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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

CULTURA CHINESA II – MATUTINO, SEGUNDO HORÁRIO

ALISSA PASCHEN DE SOUZA

MO DAO ZU SHI E A HOMOSEXUALIDADE NA CHINA

SÃO PAULO

07/12/2018

Mo Dao Zu Shi e a Homosexualidade na China


Introdução

Mo Dao Zu Shi (魔道祖师) traduzido para o inglês como ‘Grand Master of Demonic

Cultivation’ ou ‘Founder of diabolism’ é uma danmei xianxia web novel escrita por Mo Xiang

Tong Xiu e publicada no site JJWXC1, especializada em distribuição de novels BL2 na China.

A história foi adaptada para um manhua (quadrinhos), áudio drama, donghua (anime), uma série

live-action prevista para 2020 e começou a ser vendida em formato de livro. Isso sem contar as

traduções não licenciadas para diversas línguas e outras criações feitas pelos fãs com base na

obra original que circulam pelo Twitter e Tumblr.

É um feito considerável até mesmo se comparado às obras do mercado editorial japonês,

mas o que é realmente digno de nota é que tudo isso foi feito sob a censura do governo Chinês

que ao mesmo tempo em que exporta obras como MDZS prende autores independentes

tentando vender suas obras sob a acusação de serem subversivos. A primeira prisão relacionada

a distribuição de conteúdo BL no país foi em 2011, quando um site comercial de BL foi fechado

e vários autores presos sob a acusação de espalharem artigos obscenos (XU e LANG, 2013,

p.32). A segunda prisão da qual se tem ciência foi este ano quando a autora Tian Yi foi

sentenciada a dez anos de prisão por autopublicar BLs sob a acusação de distribuir conteúdo

pornográfico antiético e imoral (PACHI, 2018).

Qual seria então a diferença entre MDZS e essas outras series censuradas pelo governo

chinês? Primeiramente o posicionamento da autora. Assim como as mangakás japonesas que

deram origem ao gênero BL a escritora da novel também é uma mulher que produz conteúdos

1
http://www.jjwxc.net/
2
BL é a abreviação de Boy’s Love, um gênero de mangá originário no Japão na década de 70, cujo foco é o

relacionamento homoafetivo entre homens, mas o termo acabou sendo difundido para outros países. Para mais

informações consultar os trabalhos de Kazumi Nagaike.


para outras mulheres consumirem. Em sua página na rede social Weibo apesar de não terem

muitas informações pessoais, a autora faz posts sobre o seu posicionamento em relação ao uso

inapropriado do seu trabalho por terceiros e ao ódio espalhado pelos fãs na internet, pedindo a

todos que gostam da história que respeitem uns aos outros e as leis de produção de conteúdo,

deixando claro que apoiará as autoridades em qualquer tipo de investigação referente ao seu

trabalho.

Também o local onde ela posta seus trabalhos, por ser um site com certa credibilidade

e que já passou pelo crivo da censura chinesa, permite que ela crie suas histórias sem temer ser

presa, mas ao mesmo tempo acaba restringindo o que e como ela e outros autores de BL

chineses podem escrever. O lucro gerado por esse tipo de obra dentro e fora da China também

é um dos fatores que mantém os autores a salvo da censura.

Xu e Yang em seu estudo também afirmam que “Por razões legais e técnicas, a maioria

das produções chinesas de BL vem em formato de ficção ao invés de mangá, pois é mais fácil

para palavras do que imagens se disseminarem na internet e contornar a censura

governamental” (2013, p.2)3 assim como acontece com MDZS que somente depois de alcançar

certa fama foi adaptado para outras mídias.

Além desses fatores exteriores a história, acreditamos que outros internos à narrativa

também contribuem para que escape a censura, como a ambientação e a falta de cenas

explicitamente homoeróticas que são substituídas por alusões e referências histórias chinesas

relacionadas com a homossexualidade.

3
Todas as citações em inglês são de tradução própria. O trecho original é “For legal and technical reasons, the

majority of Chinese BL production comes in the form of fiction, rather than manga, as it is easier for words than

images to disseminate on the Internet and circumvent government censorship.”


Mo Dao Zu Shi e a China imperial

A maioria das novels BL chinesas é dividida em narrativas fantásticas, históricas ou

modernas, MDZS mistura um pouco das duas primeiras. Manter a história afastada do cotidiano

das pessoas criando uma ambientação fantástica, baseada na China antiga é possivelmente um

dos fatores que ajudam a manter afastada a censura. A homossexualidade é registrada pela

literatura chinesa desde a antiguidade, não era incomum ter relações com ambos os sexos e em

muitos casos os homens jovens substituíam as mulheres em períodos nos quais era proibido

frequentar bordeis (VITIELLO, 1992). Ainda segundo as analises que Vitiello faz dos contos

presentes na antologia The Cut Sleeve4 (Duan xiu pian) compilada por Ameng of Wu no final

da época imperial, as atitudes condenáveis relacionadas aos relacionamentos homoafetivos

muitas vezes não tem a ver tanto com o fato de ocorrerem entre duas pessoas do mesmo sexto,

mas sim com atitudes excessivas por partes dos amantes, o abuso de crianças e adolescentes

por homens mais velhos e falta de moral. A vontade de ter relações sexuais com alguém do

mesmo sexo era tratada mais como um gosto peculiar que se trazido à tona podia causar

embaraço e dificultar a carreira do que algo condenável.

Em MDZS isso é fica claro pela forma com que Wei Ying é tratado após voltar a vida

no corpo de Mo Xuanyu. O homem declarou seu amor pelo meio irmão paterno e líder do clan

Jin Guangyal, por isso foi expulso do clan e teve que voltar para a família da mãe, desde então

é chamado por todos de Cut Sleeve e pervertido, mas assim como na análise feita por Vitiello

é possível argumentar que o problema aqui é mais o ato incestuoso e o comportamento

promiscuo do que o relacionamento homossexual, levando em conta que os personagens

principais não são condenados da mesma forma que Mo Xuanyu foi. Nas partes da novel que

4
Cut Sleeve é um termo usado para denominar homossexuais, ele se baseia em um dos contos presentes nesta

antologia e do qual falaremos mais adiante.


contém cenas que insinuam comportamento homoafetivo, a maioria delas cortada do anime e

da live action devido a censura do governo chinês, a reação dos outros personagens é de

embaraço e surpresa, não de reprovação. Assim como quando Lan Zhan amarra as mãos de Wei

Ying com a fita que usa na cabeça e o arrasta pelo hotel de volta para o quarto onde dormem

juntos e os aprendizes do Clan Lan e Jin ficam corados e estupefatos com a demonstração

pública de afeto.

Outra relação com a china antiga é que a maioria dos personagens possuem três nomes,

o de nascimento (名), o de tratamento (字) e o título (号). Vamos analisar somente os nomes

dos personagens principais, pois os consideramos mais importantes e significativos. Wangji (

忘机) é o nome de tratamento de Lan Zhan (蓝湛) e também uma frase Daoista que significa

em uma tradução aproximada “Não buscar fama e riqueza, esquecer os assuntos mundanos e

estar em paz com o mundo”5, ele consegue seguir todos esses ensinamentos perfeitamente até

a chegada de Wei Ying, já seu título é Han Guang-Jun (含光君) e ele é conhecido como o mais

novo das ‘twin jades of Lan’ junto com seu irmão mais velho Lan Huan.

Existem várias referências a religião Daoista na história das quais trataremos a seguir, o

próprio nome de nascimento do protagonista Wei Ying (魏婴) apesar de ser escrito com o kanji

de infantil (婴) é associado ao conceito de Yin (陰) que Vitiello define no seu trabalho como

“feminino, passivo, escuro” (1992). É possível identificar essas características em Wei Wuxian,

nome de tratamento do personagem principal, que é descrito como afeminado, especialmente

depois de voltar a vida no corpo de Mo Xuanyu que costumava usar maquiagem e flertar

5
Essa tradução foi feita com base no inglês “to not seek fame or wealth, forget about worldly matters, and be at

peace with the world” que está disponível no fansite:

https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Characters/MoDaoZuShi portanto não foi possível checar as sua

veracidade.
abertamente com homens. Ele também é passivo diante das investidas de Lan Zhan que sempre

acaba o levando para a cama e algumas vezes tenta tirar suas roupas, além de sempre usar

roupas pretas na adaptação da novel para o mangá e anime.

Enquanto Lan Zhan usa apenas branco com alguns tons de azul, um símbolo extremo

da pureza para o homem que é considerado o segundo mais bonito e poderoso entre os

cultivadores, representando o Yang (陽) “masculino, ativo, brilhante” (VITIELLO, 1992),

próximo aos príncipes encantados dos contos de fadas ocidentais, cuja missão é salvar a alma

de Wei Ying nesta segunda vida como não foi capaz de fazer na primeira.

Outra semelhança está no próprio caminho que dá nome a religião, o Dao (道). Na

narrativa os cultivadores, são homens que devotam suas vidas a meditação e a melhoria do

corpo e da mente para alcançarem a imortalidade, quanto maior a pureza, maior o poder e serão

assim capazes de enfrentar espíritos malignos mais poderosos. É devido a isso que Lan Zhan é

considerado um dos cultivadores mais poderoso, perdendo apenas para seu irmão mais velho.

Todos os cultivadores devem seguir aquilo que chamam de “righteous path” no qual eles usam

a sua própria energia para purificar o mundo a sua volta, por isso a necessidade de cultivar a

mente e o corpo para se tornar mais forte. No entanto, quando Wei Ying sugere que a energia

maligna também deveria ser manipulada para aumentar o poder dos cultivadores, ele é castigado

pelo seu mentor e mais à frente na narrativa, quando descobre como manipular essa energia, ele

é acusado de seguir um “crooked path” que acaba levando-o a morte quando perde o controle

sobre o novo poder que adquiriu.

Ainda segundo Vitiello (1992), o sexo é considerado em alguns textos do Daoísmo

como uma forma de trocar essências e devido à falta de registros de relações homosexuais é

presumível que era considerado da mesma forma, seja entre pessoas do mesmo sexo ou sexos

diferentes. “Uma ligação homosexual pode ser de fato tão perigosa quando uma heterossexual
na qual pode causar, através de atividade excessiva a dispersão da energia vital” (p. 352)6, desta

forma dificultando o atingimento da imortalidade que é o principal objetivo dos Daoístas e dos

cultivadores de MDZS. É possível concluir, portanto, que Wei Ying está levando Lan Zhan

para longe do caminho correto que o tornaria imortal e lhe dando outra coisa em troca que

apenas os mortais podem ter, amor.

Mo Dao Zu Shi e a literatura chinesa

Existem duas referências na narrativa de MDZS à textos literários que retratam histórias

homoafetivas na antiguidade chinesa. O primeiro deles como já foi citado acima é o The Cut

Sleeve que deu nome a antologia analisada por Vitiello, esse conto retrata um acontecimento

na corte do imperador Ai (哀 ) que reinou entre 6 a.C e 1 d.C. Ele possuía um amante homem

favorito chamado Dong Xian com quem costumava dormir e ao acordar após um cochilo viu

que seu parceiro estava dormindo sobre a manga de suas vestes, para não acordar Dong Xian o

imperador preferiu cortar a própria manga. (MA, 2003). Com o passar do tempo o termo passou

a ser usado para descrever homens que se relacionam sexualmente com outros homens.

No terceiro episódio do anime Wei Ying se senta sobre a mangá de Lan Zhan que está

tentando copiar os textos sagrados do clan, bem neste momento o pincel de Lan Zhan estava

parado sobre o kanji da palavra amor, mas ao invés de um final romântico como na história do

imperador e seu amante, Lan Zhan lança um feitiço do silêncio em Wei Ying para força-lo a

fazer as tarefas, criando um anticlímax em relação a história original na qual essa cena

aparentemente se baseia.

A outra referência é a história do Deus Coelho (Tu'er shen miao) segundo a qual um

homem chamado Hu Tianbao se apaixonou por um oficial que havia acabado de chegar a Fujian

6
O texto original é: “A homosex- ual liaison can be, in fact, as dangerous as a heterosexual one in that it may

cause, through excessive activity, a dispersion of the vital spirit”.


e tentou vê-lo no banheiro, mas foi pego e espancado até a morte. Depois de morto os oficiais

do submundo tiveram pena do homem e como sua morte foi em decorrência do seu amor por

outro homem, declararam-no o deus que cuida dos assuntos referentes a esses homens que

amam outros do mesmo sexo. Após um mês ele apareceu no sonho de um dos aldeões de sua

antiga vila na forma de um coelho e pediu para que fosse erguido um templo em sua homenagem

(VITIELLO, 1992). Em MDZS Wei Ying dá de presente para Lan Zhan dois coelhos.

“Wei Wuxian: Olhe como um está sobre o outro... Eles são...?

Lang WangJi: Os dois são machos.” (XIU, 2015/16 cap. 18)7

Depois de treze anos quando volta dos mortos no corpo de Mo Xuanyu, Wei Ying

descobre que Lan Zhan acabou adotando vários coelhos além dos dois que ele havia dado de

presente e agora possuí uma criação deles. Em muitas fanarts LanZhan é comparado ao Deus

coelho ou desenhado segurando um coelho que acabou se tornando o símbolo desse

personagem.

Conclusão

Mo Dao Zu Shi alcançou fama no ocidente apesar da censura chinesa em relação a

conteúdo homossexual produzido no país devido a uma série de atitudes tomadas pela autora e

elementos da narrativa como referências históricas e religiosas que resgatam a tradição chinesa

da homossexualidade de forma não explicita, criando uma obra repleta de insinuações e alusões

que só podem ser entendidas com a ajuda de outros fãs ou quando se tem conhecimento da

história chinesa.

A oportunidade de termos acesso a esse tipo de narrativa diz muito não só do tipo de

histórias criadas na China, mas também do modo de criação dos autores em uma república não

7
Texto original da tradução não licenciada para o inglês:

‘Wei WuXian, “Look at how one is on top of the other… Are they…?

Lan WangJi, “Both of these are male!”’


tão liberal quanto a nossa. É possível apenas dizer que houveram grandes mudanças neste

milênio em relação a aceitação de conteúdo LGB na China em relação a perseguição que ocorria

anteriormente, mas com o tempo esperamos que haja ainda mais oportunidades para que essas

obras sejam adaptadas e distribuídas como produto literário chinês, assim como já acontece

atualmente no Japão e na Coréia do Sul.

Bibliografia

MA, Jing Wu. “From “Long Yang” and “Dui Shi” to Tongzhi: Homosexuality in China”

In: Journal of Gay & Lesbian Psychotherapy, 7:1-2, 117-143. Disponível em:

<https://doi.org/10.1300/J236v07n01_08> Acessado em: 04/12/2018 às 02:30.

Pachi. “Autora chinesa sentenciada a dez anos de prisão por publicar BL” In: Blyme

Yaoi. Disponpivel em: <https://blyme-yaoi.com/2018/2018/11/18/autora-chinesa-sentenciada-

a-10-anos-de-prisao-por-publicar-bl/> Acessado em: 06/12/2018 às 23:45.

Site da wiki criada por fãs para publicas suas análises relacionadas a novel Mo Dao Zu

Shi. Disponível em: <https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Literature/MoDaoZuShi>

Acessado em: 02/12/2018 às 23:05.

VITIELLO, Giovanni. ‘The Dragon's Whim: Ming and Qing Homoerotic Tales from

"The Cut Sleeve"’ In: T'oung Pao, Second Series, Vol. 78, Livr. 4/5 (1992), pp. 341-372.

Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/4528573> Acessado em: 04/12/2018 às 02:21.

XIU, Mo Xiang Tong. Página pessoal na rede social weibo. Disponível em:

<https://www.weibo.com/u/5907302111?s=6uyXnP&is_hot=1&fbclid=IwAR2fazQEUUFgG

1ZWhWLNOUtV5fr8Xlmrm5ksN-ZC9KgQR4w1PQXcFL-dj6s> Acessada em: 02/12/2018

às 23:37.
XIU, Mo Xiang Tong. Página oficial da Novel das novels publicas pela autora.

Disponível em: <http://www.jjwxc.net/oneauthor.php?authorid=1322620> Acessada em:

02/12/2018 às 23:40.

XIU, Mo Xiang Tong. Página da tradução não liscenciada da novel para o inglês.

Disponível em: <https://exiledrebelsscanlations.com/grandmaster-of-demonic-cultivation/>

Acessado em 06/12/2018 às 23:41.

XU, Yanrui e YANG Ling. “Forbidden love: incest, generational conflict, and the

erotics of power in Chinese BL fiction” In: Journal of Graphic Novels and Comics, 2013. Vol.

4, No. 1, 30–43. Disponível em:

<https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/21504857.2013.771378> Acessado em:

04/12/2018 às 02:30.

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