Quando meu pai morreu eu fiz o mesmo pela minha mãe,
entendo o seu lado, mas permita-se sofrer também. Se precisar
conversar comigo pode ficar à vontade, porém, se quiser ficar em
silêncio eu respeito o seu momento.
Ele inclina sua cabeça para cima e vejo a lágrima descendo
em sua face.
- Meu pai se foi algumas horas depois de eu falar que era
gay.
Miguel me encara e eu vejo um sorriso sutil, não esperava
por essa notícia.
- Ele disse que me amava independente da minha
sexualidade, o jeito que me abraçou parecia que estava sentindo
que isso fosse acontecer. – Miguel engole o choro e prossegue. -
Jamais vou esquecer daquele último instante.
Fico um pouco perdido porque não era isso que esperava
ouvir, mas respondo:
- Sei que pode soar um pouco contraditório, mas fico feliz por
você de alguma forma. Ele partiu, mas você sabe o quanto seu pai
te amava.
- Eu sei... – Miguel responde e encara o horizonte. – Por mais
difícil que tenha sido a nossa relação eu entendi que sim ele me
amava, mesmo no seu jeito bruto de ser. O que eu não acho justo
porque agora poderíamos ser transparentes um com o outro. – Sinto
raiva no seu tom de voz. - Senti que finalmente nossos laços de
antigamente iriam retornar, mas... Droga tudo isso acabou!
- A morte não é justa. – Sussuro.
De repente Miguel me abraça, eu coloco uma mão nas suas
costas e outra na sua cabeça enquanto sinto o seu peito soluçar e
ele começa a chorar, mesmo tendo o mesmo sentimento eu controlo
para que Moraes possa sentir-se seguro. Eu sei que ele precisava
disso, no passado também precisei, mas a única pessoa que
contava fielmente também estava sofrendo pelo mesmo motivo.
Depois de algum tempo ele se afasta e segura minhas mãos.
- Creio que preciso ir para casa. – Ele diz. – Minha cabeça
está doendo, só preciso tentar descansar mesmo que isso pareça
impossível agora.
- Sim, é melhor tentar descansar. – Digo. – E, sua mãe, ela
foi para casa?
- Minha mãe foi para à casa da irmã do meu pai. – Ele
responde. – Disse que vai esperar alguns dias para retornar porque
as memórias são recentes.
- Você também vai para lá? – Pergunto.
- Não. – Ele observa o horizonte e depois me encara. –
Desejo ir para minha casa, meu pai iria querer isso, é uma coisa da
qual não posso fugir.
- Tudo bem... – Digo. – Vai ficar sozinho?
- Eu... – Miguel pausa e me encara. – Você poderia ir
comigo? É bom estar na sua companhia, tenho meus outros amigos,
mas ninguém é como você. Como sei que já passou por essa
situação eu gostaria de tê-lo ao meu lado.
Por dentro me sinto muito feliz por ouvir isso vindo dele.
- Com certeza. – Respondo. – Só vou avisar minha mãe
sobre isso.
Quando eu envio mensagem para minha mãe ela
compreende a gravidade do assunto e me deixa ir até a casa de
Miguel.
“Olá Lucas, sei que nos falamos apenas uma vez, mas eu
quero agradecer o que fez por Miguel. Em um momento tão difícil
como esse você o ajudou a sentir-se melhor, fico muito feliz que o
meu filho tenha escolhido ficar ao lado de pessoas que ele goste e
que se importam. Quem sabe um dia possamos tomar um café
juntos, é claro eu faço o café e você traz um pedaço das
maravilhosas tortas que prepara.”
- Beijos, Senhora Moraes.
L er a mensagem
da mãe de
Miguel me tira
um dos melhores sorrisos que posso expressar, me pergunto se ele
chegou a mencionar sobre nós, mas mesmo que não tenha
mencionado eu fico contente de ler esse tipo de mensagem. Passar
aquela noite na casa deles logo após a morte do seu pai foi um
momento bem complicado, porém, pelo visto agi certo ao conversar
com ele. O que não esqueço é aquela letra da música que Miguel
escreveu, obviamente ela se referia a nós, por incrível que pareça o
garoto sabe que eu adoro planetas e fazer uma comparação entre
Netuno até Vênus me conquistou ainda mais, nesse momento eu
não temo o quanto posso me apaixonar pelo famoso Moraes.
Apenas tenho que deixar as coisas fluírem, sem pressa, Miguel já
disse que deseja fazer isso dar certo então eu vou esperar.
Está sendo difícil nesses dias não ter ele ao meu lado,
principalmente quando chego na escola. Os professores
compreenderam que Miguel precisa de alguns dias para assimilar
tudo e também ajudar a sua mãe, acredito que vão conseguir
superar isso juntos. Mas, por enquanto preciso dar o meu melhor
por aqui. Chegamos na semifinal do torneio e sei o que ele
desejaria.
- Pessoal! – Chamo eles que se reúnem em um círculo em
volta de mim. – Estamos sem Miguel, mas precisamos vencer por
ele. Se ganharmos essa partida chegaremos na final, essa vitória eu
quero dedicar a ele. É um momento complicado e como um time
temos que nos apoiar.
- Vamos dedicar essa vitória para Miguel. – Geovane fala. –
Ele sempre esteve conosco, mesmo longe ainda está torcendo por
nós.
- Por Miguel. – A técnica completa.
- Alcateia. – Todos gritam em coro.
Eles colocam suas mãos uma em cima da outra e eu vejo no
olhar de cada um o quanto desejam essa vitória, isso faz o meu
sangue ferver, não sinto dores, apenas sinto vontade de uma coisa:
vencer esse jogo. Nós temos diferenças dentro do time como
qualquer grupo social tem, mas nos apoiamos em momentos ruins e
agora é o momento que precisamos colocar essa troca em prática.
- Vamos pessoal! – Chika grita. – Quero ver o seu sangue em
quadra, não literalmente. – Ela pisca para nós. – Ou talvez...
Entramos na quadra, o time do outro lado veste o uniforme
amarelo. Eu me lembro do capitão deles, os cabelos cacheados, o
nome dele é Luca. No primeiro instante que temos contato visual ele
sorri para mim, apenas balanço a cabeça e o garoto entende isso
como uma cantada, mas o que eu estou querendo dizer é: vou
acabar com vocês.
O apito soa e o jogo começa, Geovane se joga no fundo da
quadra para salvar a bola que após é levantada por outro, eu salto e
bato nela. A bola cruza para o outro lado e cai no solo antes que
eles possam recuperar.
- Isso! – Eu vibro e trago eles comigo.
- Boa recuperação pessoal. – Chika grita do outro lado.
Cada ponto é decidido como uma batalha Viking, meu suor
escorre por todos os lugares do meu corpo, eu sinto o meu rosto
quente, mesmo tendo vontade de tomar água eu ignoro. Apenas
olho o placar, falta um ponto para ganharmos o quinto set. Do outro
lado Luca saca e a bola vem potente, Geovane consegue defender
de manchete, mas ela vai em direção ao solo. Em um impulso eu
deslizo na quadra e salvo ela com a ponta do pé, a bola cruza e
Gustavo pula, ele ataca e a bola atinge o bloqueio. Olho para ela
caindo em nossa quadra, meu coração para, mas enfim a bola cai
fora da linha.
- Para você. – Eu sussurro.
Bato com minha mão na quadra e me levanto, abraço todos
os garotos enquanto comemoramos pela vitória e a final. O último
placar 15 x 10. A técnica Chika vem e me dá um abraço forte, ela dá
um tapa em cada um de nós como um gesto carinhoso.
- Sempre acreditei em vocês. – Ela suspira e controla a sua
emoção, se não fosse tão dura poderia acreditar que fosse chorar. –
Bora, bora Alcateia.
- Qual é. – Geovane diz. – Nem nós acreditávamos na vitória,
mas felizmente derrubamos aqueles Golias.
Todos riem.
Chega o momento de cumprimentarmos o time adversário,
quando me aproximo de Luca ele aperta a minha mão fortemente e
me encara.
- Jogaram muito bem. – Luca diz. – Mereceram a vitória
embora eu preferia que o meu time ganhasse. Você é um verdadeiro
regata 10, Lucas, e não digo 10 apenas como um jogador.
Ele me dá uma cantada descarada.
- Vocês também foram muito bem. – Eu respondo.
- Agora como não somos adversários podemos sair, quem
sabe beber algo juntos e conversarmos melhor. – Luca é direto, se
fosse em outro momento eu adoraria ouvir isso, mas agora não sinto
nada porque estou bem definido com o que eu quero.
- Acredito que podemos ser amigos. – Eu respondo, ele ri e
balança a cabeça. – Mas, acredito que um amigo meu poderia
gostar desse seu convite.
- Qual amigo? – Luca questiona.
Olho em direção a Geovane que está um pouco mais
distante.
- Tudo bem. – Luca pisca para mim. – Tenha um ótimo
retorno!
Me aproximo dos outros garotos enquanto vejo Geovane e
Luca conversarem, Bernardo para de braços cruzados ao meu lado
e repara na cena.
- Por qual motivo você desperdiçaria uma oportunidade
daquelas, digo, é bem óbvio que aquele garoto é um homem muito
bonito. – Bernardo me olha. – Será que está apaixonado e ninguém
sabe?
Me seco com a toalha, tomo uma água e respondo:
- Talvez sim, Bernardo. Algum problema?
- Não. – Ele me responde. – Eu conheço?
- Vamos ser sinceros. – Aproveito que estamos só nós. –
Você queria ficar comigo, mas isso não vai acontecer. Somos
apenas amigos, por isso eu não desejei ficar com Geovane.
Podemos manter apenas no círculo da amizade nós dois?
De braços cruzados ele me encara com expressões
contraídas.
- Eu não sou gay, Lucas. – Bernardo fala e eu seguro um riso.
– Mas, com você acredito que poderia dar uma chance.
- Uau! Fico lisonjeado. – Sou sarcástico.
- Como não deseja o mesmo está tudo bem. – Bernardo sorri
para mim. - Podemos ser amigos.
Apenas balanço a cabeça e rio, também já passei por essas
situações e por incrível que pareça entendo o lado de Bernardo,
talvez quando ele chegue na faculdade possa finalmente se libertar
dessas amarras.
Me junto com os demais enquanto partimos para o ônibus. A
melhor coisa é poder deitar no banco, retirar os tênis, sinto os meus
dedos em carne viva, mas a vitória exige sacrifícios. Porém, antes
que eu possa relaxar Geovane pula no banco ao meu lado enquanto
sorri.
- Já até imagino. – Comento.
- Luca me deu o seu telefone. – Ele vibra como se já
tivéssemos com a vitória de campeões, e talvez Geovane tenha
vencido uma boa partida. – Combinamos de um dia ele vir até Vila
Vinheira para nos conhecermos melhor.
- Vocês formam um par bonito. – Eu comento.
- Sei que me ajudou nisso. – Geovane me dá um beijo na
bochecha. – Serei muito grato se eu conseguir beijar aquela boca
carnuda, meu deus eu sinto vontade de desmaiar só de lembrar. –
Eu e ele rimos. – Mas, por que dispensou aquele deus grego?
Sinto o meu telefone vibrar e vejo a imagem de Miguel na
chamada, ainda temos sinal porque não saímos completamente da
cidade vizinha. Os olhos de Geovane seguem para a imagem, ele
sorri para mim.
- Vocês também formam um par bonito. – Ele fala e sussurra.
– Parece que não foi a primeira vez que tivemos um capitão
LGBTQIA+.
Eu apenas rio, Geovane sai e me deixa sozinho no banco,
nem foi preciso dizer nada para ele. Apenas coloco os meus fones e
atendo a chamada. Vejo que Miguel está em sua sala, a taça de
vinho ao fundo e a lareira acessa.
- Venceram? – É a primeira pergunta dele.
- Sim. – Eu respondo. – Foi muito difícil, mas conseguimos. A
gente espera que você possa jogar a final porque essa vitória foi em
sua homenagem.
Um silêncio ecoa do outro lado.
- Em minha homenagem. - Miguel diz. – Me sinto importante.
– Ele ri. – Mas, creio que irei jogar a última partida do campeonato.
- Ele vai. – Ouço a voz da senhora ao fundo.
Miguel arqueia as sobrancelhas e vira um pouco a câmera
mostrando a senhora Moraes vestida em um casaco de pelos.
- Pode deixar que ele vai jogar sim Lucas. – Ela fala com
uma convicção certeira. - Fico feliz que tenham ganhado.
- Se a sua mãe diz é melhor não contestar. – Digo para ele. –
E, se formos campeões eu levo uma torta inteira para sua mãe
como ela pediu.
- Como assim? – Miguel contrai as expressões não sabendo
da mensagem, ele encara sua mãe sem dizer nada e depois olha
para mim. – Bom saber que vocês conversam sem eu saber.
- Ele é ciumento. – A Senhor Moraes diz ao fundo.
- O que você fez durante o dia? – Pergunto. – Já sabe que
nós viemos jogar sem você o que foi algo bem chato, mas
vencemos.
- Cuidamos do jardim. – Miguel responde. – Foi uma boa
distração para mim e minha mãe, acredito que nesses últimos dias
estamos melhores. Semana que vem pretendo voltar para à cidade
e para à escola.
- Uma ótima notícia. – Exclamo. – O pessoal quer muito te
ver novamente.
- O pessoal. – Ele balança a cabeça e sorri. – Parabéns pela
vitória capitão, agora acredito que devo deixar você descansar um
pouco. Tenha um ótimo retorno.
- Obrigado! – Aceno para ele.
A imagem da câmera de Miguel é abaixada, mas ele esquece
de desligar.
- Ele é muito bonito. – Ouço sua mãe dizer.
No mesmo instante Miguel percebe e desliga a câmera.
Escoro minha cabeça, olho para o teto, mesmo nos
momentos mais difíceis eu consigo enxergar um ponto bonito para
se observar. É como olhar para o céu, ele é mais que apenas
escuridão, há as estrelas, os planetas, há muito mais para se
observar.
Dou play no meu Spotify enquanto toca “Idiota” do Jão.
- Me perdi no centro dessa cara bonita, é tão difícil de sair,
mas tudo certo. – Canto enquanto vou adormecendo.
CAPÍTULO XIV
“Doses de café e uma roda de fofocas.”
P aro no meio da
rua e me olho
no espelho de
uma loja, ajeito o meu cabelo alinhando os fios e verifico se estou
bem, creio que sim. Passo minhas mãos pela jaqueta e prossigo,
essa é a primeira vez que irei ver Miguel depois de alguns dias que
ficou afastado. Então confesso que estou um pouco nervoso pelo
que pode acontecer e se saberei o que dizer para ele, são tantas
coisas em minha mente que me sinto perdido.
Chego em frente a cafeteria e chocolataria, quando olho lá
dentro eu o vejo sentado olhando o cardápio. Aquele cabelo
reluzente, os olhos sempre antenados. Passo pela porta e sinto meu
coração acelerar, é como se caminhasse uma maratona para chegar
em frente a sua mesa.
- Oi. – É a primeira coisa que penso em dizer.
Seus olhos me encaram e quando ele sorri já não me sinto
mais tão nervoso.
- Eaí, capitão! – Miguel já é sarcástico comigo, o que eu
admito que sentia saudades. – Parece que finalmente nos
reencontramos.
- Sim... – Sorrio de volta. – Não que eu tenha sentido alguma
falta, mas o pessoal esperava que você voltasse o quanto antes.
Vim só dar uma verificada.
- Sei. – Ele pisca para mim. – É melhor sentar-se, eu estou
morrendo de frio e já quero pedir uma xícara de chocolate quente.
Sabia que eles servem em xícaras segundo a sua casa de
Hogwarts?
Me sento ao seu lado, seu perfume entra em minhas narinas,
quase me perco ao sentir o calor do seu corpo novamente, Miguel é
como uma tentação e depois de ter provado uma vez é quase
impossível não querer um pouco mais.
- Então eu quero a minha na xícara da Corvinal. – Eu digo e
suas expressões se contraem, apenas o encaro enquanto rio. –
Algum problema?
- Como não notei. – Miguel ri. – Essa valorização exacerbada
do academicismo, só poderia ser alguém da Corvinal.
- Parece que alguém prestava mais atenção em mim nas
aulas do que gostaria de admitir. – Rebato sua afirmação. - Me
deixe adivinhar a sua, ambição e busca pela grandeza, certamente
um Sonserino.
- Com certeza. – Miguel sorri e se aproxima. – A cobra é o
nosso símbolo, dizem que elas gostam de comer alguns corvos.
- Seu idiota. – Bato em seu ombro e rio.
Não demora muito para que os nossos pedidos cheguem,
cada chocolate quente dentro da xícara que escolhemos. Provo um
pouco e me sinto muito feliz com o sabor doce entrando em meu
corpo e me aquecendo do frio. Lá fora as árvores balançam um
pouco e todas as pessoas que ali passam cruzam correndo fugindo
da temperatura.
- Você está melhor agora? – Creio que devo questionar e
assim faço.
- Sim, estou. – Miguel deixa suas mãos envolta na xícara. –
Foi bem complicado nos primeiros dias, não vou mentir dizendo que
ainda não é, mas agora ficou suportável. Já entendi que nunca mais
verei meu pai, o que me restaram foram suas lembranças. O que
está sendo mais difícil é com a minha mãe, tem momentos que ela
entra em uma crise profunda e depois passa. É como uma
montanha-russa de sentimentos!
- Compreendo. – Exclamo. – Já me vi nessa mesma situação
antes, por mais que eu possa dizer mil palavras mesmo assim elas
não vão solucionar algo. Cada um tem um jeito de vivenciar esse
luto, só posso dizer que estou aqui para o que precisar.
Ele toca com sua mão em cima da minha e sorri.
- Obrigado por tudo. – Miguel diz. – Todas as mensagens de
conforto, a forma como me ajudou a me sentir melhor. Parece que
eu escolhi o garoto certo para beijar.
- Você me escolheu? – Eu pergunto.
- Qual é, Lucas. – Ele ri. – Você acha que não era intencional
todas às vezes que eu te via estava sem camisa? Sempre acabava
sem a minha roupa por qualquer motivo.
Paro para analisar tudo o que aconteceu.
- Meu deus... – Agora sou eu quem rio. – Você fazia isso para
me impressionar? Não acredito que usou essa tática comigo como
se eu fosse ficar observado o seu peitoral ou o que quer que seja.
- Eu sei que deu certo. – Ele é confiante.
Bebo mais um pouco do meu chocolate quente, antes de vir
para cá disse para mim mesmo que não iria tocar nesse assunto se
ele não quisesse, mas Miguel está sendo tão aberto em relação a
tudo isso.
- Sua mãe já sabe sobre o que aconteceu? – Pergunto. – Não
quero te pressionar e nem nada, porém, preciso compreender. Uma
hora eu penso que é hétero, outra me beija, fiquei um tanto confuso,
mas juro que não estou reclamando do beijo.
- Sou gay, Lucas. – Miguel responde e depois esboça um
sorriso. – É tão bom dizer essa palavra agora, antes eu tinha medo
de tudo o que as pessoas poderiam me dizer, principalmente o meu
pai, então quando ele falou aquilo para mim que me amava
independente da minha orientação sexual, eu entendi que não
precisava da aprovação de ninguém, apenas deveria ser o que sou.
Esse Miguel é gay e gosta de um garoto bem problemático, mas ele
é bonitinho.
- Bonitinho. – Repito à palavra.
- De tudo o que eu disse você focou nisso. – Miguel ri e eu
também. – Mas, respondendo ao seu outro questionamento a minha
já sabe, ela disse que sempre soube de alguma forma. Inclusive era
nítido a nossa conexão pelas conversas, ela disse que adoraria
tomar um café com você qualquer dia desses.
Quando me olho no reflexo do espelho vejo que estou
sorrindo demais.
- Eu sou o genro que qualquer mãe desejaria. – Digo. – Fico
feliz que a sua mãe tenha entendido isso, e aliás eu gostei muito
dela também.
- Então estamos namorando? – Miguel questiona. – Ouvi um
“genro” no meio dessa frase, estou ficando louco?
- Não. – Eu respondo com um riso que chama atenção nas
outras mesas, depois me encolho e apenas encaro Miguel. – Não
me faça ficar nervoso.
Sua mão toca em meu rosto e sou surpreendido quando ele
se aproxima de mim, seus lábios tocam os meus com sutileza,
quando sinto o sabor dos seus lábios me perco novamente, é como
se todo o frio fosse embora, no fim ele me dá um selinho e se
afasta. Não preciso dizer nada porque ele me beijou.
- Foi muito bom jogar com você com todas aquelas paqueras,
mas agora acredito que esse jogo precisa avançar. – Miguel fala. –
O que me diz?
- Definitivamente sim. – Respondo.
- Meu casal.
Olhamos para frente e as garotas surgem, Caroline e
Jordana. As duas uma enganchada na outra, havia me esquecido
que tínhamos combinado esse encontro duplo. Confesso que
poderia ficar sozinho com Miguel por mais tempo, mas algo me diz
que nós teremos tempo suficiente para isso.
- Desculpe dizer isso em voz alta. – Jordana olha para os
lados. – Mas, vocês estão tão lindos juntos. Finalmente Miguel
explodiu a porta desse armário, eu não aguentava mais ele falar
sobre como Lucas era lindo, cheiroso, atencioso.
- Fique quieta! – Miguel repreende.
- Muito bom saber disso. – Aceno com a minha xícara. –
Podemos conversar um dia sobre tudo isso, ficarei muito contente
de ouvir.
Olho para Miguel e sorrio.
- Eu disse para Lucas. – Caroline fala. – Tudo isso estava tão
explícito que não conseguimos enxergar muito bem, toda essa onda
romântica no ar como uma boa história clichê. Os dois gostosos do
ensino médio apaixonados. – Ela ri.
- Isso daria uma boa manchete. – Miguel pisca para ela.
- Pode ser que sim. – Caroline responde. – Estou querendo
abandonar tudo aquilo no Jornal, eles são tão retrógrados e querem
sempre as mesmas coisas. Irei me organizar e finalmente terei o
meu espaço para escrever sobre o que desejar. Não apenas moda,
quem sabe algum romance... Ainda estou em processo de
construção pessoal.
- Ela escreve muito bem. – Jordana afirma. – Me mostrou
alguns dos seus esboços e posso dizer que pode ser a nossa Jane
Austen.
Caroline toca em seu ombro e as duas sorriem na mesma
sintonia.
- O que aconteceu? – Eu questiono e eles me encaram, como
um bom detetive analiso as expressões corporais das duas, suas
expressões. – Não... Vocês duas ficaram, quando isso aconteceu?
- Uns dois dias atrás. – Caroline fala olhando para Jordana
que confirma. – Trocamos algumas mensagens depois daquele dia
na casa de Miguel, achei ela bem interessante e simplesmente
aconteceu.
- No primeiro momento que vi essa menina. – Jordana
suspira. – Eu pensei: como eu preciso beijar essa garota. – Ela ri. –
Uma história de romance bem mais breve do que aconteceu com
vocês que durou uma eternidade. Vocês já transaram?
Quase cuspo todo o chocolate quente que acabei de engolir,
apenas coloco minha mão no peito enquanto seguro minha risada e
sinto o meu rosto envermelhecer.
- Fui muito direta? – Jordana força um sorriso. – Pela forma
como quase morreu agora eu diria que sim, me desculpe!
- Já estou acostumado com esse jeito. – Miguel responde e
semicerra o olhar em sua direção. – Mas, não, ainda não você sabe.
– Ele encara a mesa. – Meu deus eu nunca me senti tão paralisado
para falar sobre sexo, obrigado Jordana.
- Sempre apoiando os amigos. – Jordana pisca para ele. – De
nada.
Todos rimos e o clima quase tenso é quebrado.
Não posso dizer que não pensei sobre isso, toda vez que eu
olho e encontro ele meus sentimentos são despertados, mas quem
já teve essa experiência fui eu, acredito que Miguel nunca tenha
transado com outro garoto. Apenas quero deixar isso acontecer
naturalmente, principalmente porque agora é apenas o recomeço de
um momento turbulento.
- Todos na escola estão comentando sobre o jogo final. –
Caroline diz. – Você pretende jogar a última partida Miguel?
- Seria incrível. – Respondo antes dele. – É o nosso último
jogo pela escola, gostaria muito de ter você lá, não só por mim, mas
pelo time todo. Por tudo o que fez pelo time sei que deveria estar lá.
Miguel passa a mão pela sua xícara e sorri.
- Sim, eu irei jogar. – Miguel me deixa a pessoa mais feliz do
mundo. – Meu pai gostaria que eu fosse e terminasse aquilo que
comecei, quero dedicar a ele.
- Com certeza ele gostaria disso. – Respondo e seguro sua
mão. – Vamos vencer aquele jogo e também iremos nos formar
juntos.
- A formatura. – Caroline quase grita no meio da cafeteria. –
Eu já escolhi o meu vestido há meses, estou só por chegar o
momento de segurar aquele canudo e dizer: adeus Alcateia do Sul,
e vá se foder química e física, até nunca mais.
Rio junto com ela, com certeza compartilhamos desse
sentimento.
- Devem aproveitar. – Jordana diz. – É um momento que não
nos esquecemos jamais, e também é o primeiro passo para à
faculdade. Isso se desejarem fazer uma porque vamos ser sinceros,
faculdade não é garantia de nada.
- Correção. – Miguel rebate. – É garantia de uma cela
especial.
- Está querendo uma? – Questiono.
- Se algum namorado meu incomodar posso precisar.
Miguel ri, mas eu quase desmaio porque ele utiliza a palavra
“namorado”, será que finalmente vou conseguir namorar uma
pessoa descente? Será que finalmente o meu cúpido acertou a
flecha certa porque com certeza nas últimas vezes ele tomou
algumas doses de cachaça.
Pedimos algum acompanhamento, as meninas pedem
algumas fatias de torta de chocolate enquanto eu e Miguel
preferimos ficar com os pães de queijo.
- O que aconteceu que está só nesse celular? – Encaro
Caroline. – A blogueira pode comer depois de fazer a mídia. –
Brinco com ela.
Caroline abaixa o celular e olha para nós com expressões
sérias.
- O que houve? – Jordana pergunta primeiro. – Beyoncé
morreu?
- Garotos... – Caroline nos encara. – Deveriam olhar aquele
perfil da escola no twitter, aquele que posta as novidades do
momento.
Pego o meu celular assim como os outros e entro no perfil do
twitter, acesso a página @alcateiacomenta, quando vejo a primeira
imagem no topo o meu coração para por um momento. É uma foto
minha e de Miguel nos beijando na cafeteria, olho para a janela da
frente e não vejo ninguém.
- Quem foi o idiota? – Jordana revira os olhos. – Odeio o
twitter.
Olho para Miguel que fica encarando a imagem, alguns dos
comentários são um tanto maldosos enquanto outros dizem que
ficamos bonitos juntos.
- Você está bem? – Questiono. – Posso pedir para apagar
essa foto.
- Estou bem. – Miguel segura a minha mão. – Isso não é mais
um segredo, as pessoas podem saber que estamos juntos. Não me
importo com o que estão dizendo na internet, os mesmos que tem
coragem de falar tudo por ali não conseguem pronunciar uma
palavra pessoalmente.
Miguel consegue me deixar cada vez mais à vontade com
isso, ele está determinado em dizer para todos que está comigo e
isso me deixa ainda mais apaixonado.
- Mesmo assim quero saber quem foi o idiota. – Caroline
comenta. – Eu sei quem está por trás desse perfil, com algumas
mensagens. – Ela clica enlouquecidamente. – Irei descobrir, eles
mexeram com os amigos da pessoa errada. Mas, enquanto isso
podemos fofocar um pouco mais.
Nós rimos em coro, olho para o lado quando Miguel pega seu
telefone. Ele posiciona o celular na nossa frente e abre a câmera,
encaro ele com um riso.
- O que foi? – Digo.
Miguel mostra a língua e tira uma foto enquanto eu rio ao seu
lado. Em instantes eu recebo uma mensagem no meu Instagram.
Olho a nossa foto tirada com a legenda “Eu e meu garoto na
cafeteria, chamem os paparazzis.” E abaixo marcando Lady Gaga.
- Você é o melhor. – Eu digo.
- Nós deveríamos estar assim? – Jordana encara Caroline.
- Não. – Ela ri. – Isso é muito gay!
É
estranho quando chego no
vestiário porque todos os
olhares se voltam para mim,
eles só me observam e não falam nada. É óbvio que todos já sabem
sobre a foto e isso não me deixa tão confortável, mas também não
recuo diante disso. Os últimos dois dias ao lado de Miguel foram
incríveis, nós assistimos filmes, damos muitas risadas e
principalmente, não nos importamos com os comentários na
internet, no entanto, tínhamos consciência que teríamos que
enfrentá-los quando voltássemos e a volta foi bem no último jogo do
campeonato.
Apenas coloco minha mochila em cima do banco e observo
todos eles.
- Pelo jeito perderam a fala. – Exclamo. – Não estou vendo
olhares de quem desejam vencer a partida, mas sim de jogadores
mais interessados em uma fofoca na internet do que no próprio time.
- Não é bem assim, Lucas. – Gustavo fala. – É que...
- É que? – De repente Miguel surge no vestiário, ele já está
vestido com o uniforme do time, seus olhos azuis encaram Gustavo.
– Me fale, Gus, o que houve?
- A gente não sabia que você era... – A voz de Gustavo falha.
- Gay? – Miguel completa, o menino acena que sim, e
Moraes ri. – Eu tinha meus motivos para não falar, e não devo
explicações para nenhum de vocês referente a minha sexualidade,
mas mesmo assim quero deixar claro que sim, eu sou Gay.
- Eu sabia. – Geovane passa a mão no ombro dele e sorri. –
Miguel sempre foi bonito demais para ser hétero, bem-vindo ao
clube. E, Lucas, boa escolha.
Eu sabia que Geovane não iria se importar com isso, pelo
jeito ele desencanou bem fácil de mim, ainda mais depois de Luca e
fico feliz por isso.
- Mas, e as suas namoradas? – Bernardo questiona.
- Era uma boa imagem. – Miguel responde. – Apenas isso,
vivi meu tempo inteiro pensando no que os outros achavam, mas
agora quero viver a minha verdade. Não há nenhuma garota, porém,
sim alguém que vocês conhecem muito bem.
Os garotos em volta riem.
- Vocês formam um belíssimo casal. – Um deles diz. – Se eu
fosse gay comeria qualquer um dos dois, sério.
- Oh! – Eu controlo um riso pelo comentário absurdo. – Isso é
tão... Esquece, por que estamos falando sobre isso? Nós estamos
na final do campeonato. Querem deixar esse troféu na nossa escola
ou não?
- Exatamente. – Geovane concorda. – Precisamos focar
naquele troféu agora.
- Sim. – Todos concordam. – Alcateia para sempre!
Abro a minha mochila e retiro a regata número dez, caminho
e paro em frente à Miguel que fica apenas me observando, ele
balança a cabeça.
- Já havíamos conversado no grupo. – Exclamo. – Miguel,
você fica com a regata 10 nesse último jogo, sei que desejava fazer
uma homenagem para ele e creio que essa pode ser uma boa
opção, é claro se aceitar.
Miguel pega a regata, ele sorri e vejo seus olhos brilharem.
- Obrigado pessoal! – Miguel fala suave e depois grita. –
Vamos acabar com eles.
Eu me vejo no espelho com a regata número 13 e me sinto
bem com ela, sempre foi o meu número, não é o número do azar,
para mim significa sorte. Ficaria chateado se usasse o 17, 17 é o
número da besta.
- 13 como a Taylor. – Miguel sorri para mim. – Vamos lá?
Saio uniformizado pela quadra ao lado do meu time enquanto
o colégio inteiro está na arquibancada. Ao longe eu vejo Jordana ao
lado de Caroline acenando, aceno de volta e nos aproximamos do
nosso lado da quadra. No outro lado o time vestindo o uniforme
preto se posiciona, eles são bem fortes, mas não tenho medo.
- Escutem bem. – A técnica Chika se aproxima com a sua
planilha. – É hora de colocarem tudo aquilo que jogaram nos últimos
jogos em prática, muito bloqueio, saque certeiro, é o último jogo,
aquele troféu – Ela aponta para o troféu dourado mais ao longe – vai
ficar na nossa escola, escutaram?
- Sim. – Respondemos e colocamos nossas mãos juntas. –
Alcateia.
- Lucas. – Miguel me chama. – Olhe quem está lá.
Me viro de lado e vejo minha mãe na arquibancada e ao seu
lado está a Senhora Moraes, elas acenam e mandam beijos, eu olho
para Miguel e sorrimos na mesma intensidade. Me sinto realizado,
ao parar para analisar Moraes, vejo que era um sonho que eu não
tinha em mente, mas agora eu vejo o quanto precisava dele.
Eu me posiciono e os demais jogadores também, quando o
apito soa o meu coração dispara. A bola cruza em uma velocidade
muito alta, Geovane defende e Miguel ataca, no entanto ele é
bloqueado pelos gigantes gêmeos. Mesmo assim nos
cumprimentamos. O jogo segue um ponto atrás do outro, mas
perdemos o primeiro set e depois vencemos o segundo set.
Tomo um gole da garrafa de água e limpo o meu suor.
- Precisamos furar o bloqueio deles. – Miguel orienta. – Eles
são altos, mas há uma abertura onde é possível passar a bola entre
os dois.
- Também podemos explorar esse bloqueio. – Completo. –
São altos, miramos nos dedos e tentamos guiar a bola para fora, o
menino que está na defesa não é tão rápido para recuperar a bola.
- Boas táticas! – Chika concorda. – Mas, o nosso bloqueio
também precisa ser efetivo. No momento em que eles avançarem
bloqueiem mesmo que não seja efetivo, a bola deles é muito rápida
se cruzada sem impedimento. Ok?
- Vamos. – Nós gritamos.
O terceiro set começa com um time querendo o sangue um
do outro, nós deslizamos pela quadra e o suor escorre por todo o
corpo. Em um momento a bola demora para cair depois de cinco
minutos em jogo, mas finalmente conseguimos. Outro ponto passa
tão rápido porque a bola atinge a cabeça de Geovane com tanta
força que ele perde o equilíbrio e precisa ser retirado de quadra.
- Eu estou bem. – Ele sai com um pano na cabeça
acompanhado de uma enfermeira. – Continuem, continuem. –
Geovane acena para prosseguirmos.
Precisamos sair vivos disso aqui por isso a cada ponto
atacamos com todas as forças, eu e Miguel somos os que mais
fizeram pontos. Nós chegamos no último set, mesmo perdendo eles
não se entregam e lutam até o fim, mas no último ponto a bola
chega para Bernardo que recebe de mal jeito, no entanto, eu
consigo recuperar e levanto para Miguel que está no outro lado da
quadra. O garoto salta e bate na bola com uma força tremenda que
ecoa quando pega, a bola cruza pela quadra e cai no meio das
pernas do capitão sem que ele possa recuperar.
“Droga.” Decifro os lábios do adversário dizerem.
Um grito ecoa por todo o ginásio dizendo “Bicampeão”, a
última vitória foi no primeiro ano, eu não estava no time principal,
mas comemorei, no entanto, hoje essa sensação é completamente
diferente. Nos encontramos no meio da quadra e alguns caem, nos
abraçamos e olhamos uns para os outros enquanto comemoramos.
- A vitória é nossa. – Chika grita, sorri, e nos dá tapas tudo ao
mesmo tempo.
Eu encontro Miguel no meio do tumulto e ele para na minha
frente, esbanja o seu melhor sorriso, seu cabelo reluzente dessa vez
está bagunçado, porém, nada consegue apagar a sua beleza.
- Vencemos por ele. – Miguel diz. – Obrigado!
De repente ele me dá um beijo, coloca as mãos nas minhas
costas e eu não reluto. Os meninos em volta batem palmas e nos
empurram até nos separarmos, mas não com uma intenção ruim,
eles estão felizes por tudo. Principalmente quando somos
chamados:
- Colégio Alcateia do Sul. – A voz ecoa. – Campeã do
vigésimo quinto torneio interescolar do Sul. Parabéns a escola,
E.T.E 25 de Julho, de Ijuí, pela segunda colocação.
Nós subimos no pódio, uma mulher cruza colocando nossos
colares, olho para a medalha dourada com o número um e me sinto
muito grato. A taça fica no nosso meio, a técnica Chika se atira na
frente para o registro. Quando todas as filmagens acabam nós
seguramos o troféu e caminhamos pelo local.
- É bicampeão. – Eu grito.
- É bicampeão. – Miguel olha para mim e sorri.
Quando a comemoração acaba nos aproximamos da
arquibancada com nossas medalhas, nossas amigas se juntam as
nossas mães e se aproximam de nós. Dá para ver o brilho no olhar
de cada uma e me sinto abençoado por isso.
- Estou tão feliz. – Minha mãe me abraça e me beija no rosto.
– Meu filho, campeão no último ano, meu orgulho. Jogou muito bem,
na verdade, vocês dois foram brilhantes em quadra.
- Tenho que concordar. – Senhora Moraes diz e passa a mão
no ombro de Miguel, seu olhar fica distante por alguns segundos. –
Seu pai ficaria feliz.
- Eu sei. – Miguel olha para a medalha e depois para ela. –
Essa vitória foi para ele, com certeza está lá no céu com uma boa
garrafa de vinho e uma lareira. – Ele sorri.
- Com certeza fazendo companhia para o meu. – Exclamo. –
Meu pai também amava tomar umas taças de vinho, né mãe?
- Com toda certeza. – Isabel responde. – A vida é feita disso,
uma hora choramos, uma hora rimos, vocês venceram hoje, mas
isso não é o mais importante. Vi como são fortes juntos em quadra,
há algo além do coleguismo, o companheirismo de todos é genuíno
e nos dias de hoje isso está muito em falta.
- Sorte que eles têm boas amigas. – Caroline se aproxima de
mim e engancha seu braço no meu. – E, eu acho que a gente
precisa comemorar essa vitória com uma bela torta. O que vocês
acham?
Caroline me encara no aguardo de uma resposta.
- Sim, eu preparei uma torta. – Respondo e ela sorri. –
Imaginei que iriamos vencer então ontem de noite me dediquei a
uma especial.
- Torta do Lucas. – A Senhora Moraes comemora. – Depois
que eu provei aquela fatia no restaurante nunca mais degustei de
outra tão saborosa, inclusive nunca mais voltei para aquele lugar
depois que Miguel me contou o que aconteceu.
- Felizmente agora Lucas tem seu próprio negócio. – Caroline
diz.
- Ainda pequeno. – Respondo. – Mas, quem sabe um dia a
minha própria confeitaria. Por enquanto vou utilizando a cozinha da
minha mãe.
- Eu não reclamo por isso. – Minha mãe ri. – Sempre acabo
provando aqueles doces maravilhosos.
- Droga! – Jordana diz. – Vocês falando sobre torta tá me
deixando angustiada por um pedaço, podemos logo ir para à casa
de Lucas comer um pedaço?
- Claro. – Isabel acena. – Vamos, precisamos de um local
mais quente.
Vamos deixando a quadra para trás, Caroline caminha ao
meu lado.
- Ainda não descobri quem enviou aquela foto. – Ela diz e
seus olhos analisam todos os estudantes presentes. – Mas, estou
determinada a encontrar o culpado.
- Não precisa, Carol. – Respondo. – Já...
- Miguel e Lucas.
Ouço o chamado e quando me viro para trás Bernardo se
aproxima, aceno para Miguel e juntos nos afastamos enquanto os
outros prosseguem.
- O que foi? – Miguel questiona. – Não me diz que já está
com saudades.
- Só precisava falar com vocês. – Ele olha para a medalha e
depois para nós. – Depois de tudo o que disseram e fizeram eu não
poderia fazer outra coisa a não ser admitir.
- Admitir o que? – Eu questiono. – Fale logo.
- Fui eu quem mandou aquela foto no twitter da escola. –
Bernardo responde e eu tenho a mesma reação de Miguel que é
ficar sem reação. – Estava passando por lá e vi vocês dois, senti
uma certa raiva, tirei a foto e mandei. Só agora percebo o quão
idiota isso foi e peço desculpas por isso.
Eu olho para Miguel e espero que ele não o soqueie nesse
momento.
- Por que fez isso? – Pergunto.
- Senti raiva por não ter visto o óbvio. – Bernardo responde. –
A forma como olhavam um para o outro, no fundo era algo que eu....
que eu....
- Que eu o que Bernardo? – Miguel diz.
- Que eu queria ter tido. – Ele responde. – Ver aquela cena
de Miguel beijando você Lucas me desestabilizou, eu queria ter a
coragem que ele teve para simplesmente beijá-lo em um local
público. Neguei por tanto tempo esse meu sentimento que senti que
com você Lucas isso pudesse dar certo...
Apenas ficamos em silêncio.
- Sei que não vão querer falar mais comigo, mas... – Ele diz.
- Bernardo. – Miguel fala antes que ele continue. – Fico feliz
que tenha entendido isso, eu mais do que ninguém sei como essas
coisas funcionam. Não foi simplesmente de repente o que
aconteceu entre mim e Lucas, nós acabamos gostando um do outro.
Foi o instante que percebi que era isso o que eu queria, ser
realmente o Miguel. Aquele beijo na cafeteria só me deu mais
coragem de me posicionar sobre quem sou.
- Você também vai ter esse tempo. – Eu digo. – Só não use
isso para tentar machucar as outras pessoas, ninguém é
responsável por isso. Se precisar conversar mais sobre isso creio
que qualquer um de nós está disposto a isso, foi um erro o que você
fez, mas desejo que aprenda com ele e principalmente se encontre.
Vejo uma lágrima no rosto de Bernardo, e por algum motivo
isso me deixa abalado. Apenas nos aproximamos dele e damos um
abraço.
- Somos um time. – Miguel fala. – Certo?
- Certo. – Ele responde e limpa o seu rosto. – Obrigado por
não me matarem. – O garoto ri. – Com certeza aprenderei com esse
meu erro, e ver os dois agora só me dá mais coragem de finalmente
aceitar esse meu outro lado. Fiquem bem!
- Aproveite a conquista. – Miguel pisca para ele.
Vemos Bernardo se distanciar enquanto eu pego na mão de
Miguel e prosseguimos, se fosse em outro momento estaríamos
com raiva um dos outros, mas não temos motivos para isso, o
tempo é curto.
- Entendeu que ele gostava de você? – Miguel me encara
com um sorriso.
- Sim. – Respondo e não controlo um riso.
- Não posso negar que entendo por quais motivos eles se
apaixonam por você, acredito que veem os mesmos pontos que vi. –
Miguel é gentil. – Felizmente nesse campeonato também venci.
- Será? – Questiono.
- Pare de ser idiota! – Ele me abraça. – Você me ama, só não
disse isso ainda, mas não vou te pressionar quanto a isso, mesmo
que possamos sair do ginásio agora, meu pé deslizar em uma
banana, eu cair e bater a cabeça na quina da calçada.
- Você é louco. – Digo. – Eu gosto disso!
CAPÍTULO XVIII
“O dia da formatura.”
O ensino médio é
uma experiência
social
complicada, pode ser o paraíso, mas também o inferno, no meu
caso acredito que tenha sido um pouco dos dois. Mesmo tento
momentos ruins prefiro pensar nos pontos positivos, me aproximei
de pessoas que hoje penso em nunca mais abandonar, porém, sei
que daqui para frente nossos caminhos podem se desencontrar e
está tudo bem, nossa vida é feita de mudanças. De alguma forma
confio que mesmo longe ainda estaremos torcendo um pelo outro,
amizade é isso, não precisamos conversar todos os dias, o que
importa é ainda nos amarmos independente da distância. Acho que
tenho que parar de pensar sobre isso antes que eu tenha uma crise
da ansiedade por algo que ainda não aconteceu.
- Lucas Silveira.
Meu nome é chamado e a música “Vermelho” da Gloria
Groove toca. Me levanto da cadeira e caminho pela passarela
iluminada, do outro lado Miguel levanta e começa a gritar para mim
como muitos outros fazem. Apenas prossigo e vejo todos os meus
professores ali na frente, imediatamente sou atingido por todas as
memórias, as aulas divertidas de português com a professora Laura,
a Senhora Galdis que depois que o sinal tocava nos mandava para
dentro da sala, são momentos que eu nunca vou esquecer. Isso é
uma parte da minha vida que não volta mais.
- Parabéns! – A diretora me entrega o canudo com um
sorriso.
Eu aceno para ela, pego o diploma, e aceno para os outros
estudantes, o time de voleibol é o que mais grita. Ao mesmo tempo
que estou muito feliz, também tenho vontade de chorar porque
mesmo que me incomodassem eu vou sentir falta de tudo isso.
- Te amo. – Decifro os lábios da minha mãe no banco dos
convidados, por um momento penso em meu pai, ele estaria feliz
por isso, onde quer que esteja essa vitória também é para ele.
Chegou o momento, beijo o meu canudo e desço pelas
escadas até voltar para o meu lugar. Consegui, venci mais uma
etapa.
Eu vibro quando eles sobem no palco, Caroline balança o seu
canudo de um lado para o outro enquanto ao fundo toca “Only
Angel” de Harry Styles. O longo cabelo preto solto enquanto seu
vestido roxo balança, eu tenho orgulho dela. Mas, meu coração fica
ainda mais feliz quando ele sobe ao palco, Miguel Moraes, vestido
em um terno preto que realça sua pele, ele está perfeito, como o
esperado ouvimos Taylor Swift “Delicate”. Quando se vira em nossa
direção com aquele maldito sorriso eu me levanto e grito para ele.
- Te amo. – Falo.
- Droga! – Geovane diz. – Vocês são muito lindos, com
certeza vai ser difícil algum casal na escola deixar um legado como
esse.
Apenas rio da sua fala, mas ao parar para pensar eu nunca
tinha visto um casal gay na escola terminar o ano juntos, talvez
sejamos uma exceção. Na verdade, quase nada em nosso
relacionamento foi normal até ficarmos, quem diria que o menino
que eu odiava era o menino que secretamente sempre tive uma
pequena queda, uma queda como pular do Empire State Building.
D eixamos
festa
algumas
após
a