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BIANCA BRIGUGLIO
CAMPINAS
2020
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BIANCA BRIGUGLIO
CAMPINAS
2020
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Presidente
Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo (Unicamp)
Membros titulares
Profa. Dra. Bárbara Geraldo de Castro (Unicamp)
Profa. Dra. Márcia de Paula Leite (Unicamp)
Profa. Dra. Nadya Araújo Guimarães (USP)
Profa. Dra. Joana de Moraes Monteleone (USP)
Esta tese é dedicada à minha avó Maria, que tornou tudo possível.
Seu amor, seu humor e o macarrão feito em casa me criaram.
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Agradecimentos
Esse trabalho só foi possível com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001, por meio da
bolsa de estudos que me concedeu, tanto no Brasil quanto ao longo dos onze meses que passei
na França, que garantiram condições mínimas para que eu pudesse viver e trabalhar
exclusivamente na pesquisa.
Agradeço aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
(IFCH), que sempre foram solícitos e gentis em dar conta dos papéis, documentos e prazos
nesse período. Agradeço também à professora Isadora Lins França, por todo o apoio e
trabalho duro como coordenadora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais no tempo
em que a tese foi desenvolvida.
À professora Angela Maria Carneiro Araújo, minha orientadora, uma pessoa que
admiro muito, como pesquisadora, professora e militante, que sempre me inspirando e
fornecendo sugestões e conselhos valiosos para realização deste trabalho.
À professora Aparecida Neri de Souza, da Faculdade de Educação da Unicamp,
coordenadora do convênio Capes-Cofecub, que viabilizou a realização do meu doutorado
sanduíche na França, por todo o apoio e agilidade no processo;
À professora Selma Borghi Venco, pelo apoio, por sua leitura atenta e conselhos gentis
no exame de qualificação desta tese.
À professora Helena Hirata, minha supervisora durante o período do sanduíche, uma
pessoa querida e profundamente inspiradora. Sou muito grata por toda a sua gentileza e
generosidade, por seu cuidado e carinho, pela atenção e bondade sem fim. Muito deste
trabalho e das minhas inquietações de pesquisadora são inspirados por suas pesquisas e defesa
intransigente dos direitos das mulheres.
À professora Bárbara Castro, com quem tive a sorte e o prazer de conviver em Paris,
de conhecer para além de sua produção e de suas reflexões acadêmicas, e que sempre me
presenteou com palavras de apoio e de incentivo.
Às pesquisadoras e pesquisadores do Centre de Recherche Sociologique et Politique
de Paris (CRESPPA), no site Pouchet, em Paris, que me receberam e acolheram,
especialmente nas figuras das professoras Sabine Fortino e Régine Bercot. Também agradeço
aos meus vizinhos do andar dois e meio, Franck Satierf e Malek Bouyahia, pelas conversas e
socorro nas situações de aperto.
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Aos meus vizinhos na Maison du Brésil, Pablo Fontoura, Natália Castilho, Leonardo
Barone, Ana Carolina Andrada, Martim (e Júlio ainda na barriga), pela amizade e confiança
que transcendeu muito a casa, a cidade e o continente, por todo amparo, toda ajuda, todos os
favores, todas as quiches, todas as conversas, todas as mensagens e todo afeto que me fazia
tanta falta.
À Liliane Bordignon, anja, que sempre me ajudou a abrir e a atravessar portas, a trilhar
bons caminhos, a chegar aos lugares que eu queria e que me acolheu de tantas maneiras.
À Thaís Lapa, amiga para a vida e companheira de ciladas. Tive a sorte de
compartilhar com ela não apenas as angústias e aflições do doutorado e das viagens à
Campinas, mas também pude receber seu carinho e apoio sempre, no Brasil e na França, de
longe e de perto. Sem ela, tudo teria sido mais difícil.
À Michele Escoura Bueno, por todas as conversas e toda a paciência, por ter me
recebido em Belém, me levado passear, comer, nadar e conhecer essa cidade incrível cheia de
possibilidades. Por ter me dado tanta força, presencialmente ou por Skype.
Aos colegas do Doutorado em Ciências Sociais, pessoas queridas que tive a sorte de
conhecer e de compartilhar experiências, medos e angústias, mas também happy hours e
risadas, numa rede de apoio mútuo. Aos colegas da linha de pesquisa Trabalho, Política e
Sociedade, Juliana Sousa, Pedro Queiroz, Thales Vilela Lelo e, sobretudo, Patrícia Rocha
Campos, que se tornaram grandes amigos e parceiros, além de interlocutores.
À Bel Mesquita, amiga querida, que me ouviu e leu meus lamentos, dividiu os seus e
sempre compartilhou comigo seu olhar perspicaz sobre a realidade, me ajudando a voltar ao
prumo e a seguir em frente.
À Erika Kulessa de Souza, companheira de sempre, amiga de todas as horas, por ser
tão imprescindível, precisa e sensível. Espero que estejamos sempre juntas. À Ana Paula
Martins, pelo pragmatismo ímpar e contagiante, pela compreensão e acolhimento. Às amigas
Samira Bandeira e Thaís Assunção, pelos anos de amizade e afeto que superaram todas as
distâncias e todos os obstáculos, por serem amigas de todas as horas.
Às queridas Priscila Vieira, Tata Chang e Bia Pasqualino, cuja amizade e parceria
tornaram as coisas mais leves e divertidas, que me falaram tantas vezes que era assim mesmo
e que ia ficar tudo bem, que eu até acreditei.
Às minhas companheiras de militância, Bruna, Elaine, Erika, Laura e Mia, por sempre
terem uma palavra de apoio e fé na força que temos unidas, no feminismo.
Aos amigos de Brasília, onde quer que estejam, principalmente Marianne (2N), que
adotou minha gata durante meu período de sanduíche e, mais tarde, adotou a mim também.
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Meu muito obrigada ao Fernão Lopez, esse amigo que passou por acaso na minha casa e
nunca mais saiu da minha vida.
Aos amados Filipe Miranda, Fernando Morari, Kadine Teixeira, Gi e Ion Hernandez e
Andrea Belinda Schultz, amigos e amigas queridas que me receberam além-mar, me buscaram
no aeroporto ou na rodoviária, me deixaram dormir no sofá e me permitiram entrar em seus
cotidianos. Todos me fizeram sentir em casa, mesmo tão longe de casa.
Minha família na Austrália, Taty Marcondes, John e George, de quem sinto saudade
todos os dias, que me inspiram com sua doçura e amor, que me lembram que é possível
conquistar o inimaginável.
Aos meus tios Rita e Daniel Bonfim, a família que eu escolhi e que amo, pelo apoio de
sempre, por nossa ligação tão profunda e tão verdadeira. Daniel Bonfim, meu tio comunista,
que me inspirou sempre e que estará sempre comigo (não tem perhaps).
Minha mãe Tereza e meu irmão Enrico foram, são e sempre serão as pessoas mais
importantes da minha vida. Muito além de um núcleo familiar, somos parceiros. Eles sempre
acreditaram em mim, estavam ao meu lado me encorajando e me dando força todos os dias,
até quando as coisas ficaram muito difíceis. Sou muito grata pela sorte de tê-los.
Gostaria de agradecer a todos que me permitiram entrar em suas vidas e conhecer suas
histórias: os entrevistados e entrevistadas. Pessoas que não me conheciam e que dividiram
comigo suas angústias, sonhos, problemas, desejos, me receberam em suas casas ou em seus
locais de trabalho e pararam o fluxo de suas vidas para conversar comigo. Sem essa confiança
e solidariedade, esta pesquisa não teria sido possível. Agradeço muito a colaboração de cada
um deles.
Aproveito para agradecer, de maneira póstuma, à chef Benê Ricardo. Sem me
conhecer, ela abriu as portas de sua casa e me recebeu com um bule de café e um bolo de
fubá. Dona de uma humildade e modéstia impressionantes, seu pioneirismo, acredito, ainda
será reconhecido pelos futuros cozinheiros e, especialmente, cozinheiras do Brasil. Espero
que este trabalho honre sua história de vida e trajetória, não como narrativa heroica, mas
como um exemplo de luta.
Esta tese é dedicada à minha avó materna, Maria, que faleceu dois meses após minha
chegada na França. Só consegui realizar e concluir o doutorado na cidade de São Paulo
porque tive o privilégio de morar na casa dela, logo depois que ela foi institucionalizada.
Encontrei muito dela em mim nesse período. Gratidão é uma palavra insuficiente para traduzir
o meu sentimento, mas nesse momento é a que mais se aproxima.
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Resumo
O tema principal desta tese é a divisão sexual do trabalho que se realiza em cozinhas
profissionais. A partir de um panorama histórico da profissão de cozinheiro/a, no Brasil e na
França, procura-se compreender o mercado de trabalho, as condições e relações de trabalho
nesse segmento profissional. A pesquisa baseia-se principalmente em entrevistas com homens
e mulheres que trabalham ou trabalharam em ocupações ligadas à cozinha, como chefs,
cozinheiras/os, ajudantes/ auxiliares, saladeiras/os, assim como proprietários de
estabelecimentos, trabalhadores autônomos, prestadores de serviços de alimentação e
“empreendedores”. A pesquisa adota a perspectiva de gênero, classe e raça como ponto de
partida, assim como interroga os contornos da divisão sexual do trabalho, tanto no mercado
quanto no ambiente de trabalho. A cozinha profissional, principalmente em restaurantes, é um
espaço eminentemente masculino e masculinizante, que cria obstáculos e dificuldades para a
permanência de mulheres. Para além das responsabilidades familiares e do trabalho
doméstico, a própria cozinha profissional opera em uma lógica masculina e agressiva, que
supervaloriza a força física e um exercício de comando sexuado, que chega, não raro, ao
assédio moral e sexual, e que exclui as mulheres. Expandindo as fronteiras do trabalho em
restaurantes e observando alguns serviços de alimentação – como venda de
marmitas, catering e serviços de comida em domicílio –, observamos como as mulheres
acabam preferindo o trabalho autônomo ou por conta própria, seja por precisarem de mais
flexibilidade para conciliar atividades profissionais com o trabalho de cuidado e família, seja
pela possibilidade de gerir e administrar o próprio trabalho.
Abstract
The main theme of this thesis is the sexual division of labor that takes place in professional
kitchens. Based on a historical overview of the cooking profession, in Brazil and France, we
seek to understand the labor market, working conditions and relationships in this professional
segment. The research is based mainly on interviews with men and women who work or have
worked in occupations in the kitchen, such as chefs, cooks, helpers/ assistants, salad makers,
as well as establishment owners, self-employed workers, food service providers, and
“entrepreneurs”. The research adopts the perspective of gender, class and race as a starting
point, as well as interrogating the contours of sexual division of labor, both in the labor
market and in the workplace. Professional cuisine, especially in restaurants, is an eminently
masculine and masculinizing space, which creates obstacles and difficulties for women to
remain. In addition to family responsibilities and domestic work, the professional kitchen
itself operates in a masculine and aggressive logic, which overestimates physical strength and
a sexual exercise of command, which often turns into moral and sexual harassment, and
which excludes women. Expanding the frontiers of work in restaurants and observing some
workers in food services - such as selling prepared meals, catering and home food services -,
we see how women end up preferring self-employment or autonomous work, either because
they need more flexibility to reconcile professional activities with care work and family,
whether by the possibility of managing and administering their own business.
Lista de Imagens
Figura 1 - “Le cuisinier François”, de LaVarenne, publicado em 1651, p. 43
considerado o primeiro livro de culinária
Figura 2 - “Le pâtissier François”, de La Varenne, publicado em 1653. p. 45
Figura 3 - Societé des Cuisiniers de Paris [1905-1915] p. 50
Figura 4 – O primeiro livro brasileiro de receitas, O cozinheiro imperial ou p. 54
Nova arte de cozinha da cidade e do campo em todos os seus ramos,
publicado por R.C.M. em 1839.
Figura 5 – La brigade de Cuisine p.69
Figura 6 – Fotografia da culinarista de televisão Cidinha Santiago, no p.163
Encontro Mundial de Chefs.
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Sumário
Introdução ...................................................................................................................... 16
1. Metodologia de Pesquisa ........................................................................................ 20
1.1.O desafio do recorte ...................................................................................... 21
1.2. Trabalho de campo ....................................................................................... 25
2. O desenho da tese ................................................................................................... 30
Capítulo 1 - De onde vêm os/as cozinheiros/as? ......................................................... 32
1. Histórico da profissão ............................................................................................. 32
1.1. O nascimento do restaurante ........................................................................ 35
1.2. A importância da gastronomia francesa ....................................................... 42
1.3. Os/As cozinheiros/as no Brasil .................................................................... 51
1.4. Os restaurantes a partir dos anos 2000 ......................................................... 60
2. As ocupações e os processos de trabalho na cozinha ............................................. 65
2.1. Chef .............................................................................................................. 73
2.2. Cozinheiro/a ................................................................................................. 79
2.3. Auxiliar de cozinha....................................................................................... 81
3. Considerações finais do capítulo ............................................................................ 83
Capítulo 2 - Como se forma o/a cozinheiro/a? ............................................................ 84
1. Dom e paixão: o ethos ............................................................................................ 84
2. Qualificação Profissional ....................................................................................... 95
2.1. Os cursos de Gastronomia ............................................................................ 97
2.2. Formação profissional nas cozinhas ........................................................... 100
2.3. Os estágios.................................................................................................. 107
3. O trabalho dos cozinheiros ................................................................................... 116
3.1. Jornada de trabalho..................................................................................... 117
4. Considerações finais do capítulo .......................................................................... 130
Capítulo 3 - Cozinha é lugar de mulher? .................................................................. 132
1. A divisão sexual do trabalho ................................................................................. 132
2. Trabalho doméstico: conflito trabalho e família................................................... 142
3. Cozinha quente, cozinha fria: trabalho de homem, trabalho de mulher. .............. 149
4. Mixidade no trabalho............................................................................................ 156
5. E para trabalhar de noite em São Paulo? .............................................................. 159
6. “Além de ser mulher, negra”. ............................................................................... 161
6.1. Cidinha Santiago ........................................................................................ 162
15
Introdução
Esta pesquisa investiga o trabalho de cozinheiros e cozinheiras. As diferenças e
desigualdades entre homens e mulheres nesse segmento profissional e suas implicações em
termos de vida profissional e pessoal são o tema central desta tese. Ainda que as cozinhas
profissionais tenham recebido cada vez mais mulheres, elas encontram mais dificuldades para
ascender na carreira e serem reconhecidas publicamente. Por quê?
Os objetivos que orientam essa investigação são conhecer as condições e relações de
trabalho em cozinhas de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação, compreender
os contornos da divisão sexual do trabalho nesses espaços, assim como suas implicações em
termos de formação profissional, movimentação no mercado de trabalho e constituição de
carreira, conhecer trajetórias pessoais e profissionais de trabalhadores e trabalhadoras desse
segmento.
Esta pesquisa nasceu durante o período em que trabalhei na Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade (Contratuh), em Brasília (DF), como assessora
técnica da subseção do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), entre 2012 e 2014. A Contratuh é uma entidade de base eclética, que representa
cerca de dez categorias diferentes, como os trabalhadores em entidades filantrópicas, em
asseio e conservação, profissionais de beleza e estética e o ramo de hotelaria, entre outros.
Cada uma dessas categorias profissionais tem suas especificidades, mas, desde aquela
época, pareceu-me surpreendente que não havia nenhuma ação ou atividade sindical voltada
para os trabalhadores em cozinhas de restaurantes. O trabalho nessa entidade possibilitou o
acesso a algumas informações referentes a esse segmento como, por exemplo, os baixos pisos
salariais negociados pela categoria em todos os estados, a alta rotatividade1, e práticas como a
chamada jornada “flexível”2.
Uma investigação inicial sobre o tema do trabalho em cozinhas profissionais revelou
pouquíssimas pesquisas a respeito deste assunto no Brasil. A gastronomia era abordada a
partir de diversos aspectos, como a história da alimentação, a relação entre o alimento e a
1
Dieese. Rotatividade Setorial: dados e diretrizes para a ação sindical. São Paulo: Dieese, 2014. Disponível em
http://www.dieese.org.br/livro/2014/livroRotatividade.pdf (Acesso em 03/05/2019).
2
A jornada flexível refere-se à jornada em dois turnos, no caso dos restaurantes, o serviço do almoço e do jantar,
com um intervalo de duas ou três horas (o serviço do almoço termina por volta das 15h e o do jantar começa por
volta das 17h). Essas horas são descontadas da jornada total, mas, na prática, o trabalhador não pode voltar para
casa nem descansar, e permanece no estabelecimento à disposição do empregador.
17
p.73-74). Nesse sentido, as mudanças sociais não são manifestações de desordem e seu
significado real só pode ser apreendido em uma perspectiva histórica de longo prazo, na qual
é possível observar quais são as mudanças que esse processo constrói.
O processo civilizador analisado por Elias aponta na direção da constituição da
sociedade burguesa, capitalista. Em sua concepção, o desafio que se coloca para o
pesquisador é entender os vínculos entre indivíduo e sociedade como realidades que
constituem ambos. Em “Mozart, a sociologia de um gênio” (1991), por exemplo, Elias
centrou-se em uma história singular para compreender as configurações de toda uma época.
Indivíduo e sociedade referem-se a dois níveis diferentes, mas inseparáveis. Pensar em termos
de configuração significa raciocinar não mais em termos de individualidades ligadas umas às
outras, mas em termos de relações necessariamente variáveis, com posições definidas pelo
sistema dessas relações.
O método proposto por Elias, portanto, é pensar a vida social como um processo. O
indivíduo não atravessa um processo, ele é o processo. Ele parte de um entendimento das
estruturas que seres humanos mutuamente dependentes estabelecem e das transformações que
sofrem, tanto individualmente quanto em grupos, devido ao aumento e à redução de suas
interdependências e seus gradientes de poder. Em suas próprias palavras:
que é certo e errado, o que, de forma genérica, podemos dizer que Elias chama de processo
civilizador é um processo de transformação individual e social que se deu durante séculos.
Não se trata de uma evolução, mas na concepção elisiana, da percepção da mudança em um
longo período, nas interdependências e relações que se transformaram, nas tensões que se
acentuaram e alianças que se romperam ou se fortaleceram. Trata-se, sobretudo, de
compreender o sentido das mudanças, o sentido da história.
Para além da compreensão da história como um processo, há uma perspectiva teórica e
metodológica importante neste trabalho, que está em consonância com a proposição de Sandra
Harding (1989), a ideia de pesquisa feminista. Segundo ela, as pesquisadoras feministas
empregam os métodos de pesquisa como em qualquer pesquisa tradicional: escutar
informantes (ou interrogá-los), observar o comportamento e examinar vestígios e registros
históricos. Entretanto, elas dedicam uma atenção especial ao que dizem as mulheres,
visibilizando suas histórias de vida e dando centralidade às suas visões e interpretações da
própria realidade.
A autora entende que uma epistemologia é uma teoria do conhecimento que responde
à pergunta de quem pode ser sujeito de conhecimento. As feministas argumentam que as
epistemologias tradicionais excluem sistematicamente a possibilidade de as mulheres serem
sujeitos ou agentes do conhecimento, sustentam que a voz da ciência é masculina e que a
história foi escrita desde o ponto de vista dos homens. Entretanto, o problema das pesquisas
feministas não se resolve somando-se ou agregando-se as mulheres, simplesmente. Para
Harding, se pensarmos na maneira como os fenômenos sociais se convertem em problemas
que requerem uma explicação, veremos que não existe problema algum se não houver pessoa
ou grupo de pessoas que o defina: um problema é sempre um problema para alguém
(HARDING, 1989, p.10-11).
Ainda de acordo com a autora, os desafios do feminismo revelam que as perguntas que
são formuladas – e, sobretudo, as que não são – determinam a pertinência e a precisão da
imagem global dos fatos, assim como as respostas que podem ser encontradas. Um traço
definitivo da pesquisa feminista é que define sua problemática desde a perspectiva das
experiências femininas, e emprega essas experiências como um indicador significativo da
realidade. Em consonância com essas afirmações, a descrição das experiências das próprias
trabalhadoras entrevistadas é o eixo central do presente trabalho.
É fundamental considerar e destacar as narrativas das mulheres e a complexidade das
relações que elas descrevem, pois é a partir destas que considero os elementos que compõem
a configuração. Homens também foram entrevistados e suas narrativas também são
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importantes, também são analisadas e consideradas. Mas elas não adquirem centralidade nessa
pesquisa, não porque não sejam importantes, mas porque dentro do universo de histórias de
vida e trajetórias de gênero, as femininas têm preponderância.
1. Metodologia de pesquisa
Olhar para o trabalho implica olhar para as relações e para as condições de trabalho.
Desde o começo, a pesquisa empírica foi orientada por questões referentes às jornadas de
trabalho (quantas horas por dia, quantos dias por semana, como são divididos os turnos,
intervalos e períodos de descanso), à informalidade (registro em carteira - se existe, se está ou
não de acordo com o trabalho efetivamente realizado, trabalho como freelancer e temporários
ou extras, acesso aos direitos trabalhistas e benefícios previstos em lei), mercado de trabalho
(busca por emprego, currículo, rede de contatos e indicações, diferentes valorações das
experiências profissionais), à formação profissional (formação empírica no trabalho, cursos,
formações técnicas, aprendizado) e à forma como as relações sociais de gênero estão
implicadas nessas relações - como se colocam para os homens e para as mulheres.
A investigação, entretanto, não poderia ficar restrita a essas questões, pois o universo
com o qual me deparei durante a realização da pesquisa de campo e as entrevistas era muito
mais amplo e mais complexo. Todavia, mesmo diante de uma bibliografia mais vasta e de
outras questões interessantes que emergiram, a orientação da pesquisa sempre foi olhar para o
trabalho vivo. Quer dizer, não para as máquinas e instrumentos, a tecnologia da cozinha, mas
para as atividades dos seres humanos, a transformação, as relações sociais de produção. Não
se trata de olhar para o alimento em si, apartado da atividade que o produz, apartado de seu
contexto social de produção. Meu objetivo discutir exatamente as técnicas de preparo, os
ingredientes e o resultado final, a estética do prato, a apresentação, nem mesmo sua história.
Os alimentos precisam ser colocados, aqui, em um contexto em função de uma leitura
de classe. Existem alimentos caros, quase inacessíveis para a grande maioria da população,
alimentos não produzidos em massa, que não são populares e não fazem parte do universo
gastronômico comum, básico. Tais alimentos estão restritos a determinados grupos sociais,
extratos da população com alto poder aquisitivo, que os conhecem, sabem apreciá-los e,
portanto, sabem prepará-los.
O depoimento de uma das chefs entrevistadas ilustra bem essa relação. Ela já
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trabalhava havia alguns anos em restaurante como cozinheira e decidiu fazer o curso técnico
de cozinheiro-chef como estratégia para melhorar suas oportunidades profissionais. Quando
questionada sobre seu aprendizado no curso, afirmou que teve acesso a insumos que não
conhecia, aprendeu a trabalhar com ingredientes com os quais não estava acostumada como,
por exemplo, lagosta. Trata-se de um crustáceo extremamente caro em quase todos os lugares
do mundo, é um ingrediente nobre. A chef entrevistada, oriunda das classes populares, não
tinha acesso a esse ingrediente na sua vida fora do restaurante. Como poderia saber preparar
um alimento que ela mesma nunca comeu? Esse exemplo ilustra nosso percurso, no sentido
que não se trata, aqui, de olhar para o ingrediente e discutir se deve ser fervido vivo, regado
com manteiga ou grelhado, mas entender as relações de classe que estão colocadas e como
alguns alimentos/ pratos/ técnicas são elementos distintivos que nos permitem enxergar essas
relações.
Também não se trata de fazer uma análise dos restaurantes ou dos estabelecimentos de
alimentação. Nas duas cidades onde foi possível fazer a pesquisa, São Paulo e Paris, a oferta
gastronômica é incomensurável. Pensar na heterogeneidade dos estabelecimentos é olhar para
um caleidoscópio de sabores, perfumes e possibilidades globais: o que é gastronomia
contemporânea? O que é gastronomia brasileira? O que é gastronomia brasileira
contemporânea? São tantos termos, tantas nomenclaturas, tantas classificações diferentes, que
olhar para elas e tentar defini-las escaparia muito aos meus objetivos.
Aqui, só farei referência ao tipo de culinária, ao tipo de alimento ou de serviço quando
estes reportarem às relações de produção e de trabalho. Assim como os ingredientes, o tipo de
gastronomia também se refere a um lugar de classe: pode-se argumentar que um restaurante
popular por quilo, que serve feijoada às quartas-feiras, trabalha com gastronomia brasileira,
mas não é a mesma coisa que um restaurante cuja chef é mundialmente famosa, que oferece
gastronomia brasileira contemporânea em um menu-degustação que custa, aproximadamente,
R$ 400 por pessoa3. Então, não se trata de discutir o tipo de gastronomia, mas as formas que o
trabalho assume nos dois tipos de estabelecimento.
3
Para contextualizar esse valor, esclareço que o salário mínimo em 2018 era de R$ 954 reais e em 2019, R$ 998.
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recorte. As teses e dissertações que acessei para preparar este texto já revelavam dificuldades
e percalços para estabelecer um recorte: definir o que faz parte da pesquisa e o que não faz.
Minha proposta sempre foi pesquisar o trabalho dos cozinheiros e cozinheiras de
restaurante. Mas o campo foi se abrindo, revelando outras realidades, outros trabalhos, outras
dinâmicas, outros assuntos e temas igualmente interessantes, e manter esse recorte simples foi
ficando mais difícil. Ao chegar à França para o período do doutorado sanduíche, eu me
deparei com uma gama ainda maior de trabalhos e teses, de conceitos e discussões, e tudo
parecia se relacionar e contribuir com a minha pesquisa. O recorte é precisamente a separação
entre o que vai ficar e o que vai sair. E por mais que seja difícil abrir mão de algumas coisas,
não é possível abarcar tudo que parece interessante em uma tese.
Olhar para um segmento profissional extremamente heterogêneo e diversificado, que
se transforma constantemente, que permite diversas leituras e abordagens cria uma miríade de
possibilidades de investigação muito tentadora, mas era preciso escolher apenas uma. A
realização de um campo inicial e exploratório, que abrangeu diversas ocupações e trabalhos
no espectro da cozinha e do restaurante, já revelava algumas dessas possibilidades, mas as
entrevistas que foram realizadas após o exame de qualificação seguiam um recorte mais
preciso e, ainda assim, pareciam apontar novas direções.
Encontrei muitos profissionais que haviam começado, há mais ou menos tempo, seu
próprio negócio. Abrindo um restaurante, prestando serviços de alimentação ou trabalhando
na televisão, os cozinheiros e cozinheiras que entrevistei me permitiram enxergar um novo
campo para além da cozinha do restaurante, meu objetivo inicial, e revelaram outros
elementos que eu não havia previsto. Meu objetivo nunca foi entrevistar os donos de
estabelecimentos, mas eles apareceram na pesquisa e seus relatos pareciam ilustrar algumas
questões que já haviam surgido.
Minha pesquisa exploratória havia tornado patente que o trabalho de campo era
imprevisível, que ele não confirmaria minhas hipóteses (ao contrário) e que revelava uma
riqueza de possibilidades e leituras muito além do que eu imaginava. E que isso era o melhor
indicativo de que eu estava percorrendo um bom caminho, permitindo que aqueles homens e
mulheres me informassem sobre suas realidades, colocando meus conhecimentos prévios à
prova e deixando que as premissas iniciais caíssem por terra.
Mas meu objetivo inicial permaneceu. Pesquisei o trabalho dos cozinheiros e
cozinheiras de restaurante. A vida dessas pessoas não se circunscreve apenas a esse universo
e, por isso, seus relatos revelaram tantas outras possibilidades. Procurei relatar e analisar isso
nesta tese. Assim, a pesquisa tratou do trabalho culinário em um sentido mais amplo. Busquei
23
4
Aqui estou me referindo ao trabalho taylorizado como uma modalidade específica na área de alimentação, como
trabalho taylorizado um tipo específico de trabalho na alimentação, que consiste em montar os lanches e
refeições segundo uma rígida prescrição. Existe uma ampla bibliografia sobre o trabalho nas grandes redes de
fast food, mas esse trabalho diverge do trabalho culinário (do outro, culinário, aquele que investigo precisamente
em função de alguns preceitos do taylorismo, como a racionalização de gestos e movimentos, a separação entre
trabalho intelectual e manual, a divisão do trabalho em várias etapas, o controle por conta de uma gerência. O
filme "Fome de Poder" (The Founder, 2017) dirigido por John Lee Hancock, trata do nascimento da franquia de
fast food mais bem-sucedida do mundo, o McDonald's, e mostra como os irmãos McDonald’s racionalizaram o
trabalho no menor espaço possível, criando estações de trabalho, controlando os gestos e movimentos na cozinha
para garantir que todos os lanches seriam idênticos, independentemente de quem estivesse trabalhando na
cozinha. A fórmula, além de agilizar o atendimento, garantiu o sucesso do negócio em todo o mundo.
5
Tradução livre de "L’offre limitée et standardisée des plats, conjuguée aux choix relativement stables des
consommateurs permet d’organiser la production en amont de manière rationnelle et de gagner du temps".
24
cortam as batatas ou que fazem os molhos (como em outras lanchonetes, por exemplo).
Entretanto, em função da riqueza que as entrevistas proporcionaram, a pesquisa
avançou para além dos trabalhadores de restaurantes e passou a englobar o que estou
chamando de "serviços de alimentação". Geralmente realizados por profissionais que
decidiram empreender, esses serviços são diversificados e objetivam dar conta de uma série
de necessidades específicas dos consumidores. Foi possível, por exemplo, entrevistar uma
cozinheira que produz comida em sua própria casa e vende marmitas congeladas por meio de
um aplicativo, outra cozinheira que prepara coffee breaks e refeições sob encomenda para
eventos e banquetes, assim como pessoas que prestavam serviços de consultoria.
Assim, ainda que muitos parâmetros e discussões que estavam previstos desde o
projeto tenham sido mantidos, a tese também traz novos problemas e realidades que
emergiram do campo, das narrativas dos entrevistados, da constante transformação desse
segmento econômico e das condições de trabalho.
Tomo a liberdade de fazer uma pequena digressão sobre a utilização de outros
materiais que deram algum suporte às minhas reflexões. Como já apontei, a alimentação e a
gastronomia se tornaram assuntos muito populares, que ocupam diversas mídias. Entre
programas na televisão aberta, nos canais por assinatura, nas redes sociais e internet, os
eventos gastronômicos, o interesse pelo assunto parece crescente e diversificado. Isso
apresentou um problema no sentido do recorte e, principalmente, do ruído. São muitos os
discursos, que vão desde a alimentação saudável, orgânica e as relações farm to table – ou
direto do produtor –, até as alergias e restrições alimentares, novas formas de produzir
alimentos, o debate com a indústria, as mudanças constantes no mundo da alimentação. É
importante ressaltar que, como uma pessoa que vive nessa sociedade e que tem interesse
nessas questões, esse universo se apresentava para mim cada vez mais rico, cada vez mais
diverso, cada vez mais interessante.
A sociologia da alimentação contemporânea e os food studies contemplam um mundo
amplo de debates e reflexões, que conjugam várias disciplinas e perspectivas, que trazem
elementos de diversas áreas para compor o pensamento sobre a alimentação, a culinária, a
cozinha e a gastronomia. A palavra universo é apropriada para descrever esse campo de
estudos que tem ganhado força e adeptos ao redor do mundo.
O foco que adotei, todavia, é das relações sociais de sexo e de trabalho. Não se trata,
portanto, da história da alimentação, da antropologia e nem da sociologia da alimentação, mas
do trabalho que homens e mulheres realizam para que outros possam comer. E o trabalho aqui
se refere à produção de refeições, e não de alimentos – não estou pensando sobre a produção
25
agrícola, agricultura familiar, distribuição, nem mesmo a questão dos venenos e agrotóxicos,
tão em voga hoje em dia– e um assunto recorrente entre os próprios cozinheiros, uma vez que
impacta diretamente seu trabalho.
6
A Fipan é uma feira anual que acontece na cidade de São Paulo, promovida sobretudo por sindicatos e
associações patronais, como o Sampapão, sigla que agrega os Sindicato e Associação dos Industriais da
Panificação e Confeitaria de São Paulo e o Instituto de Desenvolvimento da Panificação e Confeitaria, escola
técnica de panificação mantida pelo sindicato. A feira não é aberta ao público. De acordo com o site, “A Fipan é
uma feira de negócios voltada somente para empresários e funcionários de empresas ligadas aos setores
representados no evento” (Disponível em http://fipan.com.br/perguntas-frequentes/. Acesso em 10/10/2019).
Ainda assim, no ano que visitei a feira, 2017, foram mais de 65 mil visitantes.
7
O Salon du Chocolat é um evento aberto ao grande público, que comercializa não apenas maquinários e
insumos, mas tem estandes e lojas de produtos de confeitaria, pâtisserie e, claro, chocolate, premiações e
concursos de mestres pâtissiers e confeiteiros, cursos, master classes, uma exposição de esculturas de chocolate,
ateliês de práticas com chocolate, palestras e mesas redondas. A programação está disponível em
https://www.salon-du-chocolat.com/ (Acesso em 10/10/2019).
26
cadeiras, palco e telão, mas sem estrutura básica, como banheiros e bebedouros. Entretanto,
como as atividades realizadas nesse lugar estavam voltadas para todos os participantes, era
fundamental que ocorressem em um local com muito espaço. O cenário, na verdade, era bem
agradável, à beira de um lago.
À tarde, as atividades eram descentralizadas entre oficinas e workshops realizados em
salas e auditórios dentro do hotel, da mesma forma que patrocinadores e empresários do setor
disponibilizavam seus produtos em estandes e outros espaços, conversando e interagindo com
os participantes. Muitas atividades aconteciam simultaneamente e era difícil acompanhar
todas.
Muitas pessoas compareceram à abertura. Os chefs vestiam dólmãs8 especiais, com o
símbolo do encontro e seus nomes bordados, assim como o chapéu alto. Muitos também
usavam aventais. Além dos incontáveis chefs devidamente paramentados, também exibindo
dólmãs e chapéus, os estudantes de Gastronomia de diversas escolas estavam na plateia -
levados pelas escolas para assistir às palestras, participar dos workshops e, alguns, para
abonarem horas de atividades extras, auxiliando os chefs responsáveis pelos workshops e
oficinas. A vestimenta é uma parte importante da identidade do cozinheiro, e os diferenciava
dos demais participantes civis.
A imersão de três dias nesse encontro foi uma rica possibilidade de conhecer melhor o
universo dos cozinheiros fora de seu hábitat. De um lado, trabalhando com a assessoria de
imprensa pude perceber que, de fato, a vaidade desses profissionais é muito grande. Falar com
os jornalistas, aparecer na televisão, posar para fotos e alimentar os feeds das redes sociais era
uma agenda diária e intensa para os chefs presentes. De outra parte, as mesas-redondas e
palestras permitiram que alguns temas de interesse desses profissionais - e do segmento de
restaurantes como um todo - fossem discutidos, como a formação de jovens cozinheiros e a
gestão de negócios em alimentação.
As mesas sobre formação de jovens cozinheiros e tendências do mercado,
infelizmente, mostraram um tom neoliberal carente de senso crítico, mas hegemônico entre os
cozinheiros. Dessa forma, humildade, curiosidade e generosidade eram as características
necessárias para se tornar um grande chef. Também foram contadas e recontadas as histórias
de sucesso daqueles chefs que começaram como "pias" ou como "pés de boi", a trajetória
heroica do cozinheiro: o/a jovem que entra na cozinha sem saber nada, começa lavando louça
8
Dólmã é um tipo de jaqueta justa, o uniforme dos cozinheiros, geralmente branco, com oito ou dez botões. Sua
origem é uma túnica militar. Com a touca ou com o chapéu branco, o traje foi instituído como uniforme de
cozinha por Auguste Escoffier (1846-1935).
28
(o/a "pia"), carregando caixas, levando panelas, que se forma no próprio trabalho e ganha
destaque a partir do próprio talento.
Esse mesmo discurso valoriza a figura do líder, aquele/a que inspira seus
subordinados. Segundo as palavras dos chefs presentes, nem todo cozinheiro vai ser um chef,
nem todo chef vai ser um líder. “Quando nós colocamos o coração naquilo que fazemos,
certamente teremos sucesso”, afirmou um dos presentes, professor universitário em cursos de
Gastronomia. “Humildade e compartilhamento de conhecimentos são fundamentais, assim
como o respeito ao alimento”, disse a coordenadora de um dos principais cursos de
Gastronomia do país.
Durante o evento, o tema empreendedorismo foi recorrente. Os debates sobre
formação profissional e os jovens estudantes de Gastronomia sempre terminavam nesse
assunto, principalmente quando alguns chefs defendiam a importância de se ensinar business
management e noções de empreendedorismo nos cursos, pois “abrir o próprio negócio” é um
objetivo de carreira, possivelmente o principal, associado ao sucesso profissional.
Nesse sentido, participar desse Encontro foi muito enriquecedor para a pesquisa, pois
foi possível conhecer melhor a discussão que se realiza entre os profissionais, suas aspirações
e preocupações, ouvir docentes, coordenadores de cursos, proprietários de restaurantes, chefs
e cozinheiros, estudantes, participar das oficinas e verificar como eles entendem o próprio
trabalho, como ensinam, o que consideram ser importante transmitir para os jovens
estudantes, como se promovem, entender alguns dos valores que norteiam seus trabalhos.
Também ficou evidente como a questão de gênero aparece naturalizada neste tipo de
acontecimento, uma vez que havia pouquíssimas chefs e cozinheiras mulheres, em um
universo eminentemente masculino e branco. No cartaz de divulgação do evento, apenas duas
figuras femininas apareciam, e somente um homem negro. Para minha sorte, uma das
mulheres participantes acabou se tornando uma preciosa informante e uma amiga querida,
justamente em um momento em que ela estava imprimindo novos rumos à sua carreira.
1.2.2. Entrevistas
restaurantes brasileiros que receberam duas estrelas Michelin em 2019 (foram apenas três),
dois estão em São Paulo e um no Rio de Janeiro. Dentre os que possuem uma estrela, são
cinco cariocas e nove paulistanos9.
De acordo com os dados da Rais 2018, apenas a cidade de São Paulo tinha 12,9% do
total de trabalhadores formalmente empregados como cozinheiros no segmento de
restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação no país. Enquanto a diferença entre
homens e mulheres empregados nesse segmento no Brasil é da ordem de 32,3% de homens
para 67,7% de mulheres, na capital paulista essa diferença é muito menor e a relação se
inverte: são 51,8% homens e 48,2% mulheres. No capítulo 3, aprofundarei a discussão sobre
as desigualdades de gênero nesse segmento, mas, por ora, é interessante notar que a capital
concentra uma parcela significativa da força de trabalho e que esta possui algumas
características diferentes do resto do país.
Conversar com os cozinheiros e cozinheiras revelou ser uma tarefa mais árdua do que
eu inicialmente havia imaginado. São pessoas difíceis de contatar. Por um lado, seus horários
de trabalho e rotinas dificultam interações sociais fora do local de trabalho. Por outro, a
conversa ou a aproximação no próprio local de trabalho pareceu ser praticamente impossível.
Em um primeiro momento, fui a vários restaurantes e conversei com chefs e
cozinheiros. Dei a eles meus contatos, anotei telefones, telefonei. Nenhuma resposta ou
evasivas, encontros eram marcados e desmarcados, nenhum contato dessa natureza resultava
em uma conversa. Fui a uma pizzaria, conversei com a proprietária e ela pediu que o chef e a
cozinheira conversassem comigo durante seus intervalos, na própria pizzaria. Foram
entrevistas diametralmente opostas. O chef, orgulhoso, falante. A cozinheira, tímida e
reticente. Lição aprendida: entrevista no local de trabalho não funcionaria. Entrevista
solicitada pelo patrão ou patroa também não.
Um desses encontros no próprio restaurante ocorreu em um pequeno estabelecimento
no bairro do Paraíso, em São Paulo, área nobre, próxima à Avenida Paulista. Eu já conhecia o
local e sabia que uma de suas principais “marcas” era sua pequena capacidade, apenas seis
mesas e, portanto, atendia a um número limitado de clientes por dia. E mais: só uma
cozinheira. Conversei com uma das proprietárias, irmã da cozinheira. Expliquei sobre a
pesquisa e pedi uma entrevista. Para minha surpresa, a conversa com as irmãs durou duas
9
O Guia Michelin é considerado o guia gastronômico mais importante do mundo. Ele surge por iniciativa de
André Michelin, dono da fábrica de pneus, em 1900. Como uma forma de promover passeios automobilísticos
pelo interior da França, o guia listava em ordem alfabética as cidades em cujas garagens e hotéis poderiam
interessar ao motorista. Apenas em 1933 o guia passa a distribuir cotações aos restaurantes por toda França. O
Guia confere uma, duas ou três estrelas aos melhores e mais sofisticados restaurantes do mundo. Receber três
estrelas Michelin é considerado uma grande conquista e uma honra para um chef.
30
horas, que passei ouvindo suas histórias de infância no Líbano enquanto elas me ofereciam
tabule, hommus e babaganush. Algumas perguntas do roteiro foram respondidas, mas, em
determinado momento tornou-se impossível continuar a conversa, pois elas criaram um
diálogo próprio, com suas memórias. Sobrinhos e sobrinhas chegaram. Virou uma reunião
familiar.
Diante das dificuldades para encontrar cozinheiros e cozinheiras, passei a acionar
minhas redes pessoais, conversar com amigos e conhecidos para pedir contatos de pessoas
que trabalhavam em restaurantes. Algumas entrevistas foram agendadas, algumas conversas
desenrolaram. Mas a técnica da bola de neve não funcionou. Quando um entrevistado dizia
“vou passar um contato” ou “vou falar sobre sua pesquisa com alguém”, eu nunca mais
recebia uma mensagem ou uma resposta.
Discuto os pormenores das entrevistas, o contexto de sua realização, assim como faço
comentários sobre os entrevistados no Anexo Metodológico II.
2. O desenho da tese
gastronomia, assim como seu impacto nesse mercado de trabalho e sua imbricação nas
próprias relações de trabalho.
O terceiro capítulo se debruça sobre a divisão sexual do trabalho nas cozinhas
profissionais contemporâneas. Considerando principalmente as entrevistas com homens e
mulheres cozinheiros/as, descrevo como a divisão sexual do trabalho se expressa na separação
de trabalhos de homens e mulheres, na cozinha doméstica e profissional, como o trabalho de
preparo de alimentos constitui um “gueto” masculino, apesar da maioria de mulheres em suas
fileiras, e como a construção social da cozinha profissional como um espaço masculino torna-
o hostil para as mulheres, o que se concretiza na forma de vários mecanismos que as excluem
dos postos de comando e chefias, e por consequência, do reconhecimento público e do
prestígio.
Finalmente, o quarto capítulo é dedicado a um achado do campo que não estava
previsto no desenho inicial da tese, os novos contornos do trabalho culinário e o
“empreendedorismo gastronômico”. No cenário mais amplo das mudanças no mundo do
trabalho, e no caso específico do Brasil, de ataque às leis trabalhistas e enfraquecimento das
relações já precárias, o trabalho por conta própria aparece como uma alternativa cada vez
mais viável e revestida de um discurso “empoderador” muito sedutor. Especialmente para as
mulheres, como veremos, a atividade autônoma oferece mais alternativas para a conciliação
entre o trabalho doméstico e o profissional, remunerado e não remunerado, e articula a ideia
de um trabalho mais autoral, mais criativo, mais associado à sua própria identidade, mesmo
quando ele representa, na prática, mais risco, mais tempo e, por fim, mais trabalho.
Finalmente, procuro retomar os objetivos propostos na conclusão da tese. Esta tese
também conta com dois anexos metodológicos, que trazem os pormenores e comentários
sobre as entrevistas e os/as entrevistados, assim como as informações obtidas a partir da Rais.
32
Este capítulo começa com uma recapitulação histórica do trabalho dos cozinheiros
como o conhecemos hoje, desde as cozinhas dos castelos do Antigo Regime na Europa,
principalmente na França. Nesse histórico, analiso o surgimento do restaurante enquanto
instituição moderna e a importância que ele passa a ter na sociedade burguesa pós-Revolução
Francesa, que mantém muito de seus elementos distintivos e característicos até os dias de
hoje, pelo menos no mundo ocidental.
Em seguida, trago essa história para o lado de cá do Atlântico, retomando alguns
elementos da história da alimentação no Brasil e o surgimento dos restaurantes aqui,
principalmente nos emergentes centros urbanos do Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro), para
refletir sobre a atividade dos cozinheiros dentro das nossas especificidades de mercado de
trabalho, até a atualidade.
A segunda parte do capítulo refere-se às descrições dos processos de trabalho,
conforme detalhadas e narradas pelas pessoas entrevistadas, considerando três ocupações na
hierarquia da cozinha: assistente ou auxiliar, cozinheiro/a e chef. A descrição dos processos de
trabalho é fundamental para ilustrar as discussões que serão realizadas nos capítulos
subsequentes e para dar ao/à leitor/a uma ideia do que consiste, de fato, o trabalho em
cozinhas profissionais.
1. Histórico da profissão
Tradução livre do original: “Aux cuisinières la cuisine bourgeoise et de ménage. Aux cuisiniers la haute
10
anedóticas, que recontam os mitos originários dos alimentos são muito consumidos nos dias
de hoje. Trata-se de uma história profundamente eurocentrada.
Essa supervalorização da história da alimentação e de costumes europeus, sem dúvida
mais uma herança do nosso passado colonial e do próprio pensamento colonial, que sobrevive
até hoje, ainda está associada à nossa noção de civilização. Em “O processo civilizador”, Elias
(1994) mostra como se dá a educação do gosto, como ele se transforma e vai sendo construído
com o tempo. Ele afirma que “o comportamento social e a expressão de emoções passaram de
uma forma e padrão que não eram um começo, que não podiam em sentido absoluto e
indiferenciado ser designado de ‘incivil’, para o nosso, que denotamos com a palavra
‘civilizado’” (ELIAS, 1994, p.73). Ao avaliar os chamados “costumes medievais”, Elias
observa a centralidade dos atos de comer e beber, pois era à mesa que se dava o convívio
social, e daí a importância de livros e manuais que prescreviam os comportamentos para tais
ocasiões.
Na segunda metade do século 17, na França, os costumes, comportamentos e modas da
corte espalhavam-se continuamente por classes médias altas, onde eram imitados e mais ou
menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. No caso francês, "a
intelligentsia burguesa e grupos importantes da classe média foram atraídos relativamente
cedo para a sociedade cortesã" (ELIAS, 1994, p.51). Ainda que o Antigo Regime se baseasse
na diferenciação social que se assentava sobre a aristocracia e a ascendente burguesia ou
classes médias, ao longo de muitos anos a presença burguesa se fez presente na corte, e seu
poder aquisitivo garantia que ela acessasse os mesmos bens que a nobreza orgulhosamente
exibia (obras de arte, roupas e vestimentas, móveis e imóveis, cavalos, cachorros etc.).
A burguesia e as classes médias procuravam mimetizar os comportamentos
aristocráticos como forma de se diferenciarem dos estratos "inferiores", dos plebeus comuns,
dos camponeses. Elias observa que civilisé se refere ao termo que os membros da corte
utilizavam para designar seus próprios comportamentos, o refinamento de suas maneiras
sociais, quando comparavam-se com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente
inferiores” (ELIAS, 1994, p.54).
A sociedade de corte francesa é a figuração central da estrutura de dominação
aristocrática, nas relações de poder e interdependência que se estabelecem entre os indivíduos
e, portanto, na configuração (ELIAS, 2001). As interdependências suscitadas pela luta entre a
aristocracia e a burguesia geram uma conduta baseada no crescente autocontrole das pulsões e
impulsos naturais. O comportamento individual está exposto à vigilância permanente de todos
os concorrentes que, através da observação, tratam de adivinhar as intenções ou
34
probabilidades de promoção dos demais, e riscos que representam para as posições dos
estabelecidos.
Tal designação e tais comportamentos, na medida em que irradiam pelo tecido social e
se espalham, sempre associados àquelas atitudes desejáveis, àquilo que se deveria ser e
almejar, também ultrapassam as barreiras das classes e, no caso francês, tornam-se
características de um comportamento nacional, como explica Elias:
Tanto a burguesia de corte como a aristocracia de corte falavam a mesma
língua, liam os mesmos livros e observavam, com gradações particulares, as
mesmas maneiras. E quando as disparidades sociais e econômicas
explodiram o contexto institucional do ancien régime, quando a burguesia
tornou-se uma nação, muito do que originalmente fora caráter específico e
distintivo da aristocracia de corte e depois também dos grupos burgueses, de
corte, tornou-se, em um movimento cada vez mais amplo, e sem dúvida com
alguma modificação, caráter nacional (ELIAS, 1994, p.52).
À medida, portanto, que se tornam ordinárias e banais, tais práticas perdem, até certo
ponto, seu caráter de identificação de classe alta. São, em alguma medida, desvalorizados,
porque se tornam comuns. Os que estão acima na estratificação social se veem obrigados a se
esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. “E é desse mecanismo – o
desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, sua leve deformação social,
sua desvalorização como sinal de distinção – que o movimento constante nos padrões de
comportamento na classe alta recebe em parte sua motivação” (ELIAS, 1994, p.110).
Nesse sentido, uma característica fortemente associada à nobreza, às pessoas finas e
educadas, a délicatesse ou delicadeza, "um sentimento altamente desenvolvido de embaraço”
(ELIAS, 1994, p.123) avança dos pequenos círculos da corte para a sociedade da corte como
um todo e, eventualmente, para toda a sociedade. Nas palavras de Elias, "juntamente com uma
situação social muito específica, os sentimentos e emoções começam a ser transformados na
classe alta, e a estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim
modificadas se difundam lentamente pela sociedade" (idem, p.123). Assim, conclui Elias, "a
mudança do comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que
passam sentimentos e atitudes humanas" (ELIAS, 1994, p.124).
Retomo aqui alguns elementos da teoria elisiana para pensar, em termos de sociologia
de longo prazo, a historicidade do que vamos discutir a seguir, a emergência de um espaço
público de alimentação, o restaurante. Em um determinado momento histórico e num
determinado contexto social, surge tal espaço que sintetiza o processo de individualização que
caracteriza o século 19.
35
Há algumas teorias que indicam que a origem do nome se deve ao fato de Boulanger, proprietário da casa
11
Poullies, em Paris, ter afixado em sua porta a inscrição “Boulanger débite de restaurants divins” (em tradução
livre “Boulanger serve caldos restauradores divinos”), referindo-se, principalmente, ao bouillon restaurant, um
caldo de carnes com cebolas e raízes, que já existia desde a Idade Média e ao qual se creditavam poderes
restauradores (FREIXA e CHAVES, 2015, p.112).
Consomê: do francês consommé. “Caldo de carne ou ave enriquecido, concentrado e clarificado. Deve ser
12
preparado em fogo lento e desengordurado com grande capricho” (CÔRREA, M. F. Dicionário de Gastronomia,
2016, verbete consommé).
36
cardápio, pela opção do serviço a qualquer momento e pela presença feminina entre os que
tomavam caldos” (SPANG, 2003, p.86).
O restaurante nasce diferente das table d’hôte, dos traiteurs e dos cafés. As table
d’hôte, ou tavernas, também eram chamadas de casa de pasto. Ofereciam a comida do dia,
afixadas numa placa, em uma mesa comunal, com preço fixo. Não eram lugares
especializados em servir comida, apesar de oferecerem refeições. Os viajantes que passavam
por esses lugares para repousar, descansar os cavalos (daí o nome “casa de pasto”), beber e
comer, eram obrigados a consumir o que o estalajadeiro tivesse para oferecer: não havia
opção. Em uma grande mesa onde todos se sentavam juntos, os pratos eram servidos e as
pessoas que lá estavam comiam, muitas vezes compartilhando talheres (quando havia) e
pratos.
Nas estalagens, os turistas e viajantes não comiam bem, “porque a comida não é bem
feita, ou porque eles servem todos os dias a mesma coisa e raramente oferecem alguma
variedade”13 (SPANG, 2003, p.18). Segundo Nemeitz (apud SPANG, 2003), os viajantes
encontravam-se diante de duas instituições exclusivas: uma casa particular ou a table d’hôte
diária. Na realidade do século 18, esta última era mais um tipo de pensão, hostil a seu modo.
“Uma refeição servida em uma grande mesa, sempre à mesma hora marcada, e na qual os
comensais tinham pouca chance de escolher ou pedir pratos especiais, a table d’hôte não raro
era um ponto de reunião regular ao meio dia para artesões e trabalhadores locais, velhos
amigos e antigos moradores de um bairro” (SPANG, 2003, p.19).
Os traiteurs vendiam pratos já preparados que podiam ser levados para casa, por
exemplo, a rotisserie. Não era um lugar aonde as pessoas iam para fazer uma refeição, apenas
para comprar a comida e levar embora. Os traiteurs “além de oferecerem comida e entregá-la
em casa ou nos quartos de hotéis, também alugavam toda a aparelhagem de jantar” (FREIXA
e CHAVES, 2014, p.112). E os cafés vendiam bebidas, principalmente café, chá e licores. Não
ofereciam refeições.
13
NEMEITZ, 1727 [Joachim C. Nemeitz, Séjour de Paris, c’est à dire, Instructions fidèles pour les voyageurs de
condition [Leyden: 1727] p.58] apud SPANG, 2003.
37
O restaurante surge como uma instituição moderna por excelência, porque representa a
ideia também moderna iluminista de indivíduo, de gosto individual. Ele traz a possibilidade
de se comer o que não se come em casa, para além da comida de todos os dias, a ideia de
satisfazer um gosto pessoal. O restaurante institui a refeição individual, que começa com um
38
regramento dos banquetes, mas que se intensifica nesse lugar onde é possível comer sozinho.
Também tinha um cuidado na recepção dos clientes, algo próximo a um atendimento
personalizado.
Ainda no século 18, considerando o caráter restaurador e a elaboração de pratos
voltados para os doentes, Spang afirma que “Embora se constituísse num ideal compartilhado
pela burguesia e a nobreza, a obtenção da saúde pela ciência e por uma existência simples
ainda servia como um indicador social, como um modo de diferenciar o urbano sofisticado do
trabalhador grosseiro capaz de digerir tudo que fosse colocado diante dele” (idem, p.55).
Os restaurantes passaram a refletir uma nova cultura urbana, um novo tipo de lugar
para encontros sociais, um novo espaço público que misturava a privacidade com “estar em
sociedade”. A revolução dos hábitos à mesa proporcionada pelos restaurantes estava, na
verdade, ligada à diferenciação social. As pessoas que procuravam se diferenciar não mais
desejavam, ou melhor, suas frágeis constituições e “delicadeza” física, moral e estética não
permitiam que continuassem frequentando estalagens e tabernas.
Flandrin (2009) analisa o progresso do individualismo a partir do século 17, que se
expressa pelos modos e utensílios à mesa: pratos, talheres e copos, cada pessoa utiliza o seu
próprio, em contraposição às tigelas comuns onde os convivas se serviam com as mãos. Esses
modos e a forma de utilizar esses utensílios tinham, segundo o autor, a função principal de
promover a distinção social dos costumes.
Nesse novo estabelecimento, o preço é importante: são refeições para quem pode
pagar. Isso está em consonância com o surgimento da cultura burguesa e da consolidação da
burguesia como classe dominante. Ao contrário dos banquetes aristocráticos, em que era
preciso ser convidado, o restaurante corresponde ao ideal iluminista e burguês da igualdade:
ele é aberto a todos, desde que possam pagar. "O sucesso dos restaurantes significava que os
prazeres da mesa não eram mais exclusividade dos pouco felizardos convidados para os
grandes banquetes em Versalhes e outros palácios" (DEJEAN, 2010, p.149).
39
Os preços eram para pratos individuais, não eram para dividir entre várias pessoas. Em
uma época em que emergem necessidades individuais, é preciso saciá-las individualmente
também. “Talvez esta seja a inovação mais importante do restaurante e do menu à la carte:
um indivíduo, independentemente da classe social, tem a chance de comer como um rei”
(TRUBEK, 2000, p.37). O próprio espaço do restaurante revelava as relações sociais que
estavam implicadas em seu sucesso. Mesas individuais, com toalhas, ao mesmo tempo perto e
longe umas das outras. Podia-se ver e ser visto.
Esses primeiros restaurateurs de Paris eram, em grande parte, os
beneficiários – e não as vítimas – do sistema de privilégios e status do
Antigo Regime. Como comerciantes e empresários prósperos e tranquilos,
eles compartilhavam a vida intelectual e cultural de Paris; entre seus clientes
estavam duques e atrizes, clérigos e filósofos; e entre os amigos,
funcionários públicos subalternos, advogados e outros comerciantes
(SPANG, 2003, p.39).
No original: «Les restaurants se sont multipliés à Paris dans les premières décennies du XIXe siècle pour
14
satisfaire la demande d’une clientèle bourgeoise séduite par la possibilité de consommer sur les tables
individuelles des mets et des plats variés et de les choisir sur une carte en en connaissant les prix.»
40
"A cuisine francesa criou um novo tipo de conviva, não mais alguém que
simplesmente comia, mas alguém que o fazia com elegância e discernimento, um indivíduo
para quem apenas os franceses têm um termo específico: gourmet" (DEJEAN, 2010, p.152). E
os gourmets passam a ter uma importância fundamental no quesito da diferenciação social:
"policiar o mundo das iguarias a fim de ditar, em todas as categorias - dos restaurantes aos
vinhos -, o que está na moda e o que não está" (DEJEAN, 2010, p.153).
Para corresponder ao público que o frequentava, o restaurante começa a ser decorado
com mobílias requintadas, espelhos, tecidos finos, passa a oferecer vinhos caros e outras
“iguarias”. Desde seu nascimento, na verdade, a hierarquia entre os restaurantes reproduz a
hierarquia social. Havia os restaurantes à la carte destinado aos ricos, que não eram muito
numerosos. Havia também aqueles destinados às “bolsas médias”, e ao lado dos
estabelecimentos luxuosos e de preço fixo, os “bouillons”, que recebiam uma clientela menos
afortunada (DROUARD, 2015).
É importante salientar uma característica do restaurante, a separação da cozinha. O
lugar onde os alimentos são preparados é separado do espaço do convívio, não é o mesmo
local onde o alimento vai ser consumido. Não há mais um caldeirão no fogo.
... o restaurante – que separava a cozinha, onde as comidas ficavam
escondidas, da sala de jantar, onde os pratos só apareciam no momento em
que eram solicitados – oferecia a variedade de algo invisível e desconhecido.
Sem obrigar o comensal, homem ou mulher, a realizar o ‘trabalho forçado’
de compor uma refeição de forma independente e sem surpreendê-lo com
uma conta inesperada, o cardápio impresso do restaurante tornou possível
transações padronizadas num tempo em que preços impressos ou despesas
fixas não eram a regra na maioria das lojas e mercados (SPANG, 2003, p.98-
99).
“Nem ofício nem profissão, a cozinha era nessa época (1800-1840) uma atividade
doméstica essencialmente feminina. As famílias burguesas tinham cozinheiras a seu serviço15”
(DROUARD, 2015, p.35). As mulheres estavam relegadas ao trabalho culinário doméstico ou
à cozinha dos não nobres, ou seja, o trabalho culinário sem prestígio e nem visibilidade, na
cozinha da própria casa ou de outrem – especialmente famílias burguesas.
Drouard afirma que o mundo dos cozinheiros não escapa à divisão sexual do trabalho.
“Às cozinheiras a cozinha burguesa e doméstica. Aos cozinheiros a alta cozinha codificada
por Carême no início do século 1916” (DROUARD, 2015, p.36). E vai além, demonstrando
que entre os chefs e cozinheiros ao longo do século 19 havia um consenso de que as mulheres
eram capazes apenas de cozinhar em casa, sem jamais atingir o nível da haute cuisine que
pertence exclusivamente aos chefs. Em realidade, associar a cozinha às mulheres era uma
forma de ofender os cozinheiros homens17, de diminuí-los.
Nesse sentido, como uma estratégia para constituir um coletivo profissional e valorizar
seu métier, os cozinheiros procuram se afastar e se dissociar o máximo possível da cozinha
doméstica, pois receavam uma desvalorização de sua profissão e uma baixa de seus salários, à
medida que mulheres fossem reconhecidas como profissionais, e seu trabalho, portanto,
equiparado ao delas. A corporação de cozinheiros, então, ataca suas rivais.
Drouard (2015: 37) cita Philéas Gilbert, em um artigo publicado no jornal L’Art
Culinaire, em 1883, intitulado “Cozinheiros, cozinheiras e jornadas”, no qual ele afirma:
Alguns disseram que a cozinha era o domínio da mulher. Eu concordo em
certa medida, pois como há embrulho e embrulho, há cozinha e cozinha, e
nós não contestamos às donas de casa o caldeirão e o ensopado de ovelha
tradicionais. Que a maior parte das cozinheiras se atenha a esse tipo de
preparo e não pretende se envolver em nossos trabalhos, primeiramente
muito cansativo para sua constituição de mulher, em seguida extremamente
estendida/elaborada para seus conhecimentos fracos, e em que elas não
podem corresponder, o que quer que elas façam, senão uma muito
imperfeita, eu diria mesmo uma imitação muito ruim (GILBERT apud
DROUARD, 2015)18.
15
Tradução livre do original: “Ni métier ni profession, la cuisine était à cette époque [1800-1840] une activité
domestique essentiellement féminine. Les familles bourgeoises avaient à leur service des cuisinières”.
16
Tradução livre do original: “Aux cuisinières la cuisine bourgeoise et de ménage. Aux cuisiniers la haute
cuisine codifiée par Carême au début du XIXe siècle”.
17
“Les cuisiniers sont victimes de préjugés et de mépris. On invoque tour à tour leurs origines sociales, leur
absence de formation et le fait que la cuisine est une affaire de femmes” (DROUARD, 2015, p.18).
18
Tradução livre do artigo "Cuisiniers, Cuisinières et jornaux", de Phileas Gilbért, conforme citado por Drouard
(2015, p.37):“Que la majeure partie des cuisinières s’en tienne là et ne prétend pas s’immiscer dans nos
travaux, d’abord très fatigants pour leur complexion de femmes, ensuite beaucoup trop étendus pour leur faibles
connaissances, et dont elles ne peuvent rendre, quoi qu’elles fassent, qu’une très imparfaite, je dirais même une
très mauvaise imitation”.
42
Joan DeJean (2010: 131) afirma que o processo que levou a França a se transformar
em um mundo gastronômico à parte, um lugar onde a preparação de alimentos pode ser
literalmente uma questão de vida ou morte, teve início em 1651, com a publicação de um
livro de culinária, Le Cuisinier Français (O cozinheiro francês). "Na verdade, o primeiro
grande livro de culinária, o primeiro livro de culinária moderno, e o precursor de uma
revolução culinária que fez com que a comida se tornasse cuisine e a cuisine se tornasse
francesa". Este livro desencadeou a revolução culinária que culminou na criação da
gastronomia.
Trubek (2000) sublinha a importância dos chefs que passaram a escrever livros e,
dessa maneira, decodificar a haute cuisine. O “mito de origem” dos livros, segundo ela,
poderia corresponder a duas possibilidades: que o primeiro livro de cozinha seja “Ouverture
de Cuisine”, de Casteau (1604), onde a cozinha aparece, pela primeira vez, codificada;
enquanto a hipótese mais aceita é a de que o primeiro livro de cozinha é “Le Cuisinier
Français” (1651), de um autor identificado como La Varenne. Independentemente de qual foi
o primeiro, Le Cuisinier Français foi o mais importante, com uma abordagem mais
sistemática, que levou o autor a ser considerado o fundador da cozinha clássica francesa
(TRUBEK, 2000, p.11).
43
Figura 1 - “Le cuisinier François”, de La Varenne, publicado em 1651, considerado o primeiro livro
de culinária19.
A partir de 1651, "cozinhar e comer passaram cada vez mais a ser considerados não
uma simples necessidade, mas um território em que a sofisticação era não só possível, mas
desejável" (DEJEAN, 2010, p.132). Iniciou-se, assim, o mais longo reinado de qualquer
tradição no mundo da culinária, a "superioridade" da culinária francesa frente a outros estilos
de cozinhar. Os franceses eram considerados os únicos verdadeiros mestres da haute cuisine.
A autora chama atenção para o fato de que o livro de La Varenne se refere a cuisinier
(cozinheiro) e não cuisinière (cozinheira), e as casas de família refinadas passam a ter homens
servidos segundo uma ordem). No início, o serviço à francesa era "um ritual orquestrado que
ditava com precisão absoluta tanto a ordem em que os pratos deveriam ser servidos quanto à
disposição simétrica dos pratos na mesa para cada etapa da refeição" (DEJEAN, 2010, p.145).
Também foram escritos livros que visavam à mulher burguesa e suas empregadas
(geralmente mulheres), com o objetivo de prover informações práticas e acessíveis sobre
cozinha para um público feminino. No final dos 1800, chefs profissionais também publicavam
livros visando esse público. Principalmente com o objetivo de organizar jantares e eventos em
casa, os livros prescreviam como cada prato deveria ser servido, a bebida que os
acompanhava, como a mesa deveria estar organizada e disposta, como os anfitriões deveriam
se comportar, entre outros comportamentos; afinal, saber como receber e servir revelam um
traço distintivo.
Amy Trubek (2000) questiona por que a culinária francesa é ainda tão poderosa no
mundo da comida elegante. Tanto na Europa quanto na América do Norte, é possível
encontrar restaurantes que são “da França”, associados aos destinos gourmets e “fine dining”,
algo que poderia ser traduzido como “bons restaurantes”, ou melhor, excelentes.
Os franceses também podem ser encontrados nas escolas de culinária, inclusive aqui
no Brasil, como nossos informantes disseram, com algum ressentimento: “O que a gente
aprende no curso que é toda teoria técnica, ele vem da escola francesa, por exemplo ”21. Outro
depoimento sobre o conteúdo do curso era: “Então tipo novas tecnologias, nas faculdades
você não vê. Novos produtos de gastronomia, você não vê. Você vê o básico que é aquela
gastronomia francesa clássica tradicional. E a gente já passou disso”22.
Além de aprender as técnicas de preparo com nomes franceses, os cinco molhos
“mães” que também são franceses, os cozinheiros devem usar a roupa branca bem passada, a
calça xadrez e a touca branca, quase idênticos aos dos cozinheiros franceses do século 19, que
correspondem à padronização do uniforme proposta por Auguste Escoffier. Também credita-
-se à Escoffier a organização do trabalho nas cozinhas modernas, um legado fundamental que
está presente nas cozinhas até os dias de hoje e que, provavelmente, pode ser um dos
elementos para a importância da culinária francesa no mundo. Os pilares da alta gastronomia
francesa são os ingredientes, técnicas e métodos que emergiram das casas nobres do século 18
na França (TRUBEK, 2000, p.13).
Amy Trubek aponta três razões pelas quais a haute cuisine que se espalha pelo mundo
é francesa: 1) o consumo nunca permaneceu exclusivamente dentro das cortes e membros da
elite francesa, mas foi estendido para as elites em toda Europa; 2) a cozinha foi rigorosamente
codificada no desenvolvimento de dois gêneros literários: livros de receita e jornais culinários
e revistas; e, finalmente, 3) no século 19, a haute cuisine francesa já se identificava com a
mestria profissional em toda Europa e nos Estados Unidos.
A autora sustenta a tese de que a disseminação das técnicas e receitas da culinária
francesa se espalham pelo mundo e se tornam dominante precisamente porque elas são
profissionais, porque quem as dissemina são os chefs e cozinheiros profissionais, um tipo de
culinária associada à esfera profissional, e não doméstica. Mais do que isso, ela afirma que,
desde o começo, a cozinha profissional dependia de patronagem internacional e lugares ao
redor do mundo para sobreviver e florescer.
A palavra escrita ajudou chefs passarem de anônimos domésticos nas casas
da nobreza para especialistas para o público porque seu conhecimento podia
espalhar-se por qualquer lugar. Esses conhecimentos culinários, em última
instância, definiram as práticas da cozinha profissional no mundo ocidental23
(TRUBEK, 2000, p.29).
Trubek afirma que foi assim que a cozinha francesa viajou o mundo e causou impacto,
via livros, jornais, revistas e chefs franceses. Mas a cozinha burguesa, associada ao lar, não
viajou tão cedo e nem tão longe porque não era necessariamente associada à expertise. Até os
1800, era apenas nos limites das cozinhas aristocráticas que um chef poderia, de fato,
desenvolver sua arte culinária. Mas era também nesse ambiente, sob o patrocínio de um
nobre, que a cozinha sofisticada, conforme a conhecemos hoje, foi desenvolvida e refinada.
Para compreender como a gastronomia francesa se espalhou pelo mundo, no que a
autora chega a chamar de “French culinary imperilism” (TRUBEK, 2000, p.65), é preciso
olhar para os trabalhadores, principalmente para os chefs, que viajaram pelo globo (desde os
anos 1600, na realidade), “colonizando” as cozinhas. Trubek identifica um discurso de que
toda grande cozinha ou culinária chique demanda um chef francês, mas afirma que esses
profissionais não levavam vidas muito elegantes. Suas práticas diárias demandavam muito
fisicamente e o fato de que esse trabalho era compreendido como um tipo de trabalho manual
significava que seu status social era bem baixo.
Nesse sentido, os chefs estavam interessados em se apropriarem do status de elite eles
mesmos. O discurso desses chefs, que se levavam muito a sério, assim como seu métier, passa
por uma necessidade que eles tinham, de que os consumidores acreditassem na cozinha
23
Do original: “The written word helped chefs move from being anonymous domestics in the homes of the
nobility to being experts for the public because now their knowledge could spread anywhere. These culinary
knowledge ultimately defined professional cooking practices in the Western world”.
48
superior da França, porque essa era a chance deles de entrarem nos domínios da elite a qual
eles serviam. Alain Drouard (2015) também encontra esse desejo por parte dos chefs e
cozinheiros franceses, que segundo ele, até a primeira metade do século 19, eram
desconhecidos – não tinham identidade nem existência social (DROUARD, 2015, p.33).
Entretanto, o prestígio da cozinha francesa ao redor do mundo garantia a alguns chefs
a possibilidade de conseguir bons salários em outros países, o que explica que muitos deles
tenham passado anos fora da França e, em alguns casos, até toda a sua carreira (isso ainda no
século 19) (TRUBEK, 2000, p.77). Analisando a emergência das associações profissionais e
jornais da categoria, partindo de Paris, mas destinadas a cozinheiros franceses no mundo todo,
Trubek afirma que dois temas eram recorrentes nas agendas das associações e nos jornais:
preservar e promover o poder e a integridade da haute cuisine francesa e elevar o status da
profissão.
Essa afirmação está em consonância com os achados de Alain Drouard em
documentos históricos semelhantes, que revela uma luta que começa pelo reconhecimento da
condição de trabalhadores, a denúncia das péssimas condições de trabalho, as diversas
doenças e adoecimentos que decorrem dessa condição, a corrupção dos escritórios de
colocação profissional (ligados aos patrões e proprietários), assim como a demanda por
escolas de formação profissional e a regulamentação do trabalho dos aprendizes (DROUARD,
2015, p.67).
A regulamentação do trabalho, nessa época, passava obrigatoriamente pelas condições
de trabalho nas cozinhas. Desde o começo, os cozinheiros organizados exigiam melhores
condições de higiene e asseio nos estabelecimentos, e por muito tempo foram ignorados. No
final do século 19, a administração municipal contrata uma pesquisa sobre as condições de
trabalho dos cozinheiros, ou melhor, sobre a higiene das cozinhas, conforme demanda da
Chambre Syndical24. Segundo a investigação de Drouard, o relatório final comprovava a falta
de higiene e insalubridade, assim como as consequências para a vida e saúde dos
trabalhadores.
Os laudos médicos apontavam incontáveis problemas ocasionados pelas condições de
trabalho, como bronquite, pneumonia, congestões pulmonares, ataques de reumatismo agudo,
assim como o calor sufocante e exaustão, que levava os cozinheiros ao abuso do álcool
(DROUARD, 2015, p.80). A descrição do “cozinheiro dos reis e rei dos cozinheiros”, Antonin
A Chambre Syndical des cuisiniers é criada em 20 de setembro de 1872 (DROUARD, 2015, p.72).
24
49
Carême, sobre sua própria rotina como chef, ilustra bem a situação das cozinhas profissionais
desde o fim do século 18:
O cozinheiro, muito frequentemente, trabalha a vida inteira no subsolo, onde
um dia falso de luzes artificiais enfraquece a visão, onde condensações e
resíduos aceleram o reumatismo e onde a vida é muito infeliz. Se as cozinhas
são no primeiro andar e o cozinheiro mais saudável, mesmo assim, em geral,
só o que vê são quatro paredes e o próprio reflexo no cobre polido, e tudo o
que respira são vapores e fumaça de carvão. E aí você tem o que é a minha
vida como chef! (CARÊME apud KELLY, 2005, p.40)
Não por acaso, Carême morre relativamente jovem, aos 50 anos, em razão de
problemas pulmonares decorrentes da vida fechado em cozinhas que ainda funcionavam com
fornos e fogões a lenha25. A arquitetura neoclássica da época também contribuiu para o mal
que atingia os cozinheiros, uma vez que a “moda” era que as cozinhas se localizassem abaixo
da casa, abaixo do nível da rua mesmo, o que garantia um ambiente confinado e sufocante,
repleto de vapores de monóxido de carbono. A ausência de janelas objetivava manter a
comida quente.
A insalubridade do trabalho e os perigos que ele oferecia à saúde dos cozinheiros era
um tema recorrente e muito importante para a organização dos cozinheiros. Ainda segundo
Drouard (2015: 83), em 1888, “se comparadas as taxas de mortalidade dos cozinheiros às dos
adultos parisienses de 20 a 50 anos, a mortalidade dos cozinheiros seria duas vezes maior”.
Trubek aponta para a importância de que os chefs franceses, na virada do século,
percebessem a necessidade de manter a reputação elitista do seu trabalho, pois eles poderiam
ser condenados ao esquecimento e à irrelevância na era pós-industrial, como aconteceu com
outras ocupações, como os fazedores de guarda-chuvas ou de chapéus (TRUBEK, 2000,
p.86). Os chefs empreenderam um esforço para se configurarem enquanto grupo profissional,
entendendo que era importante criar um mercado para as suas atividades e proteger o seu
25
Kelly (2005) descreve a trajetória de Antonin Carême, o menino pobre que começou a trabalhar nas cozinhas
como ajudante de confeiteiro, tornou-se o maior cozinheiro de seu tempo e uma figura mítica da gastronomia até
a atualidade. As verdadeiras estrelas da cozinha francesa do período pós-revolucionário não foram os
restauranteurs, mas sim os confeiteiros (pâtisssiers). É curioso notar que, apesar do furor revolucionário, o luxo
da confeitaria sobreviveu incólume, nunca tendo sido vítima de um ataque político. Nascido 16º filho e batizado
Marie-Antoine Carême em Paris, foi abandonado pelos pais em 1792, logo depois da Revolução em 1789,
precisamente quando o cotidiano parisiense era tomado pelo terror e caos, massacres e condenações à guilhotina.
Foi acolhido por um cozinheiro que lhe deu casa e comida em troca de serviços domésticos. Antes de completar
10 anos, foi admitido como ajudante de cozinha mirim numa taberna, o que era absolutamente normal. Embora
ainda fosse menor de idade, Carême ficou conhecido em toda a Paris como extraordinário confeiteiro. No
inverno de 1803 para 1804, ele abriu a própria confeitaria. Aos 25 anos, havia se tornado uma figura conhecida
entre os chefs e gourmets da Paris napoleônica. Assim como Brillat-Savarin, Carême pretendia criar uma
“legislação” da gastronomia, que explicasse aos aspirantes da nova burguesia, em detalhes, os segredos de sua
arte. E ele o fez: publicou Le pâtissier royal parisien em 1815, sua obra ainda hoje considerada referência para a
confeitaria.
50
corpus de conhecimentos. Mas o fato de que cozinhar é uma atividade mundana e comum na
esfera doméstica inviabiliza, em alguma medida, essas estratégias de profissionalização.
Nesse sentido, ela considera que as associações e os jornais foram vitais para o processo de
profissionalização (TRUBEK, 2000, p.94).
Tais estratégias, entretanto, não eram gender neutral, isto é, tinham um componente
que remete às relações sociais de sexo e à tensão que as perpassa. Harris e Giuffre (2015: 18)
retomam a história dos cozinheiros a partir da história da gastronomia na França e afirmam
No Brasil não houve uma associação entre gastronomia e identidade nacional com a
mesma intensidade que na França, na Itália, no México ou em outros países (COLLAÇO,
2013, p.19). De acordo com a autora, a “fábula das três raças” – a ideia de que o Brasil seria
fruto da miscigenação entre índios, africanos e europeus –, acabou sendo o elemento comum
ao imaginário culinário brasileiro.
A tese de que a cultura alimentar brasileira se funda na junção das culinárias indígena,
lusitana e africana é relativamente hegemônica entre os estudiosos da gastronomia brasileira
(FREIXA e CHAVES, 2015; AMARAL, 2016). É fundamental considerar, entretanto, que os
portugueses eram profundamente influenciados pelos costumes e modos franceses no que
concerne à alimentação e os modos à mesa, e eles eram a classe dominante no período. Dória
(2014), por exemplo, critica o conceito de miscigenação como é aplicado para explicar a
culinária brasileira, afirmando que ele é confortável, mas carente de poder explicativo, no
sentido que o “afrancesamento” da nossa culinária (que se deu principalmente nos século 19 e
20), é uma influência tão legítima quanto as outras (DÓRIA, 2014, pp.17-18).
Assim, embora exista a explicação que associa as delícias típicas do Brasil (frutas,
tubérculos, animais silvestres, entre outros), associadas à comida dos indígenas quando da
chegada dos portugueses e durante o período das bandeiras (em que os colonizadores
dependiam muito dos saberes e técnicas dos nativos escravizados para sobreviver no
“sertão”), é na casa-grande que se dá a “mistura” entre as culturas alimentares que se tornarão
a gastronomia brasileira. “(...) somente no Rio de Janeiro, havia cozinheiros portugueses
empregados nas casas de fidalgos. As atividades culinárias nos engenhos e nas fazendas – no
espaço privado da elite agrária, por assim dizer – eram desempenhadas principalmente por
escravos” (FREYRE, 1961 apud GALVÃO, 2015, p.196).
Tradução livre de: “The exclusion of women was integral in raising the status of the occupation. By
27
performing this boundary work, men chefs were able to control access to resources and opportunities and aid in
overall professionalization of chefs”
52
Monteleone (2015) discorre sobre um hábito comum na pequena São Paulo até o
século 19, comer içás. Içás são formigas-saúvas. Tal hábito expressava a influência dos
hábitos alimentares indígenas28. Assim, ao longo do século 19, em função da
cosmopolitização da cidade, comer formigas passa a “ser malvisto, tachado como ‘coisa de
caipiras’, de ‘bugre’, de gente não civilizada” (MONTELEONE, 2015, p.35).
Os portugueses conheciam as técnicas culinárias “civilizadas” para preparar e
armazenar a comida, os indígenas conheciam os alimentos aqui disponíveis e comestíveis, os
africanos escravizados, de fato, os preparavam. Ou melhor, as africanas escravizadas. “As
receitas eram das sinhás, mas as adaptações foram feitas com os ingredientes que havia por
aqui, moldados pela mão da escrava africana” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.179). “O
exercício da culinária no Brasil foi sendo constituído pelo trabalho das mulheres negras,
principalmente, e muito vinculado ao espaço doméstico” (GALVÃO, 2015, p.196).
Dessa maneira, forjou-se, ao longo do período do Brasil colônia, uma culinária
brasileira, com ingredientes nativos, mas também oriundos de outras colônias portuguesas na
África e da influência da culinária portuguesa. De acordo com Dória (2014: 147), “A
discussão sobre a formação nacional, inclusive de nossa culinária, pode ser situada entre 1870
e 1930, quando envolveu nos debates as elites econômicas e os intelectuais de todo o país. As
cozinhas regionais emergiram como tema a partir de 1920, e de maneira mais forte no
Nordeste”.
Há diversos elementos “sincréticos” dessa gastronomia brasileira, como os doces
nordestinos que nascem nos engenhos de açúcar (FREYRE, 1997), a comida dos sertanejos,
dos tropeiros, entre outros. Pode-se falar em termos de gastronomia na medida em que a
alimentação já é, nesse momento, uma forma de distinção entre as classes sociais na colônia:
tanto nas casas-grandes dos engenhos como na ascendente burguesia mineradora, mais tarde,
as caríssimas mercadorias portuguesas eram muito mais valorizadas que os produtos nacionais
(como vinhos, toalhas bordadas de renda, louças finas, baixelas e talheres de prata). Enquanto
a alimentação dos escravos consistia basicamente em angu com toucinho de porco, as elites
proprietárias de terra e das lavras de mineração gozavam de alimentação muito mais variada,
cujos gêneros eram cultivados em pequenas fazendas que tinham “roças” de milho, mandioca,
feijão-preto e couve, entre outros (FREIXA e CHAVES, 2015).
Sérgio Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras, dedicou um capítulo às “Iguarias de Bugre”. Ele
28
compara as formigas-saúvas a alimentos que faziam parte da dieta básica do paulistano, como mandioca, feijão e
milho (HOLANDA, 1975 apud MONTELEONE, 2015, p.35).
53
Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e a abertura dos portos
brasileiros às nações amigas, ou seja, com a possibilidade de se importarem produtos não
apenas de Portugal, mas também de outras nações europeias, diversificaram-se os gêneros
alimentícios que passaram a figurar na mesa da corte e das famílias ricas brasileiras. “Os ricos
no Rio de Janeiro, a maioria de origem portuguesa, mesclavam a receita da terra natal com
produtos importados e pratos brasileiros” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.198). Além da
diversificação de produtos alimentícios, no século 19 também intensificou-se o fluxo de
pessoas que vinham à nova capital do Império, o Rio de Janeiro, como viajantes, diplomatas,
comerciantes, artistas, entre outros.
O aumento populacional e a necessidade de produtos fizeram crescer a quantidade de
estabelecimentos que supriam a demanda por alimentação, como padarias, armazéns,
botequins e até as hospedarias que serviam um cardápio simples aos viajantes. “Com a vida
na cidade, e o consumo de alimentos importados ou diferentes, veio um novo estilo de vida”
(MONTELEONE, 2015, p.21).
O texto fundador da gastronomia nacional, no caso brasileiro, é O cozinheiro imperial
ou Nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os seus ramos, publicado em 1839 por
Laemmert & Co., no Rio de Janeiro. O primeiro livro brasileiro de receitas, todavia, não tem
autor. É assinado apenas por R.C.M, identificado com o título de chefe de cozinha, e nada
mais (AMARAL, 2016). O livro compilava não apenas receitas e informações básicas sobre o
preparo de alimentos, mas também “dicas de etiqueta, observações sobre higiene na cozinha e
padrões para receber e servir bem à mesa” (idem, p.75).
Outra publicação importante para a gastronomia brasileira foi O Cozinheiro Nacional,
que se supõe de 1890, também sem autor conhecido. Consta, na obra, uma tabela que permite
a substituição de produtos estrangeiros por ingredientes nacionais (alcachofra por palmito,
castanhas por pinhões, por exemplo), numa tentativa de valorizar a culinária brasileira, ainda
que não esteja clara a intenção de se refletirem os hábitos alimentares da população na época
ou de se mostrar uma cozinha totalmente brasileira (FREIXA e CHAVES, 2015).
54
Figura 4 – O primeiro livro brasileiro de receitas, O cozinheiro imperial ou Nova arte de cozinha da
cidade e do campo em todos os seus ramos, publicado por R.C.M. em 1839.
https://saopaulopassado.wordpress.com/2015/04/02/progredior-o-cafe-restaurante-mais-chic-da-belle-epoque-
paulistana/. Acesso em 04/10/2019.
57
Collaço (2009: 19) “Entre 1870 e 1920 chegou cerca de 1 milhão de italianos, quase 40% da
soma total de imigrantes, em um total de 2,5 milhões. Do total de italianos, 1,4 milhões, 70%
permaneceram em São Paulo.”
Cada região brasileira, cada capital, cada vila que se tornou cidade nesse período, tem
sua própria história sobre como surgiram os estabelecimentos de alimentação, em que medida
foram influenciados pelo contingente imigrante ou não, qual o impacto da criação das
indústrias na oferta de comida preparada. Analisar cada uma dessas histórias, todavia, foge
dos objetivos desta tese e amplia o escopo de análise que restrinjo à cidade de São Paulo31.
Nos anos 1970, as primeiras redes de hotéis internacionais chegam ao Brasil e levam
chefs franceses a liderarem suas cozinhas. Eles não apenas treinam a brigada, mas acabam por
se fixar no país e aqui constroem suas carreiras. Diversos proprietários de restaurantes
procuram renovar e reconfigurar suas cozinhas, aos moldes do que aconteceu com o
Copacabana Palace, e investem em “importar” especialistas. Contratados para assumir as
cozinhas de luxuosos restaurantes, chegam ao Brasil vários chefs franceses, principalmente ao
Rio de Janeiro, como Gaston Lenôtre, Roger Vergé, Claude Troisgros, Emmanuel Bassoleil,
Laurent Suaudeau, o chef confeiteiro Dominique Guérin e o mítico Paul Bocuse32
(AMARAL, 2016).
Considerados “chefs franceses de alma brasileira” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.227),
eles iniciaram uma nova fase da gastronomia brasileira. Muitos deles, inclusive Bocuse,
participaram, na França, de uma verdadeira revolução gastronômica, que ficou conhecida
como nouvelle cuisine: um movimento que ia na contramão da gastronomia francesa
tradicional (aristocrática, baseada em molhos e receitas “sacralizadas”, de longos períodos de
cozimento e pratos elaborados), trabalhando com sabores mais “limpos” e leves, valorizando
os ingredientes e adotando visuais inovadores (AMARAL, 2016).
Esses jovens chefs encontraram no Brasil um cenário muito distinto das cozinhas
profissionais francesas: “As equipes eram mal treinadas, e as técnicas de apresentação e
serviço pareciam ter parado no tempo” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.257). Os trabalhadores
de cozinha, nesse período eram pessoas de origem social pobre, muitos migrantes do Norte e
Nordeste do país, sem treinamento formal. Entretanto, movidos também pelo espírito
civilizador de colonizadores, os franceses “descobriram” os ingredientes brasileiros, os quais,
na visão deles, ainda eram desvalorizados, e passaram a aplicar as técnicas francesas ao
31
Sobre a história da alimentação no Brasil, remeto ao livro de Dolores Freixa e Guta Chaves “Gastronomia no
Brasil e no Mundo” (Ed. Senac, 2015), que utilizei largamente nessa tese.
Paul Bocuse veio ao Brasil em 1977 para dar uma série de palestras e cursos voltados aos profissionais da área,
32
mas sua vinda precipitou também o desembarque de muitos jovens chefs franceses.
59
incorporá-los em suas criações culinárias. A maior parte desses chefs permaneceu no Brasil
indefinidamente, alguns até hoje, abrindo os próprios restaurantes e tornando-se estrelas
culinárias, como é o caso de Claude Troisgros33, que assumiu o lugar de Lenôtre no
restaurante Le Pré Catelan. Não há menção de mulheres chefs francesas nesse movimento,
apenas homens.
Os anos de 1980 e 1990 no Brasil foram marcados por desemprego crescente, “fruto
de intensa reestruturação micro-organizacional em um contexto de intensa mudança
macroeconômica, associada à crise, à nova política regulatória da ação do Estado na
economia, com destaque para célere abertura comercial” (GUIMARÃES et al., 2016, p.26).
A partir dos anos 1990, com a chamada “abertura econômica”, uma agenda de
diversificação das importações permitiu que uma série de produtos inundasse o mercado
brasileiro. Conforme Baltar e Krein (2013: 273), “Ao abrir-se ao comércio e à finança
internacional em um momento de grande interesse por aplicações financeiras em mercados
emergentes, o desempenho da economia foi beneficiado, aumentando o consumo e
diminuindo a inflação, com forte aumento de importações de bens manufaturados”.
Entretanto, essa abertura da economia brasileira para a economia mundial nos anos 1990 teve
efeitos econômicos desastrosos, como os autores revelam:
33
Claude Troisgros é filho de Pierre e sobrinho de Jean Troisgros, os dois irmãos proprietários de um dos mais
importantes e influentes restaurantes franceses do século passado e até os dias de hoje, Les Frères Troisgros,
considerado um dos epicentros da nouvelle cuisine. No Brasil, tornou-se um chef respeitado e reverenciado, sem
o peso do legado do pai e do tio. Celebridade televisiva, hoje ele é jurado e protagonista de diversos programas
culinários no canal de TV por assinatura GNT.
60
(…) é possível afirmar que nos anos 1990 começou a se delinear uma
mudança no perfil do cozinheiro profissional no país. No que tange ao cargo
de chef, à função de líder, houve uma retomada desse espaço por cozinheiros
brasileiros. Mas estes não eram migrantes nordestinos formados por mestres
estrangeiros e sim jovens de estratos médios formados por meio de estágios
e/ou cursos no exterior e que, a partir de então, poderiam entrar na cozinha
também via cursos superiores ofertados no país (FREIXA e CHAVES, 2015,
p.199).
A partir dos anos 2000, o Brasil vive uma dinamização econômica, com aumento do
emprego formal, do consumo interno, do acesso ao crédito e crescimento do setor de serviços.
Segundo dados da Rais, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no período entre 2008
e 2018, houve um crescimento médio de 66% na quantidade de estabelecimentos de
alimentação no Brasil34.
34
Como veremos adiante, trata-se dos estabelecimentos enquadrados nas CNAEs 56.1 e 56.2.
61
A região que apresentou o maior crescimento relativo foi a Região Norte (117%, foi de
3.364 para 7.298 estabelecimentos) e a região com o menor crescimento foi a Sul (48%, de
30.996 para 45.991 estabelecimentos). Todavia a região com o maior número de
estabelecimentos é a Região Sudeste, que em 2018 contava com 124.330 estabelecimentos de
alimentação (e apresentava um crescimento de 59% em relação a 2008). Somente o Estado de
São Paulo teve um aumento de 53,7% desses estabelecimentos entre 2008 e 2018. Esse
crescimento, entretanto, não é homogêneo.
79%
70%
65% 66%
52%
25% 24%
13%
5%
35
“Comer fora de casa consome um terço das despesas das famílias com alimentação”, publicado em 04/10/2019. Disponível em
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25607-comer-fora-de-
casa-consome-um-terco-das-despesas-das-familias-com-alimentacao. Acesso em 18/11/2019.
63
400000
350000
300000
250000
Homens
200000
Mulheres
150000 Total
100000
50000
0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: RAIS/ MTE. Elaboração própria.
Conforme observado por Krein (2013: 7), o mercado de trabalho brasileiro na primeira
década dos anos 2000 foi marcado por um movimento contraditório. De um lado, há uma
melhora em alguns indicadores, como o crescimento do emprego formalizado e consequente
redução da informalidade; a queda do desemprego; uma relativa melhora na renda do
trabalho; e uma diminuição da desigualdade social. De outra parte, também ocorria um
“processo que recria condições mais precárias de trabalho”, entre as quais ele destaca a
terceirização, a intensificação do trabalho, o avanço do componente variável da remuneração
(e, portanto, menor incidência de contribuição social e previdenciária), a insegurança no
trabalho e a alta rotatividade. Krein entende essa tendência como “parte de um movimento de
transformações do capitalismo contemporâneo em que prevaleceram as teses da
flexibilização”.
Essa análise está em consonância com dados elaborados pelo Dieese36 (2019), segundo
os quais o período de uma década entre 2004 e 2014 demonstrou aumento da formalização do
mercado de trabalho, crescimento do emprego assalariado com carteira assinada e redução do
assalariamento sem carteira e dos trabalhadores autônomos. Entretanto, a partir de 2015, em
função da crise econômica, houve reversão desse movimento, com aumento expressivo do
36
“Uma análise do período 2012-2018 sob a ótica do Índice da Condição do Trabalho (ICT – DIEESE)”.
Disponível em https://www.dieese.org.br/analiseict/2019/estudo2012-2018.html. Acesso em 21/11/2019.
64
Gerais, as mulheres recebem salários menores. Ainda de acordo com os dados da Rais,
conforme o salário aumenta, menos mulheres se encontram e maior é a concentração de
homens. No Brasil, enquanto as mulheres são maioria entre os empregados que recebem até 2
salários mínimos, também as faixas salariais que concentram a maioria dos trabalhadores
nesse setor vão diminuindo conforme se avança na escala de salários37.
É importante ressaltar que o objetivo dessa pesquisa não era empreender uma
investigação mais ampla sobre o trabalho em toda e qualquer cozinha, mas a cozinha de
restaurantes e outros serviços de alimentação, como bufês. Cozinhas de hospitais, industriais
ou mesmo de navios implicam ambientes de trabalho completamente diferentes, outro tipo de
produção, outro tipo de organização e condições de trabalho bem distintas.
Em hospitais, ainda que exista um cuidado muito grande e algum investimento em
termos de hospitalidade, o trabalho dos cozinheiros recebe a influência determinante de
nutricionistas e outros especialistas em alimentação para pessoas em estado de debilidade ou
com inúmeras restrições alimentares. Uma vez que tal alimentação é voltada para os
pacientes, pessoas que passaram por procedimentos cirúrgicos, intervenções, ou que estão
enfrentando algum problema de saúde, esse tipo de preparo é orientado por outros princípios,
que não os dos restaurantes comuns. Além disso, em termos de diretrizes de saúde e
segurança, contaminantes e alergênicos, esse tipo de cozinha não pode ser aproximado da
cozinha comercial de restaurante.
A cozinha industrial, entendida como um refeitório ou um bandejão, também não se
enquadra no escopo dessa investigação. A cozinha em larga escala – diferente de um evento
em que um bufê tem que servir centenas de pessoas durante alguns dias – também depende de
uma diretriz dada por um/a nutricionista, implica uma determinada organização do trabalho,
um espaço de trabalho que comporte um grande número de funcionários para servir milhares
de refeições. O ganho aqui é em escala, não qualitativo. O cardápio é limitado a certo número
37
Vale ressaltar que os salários pagos a esses trabalhadores são tão baixos que os dados da Rais são organizados
por faixas de remuneração que seguiriam a ordem “5 a 7SM”, “7 a 10SM”, “10 a 15SM”, “15 a 20SM” e
“Acima de 20SM”, mas a partir da faixa de 4 a 5SM, o percentual de trabalhadores é muito baixo (são 614
trabalhadores, ou 0,22% do total). Também é digno de nota que os dados têm 8.094 trabalhadores não
classificados, ou sem informação correspondente.
66
de elaborações possíveis e deve mudar a cada dia, dentro de uma rotatividade (ou não), e
geralmente tem o arroz e o feijão como base.
O trabalho em cozinhas de navios, embora interessantíssimo do ponto de vista das
condições de trabalho, não será tratado aqui. De forma geral, tal trabalho se dá sob condições
muito específicas. Segundo Paula (2018: 138), “A quantidade e profundidade dos estudos
sobre o assunto [trabalho em navios] não dão conta de explicar a gravidade do problema da
precarização do trabalho em navios de cruzeiro, especialmente ao que toca a jornada
excessiva de trabalho dos tripulantes”. De acordo com essa pesquisadora, o trabalho em
navios se dá por meio de contratos de tempo determinado, seis meses, sem direito a folga e
com jornadas mínimas de 12 horas por dia.
Em sua pesquisa de doutorado, ainda em andamento, a autora investiga o trabalho em
embarcações, mas não olha especificamente para os trabalhadores das cozinhas. Há uma série
de ocupações e trabalhos nos navios, desde as equipes de alimentação (compreendendo o
pessoal de cozinha e de salão), pessoal de limpeza, camareiras, recreadores, vendedores, entre
muitos outros. Pensando especificamente nos trabalhadores e trabalhadoras das cozinhas,
seria complicado comparar os cozinheiros isolados, com contratos por tempo determinado
estabelecidos com empresas marítimas (e não do ramo de alimentação), sendo pagos em euros
ou dólares, sem contato com a família, sem folgas, sem o deslocamento de casa para o
trabalho, com os trabalhadores e trabalhadoras “comuns”, pois são realidades de trabalho
completamente diferentes. Esse seria tema para outra pesquisa.
Esta pesquisa investiga as condições de trabalho em cozinhas de restaurantes e outros
estabelecimentos de comida preparada, como lanchonetes, pizzarias etc. e serviços de
alimentação, como bufês e catering. Por isso, no trabalho com os dados do MTE, utilizaremos
a ocupação “Cozinheiro Geral”, conforme descrito pela CBO, excluindo as ocupações
descritas acima.
Para compreender a cozinha como um local de trabalho, é fundamental conhecer os
processos e as formas que esse trabalho adquire. A cozinha profissional difere muito da
cozinha doméstica, de acordo com os entrevistados. Seja pela escala de produção (“Aí você
não vai colocar duas xícaras de arroz no fogo, você vai colocar é 10kg”)38, seja pela forma de
produzir e pela intensidade do trabalho (“Então no dia que tiver uma demanda muito alta,
você tem que acelerar”) 39.
Segundo Galvão (2015: 46),
38
Roseli, 41 anos, cozinheira.
39
Jorge, 40 anos, sushiman.
67
40
Tradução livre de “No longer individual chefs craft dishes from the start to finish. Instead, kitchens were
manned by a number of cooks who each contributed a different element to a dish”.
41
Matias, 25 anos, cozinheiro.
68
porcionadas, cortadas, assadas, cozidas, fritas, grelhadas, seladas e servidas pela mesma
pessoa, em todos os pratos. Os outros elementos que acompanham a carne serão preparados
nas outras praças (salada, massa, legumes etc.). O prato, portanto, vai passar por todas as
praças, cada uma contribuindo com o elemento que lhe compete, até que o prato esteja
completo. Cabe ao chef (ou ao sous-chef, se ele estiver como responsável na ausência do chef)
verificar se o prato está completo e se todos os elementos estão corretos, para então servir. É
isso que quer dizer que o prato “começa numa ponta” e “volta”.
Entre as praças, há outra separação, anterior, conforme o próprio Matias descreve:
A cozinha é dividida em praças. A praça funciona como? A gente divide a
cozinha basicamente em dois, em três, mas em duas vertentes: parte quente,
parte fria. Parte fria vai trabalhar com tudo que é basicamente sai da
geladeira e é montagem. Tudo que não precisa de temperatura ou uma
temperatura mais moderada pra ser a montagem. Então, saladas, terrines,
toda parte de confeitaria pode estar como especialização, como parte fria,
mesmo, não quer dizer que você não usa o fogo pra produzir, você usa. Mas
aí na hora de montagem ela já tá ali, é só a questão da montagem. Então,
como se define, dentro desse restaurante? A gente tem a praça de guarnição,
que guarnição faz guarnição e chapa. A chapa faz a proteína do seu prato e a
guarnição faz todo o acompanhamento. Aí entre esses dois pode ter alguma
coisa, então pode ter um risoto, pode ter um masseiro42, pode ter um saucier,
que é a parte de molho. Aí vai depender de cada restaurante ter esse tipo de
especificação. Aí cada um é responsável pela sua área, então a pessoa que é a
parte de proteína vai limpar a proteína e vai ter a proteína pra finalizar. A
pessoa que é a parte de guarnição vai cozinhar batata, vai cozinhar a massa,
vai cozinhar o arroz, pré-cozer o arroz, tal. A parte fria fica na separação da
salada.
Essa divisão pode ser melhor descrita segundo um fluxograma da cozinha, que
apresento a seguir.
42
Pessoa que faz as massas.
69
O/A chef executivo/a aparece aqui acima do/a chef de cozinha. Nos casos em que
existem essas duas ocupações, o/a chef executivo tem um trabalho mais distante da cozinha.
Geralmente, é o responsável pela identidade da comida, a pessoa que elaborou o cardápio, que
fala publicamente em nome do restaurante, passa algum tempo no salão conversando com os
clientes, tem uma relação direta com os proprietários ou, inclusive, que é sócio/a do
43
Disponível em https://blog.close.com/3-lessons-sales-managers-can-learn-from-professional-kitchen-chefs.
Acesso em 19/09/2019.
70
44
O que parece ser uma constante quando se trata dessa comida é sua pouca qualidade, tanto em restaurantes
simples quanto em estabelecimentos mais sofisticados. Quase todos os cozinheiros e outros profissionais
entrevistados (exceto os proprietários) falaram da refeição dos funcionários de forma muito negativa. Não
conheci nenhum profissional que recebesse vale-alimentação, sequer permissão para ir comer em outro lugar.
Durante o Encontro Mundial de Chefs, uma das chefs convidadas falou sobre comida dos funcionários:
“alimentem bem seus cozinheiros”.
71
especializados teriam todas essas praças. A separação principal, conforme a fala de Matias
revela, é entre a cozinha quente (do lado esquerdo) e a fria (do lado direito).
Saucier é responsável pelos molhos. Rôtisseur prepara as carnes, e isso significa
limpá-las e cortá-las, assim como utilizar forno, fogão, grelha, chapa etc. No Brasil,
principalmente nas cozinhas mais simples, essa ocupação é “chapa”. Poissonier prepara os
peixes e frutos do mar. A não ser que essa seja a especialidade do restaurante, normalmente tal
ocupação é englobada pelo trabalho do rôtisseur.
Na cozinha fria estão entremetier, garde-manger e pâtissier. O primeiro é responsável
pelas entradas, vegetais, sopas e ovos. A ocupação de garde-manger é mais comum e,
geralmente, engloba o entremetier. É responsável pelas saladas, entradas frias, patês e tira-
gostos. Finalmente, pâtissier refere-se às sobremesas e doces, é o/a confeiteiro/a.
As ocupações que estão na base do organograma são o plongeur, que no Brasil recebe
comumente o nome de “pia” – o responsável por lavar a louça; aprendiz/ estagiário, e o
commis, em português, cumim. Este é o auxiliar direto dos garçons, que ajuda na montagem
do salão, serve o couvert, encaminha as comandas, transporta os pedidos da cozinha e faz a
reposição dos utensílios das mesas como pratos, copos e outros acessórios. O cumim não
entra no escopo dessa pesquisa, por se tratar essencialmente de uma ocupação do salão, e não
da cozinha.
Os cargos de ajudante, auxiliar e “pia”45 costumam ser cargos de entrada, com os
salários mais baixos. Em algumas cozinhas, há estagiários. Essa figura aparece nas cozinhas
brasileiras a partir dos anos 1990, mas com mais relevância a partir dos 2000, com o aumento
da oferta de cursos de Gastronomia46. Os estagiários atuam como auxiliares, pelo menos a
princípio, e tendem a trabalhar em todas as praças dentro da cozinha, como parte de seu
aprendizado. Esse, muitas vezes, é o pagamento que recebem pelo trabalho que
desempenham: é comum que não se lhes pague salário. Em alguns casos, paga-se apenas uma
ajuda de custo que, conforme alguns estagiários relatam, não é suficiente para arcar sequer
com a condução ao longo do mês. Todavia, os estagiários estão presentes em cozinhas de
restaurantes mais sofisticados, onde eles podem ter uma experiência valorizada em seus
currículos, e não nos mais simples. Voltarei à questão do estágio ao discutir formação
profissional no capítulo 2.
45
Hoje, algumas cozinhas têm equipamentos e máquinas que lavam a louça, mas ainda é preciso que haja um/a
funcionário/a que cuide da limpeza dos pratos, panelas, talheres, copos etc., assim como da operação das
máquinas de lavar.
46
O Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem no Comércio) abre o primeiro curso básico de Cozinha em 1964.
Em 1994, inicia o curso técnico de extensão com duração de dois anos, Cozinheiro Chef Internacional, em
Águas de São Pedro/SP e a Universidade Anhembi Morumbi na Capital, em 1999.
72
Tradução livre de “Cooks must ready the kitchen several hours before customers arrive, not knowing precisely
47
how many to expect. Preparation must permit flexibility, depending on the walk-in trade and last-minute
reservations. They must then be ready to cook numerous dishes, simultaneously and without warning, with
sufficient speed that those with whom they must deal - servers and ultimately diners - do not become frustrated”.
48
Tradução livre de: “"Workers with numerous unpredictably arrayed tasks find that it is not the work but the
preparation for that work that is critical".
73
2.1. Chef
Conforme o organograma (figura 5) mostrou, é possível que haja dois chefs em uma
cozinha (até mais, dependendo do tamanho da cozinha). O/A chef executivo/a é uma figura
mais rara, geralmente um dos donos ou sócio do restaurante, um/a chef muito famoso/a, que
74
dá o nome ao restaurante, que assina o cardápio. No Brasil, tal ocupação é mais recente, tendo
surgido nos últimos anos conforme a profissão vem adquirindo mais visibilidade e prestígio
social, mas não é muito comum. Existem chefs que trabalham em mais de um restaurante,
porque não se trata exatamente de um trabalho operacional, em que a pessoa precisa estar no
dia a dia da cozinha. Em muitos casos, o/a chef executivo costuma ficar no salão: seu trabalho
é ver e ser visto, receber os clientes, legitimar a experiência que estes buscam, de comer no
restaurante de tal chef (atualmente, posar para fotos, autografar livros etc.).
O/A chef de cozinha pode fazer também esse trabalho, mas geralmente trata-se de um
trabalho muito mais operacional e administrativo da cozinha (em oposição ao chef
executivo/a).
Galvão (2015) nos oferece uma categorização dos chefs a partir de sua relação com o
ato de cozinhar e os divide em dois grandes tipos: o chef empresário e o chef cozinheiro.
Nesta última categoria, ela ainda os divide em criativos-inovadores (que procuram criar uma
linguagem própria, criativa, inovadora na cozinha), os autorais (que pretendem expressar a si
mesmos através de seu trabalho) e os executores (que não possuem muita autonomia ou não
estão interessados em criar um conceito próprio).
Auguste Escoffier (apud FRANCO, 2010) diferencia o chef do cozinheiro, afirmando
que o chef é um artista e um administrador, e que ele não pode dirigir trabalhos que ele
mesmo não possa executar. “Só quem faz da cozinha o seu supremo interesse, dedicando-lhe
anos de estudo e de trabalho, torna-se um chef” (FRANCO, 2010, p.234). Dentre os
cozinheiros, é relativamente tido como consenso que chef é um cargo, e cozinheiro, uma
profissão, isto é, a pessoa está chef, mas ela precisa, antes, ser cozinheira.
O cargo de chef de cozinha é, sobretudo, o trabalho de quem conhece muito bem o
funcionamento da cozinha, de quem coordena a produção, de quem conhece a dimensão do
trabalho, porque chefia e supervisiona o trabalho de todos os outros.
E quando eu chego aqui eu tomo meu café, eu organizo a equipe, vejo a
parte de cardápio, vejo o que vai ser no dia, daí começo a fazer as baixas,
todas as alimentações que vai sair, o peso e vejo a parte da salada também,
faço a baixa de todas as comidas, depois começo montar minhas planilhas,
né, que eu faço todos os dias eu tenho que fazer baixa daquilo. Eu levo pro
menino do RH as baixas de um dia antes de hoje, por exemplo, aí amanhã já
faço outra. Então faço minhas baixas, começo fazer meus recebimentos, vejo
meus pedidos de compras, depois todos os dias temos uma estação no
restaurante. Segunda é crepe. Então, eu monto as estações, entendeu, hoje
minha praça já tá lá, minha mis-en-place, daqui a pouco eu vou lá montar.
Então eu monto as estações, eu vejo o cardápio do dia. Depois eu começo a
orientar o pessoal que horas que vai almoçar, a hora que não vai. E já
começando a olhar o cardápio do dia seguinte. E assim é o nosso dia. Meio-
dia eu tenho que ir pro restaurante, fico até as três horas da tarde fazendo a
75
Tem alguns que chegam, te dá até o cartão deles, ó... eu jogo no lixo, quando
ele sai assim, eu sou indiferente.
A partir da descrição de Joana de seu trabalho como chef, é possível apreender que
além do trabalho técnico, ela também precisa fazer um trabalho de gestão das emoções
(HOCHSCHILD, 1979), tanto com a equipe que lidera – coordenar o trabalho, organizar os
cronogramas (pausas para o almoço, planejamento de dias de folgas e férias), lidar com as
49
OS: Ordem de Serviço. É um documento interno em que constam todos os serviços que o cliente contratou:
horário, local, quantas pessoas, eventuais restrições alimentares, pedidos especiais. Os hotéis têm variadas
opções de refeições (coffee break, café da manhã, lanche da tarde, coquetel) para oferecer durante os eventos, e
isso precisa vir descrito na Ordem de Serviço.
50
Joana, 38 anos, chef.
76
Segundo Hochschild, (1979, p.555) “fatores sociais afetam como as emoções são
provocadas e expressas”52 . Assim, compreendendo que as emoções e sentimentos obedecem
a regras sociais e que são, portanto, construídas socialmente, o trabalho também exige esse
domínio, uma gestão da própria emoção e do outro. Nesse sentido, o trabalho emocional
significa corresponder ao que se espera dela enquanto chef: não se deixar levar pelo clima de
descontração e brincadeira, pelo contrário, ser a pessoa séria, que não brinca, que não sai,
preservar sua vida pessoal, em suas palavras: “manter um foco só no profissional”.
Tradução livre do original: “The individual often works on inducing or inhibiting feelings so as to render them
51
‘appropriate’ to a situation”
Tradução livre do original: “social factors affect how emotions are elicited and expressed”.
52
77
53
Tradução livre do original: “The modern professional kitchen adopts its rigid structure from a military
approach. A firm hierarchy is in place where one’s skills and status are understood by their role within the
kitchen” (ROSCOE, 2012, p.3).
54
Nas cozinhas, quando um prato está sendo preparado, diz-se que ele “marcha”, e ao ser servido, “marcha e
sai”.
78
trabalhos que requerem que eles realizem tarefas codificadas como femininas – um termo ao
qual nos referimos como masculinidade precária”55. Nesse sentido, as autoras chamam
atenção para uma estratégia que pode neutralizar a feminilidade do trabalho, que consiste em
enfatizar a natureza masculina do trabalho, por exemplo, dirigindo o enfoque para o passado
militar da ocupação.
Nas palavras do historiador Allan Drouard (2015: 28-29):
Chelminsky (2007: 159) também pontua que o papel do chef em uma cozinha é
fundamental, pois “É um trabalho de tempo integral, crucial e diabolicamente repleto de
artifícios, já que o chef tem de estar intimamente familiarizado com todos os detalhes de cada
posto na brigade, e somente os seus olhos e seu perfeccionismo perfilam entre o fracasso e o
deslumbre”.
Assim, todos trabalham duro na cozinha, mas sobre o/a chef recai a maior parte da
responsabilidade, para o bem ou para o mal, pois cabe a ele/a imprimir sua marca ou sua
identidade na comida, ainda que ele/a mesmo/a não a prepare. “Há inúmeros caminhos
diferentes, então, levando à grande culinária, mas em comum todos tem uma coisa: o
resultado final carrega a marca inconfundível da personalidade do chef, seja ou não ele a
pessoa que prepara os pratos” (CHELMINSKY, 2007, p.161).
Buford (2007: 131), em sua peregrinação por diversas cozinhas do mundo, trabalhou
com Marco Pierre White, um chef que já obteve três estrelas Michelin e que ficou conhecido
por sua reação teatral na cozinha – segundo o autor, havia clientes que iam a seu restaurante
na expectativa que algo inesperado acontecesse. Incontáveis vezes, White discutiu, gritou e
55
Tradução livre do original : “Feminization threat leads to a sense of insecure and unstable masculinity
amongst men in jobs requiring them to perform female-coded tasks – a term they we refer to as precarious
masculinity”.
56
Tradução livre do original: “L’organisation des cuisines mise en place à la fin du XIXe siècle par des chefs tel
que Gustav Garlin et Auguste Escoffier ressemble à celle d’une armée en ordre de bataille. Le Chef dirige sa
brigade et affronte avec elle le coup de feu du service. Les cuisiniers supportent le feu de la cuisine qui, comme
le disait déjà Carême, les dévore et les tue : ‘Le moment du service est au-delà de toute expression de peine et
fatigue. Nous sommes à l’heure et à la minute, et nous ne pouvons différer le moment du service. L’honneur
commande (témoin l’illustre Vatel). Il faut obéir lors même que les forces physiques manquent ; mais c’est le
charbon qui nous tue’” (p.28-29).
79
brigou até com os clientes. Com alguma nostalgia, ele afirma que ser chef “naquela época”
(anos 1990) “era ter licença pra gritar”.
Os gritos, em alguma medida, fazem parte da organização do trabalho na cozinha. É
preciso que as pessoas se comuniquem e elas estão em um ambiente barulhento, geralmente
realizando várias tarefas ao mesmo tempo, tudo é urgente e todos querem ser ouvidos.
Entretanto, a voz principal é a voz do/a chef, e, portanto, ele/a tem mais poder para gritar que
os outros: apenas ele/a tem legitimidade para gritar e ser ouvido, para ser obedecido.
Há uma série de empecilhos para as mulheres que pretendem chegar aos cargos de
maior responsabilidade e chefia dentro da cozinha. O trabalho de chef é associado a uma
figura masculina que tem determinados comportamentos, como falar alto, gritar, dar ordens,
entre outros, e que dificulta a ascensão feminina a esses postos.
A questão de ter uma mulher no cargo máximo da hierarquia pode precipitar conflitos.
Segundo outra chef entrevistada, ter voz de comando e se fazer respeitar na cozinha pode ser
um grande desafio, principalmente diante de uma equipe de subordinados totalmente
masculina.
... é fácil de ser contratada, a priori, mas é difícil de você se manter lá
dentro. Você vai ser substituída em algum momento, porque não tem uma
voz de comando feminina que seja ouvida. Não tem. É muito difícil. Tem...
Eu passei por situações... um pouco complicadas. Pensando mais nos turnos
da noite mesmo, porque nos turnos da manhã... como era uma mescla de
cozinheiros e cozinheiras não... não tinha esse problema. À noite eram
essencialmente homens, não tem... eles não ouvem. Eles não ouvem. Eles
passam por cima. Se a decisão de hoje, eu viro pra eles e falo "gente, vocês
têm produção hoje? Então tá, têm meia hora pra lavar a coifa?" "Ah mas
amanhã cedo não vão lavar a coifa, porque..." "Gente, lava a coifa pra mim".
Aí você tem que ser delicada no jeito de falar, você tem que ser sutil e etc.
Enquanto se você grita, eles não aceitam mesmo, eles se rebelam. É muito
difícil. Pra mulher dar voz de comando na cozinha é muito difícil. Não
existe. Não existe57.
2.2. Cozinheiro/a
57
Lenice, aproximadamente 30 anos, chef de cozinha.
80
Nos dias de mais movimento, a cozinha trabalha mais, há mais pratos a serem
preparados, e existe uma dinâmica e um ritmo para esse trabalho. Os pratos não podem
demorar pra sair, tampouco podem ser servidos separadamente (o ideal em um restaurante é
que se sirva todos os pratos de uma mesa ao mesmo tempo, para evitar que alguns comam
enquanto outros esperam).
O trabalho de auxiliar teria que ser de apoiar e ajudar os cozinheiros, mas nem sempre
é assim. Muitas vezes, a maior parte do trabalho do auxiliar é dedicado à limpeza e
higienização da cozinha, assim como o mise-en-place. Uma das auxiliares entrevistada
trabalhava durante o dia em uma pizzaria que funciona à noite. Ela fazia todo o mis-en-place
necessário para o preparo das pizzas, o jantar dos funcionários, as sobremesas e toda a
limpeza da cozinha antes do serviço. Segundo ela:
Então tem louças aqui que os meninos não dá, na correria, à noite, eu lavo.
Se não tem outro funcionário só tá eu, eu limpo tudo, vou cuidar do almoço,
aí depois limpo a cozinha, né, preparo as minha sobremesa se eu tiver que
preparar, depois quando é 5h eu vou embora60.
O relato de Rosana deixa claro que, para além do trabalho de auxiliar de cozinha, ela
acumulava muitas outras funções, como confeiteira e responsável pelas sobremesas, e até de
faxineira.
Outra auxiliar de cozinha entrevistada apresentou uma descrição diferente. Na cozinha
onde ela trabalha há uma equipe terceirizada de faxineiras que fazem a limpeza da cozinha,
então ela não é responsável pela higienização do espaço, apenas das panelas e materiais que
ela utiliza, como os demais. Ela fazia o trabalho de auxiliar quando era contratada como
estagiária. No momento da entrevista, contratada como auxiliar, entretanto, fazia o trabalho de
confeiteira e cuidava da refeição dos funcionários.
(…) eu não auxilio ninguém e ninguém me auxilia. Auxiliar de cozinha é
quando fica alguém do seu lado, te auxiliando. Tudo bem que tem o chef, ele
superajuda, mas acho que auxiliar é quando você tá do lado de uma pessoa,
né? Por exemplo, a confeiteira, eu vou ser auxiliar de confeiteira, eu vou
trabalhar junto com ela. Não, o que eu faço é 100% sozinha. (...) Eu chego,
eu faço a comida dos funcionários, eu faço a massa desses polvilho que eles
vendem aqui61.
60
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha
61
Carina, 18 anos, estagiária/ auxiliar de cozinha.
82
Mais tarde, nessa mesma entrevista, Carina afirma que se sente insegura diante da
responsabilidade de preparar a comida para todos os funcionários do restaurante 62 sem
supervisão, em função da sua pouca idade e parca experiência.
Esse trabalho, mais que os outros, aparece como o “coringa” do trabalho culinário:
existe uma miríade de funções que são desempenhadas pelo auxiliar. Também é comum o
registro do/a funcionário/a na função de auxiliar quando, na verdade, ele/a executa outras
funções, como a de cozinheiro/a. Em tese, esse trabalho é realizado pelos mais jovens em
início de carreira, pelo/a estagiário/a recém-efetivado/a no restaurante ou pelo/a pessoa com
menos escolaridade, como é o caso de Rosana.
O trabalho culinário, como se pode apreender a partir das descrições apresentadas, é
muito heterogêneo. É um trabalho que conjuga habilidades intelectuais e físicas:
planejamento, controle e organização, assim como atenção, uma medida de força física e
destreza. Também é um trabalho emocional, especialmente por parte do chef, porque demanda
gestão das emoções e sentimentos na sua execução, seja com os colegas, seja com os clientes.
Novamente, de acordo com a pesquisa de Clarissa Galvão (2015: 53):
62
Sobre a comida de funcionários, geralmente é uma obrigação do auxiliar, mas há casos em que é preparada
pelo/a chef.
83
Mozart serviu para justificar seu fim de vida atroz, na configuração atual, também serve para
naturalizar o não-natural e para sedimentar a dominação.
É recorrente, entre os cozinheiros e cozinheiras, o discurso do talento. Essa capacidade
mística e inexplicável com a qual algumas pessoas nascem, e que as fazem melhor que as
outras em determinadas atividades. Na cozinha, um talento é essa aptidão natural para os
sabores, texturas, aromas… Algumas pessoas têm talento, outras não. Todas podem cozinhar,
mas apenas algumas compõem o grupo de escolhidos que tem o dom. Esse discurso, muito
comum nos programas televisivos e, principalmente nos reality shows, é bem difundido e
aceito nesse grupo profissional.
O dom, entretanto, oculta as relações de gênero, classe e raça que engendram as
relações de poder da nossa sociedade, naturalizando conhecimentos e saberes como algo com
o qual a pessoa nasce e encobrindo as desigualdades sociais que diferenciam as pessoas. No
caso da cozinha, uma aptidão natural para cozinhar, um talento para criar pratos mirabolantes,
um dom para apresentações surpreendentes e para mistura de sabores exóticos eclipsa o
acesso a determinados ingredientes, pratos, culturas culinárias, livros e produções literárias,
restaurantes, histórias que são condicionados por uma condição de classe.
Naturalizar o conhecimento culinário como algo com o qual a pessoa nasce, pessoas
que tem bom gosto e pessoas que simplesmente não tem, porque não nasceram com ele,
significa cristalizar as desigualdades sociais como elementos da ordem da essência, e não
determinadas posições na estrutura social que não estão acessíveis a todos. No caso da
gastronomia, que nasce diferente da simples culinária justamente porque é sinal de bom gosto,
que só pode ser apreciada pelos gourmands que possuem os conhecimentos e expertise
necessários para apreciar a “boa comida” e, mais do que isso, comê-la corretamente, o
discurso do dom encobre um abismo social.
Ah, eu acredito que assim, né, o dom que a pessoa tem, né? Na verdade eu
acho que cozinhar também é um dom, sabia? (…) Eu acho que também é um
dom, só não é você querer, eu já conheci muita gente que tenta, tenta
naquilo, mas não é bom, faz, faz, mas não é bom63.
Eu vi que eu não tinha dom pra outra coisa, a não ser cozinha, entendeu? Eu
acho muito bom. (...) E também no mundo você tem que vir pra fazer o bem,
e eu escolhi fazer um bem, fazer comida pras pessoas. Cada um tem um dom
na vida, meu filho quer ser veterinário. Eu falei, é um bem, porque você vai
ajudar os animais. Então, parabéns! E eu acho que a minha missão é essa64.
estabelecimentos “populares”65. Eles precisam fazer coisas especiais, coisas inéditas, servir
uma comida muito bem feita, frutos do mar selecionados, para se diferenciar dos fast-foods
que também oferecem peixe cru ao grande público.
Ainda sobre a comida japonesa, essa também tem mudado seu lugar na gastronomia
mundial. Agora não mais como uma comida que se populariza, mas como uma gastronomia
que se elitiza, no Japão e no mundo. Desde 2007, a capital japonesa tem mais restaurantes
premiados com estrelas do Guia Michelin do que Paris, tradicionalmente a campeã – e terra
natal do prêmio. Um grande chef brasileiro já afirmou "Um bom cozinheiro nunca vai ser um
bom cozinheiro se não for pelo menos uma vez ao Japão"66. Nesse sentido, mais uma vez,
concordo com a análise de Elias. O movimento de diferenciação é constante, e emana de cima
para baixo.
Assim como o dom é naturalizado e utilizado para ocultar o caráter do trabalho árduo,
do duro aprendizado, de horas dentro da cozinha para aprender as técnicas e testar receitas,
um elemento recorrente no discurso dos cozinheiros e cozinheiras é a paixão. Ela é o
ingrediente fundamental para o/a grande cozinheiro/, pois é ela que diferencia os/as que serão
grandes e os meros executores.
Como André deixa claro, existem cozinheiros/as que “verdadeiramente tem paixão”, e
são aqueles/as que “vai fazer tudo, que vai dar 100%, que não vai deixar o taco cair”, ou seja,
aquele/a que vai se doar para o trabalho, que vai ficar trabalhando até mais tarde, que vai
apoiar os colegas, que vai fazer coisas a mais, que “vai longe”. O/a cozinheiro/a apaixonado/a
ama o que faz, em oposição ao “mero executor”, que apenas cumpre as tarefas que lhe são
designadas, que faz o trabalho automaticamente.
65
Um famoso chef de origem japonesa em São Paulo abriu recentemente um restaurante que recebe apenas 12
clientes em dois horários de reserva apenas no jantar, com um menu-degustação que custa por volta de R$ 300
por pessoa. O restaurante também conta com um aclamado sommelier que sugere vinhos que harmonizam com a
refeição.
“Nada de arroz e feijão: saiba qual alimento une o Brasil, segundo Alex Atala”. Reportagem da BBC Brasil.
66
Ainda na fala do chef André, é possível perceber de que maneira a paixão legitima os
problemas no trabalho e difere aqueles que amam o que fazem daqueles que não amam.
Lógico, tem dias que eu tô cansadão, vambora. Eu largo tudo e vou embora,
eu falo pro pessoal ficar e vou embora. Mas eu gosto tanto do que eu faço.
Não sinto nada. Chego no trabalho eu esqueço até dos problemas. Eu acho
que é fácil pra mim, quando você gosta do que você faz, tudo é fácil.
Sabe que eu acho, quando você gosta não é cansativo. Por isso que eu acho,
tem que amar aquilo que você faz. (…) se você gosta do que você faz, você
vai fazer com prazer68.
A ideia de que a gastronomia é uma arte e que o fazer culinário é um trabalho artístico
também move alguns cozinheiros no sentido de trabalhar para lidar com um sentimento forte,
um amor.
A cozinha, ela te abraça, e consome bastante. Então você tem que amar
muito. Culinária é aquela coisa, é um ato de amor. Eu falo sempre isso pros
meus meninos, estagiários e colegas de trabalho, é um ato de amor. Quando
você faz só por fazer, você não... não fica bem69.
É como um amor, né? Amor. Amor é meio poético demais. Deixa melhorar
isso. É como na música, na pintura, vai muito da sua abertura, da sua
permissão pra querer isso entrar dentro de você, de você daí fazer disso uma
atitude, uma ação disso. Mas uma boa pergunta. Deixa eu melhorar isso, ao
máximo. Vai muito do que você quer, né? E eu sei o que eu quero. (...)
Cozinhar é como pintar, dançar... é a libertação, né? Mas isso depende da
pessoa, né? Se você não tem isso na mente, só pode ser direcionado de
acordo com o que a gente quer70.
68
Samira, 55 anos, cozinheira.
69
Cidinha Santiago, 60 anos, culinarista de televisão.
70
Suyama, 49 anos, chef.
90
do amor ao trabalho. Como bem apontou André, é a paixão que separa o “verdadeiro”
cozinheiro do “mero executador”.
Primeiro que é um grande prazer, isso sem dúvida nenhuma, eu amo o que
eu faço. Claro que às vezes aperta sim, mas eu tô tão acostumada, já estamos
aqui há 17 anos...73
Tem várias vezes que você vai trabalhar, não tá muito bem, mas a gente não
pode fazer corpo mole, né? Tem que tentar trabalhar, né, até porque a
empresa tem uma quantidade de funcionários reduzida, então se você, por
qualquer uma coisa que você sente não vai trabalhar, vai prejudicar a equipe,
né. Então tem algumas vez que você vai trabalhar e não tá muito bem, aí
você sai, vai no médico, toma um remédio e continua trabalhando. Agora,
quando não dá pra você trabalhar mesmo, você tem que ficar em casa77.
Porque a cozinha também é uma coisa que integra, né? Você tem que
trabalhar em equipe, não tem jeito, né? Então, assim, como talvez outro,
outras atividades que você consegue trabalhar sozinho, sentado na sua mesa,
a cozinha é completamente diferente disso79.
comendo a vitela que a avó dele fazia pra ele. Você consegue atingir as
pessoas de uma maneira impressionante82.
Pra mim, o que eu vejo pra mim é... vai chegar o momento que eu vou
conseguir reunir pessoas comendo a minha comida e dividindo isso comigo.
É isso. Eu acho que essa é a minha evolução. Viver da minha comida, viver
das pessoas em volta de mim e dessa troca83.
Até uma moça ela chorou, veio falava comigo, “ah eu tô comendo o
babaganush da minha avó. Ele tem um gosto daquele queimado, do... do
defumado”, vamos dizer assim... Juro eu me emocionei com ela. Teve um
senhor de 80 anos, ele falou “Eu tô comendo a comida da minha avó”. Ele
chorava84.
Para ser um/a bom/a chef – e, por extensão, um/a bom/a cozinheiro/a – é preciso ter
resistido às duras condições, é preciso ter trabalhado muito, ter se cansado, adoecido e
resistido. É preciso ter sobrevivido.
Você começa às 8h da manhã e sai 1h da manhã. Você não tem vida. Mas as
pessoas meio que se orgulham disso, "eu não tenho vida, eu trabalho pra
caramba”87.
É cruel. É muito pesado, é muito pesado. Depois lavar tudo, colocar tudo
dentro do carro, depois chegar lá, guardar tudo. Bufê beira ao desumano88.
82
André, 41 anos, chef.
83
Lenice, 30 anos, chef.
84
Samira, 55 anos, cozinheira.
85
Tradução livre do original: “Interviewees witness that good work ethics and endurance is something they
believe the job teaches, if not demands from, the chef”.
86
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
87
Mariana, 31 anos, cozinheira.
88
Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.
89
Joana, 38 anos, chef.
94
Reclamar ou chorar por causa das condições de trabalho depõe contra o/a profissional,
porque demonstram que ele/a não tem essa característica considerada fundamental, a
resistência. Dentro da dinâmica do grupo, apoiando-se no sentimento de lealdade que funda o
coletivo da cozinha, quem reclama ou denuncia pode ser visto como “traidor”, um “outsider”,
alguém que não é bom o suficiente para fazer o trabalho, alguém em que não se pode confiar.
90
Manuela, 31 anos, chef confeiteira.
91
Joelma, 53 anos, saladeira.
95
2. Qualificação profissional
A qualificação profissional precisa ser entendida e analisada dentro do contexto
social mais amplo que está diretamente ligado aos movimentos políticos e econômicos que
determinam a dinâmica do mercado de trabalho (BRIGUGLIO, 2013). Para compreendê-la, é
importante diferenciá-la de outros conceitos aos quais aparece constantemente relacionada e,
não raro, confundida, como formação, escolarização e até educação. Esta reflexão é inspirada
no raciocínio sociológico empregado por Tanguy (2002), que revela a importância de
examinar e interrogar a gênese e a utilização de nomes e noções, pois eles conformam,
também, a constituição da realidade social.
O conceito de qualificação surgiu como resposta à falta de regulações sociais das
relações de trabalho, no pós-guerra. Segundo Ramos (2006), apoia-se sobre dois sistemas, a
saber: as convenções coletivas, que classificam e hierarquizam os postos de trabalho e o
ensino profissional, que classifica e organiza os saberes em torno de diplomas, ou seja, de
uma certificação dos conhecimentos relacionados aos ofícios (RAMOS, 2006, p.42). O
conceito nasceu, portanto, ligado ao modelo taylorista-fordista de produção.
De acordo com artigo produzido por Celso Ferretti (2004: 403), tendo como base o
estado da arte dos estudos sobre qualificação profissional, esta noção não tem origem na área
educacional, apesar de esta se apropriar constantemente dela. A educação profissional é um
recorte da educação escolar. O autor faz uma diferenciação entre a noção de qualificação
profissional e de competência, advertindo que a segunda é oriunda do campo econômico. O
artigo aborda a reflexão sobre as apropriações do conceito “qualificação profissional” nos
anos 1990, momento em que as mudanças no mundo do trabalho produzem uma “inflexão
significativa” na educação.
Saviani (1994) afirma que a educação coincide com a própria existência humana,
argumentando que, se o homem criava as condições para sua sobrevivência transformando a
natureza e esse processo é chamado trabalho (MARX, 2007), os conhecimentos sobre a forma
de realizar essa transformação eram elaborados e transmitidos concomitantemente. Os
homens educavam as novas gerações e os outros homens, lidando com a terra, com a
natureza, relacionando-se uns com os outros e produzindo a existência comum (SAVIANI,
96
Até 1965, a única forma de se tornar chef de cozinha no Brasil era por meio
da formação no próprio trabalho. A partir de então, com o decreto número
92
Sistema S refere-se às instituições de ensino ligadas ao setor produtivo. São elas Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (Senar) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat).
98
Com a abertura das importações nos anos 1990, a contribuição dos chefs franceses e
a constituição de uma gastronomia brasileira, entendida aqui como a oferta de refeições
sofisticadas, aumenta muito a demanda por força de trabalho qualificada nas cozinhas. Em
diversas publicações, aponta-se que o trabalho nas cozinhas, até então, era realizado por
pessoas sem qualificação, geralmente “migrantes nordestinos” (MONTEIRO, 2013; FREIXA
e CHAVES, 2015). Migrantes nordestinos, aqui, aparecem como um conjunto de pessoas com
baixíssima ou nenhuma qualificação, em situação de vulnerabilidade que, tendo migrado,
aceitariam trabalhar em qualquer condição.
Um entrevistado compõe esse grupo mais vulnerável e encontrou trabalho na cozinha
como alternativa “ao chão de fábrica”, mesmo sem ter nenhuma qualificação específica, e
começou sua carreira na pia.
Eu no momento, eu foi por não ter opção, né? Porque quando eu cheguei
aqui [São Paulo] pra trabalhar foi o que eu achei, na verdade foi cozinha pra
trabalhar. Não era meu ramo, porque meu ramo mesmo é auxiliar de
produção, fábrica de calçados, muitas coisas assim. Aí quando eu cheguei
aqui em 2004, foi, foi 2004, agosto de 2004. Quando foi com 15 dias, aí eu
arrumei um trabalho num hotel, pra ajudante de cozinha, aí eu falei, ah,
como eu vim no objetivo de trabalhar, aí eu não escolhi. E acabei gostando,
já [ofereceram] pra mim outra oportunidade na minha área antes de ser
cozinha e eu não quis, continuei na cozinha e não me arrependo. Se fosse pra
fazer tudo de novo, eu fazia de novo93.
Como parece ser habitual quando se trata o tema da qualificação profissional como
um problema, a responsabilidade recai sobre os trabalhadores. Mas foi possível observar nos
dias de hoje, mais de três décadas após a abertura econômica do Brasil, que continuam sendo
os trabalhadores pobres e com pouca ou nenhuma qualificação que entram nas cozinhas para
enfrentar longas jornadas e receber baixos salários.
Em 1994, 30 anos depois do primeiro curso, o mesmo Senac, considerado uma das
melhores instituições na área de hotelaria e turismo no Brasil, criou o curso de extensão
cozinheiro Chef Internacional (CCI) a partir de um convênio com a Culinary Institute of
93
Vitor, 32 anos, sous chef.
99
94
Esse prestigioso instituto de ensino foi criado por duas mulheres em 1946, Frances Roth e Katherine Angell,
mas tinha como objetivo treinar homens que retornavam aos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. As
mulheres só passaram a ser integralmente aceitas no curso a partir de 1970, e em 1972, apenas 5% dos estudantes
eram mulheres (HARRIS, GIUFFRE, 2015, p.31).
95
Dados obtidos por meio do site do E-Mec, http://emec.mec.gov.br/. Acesso em 03/12/2019.
100
Ainda de acordo com ele, há uma preocupação muito grande de que os alunos
“coloquem a mão na massa” ao longo do curso, e tenham um aprendizado o mais próximo
possível da prática. Além de seguirem as ementas dos cursos, aprenderem as técnicas e o
manuseio dos insumos, os alunos também são responsáveis pela limpeza e higienização de
toda a cozinha após as aulas, assim como nas cozinhas de restaurantes.
comida, a quantidade é muito maior. Descasca-se e corta-se uma ou duas cebolas à brunoise96
para fazer uma refeição em casa; são mais de 100 em um restaurante. Assim, mesmo que
esses conhecimentos coincidam, na cozinha profissional exige-se mais: o corte tem que ser
perfeito, os cubinhos têm que ser idênticos.
96
Corte brunoise é o corte em cubinhos.
97
Rosana, 41 anos, assistente de cozinha.
98
João, 40 anos, sushiman.
102
restaurante abrir: o pessoal do salão (maîtres, cumins, garçons) limpa o chão, as mesas,
arruma as toalhas de mesa, os talheres, as taças, os guardanapos, ajeita as cadeiras, enfim,
prepara o espaço destinado aos clientes. Na cozinha, ajudantes e auxiliares começam o
trabalho do mise-en-place, em que todos os ingredientes que serão utilizados no serviço são
preparados com o máximo possível de antecedência, a fim de não comprometer suas
características. Trata-se de um trabalho de planejamento que precisa ser muito bem executado
para evitar confusão no momento do serviço.
O serviço é como os trabalhadores chamam o período de trabalho em que os clientes
efetivamente estão no restaurante. Nesse momento, geralmente, os pedidos não chegam um
por vez, mas aos montes, dependendo do movimento no estabelecimento, e precisam ser
atendidos sem perda de tempo. Os pedidos de uma mesma mesa precisam sair juntos, os
pratos não podem ser servidos frios ou mornos, também não podem demorar. Há uma pressão
muito grande sobre os cozinheiros no momento do serviço, por isso é fundamental que eles
deixem o máximo possível de coisas adiantadas e prontas antes.
Cada estabelecimento tem seu ritmo e harmonia característicos, varia de acordo com
o cardápio, com o tipo de culinária, a quantidade de cozinheiros e ajudantes, muda também de
acordo com a quantidade de pessoas que o estabelecimento atende, se é o serviço do almoço
ou do jantar. Mas um bom serviço só se realiza se, como Bourdain (2014) afirma, todas as
partes estão trabalhando juntas. E o responsável pelo bom andamento do trabalho coletivo é o
chef, como um maestro em uma orquestra.
Durante a pesquisa de campo, muitos cozinheiros afirmaram que a melhor escola é a
cozinha do restaurante. Sua formação encontra-se fortemente ligada ao local de trabalho, e são
quase unânimes ao afirmar que o aprendizado da profissão se dá na própria cozinha.
Não é um curso que realmente é prático pra você aprender, não, você
aprende aqui [no restaurante]. Tanto é que a minha chefe não tem curso, não
tem faculdade. Eu aqui aprendi muito mais do que eu aprendi em um ano de
103
Entrevistadora: Mas pra você trabalhar com sushi você não precisa ter
curso?
João: Não, você tem que saber fazer. Tem que saber fazer os pratos. Então,
um yakissoba, eu mesmo fazia em casa, comecei a fazer. Aí eu fui pra um
restaurante, “então vem aqui que eu vou te ensinar mais algumas coisas que
você não sabe, umas coisas a mais”. Aí eu aprendi nesse primeiro restaurante
que eu trabalhei, que é lá na Saúde [bairro paulistano]. Aí depois eu fui
adquirindo experiência. Comecei a fazer em casa100.
Conforme foi possível apreender a partir das entrevistas e de uma parte da literatura
(principalmente relatos de cozinheiros), a qualificação profissional de um cozinheiro é
construída a partir dos aprendizados obtidos no próprio trabalho culinário. Trabalhar em um
restaurante que serve comida espanhola, por exemplo, implica preparar pratos da gastronomia
espanhola, e portanto aprender a fazer paella, gaspacho, tortillas. Não é preciso saber isso a
priori, mas definitivamente é preciso aprender e treinar. Assim, quanto maior o número de
cozinhas em que um/a profissional trabalhou, mais rica é a sua formação.
Algumas coisas aprendi de olho, outras eu foquei na receita, fui fazendo uns
testes, né, alguns deram certo, outros nem tanto, alguns nem chegaram a ir
até o final, foi... e daí testando, testando, e pergunta muito, né, porque eu sou
muito curiosa, então eu acabo perguntando muito. Eu aprendi todos os pratos
do fogão aqui perguntando. Que às vezes eu tava ocupada, mas se os
meninos estão soltando alguma coisa, eu tô sempre de olho. Aí, às vezes
eles precisam de ajuda, eu me esforço pra ajudar. E aí vai103.
99
Carina, 18 anos, estagiária.
100
João, 40 anos, sushiman.
101
Vitor, 32 anos, sous-chef.
102
Valdemar, 34 anos, chef.
103
Elisa, 28 anos, cozinheira.
104
Na verdade eu aprendi com os chefs que eu trabalhei. Comecei no __, né, daí
aprendi um pouco. Depois trabalhei na hotelaria __, nove anos, aprendi mais.
E depois eu vim pra cá e depois na faculdade. A faculdade é mais
aperfeiçoamento, né, das coisas104.
104
Joana, 38 anos, chef.
105
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
105
A maioria dos chefs está disposta a ensinar. Mas é aquilo que eu te falei, vai
de cada um. Você que tem que ter o interesse de conhecer, de fazer as coisas,
né106.
A pessoa vem, te dá uma dica e fala "tenta daí pra frente". Porque todo
mundo tem o que fazer, então não dá pra ficar alguém encostado com você
"ó, faz assim", então tem aqui uma receita, dá uma olhada aí e se tiver
dúvida, me chama. Aí você vai testando, tentando, às vezes dá certo, às
vezes não dá107.
Uma coisa que acontecia aqui é que meu chef não me explicava como é que
ele queria as coisas. Eu tinha que adivinhar. Quando eu perguntava pra ele
"você quer assim ou assado?", ele era supergrosso comigo, do tipo "se vira".
O que que eu vou fazer? É ridículo108.
Os cursos são, por sua vez, associados a um aperfeiçoamento que funciona melhor
para as pessoas que já trabalham na área e estão familiarizadas com o ambiente da cozinha.
De acordo com Bittencourt (2007, p. 3), em sua experiência como profissional da área e
pesquisador,
Muitos cozinheiros e chefs de cozinha iniciaram suas carreiras com
experiências adquiridas ao longo de seu trabalho diário, com a prática
operacional no seu dia a dia, ficando claro o esforço para alcançar cargos que
exijam mais habilidade e até mesmo a educação formal, pois muitos
possuem apenas os níveis básicos de ensino.
106
Joana, 38 anos, chef.
107
Elisa, 28 anos, cozinheira.
108
Mariana, 31 anos, cozinheira.
109
Carina, 18 anos, estagiária.
106
Às vezes você conhece a lagosta, mas não consegue trabalhar com ela, não
consegue limpar. Então a faculdade ensina tudo isso pra você, entendeu?
Tem pessoas que manuseia a carne, mas não sabe como cortar, como fazer
direito, e a faculdade, ela te... conduz a tudo isso. A fazer as coisas com mais
perfeição, entendeu, determinadas áreas, por exemplo, tem cozinheiro que
não sabe definir, ah é tudo quente, ou tudo frio... entendeu, e a faculdade
não, é tudo por etapa, então, finaliza, vamos dizer, um cozinheiro. Te deixa
bem hábil110.
Já entre os trabalhadores mais jovens, que saíram do Ensino Médio direto para o
curso de Gastronomia, este é insuficiente e não está de acordo com todos os aprendizados
necessários para se trabalhar como chef de cozinha, ou não está atualizado com as modernas
tecnologias, cada vez mais empregadas no preparo de alimentos.
O aprendizado no curso é bom, é interessante, é um primeiro passo. Mas ele
nunca é completo. Então, assim. Você não lê inglês, você não sabe ler nada
em outra língua? Não vai se aprofundar em Gastronomia. Então isso já é um
ponto. O aprendizado no Brasil é inteiro em português, não é bilíngue. Já é
uma coisa que você não tem livros em português de alta definição técnica,
você não tem a agilidade que tem de chegar as técnicas em português. Muita
coisa traduzida em português é errada. Então, o cara traduz de um jeito
totalmente sem sentido, você fala "meu, se eu fizer isso vai dar tudo errado".
Então, se você não tem isso, não tem essa percepção, já começa a ter uma
falha. Então o aprendizado na faculdade, ele é assim, igual você dar um
curso técnico pra um cara dirigir uma empilhadeira? Eu te dou o curso, só
que você nunca teve uma empilhadeira na sua vida. Quando você chegar lá,
se você bater é problema seu. Mas é essa a questão. Não é completo. (...)
Então, assim, voltando, né, finalizando, o estudo no Brasil, a faculdade não
te dá base pra você sair de lá e falar "sou cozinheiro". Não, você sai como
auxiliar111.
A crítica repousa, como o trecho acima parece deixar claro, na relação entre o curso e
a realidade do trabalho nas cozinhas. O entrevistado afirma que a produção acadêmica na área
não é produzida em língua portuguesa, que as traduções contêm erros e que a parte prática é
insuficiente. Novamente, aparece de forma subjacente à ideia de que o curso não tem como
ensinar aquilo que só pode ser aprendido na prática.
Lenice, que é chef, formou-se no curso de extensão Cozinheiro Chefe Internacional
do Senac, e faz uma avaliação parecida.
110
Joana, 38 anos, chef.
111
Matias, 25 anos, cozinheiro.
107
O curso que eu fiz ele não é o tecnólogo, que dura dois anos. Que não existe
graduação em gastronomia, né? É só o tecnólogo. Eu fiz um que chama CCI
– Cozinheiro Chef Internacional, que é pra quem... um público que já tem
formação superior. Então, ele é condensado em um ano e não dois. Tem as
mesmas, as mesmas ementas, mas ele é mais condensadinho. É um curso
bastante interessante, eu demorei muito a escolher qual fazer, mas é um
curso de que eu gostei muito, a gente teve um bom apanhadão. Mas é isso, o
que você aprende lá, você leva pra casa e faz, porque não dá tempo, é muita
técnica, é muita coisa112.
É interessante comparar esses dois trechos e perceber que os dois fizeram cursos na
mesma instituição, o primeiro fez o curso com maior duração, estagiando no hotel próprio do
Senac (o Grande Hotel São Pedro, hotel-escola localizado em Águas de São Pedro/ SP) e
avalia que o curso é insuficiente e prepara para ser auxiliar de cozinha, enquanto Lenice, cuja
formação inicial é de economista, fez apenas o curso de extensão, um curso mais condensado
(para que o conteúdo de dois anos seja transmitido em apenas um), considera o curso bom.
Mas ambos concordam que a parte prática não é suficiente, pois existe um aprendizado que se
realiza na prática, no dia a dia do trabalho em uma cozinha profissional.
Existe um discurso que perpassa as falas de todos os entrevistados, de que os cursos
são menos importantes, que o que é realmente valorizado é a experiência, que esse é o
ensinamento e o processo de aprendizagem necessário para se tornar um profissional.
Entretanto, entre as brasileiras que estavam morando na França, as duas chefs (uma, inclusive,
proprietária de seu próprio estabelecimento) haviam feito cursos (ainda que curtos) em uma
renomada escola gastronômica. Lá, o diploma de conclusão de um curso de prestígio quase
sempre se reflete em uma posição no mercado de trabalho, segundo elas me informaram.
2.3. Os estágios
Conforme discutido até aqui, vimos que a experiência de trabalho é fundamental para
a carreira do/a cozinheiro/a. O estágio, portanto, é um momento muito importante para os/as
jovens aspirantes a chef, principalmente para aqueles/as que estão investindo em sua formação
na área. Geralmente, o estágio é a primeira experiência profissional de muitos/as jovens que
pretendem seguir uma carreira na cozinha113. Ele tem um peso importante no currículo.
Os profissionais que já trabalham em restaurantes e vão fazer o curso para se qualificarem ou alcançarem
113
... o estágio não tem um plano de cargos e carreiras no restaurante. Não tem
assim, você é formada, vai fazer isso, não. Eu era formada em outra área, fui,
fiz um estágio no ___, o __ abriu as portas, como se fosse minha faculdade,
meu curso, e aí eu comecei a estagiar em outros restaurantes114.
Também é uma forma de conseguir outros trabalhos na área: a partir do estágio pode-
-se começar a estabelecer uma rede de contatos que possibilite futuras indicações a postos de
trabalho em outros estabelecimentos. A indicação é uma das principais formas de se colocar
neste mercado.
Finalmente, o estágio representa, para o estudante, uma forma de obter um
aprendizado efetivo, que se dá na prática – o cotidiano da cozinha, o ritmo, a divisão do
trabalho, entre outros. Sendo tão importante para os/as aprendizes, muitos estabelecimentos
consideram que estão contribuindo para a formação dos/as jovens cozinheiros/as oferecendo
essa oportunidade, e que isso basta. Assim, muitos restaurantes não pagam os estagiários, ou
oferecem apenas uma “ajuda de custo”.
Eu fiquei seis meses de estagiária, ainda mais por causa da idade, eles não
podiam fazer muito, né? Aí eu fiquei assim só pra aprender mesmo. Fiquei
aqui na produção cinco meses, sozinha com uma das chefs e eu fiquei na
confeitaria também, né. Aí esse ano que eu fiquei com 18 anos, aí o __ veio
onversar comigo, que é o chef do __, pra já entrar. Eu fiquei seis meses, 200
reais por mês. Não dava nem pra pagar o ônibus pra vir. E assim, na
confeitaria eu entrava às 4h da tarde e saía 2h40 da manhã, saía 2h da
manhã115.
a realidade, naquela época, a maioria dos estágios era não remunerado, né?
Era você fazia estágio por fazer, assim, pra aprender mesmo. E eu ainda
peguei um que ganhava acho que na época coisa de 400 reais assim116.
114
Manuela, 31 anos, confeiteira.
115
Carina, 18 anos, estagiária.
116
Frederico, 35 anos, bancário.
109
graça, pois ali aprendi coisas que uso até hoje”. Mais do que isso, o renomado chef italiano é
categórico: “Nenhuma escola forma um chef de cozinha” 117.
Mesmo internacionalmente, o estágio não remunerado é uma prática absolutamente
comum. A experiência profissional é tão central para esse segmento que o estágio em si é uma
moeda de troca, os estabelecimentos podem escolher quem selecionar para trabalhar de graça.
Entrevistei duas cozinheiras que fizeram curso com duração de um ano na famosa École
Ferrandi, em Paris. Ambas afirmaram que o investimento no curso girou em torno de nove mil
euros, e que a formação era de seis meses na escola e seis meses de estágio.
Mariana118 investiu em um curso de formação na França por entender que, tendo já
uma idade “avançada” (mais de 25 anos), seria necessário ter um diferencial em seu currículo
para conseguir trabalho.
Ia ser bom pra mim dar um up na França, fazer um curso lá, porque vai ser
super-reconhecido no Brasil e aí eu vim fazer Ferrandi, eu fiz Escola
Ferrandi aqui, estudei por um ano. Fiz o curso pra estrangeiro, que na
verdade são seis meses de aula e seis meses de estágio.
Em seu livro “Calor” (2007), o jornalista Bill Buford refaz a carreira do chef ítalo-
americano Marco Batali na Itália, procurando trabalhar nas mesmas cozinhas que o acolheram
décadas antes. Em suas palavras:
117
Disponível em https://infood.com.br/luca-gozzani-cozinhar-nao-e-uma-coisa-que-se-concentre-em-5-horas-
do-seu-dia/ (acesso em 02/12/2019).
118
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
110
Aí eles enviam... aí eles, você meio que escolhia, escolhia assim, você
contava pra eles mais ou menos o que que você tava querendo de estágio
assim, que tipo de cozinha que você queria e tudo mais. E eles tinham uma
rede de restaurantes credenciados onde eles mandavam os estagiários. E aí
eu acabei indo pra um restaurante no norte da Itália, perto da divisa com a
Suíça, e fui estagiar lá. De graça, né, como todos os estágios. Ninguém lá
recebia. Eles só eram obrigados a te dar alimentação e habitação. E eu dei
sorte, fui trabalhar com um cara superlegal, tinha uma casa bacana, tal. Mas
teve alguns colegas que tiveram que trocar porque moravam em casas assim
em condições insalubres e tudo mais.
119
Uma breve pesquisa on-line revelou que as calças do uniforme custam entre 70 e 100 reais , e as dólmãs entre
130 e 200 reais, considerando os preços mais econômicos. Para os estudantes, o kit de facas e outros
instrumentos têm preços que variam de 800 a 2.470 reais, dependendo da quantidade e qualidade dos
instrumentos. Uma única faca chega a custar 170 reais.
111
Esses jovens entram nas cozinhas recém-formados (ou em formação), muitas vezes
tendo até cursos e pós-graduação em outros países, após suas famílias terem realizado um
grande investimento, e se deparam com um cotidiano de trabalho pesado, cansativo, com
poucas perspectivas, trabalhando com outras pessoas que têm muito mais experiência e bem
menos formação.
Frederico tem uma trajetória interessante que nos permite conhecer as contradições
desses jovens oriundos das classes mais abastadas que decidem trabalhar em cozinhas. Ele
havia iniciado o ensino superior em Ciências Sociais e decidiu fazer outro curso, mais voltado
para o mercado de trabalho.
2004 comecei a fazer o curso de Gastronomia na Anhembi e me formei lá,
fiz dois estágios, um trabalhei no hotel __, ali no restaurante __, e depois fiz
um estagio também fazendo eventos. Aí terminei a faculdade, fui morar na
Itália, fiquei um ano trabalhando lá e fazendo um curso. Aí voltei pro Brasil,
trabalhei em alguns lugares e aí desisti da carreira de cozinha e fui fazer
Administração. Ah, e trabalhei no navio também, que eu tinha esquecido
desse pequeno detalhe.
E ela tinha uma mulher que trabalhava pra ela, há muito tempo já, que era a
chef dela, e ela, digamos assim, ela não gostava muito assim de... ela era
daquelas cozinheiras da velha guarda, sabe? Foi cozinhar porque era o que
tinha pra fazer na vida, e de repente chegaram uns estagiários lá, que pô,
tinham pouca experiência em cozinha, tal, ela não gostava muito, na
realidade. Ela achava que a gente tava invadindo o espaço dela. Então foi
difícil, foi difícil de lidar com essa...
cheguei com uma ideia muito de uma cozinha mais elaborada, e a gente
acabou tendo meio que umas diferenças e aí acabei saindo de lá.
Em seguida,
120
Manuela, 31 anos, confeiteira.
113
121
Manuela, 31 anos, confeiteira.
114
Ela avalia sua experiência de estágio de forma muito positiva, mesmo com o valor
irrisório da “ajuda de custo” que recebia. Na época, ela foi contratada neste restaurante como
estagiária porque fez um curso intensivo na Escola Internacional de Cozinha, em Jundiaí (SP).
Que nem aqui, que se eu não tivesse esse curso, aqui eles não iam me pegar.
E também porque eu precisava ter uma base, antes de entrar aqui, antes de
entrar em qualquer outro lugar. Se não, é ruim. Mas foi bom pra me decidir
se era isso mesmo que eu queria. Por mais que só fiquei ali mais na prática,
ali, olhei aqui, não sabia nem o que era isso, aí cheguei aqui pra trabalhar
perdida, não sabia... perdida, perdida, cheguei aqui pra trabalhar perdida. (...)
Mesmo tendo feito o curso, cheguei perdida, perdida. Perdida assim, de me
mostrarem bowl. E você saber o que é um bowl, sabe? (...) Uma GM, que é
uma tigela grande, que a gente usa, ela [a chef] falou "pega uma GM ali pra
mim", e eu "será que ela falou higiene? o que será que ela falou?".
Totalmente perdida, que é uma realidade superdiferente de curso. Curso é
pra amador.
São muito caros. Compensa pegar esses 2.500 reais e aplicar ali, fazer um
curso de 400 reais de macarrão. Eu vou lá e faço um curso de 400 reais de
macarrão. (...) Vários outros, que digamos, já dá uma batida num curso
superior.
Assim como Frederico, Carina também vivia com os pais, mas ela pagava o curso de
Gastronomia no Grupo Ocupacional Hotec. É importante pontuar uma diferença significativa
entre ser estagiária e ser auxiliar, que é a remuneração. Carina passou dos 200 reais de ajuda
de custo para um registro em carteira com salário de 1.160 reais, mais o dinheiro da
“caixinha” ou da gorjeta, que é dividido igualmente entre os trabalhadores do salão e da
cozinha, e rende em média 900 reais a mais por mês.
O estágio é, portanto, um momento fundamental na formação profissional dos/as
cozinheiros/as, principalmente daqueles/as que têm aspiração de se tornarem chefs ou de
construírem uma carreira nas cozinhas. Ele não tem a mesma importância para aqueles
trabalhadores que entraram nas cozinhas por não terem outra opção, ou para aqueles que têm
muitas outras responsabilidades e não têm possibilidade de fazer um curso, ou ainda para
aqueles que já estão há alguns anos nos fogões. Não se trata de dizer que a qualificação
115
formal ou teórica não seja importante, mas ela é recebida de outra maneira nesse segmento e
tem, portanto, outro valor. Para muitos profissionais, a qualificação formal não é tão
importante e não vale o investimento que ela demanda.
O trabalho culinário oferece um exemplo fértil para compreender a qualificação
profissional como o processo de formação que se encontra na interseção entre escolaridade e
trabalho. Neste segmento, o aprendizado mais valorizado é o que se dá na prática, no
cotidiano do trabalho. A experiência é a qualificação mais importante, mais do que qualquer
curso de pós graduação, mais do que qualquer especialização, no Brasil ou em outros países.
Mas isso não significa que os cursos são dispensáveis, principalmente para quem tem objetivo
de construir uma carreira.
O caráter essencialmente prático da qualificação necessária para realizar esse
trabalho e a valorização da experiência possibilitam observar a tensão entre trabalho manual e
intelectual, entre o trabalho criativo, sensorial e até artístico, e o trabalho monótono, repetitivo
e cotidiano da cozinha. Nesse sentido, a qualificação também é um elemento que permite
entrever relações sociais de classe que se dão na cozinha, entendidas aqui como conflito
(KERGOAT, 2009), em função das origens sociais dos distintos personagens que a povoam.
A recente valorização da profissão de cozinheiro e a emergência de estrelas
televisivas de dólmãs suscitou nas classes médias o desejo de seguir essa carreira,
provavelmente seduzidos pelo aspecto criativo e artístico. A gastronomia oferece uma
possibilidade de trabalho manual muito versátil, que pode ser realizado em qualquer cidade do
país, em qualquer país do mundo, que demanda relativamente pouco tempo de educação
formal – já que os cursos mais longos têm duração de dois anos, ao passo que uma graduação
em qualquer outra área tem duração de quatro anos, geralmente. Esses fatores contribuem
para a atração das classes médias por esse nicho profissional. Além disso, há sempre a
possibilidade de abrir o próprio negócio, seja um restaurante, seja uma casa de massas ou um
food truck, o que vai ao encontro aos anseios de ser o próprio patrão, e mais, nesse caso, de
poder fazer a própria culinária.
É possível concluir, desta perspectiva, que a carreira de cozinheiro/a e até de chef é a
completa expressão da flexibilidade: não permanecer por muito tempo em um trabalho é um
valor da profissão, um aspecto da construção de uma carreira, o que pode, em alguma medida,
explicar a alta taxa de rotatividade no setor e a instabilidade a que estão sujeitos os
trabalhadores. Diante do entendimento do trabalho como aprendizado e da experiência
profissional como qualificação, naturalizam-se e justificam-se as formas mais degradantes de
trabalho, o assédio, a informalidade, os baixos salários e até o não pagamento de salário.
116
Todos esses elementos surgem como o modo de ser da carreira, o que parece imbuir nos
cozinheiros que permanecem, que continuam a se sujeitar a tais condições, um ethos de
guerreiro, uma espécie de autovalorização, pois apenas os mais fortes sobrevivem.
Quanto mais nível você tiver no restaurante, menos o salário é pago. (...)
Quanto mais estrelas, quanto mais títulos, quanto mais nome, quanto mais o
chef for renomado, menos ele paga122.
Como descrevi até aqui, segundo relatos dos próprios trabalhadores, os processos de
trabalho na cozinha são complexos e diferenciados, dependendo do tipo de restaurante e
culinária que se realiza.
Os trabalhadores e trabalhadoras descrevem sua jornada de trabalho nas cozinhas
como horas seguidas em pé, em ambiente quente e abafado (geralmente em função das várias
bocas de fogão e fornos acesos ao mesmo tempo). Em muitos locais, a cozinha não possui
janelas, para evitar vento, poeira e o resfriamento da comida. Os restaurantes mais modernos
contam com cozinhas mais abertas, com janelas basculantes que permitem a circulação do ar,
ar-condicionado ou ventiladores, até algumas que permitem a entrada de iluminação natural,
tendo paredes de vidro, as “cozinhas abertas”, visíveis.
122
Matias, 24 anos, cozinheiro.
118
... porque quando você tem duas equipes, você tem dois padrões. É muito
difícil você manter um padrão quando você tem duas equipes. Quando você
tem uma só, é sempre aquela pessoa que faz aquilo, então você consegue
manter um padrão. Normalmente, um restaurante de alta gastronomia não
tem duas equipes. Quando tem, são duas equipes de estagiários. Mas tem que
ter alguém que está ali o tempo todo, alguém pra supervisionar o padrão124.
Matias: Sempre dois turnos, sempre trabalhei das 8h da manhã até o final do
turno, e eu sempre saía antes, porque eu era responsável pela praça, aí eu
saía tipo 3h da tarde eu saía, aí voltava às 6h e ficava até meia-noite.
Entrevistadora: Você sai as 3h da tarde, você vai pra onde? Pra ter que
voltar às 6h?
Matias: Eu me acostumei a ir pra parques, sempre tenho um livro na bolsa,
fico em parque, jogado na rua. Ou, aqui em São Paulo tem uma coisa legal,
Agora não se contrata mais, quase não se contrata mais, pra um turno só. O
que que eles fazem? Isso pra mim é um caos. As pessoas têm que entrar no
restaurante. Os cozinheiros entram no restaurante 9h da manhã, fazem o
turno do almoço até 1, 2h da tarde, são dispensados, dormem, teoricamente,
duas horas nos almoxarifados, ou ficam na rua, enfim, até às 5, voltam às 5 e
vai até as 2h da manhã126.
E assim, o cara fez uma proposta pra mim, parece que eu não quero
trabalhar. Mas não é isso. É que é cada absurdo que a gente escuta. É melhor
vender balinha no sinal, mil vezes. Porque ele falou assim "olha, a proposta é
essa: você vai ganhar 1.200, vai fazer o cardápio de sobremesa dos dois
restaurantes", que é um colado com o outro, a cozinha tem um corredor que
integra, "vai fazer o cardápio das duas casas e vai cuidar da equipe das duas
casas. 1.200 mais caixinha". A caixinha não ia dar isso tudo porque é um
restaurante novo. Ele disse "Mas, se você quiser dobrar, seu salário vai pra
1.600". (...) Em dois restaurantes ao mesmo tempo. Eu até pensei em
denunciar. Porque ele não tá pagando hora extra, o restaurante é novo, não
sei como é que tá a caixinha. Não tem hora de almoço. As pessoas que
dobram não fazem o intervalo de 3 horas, que tem que fazer, ele não tava
liberando. Porque um dos restaurantes era aberto o tempo todo, então você
não tinha como fazer intervalo de 3 horas127.
125
Matias, 25 anos, cozinheiro.
126
Lenice, 30 anos, chef.
127
Manuela, 32 anos, confeiteira.
128
Manuela, 32 anos, confeiteira.
120
pessoal. Não são apenas as horas que ocupam quase todo o dia, mas os efeitos do cansaço no
tempo que resta que também tem consequências.
Chegar a trabalhar até 3h, 4h da manhã. E 6h, 7h, não, minto, umas 8h tem
que voltar, tem que estar de volta. (...) Já cheguei trabalhar 26 horas direto.
(...) Não é começar e parar. Lógico, você sentava, você almoçava, jantava,
mas assim, você acordar 8h da manhã, ficar até 9h do outro dia. (...) Não que
confunde, você vai perdendo um pouco, vamos se dizer, o foco. Você precisa
dormir, você precisa descansar, a sua mente precisa descansar e você voltar
pro seu dia normal. Quando você força muito, você perde, fica mais fraco.
Você se sente fraco. Ah eu quero fazer isso rapidinho, não dá. Você tá
cansado129.
Tem vários lugares que o cara fica praticamente o dia inteiro. Eu como chef e
sous-chef ficava o dia inteiro e não tinha horário, não batia cartão, não tinha
nada. Trabalhava pelo menos 12 horas por dia. (...) No meio a gente fazia
pré-produção pra noite ou pré-produção pro dia seguinte131.
Meu estágio aqui [na França] foi remunerado, mas eu trabalhava das 8h da
manhã até 3h da tarde, pausava, depois eu entrava às 5h da tarde e ficava até
1h da manhã132.
129
Valdemar, 34 anos, chef.
130
Lenice, 30 anos, chef..
131
Daniel, 32 anos, chef. e proprietário.
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
132
121
Tinha essa questão, eles faziam a gente bater ponto no intervalo da gente, no
almoço, e voltar. A gente almoçava em pé, nas docas. Tinha uma questão que
me deixava irritada, era... eu trabalhava à noite, e depois de você ter feito um
serviço genial, ter servido 700 a mil pessoas por dia, aí você tinha que lavar
forno e coifa. E você só era liberado se uma das sous-chefs passasse na sua
praça, olhasse, que nem hotel, olhasse, passava o dedo, tá limpo, pode ir.
Pode ir. O cartão de ponto não contava não, não tem essa. Só saía depois que
elas liberassem. Eu achava o cúmulo. Nisso a gente ia até 3h da manhã, todo
dia. Eu entrava umas 16h133.
Esse esquema de trabalho também tem consequências para a vida pessoal dos
trabalhadores, que não conseguem estar livres para passar tempo com a família no momento
em que a família está em casa. Não conseguem se dedicar ao próprio lazer, não conseguem
descansar, porque, afinal, a folga durante a semana os permite cuidar daquilo que não
conseguem nos dias de trabalho ou, em muitos casos, apenas descansar.
Mais do que eu gostaria, às vezes eu queria tipo assim "ah eu vou pra praia,
curtir uma praia sozinha" não posso. Esquece, surreal. É uma vontade de um
dia poder fazer isso. Porque hoje eu não posso. Eu mais que quero ficar com
elas [as filhas]. Minha mãe, ah, sai, vai com seus amigos. (...) Se eu quero ir
pra uma festa, eu vou. Mas eu prefiro ficar com elas. Mais gostoso
acompanhar elas crescendo, minha filha fez uma arte, bateu a boca, quebrou
o dente... a minha vida é cheia de adrenalina136.
Há outra variável dentro da cozinha que precisa ser considerada para entender como se
dá a jornada de trabalho: a intensidade do trabalho, que está relacionada à quantidade de
trabalhadores no mesmo turno. Uma equipe composta de três pessoas que serve 100 refeições
em um período trabalha intensamente e sob muito mais pressão do que se fosse uma equipe de
cinco ou seis, durante o tempo em que dura o serviço. Os profissionais precisam estar muito
bem articulados e dispostos a trabalhar sem parar, isto é, em condições físicas para tal.
Por isso que eu falei pra você desse negócio de trabalhar em equipe, é se
ajudar. Às vezes a pessoa tá supertranquila lá, ela fez tudo que precisava,
mas a pessoa do seu lado tá se matando pra fazer, você pode descascar uma
batata pra ela, sabe? Não é parar e eu fiz o que eu tinha que fazer, fiz o meu
trabalho, isso aqui. Porque meu trabalho nunca acaba. Uma vez uma mulher
tava falando que falou pro fulano, que é o chefe, falou que tava tranquilo lá
onde ela tava, aí ela foi ver o que que o outro tava precisando. Ele falou, não,
mas a geladeira tá uma bagunça, você pode arrumar. Não para o trabalho
aqui, não tem essa de acabou, não tenho trabalho. Você pode arrumar outra
coisa pra fazer. Nem que seja ajudar o próximo. Você pode ir lá arrumar o
congelador, etiquetar coisa nova137.
Não, você pausa lá no restaurante mesmo, você estica a perna, olha seu
celular, tira um cochilo, come alguma coisa e é isso. E muitas vezes eu nem
conseguia tirar essa pausa, porque me davam tanta coisa pra fazer que eu não
tinha habilidade de fazer rápido, porque eu estava aprendendo ainda, que eu
nem tirava pausa138.
3.2. Assédio
Para discutir práticas abusivas e de assédio moral e sexual, é importante salientar que,
do ponto de vista metodológico, trata-se de um assunto muito complicado de abordar em
entrevistas. Como pretendo demonstrar, o assédio é tolerado nas cozinhas e considerado um
comportamento aceitável na medida em que se relaciona ao ethos dos cozinheiros e corrobora
a ideia de que apenas os fortes sobrevivem a esse trabalho. Assim, admitir ter sofrido algum
tipo de assédio ou violência, narrar acontecimentos em que a pessoa precisa se colocar como
vítima e que se viu impotente para reagir é muito difícil para esses profissionais. De fato, foi
um assunto delicado, mas que apareceu algumas vezes por iniciativa do/a entrevistado/a, até
em tom de vantagem, de heroísmo ou de anedota. Também foram muitos os casos em que o/a
entrevistado/a falava de algo que aconteceu com um conhecido ou um colega, com outra
pessoa, “mas não comigo”.
Nas cozinhas predomina um sentimento de pertencimento que se baseia em uma cultura
profissional do “mais forte”. A natureza física do trabalho, carregar caixas e panelas pesadas,
as longas jornadas de pé constituem um ethos profissional “somente para os fortes”, em que é
preciso ter “paixão”, “amar muito o que faz”. Nesse sentido, a agressividade, as brincadeiras
sexistas, as práticas discriminatórias e o assédio, em última instância, são entendidos por
alguns profissionais como uma forma de garantir que apenas “sobrevivem” aqueles que
realmente querem permanecer na cozinha.
Eu tenho colegas, eu não (graças a deus), mas eu tenho colegas que quase
apanharam ou apanharam, fora ofensas mesmo, tipo xingamento. (...) Aqui
[França] era xingamento, era grito. Se você faz alguma coisa errada, você
era um merda, não serve pra nada, você deveria desistir dessa profissão. Isso
que eu fico muito chocada, que as pessoas aqui, que fazem estágio, elas têm
o quê? 15, 16. A maioria tá no liceu profissionalizante. São muito novos. Eu
que já era mais velha fiquei muito abalada, imagino uma pessoa mais nova.
Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método
de seleção139.
139
Mariana, 31 anos, cozinheira.
140
Manuela, 31 anos, confeiteira.
124
Mas vi pessoas que se tornavam estouradas. Claro que você tem que
compreender que existe uma cobrança. Quanto mais alto é o público (alto no
sentido financeiro mesmo) o público que você trabalha, pior é a cobrança.
Cobrança de atitude, cobrança de qualidade. Então isso é tenso, é muito
tenso. Mas você começa a compreender que, tenso ou não, tem que resolver,
tem que funcionar. Agora, tem homens que eu conheci que eram
estourados141.
141
Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.
142
Arnoldsson utiliza o termo bullying para se referir ao assédio no trabalho. Ele afirma que nos países
escandinavos há pesquisas sobre bullying desde a década 1990, que começam no ambiente escolar, mas que
rapidamente passam para as políticas sociais de regulação das condições de trabalho. Sua definição de bullying,
entretanto, é muito próxima do que entenderíamos como assédio. “Einarsen et al. (2003b) provides a definition
of bullying that is widely used today: “Bullying at work means harassing, offending, socially excluding someone
or negatively affecting someone’s work tasks. In order for the label bullying (or mobbing) to be applied to a
particular activity, interaction or process it has to occur repeatedly and regularly (e.g. weekly) and over a period
of time (e.g. about six months). Bullying is an escalating process in the course of which the person confronted
ends up in an inferior position and becomes the target of systematic negative social acts. A conflict cannot be
called bullying if the incident is an isolated event or if two parties of approximately equal ‘strength’ are in
conflict.” (FINARSEN, 2003, p. 15 apud ARNOLDSSON, 2015, p.7)
125
aceitas na cozinha, como também observaram Bloisi e Hoel (2008), porque todos que estão lá
sabem que a pessoa que diz coisas racistas ou machistas, que usa linguagem chula e baixa,
não quer dizer essas coisas, na verdade. Um de seus entrevistados diz que pessoas que não são
racistas acabam falando coisas racistas no calor do momento. “E tem muita conversa
degradante para as mulheres, especialmente quando não tem mulheres por perto”143
(ARNOLDSSON, 2015, p.27).
No coletivo de trabalhadores, é entendido que esses comentários pessoais e
degradantes são inofensivos, são brincadeiras que servem para divertir e descontrair na
cozinha. O autor também observa que o bullying pode funcionar como um mecanismo de
controle do grupo para normalizar comportamentos desviantes. São as brincadeiras e piadas
internas que criam um tipo de coesão e reforçam o sentimento de pertencimento, mas que
podem sair dessa esfera e ofender/ agredir algumas pessoas.
Assim, a gente brinca, né? Aquele mesmo que eu falei aquele dia, a gente
brinca muito, né, mas com respeito. (...) Assim, ele não brinca muito
comigo, né, ele não brinca muito comigo porque também eu não dou muita
liberdade, entendeu? Aquela outra que tava sentada que gosta de brincar e dá
muita liberdade, eu não dou muita liberdade. Porque na hora que eu quiser
cortar, eu corto144.
Não raro, as mulheres sentem que é seu dever “cortar” ou colocar limites na
brincadeira, o que penaliza aquelas que não conseguem fazê-lo. Elas associam seus
comportamentos e atitudes às práticas dos colegas: como também descreveu Joana145, para ser
respeitada na cozinha, é preciso não dar “muita liberdade”, ter um tipo de atitude mais
fechada e séria, sob pena de não conseguir “cortar”.
Bloisi e Hoel (2008: 651), ao recuperarem a discussão teórica sobre o assunto do
bullying entre chef e em cozinhas, afirmam que, embora comportamentos de assédio possam
ser conscientes e premeditados, existem casos em que o/a próprio/a autor/a não está
consciente ou não tinha a intenção de prejudicar o/a outro/a; pelo contrário, esse tipo de
comportamento pode ser interpretado como um meio de alcançar metas relacionadas ao
trabalho, como uma forma de motivar.
No momento do serviço, o pico de estresse do trabalho, os/as cozinheiros/as são
unânimes em afirmar que a cozinha não é um lugar tranquilo. As pessoas não conversam
direito, não se falam com calma, e a comunicação é fundamental. Nesse momento, a conversa
143
Tradução livre do original “[…] And there's a lot of degrading talk about women, especially when there's no
women around”.
144
Helena, 49 anos, cozinheira.
145
Joana, 38 anos, chef.
126
tem que ser muito direta e objetiva, não há tempo para corrigir erros ou retomar
procedimentos. Os/as cozinheiros/as dizem que não há tempo de pedir as coisas
educadamente. Gritos são comuns.
Quem vem de qualquer outra profissão não acha isso normal. A gente tá ali...
Tem coisas que a gente entende, na correria de uma cozinha, no horário de
serviço, nem sempre você tem tempo de ser educado com a pessoa, você não
vai pedir "por favor, você poderia me dar aquela panela", porque você perde
tempo, então é "panela". A gente sabe disso, a gente se entende. Pra você não
se bater com a pessoa que tá atrás de você, você grita "queima", "costas", é
meio bruto, o meio é bruto. Mas tem coisas que não precisam ser do jeito
que são, e são146.
Hoje em dia eu não jogo mais coisa. Gritar eu grito quando tem que gritar.
Mas só quando é situação extrema. E é porque é muita pressão, então uma
hora tem que sair. Mas assim, nunca grito em cima de alguém, nunca vou
jogar nada em cima de alguém. Tem que ser assim, mesmo que você esteja
gritando porque alguém fez um erro, mas não vai, não vou agredir ninguém
por causa disso. Não tem a menor condição, não tenho o menor interesse de
fazer isso147.
Às vezes é ego, que se sofre muito com o ego das pessoas que estão na ação.
Que você faz a mesma produção, igualzinho, mas se o chef chegar irritado,
ele vai te esculachar. Pode estar a mesma coisa. Então não é um sistema que
você faz e deixa seu login. É uma coisa... é o humor, você lida muito com a
vaidade do cara148.
Arnoldsson (2015) também afirma que o assédio pode ser comum em algumas
situações que demandam trabalho em equipe e sintonia entre as pessoas. Portanto, há uma
influência muito grande do tipo de ambiente de trabalho que se estabelece e uma cultura
profissional que, por sua vez, também é influenciada por uma série de fatores, que
determinam se alguns comportamentos são assédio ou se são parte de uma espécie de relação
entre colegas que não tem como objetivo agredir ou excluir alguém.
A alta rotatividade nesse setor também é apontada (ARNOLDSSON, 2015; BLOISI,
HOEL, 2008; FINE, 1996) como um fator que colabora para que práticas de bullying e
assédio sigam sem serem identificadas ou repreendidas, já que uma pessoa que se sente
assediada e impotente diante disso pode encontrar outro trabalho. O fato de, no segmento de
restaurantes, haver alguma mobilidade que possibilite pessoas a mudarem de trabalho
rapidamente e com relativa facilidade contribui para que o problema seja individualizado,
146
Mariana, 31 anos, chef.
147
Ana Paula, 32 anos, chef.
148
Manuela, 31 anos, chef confeiteira.
127
para que a pessoa que sofre assédio procure resolver seu problema em outra cozinha, e o/a
assediador/a continue com as mesmas práticas.
Mas é que eu, assim, todas as vezes que eu sentia que tava impossível, eu
saía. Eu já tava, entrei com uma maturidade que eu não ia me submeter. Por
exemplo, o estágio daqui era pra fazer 6 meses, o mínimo era 3, eu fiz 3 e
saí. O chef ficou muito puto, ligou pro meu professor, fez o maior escândalo,
disse que eu era uma pessoa horrível, mas é isso. É um direito meu sair com
3 meses, eu cumpri os 3 meses e saí. Eu aguentei os 3 meses porque eu sabia
que eu precisava daquele diploma149.
149
Mariana, 31 anos, cozinheira.
150
Décio, 48 anos, professor.
151
Ana Paula, 32 anos, chef.
128
As mulheres que conseguem chegar aos cargos de chefia também reproduzem alguns
comportamentos com os quais sofreram ao longo da carreira como uma forma de provar seu
valor e legitimidade, provar suas capacidades, equiparando-se aos homens. Como observou
Lapa (2019) com relação às mulheres na indústria metalúrgica, muitas vezes as mulheres que
ascendem na carreira temem ter seu sucesso tributado a favores sexuais, o que também é uma
forma de diminuir seu mérito.
152
Tradução livre do original: “Norms that celebrate the strong, macho chef, able to cope with and endure
whatever is required (…) helps to do just that; to endure, and offer some consolation and even motivation to keep
doing it” (p.28).
129
Utilizando o poder que eles têm dentro da hierarquia da cozinha, e o exemplo citado
por Benê deixa isso claro, muitos homens pressionam mulheres para terem uma relação fora
do ambiente de trabalho, uma relação pessoal, sexual, sob pena de “castigo” no trabalho, caso
elas recusem. Os chefs, portanto, sabem quais são os trabalhos mais penosos, mais difíceis e
dispunham do seu poder sobre a organização do trabalho para penalizar as mulheres que “não
queria [sic] sair com eles”.
Quando eu trabalhava lá em Natal [RN], geralmente o chef ele é muito
machista. Sempre foi muito machista. Sempre gostou de mulher na cozinha e
sempre deu problema isso, porque ele era... sempre tratava as mulheres com
jeito sexuado, totalmente sexuado. "Meu benzinho, vem aqui. Ah meu
amorzinho, vem aqui. Fica aqui do meu lado, vou te mostrar como faz". Aí
chegava um homem, falava "vai lá, faz outra coisa". Então ele sempre... só
que nunca que ele dá um cargo pra uma mulher. Entendeu como que é a
jogada dele? "Eu trato ela bem pra ela ficar do meu lado, mas nunca que ela
vai ser a minha subchef"154.
153
Benê Ricardo, 73 anos, chef e professora.
154
Matias, 25 anos, cozinheiro.
Mariana, 31 anos, cozinheira.
155
130
A questão que orienta essa pesquisa é como se estrutura a divisão sexual do trabalho
nas cozinhas profissionais. É fundamental, portanto, esclarecer o que é a divisão sexual do
trabalho e como ela se reproduz.
Existe uma hierarquia muito rígida na cozinha profissional, uma ordenação vertical
dos postos de trabalho, que tem na figura do/a chef o cargo de liderança. Há uma separação
entre a cozinha fria e a cozinha quente: a primeira voltada para o trabalho com entradas,
saladas e sobremesas, geralmente preparos que não demandam o uso de forno ou do fogão; a
segunda é voltada aos pratos quentes, que necessitam grelha, fogão ou outras formas de
cocção. Como veremos adiante, essa separação também corresponde a uma separação entre
trabalhos considerados mais femininos e mais masculinos. Mas a divisão sexual do trabalho
também se expressa pelas narrativas das mulheres sobre o trabalho doméstico e as tensões que
estão colocadas entre vida profissional e familiar.
“A divisão sexual do trabalho é a forma da divisão social do trabalho decorrente das
relações sociais de sexo (...). Tem por características a destinação prioritária dos homens à
esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos
homens das funções de forte valor social agregado” (KERGOAT, 2009, p. 67). No caso do
133
Joan Acker (1990: 139) discute a neutralidade de gênero nas organizações, em que a
natureza corporificada do trabalho é mascarada, e o conteúdo do trabalho e as hierarquias
parecem abstratos, e supõem um trabalhador sem corpo e universal, que é um homem. O
corpo do homem, a sexualidade, relações de procriação e trabalho remunerado são
subsumidos na imagem do trabalhador “universal”. Imagens de corpos e masculinidades
percorrem o processo organizacional, marginalizando mulheres e contribuindo para a
segregação por gênero nas organizações.
Graus de habilidade, complexidade e responsabilidade, todos utilizados para construir
hierarquia, são conceitualizados como existindo independente de um trabalhador concreto
(idem, p.149). O mais perto que um trabalhador descorporificado fazendo um trabalho
abstrato chega de um trabalhador real é um trabalhador masculino cuja vida se centra em seu
trabalho em tempo integral, enquanto sua esposa ou outra mulher cuida de suas necessidades
pessoais, trabalho doméstico e filhos. A mulher trabalhadora, presumindo que tem obrigações
legítimas além daquelas requeridas pelo trabalho, não se encaixa nesse trabalho abstrato.
Nesse sentido, comportamentos como assédio sexual são vistos como desvios ou
anormalidades de atores gendrados e não como componentes da estrutura organizacional.
Enquanto as organizações são definidas como neutras do ponto de vista do gênero, princípios
masculinos dominam as estruturas de autoridade dessas organizações e as hierarquias. A
masculinidade parece sempre simbolizar auto respeito para os homens nas camadas mais
baixas e poder para os homens no topo, enquanto confirma a superioridade de gênero de
ambos em relação às mulheres (ACKER, 1990, p.145).
Determinadas capacidades, como por exemplo, lidar com dinheiro, são mais comuns
aos trabalhos de homens do que em trabalhos de mulheres (Joan Acker não fala, entretanto,
em termos de divisão sexual do trabalho), e frequentemente são mais valorizados do que
habilidades como lidar com clientes ou capacidades de interações humanas, mais recorrentes
em trabalhos “de mulheres”. A ideia de um trabalhador universal exclui e marginaliza as
mulheres que não podem, quase que por definição, alcançar as qualidades de um trabalhador
real porque, para fazê-lo, teriam que se tornar homens. Segundo essa autora, corpos de
mulheres não poderiam ser adaptados à hegemonia masculina das organizações. Para estar no
topo das hierarquias masculinas, portanto, é demandado das mulheres que tornem
imperceptível o que faz delas mulheres156 (idem, p.153).
156
No original: “Women's bodies cannot be adapted to hegemonic masculinity; to function at the top of male
hierarchies requires that women render irrelevant everything that makes them women” (ACKER, 1990, p.153).
135
Helena Hirata e Danièle Kergoat (2009: 44) também discutem o “modelo assexuado
de trabalho” adotado pelos iniciadores da sociologia do trabalho, “elevado implicitamente
como universal”, e que foi duramente questionado a partir dos anos 1970 justamente pela
problemática da divisão sexual do trabalho, uma vez que se tornava inegável a necessidade de
considerar o sexo social (gênero) e o trabalho doméstico, o que coloca essa figura
descorporificada e universal em xeque.
A hegemonia de um trabalhador universal sem corpo, sem especificidades, neutro,
portanto, se refere a um homem branco heterossexual sem responsabilidades familiares ou
obrigações relativas ao trabalho doméstico, com disponibilidade para dedicar-se integralmente
ao trabalho profissional. Tal ideia, portanto, exclui as mulheres, brancas e não brancas,
heterossexuais e homossexuais, homens homossexuais, brancos e não brancos. Acker
questiona a raça e etnicidade desse trabalhador supostamente universal, mas não avança na
discussão.
Bouazzouni (2018) argumenta que na língua francesa – e também na portuguesa – o
masculino é o gênero que se refere ao universal, o gênero neutro. Mas essa pretensa
neutralidade do masculino oculta e silencia as mulheres. Nos prêmios importantes da
gastronomia mundial, as mulheres são ignoradas na categoria “universal”, e se fez necessário
criar um prêmio para as mulheres chefs, mesmo que o prêmio “neutro” não seja voltado, ao
menos no nome, exclusivamente para os homens chefs. Se existe um prêmio para os
melhores, por que foi necessário criar um prêmio separado para as mulheres?
Patrícia Marie (2018: 36) afirma que é preciso reconhecer que a direção de uma
brigada é um privilégio masculino, em particular no mundo dos restaurantes estrelados onde
muito poucas mulheres receberam o reconhecimento definitivo - desde 1933, apenas quatro
mulheres receberam as famosas três estrelas Michelin.
Existem as chefs que reconhecem as dificuldades que as mulheres encontram na
profissão, e se regozijam em ter esse reconhecimento profissional, “eu acho ótimo que
Michelin finalmente conceda um lugar às mulheres”, afirmou Sarah Benahmed, premiada em
21 de janeiro de 2019 com o Prêmio de Recepção e Serviço. Na mesma cerimônia e no
mesmo dia, a chef pâtissière Jessica Préalpato, que também foi premiada, afirmou que
“destacar a presença das mulheres não me parece útil. Enquanto mulher, eu quero ser julgada
pelos mesmos critérios que um homem, unicamente pelo meu mérito”157.
157
Jornal Le Monde, jeudi, 24 janvier 2019, p.21.
136
Em sua grande complacência e porque estimam, com toda certeza, que uma
mulher não tem as armas para competir na mesma categoria que um homem,
o World’s 50 Best concede todo ano o prêmio da “melhor mulher cheffe”
(“female chef”, no original em inglês). Abramos um pequeno parêntese
linguístico: primeiramente, é uma maneira de lembrar que uma mulher, antes
de ter uma função, permanece, em primeiro lugar e fundamentalmente,
definida pelo seu gênero158.
É compreensível que uma mulher que ganhe o prêmio de melhor chef mulher sinta-se
ressentida; afinal, aparentemente, os homens não são reconhecidos apenas porque são
homens. Ninguém questionaria o mérito de um homem ganhador de um prêmio com base em
seu sexo, mas é preciso reconhecer que os homens dominam esses espaços há muito tempo.
Homens criaram o prêmio, homens definiram os critérios, homens julgaram, homens
premiaram e homens ganharam. As mulheres foram proibidas de participar desse tipo de
“competição”, direta e indiretamente, por muito tempo. No ano anterior a essa premiação,
2018, a própria legitimidade do Guia Michelin passou a ser questionada justamente por terem
sido recompensados com estrelas e prêmios quase que exclusivamente homens.
A neutralização do gênero significa, na verdade, a ocultação das mulheres e do gênero
feminino em nome de uma suposta neutralidade que, em verdade, exclui as mulheres. Existem
diversas maneiras de fazer as coisas, preparar os alimentos, montar pratos etc. e muitas vezes
a dona de casa sabe fazer e conhece as técnicas, mas ela não conhece o nome em francês, ou
nem se dá conta que aqueles movimentos ou aquele modo de preparo tem um nome, ela
apenas faz. Tirar o gênero da técnica é tirar as mulheres da técnica. Ela aparece racionalizada,
finalizada, como a maneira ótima, mais eficiente, de fazer alguma coisa, e isso se contrapõe
ao conhecimento empírico, doméstico, e, ao valorizar-se como técnica racional “neutra”,
desvaloriza esse outro tipo de conhecimento, feminino.
Kergoat (2010) postula que as relações sociais são consubstanciais, ou seja, elas
formam um nó que não pode ser desamarrado no nível das práticas sociais, trata-se de uma
metáfora para compreender essas relações analiticamente. Em nota de rodapé, a autora afirma
que consubstancialidade refere-se à “unidade de substância”, sugere que diferenciar essas
relações só é possível em termos de análise sociológica, mas não pode ser aplicada
inadvertidamente nas práticas sociais concretas. As relações sociais também são coextensivas,
ou seja, a partir do momento em que se desenvolvem, as relações de gênero, classe e raça se
reproduzem e se co-produzem mutuamente. O paradoxo das relações sociais de sexo “aponta
158
BOUAZZONI, 2018, p.36.
137
159
Tradução livre do original “none of us live in exclusive boxes”.
138
160
“O conceito ampliado de trabalho refere-se a uma concepção mais abrangente das atividades produtivas e
reprodutivas” (HIRATA, 2015, p.4).
140
Entretanto, enquanto cozinhar passa a ser uma das tarefas do trabalho doméstico que
os homens aceitam de bom grado fazer, não é sempre162. De acordo com as entrevistas, apenas
dois dos cozinheiros homens afirmaram que cozinhavam em casa para suas famílias, enquanto
os outros só ocupavam a cozinha aos fins de semana ou quando sentiam vontade de fazer
“algo especial”.
Entrevistadora: Cozinha bastante em casa?
Valdemar: Bastante... Não, agora não, porque é mais minha esposa que faz
mesmo, ou mesmo a empregada, às vezes ela que faz. Mas quando...
domingo, vou pra cozinha, ou sábado. Saem umas coisinhas diferentes. (...)
Eu gosto mais de fazer macarrão ao molho branco. Aí um espaguete ao
molho de camarão. Às vezes eu faço uma costela, aquela mesma coisa…163
161
Tradução livre do original “The ever-presence of the male chef on food TV and the rising number of books,
magazines and blogs about men’s cooking seem to indicate a growing enthusiasm for cooking among men in the
West”.
162
“Les hommes ont tendance à cuisinier plus par plaisir et loisirs et à ne pas se sourcier du ménage et du
rangement après (...) mais ils sont encore peu nombreux à s’occuper tous les jours de la cuisine, lorsqu’elle
prend une allure de corvée” (STENGEL, 2018, p.26-27).
163
Valdemar, 34 anos, chef
164
Vitor, 32 anos, sous-chef.
165
Carlos, 53 anos, cozinheiro.
141
Joelma: Que eles ficam com medo da mulher abusar muito, né, aí a mulher,
começa a fazer uma vez, a mulher quer que faz todo dia, né166.
Não, a comida que eu faço aqui, eu também faço na minha casa. Porque eu
falo pras minhas filhas, elas falam "você só faz lá, não faz aqui?" Eu faço. A
mesma coisa eu faço170.
166
Joelma, 53 anos, saladeira.
167
Joana, 38 anos, chef.
168
Joelma, 53 anos, saladeira
169
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
170
Helena, 49 anos, cozinheira. É importante contextualizar essa fala de Helena, pois no momento da entrevista,
ela trabalhava em um restaurante por quilo no bairro de Pinheiros (bairro paulistano), cuja característica era
justamente comida simples e caseira.
142
espaço, o trabalho culinário masculino é mais valorizado. A comida que o homem (pai/ filho/
irmão) faz é especial, numa ocasião extraordinária, uma comida diferente, algo que ele
decidiu que gostaria de fazer. A comida que precisa ser feita todos os dias, que garante a
manutenção da família, que não requer criatividade, que não tem data especial, essa continua
sendo quase que exclusivamente sendo feita pela mulher.
Elisa171 mora com a mãe e três filhas com idades de 9, 7 e 4 anos, no bairro do Capão
Redondo, na periferia de São Paulo, e trabalha nos períodos vespertino e noturno em um
restaurante na Vila Mariana, normalmente das 14h30 às 0h30, de terça a domingo. Ela
depende da mãe, que cuida das meninas, para que ela possa trabalhar, assim como das irmãs,
as “tias”.
Se não for ela [a mãe], eu não sou ninguém. Essa é bem a frase. A gente
briga. Briga que nem cão e gato. Ela grita comigo. Grita demais, tem horas
que me deixa surda. Mas sem ela eu não sou ninguém.
Saio de casa totalmente tranquila que eu sei que as meninas vão tomar
banho, vão jantar, se tiver um remédio pra dar, vai ser dado, qualquer coisa
que acontecer, ela vai me ligar, ela vai me passar.
É muito ruim. Porque ela fala assim pra mim: "vá pedir pra sua mãe", "não,
vou pedir pra minha avó porque minha avó deixa, minha mãe não". (...) Tem
dias que elas me ligam, "mãe, eu vou dormir na casa da minha tia, mas a
minha avó já deixou, tá? Só estou te avisando". Ah então tá bom, se sua avó
deixou...
As três irmãs têm pais diferentes, com relações mais ou menos amigáveis com Elisa.
Ela teve a primeira filha aos 18 anos e o pai da menina sugeriu que ela fizesse um aborto. Ela
decidiu ter a menina sozinha e nunca permitiu que o pai se aproximasse dela, nem ele
demonstrou esse interesse. Com o pai da segunda, ela afirma ter uma convivência amigável
por causa da criança, e que ele a ajuda financeiramente, além de ter uma “rotina maluca” de
visitar a menina e levá-la para passar tempo com ele. A terceira filha foi fruto de um “namoro-
relâmpago”, segundo Elisa, e ela só contou para o pai que ele tinha uma filha quando a
171
Elisa, 28 anos, cozinheira.
143
menina já tinha 1 ano. Eles estavam namorando no momento da entrevista, mas não moram
juntos.
O cotidiano do trabalho e as jornadas, principalmente o trabalho aos fins de semana,
são um impeditivo para que ela passe mais tempo com as filhas.
Ou, então, fizeram uma festa surpresa pra minha filha, eu não estava lá.
Porque a gente fez um almoço pra ela, fizemos o prato que ela gostava em
casa, dei o presente e tal, e falei pra ela "não vai ter festa, não tem bolo, não
tem bexiga, não tem nada". E as tias me chegam lá com balões e bexigas, e
assopro e a bagunça e eu não estava lá.
A responsabilidade sobre as três meninas recai totalmente sobre Elisa e sua mãe.
Mesmo o pai que está mais presente, o da filha mais nova, “ajuda”, “passa em casa”. A
manutenção da casa e praticamente todos os gastos das meninas são bancados por Elisa. O
trabalho doméstico é dividido entre ela e a mãe, mas a mãe é a responsável pela cozinha da
casa.
De vez em nunca eu vou lá e invento alguma coisa, normalmente um lanche
rápido, mas comida mesmo quem faz é ela, ela tem o jeito dela fazer, ela não
gosta que ninguém mexe nas coisas dela.
Rosana172 mora com dois filhos e um neto em uma casa na periferia de São Paulo e é a
única responsável pela cozinha em sua casa. Após terminar seu expediente das 7h às 17h no
bairro da Vila Mariana, em São Paulo, onde ela lava a louça do dia anterior, prepara a comida
dos funcionários, o mise-en-place do serviço noturno da pizzaria e todas as sobremesas, ela
retorna para casa e prepara o jantar do dia e o almoço do dia seguinte para sua família.
Helena173 mora com duas filhas de 22 e 15 anos, e três netos, em uma casa alugada no
bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo. Assim como Rosana, ao terminar o
expediente no restaurante, ela prepara o jantar e o almoço do dia seguinte para a família. Após
incontáveis experiências profissionais das mais variadas, entre trabalhar como feirante,
vendendo retalhos de tecidos e em vários restaurantes populares, Helena vendia pastel em
rodeios no interior de São Paulo, mas saiu porque a rotina de viagens não permitia que ela
passasse tempo com os netos, e eles lhe cobravam.
Eu saí de rodeio pra vir pra cá. Porque meus netos queriam que eu não
viajasse mais. "Oh vó, não viaja não, fica aqui. Sabe o que você faz? Você
vai pro forró todo sábado... mas você vinha embora todo dia pra casa". Aí eu
falei, ah, então não vou mais não. Eles ficavam me ligando, "que dia que
você vem?", porque não era todo final de semana que eu podia vim.
172
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
173
Helena, 49 anos, cozinheira.
144
A chef Benê Ricardo cozinhou para 300 pessoas na sua própria festa de aniversário.
Mas ela chamou atenção para o fato de, ao menos, não precisado pagar pela festa toda, porque
conseguiu patrocínio de uma empresa. Mas que, no fim da festa, ela estava tão debilitada
fisicamente que foi necessário arrumar uma cama para que ela pudesse descansar. Parece que
ela não desfrutou muito da própria festa.
Agora no batizado dele [neto], a minha filha falou, “mãe pra você não
precisar fazer nada, vamos contratar crepe”. Falei “crepe? Pros meus
convidados?!” Que crepe o quê? (…) No meu aniversário de 50 anos, a irmã
falou 'Samira, você merece, vamos contratar um bufê e faz comida brasileira
e acabou'. Aí comecei a ligar pras pessoas pra convidar. Todos, sem exceção:
“Ah é? Que legal, que que você vai fazer pra gente comer?” Todos. Quando
eles falavam isso, eu falei “eu não posso decepcionar. Não posso”. Aí eu fiz
na minha casa, pra 70 pessoas ... eu fiz em casa pra 70 pessoas, foi uma festa
maravilhosa, todo mundo comia... (…) Eu gosto, eu gosto de fazer. A nossa
Páscoa, ortodoxa, ela geralmente, às vezes junto com a católica, às vezes
depois. Aí outra coisa que eu faço questão, que seja em casa também. De
fazer carneiro, de fazer o arroz175.
Samira faz questão de cozinhar para a família nas ocasiões especiais, como a Páscoa.
Às vezes elas têm convidados especiais, fora da família, que participam da Páscoa em função
174
Benê Ricardo, 73 anos, chef.
175
Samira, 55 anos, cozinheira.
145
176
Na pesquisa desenvolvida durante o Mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp, com homens e
mulheres que faziam cursos gratuitos de qualificação profissional na área da Confeitaria, já havia ficado claro
que, para as mulheres de baixa renda, o trabalho doméstico e de cuidados com a família impossibilitava que elas
se dedicassem ao trabalho profissional. Era necessário que elas tivessem alguma flexibilidade, e um emprego
“das 9h às 18h”, mesmo que com benefícios, criava tantos problemas em casa que muitas delas preferiam
trabalhar como diaristas, pra poder dedicar alguns dias da semana para casa e família.
147
das desigualdades sociais: nessa relação entre mulheres, uma delas se dedica à carreira,
enquanto a outra faz o trabalho doméstico que seria um empecilho para a primeira.
“Femmes Chefs. 80 restaurants de femmes, 200 recettes, astuces et secrets de cuisine”
(2004, Mulheres Chefs. 80 restaurantes de mulheres, 200 receitas, astúcias e segredos da
cozinha, em tradução literal) traz histórias de vida de 80 chefs mulheres. São muito variadas, e
vão desde as mulheres que fizeram o liceu profissionalizante e compraram um restaurante,
passando por aquelas que, filhas ou netas de grandes chefs, herdaram o negócio da família
(são 20 casos), até as mulheres imigrantes de outros países que foram reconhecidas na França
fazendo gastronomia tailandesa, vietnamita e húngara, entre outras.
A família não está presente em todas as histórias de vida, mas em pelo menos dez
delas adquire um papel central. Em 22 casos, a figura do marido aparece como o apoio
fundamental para que a mulher encontrasse sua verdadeira vocação, sua paixão, o trabalho
que vai defini-la. Nesses casos, os maridos trabalham no salão, ou são sommeliers, ou
colaboram no restaurante/ bistrô/ café/ hotel de alguma maneira.
Manuela, chef confeiteira de 32 anos, que não tem filhos, conta, comovida, sua
experiência de trabalho com outras cozinheiras e como ela observou a dificuldade que elas
tinham nessa “conciliação”.
acabei com a minha vida pessoal, eu não fazia mais nada, então eu resolvi
sair. É, não fazia sentido pra mim. Mesmo que eu não estivesse no local de
trabalho, eu tava em casa no celular, com funcionário me ligando, com meu
sous-chef desesperado e a madrugada. Então eu acabava dormindo cinco
horas por noite, quando eu conseguia dormir, e aí no outro dia de manhã eu
tinha que estar lá também, fazendo os dois turnos, então eu resolvi que não é
pra mim177.
Você começa às 8h da manhã e sai 1h da manhã. Você não tem vida. Mas as
pessoas meio que se orgulham disso, "eu não tenho vida, eu trabalho pra
caramba". Eu acho isso besteira. Eu acho isso nada a ver178.
177
Lenice, 30 anos, chef
178
Mariana, 31 anos, cozinheira.
179
Manuela, 31 anos, confeiteira.
180
Duas mulheres, amigas pessoais, são cozinheiras e estão envolvidas no curso de pós-graduação “História e
Gastronomia Brasileira”, oferecido pelo Senac Aclimação, em São Paulo. Também foi nessa unidade do Senac
que eu entrevistei o coordenador pedagógico e um docente, e onde participei de uma mesa-redonda sobre
mercado de trabalho com os estudantes.
149
Nas cozinhas profissionais, a divisão sexual do trabalho se expressa por meio de uma
diferenciação que hierarquiza as atividades. Existem atividades dentro da cozinha que
demandam o uso de muita força física e são, exclusivamente, delegadas aos homens, como o
transporte e manuseio de grandes peças de carne, que podem chegar a 20kg ou 30kg, caixas
de legumes e vegetais, panelas grandes cheias de alimentos. As mulheres que tentam
desempenhar esse trabalho se veem constantemente obrigadas a pedir ajuda.
Entretanto, há uma forte associação de algumas atividades com “trabalhos de
homem”, e não apenas as que demandam força física. Há uma separação das atividades que
não são desempenhadas por mulheres, atividades em que elas não se envolvem (ou não são
envolvidas). Há uma forte associação da grelha, do fogo e da carne com os homens. Também
são essas as posições mais valorizadas nas cozinhas, os trabalhos considerados mais nobres.
Por outro lado, há atividades que são mais associadas às mulheres, como a confeitaria e a
cozinha fria, que demandam um tipo de trabalho associado às características “naturais” das
mulheres, como a delicadeza, a paciência, o cuidado e a atenção aos detalhes.
Se você for numa hamburgueria, dessas hamburguerias que estão hoje todas
aí na moda, são homens que trabalham na chapa. Mulheres lavam. Lavam a
pia, lavam a alface, lavam a louça. Jamais vão ficar ali fritando. Porque é um
trabalho braço, porque é um trabalho muito mais forte, enfim. Várias
discussões, várias contextualizações. Então nesse sentido tem diferença. Não
deveria, não deveria181.
Mas na confeitaria é claro que tem mais mulher. (...) É porque é mais
delicado, né, tem esse negócio de ser mais delicado, tem que ser mulher.
Tem esse negócio na cozinha. Coisa mais bruta tem que ser um homem.
Tem, não adianta. Tem que ser182.
E assim, eu acreditei, depois que eu fiz aquele estágio que cozinha não é pra
mulher... de restaurante. (…) Porque na verdade cozinha de restaurante você
precisa ter força física. (…) Fisicamente, não dá. Não dá. No ___ onde eu
trabalhei, então o restaurante era no térreo e as câmeras eram no subterrâneo,
tudo bem tinha um elevador para você subir a mercadoria, mas eu tinha que
pegar na câmera, porque eu era estagiária, né?183
A cozinha fria, garde manger, entradas, saladas e a confeitaria (que pode ter um/a chef
confeiteiro/a e um/a ou mais assistentes) são muito associadas ao trabalho feminino. Segundo
Harris e Giuffre (2010), conforme a observação delas nos Estados Unidos, a cozinha quente é
181
Lenice, 30 anos, chef.
182
Carina, 18 anos, estagiária.
183
Rita, 60 anos, cozinheira autônoma.
150
mais dominada pelos homens, enquanto a cozinha fria tende a ter um número mais
equilibrado de homens e mulheres (p.30).
184
Lídia, 37 anos, chef.
185
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
151
manger em um subtítulo “Adivinha quem vai fazer as saladas?”. As ocupações da cozinha fria
tendem a pagar menos e a dar menos espaço para o trabalho criativo, o que reforça o
argumento de que as mulheres têm menos acesso à mobilidade dentro das ocupações porque
não conseguem ou não têm oportunidades de demonstrar suas habilidades na cozinha quente.
Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç (2018) realizaram uma pesquisa amostral com
homens e mulheres chefs em Istanbul, na Turquia, para verificar a percepção deles/as sobre
mulheres nas cozinhas de restaurantes. A maioria dos entrevistados afirmou que a maior
“vantagem” das mulheres é sua paciência, enquanto a maior “desvantagem” é que elas têm
pouca força física, fraqueza.
Marie (2018: 34), discutindo a presença feminina nas cozinhas profissionais da
França, afirma que, para que as mulheres sejam integradas em uma brigada, elas precisaram
“camuflar”, tanto quanto possível, sua feminilidade, controlando seus comportamentos e
procurando mimetizar os homens. Por outro lado, os chefs e cozinheiros reconhecem que as
aprendizes mulheres eram mais “cuidadosas” e mais “meticulosas”, associando essas
características à sua feminilidade.
Harris e Giuffre (2018: 104) observaram o mesmo nos Estados Unidos, afirmando que
as mulheres chefs precisavam cuidar da sua aparência para não parecerem muito femininas.
Elas precisam se vestir de forma mais andrógina, disfarçando seu corpo (como seios e
cintura), para que pudessem se misturar melhor com os colegas, ou seja, para que elas não se
diferenciassem. Tal esforço se justifica, segundo os depoimentos colhidos pelas
pesquisadoras, porque uma mulher que não esconde seu corpo pode perturbar a atmosfera de
trabalho ou o sentimento de camaradagem entre os homens (FINE, 1987 apud HARRIS e
GIUFFRE, 2018, p.104). A ideia de que as mulheres poderiam distrair os homens e prejudicar
o trabalho coletivo explica porque algumas mulheres eram criticadas por serem atraentes
demais186.
Nesse sentido, para obterem o respeito dos colegas e serem tratadas com alguma
igualdade, as mulheres falavam sobre se “desfeminilizar” (de-feminizing) para evitar críticas
ou comentários sobre seus corpos. É comum que, para entrar na cozinha, além de usar touca, é
solicitado às mulheres não usarem brincos, nem maquiagem, nem esmalte de unha.
186
Em um episódio lamentável da televisão brasileira, no final de um dos programas Masterchef Brasil, exibido
pela Rede Bandeirantes, um dos jurados “entrevista” a única mulher jurada e filma no celular, para publicar nas
redes sociais e, sem o menor constrangimento, afirma: “Muita gente não considera mais você como chef de
cozinha, cozinheira, considera você como uma puta gostosa, maravilhosa, linda, e eu tô louco pra lhe beijar. O
que você tem pra responder disso?”. Sem graça, ela responde “Que eu sou as duas coisas”. O vídeo foi publicado
em 16 de agosto de 2017 e está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8Bebmi17fUs (acesso em
10/12/2019).
152
Harris e Giuffre (2018: 102) apontam um problema que também encontrei: o fato de
que o comportamento de uma mulher ser frequentemente entendido como demonstrativo do
que seria o comportamento de todas as mulheres. “Às mulheres, individualmente, eram
frequentemente atribuídas tarefas de representar todas as mulheres trabalhando em cozinhas
profissionais”187. Isso coloca um peso extra sobre a atuação dessas mulheres no ambiente das
cozinhas, porque qualquer erro ou atitude reprovável que elas possam vir a tomar, refletiria
sobre todas as mulheres. Isso é verdade para a questão de ser “muito atraente” e como isso
pode atrapalhar o trabalho, mas também para a demonstração de emoções e/ ou fraqueza. As
pesquisadoras entrevistaram mulheres chefs que se esconderam no banheiro para ir chorar,
longe dos olhos dos colegas.
Nesse sentido, muitas mulheres evitam pedir ajuda aos colegas homens para não
“comprovarem” que não conseguem fazer determinadas coisas.
Carregar coisas que são muito mais pesadas do que... não há necessidade.
Hoje em dia nós somos duas mulheres na cozinha aqui, a gente tem coisa
pesada pra carregar, e a gente não tá morrendo. Mas é porque te pedem pra
fazer numa rapidez que... como é que você carrega uma coisa mais pesada
que você? Com rodas, com rodinha da lixeira. Mas ninguém tem paciência
pra isso, então você acaba tentando fazer um esforço que você não consegue,
e dá nisso188.
A panela, só a panela pesa 50kg. Uma caixa de tomate, você vai pegar lá,
30kg. Já começa o desafio por aí. Se você começa a arregar pra eles e pedir
ajuda pra eles o tempo todo, você tá na mão deles, entendeu? Você tá na mão
deles. A minha sorte é que eu consegui ficar lá porque eu não pedi ajuda pra
ninguém. Muito pelo contrário, eu me botava disponível e assistente de
todos. É pra limpar lula e limpar uma caixa de lula? Vambora marchar uma
caixa de lula, entendeu?189
187
Tradução livre do original “(…) individual women were often tasked with representing all women working in
professional kitchens”.
188
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
189
Lídia, 37 anos, chef.
190
Manuela, 32 anos, confeiteira.
153
de ambos, os trabalhos “pesados” tinham que ser realizados por homens, enquanto os
trabalhos que demandam minúcia e atenção aos detalhes tinham que ser feitos por mulheres,
embora, na prática, as mulheres realizavam trabalhos tão “pesados” quanto os homens.
“Mais caprichosas, mais atenciosas e menos estabanadas” (LAPA, 2019, p.151) é a
descrição que uma de suas entrevistadas usa para justificar a alocação de mulheres em
determinadas funções nas fábricas, aquelas associadas a um trabalho “mais feminino”, que
também têm menor remuneração. Essa é uma questão central de sua análise, principalmente
quando observa que esse argumento das características inatas femininas não são valorizadas
para realizar os trabalhos “pesados” ou penosos, e “a força física é remunerada, mas não a
destreza manual, a minúcia ou a resistência nervosa”, já que “tais qualidades não seriam
adquiridas através de uma formação, mas inerentes ao sexo feminino” (KERGOAT,
2018[1978], p. 33 apud LAPA, 2019, p.150).
Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011, p.63), em sua pesquisa sobre as mulheres na
indústria, observa que há uma relação entre a tarefa e quem realiza a tarefa, “a lógica da
divisão sexual do trabalho e de suas implicações não reside exclusivamente no que se faz, mas
em quem faz”, o que revela que, para além dos critérios considerados naturais que definem
“masculino” e “feminino”, “as implicações remetem a uma hierarquia que não está contida na
diferença dos dois conceitos, mas na relação social neles embutida” (idem, p.64). Ainda de
acordo com a autora, essas representações “obedecem a tradições, a hierarquias que fazem
parte da cultura de trabalho” (idem, p.65), o que parece muito próximo do que foi observado
nos relatos sobre o trabalho nas cozinhas profissionais.
A autora conclui que a divisão sexual do trabalho está inserida em uma divisão mais
ampla, a divisão sexual da sociedade, que cria as convenções em torno do que é considerado
masculino e feminino, e chama atenção para o fato de que “A divisão sexual do trabalho
mostra que a relação do trabalho é uma relação sexuada porque é uma relação social” (p.67).
Nesse sentido, “as imagens do masculino e do feminino não só consolidam diferenças, mas
contêm hierarquias: são imagens de poder” (SOUZA-LOBO, 2011 [1991], p.81-82).
Bouazzoni (2019: 51) também questiona os estereótipos femininos de pouca força
física e fragilidade corporal quando fala sobre as mulheres na agricultura, as camponesas, por
exemplo na África Subsaariana, onde, de acordo com um relatório da ONU Mulheres, as
mulheres carregam algo em torno de 80 toneladas de água, madeira e produções agrícolas por
quilômetro – oito vezes mais do que os homens na mesma região.
Há uma trama de poder por trás da naturalização das atividades femininas e
masculinas, sendo as masculinas mais valorizadas e, portanto, dotadas de mais poder. Em um
154
ambiente como as cozinhas profissionais, onde há muita pressão, onde o poder se exerce
sobre os subalternos na forma de gritos, de ameaças e de outras agressividades, onde as
jornadas e o cotidiano do trabalho são extenuantes e muito exigentes, constrói-se a ideia de
que apenas resistem a esse trabalho os que são mais fortes. Segundo Roscoe (2012: 2), as
habilidades mais respeitadas na cozinha são a capacidade de trabalhar por longas horas,
sacrificar o tempo pessoal, suportar dor física e competir “com os outros meninos”191,
características muito associadas à masculinidade. Às mulheres que pretendem sobreviver
nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes, em alguma medida, se masculinizarem, sob
pena de sofrerem assédio, pois o assédio assume diversas formas e é naturalizado de distintas
maneiras dentro da cozinha.
As mulheres precisam abrir mão do que as diferencia como mulheres para poderem
ocupar o lugar do “universal neutro” inexistente, ou seja, se aproximarem dos
comportamentos masculinos. Por outro lado, as mulheres precisam suportar condições mais
duras, além das brincadeiras e assédio, como se tivessem que provar, constantemente, que são
tão boas quanto os homens, tão merecedoras quanto eles de estar ali.
Em uma conversa informal, uma informante comentou sobre o “teste” ao qual foi
submetida, sem saber, quando começou a trabalhar em um restaurante. Ela passou os
primeiros 21 dias sem nenhuma folga. No vigésimo dia, véspera de ter seu primeiro dia de
descanso, um dos colegas comentou “você passou no teste, agora você pode voltar”,
sinalizando que a maratona ilegal de três semanas de trabalho direto era uma forma que o chef
e a equipe tinham de saber se ela “ia aguentar”, se ela “dava conta”.
Outra entrevistada era a única mulher trabalhando na cozinha do restaurante no
momento da entrevista, como chef confeiteira.
A maioria das pessoas trabalha lá há 20 anos, é uma cozinha muito antiga,
bem tradicional. Eu fui por indicação, mas assim, cheguei lá e já me deparei
com um preconceito. "Você não vai aguentar ficar aqui nem três meses". De
fato, realmente, eu não tô conseguindo ficar lá, mas não por isso, não por
191
Tradução livre do original: “The abilities to work grueling hours, sacrifice personal time, endure physical
pain sustained in the kitchen, and compete with the “rest of the boys” are often the qualities most respected in
the kitchen”.
192
Tradução livre do original: “If women want to work in professional kitchens, they have to endure not only all
difficulties of place but also they have to put up with jokes, abasement, and sexual harassment. They face a great
amount of pressure that paves the way for mobbing”.
155
Na verdade os homens quando olha pra uma mulher que tem um cargo
assim, eles querem um pouco, se você deixar, eles tentam... não sei como
usar a palavra... eles são danado. Mas a gente tem que ter cuidado. Tem que
dizer "eu vim aqui pra isso e acabou", entendeu? Tem, mas não muita. (...)
Às vezes eles só te olham estranho pelo fato de você ser uma mulher. Mas
acho que todo lugar é assim, principalmente na cozinha, porque 80% das
cozinhas hoje, o chef é homem. As mulheres que estão invadindo agora. Eles
ficam meio estranho, mas eles aceitam depois197.
193
Manuela, 32 anos, confeiteira.
194
Harris e Giuffre, 2018, citando a entrevistada Karen: “you’re really not supposed to be here in the first place”
(p.101).
195
Em tradução livre do original: “The worst side of that situation is women feel obligated to adapt themselves
to macho atmosphere to exist because to a large extend, they are aware of the fact that eradicating widespread
prejudice towards women about their ability to perform tasks is really hard”.
196
No original: “Even though they succeed in existing in male dominant field, they feel the obligation of being
accepted by men” (Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç, 2018).
197
Joana, 38 anos, chef.
156
A associação do trabalho culinário com uma hierarquia militar também está associada
à natureza feminina do trabalho e às formas recorrentes de reafirmar masculinidade por parte
dos homens. Se cozinhar é uma atividade feminina, os homens que realizam esse trabalho
precisam reiterar sua masculinidade constantemente. Scavone (2007) afirma que, embora no
contexto da alta gastronomia a figura do chef seja masculina e imbuída de poder, existiram
contextos em que os homens cozinheiros eram vistos como inferiores, geralmente em grupos
totalmente masculinos, como os tropeiros ou em acampamentos de guerra. “Entre os
cangaceiros, por exemplo, o cozinheiro era a pessoa mais medrosa do grupo” (SCAVONE,
2007. p.39). A autora afirma que são comuns as brincadeiras acerca da sexualidade dos
cozinheiros, com uma desvalorização ou inferiorização de quem executa essa função.
Bourelly (2010) retoma a origem da cozinha profissional nas fileiras dos batalhões do
exército, o que está em consonância com a necessidade que esse militar, que não vai para a
linha de frente, que não pega em armas, que não enfrenta o inimigo, se equipare aos outros
homens, evite ser visto em uma posição inferior ou menos masculina. Isso pode explicar a
associação da cozinha a um passado cavernícola de caça e manipulação de grandes pedaços
de animais.
4. Mixidade no trabalho
Essa concepção de masculinidade e a forma como ela é vivenciada nas cozinhas pode
ser analisada a partir do conceito de mixté au travail (traduzido aqui por mixidade198), levando
em consideração que a cozinha é um espaço de trabalho misto – pelo menos a princípio.
Sabine Fortino (2009a: 28) afirma que o avanço em termos de mixidade, quando se traduz por
uma progressiva entrada de mulheres em setores ou atividades onde elas estavam ausentes ou
em número muito reduzido, se constrói sobre um fundo de desigualdades sexuais recorrentes
em matéria de contratação e de promoção. Ela reconhece, portanto, que as mulheres “pagam
um preço alto” por entrarem nos trabalhos dos homens.
No caso da cozinha, a mixidade precisa ser considerada enquanto elemento
constitutivo do espaço de trabalho, onde ela existe e onde não existe. Por um lado, o discurso
de que as ruas são perigosas e que a noite apresenta mais risco para as mulheres
frequentemente justifica a não contratação de mulheres para o período noturno ou
198
Lapa (2019) faz uma consideração sobre a tradução de mixté au travail e coexistência entre os sexos, optando
por utilizar a palavra “mixidade” (p.170), com a qual concordo e aqui incorporo.
157
impossibilita que elas aceitem o serviço de jantar (como foi apontado pela chef Lenice em
entrevista). É preferível contratar homens, que correm menos risco ao trabalhar até mais tarde,
de permanecer no restaurante noite adentro. Por outro lado, tal discurso possibilita a criação
de um período em que não há mulheres na cozinha, em que os homens ficam “à vontade” pra
falar e brincar como quiserem.
Nos períodos em que há homens e mulheres, a diferenciação se dá por outras
intermediações. Frequentemente, as mulheres se veem diante de tarefas que exigem força
física e pedem ajuda aos homens para carregar caixas ou panelas. Isso reforça a ideia de que
existem trabalhos na cozinha que não podem ser desempenhados por mulheres, trabalhos que
precisam ser feito por pessoas muito fortes, e que essas pessoas obrigatoriamente são homens.
Nesse sentido, muitas vezes os homens arriscam a própria saúde carregando peso,
demonstrando sua força física ou aptidão para tal trabalho, sob pena de ter sua masculinidade
questionada.
As panelas são pesadas. Depende, entendeu, porque tem panela que eu nem
tiro do fogão, e às vezes eu chamo os meninos. Porque esse braço meu aqui
já foi quebrado. Eu não tenho muita força nele. Aí eu falo pros meninos me
ajudarem199.
Eles fazem serviço de... eu acho que poderia até falar de homens também,
sabe, porque são vítimas também. Tem um lá na cozinha do ___ que está se
arrastando, com a perna, ele não tá aguentando andar e não tem ninguém que
olhe pra ele dentro da empresa e fale "bicho, você precisa se afastar, você
precisa se cuidar". Ele não tá se aguentando, ele fica assim, se arrastando,
trabalha lá há anos200.
199
Helena, 49 anos, cozinheira.
200
Manuela, 32 anos, confeiteira.
158
201
Tradução livre do original “La virilité désigne la croyance em l’invulnérabilité massculine”, grifo da autora.
159
Elisa, cozinheira na Vila Mariana e que mora no Capão Redondo, no extremo da zona
sul de São Paulo, utiliza várias estratégias para chegar em casa de madrugada.
Então você sai, em média, até 1h da manhã. Imagina, uma mulher saindo 1h
da manhã, como fazer pra pegar transporte? Não tinha transporte na época,
assim, ônibus 24 horas. Não tem até hoje. Não tinha como aceitar202.
A questão do transporte público que não funciona 24 horas é muito complicada para
quem precisa trabalhar depois da meia-noite. Enquanto Elisa tinha “dez anos trabalhando na
madrugada” e já conhecia os caminhos em seu bairro, Manuela era recém-chegada e não tinha
essa malícia, que só se adquire com o tempo. Ela abriu mão de algumas oportunidades
profissionais por conta do trabalho noturno e da distância da sua casa.
Aí tinha uma menina que ficava comigo, eu era chefe dela, ela era do Sul. E
ela disse "eu nem sei, eu preciso muito do meu trabalho, mas eu moro em
Paraisópolis, e transporte em Paraisópolis é até meia-noite, se eu perder, eu
não consigo voltar", e eu disse "Meu Deus, como é que eu vou fazer se o
restaurante fica aberto até às 3h da manhã limpando coisa?". Aí eu falei "faz
o seguinte, fala com as meninas, mas por mim, eu seguro a barra pra você,
deu seu horário, você pode ir embora. Eu moro mais perto, eu fico". Aí ela
conseguiu esse feito de sair no horário dela. Porque eu me comprometi a
fazer o serviço dela.
202
Manuela, 32 anos, confeiteira.
161
reclamava, que tentava dialogar com os donos sobre as dificuldades do trabalho. Entretanto,
ela não enxerga que esse problema possa estar relacionado com papéis de gênero.
Que é trabalho de escravo que eles fazem. Eles querem abrir um restaurante,
ou então algum sócio que tem dinheiro chama um ex-cozinheiro do ____,
bota como chef, faz aquela publicidade, não sei que, mas os cozinheiro é
tudo maltratado. Tudo maltratado. Eu não vi, eu não tive essa experiência,
mas eu conheço gente, fornecedor, que foi fazer entrega de mercadoria em
um desses restaurantes famosinhos, que era liderança uma ex-chef mulher,
do ___. E ela maltratava todo mundo, a arrogância lá em cima. E era mulher.
Um dos desafios metodológicos que esta pesquisa me apresentou foi o contato com
mulheres negras cozinheiras. Conversei com oito mulheres que se identificavam como negras,
mas tratar tal questão ao longo da entrevista se mostrava muito delicado. Em quase todos os
casos, as mulheres recusavam a identificação de “mulher negra” e rapidamente mudavam de
assunto, ou silenciavam, esperando a próxima pergunta – depois de “qual você considera que
é sua cor ou raça?”.
Considero, entretanto, que é fundamental tratar a questão das mulheres negras com
olhar mais atento e cuidadoso. Sueli Carneiro (2011: 121) faz uma crítica ao tratamento da
“temática específica da mulher negra”, geralmente secundarizada dentro da universalidade de
gênero, o que mais uma vez invisibiliza essas mulheres. É fundamental considerar a dimensão
racial “na temática de gênero que estabelece privilégios e desvantagens entre as mulheres”,
ela insiste, e é o que pretendo reconhecer aqui. Mas não do ponto de vista quantitativo.
162
Convém ressaltar que, das 32 pessoas entrevistadas nesta pesquisa, apenas duas
mulheres não são tratadas por pseudônimos: Cidinha Santiago e Benedita Ricardo. Cidinha
Santiago é uma figura pública, culinarista de televisão, e sua trajetória não permite que ela
seja chamada por outro nome. Benedita Ricardo, que eu conheci por intermédio de Cidinha,
infelizmente faleceu durante este trabalho. Como eu tive a oportunidade de falar sobre sua
vida e carreira publicamente, não faria sentido trocar seu nome203.
Considero tanto Cidinha Santiago quanto Benedita Ricardo mulheres negras pioneiras
na cozinha, cuja contribuição para o que hoje se chama gastronomia brasileira é
incomensurável, mas que tiveram e têm (até hoje, continuamente) suas trajetórias
invisibilizadas, mesmo num momento em que a gastronomia e a cozinha estão hiperexpostas
nas mídias.
Dessa forma, pretendo discutir a articulação das relações de gênero, classe e raça a
partir das trajetórias de vida dessas duas mulheres que foram gentis o suficiente para me
doarem seu tempo e suas histórias, do ponto de vista qualitativo, para embasar minha
afirmação de que elas são pioneiras.
203
Quando da morte da chef Benê Ricardo, publiquei um artigo no jornal Brasil de Fato em 23 de abril de 2017,
intitulado “Mulher negra e chef de cozinha: Benê Ricardo, presente!”. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2018/04/23/mulher-negra-e-chef-de-cozinha-bene-ricardo-presente/ (acesso em
11/12/2019).
Em função deste artigo, fui contatada pelo jornalista Tiago Rogero, do jornal O Globo, para falar sobre a chef
Benê no podcast Negras Vozes, produzido por ele. O podcast está disponível em
https://oglobo.globo.com/podcast/negra-voz-historia-da-1-chef-de-cozinha-do-brasil-bene-ricardo-uma-
entrevista-com-chef-dandara-batista-03-23954446 (acesso em 11/12/2019).
163
Sim, eu reparei. Ela também era a única mulher negra no evento. Aliás, poucos eram
os homens negros, menos ainda com o título de chef. No cartaz, apenas mais uma pessoa
negra, o sous-chef de Carla Pernambuco, cujo apelido era Meia-Noite.
Passei praticamente o resto do evento seguindo Cidinha. Primeiro, porque ela era uma
mulher fascinante e cheia de histórias para contar. Depois, reconhecida por todos os chefs que
lá estavam, era frequentemente abordada para tirar foto, para gravar vídeo ou apenas para
ouvir as pessoas dizerem "é uma honra te conhecer!", "você fez parte da minha infância!". Ela
comandou uma oficina sobre culinária angolana – embora a programação do evento
anunciasse "confeitaria africana". Preparou uma galinha com quiabo, e se dirigiu ao local da
oficina carregando uma pesada sacola com várias aves, cada uma delas correspondendo aos
diversos momentos da preparação. Tudo cuidadosamente embalado, assim como os
acompanhamentos – conhecimentos de alguém que ostenta uma experiência de mais de 20
anos cozinhando diante das câmeras.
164
O espaço onde ocorreu sua oficina era um dos mais concorridos. Ela preparou a mesa
onde iria trabalhar com muito esmero, trouxe de casa vários itens e enfeites que lembravam a
África, assim como o lenço que enfeitava seu cabelo. No fim do dia, ela nos brindou,
sentando-se com “as meninas da assessoria de imprensa”.
- Conta pra ela, Cidinha - dizia a jornalista -, conta quantos Natais passamos juntas
preparando encomenda de ceia.
- Verdade, amiga, quantos Natais! Eu fiz muita encomenda de ceia, eu faço até hoje.
Faço encomenda pro Natal, pro Ano-Novo, pra Páscoa... mas hoje eu já seleciono, não dou
conta de ficar cozinhando dia e noite, não. Não vale a pena.
Cidinha Santiago se tornou conhecida por ser a auxiliar de Ofélia Anunciato, de A
Cozinha Maravilhosa de Ofélia, o primeiro programa culinário da televisão brasileira. O
formato apresentando uma senhora branca, bonachona, preparando o passo a passo de
deliciosas refeições diante das câmeras, foi inaugurado por ela no Brasil e é copiado até hoje.
É por isso que tantos chefs e cozinheiros conheciam e reconheciam Cidinha no Encontro de
Chefs. Eles a acompanharam na televisão desde sempre, assistindo Ofélia.
Mas como essa mineira de Belmiro Braga debutou na televisão ao lado de um dos
maiores ícones da culinária brasileira à época? Esta é uma longa história que ela me contou
muito animada, pois é a história que ela repete em toda entrevista. A resposta simples e curta
é: Cidinha era empregada doméstica de Ofélia que, quando esta foi convidada para fazer um
programa de culinária na TV, ela "naturalmente" levou Cidinha para ajudá-la, como que
reproduzindo o que fazia em casa. Mesmo quando a atração se tornou um sucesso e Ofélia
ficou famosa no Brasil inteiro, ao seu lado estava Cidinha, tanto nos estúdios, quanto em casa.
Quando Ofélia envelheceu e adoeceu, Cidinha continuou cuidando dela, até sua morte.
Ela batalhou para permanecer na tela da televisão. Há mais de 20 anos trabalha como
"culinarista de TV", como se identifica profissionalmente, com várias pessoas em diversos
canais. Mas sempre como auxiliar. Sempre ao lado de alguém que recebe a luz de todos os
holofotes. Não raro, pessoas com muito menos experiência e muito menos conhecimento.
Cidinha fala de Ofélia com amor, com verdadeira devoção. Naquela tarde que
passamos juntas, ela me mostrou os vários presentes da Ofélia, lembranças guardadas com
apreço e carinho. Com respeito, relembrava do quanto Ofélia a ajudou, como fora boa com
ela. Recordou, emocionada, que foi Ofélia quem organizou seu chá de bebê pela televisão, as
telespectadoras acompanharam toda a sua gravidez e que recebeu presentes do Brasil inteiro.
Dedicada, esteve ao lado de Ofélia até o fim e nunca lhe passou pela cabeça deixá-la para
seguir seu próprio caminho ou outra carreira.
165
Ofélia não foi sua primeira patroa. “Com 10 anos fui trabalhar em casa de família. Fui
cuidar de uma menina, até que foi aniversário dela ontem. E ela fez 40... 49 anos”. Sua mãe
era doceira e seu pai, padeiro. Cidinha tinha 11 irmãos. Trabalhar em casa de família ainda
criança era uma forma de ter um a menos para alimentar e cuidar diariamente.
Ao completar o ginásio, Cidinha estudou para ser enfermeira em Juiz de Fora (MG), e
lá também se empregou em casa de família, “E daí já era cozinheira de forno e fogão”, afirma.
Após um ano, ela desistiu da enfermagem, porque a realidade que encontrava nos hospitais da
cidade não condizia com o que ela achava que devia ser o trabalho em saúde. Ela achou que,
se seguisse a carreira, “eu ia brigar muito”, então decidiu sair “e me dedicar com mais força
pra cozinha”.
E com isso, aí depois que eu saí da casa de família... nesse ínterim, eu
escrevi um livro de... cozinhando, e aprendendo bastante coisa, eu escrevi
um livro. Aí virou curiosidade. Porque minha madrinha, madrinha que
gostava muito e me cuidava muito assim, e a filha dela trabalhava na Globo.
Aí foi curioso, virou pauta: uma empregada doméstica escrevendo um livro
de culinária.
O livro que ela escreveu em 1985, “Receitas de comidas típicas” teve tiragem de mil
exemplares, hoje totalmente esgotados – ela mesma não tem sequer uma cópia do livro.
Cidinha pagou do próprio bolso pela edição. E, continua ela, com o livro debaixo do braço e a
convite de uma amiga, foi para São Paulo, novamente trabalhar em casa de família, cuidando
de dois gêmeos. Como eles passavam a maior parte do dia na escola, ela fez diversos cursos
gratuitos, de curta duração, oferecidos por empresas de eletrodomésticos como a Prosdócimo
e Continental 2001.
Aí, trabalhando com a amiga dela [da antiga patroa], eu fiz curso, aí eu
fazia curso, já fazia mais as minhas receitas, e fui fazer uma exposição no
Clube Pinheiros. É uma coisa muito legal, porque eu fui quebrando um
monte de barreiras, coisa que ninguém nem entrava e tal. Aí fui no Clube
Pinheiros, ela me levou no Clube Pinheiros, eu fiz uma minipanetone, coisa
de Natal, assim, fiz os camafeus, vendi panetone,
166
São muitos anos e muita experiência trabalhando como culinarista na televisão, mas
conforme ela mesma diz, prefere ser assistente e não ter seu próprio programa,
Chef, que todo mundo hoje virou chef, você põe um dólmã, todo mundo é
chef. Não, chef eu não sou, eu sou culinarista de TV. Defino isso bem claro.
E já passaram vários comigo também, os meninos. Tem um menino que foi
meu estagiário e hoje é professor na Anhembi Morumbi. Eu dei aula na
Anhembi Morumbi no começo. Dei aula na Renaissance, Faculdade
Renaissance também. Então assim, aquela coisa, a gente tem essa troca
muito grande, né. E todos os grandes chefs me respeitam pra caramba
também, eu respeito eles.
nunca nem me chamaram pra nada. Nem pra ir assistir o evento. Eu só fui
uma vez assistir o troféu porque tinha um amigo meu envolvido, aí eu fui
uma vez. E aí uma única vez também, um pessoal do __ [partido político]
também, que eram uns amigos negros que tinha aí, aí falaram assim "ela faz
sempre o papel da empregadinha". Então, eu já ouvi isso. Por isso que eu
falo, não tenho essa coisa sentido, sinto mais de negro pra negro, do que
coisa. Às vezes o metrô tá cheio, tá lotado, dependendo da hora que eu vou,
dependendo da hora que eu chego, os orientais levantam, um branco levanta,
os brancos me reconhecem.
- Você tem que conhecer ela, ela foi a primeira! - me disse, animada, Cidinha Santiago,
quando eu a entrevistei em 17 de outubro de 2017. Em 6 de novembro, fomos juntas à casa da
chef Benê Ricardo, localizada no bairro de Santana, zona norte de São Paulo.
Ao entrar na casa, parecia que ela havia acabado de se mudar, pois eram muitas caixas
e pilhas de livros e revistas no chão da sala. Chamou-me a atenção também a quantidade de
diplomas, certificados e outros documentos enfeitando as paredes. Benê era uma mulher alta,
204
A Casa da Memória Negra de Salto não tem site próprio na internet, mas foi possível acessar informações
sobre o museu e a contribuição de Cidinha na produção do vídeo "Receitas tradicionais da Culinária Negra
Saltense" em https://www.andreiavigo.com/casa-da-memoria-negra-de-salto (acesso em 17/12/2019) e
https://revistaregional.com.br/site/2016/11/04/casa-da-memoria-negra-em-salto/ (acesso em 17/12/2019).
169
magra e de voz grave. Os cabelos grisalhos eram presos em um coque e ela me acolheu com
muito carinho e gentileza.
Praticamente tudo que havia em sua casa era “presente de aluno”. As panelas Le
Creuset, todas empilhadas sobre as caixas, eram um presente: “tenho um aluno que trabalha
lá, ele mandou pra mim essas panela”205. O kit com mais de 20 tipos de tempero em sua
cozinha: “esse foi meu aluno lá da Anhembi que me deu”.
Nossa conversa de uma tarde inteira parece ter passado muito rapidamente. Benê se
desculpava o tempo todo. “Tô te chateando, né, filha?”, ela dizia, e eu respondia que estava lá
para ouvi-la. Contou estar doente, com um problema no baço, mas estava se tratando,
consultando médicos e provavelmente faria uma cirurgia. Benê estava apreensiva e não queria
se estender falando da doença. Mais tarde soube que ela estava com câncer.
Era um sábado quando Benê morreu, 31 de março de 2018. Desde o final de 2017,
algumas vezes conversamos por telefone - quando eu criava coragem para ligar e perguntar se
poderia visitá-la de novo. Sempre simpática, se desculpava e dizia não estar bem de saúde,
mas que me receberia assim que melhorasse. Nunca mais a vi. Foi Cidinha quem me informou
sua morte e sobre o velório e o enterro em sua cidade natal, Ouro Fino/ MG. Passei a semana
seguinte procurando notícias do seu falecimento em jornais e redes sociais. Encontrei apenas
uma nota no jornal Gazeta de Ouro Fino, lamentando a morte de sua ilustre cidadã. Ana
Maria Braga, apresentadora de um programa matinal na Rede Globo, que havia recebido Benê
algumas vezes na atração, fez um comentário de 40 segundos na segunda-feira, dia 1º de abril.
Em jornais e revistas, muito antes de sua morte, assim como em programas de
televisão que ensinam a fazer receitas, a história de Benê Ricardo era apresentada em um
emocionante tom de heroísmo, de superação e de vitória, apesar de tudo e de todos. Órfã,
sozinha no mundo, ela se tornou chef de cozinha, foi reconhecida entre os seus, publicou
livros. Mas sua história de superação não é contada como mais uma história de racismo,
machismo e exploração, é individualizada para corresponder ao ideal da self made woman.
Por considerar que a história de vida de Benê Ricardo é emblemática e importante,
dentro da metodologia elisiana que estou adotando nesta tese, compreendendo que sua
trajetória individual se conjuga à história mais ampla, como uma configuração, e como sua
vida é um processo dentro do processo histórico maior, retomo essa narrativa a partir da
entrevista que fiz.
205
Le Creuset é uma grife de panelas cuja garantia é praticamente vitalícia. Uma caçarola custa por volta de 730
reais, como pode ser visto no site https://www.lecreuset.com.br/cozinhar/panelas (acesso em 11/12/2019).
170
Benê Ricardo nasceu Benedita Ricardo, no povoado de Ouro Fino, zona rural de
Minas Gerais. Nunca conheceu o pai. Sabia que ele enfrentava problemas com o álcool e que
não raro agredia a mãe de Benê que, por sua vez, batia na filha também. “Minha mãe batia,
sim. Minha avó nunca bateu ni mim, minha mãe colocava perto do fogão de lenha, aquela
vara. Mas eu acho que ela descontou ni mim aquilo que meu pai fez pra ela, que ele é
alcoólatra. Hoje, perdoei”. Quando a mãe morreu, Benê, então com 8 anos, permaneceu com a
avó Eugênia, de quem tinha uma lembrança muito amorosa. Mas quando ela morreu, Benê se
viu sozinha no mundo.
Porque a minha mãe morreu de tétano, minha mãe morreu em 3 dias, minha
mãe morreu rápido. Eu fiquei com a minha avó. A minha avó morreu, eu
fiquei sozinha. Essa família viu que eu era sozinha, ele tinha fazenda lá em
Ouro Fino, e a esposa dele era de família portuguesa. Então, eu tinha que
encerar o chão, passar escovão, encerar. Ia tomar banho, eles desligava o
chuveiro. Eu dormia lá no fundo, aquele frio... 59 [1959] era frio aqui, né?
Os vizinhos da avó, em Ouro Fino, levaram a menina para casa. Lá ela fazia todo o
trabalho doméstico em troca de moradia e alimentação. A moradia era o quartinho dos fundos.
Dormia no chão, sem cobertor, era obrigada a tomar banho frio e usar roupas velhas. Sua
alimentação resumia-se na sobra da comida dos patrões e o leite sempre era misturado com
água.
E era tão frio que os cachorro cobria as minhas perna. Por isso que eu gosto
de cachorro, sabe. Eles esquentava meus pés. Eu ia tomar leite, ela colocava
água. Mas pelo menos eu era uma nega bem magrinha, se fosse hoje, eu era
top model, né?
Certa vez, num período de férias, a família viajou para Santos (SP) e uma vizinha, com
pena do estado maltrapilho da menina, ofereceu-lhe trabalho em outra casa.
… a minha patroa foi pra Santos, ela [a vizinha] chegou no muro, falou,
‘nossa, você é muito trabalhadeira, você... não reclama, tá sempre alegre,
trabalhando, não reclama, você merece uma coisa melhor’. Mas ela disse que
o que mais deixou ela mais... de ver que eu não era bem tratada, mas eu
defendia meus patrões, ‘eu tenho uma família que precisa de uma pessoa que
nem você’. Eu falei ‘não, depois eu saio daqui, eles vão ficar preocupado
comigo’. Ela falou que ficou surpreendida de eu não ser bem tratada e ainda
ter medo que eles ficassem preocupada comigo. Eu sempre fui católica,
respeitei a religião. Comecei a ir na Verbo Divino, ali, na missa. Aí eu via
aquelas empregada, tudo bem arrumada. Fui falando, falando, falando. Aí eu
disse "eu quero". Aí ela me levou pra casa dessa família.
Foi quando Benê aceitou ir para a casa de uma família alemã. Alguns anos mais tarde,
os patrões a levaram para a Alemanha, onde ela viveu por sete anos como empregada
doméstica, babá e cozinheira. Começou a trabalhar nesta casa quando ainda era "de menor" e
171
com esta família permaneceu por 18 anos. Inclusive, referia-se aos dois filhos dos patrões,
que ajudou a criar, como "meus filhos".
Com a convivência, ela se tornou praticamente uma especialista em culinária
germânica, pois, ressaltou ela, “alemão gosta de ensinar”. "Eu sou avó já", comentou. Mais
tarde, já cozinheira profissional, foi contratada para ensinar empregadas domésticas a
cozinhar em diversas casas de família, mas a nova atividade não durou muito tempo.
Nossa, eu fiquei com tanto dó... A gente vê cada coisa. Porque ela chama
muito pra dar aula pras empregada em casa, chef em casa. Ah, eu cansei
daquilo ali. (…) Eu peguei bastante serviço... Mas aí eu vejo como as patroas
tratam as empregadas, e eu... nunca ninguém me tratou dessa forma depois
que eu... e eu não aguento.
Após aqueles 18 anos, ela participou de um concurso promovido pela revista Claudia.
A receita que ela mesma criou, Torta de Temperos, ganhou o primeiro lugar. Então, foi
convidada para participar da Cozinha Experimental de Claudia, da Editora Abril, e as receitas
eram testadas, fotografadas e publicadas na revista.
Eu fui uma das primeiras empregadas registradas, porque alemão gosta das
coisas tudo certinho. Eu fui uma das primeiras empregadas registradas. A
Edith convidou eu pra trabalhar. Aí eu cheguei na casa da minha patroa... eu
lavava a piscina, cozinhava, eu gosto disso, cozinhar, limpar, vidro, não
precisava de mais gente nenhuma, por isso que eu fiquei assim, doente, logo.
Eu cheguei e falei "ai, dona, ela convidou eu pra trabalhar". Olha, pra você
ver alemão como que é, ela falou "olha, só que não dá mais pra você ficar
aqui. Tem que vir uma outra pessoa. Eu sei que não vai ter outra pessoa que
faz o que você faz, mas aí você vai ter que ir todo dia aí pra firma e aqui não
dá pra fazer”.
Ela deixou a família com a qual passou 18 anos e começou uma nova carreira. Mas
esta só durou três meses, o tempo de experiência.
perdão... você vê... a vida cobra. Acho que ela tinha uns 12, 13 anos. Ela
sabia o que tava fazendo, sim.
Assim, Benê se viu sem trabalho, sem dinheiro e sem ter onde morar. Acionou a rede
de amigas e conhecidas pra ver quem poderia lhe ajudar. Uma das mulheres dessa rede a
levou para trabalhar em uma empresa terceirizada de catering, em que Benê preparava
jantares e banquetes para eventos.
206
Maria Aparecida é Cidinha Santiago, que estava presente durante toda a entrevista.
173
roupa, pra pagar o que eu tô...". Deu tudo certo. Mas aí lá eu senti um pouco
de preconceito. Além de ser mulher, negra.
Benê passou quatro anos da sua formação em Águas de São Pedro. Enquanto os
colegas homens dividiam os quartos no alojamento, viajavam e tinham seus momentos de
lazer quando não estavam no curso, ela estava fazendo faxina e cozinhando na pensão onde
vivia em troca da moradia.
Mas quando era pra sair assim, pra cidade, eles nunca me convidavam. Mas
eu não ligava. Aí eu ia fazer curso de camareira, aprendi a fazer... ia na
lavanderia aprender a fazer coisa. Na lavanderia eu aprendi tudo. Por isso
que eu fui pro ___ [hotel famoso na época em São Paulo]. Eu era cozinheira
supervisora do piso B. Naquela época era... foi lá que eu vi que tem
preconceito. Tem preconceito... que naquela época, no ___, em 89, era só...
só americano.
Sobre o racismo, Benê reconhece muitos momentos em que ela se sentiu descriminada
por ser negra, mas sempre construía a narrativa de modo a nunca se colocar como vítima, e
rapidamente emendava algo ameno, como "eu nem liguei" ou "eu perdoei". De acordo com
Lélia Gonzales (1984), “para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a
neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz
efeitos violentos sobre a mulher negra em particular” (p.224).
É curioso perceber que, mesmo tendo se tornado professora do próprio Senac mais
tarde, mesmo sendo reconhecida em sua própria profissão (principalmente entre seus pares),
Benê falava sobre seus méritos e até sobre a sua formação com imensa humildade. Depois de
dizer que a sua “nota do Senac” equivalia à pós-graduação, ela deu uma longa gargalhada,
como se fosse uma grande ironia pensar em si mesma como pós-graduada.
O clube não entrava negro. Mas daí quando eu comecei a fazer televisão,
aí... você sabia que Ouro Fino não tinha no mapa do Brasil. Agora tem. Tem
um hotel lá, o Menino da Porteira. Então, e esse clube não entrava negro.
Mas você sabe, Maria Aparecida [Cidinha], eu não sou aquela pessoa de
guardar raiva. Porque quando eu comecei... eu nunca menti das minhas
origem. Eu sempre falei "eu sou de São José do Mato Dentro, é município de
Ouro Fino", onde eu nasci que é lá. Aí falava na televisão, nos programas
que eu fazia. Aí o prefeito de Ouro Fino mandou eu... que queria que eu
fosse receber um prêmio. Aí eu fui. Eu falei "olha, eu não vim por causa
174
Durante a entrevista, foi este o único momento em que ela comentou que ganhou “um
prêmio da Nestlé pra mim representar o Brasil na França”, que nada mais é do que uma das
mais importantes premiações da gastronomia mundial, o Bocuse d’Or, em 2001. Ela ficou em
segundo lugar no Brasil e ganhou um prêmio, mas não a chance de representar o Brasil na
França207.
Sobre a sua formação no Senac, Benê falava sobre uma rotina pesada, carregando
peso, destrinchando carne e, sobretudo, fazendo limpeza.
… lavando aquelas panelas... aquelas panelas que tinha que entrar dentro,
grande... 20kg de feijão. Lavando aquelas panelona. Depois vai pra copa.
Depois vai pro bouchirriê [boucherie], que é o açougue, todos os termo
francês. Aprendi... hoje eu dou aula pra açougueiro, por quê? Porque eu
aprendi tirar picanha, sei destrinchar tudo. É triste. Cordeiro, tirar carré de
cordeiro. Era pesado. Mas tinha que fazer. Senão não aprende. Hoje ninguém
sabe nada.
Logo que ela concluiu o curso de Primeira Cozinheira e se tornou a primeira mulher
formada no Brasil, Benê passou por várias experiências profissionais difíceis, que misturaram
machismo e racismo, no começo da década de 1990. Foi chamada para uma entrevista de
emprego em um restaurante e, chegando lá, foi solicitada pelo dono para limpar toda a
cozinha.
Eu cheguei pra trabalhar e ele falou "Senac me indicou a senhora". Cheguei
lá, botei minha carteira de trabalho, os documentos que o Senac deu. Ele
falou "hoje você vai limpar a cozinha, que tá suja. Hoje ninguém trabalha,
vai limpar a cozinha". Eu falei "É, sua cozinha tá precisando mesmo de
limpeza". Limpei a coifa, lavei a cozinha, tirei tudo de dentro da geladeira,
aquela imundície, joguei fora. Quando terminou ele falou assim "a senhora
tá contratada". Aí eu falei "só que eu fiz curso de gastronomia", falei pra ele,
"eu quero seguir como cozinheira, não quero mais ser faxineira. Já fui
muito", falei pra ele, "agora eu não quero". "Não, fica, porque a gente vai
pagar...". Eu falei "não quero, tchau. O senhor devia ter me respeitado. Mas a
sua cozinha tava precisando mesmo de uma limpeza". Eu sempre fui assim,
viu?
207
Quem representou o Brasil naquele ano foi Adilson Pinheiro Batista, que ficou em 16º lugar na classificação
geral do concurso. O vencedor da edição daquele ano foi François Adamsky, francês, seguido por dois suecos,
segundo e terceiro lugares – todos eles homens brancos.
175
Benê comenta, nesse trecho, que pegou “trauma de carteira assinada”. Esse é um
elemento interessante na forma como ela narra a própria história porque, depois dos anos que
trabalhou como empregada doméstica e cozinheira em casa de família, tinha grandes
expectativas para o trabalho em restaurantes (“quero seguir como cozinheira, não quero mais
ser faxineira”). Mas, mesmo assim, não estava disposta a aceitar qualquer trabalho,
especialmente aquele em que se sentisse desrespeitada e que a remetesse ao trabalho de
limpeza que ela realizou durante anos.
Em seguida, Benê começou a trabalhar nesse grande hotel de São Paulo. Era
supervisora, mas fazia o trabalho de chef. A demanda era preparar um jantar para 2 mil
pessoas. O prato principal: vitela. “Eu tenho pavor de vitela. Não gosto de vitela. Que é carne
de bezerrinho novo, né?”. Chegando na câmara fria para ver a carne que ia ser preparada,
Benê percebeu que a carne estava estragada.
Como o sous-chef não a obedecia e Benê se recusava a preparar a carne estragada, ele
chamou o gerente do hotel, um suíço. Ao ver a quantidade de carne que Benê insistia em jogar
no lixo, ele começou a questionar seus conhecimentos.
E isso doeu. Ele chegou falou pra mim "Você entende de coisa estragada?"
Eu falei "eu não entendo falar enrolado que nem o senhor, mas isso eu
aprendi com minha avó lá no meio do mato. A minha avó dizia que tudo que
tá roxo e espumando é estragado". Eu falei "ai, minha vó, me ajuda!". Eu
fico boba de ver, porque assim, a coragem que eu tive. Não sei se hoje eu
fazia isso. Por isso que o Brasil tá desse jeito. Desculpa, filha. Eu tomei um
trauma... desculpa, eu aposentei por contribuição. Eu tomei um trauma de
carteira assinada. Porque carteira assinada você tem que fazer tudo que os
outros quer. Eu falei, meu Deus, hoje eu preciso saber se eu entendo ou não.
Peguei no prato.
A certeza de Benê ter razão - além da sua convicção de que “tudo que tá roxo e
espumando tá estragado” - era o fato de ter sido contratada como supervisora justamente por
alguns incidentes que a cozinha havia enfrentado, um deles, aliás, terminou com 15 clientes
no hospital com intoxicação alimentar (“mas o ___ [hotel] fez acordo, né, a imprensa não fala
isso”). Diante da resistência do sous-chef e do gerente, mas convicta de que a carne estava
estragada, Benê foi até o dono do hotel e levou a carne para ele pessoalmente.
176
O dono do hotel viu que a carne estava estragada, suspendeu o serviço, mandou trocar
o cardápio do jantar. Mas a equipe se ressentiu da Benê e tomou uma atitude coletiva para
puni-la.
Virei bruxa. No dia seguinte me boicotaram todo meu trabalho. Veio só o
Toninho. Não veio ninguém. Eu fui no almoxarifado, naquela época eu era
forte. Saco de feijão... fui lá, carregava aqueles panelão. Cheguei 11 horas,
falei "ai, meu Deus, obrigada!", tava tudo pronto. Boicotaram. Você não sabe
o que eu já passei. Mas Deus é tão forte que eu consegui fazer tudo, chegou
11 horas o refeitório já estava com a comida lá. Por isso que eu tenho muita
fé em Deus.
Ela e um cozinheiro deram conta sozinhos do serviço que era realizado por uma
equipe de 15 pessoas. Ela terminou esse dia no pronto-socorro, com estafa: “eu passei mal, fui
pro hospital. Fiquei dura, de estresse. Me levaram eu pro pronto-socorro...”. Como ela não
desistiu, os boicotes continuaram. “Mas aí, um dia eu cheguei, fui na câmara fria, peguei o
molho de tomate. Cheio de caco de vidro moído. Deus que me mostrou, cheio de caco de
vidro”.
Tendo piorado muito sua condição de saúde e sentindo que não conseguiria mais
continuar trabalhando nessa cozinha, ela pediu as contas. Como discuti no início do segundo
capítulo, a constituição de laços de confiança e amizade são fundamentais para o trabalho
coletivo necessário em uma cozinha. E assim como eles servem para que todos trabalhem
bem, no mesmo ritmo, e produzam comidas deliciosas, eles também podem servir pra acabar
com a reputação ou com a saúde de uma pessoa, e foi o que fizeram com a chef Benê, antes de
ela se considerar chef. Benê ainda chamou atenção para o fato de que um dos rapazes que
trabalhava nessa equipe (ela não precisou quantos eram homens e quantas eram mulheres) era
negro. “E negro! E é negro. Depois fala que é branco que é racista”, o que parece indicar que,
na sua percepção, tal organização contra ela tinha um forte componente de racismo.
É bem assustador pensar que pessoas que trabalham com alimentação misturariam
vidro moído ao molho de tomate que serviriam num jantar, com o objetivo de prejudicar a
supervisora, assim como é extremamente inquietante pensar que, se não fosse a “teimosia” de
Benê, eles teriam servido carne estragada para 2 mil pessoas. Muitos dos/as cozinheiros/as
177
Óleo, azeite, carne, feijão, arroz, óleo, tudo no papelzinho, o que eu ia usar
na cozinha. Foi o gerente comigo, naquele carrão dele. Eu fui com o carrinho
e enchi com as minhas coisas. Ele chegou, eu na frente passando as minhas
coisas, eu falei "por favor, a minha compra é daqui pra cá". "A senhora quer
ficar com o emprego?", eu falei "daqui sim, daqui não". Eu tava
desempregada de novo. Ele tava com aquelas panela cara, caixa de vinho
cara, uísque...
Morumbi, a Faculdade São Judas, além de ter se envolvido em vários projetos sociais que
tinham a formação na cozinha como caminho profissional para jovens em situação de
vulnerabilidade. Como já apontei, Benê nutria um carinho muito grande pelos seus alunos, e
era recíproco.
De sua autoria, publicou o livro “A Cozinha da Benê”, sucesso de vendas (esgotado).
Mostrou-me vários livros em sua casa, muitos com receitas que ela assinava, alguns até
exibindo sua foto na capa. Mais tarde, já com o gravador desligado, conversamos sobre isso.
Suspirando, ela me disse: “acredita, filha, que só depois eu fui descobrir que tinham pagado
todo mundo pra fazer as receitas, menos eu?”. Foram muitos os casos que ela descreveu, em
que desenvolvia receitas que outras pessoas assumiam a autoria “Olha aqui quanta coisa eu
fiz. Um jantar, com tudo da Catupiry... com receita e tudo... Ele pegou e falou que foi ele que
desenvolveu. Que é dele. Tudo receita testada, com ficha técnica e tudo”. Falou também sobre
uma professora sua colega,
...que pegou minhas apostilas do Senac... Aí um dia ligou, falou que queria
devolver, que pegou minhas apostilas e tirou xerox, do Senac. Aí ela foi ser
professora. Mas deixa pra lá, eu não vou levar essas coisas comigo mesmo,
vai ficar tudo aí, deixa pra lá.
Lélia Gonzales (2011 [1988]) fala sobre a condição da mulher negra nas sociedades
latino-amefricanas e afirma
O duplo caráter da sua condição biológica-racial e sexual – faz com que elas
sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo
patriarcal-racista dependente. Justamente porque esse sistema transforma
diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um
caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem
parte, na sua grande maioria, do proletariado afro-latino-americano (p.17).
Depois de uma vida inteira dedicada ao trabalho, Benê não ficou rica, não ganhou
dinheiro. E a pior consequência disso foi seu limitado acesso aos tratamentos de saúde, o que
179
agravou muito sua doença. Como consequência, ela apresentou uma série de problemas de
saúde decorrentes das precárias condições de trabalho, como trombose.
… eu não pude pagar meu plano de saúde porque, por causa da minha idade,
foi pra 800 [reais] e pouco. Um colega meu que arrumou nesse lugar pra eu
fazer, porque nesse lugar é só pra quem tem empresa. Então, Deus ajuda a
gente.
Ela narra o tratamento que recebeu em um consultório médico particular, que ela era
atendida “nesse lugar pra eu fazer”.
Esse negócio de racismo que a gente tava comentando. Aquele dia que eu fui
naquela médica... o médico da trombose. Ela falou pra mim que quando
meus exames estivessem prontos era pra mim levar. Mas no dia 24 eu não
podia, e eu fui na outra terça. Pedi se ela podia dar uma olhadinha pra mim.
Pedi, lá na entrada, e disseram que ela não podia atender. Mas eu levei uma
bolachinha que ela gosta, embrulhadinha, bonitinha. Ela saiu lá fora, acho
que tinha, além dos clientes dela, mais ou menos umas 80 pessoas, ela
chegou assim "eu tô com mais de 80 cliente, eu não posso te atender agora".
Ela é minha médica, falando, alto. Eu falei "desculpa". Falei bem... falei
“desculpa, tá bom”. Não falei mais nada. E peguei as bolachinha que eu
levei pra ela, tudo embrulhadinha e dei pra ela. Chegou segunda-feira agora,
ela ligou. "Vem aqui terça-feira que eu vou te atender". Acho que alguém
que falou pra ela. Aí eu li o Evangelho de domingo. E eu vou falar com ela.
“Tudo bem, doutora, mas a senhora não precisava falar alto daquele jeito lá
fora, na frente de todo mundo”. Mas eu vou falar.
Não esperou nem insistiu para ser atendida pela médica, embora precisasse, embora
fosse idosa, embora tivesse se deslocado até o consultório. Apenas queria presentear a médica,
entregando-lhe as bolachinhas que havia feito e embrulhado com carinho. Mesmo depois de
ter sido constrangida na sala de espera, quando a médica gritou com ela na frente de todos,
Benê fez questão de lhe entregar o singelo presente.
Seu fim de vida foi muito simples e permeado por dificuldades financeiras. Só não foi
mais triste porque ela contava com a ajuda e boa vontade de muita gente que gostava dela.
Essa amiga minha, o marido dela é da Petrobras, ela veio e falou "Benê, eu
vou ajudar você". Ela me deu 900 real. Eu tenho um amigo, ele foi agora
viajar, que foi aluno meu, ele deposita todo mês 1.500. Isso que eu agradeço
a Deus. Mas dói, filha. Dói, dói tanto, sabe? (...) Desculpa estar contando
isso pra você. Mas é duro.
Lídia: Sim, mas tem um monte de gente que acha que eu vou chegar lá e vou
cozinhar um negócio cheio de dendê, entendeu? Dar uma de baiana. Porque
seria baiana. Porque eu sou pretinha, eu sou baiana? Eu não, sou espanhola,
minha cultura é espanhola, europeia. E, meu, minha família tem origem
negra aqui no Brasil, mas meu pai era espanhol.
Entrevistadora: Mas você sente, assim, que as vezes você é categorizada,
pra entrar numa caixa?
Lídia: Sinto, sinto. Com certeza, com certeza. E ainda mais quando as
pessoas vêm me procurar. Porque elas vêm me procurar pelo meu estilo, pelo
fato de eu ser negra, de eu falar bem e de estar numa postura diferente das
outras negras.
181
Mas eu, quando saí do Masterchef, até me convidaram pra ir ser assistente
do ____ no ar, aí eu falei "eu não vou me colocar nesse papel". Se ele quiser,
ele me chama de convidada, agora eu ser assistente dele? Vá se fuder. Acho
que o cara cozinha ‘mó’ mal, sou mais a minha comida. Mas é porque eu bati
o pé também, você viu o tipo de alimentação que eu vendo? Todo mundo
olha pra mim e fala "nossa, essa neguinha é muito desaforada mesmo",
porque eu…
No caso de Lídia, “ser desaforada” passa por recusar determinados lugares sociais e
“bater pé” com relação aos seus próprios objetivos de carreira. No momento da entrevista, ela
estava se planejando para iniciar um serviço de alimentação por aplicativo, e aceitou dar
entrevista para um canal de televisão, que a procurou por ela se enquadrar na categoria
“cozinheira negra”, segundo ela “mas isso aí me interessa”.
Para Sueli Carneiro (2011: 114), o aumento nas exigências educacionais para se
conseguir um emprego no mercado de trabalho formal conforma um mecanismo de selecionar
a mão de obra mais qualificada, mas “também opera como um filtro de natureza racial”. A
autora afirma que essa, provavelmente, é a razão pela qual o crescimento econômico não
resulta, necessariamente, em redução das diferenças sociais. “Os efeitos imediatos da
recuperação econômica, que se diz em curso208, é a absorção no processo de desenvolvimento
dos mais educados, postergando ou inviabilizando a inclusão dos historicamente excluídos”
(idem). As histórias de Benê e Cidinha, sobretudo quando comparadas à de Lídia, parecem
confirmar o argumento de Sueli Carneiro.
No capítulo seguinte, discutirei o trabalho por conta própria e a articulação deste, no
mercado de trabalho brasileiro, com as relações de gênero, classe e raça, procurando entender
como elas estruturam e são também reorganizadas no universo do trabalho informal, precário,
sob o discurso do empreendedorismo. A discussão, portanto, não se encerra aqui.
208
Este texto faz parte da coletânea “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”, publicada em 2011 pela
Edições Selo Negro, mas este artigo foi originalmente publicado no jornal Correio Braziliense de 18 de outubro
de 2004.
182
Retomando o nó, difícil é lidar com esta nova realidade, formada pelas três
subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, já que é presidida por uma
lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado.
(...) O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou
enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do nó górdio nem
apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas
componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e
isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial,
própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova
realidade, presidida por uma lógica contraditória. De acordo com as
circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó
adquire relevos distintos.
relação ao racismo: houve aquelas que afirmaram não ter sofrido racismo, “porque hoje em
dia isso dá cadeia” ou porque “ninguém é louco de falar comigo assim”. Mas quando
aprofundamos a análise desses depoimentos, é possível observar como as estruturas de
opressão em torno das mulheres e das pessoas negras, sobretudo das mulheres negras,
permanecem. O racismo e o machismo estão conjugados no espaço de trabalho, seja nas
cozinhas, seja no mercado, seja na contratação de serviços, seja nas consultorias.
Mesmo sendo possível enxergar como, do ponto de vista subjetivo, a percepção e a
sensibilidade a essas questões esteja se transformando – e, nesse sentido, é inegável que
houve conquistas e que o debate está mais vivo do que nunca, as estruturas de opressão e, para
usar o termo de Heleieth Saffioti, dominação-exploração, se mantêm e se reproduzem.
185
Neste capítulo, pretendo apresentar outras formas que o trabalho em cozinhas pode
adquirir, para além das brigadas da cozinha de restaurantes. Seja em função das dificuldades
que se colocam neste tipo de trabalho, a extensão e a intensidade da jornada, os baixos
salários e a rotatividade, para citar alguns, seja por conta de um ideal de sucesso que significa
abrir o próprio negócio, muitos/as dos/as entrevistados/as realizavam o trabalho culinário sob
diversas modalidades. Dentre o grupo de entrevistados/as, encontrei pessoas que abriram seus
próprios restaurantes, consultores/as para outros estabelecimentos, serviços de bufê para
eventos e o trabalho em domicílio, mediado pelas plataformas digitais.
No projeto de pesquisa que deu origem a esta tese, o trabalho por conta própria ou
realizado de forma autônoma não estava previsto no escopo inicial. Os objetivos estavam
atrelados à organização do trabalho na cozinha, às brigadas e ao trabalho em restaurantes.
Entretanto, por conta da rede de contatos que me levou até as pessoas que entrevistei, e muito
provavelmente em função de mudanças importantes no mundo do trabalho, em especial no
setor de serviços, deparei-me com o universo do trabalho por conta própria e autônomo, e não
poderia deixar de tratar dele aqui.
O setor de serviços do mercado de trabalho brasileiro, como discutido no primeiro
capítulo, é marcado por relações de trabalho precárias e vulneráveis, em detrimento dos
trabalhadores e trabalhadoras à mercê da rotatividade do setor, da falta de investimento e da
fragilidade de um sistema público de trabalho e emprego cada vez mais débil – a reforma
trabalhista recém-aprovada coroa um processo de ataque aos direitos conquistados.
Neste capítulo, pretendo apresentar diversas trajetórias de homens e mulheres que
trilharam caminhos entre o trabalho formal e informal, arranjos entre eles, o trabalho por
conta própria, prestação de serviços de alimentação e aqueles/as que conseguiram abrir seus
próprios estabelecimentos.
Tentarei mostrar como essas diversas modalidades de trabalho estão imbrincadas às
relações de gênero, classe e raça, e como tais relações têm uma influência fundamental no tipo
de trabalho possível, assim como a maneira que ele é realizado e os arranjos que se
186
desenvolvem a partir delas. Como discuti no capítulo 3, a ideia de um sujeito “neutro”, que na
verdade é branco e masculino, cria uma série de dificuldades e problemas para as pessoas que
não correspondem a essa pretensa neutralidade – mulheres e, sobretudo, mulheres negras.
Nesse sentido, construí o argumento de maneira que inicio uma reflexão a partir
daqueles/as que conseguiram abrir seu próprio negócio, proprietários/as de seu próprio
estabelecimento, em direção aos tipos de trabalho mais vulneráveis. Também procurarei
demonstrar como essa circulação entre o trabalho formal e informal, entre o trabalho por
conta própria e o emprego, estão presentes nas trajetórias muito além do momento da
entrevista.
Em um primeiro momento, realizo uma reflexão sobre o trabalho formal e informal do
ponto de vista teórico e da análise, uma vez que no nível das práticas sociais, o trabalho
formal e informal se confundem e se articulam. Trabalho com registro em carteira, trabalho
sem registro, trabalho por conta própria, prestação de serviços... essas modalidades se
sobrepõem e se complementam na vida das pessoas ao longo do tempo.
Dentre os/as entrevistados/as, havia quem tivesse um trabalho formal com registro em
carteira, que tocava seu próprio serviço de bufê em seu bairro, nos fins de semana de folga.
Também encontrei trajetórias em que o trabalho formal e informal se misturam – o trabalho
tem registro, mas não cumpre as leis trabalhistas (horas extras, folga remunerada, por
exemplo), em que o trabalho formal e a prestação de serviços se embaralham. De que se trata,
afinal, trabalho formal e informal?
De acordo com proposição de Jacob Lima (2010), as mudanças recentes no mundo do
trabalho têm criado novos arranjos de trabalho, geralmente sob a égide da flexibilização e da
perda de direitos, em que emerge a figura do empreendedor, o trabalhador empresário de si.
Entretanto, isso não acarreta mais estabilidade, direitos ou mais ganhos em termos de
remuneração.
Há, então, diversos tipos de empreendedor: autônomos, com distintos graus
de formalidade, necessidade e precariedade. Desde o trabalhador sem
qualificação alguma que vive de expedientes ou vendendo quinquilharias nas
ruas, ao trabalhador vinculado às novas tecnologias informacionais,
trabalhando de forma desterritorializada, por projetos (LIMA, 2010, p.178).
Trata-se de observar, então, em que medida ter o próprio negócio ou prestar serviços
de alimentação de forma autônoma representam conquistas e melhorias na relação com o
trabalho ou novas formas de subordinação e exploração.
Em seguida, parto das trajetórias de “sucesso” na profissão, ou seja, aqueles/as que
abriram o próprio negócio, e que estou chamando aqui de proprietários/as, considerando as
187
relações de gênero, classe e raça na constituição das carreiras “bem sucedidas”. Ter o próprio
estabelecimento traz outros problemas, um pouco distintos daqueles enfrentados pelos/as
“empregados/as”, do ponto de vista da gestão do negócio, mas as diferenças entre homens e
mulheres, entre pessoas de distintas classes sociais, brancos e não brancos, tem influência
importante nos caminhos que levam a esse status.
Depois, analisarei o que estou chamando de trabalho em serviços de alimentação.
Trata-se de uma gama de atividades, geralmente sob a forma de prestação de serviços (e,
portanto, informal), que demanda um tipo específico de savoir faire (saber fazer), um tipo de
expertise que esses/as profissionais adquiriram por meio da experiência profissional e que
possibilita, inclusive, algum tipo de articulação com outros trabalhos. Aqui, tratarei de dois
tipos de serviço, as consultorias e os serviços de bufê.
Finalmente, discutirei um caso de trabalho em domicílio mediado por plataformas
digitais de alimentação, os aplicativos de encomenda de comida. Ainda observando como as
relações de gênero, classe e raça constituem um espaço social possível para pessoas em um
determinado segmento profissional, essa nova forma de trabalho implica novas negociações,
articulações e justaposições entre os espaços doméstico e profissional.
O objetivo desse capítulo é observar, a partir das descrições de trajetórias, como as
relações de gênero, classe e raça engendram novos arranjos sociais e a divisão sexual do
trabalho está presente nessas recentes formas de autoemprego e trabalho autônomo.
1. Formal ou informal?
209
Utilizo o termo precariedade aqui conforme diferenciação entre precariedade e precarização explicitada por
Márcia Leite (2011: 32): “São trabalhos precários, mas que não obrigatoriamente estão inseridos em um processo
de precarização”.
188
apud VIEIRA, 2018). Desemprego, emprego e inatividade não estão claramente apartados, a
linha que os separa é difusa e há uma miríade de situações intermediárias.
Dentro de um universo de trabalho em que pelo menos metade da população
economicamente ativa está submetida a condições de trabalho desprotegido, vulnerável, sob
constante risco de não receber pagamento/ salário, ou não acessar os direitos associados ao
trabalho, um emprego formal, para muitas pessoas, é um valor em si. Conforme aponta
Priscila Vieira (2018, p.75) “a importância simbólica do trabalho formal sempre foi muito
forte entre nós”.
Segundo proposição de Ludmila Abílio (2019, p.10), “Em um mercado de trabalho
como o brasileiro, a informalidade, a alta rotatividade e os trabalhos temporários são na
realidade elementos estruturantes das relações de trabalho”. O emprego formal representa, na
sociedade brasileira, um caminho de acesso a direitos e cidadania. Jacob Lima (2010) faz
referência à relação entre o trabalho formal e os direitos sociais: “... a questão dos direitos
sociais que foram conquistados nas lutas dos trabalhadores e incorporados numa cultura de
trabalho na qual o trabalho regulamentado, registrado, ‘com carteira’ tornou-se um símbolo do
acesso a esses direitos e de inclusão social” (LIMA, 2010, p.191).
Robert Castel (1998), em seu importante estudo que representou uma inflexão nas
análises sobre a precarização do trabalho, faz uma reflexão sobre a sociedade salarial. Ele
diferencia três condições de trabalho no advento da modernidade: a condição proletária,
operária e salarial, três formas dominantes de cristalização das relações de trabalho na
sociedade industrial, assim como três modalidades de relações que o mundo do trabalho
mantém com a sociedade global.
A primeira, a condição proletária, representa a situação de quase exclusão do corpo
social. Os proletários seriam a personificação da contradição capital – trabalho, caracterizados
por situação de extrema pobreza. A segunda, a condição operária, constitui uma nova relação
salarial, em que o salário deixa de ser apenas a retribuição financeira pela execução de uma
tarefa, mas passa a ser a garantia de direitos e acesso a subvenções extratrabalho, como no
caso de doenças, acidentes e aposentadoria. A terceira, a condição assalariada, tem o salário
como elemento que permite uma participação ampliada na vida social, particularmente nas
esferas do consumo, habitação, educação e lazer. Mas, ainda de acordo com Castel, essa
participação se dá na subordinação, pois mesmo a partir dela esboça-se uma estratificação
complexa: a classe operária passa a ter acesso ao consumo, mas ao consumo de massas; à
habitação, mas a uma habitação popular; à educação, mas à educação básica; ao lazer, mas ao
lazer popular (CASTEL, 1998, p.416).
189
210
O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit-Unicamp) realizou um trabalho
importantíssimo de análise e crítica da reforma trabalhista. Pode ser encontrado em
https://www.cesit.net.br/dossie-reforma-trabalhista/ (acesso em 17/12/2019).
190
2. Proprietários/as
Ainda que não tenha sido meu objetivo inicial, ao longo da pesquisa, e principalmente
em função das redes pessoais de contatos, encontrei donos de estabelecimentos, ou sócios,
que se dispuseram a conversar e falar sobre seu trabalho. Ser dono/a de um restaurante ou
outro estabelecimento de alimentação não é uma condição homogênea e existem vários
fatores que influenciam o tipo de trabalho demandado do/a dono/a.
Para muitos/as cozinheiros/as, ter o próprio negócio representa o sucesso. Quase todos
os entrevistados revelaram que um objetivo profissional importante consiste na possibilidade
de ter seu próprio restaurante um dia.
(...) não almejo nem ter um restaurante grande, pra mim tem que ter 5
lugares, 10 lugares. É mais uma coisa de poder receber pessoas que vão
comer o que eu gosto de fazer. Essa é a ideia. Não precisa ser caro, não
precisa ter vinho, nada. Só, tipo... eu tenho uma coisa na cabeça que é uma
mesa bem grande, assim, que as pessoas pudessem conversar comigo
enquanto a gente come211.
Eu tô num projeto, restaurante 100% orgânico aqui em São Paulo que vai
abrir em junho, onde a gente pretende ter uma equipe pequena, sem muito
forfé [corruptela do original em francês forfait, sinônimo de confusão,
festa], dois garçons no máximo, só serviço de água, vinho, onde a gente vai
tentar fazer uma valorização do cozinheiro, tem investidora por trás212.
Eu acho que todo mundo que trabalha em cozinha quer um dia ter uma coisa
sua, até pra você expressar a sua personalidade, você fazer o que você gosta
de fazer cozinhando, mas eu não imaginava que ia ser tão rápido214.
211
Lisandra, 30 anos, chef.
212
Matias, 24 anos, cozinheiro.
213
Helena, 49 anos, cozinheira.
214
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
192
Para além da gestão da cozinha, que teoricamente é fundamental para que um/a
cozinheiro/a se torne chef, um restaurante (ou mesmo uma lanchonete, um bar) é um grande
desafio de administração: além de conhecer e travar boas relações com fornecedores, gerir um
negócio que se baseia em alimentos perecíveis e uma força de trabalho tradicionalmente
muito rotativa, o “salão” também tem suas próprias questões, como André aponta. O
restaurante é mais do que a cozinha, e essa sozinha já seria complicada o suficiente, de
maneira que saber administrar a cozinha não necessariamente significa que um/a chef pode
gerenciar seu próprio estabelecimento.
Descreverei três histórias aqui, duas na capital paulista e uma em Paris, um homem e
duas mulheres, com o objetivo de analisar como as trajetórias desembocam no trabalho por
conta própria e como as rotinas de trabalho passam a se organizar.
2.1. Daniel
Você não fica só lavando louça. Tem hora que não tem louça pra você lavar,
você vai fazendo algumas coisas dentro da cozinha, aí já vai aprendendo
essas coisas. Começa lavando vegetais, arrumando as saladas, geladeira,
organizando tudo, fazendo pré-preparo de tudo. O que o chef te mandar, você
vai fazendo. E aí vai de você. Se você tá querendo aprender ou não, você vai
perguntando ou não, fazendo molhos, começo de molhos, tudo, aí você vai
começando aprendendo.
Daniel: Toda vez que eu tô insatisfeito onde eu tô, que eu acho que eu posso
desenvolver um pouco mais e ali não tá desenvolvendo tanto, eu começo a ir
atrás de emprego e sempre me apareceu.
Entrevistadora: Sério? E como que é?
Daniel: Conversando com amigo, conversando com gente que conheci no
meio, gente que já trabalhou comigo, vem me comentar, onde é que tá
precisando, e aceitei o desafio.
Simples assim. Três amigos com três “economias” compraram um lugar num bairro
nobre de São Paulo, próximo ao Parque do Ibirapuera, e montaram um restaurante. Tal
afirmação já nos permite observar um determinado lugar de classe muito específico. Primeiro,
jovens que têm dinheiro guardado. Mesmo tendo viajado para vários lugares do mundo
(Daniel morou no Canadá, na Espanha e na Índia, entre outros países), com uma experiência
195
profissional que não chegava a uma década, os amigos sentiram que era o momento de ter seu
próprio estabelecimento e “aceitaram o desafio”.
Daniel e seus sócios são três homens jovens que conseguiram guardar dinheiro porque
puderam dedicar-se à formação (escolar e profissional) morando com os pais, com a liberdade
de morar em outros países e adquirir experiência profissional. Nenhum deles tinha
responsabilidades familiares com filhos ou esposa, nenhum deles era cobrado a cuidar de
parentes doentes ou que necessitavam de algum cuidado, nenhum deles era responsável por
nenhum trabalho doméstico na casa de suas famílias. Os três jovens, brancos, formados em
Gastronomia em faculdades particulares, conseguiram juntar dinheiro suficiente para investir
no próprio negócio.
No começo da casa, nós três realizávamos entre cozinha, salão e
administrativo mais ou menos, o administrativo sempre ficou muito mais
comigo assim. Mas era sempre meio cozinha e salão, a gente ficava girando.
Agora a gente não trabalha mais na cozinha e nem no salão porque a gente tá
pensando em ampliar.
Contando com uma clientela praticamente fixa e uma equipe de trabalho que ele
considera ótima, Daniel e seus sócios têm a possibilidade de se organizar para investir em
outras filiais do restaurante, assim como se dedicar ao salão, ou seja, conversar com clientes,
circular pelas mesas, atender pessoas ou famílias que já frequentam a casa215. Seu trabalho de
proprietário não corresponde mais ao trabalho de cozinheiro, nem ao de chef. Ele acompanha
215
Realizei a entrevista com Daniel em seu próprio restaurante num fim de tarde, justamente no período em que
a equipe do almoço está saindo e a equipe do jantar entrando. Além dele, conversei com o sous-chef e uma
auxiliar de cozinha, e também tive a oportunidade de observar um pouco o movimento no restaurante fechado.
Segundo a entrevista com os funcionários, o clima de trabalho era ótimo, pois todos já se conheciam de outros
restaurantes. Pude observar que eles conversavam com bastante intimidade e, a meu ver, até amizade. Em outra
oportunidade em que estive no estabelecimento, pude ver Daniel no papel de dono, circulando entre as mesas,
conversando com clientes, apresentando o menu etc.
196
o fluxo das compras, do caixa, onde o dinheiro é investido, mas nem entra mais na cozinha
(raramente, no bar).
O restaurante de Daniel representa um pouco o sonho daqueles que querem ter seu
próprio negócio. Ele e seus sócios servem a comida que decidiram servir, elaboraram o
cardápio conforme seus gostos, decoraram a casa como acharam melhor e o negócio deu
certo. O restaurante tem duas equipes de funcionários, uma para o serviço do almoço e outra
para o jantar. Pelo que notei, ao entrevistar dois funcionários da casa além de Daniel, eles
pareciam muito satisfeitos com o trabalho. Ambos (Vitor e Elisa) comentaram a boa relação
que tinham com os colegas e com o próprio Daniel, com quem Vitor, por exemplo, já havia
trabalhado em outras cozinhas. Eles também afirmaram estar satisfeitos com seus salários
(entre 1.600 e 2.300 reais).
Por sua posição de classe bastante privilegiada, os três jovens sócios conseguiram se
tornar proprietários relativamente rápido. A experiência que adquiriram trabalhando em
restaurantes na capital paulista e em outros países, assim como o curso de tecnólogo em
gastronomia, foram suficientes para que se sentissem aptos a abrirem seu próprio restaurante
e, baseados no conhecimento que tinham, suas próprias economias (já que viveram na casa
dos pais pelo menos até o momento da entrevista) e algum apoio financeiro familiar,
obtiveram sucesso.
2.2. Samira
Sim, você não é filha do solo, tem que seguir o sangue do teu pai. Então, no
navio a mamãe falava “Chegando no Brasil nós vamos abrir um restaurante,
a Samira vai ficar comigo na cozinha”, meu irmão, ele ia ficar no caixa, eu ia
ser a relações públicas. Então pra cada filho ela já tinha dado uma função.
Samira aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre a ensinou, e apenas a ela. Abriu
seu primeiro restaurante em Curitiba (PR), por insistência do ex-marido.
197
Então, ela [a mãe] que sempre me incentivou, ela “Samira vem, vem
aprender a fazer quibe frito”. Aí eu falava “mãe, pra quê?”. “Não fala isso
filha, amanhã você vai crescer, você vai casar, você vai precisar fazer festa
para os seus filhos... Então o quibe tem que estar presente”. “Olha, abre
assim”, e eu ficava olhando, ajudava ela abrir, ela fechava, porque não
conseguia... a boca do quibe na hora de fechar, deixava ele muito aberto... E
ela falava “Olha, usa esse dedo...” E aí eu fui, casei, e fui morar lá no Paraná.
Aí eu tive essa minha filha, mas aí meu ex-marido falou “Samira, vamos
abrir um restaurante, você faz um quibe gostoso”, eu falei, “Eu faço quibe
pra nós”, “Não, mas vai treinando...” Aí olha, a mamãe antes de... claro,
antes dela morrer, ela falou “Samira, eu te ensinei a fazer o quibe, mas eu
não consigo abrir como você abre, você me superou”. Ela falava, “igual ao
quibe de você frito, eu nunca comi na minha vida”.
Ela também descreve o incentivo de parentes e amigos que elogiavam sua comida
como um elemento importante na decisão de abrir um restaurante em outros momentos da
entrevista. Vale ressaltar, neste trecho, a resposta que ela oferece ao marido, “eu faço quibe
pra nós”. Sua concepção de cozinhar, apesar do sonho da mãe e do desejo do marido, era
cozinhar para aqueles e aquelas que estão próximos, as pessoas da família. A comida é boa
porque é feita com carinho, carregada de sentimento pelas pessoas queridas que vão comer,
ela faz o quibe “pra nós”. Essa é uma característica importante para o tipo de comida que
Samira faz. Depois de se separar e sair de Curitiba, ela veio morar em São Paulo e abriu um
restaurante com a irmã, como a mãe sonhava. Isabel atende os clientes e Samira cuida da
cozinha. O restaurante ficou famoso, ganhou diversos prêmios e indicações em guias
gastronômicos brasileiros, serve apenas almoço de segunda à sábado e atende, no máximo,
cem clientes por dia.
O estabelecimento é muito pequeno, tem apenas três mesas do lado de dentro e três do
lado de fora, ou seja, é possível atender no máximo 30 pessoas por vez. A fila na porta do
restaurante já é tradicional: aos sábados, quando fica mais cheio, o irmão atua como “gerente
da fila” e ajuda a organizar a espera. Meio-dia: por volta de 20 pessoas já estão esperando a
vez para entrar.
E olha, as pessoas vêm aqui, fala “com toda a espera que a gente...valeu cada
minuto”. E uns falam assim... “Não aumenta. Deixa assim, as coisas ficam
bem aconchegante”. Porque eles acham que, realmente, se aumentar... Olha,
na verdade eu gostaria, apesar de que, com o giro assim, gente saindo,
entrando, a gente consegue fazer umas 110 pessoas, mas o máximo... aqui
cabe quanto? Vinte e pouco, Isabel? Podia ser um lugar para 40 pessoa, né?
Mas a espera, o tamanho do restaurante, o tratamento que Isabel dispensa aos clientes
e a própria comida ajudam a criar um clima muito acolhedor e, em alguma medida, caseiro.
Conseguir almoçar mais tarde no restaurante das irmãs, entretanto, pode trazer alguns
prejuízos. A sobremesa mais famosa da casa, uma criação de Samira, é limitada e existe a
198
possibilidade de terminar o almoço e não ter mais. Ela não vai fazer mais, não vai sair outra
daqui a pouco: acabou. E mesmo assim, as filas na porta estão lá todos os dias, e quem vai ao
restaurante uma vez, costuma voltar.
Isso que todo mundo fala: “por favor, não saiam daqui”. Porque o lugar é
simples, modesto, nós não temos conforto, não temos regalia, vamos supor,
eu não tenho maître, não tenho carta de... de vinho, não tenho couvert, não
tenho manobrista. Então, isso tudo afeta. Mas olha, as pessoas falam “olha,
pra gente tá ótimo”. Por quê? É a comida.
Uma coisa que eu quero te contar, quando eu abri aqui, isso em 99, meu
irmão veio “Você vai trabalhar aqui? Tão pequeno, você tá louca? Com a sua
comida, vai pra 25 [Rua 25 de Março], você vai ficar milionária”. Vem cá,
não é isso que eu quero. Eu não quero ficar milionária, eu quero que o povo
coma a minha comida, como a mamãe desejava também.
Isabel e Samira moram juntas, assim como a filha de Samira e seu neto pequeno, num
apartamento próximo ao restaurante, o que por um lado facilita a vida e o deslocamento das
duas, mas por outro nubla as fronteiras entre tempo de trabalho e de descanso.
O restaurante fecha por volta das 15h, há ainda a limpeza e arrumação antes de
encerrar o dia, mas o trabalho continua, principalmente para Samira. Existem preparos que
precisam ser feitos com um dia de antecedência (“a carne fica melhor de um dia pra outro”),
então já está planejado que uma parte do trabalho vai ser feito na cozinha de casa. É difícil
para ela contabilizar quantas horas ela trabalha por dia.
Ao fim da entrevista, com o gravador desligado, ela me disse que a referência é a
novela turca (exibida diariamente na TV aberta): as irmãs são fãs da novela que começa por
199
volta das 20h30, e, portanto, qualquer trabalho vai até esse horário. Além do trabalho na
cozinha do restaurante e na cozinha de casa, Samira também prepara a alimentação da família.
Olha você pode perguntar pra todos aqui, que...são meus parentes, mas... a
comida que eles comem aqui, árabe, come a mesma coisa em casa. Quer
dizer não... lá em casa vou por melhor o tahine? Não. Eu não sei fazer
diferente.
Entre as irmãs (e o irmão) há uma certa divisão do trabalho: Samira cuida da comida
(além do preparo, controle dos insumos, ingredientes, lista de compras e supervisão dos
ajudantes) e Isabel do caixa e do dinheiro do restaurante. Ela cuida das compras, faz sugestões
de mudança quando algum dos ingredientes fica muito caro, administra os gastos. Trata-se de
um negócio familiar.
Todavia, a administração familiar e a comida afetiva não são o suficiente para mudar
algumas características do trabalho culinário que afetaram a saúde de Samira. Ela já teve
problemas de tendinite, bursite e operou o pulso com síndrome do túnel do carpo. Hoje,
algumas tarefas mais braçais e repetitivas, como abrir o quibe (processo de abrir a massa com
um rolo, fechar e tornar a abrir, repetindo três vezes), “é o rapaz que faz” - um ajudante que,
sob a supervisão de Samira, realiza o trabalho que ela não consegue mais por questão de força
física e lesão muscular.
Essa também é uma razão pela qual elas preferem não aumentar a cozinha do
restaurante e garantir que todos os pratos sejam preparados por Samira.
Você não vai ver isso, se eu sair daqui e colocar alguém no meu lugar,
entendeu? Aí se eu achar que alguém, ah vai cozinhar igual a mim? Que
modéstia à parte... você pode até aprender, mas você nunca vai ter o meu
paladar.
200
Nesse sentido, o negócio familiar articula relações pessoais com relações de trabalho e
comerciais. A administração do restaurante e a da casa andam juntas, o trânsito de amigos e
parentes na casa e no restaurante também são indissociáveis, a comida preparada em casa e no
restaurante é praticamente a mesma. Ainda que Samira relate problemas de saúde, cansaço,
falta de ânimo de fazer outras atividades que não seja cozinhar, estar próxima da família,
principalmente da filha e do neto, é o que ela mais quer nesse momento e a rotina de trabalho
que ela e a irmã organizaram permite isso.
A família está presente no restaurante tanto quanto na casa. As fronteiras entre o
trabalho e o espaço doméstico se confundem, e a forma de lidar e organizar o trabalho revela
a prioridade que a família assume diante do negócio. Do ponto de vista de mercado, seria
possível que elas expandissem, captassem mais investimentos, aumentassem o espaço físico
da cozinha e do restaurante, contratassem mais pessoas para trabalhar na cozinha, abrissem
filiais, por exemplo. Mas a prioridade é ter tempo para a família.
No caso das irmãs, é possível enxergar tal dedicação a partir da divisão sexual do
trabalho, que, como discutimos no terceiro capítulo, relega as mulheres ao espaço do lar e do
cuidado, enquanto aos homens cabe o espaço público e profissional. Não se trata de uma
correspondência direta, mas de um determinado tipo de arranjo no qual, mesmo tendo um
comércio bem-sucedido, o que determina os limites do negócio é o espaço doméstico e as
responsabilidades que elas assumem no âmbito familiar.
2.3. Mariana
O curso, voltado para estrangeiros, consistia em seis meses de aula e seis meses de
estágio. Mas Mariana não se adaptou ao trabalho nas cozinhas da França, segundo ela “muito
rigoroso, muito rígido”. Ela contou alguns episódios de assédio e violência, afirmou que se
sentia discriminada por ser estrangeira. Ela não queria mais trabalhar em restaurantes e
começou a vender comida pronta e pratos típicos brasileiros, como acarajé, em casa. Ela
divulgava no Facebook e tanto brasileiros quanto franceses procuravam seus produtos.
No mercado municipal, conheceu outra brasileira que já tinha um restaurante lá e que
estava vendendo o ponto. Mobilizou família e amigos, conseguiu o dinheiro e comprou o
ponto. Apenas quatro meses após a compra, já tinha uma funcionária (brasileira), e se
organizava para pedir um empréstimo e reformar o restaurante (uma exigência da prefeitura).
Tudo isso foi possível graças ao seu esforço e trabalho, sim, mas também à mudança
do seu status de estrangeira por meio do casamento com um francês. Mariana é uma cidadã
legalizada e, portanto, goza das benesses e incentivos do governo francês para ser
autoentrepreneure (autoempreendedora, em tradução livre), inclusive tem condições para
fazer um empréstimo no banco.
Mariana decidiu investir tudo que tinha e captar recursos para abrir o próprio negócio
porque não queria mais trabalhar em cozinhas de outros restaurantes. Queria trabalhar em
outro ambiente e teve condições para construir isso por si própria.
Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método
de seleção. Não é o que a gente faz aqui, por exemplo. Por isso que eu quis
partir pra abrir o meu próprio negócio, porque eu não acredito nisso. (…)
Esse ambiente é um ambiente muito tóxico, em alguns lugares. Quanto
maior o restaurante, esses restaurantes estrelados, mais tenha certeza que vão
ter estagiários que eles exploram, que eles não remuneram ou remuneram
202
muito mal. Meu estágio aqui [na França] foi remunerado, mas eu trabalhava
das 8h da manhã às 15h da tarde, pausava, depois eu entrava às 5h da tarde e
ficava até 1h da manhã.
Carregar coisas que são muito mais pesadas do que... não há necessidade.
Hoje em dia nós somos duas mulheres na cozinha aqui, a gente tem coisa
pesada pra carregar, e a gente não tá morrendo. Mas é porque te pedem pra
fazer numa rapidez que... como é que você carrega uma coisa mais pesada
que você? Com rodas, com rodinha da lixeira. Mas ninguém tem paciência
pra isso, então você acaba tentando fazer um esforço que você não consegue,
e dá nisso.
As condições de trabalho para pessoas não francesas, segundo ela, são piores.
Nas cozinhas brasileiras, ela relatou casos de assédio moral e sexual, inclusive de um
chef que a difamou e disse para os funcionários que eles namoravam quando ela estava
afastada por problemas de saúde. Na França, ela disse que era muito difícil encontrar
mulheres nos cargos de chefia e que havia um discurso de fragilidade feminina, inclusive na
Escola Ferrandi, em que os professores diziam que havia determinados trabalhos que “não são
pra menininha”.
Aqui, por exemplo, quando eu abri, eu tinha um funcionário que era homem,
uma pessoa extra comigo que era homem. E todo mundo achava que era ele
que cozinhava, mas ele não cozinhava nada, ele só limpava e lavava a louça,
que não tinha máquina de lavar ainda. Mas todo mundo achava que era ele
que era o chef ou o cozinheiro.
Por muito tempo, Mariana afirma ter lidado com esses problemas e com o machismo
contando com a rotatividade no setor: “…a coisa boa da cozinha é que você consegue
emprego muito rápido, tem uma rotatividade muito grande. Toda vez que eu percebia que não
tava bom, eu caía fora”.
203
216
Tive a oportunidade de conversar com Lik informalmente, num dia que fui ao restaurante e Mariana não
estava (havia ido ao hospital tratar de uma crise de dor nas costas). Não conseguimos agendar uma entrevista,
como eu gostaria, mas ela confirmou que tem uma relação boa com a chefe e que se consideram amigas.
204
Manter o negócio pequeno e dar conta da demanda que não se restringe aos
brasileiros, nem ao restaurante217, é um grande desafio. Uma das exigências da Mairie de
Paris (prefeitura) para ter seu estabelecimento é a realização de uma reforma, para a qual ela
ainda estava se organizando financeiramente. Essa ação será fundamental para aumentar seu
espaço de estoque e armazenamento, que ainda é bem reduzido, o que a obriga a fazer
compras em pequenas quantidades. Ela não pode se beneficiar das vendas por atacado nos
grandes mercados de abastecimento218, e acaba pagando mais caro por alguns produtos.
Então, a gente tem uma lógica de compras bem complicada. Não dá pra
entregar sempre, porque às vezes não é uma quantidade tão grande. Meu
marido tem uma bicicletinha com uma cestinha e ele vai, eu faço a lista, a
gente faz a lista juntas, ela vai me dizendo o que não tem, depois eu olho, o
que tem que repor, o que tem fixo no cardápio, o que é do menu da semana, a
gente também já planeja. E ele vai fazendo os allé retour [ida e volta], ele
vai comprando e traz. Aí eu venho na segunda, mesmo sendo o nosso dia de
folga, pra poder guardar tudo, já meio que deixar arrumado pra na terça não
ter que vir tão cedo. No início eu ficava na segunda fazendo recheio de
pastel, mas uma hora eu falei “não, eu preciso ter pelo menos meio dia de
descanso”, né, porque as compras são feitas na segunda.
Nesse trecho, é importante ressaltar a expressão “preciso ter pelo menos meio dia de
folga”. Sua ajudante tem um dia de folga na semana, mas como proprietária, o dia de folga
serve para Mariana fazer a parte do serviço que não consegue durante os dias que o
restaurante está aberto: as compras. Quando ela diz “não dá pra entregar sempre”, refere-se às
compras on-line que ela faz na segunda-feira, assim como pessoalmente. Dedicando meio dia
a essa atividade, ela passava a outra metade no restaurante, adiantando preparos para a
semana, até perceber que isso significava não descansar em nenhum momento.
Seu marido é um parceiro importante no negócio. Mesmo que eles não tenham carro e
nenhum dos dois saiba dirigir, a “bicicletinha” garante as compras, principalmente de última
hora. Ele também precisa dedicar um tempo ao restaurante, embora seja funcionário público
com uma jornada de trabalho diferente. Mariana ressalta que ele tem uma certa flexibilidade,
permitindo que ele a ajude, especialmente em “emergências”, quando ocorre um imprevisto,
como acabar um ingrediente.
217
Mariana também faz feijoada e acarajé para servir em eventos. Encontrei-a em uma feira organizada por
brasileiros mobilizados por conta das eleições presidenciais, em outubro de 2018, e ela estava vendendo feijoada,
com a ajuda do marido. Nesses dias, o restaurante fica fechado.
218
Paris tem um dos mais importantes mercados de abastecimento da França, o Marché de Rungis, fechado para
o público comum e aberto apenas para empresas e negócios. É possível conhecer mais sobre o mercado em
https://www.rungisinternational.com/ (Acesso em 20/01/2020).
205
Em sua percepção, para começar uma família ela não poderia estar submetida às
jornadas e às condições de trabalho de uma cozinha comum. Para além do “barrigão”, trata-se
de um trabalho que não acolhe muito bem mães com bebês ou crianças pequenas (como
vimos no capítulo 3). A ideia de que o restaurante é um empreendimento familiar e que será
possível conciliar a gestão do negócio com os cuidados de uma criança pequena motivam
Mariana.
Não sei não, por agora a gente não tá tentando [engravidar], porque
obviamente não ia dar, porque agora tá difícil. Mas assim que aqui estiver
mais estável, não deve demorar muito, eu já tô com 31. Acho que daqui pro
ano que vem a gente começa. Vontade os dois têm, mas começar a tentar
efetivamente… (...) Aqui é pequenininho, eu não tenho pretensão de virar
grande. Aqui é restaurante familiar. Então quando a gente tiver filho... tem a
sorte do meu marido ter horários flexíveis, então acho que ele vai poder
fazer esse corre depois da escola, antes da escola. Não acho que é tão
complicado quanto seria ter um filho no Brasil. Acho que aqui é mais fácil.
Já tem o horário da escola que já é mais comprido.
Seu planejamento conta com a estrutura dos serviços públicos na França, onde há
oferta relativamente próximas de creches e escolas infantis, assim como um horário de
atendimento estendido – possibilitando que Mariana e marido se organizassem quanto aos
horários para se dividir nos cuidados. E, se tiver filhos, ela pretende que a sogra esteja
presente.
Assim como as irmãs Ana e Samira, os objetivos de Mariana com o negócio são
mantê-lo com uma capacidade tal que seja possível conciliar trabalho com vida pessoal e
familiar. Como afirmei no início do capítulo, nem todo/a cozinheiro/a sonha ter um
restaurante estrelado, famoso e ficar rico. Há muitos/as que querem fazer um bom trabalho,
uma cozinha com a qual se identifiquem, e articular outras esferas da vida com a profissional.
206
3. Serviços de alimentação
Se bem que eu me viro por fora. Eu vendo iogurte, vendo levan que é
fermento natural pra pão, vendo pão, faço sobremesa sob encomenda, fico
fazendo essas coisas. (...) Eu trabalho aqui das 4h à meia-noite, que é o
horário basicamente que acaba 1h da manhã, daí em casa eu trabalho das 7h
da manhã até meio-dia, vou buscar minha esposa219.
O tempo de descanso é dedicado a produzir comida em casa para vender, assim como
divulgar esses produtos para amigos e familiares em redes sociais.
Vitor é sous-chef em um restaurante na Vila Mariana, em São Paulo, mas divulga seu
trabalho de catering em Taboão da Serra (SP), onde mora, e nos domingos de folga faz
“bicos”.
Vitor: De vez em quando eu faço uns eventos por conta mesmo, um
casamento pra fazer, um aniversário, um noivado.
Entrevistadora: Ah, você faz tipo bufê? Não dá muito trabalho isso?
Vitor: Dá, só que eu alugo o material e, então eu pego o quê? Duas pessoas
pra me ajudar na cozinha, e dois garçons, muitas vezes também se não achar
garçom, à noite eu faço comida, durante o dia eu faço, preparo, e na hora de
servir eu também eu vou pro salão, trabalhar de garçom. (...) É por
conhecimento também, né, que eu faço um cartazinho e vou lá onde eu
moro, na minha região, vou botando cartazinho pra um, pra outro. Aí a
pessoa vê e gosta, aí fala "ah você faz um aniversário, sei lá", não faço assim
se é grande, pra 200 pessoas, aí não dá. O máximo que eu já fiz foi 100,
80220.
Vitor estava há três anos no mesmo restaurante na Vila Mariana. Tinha uma relação
muito boa com os colegas, principalmente com um dos sócios do restaurante – com quem ele
trabalhou em outra cozinha, e ganhava um salário que considerava bom (R$ 1.600), mas ainda
assim dedicava seu tempo de folga para fazer “uns eventos por conta mesmo”. E não sem
trabalho, pois ele relata o preparo de bufê para festas com até cem pessoas, além de alugar
mesas, cadeiras, talheres, contratar pessoas para ajudar no preparo e no serviço, e a
possibilidade de que ele mesmo, depois de preparar tudo, trabalhe como garçom.
A maneira como Vitor organiza sua vida para conciliar trabalho formal e informal é
reveladora de como essas formas de trabalho se articulam e complementam, sem
necessariamente se contraporem, para uma mesma pessoa. O serviço de bufê que oferece em
seu bairro é planejado para ser feito nas folgas, o que só é possível a partir de uma mínima
organização que seu emprego formal e sua boa relação com a equipe e chefia proporcionam.
Entretanto, organizar eventos, preparar jantares e trabalhar como garçom no período de folga
acarreta outros problemas, como falta de descanso ou lazer. É importante salientar que Vitor
219
Matias, 25 anos, cozinheiro.
220
Vitor, 32 anos, sous-chef.
208
não é responsável pelo trabalho doméstico em casa, nem o preparo das refeições da família, o
que otimiza seu tempo “livre”.
A chef Lídia221 tem aceitado convites para apresentar receitas em um programa
vespertino da TV Gazeta como forma de criar um nome para si e para seu negócio de comida
preparada. Há alguns anos ela trabalha oferecendo coffee break para eventos e pretende se
consolidar nos aplicativos de entrega de comida com pães e antepastos. No momento da
entrevista, além dos coffee breaks, ela também aceitava “fazer eventos”, mais ou menos da
mesma maneira que Vitor.
Ela prepara jantares e almoços para encontros que vão desde festas de família a
casamentos de pequeno porte, cuidando da comida (canapés, entradas, pratos principais,
sobremesas, bolo etc) e todas as outras coisas necessárias. Para isso, teve de investir em uma
reforma na cozinha de casa.
Sobre o trabalho de gestão, Lídia conta com uma aliada que ajudava na “parte
administrativa” do negócio, sua irmã, bacharel em Administração. Sem precisar se preocupar
com a contabilidade, pagamento de taxas e impostos, tendo alguém de sua completa
confiança, ela podia se concentrar apenas no seu trabalho – o que não era pouca coisa.
Acostumada a fornecer comida para eventos, Lídia se aventurou pelo serviço de bufê
durante um tempo. Para além dos insumos, do preparo, do acondicionamento e do transporte,
o bufê ou catering é um serviço imenso de coordenação e logística. “Se o lugar não tiver
mesa, eu levo mesa, levo cadeira… levo tudo, tudo o que você imaginar”, contou ela.
Talheres, pratos, copos, taças, travessas, guardanapos, toalhas de mesa, garçons, serviço de
transporte em que caiba “tudo o que você imaginar” são alugados, contratados, organizados e
levados até o local da comemoração. Quando termina, tudo precisa ser lavado, acondicionado,
guardado, contabilizado, devolvido e pago (quando são alugados). Lídia é quem faz toda essa
gestão. “É, e enche o saco. Porque depois tem que pagar essas pessoas, né? Tem que fazer a
administração. É chato”, ela diz, “mas faz parte do serviço”.
Matias e Vitor têm um trabalho formal registrado com uma jornada que corresponde a
apenas um turno e um dia de folga na semana. Mesmo assim, conseguem dedicar tempo ao
trabalho por conta própria, preparando comida em casa ou organizando eventos. Lídia, por
sua vez, dedica-se integralmente ao trabalho por conta própria. Ela desistiu do trabalho em
cozinhas de restaurantes porque gostaria de se identificar mais com a comida que prepara e
porque queria uma remuneração melhor.
221
Lídia, 37 anos, chef.
209
3.1. Consultorias
Foi possível observar que o trabalho por conta própria aparece para alguns
entrevistados como uma alternativa ao trabalho “de carteira assinada”. Esse tipo de trabalho
apresenta-se em alguns discursos como complicado e cheio de problemas, seja porque não é
possível que o/a cozinheiro/a faça as coisas da maneira como ele/a acha melhor, mas,
sobretudo, por ter de se submeter a regras e ordens com as quais não concorda. Por exemplo,
um restaurante que compra insumos mais baratos e de qualidade inferior, ou que tem relações
não transparentes com fornecedores.
Coisas que parecem ser detalhes do ponto de vista administrativo do estabelecimento
podem perturbar muito o/a cozinheiro/a, principalmente aquele/a que tem uma rígida ética de
trabalho.
Eu tomei um trauma de carteira assinada. Porque carteira assinada você tem
que fazer tudo que os outros quer. Eu aposentei pagando, assim, eu tenho
um saldo de 100 litro de carnê de INSS. (…) Tomei um trauma de carteira
assinada. Eu fui pro... meu deus, não dá mais. Eu fui pro... aqueles negócio
da prefeitura, né, aquele carnê? Eu tinha um monte. Fui na prefeitura, me
registrei como autônoma. Aposentei como autônoma. Chega, viu, não
aguentei222.
Benê Ricardo, além de ter descrito inúmeras situações em que foi discriminada por ser
mulher, negra e por sua origem social, também apontou diversos conflitos na cozinha em
razão da sua ética profissional e a forma como ela entendia que o trabalho culinário deveria
222
Benê Ricardo, chef e banqueteira, 73 anos.
210
ser realizado. O trecho acima traz a expressão “eu tomei trauma de carteira assinada”, que ela
repetiu algumas vezes durante a entrevista.
A carteira assinada representava um trabalho subordinado, que era obrigada a cumprir
e seguir ordens sem questionar. Isso lhe causou muitos transtornos e desentendimentos, até
decidir trabalhar de forma autônoma. Passou a oferecer serviços de banqueteira para eventos,
assim como testes de produtos e elaboração de receitas para empresas, além do trabalho de
docente que desempenhou em diversos cursos ao longo de toda a vida. Entretanto, mesmo
autônoma e prestando consultoria em restaurantes, Benê ainda enfrentou problemas com
proprietários que não assumiam erros de gestão.
Um de seus alunos, vindo de uma família italiana proprietária de uma cantina
tradicional de São Paulo, convidou-a a prestar consultoria na cozinha do restaurante. A
princípio, ela resistiu.
Aí eu falei "mas seu restaurante é muito chique, eu sou simples", falei pra
ele. Ele falou "não, Benê, meu pai quer que você vai". Menina, aí eu cheguei
lá no ___. Ele "olha aqui os copo, olha como é chique", eu falei "olha, me
desculpe, mas de salão eu não entendo nada, eu quero ir lá na cozinha".
Menina... eu pensei que a cozinha lá era limpa. Jesus! Eu falei que eu ia
ensinar a fazer carré de bisteca e aquelas coisas, eu já falei "eu preciso de
um litro de cloro pra lavar as tábua". Essas tábuas de... nossa, preta. Aí ele
falou "ah, mas você é fresca". E eu falei "e como é que eu vou usar essas
tábua escorregando?". Ele disse "cloro é caro". Eu peguei do meu dinheiro,
acho que custava 3 real, pedi pro menino ir comprar cloro. Menina, ainda
raspei... ali sai aquele alichela, sardella... que o povo acha que lá é tudo
chique, não vai na cozinha. Aqueles negócio, potinho de liccela, o povo fala
em cima e fuma, naquela época não tava proibido. Eu tirando pra lavar
aquele negócio, ele foi e deu um berro "isso daí é caro! Você sabe quanto que
custa isso?" Eu falei "mas o senhor já não cobrou?", ele disse "Mas o
restaurante é meu!", eu falei "o senhor chamou eu aqui pra quê? O senhor
falou que queria uma consultoria, eu tô aqui. Agora o senhor tá falando isso
pra mim, desculpa". Meu contrato era quatro meses, eu não aguentei ficar
dois meses. Aí chegou tomate, ele manda comprar o tomate, quatro horas no
Ceasa. Os tomate chega tudo assim... Chega, ele joga na panela, nem lava.
Mas brasileiro é idiota. Desculpa. Sabe por quê? Mas daí eu contei lá pro
povo, e eles não foram mais. Eu ainda falei. Ele falou assim "Você é muito
fresca, muito fresca". Eu falei "olha, ___, eu sou pobre, mas eu gosto de
limpeza. Eu não vim oferecer". Por isso que eu não vou onde não me
chamam. Porque se chamar, você pode responder, mas se você vai procurar...
aí é outros 500. Eu falei "foi você que me chamou". Falei.
Algo tão básico e, a princípio, tão banal, como a higiene da cozinha, dos instrumentos
e dos insumos, não deveria ser objeto de tanta discussão, mas Benê tinha diversos exemplos
de como vários estabelecimentos nobres, chiques e sofisticados da capital paulista serviam
muito mais ao lucro do que às normas da vigilância sanitária. Perguntei sobre a fiscalização,
ela sorriu e afirmou “filha, eles pagam tudo por fora”. Não entrei no mérito desse tipo de
211
atitude criminosa, mas atentei para a forma como esse tipo de conflito tornou a liberdade de
poder recusar trabalho uma questão de honra para Benê, algo mais importante do que os
direitos associados ao trabalho, por exemplo.
O trabalho de consultoria realizado por Benê, que, como já afirmei, era uma mulher
com grande reputação entre os/as chefs e cozinheiros/as, estava sempre sendo alvo de
questionamentos e não sendo cumprido, como ela narrou, tachada de “fresca” ou “chata” –
aliás, ela mesma usa esses termos pra descrever sua preocupação com limpeza e higiene.
Já André, brasileiro vivendo em Paris há mais de dez anos, sócio de um restaurante de
comida contemporânea, é contratado constantemente como consultor para diminuir
desperdício e aumentar o rendimento. Questionei se era tranquilo para os franceses ter um
brasileiro ensinando a gerenciar uma cozinha, afinal, não é um algo muito corriqueiro um
profissional ser tão respeitado a ponto de ser chamado pelos locais para opinar sobre como
eles devem gerenciar seu negócio, o que precisam mudar e como. Segundo o chef, ele não
procura ninguém: são os proprietários que o contratam para fazer consultoria sobre como
salvar o restaurante ou observar e apontar onde é possível otimizar a produção e cortar custos.
desobedecida e ignorada, o que a levava a sair dos restaurantes antes do término de seu
período de contrato, não raro com prejuízo financeiro para ela.
As consultorias baseiam-se, sobretudo, na experiência que os/as profissionais têm, nos
conhecimentos que adquiriram, saberes empíricos sobre o funcionamento de uma cozinha e
que se refletem em práticas dentro do restaurante, seja para diminuir custos, otimizar
investimentos, seja fazer mudanças ou começar um negócio. Muitas vezes, um/a chef pode ser
contratado para elaborar um cardápio ou mesmo montar o restaurante, e depois não
permanece lá.
4. As plataformas digitais
Porque assim, nesse meio tempo desse mundo que dia que chega, o dia que
sai, começa, termina… eu sempre vendi alguma coisa de comida. Sempre.
“Ah, vamos fazer um bolo de mel para Rosh Hashaná”. Vendia bolo de mel
para Rosh Hashaná. “Ah vamos fazer o strudel, que a minha sogra fazia”
(…) “Ah, vamos fazer um strudel de abacaxi”, que era coisa característica da
família, “ah vamos”, “vamos vender?” “Vamos vender”. “Vamos fazer
brigadeiro gourmet?” “Vamos fazer”. Entendeu? Então sempre no meio tinha
coisas de comida, mesmo com trabalho, com outra atividade. Aí eu falei,
“Quer saber? Vou atrás... desse aplicativo, vou ver como funciona”.
Ela garante que sua experiência com planejamento de eventos foi fundamental para se
adaptar à incerteza do trabalho mediado pelo aplicativo.
Esse depoimento de Rita deixa claro que ela preferia ter outro tipo de relação com os
clientes, aqueles que compram sua comida, até porque, graças à sua experiência anterior, ela
sempre teve um contato muito próximo com quem comprava seus produtos. Então, ela
valoriza que o aplicativo possibilite um diálogo entre ela e o/a comprador/a, mesmo que seja
apenas para agradecer o pedido, porque anseia por uma relação em que ela “deixa de ser um
número”, ou seja, que tenha um componente mais humano.
É que o iFood você não fala com o cliente. O cliente pede, né? Toca a
campainha do aplicativo, você separa mercadoria, manda a mercadoria e
acabou... Não tem, não tem uma relação. Eles até têm um sistema de
avaliação mas assim, muito pouco representativo.
Sua relação com as plataformas digitais e aplicativos que utiliza para visibilizar e
vender seus produtos condiciona o ritmo e a organização do trabalho. Além dos congelados,
ela prepara lanches para entrega imediata, mas a procura por estes últimos é menor (a oferta
215
de lanches em seu próprio bairro é muito maior) e representam uma ruptura na organização do
trabalho, pois são preparados e enviados na mesma hora.
Para lidar com as incertezas do dia a dia, sem saber exatamente quanto vai vender ou
quanto vai precisar preparar, seja à la minute, seja congelado, Rita afirmou que se sente mais
segura e no controle porque montou em casa uma infraestrutura com grande capacidade de
armazenamento. Apesar de cozinhar todos os dias em uma cozinha pequena de apartamento,
reformou sua área de serviço e tem cinco freezers grandes.
A promoção a que ela se refere foi uma iniciativa do aplicativo: oferecer 30% de
desconto em todos os pedidos em um período de três dias. Isso praticamente dobrou a
quantidade de pedidos que ela estava acostumada a atender na semana. Esse tipo de
promoção, sem aviso prévio por parte da empresa, acaba colocando Rita em uma situação
difícil por alguns dias. Como ela tem algum espaço para estocar e seu foco principal de venda
são os congelados, ela consegue atender a demanda com o que tem armazenado. Mas isso
também desorganiza o planejamento e é preciso gastar mais tempo cozinhando para repor o
que foi vendido.
Evidentemente, ela não vê problema em aumentar as vendas, ao contrário. Mas o tipo
de promoção que o aplicativo promove, como isso aumenta a demanda drasticamente de um
dia para outro, sem avisar os/cozinheiros/as, cria problemas de logística, principalmente em
216
uma situação como a de Rita, que trabalha em casa, sem ajudante, e precisa dar conta,
sozinha, dos preparos, do aplicativo e do envio das “marmitinhas”. Geralmente, o marido,
aposentado, ajuda fazendo compras. Para o seu tipo de produção e espaço de trabalho, Rita
tem limitação quanto aos insumos. Não pode comprar no atacado, em grande quantidade,
como 30kg de cebola, por exemplo, porque não consegue usar tudo antes de estragar. Então,
faz compras em mercados comuns ou clubes de compra. No entanto, quando o estoque acaba
rapidamente, pedir que o marido compre muita coisa em pouco tempo gera algumas tensões.
Como sua rede de clientes e consumidores por meio de redes de contatos não é grande,
Rita praticamente trabalha no ritmo do aplicativo. É por meio dele que visibiliza seu trabalho,
faz contato com clientes em potencial – daí sua preocupação em ter um espaço de diálogo
com quem encomenda – e determina o ritmo da sua produção.
Ludmila Abílio (2019: 2) compreende “a uberização como uma tendência de
reorganização do trabalho que traz novas formas de controle, gerenciamento e subordinação”.
Apesar do nome que se refere à empresa Uber, tal fenômeno não se inicia com ela e nem se
restringe apenas a ela. “As plataformas digitais têm sido globalmente reconhecidas como
vetores de novas formas de organização do trabalho; estabelecem-se diferentes definições
sobre diferentes tipos de relações de trabalho mediados por plataformas e seus impactos
econômicos” (idem).
Conforme proposição de Nick Srnicek (2017), tais plataformas seriam, em um nível
mais geral, infraestruturas digitais que permitem que dois ou mais grupos interajam,
posicionando-se, portanto, como intermediários que conjugam diferentes usuários: clientes,
propagandas, provedores de serviços, fornecedores e até objetos físicos. Essas plataformas,
segundo Srnicek, têm três características fundamentais. Em vez de construir um mercado do
zero, a plataforma provê a infraestrutura básica para mediar diferentes grupos. Essa é a chave
para sua vantagem sobre modelos de negócios tradicionais quando se trata de informação,
pois a plataforma se posiciona (1) entre usuários, e (2) como o terreno sobre o qual as
atividades ocorrem, o que lhes dá o privilégio de acesso e gravação de informações pessoais
de todos os usuários.
217
No caso que analisamos aqui, o trabalho por conta própria mediado pelo aplicativo
coloca sobre Rita não apenas toda a responsabilidade pelo trabalho, pelo gerenciamento das
218
atividades e do tempo, o marketing e a propaganda dos seus produtos – não apenas através das
avaliações do aplicativo, mas também por acionamento de redes pessoais e de redes sociais 223
- mas gerindo a atuação do próprio aplicativo, que acaba por condicionar sua produção,
intensificando ou não seu trabalho, na medida em que lança promoções sem aviso prévio.
A relação de Rita com o trabalho por conta própria revela formas de subordinação e
controle do seu tempo e produção. Ainda que não tenha um chefe ou patrão, que ela gerencie
e organize seu próprio trabalho, as plataformas digitais que utiliza para entrar em contato com
clientes, visibilizar a produção e, em última instância, vender, determinam seu modo de
trabalho e produção.
O trabalho por conta própria se apresentou como uma alternativa profissional que
atendia às suas expectativas de obter renda e de realizar um trabalho sobre o qual ela tem mais
domínio do que em um restaurante ou outro estabelecimento. Enquanto fazia o curso de
Tecnóloga em Gastronomia, Rita estagiou em um restaurante e pôde vivenciar a experiência
do trabalho em uma cozinha profissional, ao qual não se adaptou.
E assim, eu acreditei, depois que eu fiz aquele estágio que cozinha não é pra
mulher... de restaurante. (…) ... porque na verdade cozinha de restaurante
você precisa ter força física. Eu aqui, tem dia que eu trabalho 18 horas em
pé, mas eu tô no meu domínio aqui, entendeu? Eu se eu precisar sentar dez
minutos, eu vou sentar dez minutos, se eu precisar tomar uma xícara de chá,
pra me reestabelecer, vou. E eu não vou carregar 50kg de cebola ao mesmo
tempo. E no restaurante você vai fazer isto.
Com mais de 60 anos, ser estagiária em cozinha para Rita foi muito desafiador e, de
certa maneira, inviável. Ela lembra que além da força física, sua maior dificuldade era
justamente lidar com as exigências e ordens que tinham que ser cumpridas na mesma hora.
“… muitas vezes, assim, o carrinho está ocupado, e aí o chef (ou chef??) quer aquela hora.
Você sabe, você já entendeu a dinâmica de uma cozinha. Que é assim, é naquele momento,
entendeu?”. É irônico perceber, entretanto, que ela desistiu do trabalho em cozinhas
profissionais justamente porque não conseguia dar conta das demandas imediatas dos chefs,
mas conseguiu se adaptar a uma rotina de incerteza e de trabalho on demand via aplicativo.
223
Após o término da entrevista, com o gravador desligado, em conversa informal, Rita comentou sobre sua
atuação em redes sociais, como Facebook e Instagram. Sua interação nesses espaços virtuais não é obrigatória,
mas é importante. Além de divulgar o trabalho, publicar fotos dos pratos, preços, novidades e ampliar sua rede
de contatos, a presença nas redes sociais também serve para fazer propaganda do próprio aplicativo, difundindo
o logotipo, convidando as pessoas a conhecerem e alardeando as promoções.
219
Da feira foi para numa loja de roupas. Depois, teve um restaurante. Depois, um bar.
Depois, uma casa de acarajé. Trabalhou em casa de família. Fez “bicos” como faxineira e
como cozinheira. Vendeu brinquedos na porta de um presídio, quando o irmão cumpria pena.
As experiências profissionais de Helena foram tantas que foi praticamente impossível manter
uma ordem cronológica de tudo que ela foi lembrando durante a entrevista. Estava ansiosa
para contar que “não tinha medo de trabalho”, e que já tinha “feito de tudo um pouco”.
Mas o que a marcou foi sua experiência de “dona”. Sente empatia pela atual patroa,
porque “eu já tive meu negócio, eu sei como é”. “Eu sou do lado do patrão, porque eu
entendo”, ressalta. Tanto que, para ela, em seu emprego atual acha que o problema “é que
funcionário dá muita dor de cabeça, sabia?”
Helena já viveu essa condição. Foi dona de um bar e de um restaurante, mas trabalhou
por conta própria com vários tipos de serviço de alimentação. Começo pela sua experiência de
sócia no restaurante no bairro do Campo Limpo, em que cuidava da cozinha e do
atendimento; o sócio cuidava das contas.
Aí era meu e do meu amigo. O amigo dele cresceu e falou que a gente
vendia bem, aí queria entrar de sócio. Aí ele vendeu a parte dele pro amigo
dele. Aí ele falou, “ó, eu vendi só uma parte, mas a gente vai continuar”. Só
que eu vou ter que cozinhar e eu vou querer um salário, porque eu não vou
trabalhar pra vocês dois, né? Ele falou que tudo bem. Só que esse amigo dele
entrou hoje que é sexta, saiu no sábado, porque ele não aguentou muito a
pressão. Ele falou que era muita pressão minha. Era muita coisa errada que
saía, o telefone não parava de tocar, ó, aqui eu já cheguei a vender 70
marmitex. É muita comida. Mais o bufê.
O amigo desistiu do negócio, vendeu sua parte. O novo sócio não aguentou “a
pressão” e o negócio acabou. Em seguida, com um outro amigo desta vez, Helena abriu um
bar no mesmo bairro. Lá não tinha que cozinhar, era um forró, mas atendia os clientes e
servia as bebidas, o que, constatou, era difícil também.
Helena: Eu já tive um bar, com um amigo meu, ficamos uns três anos,
quatro anos com o bar. (...) Então, mas lá eu não fazia comida, né? Era
forró.
Entrevistadora: E não fica uns homens bêbado...
Helena: Então, isso não dá paciência, isso perde... hoje em dia eu não
monto um bar pra mim, porque não tenho paciência. Uns bebo chato, você
tem que se dar, você tem que ter paciência e eu não tenho mais paciência pra
isso.
Entrevistadora: Eles falavam muita besteira pra você?
Helena: Falavam, mas aí a gente releva, né? Depois que a gente tá atrás do
balcão... Teve um cara que falou bem assim pra mim "nossa", tava frio, né,
"tá frio hoje", e eu falei "tá, tá frio", e ele tinha bebido lá né, aí ele falou "tem
221
tudo pra gente ir pra um motel hoje, né?" Eu falei "tem mesmo, você
acertou", ele ficou todo contente, "mas hoje não posso, hoje tô
trabalhando". (...) Tem cliente que fala assim "eu só vou beber se você beber
junto comigo". Aí você tem que beber também. Às vezes você não bebe,
você só põe no copo e disfarça, entendeu? Tem que ter muito jogo de
cintura.
Trabalhando no bar, no forró, e lidando com homens que estavam bebendo todas as
noites, Helena criou estratégias para lidar com o assédio dos clientes. Fingir que bebia,
simular que correspondia a um flerte para evitar brigas e discussões, fingir que não ouvia
certas coisas, entre outras. Quando ela afirma “não tenho paciência”, depois de ter passado
anos lidando com essas situações, fica evidente que ela chegou ao limite para lidar com tal
carga emocional e mental no trabalho, algo que, como dona, ela teria que suportar. Como
queria que os homens continuassem lá, bebendo, frequentando o bar, ela tinha que ter “muito
jogo de cintura”.
Depois da experiência como sócia em dois estabelecimentos, ela iniciou outro negócio
com um outro sócio, desta vez vendendo café e bolo nas ruas, de manhã.
O negócio que Helena e o amigo começaram, na verdade, era de pagar o aluguel dos
pontos para vender café e bolo na rua, e colocar alguém para ficar vendendo. Ela conseguiu
montar até 13 barracas assim, o que é bem considerável. Ela preparava o café e os bolos,
pagava o aluguel do ponto e pagava as “meninas”. O problema, segundo ela, era a logística de
levar tudo isso em carrinhos de mão. Helena não sabe dirigir e não tem carro. Aí entrava o
sócio. Mas ela desconfiou da retidão dele quando ele passou a pedir cada vez mais dinheiro
para abastecer o carro, “que perua é essa que só bebe gasolina?”.
Helena, em suas próprias palavras, não fica desempregada. O que quer dizer que ela
não fica sem trabalhar, sem conseguir renda. E dentre as muitas atividades que ela
desenvolveu para garantir o próprio sustento e o da família, a atividade por conta própria
aparece como um trabalho precário, vulnerável, mas com garantia de retorno.
A atividade por conta própria, mobilizando a mãe e a filha para fazer as vendas,
passou a ser conciliada com o trabalho em casa de família.
Nesse trabalho, Helena era empregada sem registro, informal, por isso ela recebia por
dia. Além da extensão da jornada, ainda havia as viagens – pois o rodeio era itinerante,
montagem e desmontagem da barraca de pastel. Conforme lembrou, os netos começaram a
pedir que ela não viajasse mais, que passasse mais tempo em casa, e por isso ela desistiu de
trabalhar assim, e decidiu aceitar o emprego no restaurante onde eu a conheci. “Eu tenho 8
meses sem registro, né, que eu fiquei enrolando pra entregar os documentos, porque eu não ia
ficar aí. Eu disse que essa menina aí que briga muito, e eu não ia ficar aí, e vou fazer um ano,
dia 12 de dezembro, registrada”.
Como Helena afirmava que não tinha medo de trabalho, o fato de não se dar bem com
outra funcionária - “essa menina aí” - pesava para que ela não aceitasse o trabalho e ter
passado oito meses considerando a ideia de sair. Apesar dos problemas com a colega, a quem
considera responsável por tudo de errado que acontece no restaurante, ela decidiu ficar porque
tem uma relação boa com outros colegas e, sobretudo, com os patrões.
O patrão não mandou ela embora porque tem duas funcionárias que ele ainda
tá pagando, né? Mas vai mandar ela embora. É difícil, coitado. Ele veio dar
uma levantadinha agora. Até o pagamento da gente ele paga em pedaço, que
eu já ia sair por causa disso, aí depois ele me pediu pelo amor de Deus,
também fiquei com dó, sabe. (...) Aqui tem muito restaurante, e outra, eu
tive restaurante, eu entendo. Eu falo pra ele "eu só não posso atrasar o meu
aluguel, o meu aluguel eu não posso atrasar", eu falei pra ele.
"você não vai dar conta", falei, a senhora não tem que pensar nisso que não dá conta,
funcionário tem que se virar. O cliente quer um omelete, tem que sair de lá o omelete”.
Eu ajudo, sabe por quê? Porque uma que eu tenho que saber atender direito,
entendeu? Que com a crise que tá não dá pra perder cliente, você concorda?
Aí o cliente fala "ah, mas eu não como isso", eu falo "quer um omelete? quer
um ovo frito?". Eu ofereço. "Você quer mudar sua carne por uma linguiça?",
entendeu? Ninguém fala.
Todo esse engajamento no trabalho não altera seu salário, como ela aponta, que é pago
“em pedaços” e consiste em 1.260 reais por mês, com a promessa de chegar a 1.500 reais
assim que o patrão quitar as dívidas, registrado em carteira. Em sua percepção, o salário é
baixo, e não tem o adicional das gorjetas ou caixinha.
Também é Helena que faz a lista de compras, confere os insumos, controla o que está
na geladeira e supervisiona o trabalho de duas ajudantes. Ou seja, embora ela se identifique
como cozinheira, ela faz o trabalho de chef. Mas recebe salário de cozinheira. Sua jornada no
restaurante começa às 8h e vai até 16h.
Eles dão almoço, mas tem vezes que eu não almoço. Que assim, você às
vezes mexe tanto com comida que você já fica com o cheiro da comida e não
sente fome. Eu falei, vou comer só salada, aí eu chego em casa e fico com
fome.
Ela afirma que trabalha intensamente porque tenta terminar o serviço o mais rápido
possível, para voltar para casa e ficar com os netos. Em casa, ainda prepara o jantar da
família. Quando perguntei se ela tinha tempo para descansar, respondeu: “Só de domingo, e
de vez em quando, porque tem que lavar roupa. Mas domingo agora eu vou descansar, porque
eu lavei roupa ontem. Fiquei até 1h da manhã”.
A trajetória profissional de Helena se equilibra entre o trabalho formal e o informal,
com ou sem registro, por conta própria, em casa de família, como ambulante. Ela pontua que
trabalhando dessa forma ganha mais, mas entende que isso acarreta mais trabalho e que é
melhor “ter aquele dinheiro”. Algumas vezes, cita o desejo de abrir um negócio para as filhas,
mas sabe que teria de assumir uma parte do trabalho, e isso seria uma sobrecarga pesada.
225
Só que aí eu podia montar pras minhas filhas. Só que elas não têm o mesmo
pique que eu tenho. Pra eu chegar agora, que nem eu saio daqui 4h, fazer
tudo isso pra vender à noite, digamos, até 1h da manhã? Eu sei que eu
vendo, mas é muito cansativo.
Assim, conforme Araújo (2011: 183), existe uma crescente diversidade entre os
trabalhadores ambulantes, inclusive de pessoas com alta escolaridade (os “camelôs da
tecnologia”), mas esta continua sendo uma forma de trabalho precária, que oferece uma
possibilidade de geração de renda para aqueles (e principalmente aquelas) que não conseguem
retornar ao mercado formal, ou seja, um emprego formal, e que não podem ficar muito tempo
sem trabalhar.
-las a condições piores e remuneração inferior, ao mesmo tempo que as torna reféns do lar e
da família. Ainda de acordo com a autora: “A dominação capitalista de classe se efetiva
produzindo e reproduzindo ‘diferenças’ que, no fundo, reforçam desigualdades, inclusive de
gênero” (idem).
A relação entre trabalho formal e informal foi tratada de maneira complementar e
concomitante, não excludente, porque as entrevistas indicam que “atividades e formas de
exercício do trabalho consideradas informais (porque ilegais, desprotegidas, não assalariadas
ou voltadas para a subsistência) se combinam e se entrecruzam com atividades e formas de
trabalho definidas como formais” (ARAÚJO, 2011, p.184).
227
Considerações finais
Nesta tese, procurei ser fiel às proposições de Sandra Harding (1989) e problematizar
as questões de pesquisa tomando o ponto de vista das mulheres de maneira central. Também
procurei considerar a concepção elisiana da relação entre indivíduo e sociedade, a fim de
pensar as realidades dos trabalhadores e trabalhadoras em cozinhas como processos dentro de
um processo mais amplo, como uma rede de interdependências em constante mudança.
Iniciei a tese com uma reflexão histórica sobre o trabalho culinário, buscando mostrar
suas principais mudanças e permanências ao longo do tempo. Enquanto hoje os/as chefs
ganham visibilidade em publicações, revistas, internet e programas televisivos, transcendendo
o espaço da cozinha e popularizando ingredientes e técnicas que, até então, eram restritos
aos/às iniciados/as, muitos aspectos das relações de trabalho remetem às corporações de ofício
da Idade Média. A relação entre mestre e aprendiz, a construção de um saber empírico on the
job e a valorização da experiência profissional permaneceram muito similares ao longo dos
séculos. O ethos profissional, baseado, sobretudo, em um comprometimento com o trabalho e
com a equipe, a responsabilidade daqueles/as que preparam a comida de outras pessoas, o
sentimento de pertencimento a um grupo e a lealdade aos colegas também constituem
elementos de permanência.
O trabalho em cozinhas já estava, no nascimento do restaurante, intimamente
relacionado à divisão sexual do trabalho. Busquei mostrar como, historicamente, o trabalho
culinário realizado por mulheres foi alvo de difamação e inferiorização, como desde o
surgimento do restaurante (como instituição moderna), o trânsito de mulheres nas cozinhas
era vetado. Ainda que se reconhecesse que as mulheres poderiam ser boas cozinheiras, seu
trabalho sempre foi limitado às cozinhas domésticas, seja da própria casa, seja das casas
burguesas, onde também se realizavam jantares luxuosos, mas em que a cozinheira nunca
obtinha reconhecimento. Mais adiante, conforme os cozinheiros passam a se enxergar como
categoria profissional e a se organizar para reivindicar direitos, a exclusão das mulheres é uma
estratégia para afastar a categoria do trabalho doméstico e, portanto, para valorizar a
profissão.
No Brasil, para além do jugo colonial, há uma mudança a partir dos anos 1990, com a
abertura das importações e uma mudança no perfil dos trabalhadores de restaurantes. Mesmo
que historicamente (e até hoje) o trabalho nas cozinhas seja associado a um trabalho pesado,
228
que demanda pouca qualificação e que, portanto, recebe pessoas de classes sociais mais
baixas e pouca escolaridade (nas entrevistas, esse perfil aparecia muito associado aos
"nordestinos", um termo que remete aos migrantes mas também tem um componente de
discriminação), jovens dos estratos médios que fazem ou fizeram cursos na área começam a
entrar nas cozinhas. Isso cria uma série de problemas e tensões nesse espaço, principalmente
do ponto de vista da autoridade e da organização do trabalho, uma vez que muitos dos
"nordestinos" são profissionais com muita experiência e que resistem às ideias dos jovens de
classe média, que, por sua vez, não aceitam receber ordens de pessoas com menos
qualificação. As relações de classe e origens sociais aportam alguns conflitos para as brigadas.
A partir dos anos 2000, principalmente, com o aumento da oferta de cursos na área da
gastronomia e com um incremento da visibilidade do trabalho culinário em diversas mídias, o
perfil do jovem classe média que entra nos restaurantes coloca uma nova perspectiva de
carreira e de crescimento profissional nesse segmento. Para além dos cursos, a possibilidade
de fazer estágio em grandes restaurantes (mesmo que não remunerados, o que é possível
graças à sua posição de classe) e trabalhar com chefs famosos, assim como experiências no
exterior, acirram a competitividade de quem almeja construir uma carreira e um nome na
profissão.
Com relação à formação profissional, a pesquisa revelou uma forte influência das
relações de classe, no que diz respeito ao tempo dedicado aos estudos ou cursos, assim como
à possibilidade de realizar estágios não remunerados. Pessoas jovens, sem responsabilidades
familiares (aqui, os homens também têm mais vantagem do que as mulheres, o que demonstra
a imbricação entre as relações de gênero e classe), que podem contar com o apoio dos pais ou
da família para se sustentarem enquanto estendem seu tempo de formação, têm mais
oportunidades de conseguir bons empregos, e ainda juntar dinheiro para abrir seu próprio
negócio ou mesmo mobilizar amigos e família para investirem.
No caso do trabalho por conta própria e dos serviços de alimentação, a condição de
classe também possibilita uma série de articulações que oferecem vantagens, como reformar a
casa, adquirir freezers e outros equipamentos, criar uma identidade digital para fazer
marketing nas mídias sociais, entre outras.
Apesar do aumento na quantidade de estabelecimentos e da força de trabalho
empregada em restaurantes no Brasil, a organização do trabalho em brigadas e a forte
hierarquia na cozinha permanecem. Sintetizei as diversas atividades da cozinha em três
ocupações que correspondem à hierarquia (auxiliar, cozinheiro/a e chef), e observei como, do
ponto de vista do emprego formal (dados da Rais), as mulheres são maioria nos cargos de
229
auxiliar e cozinheira, e os homens são majoritários entre os chefs. Isso revela que a autoridade
exercida na cozinha, que é muito vertical e emana da figura do chef, tem características
eminentemente masculinas - impor o ritmo, chamar a atenção dos demais, acelerar a
produção, entre outras - algo que apareceu nas entrevistas como "voz de comando".
Essa masculinidade, como pretendi demonstrar, transforma a cozinha de restaurante
em um espaço hostil para as mulheres, em que elas precisam criar estratégias para serem
respeitadas e integradas, o que é ainda mais difícil quando assumem cargos de chefia. Como
uma das entrevistadas mencionou, ser contratada não é o mais difícil. O desafio é permanecer
no trabalho, fazer com que os homens obedeçam, fazer com que as ordens sejam seguidas.
Nesse sentido, as relações de gênero, classe e raça atuam fortemente. Cabe às mulheres se
fazerem respeitar, seja adotando comportamentos "masculinos" (imitando os homens e
abrindo mão das suas características "femininas"), seja assumindo uma postura profissional
dura, seja abrindo mão de trabalhar em restaurantes e procurando alternativas de ter o próprio
negócio.
A pesquisa também revelou que, para além da divisão sexual do trabalho que está
colocada de forma mais ampla na sociedade, em que às mulheres cabe o mundo da família e
do trabalho doméstico e de cuidados, enquanto aos homens abre-se o mundo "externo" e do
trabalho profissional, a divisão do trabalho em cozinhas tem um forte componente de gênero.
Existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres, que acionam a ideologia naturalista e
associam determinados comportamentos e habilidades "naturalmente" a homens e mulheres.
Aos homens está reservado o trabalho nobre com carnes, que demanda força física, que
remete à conquista do fogo, assim como a chefia e a direção. Às mulheres cabe a cozinha fria,
as entradas e sobremesas, que demandam mais atenção aos detalhes, mais cuidado, mais
destreza, mais delicadeza e capricho.
A separação de homens e mulheres que coloca os homens em vantagem quando se
trata de chefiar e assumir o comando, que de um lado naturaliza relações sociais e, de outro,
revela seu caráter de conflito (que Danièle Kergoat postula como as relações sociais em torno
do enjeu) propicia e normaliza situações de assédio e assédio sexual. Nas palavras de alguns
entrevistados, há coisas que acontecem na cozinha que pessoas de fora considerariam
absurdas, mas que os insiders tomam como ordinárias. Em um ambiente que valoriza
características masculinas e que valoriza um comportamento de coesão grupal, o assédio
assume diversas formas e penaliza sobretudo as mulheres. Brincadeiras de cunho sexual e
homofóbico, muitas vezes entre o próprio grupo de funcionários, podem servir para fortalecer
vínculos de amizade e união, mas exclui e discrimina quem não participa.
230
racismo estrutural, que está colocado na sociedade. A origem social (mulheres pobres, no
Brasil, ou as imigrantes, na França) também contribui para limitar o acesso a vagas de
trabalho, que as relega às ocupações com menor remuneração e/ ou mais precárias. Esta
parece ser uma convergência entre as teorias da interseccionalidade (CRENSHAW, 2020;
HILL COLLINS, 2015), consubstancialidade (KERGOAT, 2010) e do nó (SAFFIOTI, 1993,
2015).
De outra parte, o movimento social, tanto o movimento negro quanto o feminista, tem
denunciado e lutado paulatinamente para mudar essas relações, tanto no mundo do trabalho
como na sociedade como um todo. E ainda que seja possível perceber que ainda há muito
caminho a percorrer para acabar com as discriminações e opressões, é preciso reconhecer
algumas conquistas (até porque tais conquistas precisam ser defendidas: o atual contexto
político tem revelado com que facilidade se subtraem direitos). A comparação entre as
trajetórias de mulheres negras revela a importância da questão geracional. Enquanto as
mulheres negras mais velhas iniciaram a vida profissional ainda crianças, no emprego
doméstico, tendo passado grande parte da sua juventude trabalhando em "casa de família" e
tendo tomado consciência, já mais maduras, sobre seus direitos e sua própria capacidade de se
defender do racismo e do machismo, as mulheres negras mais jovens assumem uma postura
mais "desaforada" (essa expressão foi utilizada por uma das entrevistadas), mais combativa e
mais aguerrida.
As mulheres negras mais velhas, quando saem do trabalho formal e precisam criar
estratégias para trabalhar por conta própria ou de forma autônoma (principalmente com
serviços de consultoria ou catering) encontram mais obstáculos. Seus conhecimentos
provenientes da experiência profissional são desvalorizados, na medida em que isso pode
servir de barganha para quem contrata seus serviços. A lógica da superexploração se revela na
insubordinação dos funcionários, não pagamento de serviços e até na desqualificação do seu
trabalho.
Nesse momento, após a aprovação da reforma trabalhista (que representa um ataque
aos direitos adquiridos e precarização do emprego) e o aumento do desemprego no Brasil, a
tendência parece ser o aumento do trabalho informal e por conta própria, o que está em
consonância com a chegada e o crescimento das plataformas digitais (algumas já populares,
como a Uber, mas que vem se consolidando também no segmento dos serviços de
alimentação), que aprofundam desigualdades sociais e criam oportunidades de geração de
renda à margem dos direitos. Considerando esse segmento, dos/as cozinheiros/as, que já é
caracterizado por alta rotatividade e baixos salários, o cenário parece indicar que a situação
232
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241
Um dos maiores desafios para realização dessa tese foi conseguir conversar com
cozinheiros e cozinheiras que estivessem trabalhando em restaurantes. Abordar esses
trabalhadores em seus locais de trabalho demonstrou ser improdutivo. Seja porque o/a dono/a
ou gerente solicitava que esses trabalhadores falassem comigo, o que os deixava muito
desconfiados, seja porque eles não tinham, de fato, interesse em conversar, ir até os
restaurantes e pedir para conversar com as pessoas era cansativo e não dava resultados.
Como apontei na Introdução da tese, comecei a acionar minhas redes pessoais, amigos
e amigas que conhecessem pessoas que trabalhavam em restaurantes, conhecidos/as que
tivessem algum contato. Esse caminho começou a apresentar resultados mais promissores.
Em uma ocasião, entrevistei dois funcionários de um restaurante grande em um hotel
em Embu das Artes. A conversa com eles se seguiu a uma longa e profícua entrevista com a
nutricionista e responsável pelo RH do restaurante, que solicitou que eles conversassem
comigo. Os dois me esperavam em um café no centro daquela cidade, fora de seu horário de
trabalho. Exceto por alguns momentos de compartilhar anedotas e contar “causos”, a
entrevista foi um fracasso. Os dois ficaram constrangidos, se negaram a falar sobre vários
assuntos. Mais tarde, soube que o homem era superior hierárquico da mulher, e por isso tantos
silêncios e tanto desconforto.
Lição aprendida: ao conversar com duas pessoas, é preciso ter muito claro qual a
relação entre eles e, se possível, agendar conversas individuais. Nenhum dos dois me atendeu
depois disso. Eles compareceram porque sua chefe mandou. Sem uma ordem expressa dela,
não precisavam mais ir. Como nossa conversa foi intermediada pela chefe deles, não
confiaram em mim.
Entrevistei um cozinheiro próximo do restaurante em que ele trabalhava e ele chamou
uma colega, estagiária, para conversar comigo. A conversa com ambos foi muito rica e eles
trouxeram muitos elementos, mas a partir de um momento, o rapaz começou a tratá-la como
sua estagiária, ou melhor, a tratá-la como seu superior. Falava por cima dela, respondia
perguntas que eram feitas a ela, pôs-se a dar conselhos. Comecei a resistir muito à ideia de
fazer entrevista com mais de uma pessoa. Mas existem contextos em que funciona melhor.
Segundo Beaud e Weber (2007), "acontece muitas vezes que uma entrevista que
deveria ser cara a cara se transforme, no dia, em entrevista coletiva. O pesquisado faz-se
244
acompanhar por amigos ou colegas. Claro que 'você a fará' e a realiza como se nada estivesse
acontecendo. Em compensação, é importante que reflita a seguir na situação da entrevista: por
que esse número maior?" (p.133). As respostas podem ser muitas, mas a reflexão é
fundamental para analisar o que foi dito.
Uma conversa informal, um bate-papo com café, podem ser mais reveladores do que
seguir um roteiro preestabelecido e tentar obter determinadas informações. Ter paciência,
conversar, trocar, comer bolo e escutar atentamente pode demorar mais que uma entrevista,
mas possibilita muito mais ganhos qualitativos. Tive a oportunidade de conversar com uma
grande chef, uma mulher incrível e generosa, que me recebeu em sua casa com um bule de
café quente e um bolo de fubá. Comigo estava outra cozinheira, sua amiga pessoal, que
intermediou nosso contato e que, coincidentemente, também levava um bolo de fubá. Passei
mais de cinco horas com elas, numa tarde emocionante. O tom informal da conversa entre
elas, na qual eu algumas vezes fazia uma ou outra pergunta, pedia algum esclarecimento,
permitiu que trocassem experiências e conversassem entre elas, revelando um universo para
mim desconhecido. A cozinheira, que eu já havia entrevistado, havia me respondido
claramente “eu nunca sofri racismo, não”. Mas durante a conversa com sua amiga, também
negra, que narrava história após história de discriminação, ela se sentiu à vontade para
compartilhar como também havia vivenciado o racismo.
Também houve uma situação em que uma banqueteira topou me dar uma entrevista em
um clube de elite na zona Sul de São Paulo. Era uma tarde quente de quarta-feira e eu
consegui entrar no clube graças a uma amiga, sócia da agremiação, e que nos colocou em
contato. Ela estava animada em dar a entrevista, mas não me autorizou a gravar. As gravações
do então presidente e ex-vice-presidente Michel Temer por Joesley Batista tinham acabado de
se tornar públicas. Ela mesma mencionou tal episódio ao me pedir que não gravasse a
conversa. Talvez estivesse com receio que eu pudesse usar, contra ela, algo que ela tivesse
dito. Talvez não quisesse um registro formal do que me diria. Então nós apenas conversamos,
tomamos café, assistimos cavalos saltando no picadeiro, como as outras pessoas que lá
estavam. Muito da conversa se perdeu, já que não foi possível gravar. Por outro lado, ela se
sentiu muito mais à vontade para fazer comentários e afirmações que não teriam registro,
como, por exemplo, “rolava muito pó, sim, principalmente os garçons, garçom ganhava bem
naquela época, cheirava muito” ou “vinha aquele povo do Nordeste pedir emprego, a gente
fazia assim: tem dentes bons, vai pro salão; não tem, vai pra cozinha”.
Dentre os entrevistados, houve quem trabalhasse em restaurantes pequenos, onde
apenas uma cozinheira e uma ajudante faziam todo o trabalho da cozinha, até cozinhas
245
entender que, ainda que eu tenha feito um número reduzido de entrevistas (foram 32, no
total), eu consegui reunir um corpus importante de depoimentos e informações, que conferem
legitimidade às análises.
Segundo esses autores, “as entrevistas aprofundadas não visam produzir dados
quantificados e, portanto, não precisam ser numerosas. Não tem por vocação ser
‘representativas’” (BEAUD e WEBER, 2007, p.119). De fato, não procurei profissionais que
"representassem" grupos ou identidades. O que eu procurei fazer, nem sempre com sucesso,
foi criar um ambiente para fazer a entrevista em que o entrevistado se sentisse o máximo
possível confortável e à vontade para falar. Alguns dos percalços de tal estratégia, além da
interdição do gravador, foram entrevistas em locais barulhentos, por exemplo.
Ainda de acordo com os autores,
Cada um de seus ‘entrevistados’ expressa, no contexto dessa interação
particular [a entrevista], um ponto de vista singular. Quanto mais fizer
aparecer a singularidade desse ponto de vista, mais interessante será a
entrevista. (…) Tal singularidade deve levá-lo a analisar o entrevistado como
um caso, a restituir a coerência desse caso, a refletir sobre sua pertinência:
caso-limite, caso ideal típico, pertencimento a uma família de casos. O
critério do número de entrevistas importa, portanto, menos que aquele que
consiste em associar as entrevistas à pesquisa de campo propriamente dita.
Assim, apresento a seguir uma tabela com as informações das pessoas entrevistadas,
acompanhada de um comentário sobre o momento de realização da entrevista.
Elisa trabalhava no restaurante de Daniel e conversou comigo no espaço de descanso dos funcionários.
Vitor trabalhava no restaurante de Daniel – que também considerava seu amigo pessoal –, e conversou comigo
no espaço de descanso dos funcionários.
5 Frederico 9/10/15 Masculino Branco 32 Ensino Superior Bancário
Completo
(Gastronomia)
Frederico é um amigo de infância. A entrevista foi realizada em sua casa, com a presença de sua mãe.
Rosana era auxiliar de cozinha em uma pizzaria no bairro da Vila Mariana, São Paulo. Conversou comigo no
próprio restaurante, antes do serviço do jantar, a pedido da gerente do estabelecimento. Estava muito
desconfiada e desconfortável com a entrevista.
7 Valdemar 27/10/15 Masculino Negro 34 Ensino Médio Chef
Completo
Valdemar era chef da pizzaria no bairro da Vila Mariana, São Paulo, a mesma em que Rosana trabalhava.
Também foi a gerente do restaurante quem pediu que conversasse comigo, mas ele estava muito mais
confortável que Rosana.
8 Matias 18/2/16 Masculino Branco 25 Ensino Superior Primeiro
Completo cozinheiro
(Gastronomia)
Obtive o contato de Matias com uma amiga em comum. A entrevista foi realizada em uma padaria, ao lado do
restaurante em que ele trabalhava, antes do expediente. No dia da entrevista, estava com Carina e acabei
entrevistando os dois nesse primeiro momento.
9 Fernão 23/2/16 Masculino Branco 40 Ensino Médio Proprietário de
food-truck
Consegui o contato de Fernão por intermédio de minha mãe, que o conheceu na agência que ela trabalhava, no
bairro da Vila Leopoldina, São Paulo.
10 Joana 4/7/16 Feminino Branca 38 Ensino Superior Chef
Completo
(Gastronomia)
Enquanto ainda tentava fazer contato com o Sindicato dos Trabalhadores em Restaurantes, Bares e Similares de
São Paulo, e apesar de ter agendado conversa com o representante duas vezes, ele pediu que a chef do
restaurante, localizado no hotel do Sindicato, falasse comigo. Conversamos uma manhã no bar do hotel.
11 Silvana 22/7/16 Feminino Asiática 38 Ensino Superior Gerente de
Completo (Nutrição) Alimentos e
Bebidas
Silvana era amiga do meu irmão. Nutricionista, trabalhava como gerente de Alimentos e Bebidas em um hotel na
cidade de Embu das Artes (SP). No fim da entrevista e com o gravador desligado, Silvana falou sobre vários
problemas que enfrentava no trabalho e seu desejo de pedir demissão. Solicitou que Joelma e Carlos, seus
funcionários, falassem comigo.
12 Samira 25/7/16 Feminino Árabe Ensino Médio Proprietária
Completo e cozinheira
Samira foi entrevistada com a irmã, Isabel, em seu restaurante no bairro do Paraíso, São Paulo. Fiz contato com
ambas depois de ir duas vezes ao restaurante para falar sobre a pesquisa e pedir que ela conversasse comigo.
Conversamos no restaurante após o serviço do almoço, mas a chegada de vários parentes e amigos das irmãs
interromperam a entrevista.
13 Helena 27/7/16 Feminino Negra 49 Ensino Médio Cozinheira
Completo
Helena era cozinheira em um restaurante de comida caseira no bairro de Pinheiros, São Paulo. Eu a conheci por
intermédio de um amigo que frequentava o estabelecimento e já tinha alguma intimidade com ela. Conheci-a e
agendei a entrevista para o outro dia. Conversamos no bar do outro lado da rua, após o serviço do almoço.
14 Joelma 1/8/16 Feminino Negra 53 Ensino Médio Saladeira
Completo
Joelma trabalhava no restaurante de um hotel na cidade de Embu das Artes (SP). Conversou comigo a pedido de
sua chefe, Silvana, ao lado de Carlos, em um restaurante no centro do Embu, fora do horário de trabalho, em seu
dia de folga. Joelma era amiga do meu irmão.
15 Carlos 1/8/16 Masculino Indígena 53 Ensino Médio Primeiro
Completo cozinheiro
248
Carlos era chef de brigada no restaurante de um hotel na cidade de Embu das Artes (SP). Conversou comigo a
pedido de sua chefe, Silvana, ao lado de Joelma, em um restaurante no centro do Embu, fora do horário de
trabalho, em seu dia de folga. Apenas depois da entrevista, por conta das relações de amizade entre Joelma e
meu irmão, soube que Carlos era seu superior hierárquico na cozinha.
16 Gustavo 29/8/16 Masculino Branco 30 Ensino Superior Coordenador
Completo Pedagógico de
(Gastronomia) cursos de
Gastronomia
Entrei em contato com uma renomada escola de gastronomia localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo,
e conversei com Guilherme. Ele se interessou pela pesquisa e agendamos uma conversa na própria escola, após
o expediente. Por seu intermédio, entrevistei o chef Décio e participei de uma atividade com estudantes da pós-
-graduação nessa mesma escola.
17 João 1/9/16 Masculino Asiático 40 Ensino Superior Sushiman
Completo
João trabalhava em um restaurante de fast-food japonês, em um supermercado no bairro do Ipiranga, São Paulo.
Conversamos em um momento em que o restaurante tinha pouco movimento e agendamos a entrevista para o
dia seguinte, na praça de alimentação do supermercado, antes de seu expediente.
18 Décio 24/11/16 Masculino Branco 48 Ensino Superior Professor do
Completo Senac, ex chef de
(Gastronomia) e Pós cozinha
Graduação
Décio era professor de Gastronomia e conversou comigo por solicitação do coordenador, Gustavo. Conversamos
em uma sala vazia na escola, antes do seu expediente.
Conversei com o chef Suyama muito rapidamente durante o I Encontro Mundial de Chefs. Ele aceitou me
conceder uma entrevista, desde que fosse naquela mesma hora, no auditório do evento.
Conheci Cidinha Santiago no I Encontro Mundial de Chefs. Gravei a entrevista em sua casa, no bairro de
Santana, São Paulo.
Com relação à segunda classe, Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida
preparada, a descrição do IBGE encontra-se assim:
Seção: ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO
Divisão: 56 ALIMENTAÇÃO
Grupo: 56.2 Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida preparada
Classe: 56.20-1 Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida
preparada
Subclasse: 5620-1/01 Fornecimento de alimentos preparados
preponderantemente para empresas
5620-1/02 Serviços de alimentação para eventos e recepções - bufê
5620-1/03 Cantinas - serviços de alimentação privativos
5620-1/04 Fornecimento de alimentos preparados
preponderantemente para consumo domiciliar
224
Disponível em https://cnae.ibge.gov.br/?view=classe&tipo=cnae&versao=9&classe=56112 (Acesso em
19/03/2019).
225
Disponível em https://cnae.ibge.gov.br/?view=classe&tipo=cnae&versao=9&classe=56201. (Acesso em
19/03/2019).
252
5132 Cozinheiros
Títulos
5132-05 - Cozinheiro geral - Cozinheiro de restaurante, Merendeiro
5132-10 - Cozinheiro do serviço doméstico
5132-15 - Cozinheiro industrial - Cozinheiro de restaurante de indústria
5132-20 - Cozinheiro de hospital - Cozinheiro hospitalar
5132-25 - Cozinheiro de embarcações - Cozinheiro de bordo
Descrição Sumária
Organizam e supervisionam serviços de cozinha em hotéis, restaurantes, hospitais,
residências e outros locais de refeições, planejando cardápios e elaborando o pré-
-preparo, o preparo e a finalização de alimentos, observando métodos de cocção e
padrões de qualidade dos alimentos.
Formação e experiência
O exercício dessas ocupações requer ensino fundamental seguido de cursos básicos de
profissionalização que variam de duzentas a quatrocentas horas, ou experiência
equivalente. O pleno desempenho das atividades ocorre entre três ou quatro anos de
exercício profissional. A(s) ocupação(ões) elencada(s) nesta família ocupacional,
demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a
serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, exceto os casos previstos no art. 10 do decreto
5.598/2005.
Condições gerais de exercício
Trabalham predominantemente em restaurantes, empresas de alojamento e
alimentação, transporte aqüaviário [sic] e em residências. Trabalham individualmente
ou em equipe, sob supervisão, em ambiente fechado ou embarcado, em horários
diurno e noturno. Podem permanecer em posições desconfortáveis por longos
períodos. Estão expostos a ruídos intensos e altas temperaturas. Há situações em que
trabalham sob pressão, o que pode ocasionar estresse.226
Não utilizei apenas a família de Cozinheiros por entender que, entre os títulos, há
diferença substancial. O cozinheiro de restaurante ou de bufê e outros serviços de comida
preparada não faz o mesmo trabalho nem tem as mesmas condições que o cozinheiro de
embarcações ou em hospitais.
226
Disponível em http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso em
19/03/2019.