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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BIANCA BRIGUGLIO

COZINHA É LUGAR DE MULHER?


A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais

CAMPINAS
2020
2

BIANCA BRIGUGLIO

COZINHA É LUGAR DE MULHER?


A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais.

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutora em Ciências
Sociais.

Orientador(a): Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À


VERSÃO DO TEXTO PARA TESE
DEFENDIDA PELA ALUNA BIANCA
BRIGUGLIO, ORIENTADA POR PROFA.
DRA. ANGELA MARIA CARNEIRO
ARAÚJO.

CAMPINAS
2020
3
4

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas


Professoras Doutoras a seguir descritas, em sessão pública realizada em 23 de março de 2020,
considerou a candidata Bianca Briguglio aprovada.

Presidente
Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo (Unicamp)

Membros titulares
Profa. Dra. Bárbara Geraldo de Castro (Unicamp)
Profa. Dra. Márcia de Paula Leite (Unicamp)
Profa. Dra. Nadya Araújo Guimarães (USP)
Profa. Dra. Joana de Moraes Monteleone (USP)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de


Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
5

Esta tese é dedicada à minha avó Maria, que tornou tudo possível.
Seu amor, seu humor e o macarrão feito em casa me criaram.
6

Agradecimentos
Esse trabalho só foi possível com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001, por meio da
bolsa de estudos que me concedeu, tanto no Brasil quanto ao longo dos onze meses que passei
na França, que garantiram condições mínimas para que eu pudesse viver e trabalhar
exclusivamente na pesquisa.
Agradeço aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
(IFCH), que sempre foram solícitos e gentis em dar conta dos papéis, documentos e prazos
nesse período. Agradeço também à professora Isadora Lins França, por todo o apoio e
trabalho duro como coordenadora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais no tempo
em que a tese foi desenvolvida.
À professora Angela Maria Carneiro Araújo, minha orientadora, uma pessoa que
admiro muito, como pesquisadora, professora e militante, que sempre me inspirando e
fornecendo sugestões e conselhos valiosos para realização deste trabalho.
À professora Aparecida Neri de Souza, da Faculdade de Educação da Unicamp,
coordenadora do convênio Capes-Cofecub, que viabilizou a realização do meu doutorado
sanduíche na França, por todo o apoio e agilidade no processo;
À professora Selma Borghi Venco, pelo apoio, por sua leitura atenta e conselhos gentis
no exame de qualificação desta tese.
À professora Helena Hirata, minha supervisora durante o período do sanduíche, uma
pessoa querida e profundamente inspiradora. Sou muito grata por toda a sua gentileza e
generosidade, por seu cuidado e carinho, pela atenção e bondade sem fim. Muito deste
trabalho e das minhas inquietações de pesquisadora são inspirados por suas pesquisas e defesa
intransigente dos direitos das mulheres.
À professora Bárbara Castro, com quem tive a sorte e o prazer de conviver em Paris,
de conhecer para além de sua produção e de suas reflexões acadêmicas, e que sempre me
presenteou com palavras de apoio e de incentivo.
Às pesquisadoras e pesquisadores do Centre de Recherche Sociologique et Politique
de Paris (CRESPPA), no site Pouchet, em Paris, que me receberam e acolheram,
especialmente nas figuras das professoras Sabine Fortino e Régine Bercot. Também agradeço
aos meus vizinhos do andar dois e meio, Franck Satierf e Malek Bouyahia, pelas conversas e
socorro nas situações de aperto.
7

Aos meus vizinhos na Maison du Brésil, Pablo Fontoura, Natália Castilho, Leonardo
Barone, Ana Carolina Andrada, Martim (e Júlio ainda na barriga), pela amizade e confiança
que transcendeu muito a casa, a cidade e o continente, por todo amparo, toda ajuda, todos os
favores, todas as quiches, todas as conversas, todas as mensagens e todo afeto que me fazia
tanta falta.
À Liliane Bordignon, anja, que sempre me ajudou a abrir e a atravessar portas, a trilhar
bons caminhos, a chegar aos lugares que eu queria e que me acolheu de tantas maneiras.
À Thaís Lapa, amiga para a vida e companheira de ciladas. Tive a sorte de
compartilhar com ela não apenas as angústias e aflições do doutorado e das viagens à
Campinas, mas também pude receber seu carinho e apoio sempre, no Brasil e na França, de
longe e de perto. Sem ela, tudo teria sido mais difícil.
À Michele Escoura Bueno, por todas as conversas e toda a paciência, por ter me
recebido em Belém, me levado passear, comer, nadar e conhecer essa cidade incrível cheia de
possibilidades. Por ter me dado tanta força, presencialmente ou por Skype.
Aos colegas do Doutorado em Ciências Sociais, pessoas queridas que tive a sorte de
conhecer e de compartilhar experiências, medos e angústias, mas também happy hours e
risadas, numa rede de apoio mútuo. Aos colegas da linha de pesquisa Trabalho, Política e
Sociedade, Juliana Sousa, Pedro Queiroz, Thales Vilela Lelo e, sobretudo, Patrícia Rocha
Campos, que se tornaram grandes amigos e parceiros, além de interlocutores.
À Bel Mesquita, amiga querida, que me ouviu e leu meus lamentos, dividiu os seus e
sempre compartilhou comigo seu olhar perspicaz sobre a realidade, me ajudando a voltar ao
prumo e a seguir em frente.
À Erika Kulessa de Souza, companheira de sempre, amiga de todas as horas, por ser
tão imprescindível, precisa e sensível. Espero que estejamos sempre juntas. À Ana Paula
Martins, pelo pragmatismo ímpar e contagiante, pela compreensão e acolhimento. Às amigas
Samira Bandeira e Thaís Assunção, pelos anos de amizade e afeto que superaram todas as
distâncias e todos os obstáculos, por serem amigas de todas as horas.
Às queridas Priscila Vieira, Tata Chang e Bia Pasqualino, cuja amizade e parceria
tornaram as coisas mais leves e divertidas, que me falaram tantas vezes que era assim mesmo
e que ia ficar tudo bem, que eu até acreditei.
Às minhas companheiras de militância, Bruna, Elaine, Erika, Laura e Mia, por sempre
terem uma palavra de apoio e fé na força que temos unidas, no feminismo.
Aos amigos de Brasília, onde quer que estejam, principalmente Marianne (2N), que
adotou minha gata durante meu período de sanduíche e, mais tarde, adotou a mim também.
8

Meu muito obrigada ao Fernão Lopez, esse amigo que passou por acaso na minha casa e
nunca mais saiu da minha vida.
Aos amados Filipe Miranda, Fernando Morari, Kadine Teixeira, Gi e Ion Hernandez e
Andrea Belinda Schultz, amigos e amigas queridas que me receberam além-mar, me buscaram
no aeroporto ou na rodoviária, me deixaram dormir no sofá e me permitiram entrar em seus
cotidianos. Todos me fizeram sentir em casa, mesmo tão longe de casa.
Minha família na Austrália, Taty Marcondes, John e George, de quem sinto saudade
todos os dias, que me inspiram com sua doçura e amor, que me lembram que é possível
conquistar o inimaginável.
Aos meus tios Rita e Daniel Bonfim, a família que eu escolhi e que amo, pelo apoio de
sempre, por nossa ligação tão profunda e tão verdadeira. Daniel Bonfim, meu tio comunista,
que me inspirou sempre e que estará sempre comigo (não tem perhaps).
Minha mãe Tereza e meu irmão Enrico foram, são e sempre serão as pessoas mais
importantes da minha vida. Muito além de um núcleo familiar, somos parceiros. Eles sempre
acreditaram em mim, estavam ao meu lado me encorajando e me dando força todos os dias,
até quando as coisas ficaram muito difíceis. Sou muito grata pela sorte de tê-los.
Gostaria de agradecer a todos que me permitiram entrar em suas vidas e conhecer suas
histórias: os entrevistados e entrevistadas. Pessoas que não me conheciam e que dividiram
comigo suas angústias, sonhos, problemas, desejos, me receberam em suas casas ou em seus
locais de trabalho e pararam o fluxo de suas vidas para conversar comigo. Sem essa confiança
e solidariedade, esta pesquisa não teria sido possível. Agradeço muito a colaboração de cada
um deles.
Aproveito para agradecer, de maneira póstuma, à chef Benê Ricardo. Sem me
conhecer, ela abriu as portas de sua casa e me recebeu com um bule de café e um bolo de
fubá. Dona de uma humildade e modéstia impressionantes, seu pioneirismo, acredito, ainda
será reconhecido pelos futuros cozinheiros e, especialmente, cozinheiras do Brasil. Espero
que este trabalho honre sua história de vida e trajetória, não como narrativa heroica, mas
como um exemplo de luta.
Esta tese é dedicada à minha avó materna, Maria, que faleceu dois meses após minha
chegada na França. Só consegui realizar e concluir o doutorado na cidade de São Paulo
porque tive o privilégio de morar na casa dela, logo depois que ela foi institucionalizada.
Encontrei muito dela em mim nesse período. Gratidão é uma palavra insuficiente para traduzir
o meu sentimento, mas nesse momento é a que mais se aproxima.
9

“The kitchen is where work mingles with desire, pleasure, creativity,


violence, safety and other people; and where domestic technologies,
architects and designers create devices and spaces which shape gender”.
(Louise Johnson, 2006, p.123)

(“A cozinha é onde trabalho mistura-se com desejo, prazer, criatividade,


violência, segurança e outras pessoas; e onde tecnologias domésticas,
arquitetos e designers criam artefatos e espaços que moldam gênero”).
10

Resumo
O tema principal desta tese é a divisão sexual do trabalho que se realiza em cozinhas
profissionais. A partir de um panorama histórico da profissão de cozinheiro/a, no Brasil e na
França, procura-se compreender o mercado de trabalho, as condições e relações de trabalho
nesse segmento profissional. A pesquisa baseia-se principalmente em entrevistas com homens
e mulheres que trabalham ou trabalharam em ocupações ligadas à cozinha, como chefs,
cozinheiras/os, ajudantes/ auxiliares, saladeiras/os, assim como proprietários de
estabelecimentos, trabalhadores autônomos, prestadores de serviços de alimentação e
“empreendedores”. A pesquisa adota a perspectiva de gênero, classe e raça como ponto de
partida, assim como interroga os contornos da divisão sexual do trabalho, tanto no mercado
quanto no ambiente de trabalho. A cozinha profissional, principalmente em restaurantes, é um
espaço eminentemente masculino e masculinizante, que cria obstáculos e dificuldades para a
permanência de mulheres. Para além das responsabilidades familiares e do trabalho
doméstico, a própria cozinha profissional opera em uma lógica masculina e agressiva, que
supervaloriza a força física e um exercício de comando sexuado, que chega, não raro, ao
assédio moral e sexual, e que exclui as mulheres. Expandindo as fronteiras do trabalho em
restaurantes e observando alguns serviços de alimentação – como venda de
marmitas, catering e serviços de comida em domicílio –, observamos como as mulheres
acabam preferindo o trabalho autônomo ou por conta própria, seja por precisarem de mais
flexibilidade para conciliar atividades profissionais com o trabalho de cuidado e família, seja
pela possibilidade de gerir e administrar o próprio trabalho.

Palavras chaves: divisão sexual do trabalho; cozinhas; cozinheiros.


11

Abstract
The main theme of this thesis is the sexual division of labor that takes place in professional
kitchens. Based on a historical overview of the cooking profession, in Brazil and France, we
seek to understand the labor market, working conditions and relationships in this professional
segment. The research is based mainly on interviews with men and women who work or have
worked in occupations in the kitchen, such as chefs, cooks, helpers/ assistants, salad makers,
as well as establishment owners, self-employed workers, food service providers, and
“entrepreneurs”. The research adopts the perspective of gender, class and race as a starting
point, as well as interrogating the contours of sexual division of labor, both in the labor
market and in the workplace. Professional cuisine, especially in restaurants, is an eminently
masculine and masculinizing space, which creates obstacles and difficulties for women to
remain. In addition to family responsibilities and domestic work, the professional kitchen
itself operates in a masculine and aggressive logic, which overestimates physical strength and
a sexual exercise of command, which often turns into moral and sexual harassment, and
which excludes women. Expanding the frontiers of work in restaurants and observing some
workers in food services - such as selling prepared meals, catering and home food services -,
we see how women end up preferring self-employment or autonomous work, either because
they need more flexibility to reconcile professional activities with care work and family,
whether by the possibility of managing and administering their own business.

Key words: sexual division of labor; kitchens; cooks.


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Lista de Siglas e Abreviações


A&B: Alimentos & Bebidas, uma das áreas de um hotel, assim como Governança,
Segurança, Eventos, Recepção, Vendas etc.
CBO: Classificação Brasileira de Ocupações
CNAE: Cadastro Nacional de Atividades Econômicas
Contratuh: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade
Dieese: Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
FGTS: Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
INSS: Instituto Nacional de Seguridade Social
Ipea: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MTE: Ministério do Trabalho e Emprego
MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
Rais: Relatório Anual de Informações Sociais
Sampapão: Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo
Senac: Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio
Sinthoresp: Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Apart-hotéis, Motéis, Flats,
Restaurantes, Bares, Lanchonetes e Similares de São Paulo e Região.
UIBC : Union of Bakers and Confectioners
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Lista de Imagens
Figura 1 - “Le cuisinier François”, de LaVarenne, publicado em 1651, p. 43
considerado o primeiro livro de culinária
Figura 2 - “Le pâtissier François”, de La Varenne, publicado em 1653. p. 45
Figura 3 - Societé des Cuisiniers de Paris [1905-1915] p. 50
Figura 4 – O primeiro livro brasileiro de receitas, O cozinheiro imperial ou p. 54
Nova arte de cozinha da cidade e do campo em todos os seus ramos,
publicado por R.C.M. em 1839.
Figura 5 – La brigade de Cuisine p.69
Figura 6 – Fotografia da culinarista de televisão Cidinha Santiago, no p.163
Encontro Mundial de Chefs.
14

Sumário
Introdução ...................................................................................................................... 16
1. Metodologia de Pesquisa ........................................................................................ 20
1.1.O desafio do recorte ...................................................................................... 21
1.2. Trabalho de campo ....................................................................................... 25
2. O desenho da tese ................................................................................................... 30
Capítulo 1 - De onde vêm os/as cozinheiros/as? ......................................................... 32
1. Histórico da profissão ............................................................................................. 32
1.1. O nascimento do restaurante ........................................................................ 35
1.2. A importância da gastronomia francesa ....................................................... 42
1.3. Os/As cozinheiros/as no Brasil .................................................................... 51
1.4. Os restaurantes a partir dos anos 2000 ......................................................... 60
2. As ocupações e os processos de trabalho na cozinha ............................................. 65
2.1. Chef .............................................................................................................. 73
2.2. Cozinheiro/a ................................................................................................. 79
2.3. Auxiliar de cozinha....................................................................................... 81
3. Considerações finais do capítulo ............................................................................ 83
Capítulo 2 - Como se forma o/a cozinheiro/a? ............................................................ 84
1. Dom e paixão: o ethos ............................................................................................ 84
2. Qualificação Profissional ....................................................................................... 95
2.1. Os cursos de Gastronomia ............................................................................ 97
2.2. Formação profissional nas cozinhas ........................................................... 100
2.3. Os estágios.................................................................................................. 107
3. O trabalho dos cozinheiros ................................................................................... 116
3.1. Jornada de trabalho..................................................................................... 117
4. Considerações finais do capítulo .......................................................................... 130
Capítulo 3 - Cozinha é lugar de mulher? .................................................................. 132
1. A divisão sexual do trabalho ................................................................................. 132
2. Trabalho doméstico: conflito trabalho e família................................................... 142
3. Cozinha quente, cozinha fria: trabalho de homem, trabalho de mulher. .............. 149
4. Mixidade no trabalho............................................................................................ 156
5. E para trabalhar de noite em São Paulo? .............................................................. 159
6. “Além de ser mulher, negra”. ............................................................................... 161
6.1. Cidinha Santiago ........................................................................................ 162
15

6.2. Benê Ricardo .............................................................................................. 168


7. Considerações finais do capítulo .......................................................................... 182
Capítulo 4 – Para além da brigada: as diversas formas do trabalho culinário ..... 185
1. Formal ou informal? ............................................................................................. 187
2. Proprietários/as ..................................................................................................... 191
2.1. Daniel ......................................................................................................... 193
2.2. Samira......................................................................................................... 196
2.3. Mariana....................................................................................................... 200
3. Serviços de Alimentação ...................................................................................... 206
3.1. Consultorias ................................................................................................ 209
4. As plataformas digitais ......................................................................................... 212
5. Mulheres negras no trabalho formal e informal ................................................... 219
6. Considerações finais do capítulo .......................................................................... 225
Considerações finais .................................................................................................... 227
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 233
Anexo Metodológico – Entrevistas ............................................................................ 243
Anexo Metodológico – Dados da RAIS ..................................................................... 250
16

Introdução
Esta pesquisa investiga o trabalho de cozinheiros e cozinheiras. As diferenças e
desigualdades entre homens e mulheres nesse segmento profissional e suas implicações em
termos de vida profissional e pessoal são o tema central desta tese. Ainda que as cozinhas
profissionais tenham recebido cada vez mais mulheres, elas encontram mais dificuldades para
ascender na carreira e serem reconhecidas publicamente. Por quê?
Os objetivos que orientam essa investigação são conhecer as condições e relações de
trabalho em cozinhas de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação, compreender
os contornos da divisão sexual do trabalho nesses espaços, assim como suas implicações em
termos de formação profissional, movimentação no mercado de trabalho e constituição de
carreira, conhecer trajetórias pessoais e profissionais de trabalhadores e trabalhadoras desse
segmento.
Esta pesquisa nasceu durante o período em que trabalhei na Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade (Contratuh), em Brasília (DF), como assessora
técnica da subseção do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), entre 2012 e 2014. A Contratuh é uma entidade de base eclética, que representa
cerca de dez categorias diferentes, como os trabalhadores em entidades filantrópicas, em
asseio e conservação, profissionais de beleza e estética e o ramo de hotelaria, entre outros.
Cada uma dessas categorias profissionais tem suas especificidades, mas, desde aquela
época, pareceu-me surpreendente que não havia nenhuma ação ou atividade sindical voltada
para os trabalhadores em cozinhas de restaurantes. O trabalho nessa entidade possibilitou o
acesso a algumas informações referentes a esse segmento como, por exemplo, os baixos pisos
salariais negociados pela categoria em todos os estados, a alta rotatividade1, e práticas como a
chamada jornada “flexível”2.
Uma investigação inicial sobre o tema do trabalho em cozinhas profissionais revelou
pouquíssimas pesquisas a respeito deste assunto no Brasil. A gastronomia era abordada a
partir de diversos aspectos, como a história da alimentação, a relação entre o alimento e a

1
Dieese. Rotatividade Setorial: dados e diretrizes para a ação sindical. São Paulo: Dieese, 2014. Disponível em
http://www.dieese.org.br/livro/2014/livroRotatividade.pdf (Acesso em 03/05/2019).
2
A jornada flexível refere-se à jornada em dois turnos, no caso dos restaurantes, o serviço do almoço e do jantar,
com um intervalo de duas ou três horas (o serviço do almoço termina por volta das 15h e o do jantar começa por
volta das 17h). Essas horas são descontadas da jornada total, mas, na prática, o trabalhador não pode voltar para
casa nem descansar, e permanece no estabelecimento à disposição do empregador.
17

cultura, a transformação dos hábitos alimentares ao longo do tempo, as biografias e


autobiografias de grandes chefs, mas não havia trabalhos que observassem diretamente as
cozinhas do ponto de vista do trabalho ou dos trabalhadores.
A pesquisa bibliográfica revelou livros e artigos sobre a história da culinária e da
alimentação que mostraram números assombrosos quando tratavam de achados históricos
sobre banquetes da Antiguidade (KURLANSKY, 2004), por exemplo. Milhares de animais
abatidos, toneladas de grãos, centenas de litros de vinho consumidos em festas e banquetes
que tinham como propósito intimidar os convidados ou demonstrar poder. Mas não havia uma
linha sequer sobre quem preparou essa quantidade descomunal de comida. Quantas pessoas
trabalhavam? Eram homens? Mulheres? Livres ou escravizados? Como era preparada toda
essa comida?
A cozinha é um espaço fundamental da vida social. Uma linha importante da
Antropologia sustenta que é na cozinha que se transforma natureza em cultura (LÉVI-
STRAUSS, 1991), onde o alimento se torna comida. Há, inclusive, pesquisas antropológicas
baseadas em achados arqueológicos que afirmam que cozinhar nos tornou humanos
(WRANGHAM, 2010).
Nesta tese, entretanto, não se trata de olhar para a comida. Ou melhor, não
diretamente. Não se trata dos temperos, dos sabores, dos perfumes, da montagem dos pratos,
da sensação de água na boca. Trata-se de olhar para quem prepara a comida. Quem entende
dos temperos, dos sabores, dos perfumes e da montagem dos pratos: os cozinheiros e as
cozinheiras.
Ainda que a cozinha tenha conseguido um lugar de destaque e visibilidade nos anos
recentes, eventualmente foi mais difícil para os cozinheiros. Para as cozinheiras, então, mais
ainda. Trata-se, segundo alguns autores (DROUARD, 2015; TRUBEK, 2000), da aposta que
os cozinheiros franceses fizeram na profissionalização no final do século 19. Para tornar sua
profissão visível, dotada de prestígio, diferentemente da cozinha doméstica, era fundamental
convencer o mundo de que eles eram profissionais. E isso passava, por exemplo, pela
proibição expressa da entrada de mulheres nos locais de trabalho e associações profissionais,
além de criticar caso elas fossem contratadas para desempenhar essa nobre função.
Considero, a partir da sociologia elisiana, que a vida social é um processo. Não há um
marco zero a partir do qual os movimentos começam, um estado de imobilidade do qual
partem as mudanças e transformações. “De onde quer que comecemos, observamos
movimento, algo que aconteceu antes. Limites podem ser traçados a uma indagação
retrospectiva, preferivelmente correspondendo às fases do próprio processo” (ELIAS, 1994,
18

p.73-74). Nesse sentido, as mudanças sociais não são manifestações de desordem e seu
significado real só pode ser apreendido em uma perspectiva histórica de longo prazo, na qual
é possível observar quais são as mudanças que esse processo constrói.
O processo civilizador analisado por Elias aponta na direção da constituição da
sociedade burguesa, capitalista. Em sua concepção, o desafio que se coloca para o
pesquisador é entender os vínculos entre indivíduo e sociedade como realidades que
constituem ambos. Em “Mozart, a sociologia de um gênio” (1991), por exemplo, Elias
centrou-se em uma história singular para compreender as configurações de toda uma época.
Indivíduo e sociedade referem-se a dois níveis diferentes, mas inseparáveis. Pensar em termos
de configuração significa raciocinar não mais em termos de individualidades ligadas umas às
outras, mas em termos de relações necessariamente variáveis, com posições definidas pelo
sistema dessas relações.
O método proposto por Elias, portanto, é pensar a vida social como um processo. O
indivíduo não atravessa um processo, ele é o processo. Ele parte de um entendimento das
estruturas que seres humanos mutuamente dependentes estabelecem e das transformações que
sofrem, tanto individualmente quanto em grupos, devido ao aumento e à redução de suas
interdependências e seus gradientes de poder. Em suas próprias palavras:

A concepção que cada um de nós tem destas configurações é uma condição


básica para a concepção que tem de si próprio, como pessoa isolada. O
sentido que cada um tem da sua identidade está estreitamente relacionado
com as “relações de nós” e de “eles” do nosso próprio grupo e com a posição
dentro dessas unidades que designamos por “nós” e “eles”. (...) As
configurações a que se referem pode mudar no decurso de uma vida, tal
como a pessoa muda (ELIAS, 1980, p. 139).

Quando há expressiva diferença no gradiente de poder (monopólio de fato ou de


direito) tem–se a figuração dos estabelecidos e outsiders (intrusos, os de fora, da periferia, do
grupo inferior, excluídos, marginais etc). Ocorre então uma autoatribuição, por parte dos
estabelecidos, de características humanas superiores. Um dos grupos está bem instalado numa
posição de poder que é disputada, ainda que com poucas chances de sucesso, pelo outro, daí a
interdependência entre os dois grupos. Não é possível entender a condição de estabelecidos a
não ser em suas vinculações com os outsiders. Por meio dos estudos dos processos de
mudança de equilíbrio de poder se compreende as ações de cada um dos grupos e de seus
componentes (e não os analisando isoladamente).
Como se poderá observar, todo o processo de autocontrole e autorregulação dos corpos
e das funções fisiológicas, dos modos de ser e de estar, dos gostos, a própria concepção do
19

que é certo e errado, o que, de forma genérica, podemos dizer que Elias chama de processo
civilizador é um processo de transformação individual e social que se deu durante séculos.
Não se trata de uma evolução, mas na concepção elisiana, da percepção da mudança em um
longo período, nas interdependências e relações que se transformaram, nas tensões que se
acentuaram e alianças que se romperam ou se fortaleceram. Trata-se, sobretudo, de
compreender o sentido das mudanças, o sentido da história.
Para além da compreensão da história como um processo, há uma perspectiva teórica e
metodológica importante neste trabalho, que está em consonância com a proposição de Sandra
Harding (1989), a ideia de pesquisa feminista. Segundo ela, as pesquisadoras feministas
empregam os métodos de pesquisa como em qualquer pesquisa tradicional: escutar
informantes (ou interrogá-los), observar o comportamento e examinar vestígios e registros
históricos. Entretanto, elas dedicam uma atenção especial ao que dizem as mulheres,
visibilizando suas histórias de vida e dando centralidade às suas visões e interpretações da
própria realidade.
A autora entende que uma epistemologia é uma teoria do conhecimento que responde
à pergunta de quem pode ser sujeito de conhecimento. As feministas argumentam que as
epistemologias tradicionais excluem sistematicamente a possibilidade de as mulheres serem
sujeitos ou agentes do conhecimento, sustentam que a voz da ciência é masculina e que a
história foi escrita desde o ponto de vista dos homens. Entretanto, o problema das pesquisas
feministas não se resolve somando-se ou agregando-se as mulheres, simplesmente. Para
Harding, se pensarmos na maneira como os fenômenos sociais se convertem em problemas
que requerem uma explicação, veremos que não existe problema algum se não houver pessoa
ou grupo de pessoas que o defina: um problema é sempre um problema para alguém
(HARDING, 1989, p.10-11).
Ainda de acordo com a autora, os desafios do feminismo revelam que as perguntas que
são formuladas – e, sobretudo, as que não são – determinam a pertinência e a precisão da
imagem global dos fatos, assim como as respostas que podem ser encontradas. Um traço
definitivo da pesquisa feminista é que define sua problemática desde a perspectiva das
experiências femininas, e emprega essas experiências como um indicador significativo da
realidade. Em consonância com essas afirmações, a descrição das experiências das próprias
trabalhadoras entrevistadas é o eixo central do presente trabalho.
É fundamental considerar e destacar as narrativas das mulheres e a complexidade das
relações que elas descrevem, pois é a partir destas que considero os elementos que compõem
a configuração. Homens também foram entrevistados e suas narrativas também são
20

importantes, também são analisadas e consideradas. Mas elas não adquirem centralidade nessa
pesquisa, não porque não sejam importantes, mas porque dentro do universo de histórias de
vida e trajetórias de gênero, as femininas têm preponderância.

1. Metodologia de pesquisa

Olhar para o trabalho implica olhar para as relações e para as condições de trabalho.
Desde o começo, a pesquisa empírica foi orientada por questões referentes às jornadas de
trabalho (quantas horas por dia, quantos dias por semana, como são divididos os turnos,
intervalos e períodos de descanso), à informalidade (registro em carteira - se existe, se está ou
não de acordo com o trabalho efetivamente realizado, trabalho como freelancer e temporários
ou extras, acesso aos direitos trabalhistas e benefícios previstos em lei), mercado de trabalho
(busca por emprego, currículo, rede de contatos e indicações, diferentes valorações das
experiências profissionais), à formação profissional (formação empírica no trabalho, cursos,
formações técnicas, aprendizado) e à forma como as relações sociais de gênero estão
implicadas nessas relações - como se colocam para os homens e para as mulheres.
A investigação, entretanto, não poderia ficar restrita a essas questões, pois o universo
com o qual me deparei durante a realização da pesquisa de campo e as entrevistas era muito
mais amplo e mais complexo. Todavia, mesmo diante de uma bibliografia mais vasta e de
outras questões interessantes que emergiram, a orientação da pesquisa sempre foi olhar para o
trabalho vivo. Quer dizer, não para as máquinas e instrumentos, a tecnologia da cozinha, mas
para as atividades dos seres humanos, a transformação, as relações sociais de produção. Não
se trata de olhar para o alimento em si, apartado da atividade que o produz, apartado de seu
contexto social de produção. Meu objetivo discutir exatamente as técnicas de preparo, os
ingredientes e o resultado final, a estética do prato, a apresentação, nem mesmo sua história.
Os alimentos precisam ser colocados, aqui, em um contexto em função de uma leitura
de classe. Existem alimentos caros, quase inacessíveis para a grande maioria da população,
alimentos não produzidos em massa, que não são populares e não fazem parte do universo
gastronômico comum, básico. Tais alimentos estão restritos a determinados grupos sociais,
extratos da população com alto poder aquisitivo, que os conhecem, sabem apreciá-los e,
portanto, sabem prepará-los.
O depoimento de uma das chefs entrevistadas ilustra bem essa relação. Ela já
21

trabalhava havia alguns anos em restaurante como cozinheira e decidiu fazer o curso técnico
de cozinheiro-chef como estratégia para melhorar suas oportunidades profissionais. Quando
questionada sobre seu aprendizado no curso, afirmou que teve acesso a insumos que não
conhecia, aprendeu a trabalhar com ingredientes com os quais não estava acostumada como,
por exemplo, lagosta. Trata-se de um crustáceo extremamente caro em quase todos os lugares
do mundo, é um ingrediente nobre. A chef entrevistada, oriunda das classes populares, não
tinha acesso a esse ingrediente na sua vida fora do restaurante. Como poderia saber preparar
um alimento que ela mesma nunca comeu? Esse exemplo ilustra nosso percurso, no sentido
que não se trata, aqui, de olhar para o ingrediente e discutir se deve ser fervido vivo, regado
com manteiga ou grelhado, mas entender as relações de classe que estão colocadas e como
alguns alimentos/ pratos/ técnicas são elementos distintivos que nos permitem enxergar essas
relações.
Também não se trata de fazer uma análise dos restaurantes ou dos estabelecimentos de
alimentação. Nas duas cidades onde foi possível fazer a pesquisa, São Paulo e Paris, a oferta
gastronômica é incomensurável. Pensar na heterogeneidade dos estabelecimentos é olhar para
um caleidoscópio de sabores, perfumes e possibilidades globais: o que é gastronomia
contemporânea? O que é gastronomia brasileira? O que é gastronomia brasileira
contemporânea? São tantos termos, tantas nomenclaturas, tantas classificações diferentes, que
olhar para elas e tentar defini-las escaparia muito aos meus objetivos.
Aqui, só farei referência ao tipo de culinária, ao tipo de alimento ou de serviço quando
estes reportarem às relações de produção e de trabalho. Assim como os ingredientes, o tipo de
gastronomia também se refere a um lugar de classe: pode-se argumentar que um restaurante
popular por quilo, que serve feijoada às quartas-feiras, trabalha com gastronomia brasileira,
mas não é a mesma coisa que um restaurante cuja chef é mundialmente famosa, que oferece
gastronomia brasileira contemporânea em um menu-degustação que custa, aproximadamente,
R$ 400 por pessoa3. Então, não se trata de discutir o tipo de gastronomia, mas as formas que o
trabalho assume nos dois tipos de estabelecimento.

1.1. O desafio do recorte

O primeiro desafio de todo trabalho de pesquisa, e provavelmente o mais perene, é o

3
Para contextualizar esse valor, esclareço que o salário mínimo em 2018 era de R$ 954 reais e em 2019, R$ 998.
22

recorte. As teses e dissertações que acessei para preparar este texto já revelavam dificuldades
e percalços para estabelecer um recorte: definir o que faz parte da pesquisa e o que não faz.
Minha proposta sempre foi pesquisar o trabalho dos cozinheiros e cozinheiras de
restaurante. Mas o campo foi se abrindo, revelando outras realidades, outros trabalhos, outras
dinâmicas, outros assuntos e temas igualmente interessantes, e manter esse recorte simples foi
ficando mais difícil. Ao chegar à França para o período do doutorado sanduíche, eu me
deparei com uma gama ainda maior de trabalhos e teses, de conceitos e discussões, e tudo
parecia se relacionar e contribuir com a minha pesquisa. O recorte é precisamente a separação
entre o que vai ficar e o que vai sair. E por mais que seja difícil abrir mão de algumas coisas,
não é possível abarcar tudo que parece interessante em uma tese.
Olhar para um segmento profissional extremamente heterogêneo e diversificado, que
se transforma constantemente, que permite diversas leituras e abordagens cria uma miríade de
possibilidades de investigação muito tentadora, mas era preciso escolher apenas uma. A
realização de um campo inicial e exploratório, que abrangeu diversas ocupações e trabalhos
no espectro da cozinha e do restaurante, já revelava algumas dessas possibilidades, mas as
entrevistas que foram realizadas após o exame de qualificação seguiam um recorte mais
preciso e, ainda assim, pareciam apontar novas direções.
Encontrei muitos profissionais que haviam começado, há mais ou menos tempo, seu
próprio negócio. Abrindo um restaurante, prestando serviços de alimentação ou trabalhando
na televisão, os cozinheiros e cozinheiras que entrevistei me permitiram enxergar um novo
campo para além da cozinha do restaurante, meu objetivo inicial, e revelaram outros
elementos que eu não havia previsto. Meu objetivo nunca foi entrevistar os donos de
estabelecimentos, mas eles apareceram na pesquisa e seus relatos pareciam ilustrar algumas
questões que já haviam surgido.
Minha pesquisa exploratória havia tornado patente que o trabalho de campo era
imprevisível, que ele não confirmaria minhas hipóteses (ao contrário) e que revelava uma
riqueza de possibilidades e leituras muito além do que eu imaginava. E que isso era o melhor
indicativo de que eu estava percorrendo um bom caminho, permitindo que aqueles homens e
mulheres me informassem sobre suas realidades, colocando meus conhecimentos prévios à
prova e deixando que as premissas iniciais caíssem por terra.
Mas meu objetivo inicial permaneceu. Pesquisei o trabalho dos cozinheiros e
cozinheiras de restaurante. A vida dessas pessoas não se circunscreve apenas a esse universo
e, por isso, seus relatos revelaram tantas outras possibilidades. Procurei relatar e analisar isso
nesta tese. Assim, a pesquisa tratou do trabalho culinário em um sentido mais amplo. Busquei
23

investigar as condições de trabalho, o mercado de trabalho, a formação profissional e a


constituição de uma carreira a partir de uma perspectiva de gênero.
Um recorte inicial se manteve, todavia. Não pesquisei o trabalho em cozinhas
industriais, refeitórios, cantinas escolares ou outros serviços de alimentação em larga escala. A
natureza do trabalho nesses ambientes é muito diferente do trabalho em restaurantes ou dos
serviços que estão no escopo da pesquisa. A produção em cozinhas de larga escala se organiza
de outras formas, em outros espaços e engendra outras dinâmicas. A chamada "cozinha
coletiva", além de servir centenas de pessoas em cada refeição, passa por outros processos de
preparação, de seleção, outras exigências de formação e qualificação, outro tipo de carreira,
outro serviço.
Fast food também não será analisada aqui. A natureza do trabalho nesses
estabelecimentos de comida rápida e/ou lanchonetes também é diferente. Por um lado, trata-se
de um trabalho altamente prescrito, controlado e, arriscamos dizer, “taylorizado”4. Nos fast
foods, não se trata tanto de um trabalho de cozinhar, mas muito mais de montar uma refeição
seguindo determinadas regras preestabelecidas. Os restaurantes ou lanchonetes de fast food
são essencialmente pontos de venda, nos quais apenas a fase final da preparação é realizada,
pois trabalham com produtos já prontos ou semiprontos (e, em muitos casos, congelados), que
devem ser montados de uma maneira padronizada (no caso das lanchonetes, os hambúrgueres
não são preparados na lanchonete, os pães estão prontos, os molhos vêm prontos e em grandes
embalagens plásticas. “A oferta limitada e padronizada dos pratos, conjugada às escolhas
relativamente estáveis dos consumidores permitiu organizar a produção em fluxo de maneira
racional e para ganhar tempo"5 (FELLAY, 2010, p.45).
Os trabalhadores desses estabelecimentos não são, de fato, cozinheiros. E nem
precisam ser. Seu trabalho de manejo e montagem dos lanches e refeições é marcado por uma
separação especializada, a qual se traduz por uma parcialização do processo e mecanização
das tarefas. Não são os trabalhadores da lanchonete que produzem os hambúrgueres, que

4
Aqui estou me referindo ao trabalho taylorizado como uma modalidade específica na área de alimentação, como
trabalho taylorizado um tipo específico de trabalho na alimentação, que consiste em montar os lanches e
refeições segundo uma rígida prescrição. Existe uma ampla bibliografia sobre o trabalho nas grandes redes de
fast food, mas esse trabalho diverge do trabalho culinário (do outro, culinário, aquele que investigo precisamente
em função de alguns preceitos do taylorismo, como a racionalização de gestos e movimentos, a separação entre
trabalho intelectual e manual, a divisão do trabalho em várias etapas, o controle por conta de uma gerência. O
filme "Fome de Poder" (The Founder, 2017) dirigido por John Lee Hancock, trata do nascimento da franquia de
fast food mais bem-sucedida do mundo, o McDonald's, e mostra como os irmãos McDonald’s racionalizaram o
trabalho no menor espaço possível, criando estações de trabalho, controlando os gestos e movimentos na cozinha
para garantir que todos os lanches seriam idênticos, independentemente de quem estivesse trabalhando na
cozinha. A fórmula, além de agilizar o atendimento, garantiu o sucesso do negócio em todo o mundo.
5
Tradução livre de "L’offre limitée et standardisée des plats, conjuguée aux choix relativement stables des
consommateurs permet d’organiser la production en amont de manière rationnelle et de gagner du temps".
24

cortam as batatas ou que fazem os molhos (como em outras lanchonetes, por exemplo).
Entretanto, em função da riqueza que as entrevistas proporcionaram, a pesquisa
avançou para além dos trabalhadores de restaurantes e passou a englobar o que estou
chamando de "serviços de alimentação". Geralmente realizados por profissionais que
decidiram empreender, esses serviços são diversificados e objetivam dar conta de uma série
de necessidades específicas dos consumidores. Foi possível, por exemplo, entrevistar uma
cozinheira que produz comida em sua própria casa e vende marmitas congeladas por meio de
um aplicativo, outra cozinheira que prepara coffee breaks e refeições sob encomenda para
eventos e banquetes, assim como pessoas que prestavam serviços de consultoria.
Assim, ainda que muitos parâmetros e discussões que estavam previstos desde o
projeto tenham sido mantidos, a tese também traz novos problemas e realidades que
emergiram do campo, das narrativas dos entrevistados, da constante transformação desse
segmento econômico e das condições de trabalho.
Tomo a liberdade de fazer uma pequena digressão sobre a utilização de outros
materiais que deram algum suporte às minhas reflexões. Como já apontei, a alimentação e a
gastronomia se tornaram assuntos muito populares, que ocupam diversas mídias. Entre
programas na televisão aberta, nos canais por assinatura, nas redes sociais e internet, os
eventos gastronômicos, o interesse pelo assunto parece crescente e diversificado. Isso
apresentou um problema no sentido do recorte e, principalmente, do ruído. São muitos os
discursos, que vão desde a alimentação saudável, orgânica e as relações farm to table – ou
direto do produtor –, até as alergias e restrições alimentares, novas formas de produzir
alimentos, o debate com a indústria, as mudanças constantes no mundo da alimentação. É
importante ressaltar que, como uma pessoa que vive nessa sociedade e que tem interesse
nessas questões, esse universo se apresentava para mim cada vez mais rico, cada vez mais
diverso, cada vez mais interessante.
A sociologia da alimentação contemporânea e os food studies contemplam um mundo
amplo de debates e reflexões, que conjugam várias disciplinas e perspectivas, que trazem
elementos de diversas áreas para compor o pensamento sobre a alimentação, a culinária, a
cozinha e a gastronomia. A palavra universo é apropriada para descrever esse campo de
estudos que tem ganhado força e adeptos ao redor do mundo.
O foco que adotei, todavia, é das relações sociais de sexo e de trabalho. Não se trata,
portanto, da história da alimentação, da antropologia e nem da sociologia da alimentação, mas
do trabalho que homens e mulheres realizam para que outros possam comer. E o trabalho aqui
se refere à produção de refeições, e não de alimentos – não estou pensando sobre a produção
25

agrícola, agricultura familiar, distribuição, nem mesmo a questão dos venenos e agrotóxicos,
tão em voga hoje em dia– e um assunto recorrente entre os próprios cozinheiros, uma vez que
impacta diretamente seu trabalho.

1.2. Trabalho de campo

A pesquisa é centrada e, em grande medida, estruturada a partir de informações


obtidas no trabalho de campo, que foi realizado desde o começo do doutorado (a primeira
entrevista foi realizada em abril de 2015). Para além das entrevistas, que estão descritas em
um item específico e no Anexo Metodológico II, foram realizadas observações em eventos,
como a Feira Internacional de Panificação, Confeitaria e Varejo Independente de Alimentos –
Fipan6 (São Paulo, 25 a 28 de julho de 2017), o Encontro Mundial de Chefs (em Guararema/
SP, de 21 a 23 de setembro de 2017), a Oficina de Alimentação com as mulheres merendeiras
do Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na Feira Nacional de Economia
Solidária (4 a 6 de maio de 2018, São Paulo), e o Salon du Chocolat7 (Paris, 30 de outubro a 3
de novembro de 2018).
Eventos como a Fipan e o Salon du Chocolat não serão analisados aqui, pois serviram
como uma aproximação ao universo desses profissionais, mas sem a possibilidade de realizar
observações em profundidade. Eram eventos muito concorridos, que ofereciam cursos e
workshops, presença de chefs famosos, comercialização de alimentos, insumos, maquinários,
livros e outros produtos relacionados. E este caráter comercial era muito mais forte do que um
espaço dos próprios profissionais.
A Oficina com as merendeiras do MST foi uma oportunidade única e incrível de
conhecer o trabalho que essas mulheres fazem no cotidiano dos assentamentos, sua relação
com a produção e a alimentação das crianças, as alternativas que encontram para os alimentos

6
A Fipan é uma feira anual que acontece na cidade de São Paulo, promovida sobretudo por sindicatos e
associações patronais, como o Sampapão, sigla que agrega os Sindicato e Associação dos Industriais da
Panificação e Confeitaria de São Paulo e o Instituto de Desenvolvimento da Panificação e Confeitaria, escola
técnica de panificação mantida pelo sindicato. A feira não é aberta ao público. De acordo com o site, “A Fipan é
uma feira de negócios voltada somente para empresários e funcionários de empresas ligadas aos setores
representados no evento” (Disponível em http://fipan.com.br/perguntas-frequentes/. Acesso em 10/10/2019).
Ainda assim, no ano que visitei a feira, 2017, foram mais de 65 mil visitantes.
7
O Salon du Chocolat é um evento aberto ao grande público, que comercializa não apenas maquinários e
insumos, mas tem estandes e lojas de produtos de confeitaria, pâtisserie e, claro, chocolate, premiações e
concursos de mestres pâtissiers e confeiteiros, cursos, master classes, uma exposição de esculturas de chocolate,
ateliês de práticas com chocolate, palestras e mesas redondas. A programação está disponível em
https://www.salon-du-chocolat.com/ (Acesso em 10/10/2019).
26

industrializados que seriam, em tese, “obrigadas” a servir, o engajamento na proposta de uma


alimentação saudável e saborosa, as redes e as relações que criam entre elas para trocar
conhecimentos e darem apoio umas às outras, além das receitas com PANCs (Plantas
Alimentícias Não Convencionais) e leites vegetais. Entretanto, esse trabalho foge muito do
escopo da pesquisa e não será analisado aqui.
Descreverei minha experiência no Encontro Mundial de Chefs, que considerei uma
imersão riquíssima no universo dos cozinheiros, cozinheiras, estudantes de gastronomia e
chefs, e o conjunto de entrevistas que foram realizadas.

1.2.1. Encontro Mundial de Chefs

O Encontro Mundial de Chefs foi realizado na cidade de Guararema, no interior de


São Paulo, a 68 km da capital, entre os dias 21 e 23 de setembro de 2017. Participei de tal
evento a partir de um contato com a assessoria de imprensa, que me possibilitou acompanhar
os chefs, os workshops, oficinas e palestras durante os três dias do encontro. Também
colaborei com o trabalho das assessoras, fazendo entrevistas curtas e conversas informais com
os participantes, além de produzir as fotos que abasteceram as redes sociais.
O acontecimento foi idealizado pelo chef Luís Faria, que no momento trabalhava para
a cozinha experimental da multinacional Bunge – gigante da indústria de alimentos. Ele foi
reconhecido internacionalmente quando ganhou o prêmio de melhor chef pâtissier do mundo
em 2016, prêmio da Union of Bakers and Confectioners (UIBC). Em um almoço de
preparação do evento, realizado em 14 de setembro de 2017 apenas para jornalistas e
proprietários de restaurantes na cidade de Guararema, o chef divulgou o evento como uma
iniciativa sua para “compartilhar conhecimentos” e discutir a produção sustentável. Ao longo
do almoço, ficou claro que o evento era, em parte, financiado pela Bunge.
Para participar, era necessário preencher uma inscrição simples na página do Facebook
do evento, sem custo. Ao longo do encontro, ficou evidente que o chef Luís Faria centralizava
toda a organização, assim como fazia questão de estar próximo dos chefs mais famosos e
estrelados que passaram por lá, posando para fotos e conversando com a imprensa. Também
ficou clara uma relação próxima e familiar entre o chef e a proprietária do hotel em que se deu
o encontro, o que com certeza foi fundamental para a realização do evento neste lugar
específico e no município de Guararema.
Durante o Encontro, as manhãs eram ocupadas por palestras ou conferências em um
espaço afastado do prédio principal do hotel, com capacidade para muitas pessoas, com
27

cadeiras, palco e telão, mas sem estrutura básica, como banheiros e bebedouros. Entretanto,
como as atividades realizadas nesse lugar estavam voltadas para todos os participantes, era
fundamental que ocorressem em um local com muito espaço. O cenário, na verdade, era bem
agradável, à beira de um lago.
À tarde, as atividades eram descentralizadas entre oficinas e workshops realizados em
salas e auditórios dentro do hotel, da mesma forma que patrocinadores e empresários do setor
disponibilizavam seus produtos em estandes e outros espaços, conversando e interagindo com
os participantes. Muitas atividades aconteciam simultaneamente e era difícil acompanhar
todas.
Muitas pessoas compareceram à abertura. Os chefs vestiam dólmãs8 especiais, com o
símbolo do encontro e seus nomes bordados, assim como o chapéu alto. Muitos também
usavam aventais. Além dos incontáveis chefs devidamente paramentados, também exibindo
dólmãs e chapéus, os estudantes de Gastronomia de diversas escolas estavam na plateia -
levados pelas escolas para assistir às palestras, participar dos workshops e, alguns, para
abonarem horas de atividades extras, auxiliando os chefs responsáveis pelos workshops e
oficinas. A vestimenta é uma parte importante da identidade do cozinheiro, e os diferenciava
dos demais participantes civis.
A imersão de três dias nesse encontro foi uma rica possibilidade de conhecer melhor o
universo dos cozinheiros fora de seu hábitat. De um lado, trabalhando com a assessoria de
imprensa pude perceber que, de fato, a vaidade desses profissionais é muito grande. Falar com
os jornalistas, aparecer na televisão, posar para fotos e alimentar os feeds das redes sociais era
uma agenda diária e intensa para os chefs presentes. De outra parte, as mesas-redondas e
palestras permitiram que alguns temas de interesse desses profissionais - e do segmento de
restaurantes como um todo - fossem discutidos, como a formação de jovens cozinheiros e a
gestão de negócios em alimentação.
As mesas sobre formação de jovens cozinheiros e tendências do mercado,
infelizmente, mostraram um tom neoliberal carente de senso crítico, mas hegemônico entre os
cozinheiros. Dessa forma, humildade, curiosidade e generosidade eram as características
necessárias para se tornar um grande chef. Também foram contadas e recontadas as histórias
de sucesso daqueles chefs que começaram como "pias" ou como "pés de boi", a trajetória
heroica do cozinheiro: o/a jovem que entra na cozinha sem saber nada, começa lavando louça

8
Dólmã é um tipo de jaqueta justa, o uniforme dos cozinheiros, geralmente branco, com oito ou dez botões. Sua
origem é uma túnica militar. Com a touca ou com o chapéu branco, o traje foi instituído como uniforme de
cozinha por Auguste Escoffier (1846-1935).
28

(o/a "pia"), carregando caixas, levando panelas, que se forma no próprio trabalho e ganha
destaque a partir do próprio talento.
Esse mesmo discurso valoriza a figura do líder, aquele/a que inspira seus
subordinados. Segundo as palavras dos chefs presentes, nem todo cozinheiro vai ser um chef,
nem todo chef vai ser um líder. “Quando nós colocamos o coração naquilo que fazemos,
certamente teremos sucesso”, afirmou um dos presentes, professor universitário em cursos de
Gastronomia. “Humildade e compartilhamento de conhecimentos são fundamentais, assim
como o respeito ao alimento”, disse a coordenadora de um dos principais cursos de
Gastronomia do país.
Durante o evento, o tema empreendedorismo foi recorrente. Os debates sobre
formação profissional e os jovens estudantes de Gastronomia sempre terminavam nesse
assunto, principalmente quando alguns chefs defendiam a importância de se ensinar business
management e noções de empreendedorismo nos cursos, pois “abrir o próprio negócio” é um
objetivo de carreira, possivelmente o principal, associado ao sucesso profissional.
Nesse sentido, participar desse Encontro foi muito enriquecedor para a pesquisa, pois
foi possível conhecer melhor a discussão que se realiza entre os profissionais, suas aspirações
e preocupações, ouvir docentes, coordenadores de cursos, proprietários de restaurantes, chefs
e cozinheiros, estudantes, participar das oficinas e verificar como eles entendem o próprio
trabalho, como ensinam, o que consideram ser importante transmitir para os jovens
estudantes, como se promovem, entender alguns dos valores que norteiam seus trabalhos.
Também ficou evidente como a questão de gênero aparece naturalizada neste tipo de
acontecimento, uma vez que havia pouquíssimas chefs e cozinheiras mulheres, em um
universo eminentemente masculino e branco. No cartaz de divulgação do evento, apenas duas
figuras femininas apareciam, e somente um homem negro. Para minha sorte, uma das
mulheres participantes acabou se tornando uma preciosa informante e uma amiga querida,
justamente em um momento em que ela estava imprimindo novos rumos à sua carreira.

1.2.2. Entrevistas

Circunscrevi as entrevistas à cidade de São Paulo e, durante o período do doutorado


sanduíche, fiz cinco entrevistas com brasileiros e brasileiras em Paris. A cidade de São Paulo é
a maior metrópole do Brasil e da América do Sul. A oferta de restaurantes e estabelecimentos
de alimentação é a maior do Brasil – tal oferta contempla a gastronomia de mais de 43 países.
São Paulo também é o polo econômico mais dinâmico para os profissionais da área: dentre os
29

restaurantes brasileiros que receberam duas estrelas Michelin em 2019 (foram apenas três),
dois estão em São Paulo e um no Rio de Janeiro. Dentre os que possuem uma estrela, são
cinco cariocas e nove paulistanos9.
De acordo com os dados da Rais 2018, apenas a cidade de São Paulo tinha 12,9% do
total de trabalhadores formalmente empregados como cozinheiros no segmento de
restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação no país. Enquanto a diferença entre
homens e mulheres empregados nesse segmento no Brasil é da ordem de 32,3% de homens
para 67,7% de mulheres, na capital paulista essa diferença é muito menor e a relação se
inverte: são 51,8% homens e 48,2% mulheres. No capítulo 3, aprofundarei a discussão sobre
as desigualdades de gênero nesse segmento, mas, por ora, é interessante notar que a capital
concentra uma parcela significativa da força de trabalho e que esta possui algumas
características diferentes do resto do país.
Conversar com os cozinheiros e cozinheiras revelou ser uma tarefa mais árdua do que
eu inicialmente havia imaginado. São pessoas difíceis de contatar. Por um lado, seus horários
de trabalho e rotinas dificultam interações sociais fora do local de trabalho. Por outro, a
conversa ou a aproximação no próprio local de trabalho pareceu ser praticamente impossível.
Em um primeiro momento, fui a vários restaurantes e conversei com chefs e
cozinheiros. Dei a eles meus contatos, anotei telefones, telefonei. Nenhuma resposta ou
evasivas, encontros eram marcados e desmarcados, nenhum contato dessa natureza resultava
em uma conversa. Fui a uma pizzaria, conversei com a proprietária e ela pediu que o chef e a
cozinheira conversassem comigo durante seus intervalos, na própria pizzaria. Foram
entrevistas diametralmente opostas. O chef, orgulhoso, falante. A cozinheira, tímida e
reticente. Lição aprendida: entrevista no local de trabalho não funcionaria. Entrevista
solicitada pelo patrão ou patroa também não.
Um desses encontros no próprio restaurante ocorreu em um pequeno estabelecimento
no bairro do Paraíso, em São Paulo, área nobre, próxima à Avenida Paulista. Eu já conhecia o
local e sabia que uma de suas principais “marcas” era sua pequena capacidade, apenas seis
mesas e, portanto, atendia a um número limitado de clientes por dia. E mais: só uma
cozinheira. Conversei com uma das proprietárias, irmã da cozinheira. Expliquei sobre a
pesquisa e pedi uma entrevista. Para minha surpresa, a conversa com as irmãs durou duas

9
O Guia Michelin é considerado o guia gastronômico mais importante do mundo. Ele surge por iniciativa de
André Michelin, dono da fábrica de pneus, em 1900. Como uma forma de promover passeios automobilísticos
pelo interior da França, o guia listava em ordem alfabética as cidades em cujas garagens e hotéis poderiam
interessar ao motorista. Apenas em 1933 o guia passa a distribuir cotações aos restaurantes por toda França. O
Guia confere uma, duas ou três estrelas aos melhores e mais sofisticados restaurantes do mundo. Receber três
estrelas Michelin é considerado uma grande conquista e uma honra para um chef.
30

horas, que passei ouvindo suas histórias de infância no Líbano enquanto elas me ofereciam
tabule, hommus e babaganush. Algumas perguntas do roteiro foram respondidas, mas, em
determinado momento tornou-se impossível continuar a conversa, pois elas criaram um
diálogo próprio, com suas memórias. Sobrinhos e sobrinhas chegaram. Virou uma reunião
familiar.
Diante das dificuldades para encontrar cozinheiros e cozinheiras, passei a acionar
minhas redes pessoais, conversar com amigos e conhecidos para pedir contatos de pessoas
que trabalhavam em restaurantes. Algumas entrevistas foram agendadas, algumas conversas
desenrolaram. Mas a técnica da bola de neve não funcionou. Quando um entrevistado dizia
“vou passar um contato” ou “vou falar sobre sua pesquisa com alguém”, eu nunca mais
recebia uma mensagem ou uma resposta.
Discuto os pormenores das entrevistas, o contexto de sua realização, assim como faço
comentários sobre os entrevistados no Anexo Metodológico II.

2. O desenho da tese

Nesta introdução, abordei os objetivos e os aspectos metodológicos da pesquisa de


campo que compõem o corpo de análise da tese. Procurei discutir os parâmetros e orientações
adotados para olhar para o mundo do trabalho de cozinheiros e cozinheiras, assim como a
importância das relações de gênero, classe e raça no arcabouço analítico da pesquisa.
O primeiro capítulo será dedicado a discutir o trabalho em cozinhas. Apresentarei um
histórico dessa ocupação a partir de material pesquisado, sobretudo na França, assim como
um panorama desse mercado de trabalho e suas transformações em anos recentes no Brasil.
Tendo como ponto inicial as descrições dos/as entrevistados/as, apresentarei os processos de
trabalho realizados nas cozinhas profissionais e o conteúdo das ocupações distribuídas
hierarquicamente (assistente, cozinheiro/a e chef).
O segundo capítulo é dedicado a pensar o ethos da profissão, as relações entre trabalho
e formação profissional nesse segmento e as condições de trabalho (jornada, remuneração,
aspectos de saúde etc.). Assim como há muitos séculos, a cozinha ainda se baseia em uma
aprendizagem “artesanal”, em que um/a mestre toma um/a aprendiz e lhe ensina tudo o que
sabe. O local de trabalho é também um local de ensino, e a qualificação profissional está
intimamente relacionada às experiências profissionais, aos chefs, ao que se aprendeu onde se
trabalhou. Abordarei a oferta de cursos profissionalizantes e de graduação na área da
31

gastronomia, assim como seu impacto nesse mercado de trabalho e sua imbricação nas
próprias relações de trabalho.
O terceiro capítulo se debruça sobre a divisão sexual do trabalho nas cozinhas
profissionais contemporâneas. Considerando principalmente as entrevistas com homens e
mulheres cozinheiros/as, descrevo como a divisão sexual do trabalho se expressa na separação
de trabalhos de homens e mulheres, na cozinha doméstica e profissional, como o trabalho de
preparo de alimentos constitui um “gueto” masculino, apesar da maioria de mulheres em suas
fileiras, e como a construção social da cozinha profissional como um espaço masculino torna-
o hostil para as mulheres, o que se concretiza na forma de vários mecanismos que as excluem
dos postos de comando e chefias, e por consequência, do reconhecimento público e do
prestígio.
Finalmente, o quarto capítulo é dedicado a um achado do campo que não estava
previsto no desenho inicial da tese, os novos contornos do trabalho culinário e o
“empreendedorismo gastronômico”. No cenário mais amplo das mudanças no mundo do
trabalho, e no caso específico do Brasil, de ataque às leis trabalhistas e enfraquecimento das
relações já precárias, o trabalho por conta própria aparece como uma alternativa cada vez
mais viável e revestida de um discurso “empoderador” muito sedutor. Especialmente para as
mulheres, como veremos, a atividade autônoma oferece mais alternativas para a conciliação
entre o trabalho doméstico e o profissional, remunerado e não remunerado, e articula a ideia
de um trabalho mais autoral, mais criativo, mais associado à sua própria identidade, mesmo
quando ele representa, na prática, mais risco, mais tempo e, por fim, mais trabalho.
Finalmente, procuro retomar os objetivos propostos na conclusão da tese. Esta tese
também conta com dois anexos metodológicos, que trazem os pormenores e comentários
sobre as entrevistas e os/as entrevistados, assim como as informações obtidas a partir da Rais.
32

Capítulo 1 - De onde vêm os/as


cozinheiros/as?
“Às cozinheiras a cozinha burguesa e doméstica. Aos cozinheiros a alta
cozinha codificada por Carême no início do século 1910” (DROUARD, 2015,
p.36).

Este capítulo começa com uma recapitulação histórica do trabalho dos cozinheiros
como o conhecemos hoje, desde as cozinhas dos castelos do Antigo Regime na Europa,
principalmente na França. Nesse histórico, analiso o surgimento do restaurante enquanto
instituição moderna e a importância que ele passa a ter na sociedade burguesa pós-Revolução
Francesa, que mantém muito de seus elementos distintivos e característicos até os dias de
hoje, pelo menos no mundo ocidental.
Em seguida, trago essa história para o lado de cá do Atlântico, retomando alguns
elementos da história da alimentação no Brasil e o surgimento dos restaurantes aqui,
principalmente nos emergentes centros urbanos do Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro), para
refletir sobre a atividade dos cozinheiros dentro das nossas especificidades de mercado de
trabalho, até a atualidade.
A segunda parte do capítulo refere-se às descrições dos processos de trabalho,
conforme detalhadas e narradas pelas pessoas entrevistadas, considerando três ocupações na
hierarquia da cozinha: assistente ou auxiliar, cozinheiro/a e chef. A descrição dos processos de
trabalho é fundamental para ilustrar as discussões que serão realizadas nos capítulos
subsequentes e para dar ao/à leitor/a uma ideia do que consiste, de fato, o trabalho em
cozinhas profissionais.

1. Histórico da profissão

Na história da alimentação, há muita ênfase em história antiga e medieval, como sendo


esse um espaço temporal onde se cria um “passado comum” de todos os países europeus, em
que nascem os “mitos de origem” de diversos alimentos e pratos, que mais tarde se tornarão
elementos constitutivos das identidades nacionais. Essas histórias e crônicas, algumas

Tradução livre do original: “Aux cuisinières la cuisine bourgeoise et de ménage. Aux cuisiniers la haute
10

cuisine codifiée par Carême au début du XIXe siècle“.


33

anedóticas, que recontam os mitos originários dos alimentos são muito consumidos nos dias
de hoje. Trata-se de uma história profundamente eurocentrada.
Essa supervalorização da história da alimentação e de costumes europeus, sem dúvida
mais uma herança do nosso passado colonial e do próprio pensamento colonial, que sobrevive
até hoje, ainda está associada à nossa noção de civilização. Em “O processo civilizador”, Elias
(1994) mostra como se dá a educação do gosto, como ele se transforma e vai sendo construído
com o tempo. Ele afirma que “o comportamento social e a expressão de emoções passaram de
uma forma e padrão que não eram um começo, que não podiam em sentido absoluto e
indiferenciado ser designado de ‘incivil’, para o nosso, que denotamos com a palavra
‘civilizado’” (ELIAS, 1994, p.73). Ao avaliar os chamados “costumes medievais”, Elias
observa a centralidade dos atos de comer e beber, pois era à mesa que se dava o convívio
social, e daí a importância de livros e manuais que prescreviam os comportamentos para tais
ocasiões.
Na segunda metade do século 17, na França, os costumes, comportamentos e modas da
corte espalhavam-se continuamente por classes médias altas, onde eram imitados e mais ou
menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. No caso francês, "a
intelligentsia burguesa e grupos importantes da classe média foram atraídos relativamente
cedo para a sociedade cortesã" (ELIAS, 1994, p.51). Ainda que o Antigo Regime se baseasse
na diferenciação social que se assentava sobre a aristocracia e a ascendente burguesia ou
classes médias, ao longo de muitos anos a presença burguesa se fez presente na corte, e seu
poder aquisitivo garantia que ela acessasse os mesmos bens que a nobreza orgulhosamente
exibia (obras de arte, roupas e vestimentas, móveis e imóveis, cavalos, cachorros etc.).
A burguesia e as classes médias procuravam mimetizar os comportamentos
aristocráticos como forma de se diferenciarem dos estratos "inferiores", dos plebeus comuns,
dos camponeses. Elias observa que civilisé se refere ao termo que os membros da corte
utilizavam para designar seus próprios comportamentos, o refinamento de suas maneiras
sociais, quando comparavam-se com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente
inferiores” (ELIAS, 1994, p.54).
A sociedade de corte francesa é a figuração central da estrutura de dominação
aristocrática, nas relações de poder e interdependência que se estabelecem entre os indivíduos
e, portanto, na configuração (ELIAS, 2001). As interdependências suscitadas pela luta entre a
aristocracia e a burguesia geram uma conduta baseada no crescente autocontrole das pulsões e
impulsos naturais. O comportamento individual está exposto à vigilância permanente de todos
os concorrentes que, através da observação, tratam de adivinhar as intenções ou
34

probabilidades de promoção dos demais, e riscos que representam para as posições dos
estabelecidos.
Tal designação e tais comportamentos, na medida em que irradiam pelo tecido social e
se espalham, sempre associados àquelas atitudes desejáveis, àquilo que se deveria ser e
almejar, também ultrapassam as barreiras das classes e, no caso francês, tornam-se
características de um comportamento nacional, como explica Elias:
Tanto a burguesia de corte como a aristocracia de corte falavam a mesma
língua, liam os mesmos livros e observavam, com gradações particulares, as
mesmas maneiras. E quando as disparidades sociais e econômicas
explodiram o contexto institucional do ancien régime, quando a burguesia
tornou-se uma nação, muito do que originalmente fora caráter específico e
distintivo da aristocracia de corte e depois também dos grupos burgueses, de
corte, tornou-se, em um movimento cada vez mais amplo, e sem dúvida com
alguma modificação, caráter nacional (ELIAS, 1994, p.52).

À medida, portanto, que se tornam ordinárias e banais, tais práticas perdem, até certo
ponto, seu caráter de identificação de classe alta. São, em alguma medida, desvalorizados,
porque se tornam comuns. Os que estão acima na estratificação social se veem obrigados a se
esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. “E é desse mecanismo – o
desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, sua leve deformação social,
sua desvalorização como sinal de distinção – que o movimento constante nos padrões de
comportamento na classe alta recebe em parte sua motivação” (ELIAS, 1994, p.110).
Nesse sentido, uma característica fortemente associada à nobreza, às pessoas finas e
educadas, a délicatesse ou delicadeza, "um sentimento altamente desenvolvido de embaraço”
(ELIAS, 1994, p.123) avança dos pequenos círculos da corte para a sociedade da corte como
um todo e, eventualmente, para toda a sociedade. Nas palavras de Elias, "juntamente com uma
situação social muito específica, os sentimentos e emoções começam a ser transformados na
classe alta, e a estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim
modificadas se difundam lentamente pela sociedade" (idem, p.123). Assim, conclui Elias, "a
mudança do comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que
passam sentimentos e atitudes humanas" (ELIAS, 1994, p.124).
Retomo aqui alguns elementos da teoria elisiana para pensar, em termos de sociologia
de longo prazo, a historicidade do que vamos discutir a seguir, a emergência de um espaço
público de alimentação, o restaurante. Em um determinado momento histórico e num
determinado contexto social, surge tal espaço que sintetiza o processo de individualização que
caracteriza o século 19.
35

1.1. O nascimento do restaurante

O aparecimento do restaurante como o conhecemos hoje é, de maneira geral, creditado


à Revolução Francesa (AMARAL, 2013; KELLY, 2005). Como consequência do fim violento
da monarquia e desmoralização da nobreza que acompanhava a família real, o exílio ou
mesmo a morte daqueles que tanto ostentavam o luxo de sua alimentação, os antigos chefs da
aristocracia viram-se desempregados de forma abrupta. Muitos deles procuraram empregar-se
nas famílias burguesas, outros aproveitaram algum prestígio de que ainda gozavam e abriram
estabelecimentos para vender comida. Mas essa não é a história toda.
A origem do restaurante é a de um lugar aonde as pessoas iam para tomar “caldos
restauradores”, sopas para doentes, desde o século 16. A oferta de caldos restaurativos estava
muito associada ao cuidado com a saúde e a uma concepção de medicina em que cada corpo
tem uma constituição específica, e que o que pode ser remédio para uma pessoa, pode não ser
para outra. Assim, não se oferecia apenas um caldo restaurador, mas vários. Havia, então, uma
carta, ou menu, na qual estavam dispostas as opções de caldo e era possível escolher.
Ir a um restaurante era considerado, literalmente, um ato restaurador: as sopas serviam
para elevar os espíritos e aliviar indisposições, dores e mal-estares11. Daí o termo
“restaurantes”, que se refere a restaurateur (em francês, “restaurador”). “O restaurante como
um espaço social urbano surgiu do consomê12” (SPANG, 2003, p.12).
O restaurante se estabeleceu como instituição a partir da década 1760 em função do
tipo de comida que oferecia, que encontrava respaldo num discurso médico fundamentado na
dietética, e pelo estilo de serviço que os primeiros restaurateurs ofereciam aos comensais: a
possibilidade de comer sozinhos ou em pequenos grupos, em oposição à mesa comum das
estalagens ou tabernas.
Embora se tratasse de uma época em que as mulheres não eram exatamente livres para
frequentar quaisquer lugares, o restaurante era aberto à presença delas. Afinal, era um
estabelecimento para cuidar da saúde. “Os restaurateurs não se limitaram aos caldos e cremes
de arroz por muito tempo, mas eles sempre se diferenciaram dos traiteurs pelo uso do

Há algumas teorias que indicam que a origem do nome se deve ao fato de Boulanger, proprietário da casa
11

Poullies, em Paris, ter afixado em sua porta a inscrição “Boulanger débite de restaurants divins” (em tradução
livre “Boulanger serve caldos restauradores divinos”), referindo-se, principalmente, ao bouillon restaurant, um
caldo de carnes com cebolas e raízes, que já existia desde a Idade Média e ao qual se creditavam poderes
restauradores (FREIXA e CHAVES, 2015, p.112).
Consomê: do francês consommé. “Caldo de carne ou ave enriquecido, concentrado e clarificado. Deve ser
12

preparado em fogo lento e desengordurado com grande capricho” (CÔRREA, M. F. Dicionário de Gastronomia,
2016, verbete consommé).
36

cardápio, pela opção do serviço a qualquer momento e pela presença feminina entre os que
tomavam caldos” (SPANG, 2003, p.86).
O restaurante nasce diferente das table d’hôte, dos traiteurs e dos cafés. As table
d’hôte, ou tavernas, também eram chamadas de casa de pasto. Ofereciam a comida do dia,
afixadas numa placa, em uma mesa comunal, com preço fixo. Não eram lugares
especializados em servir comida, apesar de oferecerem refeições. Os viajantes que passavam
por esses lugares para repousar, descansar os cavalos (daí o nome “casa de pasto”), beber e
comer, eram obrigados a consumir o que o estalajadeiro tivesse para oferecer: não havia
opção. Em uma grande mesa onde todos se sentavam juntos, os pratos eram servidos e as
pessoas que lá estavam comiam, muitas vezes compartilhando talheres (quando havia) e
pratos.
Nas estalagens, os turistas e viajantes não comiam bem, “porque a comida não é bem
feita, ou porque eles servem todos os dias a mesma coisa e raramente oferecem alguma
variedade”13 (SPANG, 2003, p.18). Segundo Nemeitz (apud SPANG, 2003), os viajantes
encontravam-se diante de duas instituições exclusivas: uma casa particular ou a table d’hôte
diária. Na realidade do século 18, esta última era mais um tipo de pensão, hostil a seu modo.
“Uma refeição servida em uma grande mesa, sempre à mesma hora marcada, e na qual os
comensais tinham pouca chance de escolher ou pedir pratos especiais, a table d’hôte não raro
era um ponto de reunião regular ao meio dia para artesões e trabalhadores locais, velhos
amigos e antigos moradores de um bairro” (SPANG, 2003, p.19).

Nos anos que precedem a revolução, multiplicam-se os restaurateurs que


servem, em porções, pratos requintados, não mais em mesa malcuidada
comportando várias pessoas, mas em mesinhas cobertas de toalhas,
individuais ou reservadas para determinado grupo de clientes. As iguarias
disponíveis estão inscritas numa folha com moldura; além disso, no final da
refeição apresenta-se ao cliente a ‘nota a pagar’, isto é, a conta (PITTE,
2015, p.756).

Os traiteurs vendiam pratos já preparados que podiam ser levados para casa, por
exemplo, a rotisserie. Não era um lugar aonde as pessoas iam para fazer uma refeição, apenas
para comprar a comida e levar embora. Os traiteurs “além de oferecerem comida e entregá-la
em casa ou nos quartos de hotéis, também alugavam toda a aparelhagem de jantar” (FREIXA
e CHAVES, 2014, p.112). E os cafés vendiam bebidas, principalmente café, chá e licores. Não
ofereciam refeições.

13
NEMEITZ, 1727 [Joachim C. Nemeitz, Séjour de Paris, c’est à dire, Instructions fidèles pour les voyageurs de
condition [Leyden: 1727] p.58] apud SPANG, 2003.
37

O trabalho dos traiteurs se aproximava muito ao trabalho das corporações de ofício e


tinham um caráter eminentemente familiar. Não raro, o traiteur e sua família habitavam no
mesmo lugar onde ficava a taverna. “Trabalhando com a esposa, um aprendiz e talvez uma
empregada doméstica, o traiteur parisiense típico servia refeições para a vasta população de
trabalhadores urbanos e artesãos que não possuíam suas próprias cozinhas ou seus próprios
utensílios” (SPANG, 2003, p.46).
Entre os séculos 18 e 19 ocorre uma mudança de local onde os chefs realizam seu
trabalho. Em 1830, alguns ainda cozinham na casa dos nobres, mas a grande maioria passa a
trabalhar em hotéis, restaurantes e clubes. E muitos não estão mais trabalhando na França
(TRUBEK, 2000, p.8).
Havia menos de 50 restaurantes em Paris antes da Revolução. Por volta de 1814, já se
listavam mais de 3 mil (KELLY, 2005, p.59). No período anterior à Revolução Francesa,
apenas alguns fornecedores de mantimentos, além dos taberneiros, tinham permissão para
cozinhar e servir comida aos muitos domicílios parisienses que não tinham cozinha
(MONTEIRO, 2013). Esses fornecedores eram protegidos por práticas restritivas da guilda.
As guildas e corporações, de fato, invalidaram-se após a revolução, liberando a atividade de
fornecimento de comida em Paris.
Nesse caso, longe de suprimir a criatividade culinária e colocar em causa
esse aspecto brilhante da cultura da elite do século XVIII, a Revolução
Francesa permitiu a transferência dessa arte para a burguesia e até mesmo,
parcialmente, para as classes populares, pelo viés de uma instituição surgida
da decadência das corporações (PITTE, 2015, p.759).

Em 1782 foi aberto o primeiro restaurante como conhecemos atualmente: o Grande


Taverne de Londres (que, apesar do nome, se localizava em Paris), fundado por Antoine
Beauvilliers, que já tinha serviço à la carte, ou seja, um cardápio em que se podiam ler os
preços e o nome de todos os pratos oferecidos pela casa, preparados individualmente e
servidos em pequenas mesas.
Nos anos 1820, porém, os restaurantes da capital francesa – com seus
cardápios em quatro colunas, comensais confusos e garçons de polidez
instável, se pareciam com esses a que estamos familiarizados hoje. O
restaurante havia se tornado uma verdadeira instituição cultural, entre os
mais familiares e distintivos marcos parisienses (SPANG, 2003, p.12).

O restaurante surge como uma instituição moderna por excelência, porque representa a
ideia também moderna iluminista de indivíduo, de gosto individual. Ele traz a possibilidade
de se comer o que não se come em casa, para além da comida de todos os dias, a ideia de
satisfazer um gosto pessoal. O restaurante institui a refeição individual, que começa com um
38

regramento dos banquetes, mas que se intensifica nesse lugar onde é possível comer sozinho.
Também tinha um cuidado na recepção dos clientes, algo próximo a um atendimento
personalizado.
Ainda no século 18, considerando o caráter restaurador e a elaboração de pratos
voltados para os doentes, Spang afirma que “Embora se constituísse num ideal compartilhado
pela burguesia e a nobreza, a obtenção da saúde pela ciência e por uma existência simples
ainda servia como um indicador social, como um modo de diferenciar o urbano sofisticado do
trabalhador grosseiro capaz de digerir tudo que fosse colocado diante dele” (idem, p.55).
Os restaurantes passaram a refletir uma nova cultura urbana, um novo tipo de lugar
para encontros sociais, um novo espaço público que misturava a privacidade com “estar em
sociedade”. A revolução dos hábitos à mesa proporcionada pelos restaurantes estava, na
verdade, ligada à diferenciação social. As pessoas que procuravam se diferenciar não mais
desejavam, ou melhor, suas frágeis constituições e “delicadeza” física, moral e estética não
permitiam que continuassem frequentando estalagens e tabernas.
Flandrin (2009) analisa o progresso do individualismo a partir do século 17, que se
expressa pelos modos e utensílios à mesa: pratos, talheres e copos, cada pessoa utiliza o seu
próprio, em contraposição às tigelas comuns onde os convivas se serviam com as mãos. Esses
modos e a forma de utilizar esses utensílios tinham, segundo o autor, a função principal de
promover a distinção social dos costumes.

A justificativa essencial de uma prática está em sua utilização pelas pessoas


de bem; e o simples fato de ser característica dos camponeses e de outras
camadas populares basta para condená-la. (…) Não só se procura a distinção
de modo mais sistemático que na Idade Média, como é possível obtê-la sem
maiores esforços, adotando-se utensílios aos quais os pobres dificilmente
tinham acesso. (…) as novas maneiras de comportar-se à mesa sem dúvida
ampliaram o fosso entre as elites sociais e as massas populares
(FLANDRIN, 2009, p.267).

Nesse novo estabelecimento, o preço é importante: são refeições para quem pode
pagar. Isso está em consonância com o surgimento da cultura burguesa e da consolidação da
burguesia como classe dominante. Ao contrário dos banquetes aristocráticos, em que era
preciso ser convidado, o restaurante corresponde ao ideal iluminista e burguês da igualdade:
ele é aberto a todos, desde que possam pagar. "O sucesso dos restaurantes significava que os
prazeres da mesa não eram mais exclusividade dos pouco felizardos convidados para os
grandes banquetes em Versalhes e outros palácios" (DEJEAN, 2010, p.149).
39

Os preços eram para pratos individuais, não eram para dividir entre várias pessoas. Em
uma época em que emergem necessidades individuais, é preciso saciá-las individualmente
também. “Talvez esta seja a inovação mais importante do restaurante e do menu à la carte:
um indivíduo, independentemente da classe social, tem a chance de comer como um rei”
(TRUBEK, 2000, p.37). O próprio espaço do restaurante revelava as relações sociais que
estavam implicadas em seu sucesso. Mesas individuais, com toalhas, ao mesmo tempo perto e
longe umas das outras. Podia-se ver e ser visto.
Esses primeiros restaurateurs de Paris eram, em grande parte, os
beneficiários – e não as vítimas – do sistema de privilégios e status do
Antigo Regime. Como comerciantes e empresários prósperos e tranquilos,
eles compartilhavam a vida intelectual e cultural de Paris; entre seus clientes
estavam duques e atrizes, clérigos e filósofos; e entre os amigos,
funcionários públicos subalternos, advogados e outros comerciantes
(SPANG, 2003, p.39).

O menu exalta essa característica do individualismo, assim como representa um código


da diplomacia e das elites que se reconhecia por entender aquele código e saber usar aqueles
instrumentos. Enquanto instituição moderna, “o restaurante deu novo significado às emoções,
expressões e ações individuais e elaborou toda uma nova lógica de sociabilidade e
convivência” (SPANG, 2003, p.86).
De acordo com Alain Drouard (2015: 47), “Os restaurantes se multiplicaram em Paris
nas primeiras décadas do século 19 para satisfazer a demanda de uma clientela burguesa
seduzida pela possibilidade de consumir, em mesas individuais, comidas e pratos variados, e
de escolhê-los a partir de uma carta, conhecendo os preços14”.
No século 19, o restaurante já serve muitas outras coisas além de caldos restauradores
e passa a ser um lugar de convívio social associado às classes mais abastadas, aonde as
pessoas ricas e burguesas iam para se encontrar, verem e serem vistas. A crítica gastronômica,
inclusive, nasce das colunas sociais, a partir dos comentários sobre esse espaço aonde todo
mundo ia ou queria ir. Grimod de la Reynière, considerado o pai dos críticos gastronômicos,
entendia a gastronomia como um código de educação gourmand, que permitia legitimar uma
nova hierarquia social advinda da Revolução Francesa. Segundo ele, a gastronomia cumpria
uma função social de reconciliação entre a antiga classe dominante, a aristocracia, e a nova, a
burguesia.

No original: «Les restaurants se sont multipliés à Paris dans les premières décennies du XIXe siècle pour
14

satisfaire la demande d’une clientèle bourgeoise séduite par la possibilité de consommer sur les tables
individuelles des mets et des plats variés et de les choisir sur une carte en en connaissant les prix.»
40

"A cuisine francesa criou um novo tipo de conviva, não mais alguém que
simplesmente comia, mas alguém que o fazia com elegância e discernimento, um indivíduo
para quem apenas os franceses têm um termo específico: gourmet" (DEJEAN, 2010, p.152). E
os gourmets passam a ter uma importância fundamental no quesito da diferenciação social:
"policiar o mundo das iguarias a fim de ditar, em todas as categorias - dos restaurantes aos
vinhos -, o que está na moda e o que não está" (DEJEAN, 2010, p.153).
Para corresponder ao público que o frequentava, o restaurante começa a ser decorado
com mobílias requintadas, espelhos, tecidos finos, passa a oferecer vinhos caros e outras
“iguarias”. Desde seu nascimento, na verdade, a hierarquia entre os restaurantes reproduz a
hierarquia social. Havia os restaurantes à la carte destinado aos ricos, que não eram muito
numerosos. Havia também aqueles destinados às “bolsas médias”, e ao lado dos
estabelecimentos luxuosos e de preço fixo, os “bouillons”, que recebiam uma clientela menos
afortunada (DROUARD, 2015).
É importante salientar uma característica do restaurante, a separação da cozinha. O
lugar onde os alimentos são preparados é separado do espaço do convívio, não é o mesmo
local onde o alimento vai ser consumido. Não há mais um caldeirão no fogo.
... o restaurante – que separava a cozinha, onde as comidas ficavam
escondidas, da sala de jantar, onde os pratos só apareciam no momento em
que eram solicitados – oferecia a variedade de algo invisível e desconhecido.
Sem obrigar o comensal, homem ou mulher, a realizar o ‘trabalho forçado’
de compor uma refeição de forma independente e sem surpreendê-lo com
uma conta inesperada, o cardápio impresso do restaurante tornou possível
transações padronizadas num tempo em que preços impressos ou despesas
fixas não eram a regra na maioria das lojas e mercados (SPANG, 2003, p.98-
99).

Não há, na literatura consultada, nenhuma menção a mulheres cozinheiras. Nenhum


nome, nenhuma sinalização, nenhum vestígio de que alguma mulher tenha passado pelas
cozinhas da monarquia, muito menos que tenham saído dos castelos para os boulevards
parisienses. Segundo Trubek (2000: 40), desde o início, as mulheres eram aceitas nos
restaurantes como consumidoras - ainda que seja possível inferir que determinadas
convenções sociais limitassem esses passeios (há sempre restrições sociais a mulheres que
estão sozinhas) - mas que elas não foram encontradas cozinhando no restaurante. Todas as
evidências apontam que nenhum restaurante de comida elegante ou hotel grande na França
teve uma chef ou cozinheira mulher durante o século 19.
41

“Nem ofício nem profissão, a cozinha era nessa época (1800-1840) uma atividade
doméstica essencialmente feminina. As famílias burguesas tinham cozinheiras a seu serviço15”
(DROUARD, 2015, p.35). As mulheres estavam relegadas ao trabalho culinário doméstico ou
à cozinha dos não nobres, ou seja, o trabalho culinário sem prestígio e nem visibilidade, na
cozinha da própria casa ou de outrem – especialmente famílias burguesas.
Drouard afirma que o mundo dos cozinheiros não escapa à divisão sexual do trabalho.
“Às cozinheiras a cozinha burguesa e doméstica. Aos cozinheiros a alta cozinha codificada
por Carême no início do século 1916” (DROUARD, 2015, p.36). E vai além, demonstrando
que entre os chefs e cozinheiros ao longo do século 19 havia um consenso de que as mulheres
eram capazes apenas de cozinhar em casa, sem jamais atingir o nível da haute cuisine que
pertence exclusivamente aos chefs. Em realidade, associar a cozinha às mulheres era uma
forma de ofender os cozinheiros homens17, de diminuí-los.
Nesse sentido, como uma estratégia para constituir um coletivo profissional e valorizar
seu métier, os cozinheiros procuram se afastar e se dissociar o máximo possível da cozinha
doméstica, pois receavam uma desvalorização de sua profissão e uma baixa de seus salários, à
medida que mulheres fossem reconhecidas como profissionais, e seu trabalho, portanto,
equiparado ao delas. A corporação de cozinheiros, então, ataca suas rivais.
Drouard (2015: 37) cita Philéas Gilbert, em um artigo publicado no jornal L’Art
Culinaire, em 1883, intitulado “Cozinheiros, cozinheiras e jornadas”, no qual ele afirma:
Alguns disseram que a cozinha era o domínio da mulher. Eu concordo em
certa medida, pois como há embrulho e embrulho, há cozinha e cozinha, e
nós não contestamos às donas de casa o caldeirão e o ensopado de ovelha
tradicionais. Que a maior parte das cozinheiras se atenha a esse tipo de
preparo e não pretende se envolver em nossos trabalhos, primeiramente
muito cansativo para sua constituição de mulher, em seguida extremamente
estendida/elaborada para seus conhecimentos fracos, e em que elas não
podem corresponder, o que quer que elas façam, senão uma muito
imperfeita, eu diria mesmo uma imitação muito ruim (GILBERT apud
DROUARD, 2015)18.

15
Tradução livre do original: “Ni métier ni profession, la cuisine était à cette époque [1800-1840] une activité
domestique essentiellement féminine. Les familles bourgeoises avaient à leur service des cuisinières”.
16
Tradução livre do original: “Aux cuisinières la cuisine bourgeoise et de ménage. Aux cuisiniers la haute
cuisine codifiée par Carême au début du XIXe siècle”.
17
“Les cuisiniers sont victimes de préjugés et de mépris. On invoque tour à tour leurs origines sociales, leur
absence de formation et le fait que la cuisine est une affaire de femmes” (DROUARD, 2015, p.18).
18
Tradução livre do artigo "Cuisiniers, Cuisinières et jornaux", de Phileas Gilbért, conforme citado por Drouard
(2015, p.37):“Que la majeure partie des cuisinières s’en tienne là et ne prétend pas s’immiscer dans nos
travaux, d’abord très fatigants pour leur complexion de femmes, ensuite beaucoup trop étendus pour leur faibles
connaissances, et dont elles ne peuvent rendre, quoi qu’elles fassent, qu’une très imparfaite, je dirais même une
très mauvaise imitation”.
42

A Sociedade dos Cozinheiros, fundada em 1840, tinha como diretriz a proibição de


que mulheres fossem contratadas em restaurantes, assim como, dentro de sua reivindicação
antiga pela criação de uma escola, também eram contrários à participação feminina em suas
fileiras.

1.2. A importância da gastronomia francesa

Joan DeJean (2010: 131) afirma que o processo que levou a França a se transformar
em um mundo gastronômico à parte, um lugar onde a preparação de alimentos pode ser
literalmente uma questão de vida ou morte, teve início em 1651, com a publicação de um
livro de culinária, Le Cuisinier Français (O cozinheiro francês). "Na verdade, o primeiro
grande livro de culinária, o primeiro livro de culinária moderno, e o precursor de uma
revolução culinária que fez com que a comida se tornasse cuisine e a cuisine se tornasse
francesa". Este livro desencadeou a revolução culinária que culminou na criação da
gastronomia.
Trubek (2000) sublinha a importância dos chefs que passaram a escrever livros e,
dessa maneira, decodificar a haute cuisine. O “mito de origem” dos livros, segundo ela,
poderia corresponder a duas possibilidades: que o primeiro livro de cozinha seja “Ouverture
de Cuisine”, de Casteau (1604), onde a cozinha aparece, pela primeira vez, codificada;
enquanto a hipótese mais aceita é a de que o primeiro livro de cozinha é “Le Cuisinier
Français” (1651), de um autor identificado como La Varenne. Independentemente de qual foi
o primeiro, Le Cuisinier Français foi o mais importante, com uma abordagem mais
sistemática, que levou o autor a ser considerado o fundador da cozinha clássica francesa
(TRUBEK, 2000, p.11).
43

Figura 1 - “Le cuisinier François”, de La Varenne, publicado em 1651, considerado o primeiro livro
de culinária19.

A partir de 1651, "cozinhar e comer passaram cada vez mais a ser considerados não
uma simples necessidade, mas um território em que a sofisticação era não só possível, mas
desejável" (DEJEAN, 2010, p.132). Iniciou-se, assim, o mais longo reinado de qualquer
tradição no mundo da culinária, a "superioridade" da culinária francesa frente a outros estilos
de cozinhar. Os franceses eram considerados os únicos verdadeiros mestres da haute cuisine.
A autora chama atenção para o fato de que o livro de La Varenne se refere a cuisinier
(cozinheiro) e não cuisinière (cozinheira), e as casas de família refinadas passam a ter homens

Consultado a partir do acervo iconográfico Gallica, da Bibliothéque Nationale de France.


19
44

comandando as cozinhas - as mulheres só retornam à haute cuisine no século 20 (DEJEAN,


2010, p.133). Depois da obra de La Varenne, os livros de culinária se transformaram em
importante setor da indústria editorial francesa. Este livro abriu "os portais da perfeição
culinária" para uma clientela cada vez mais numerosa. A culinária francesa passou a ser
identificada como elegante e sofisticada.
Dois anos depois, em 1653, foi lançado Le pâtissier français, inteiramente dedicado à
pâtisserie, então definida como a arte de fazer coisas com "crosta de massa", doces e
salgadas. A pâtisserie era pouco conhecida naquela época. O livro segue o formato do Le
Cuisinier, numerando as receitas e explicando técnicas básicas. Tal livro fornece as primeiras
explanações sobre como fazer as massas comercializadas pelos chefs. Foi o primeiro livro a
indicar os tempos de cozimento, os níveis de calor e as quantidades precisas de cada
ingrediente.
Assim, o estilo francês de cozinhar tornara-se parte essencial da imagem de Paris
como capital da elegância e do luxo. "Pela primeira vez, a comida tornou-se uma atração
turística" (DEJEAN, 2010, p.137). Os chefs franceses foram os primeiros a reduzir e até
eliminar o uso de temperos orientais: em um gesto eurocêntrico, eles passaram a substituir
esses temperos por ervas nativas, exceto pela pimenta, que passou a se igualar ao sal. Além
disso, separaram o sal do açúcar: o sal e a pimenta dominaram todos os pratos da refeição e,
aos poucos, os doces foram deixados para o fim, le dessert (DEJEAN, 2010, p.138).
45

Figura 2 - “Le pâtissier François”, de La Varenne, publicado em 165320.

Os tipos de comida também mudaram radicalmente, por exemplo, com o


desaparecimento das mesas aristocráticas de grandes aves, como o pavão (eram muito comuns
na Idade Média). Em 1683, uma autoridade médica declarou que frutas faziam bem para a
saúde (frutas e vegetais não eram consumidos pela aristocracia, apenas pelos camponeses).
Em 1691 foi publicado Le Cuisinier royal et bourgeois (Cozinhando para a realeza e
para a burguesia), que produziu a consagração do ensopado. DeJean atribui essa nova maneira
de cozinhar a uma invenção que pode ser considerada a precursora da panela de pressão. "Os
princípios culinários inicialmente formulados nos anos 1650 logo transformaram a maneira
como os franceses se relacionavam com a comida" (DEJEAN, 2010, p.143). A autora
distingue o service à la française (pratos dispostos sobre a mesa, em que cada conviva se
serve) do serviço russo (um serviçal segura a travessa para cada comensal e os pratos são

Consultado a partir do acervo iconográfico Gallica, da Bibliothéque Nationale de France.


20
46

servidos segundo uma ordem). No início, o serviço à francesa era "um ritual orquestrado que
ditava com precisão absoluta tanto a ordem em que os pratos deveriam ser servidos quanto à
disposição simétrica dos pratos na mesa para cada etapa da refeição" (DEJEAN, 2010, p.145).
Também foram escritos livros que visavam à mulher burguesa e suas empregadas
(geralmente mulheres), com o objetivo de prover informações práticas e acessíveis sobre
cozinha para um público feminino. No final dos 1800, chefs profissionais também publicavam
livros visando esse público. Principalmente com o objetivo de organizar jantares e eventos em
casa, os livros prescreviam como cada prato deveria ser servido, a bebida que os
acompanhava, como a mesa deveria estar organizada e disposta, como os anfitriões deveriam
se comportar, entre outros comportamentos; afinal, saber como receber e servir revelam um
traço distintivo.
Amy Trubek (2000) questiona por que a culinária francesa é ainda tão poderosa no
mundo da comida elegante. Tanto na Europa quanto na América do Norte, é possível
encontrar restaurantes que são “da França”, associados aos destinos gourmets e “fine dining”,
algo que poderia ser traduzido como “bons restaurantes”, ou melhor, excelentes.
Os franceses também podem ser encontrados nas escolas de culinária, inclusive aqui
no Brasil, como nossos informantes disseram, com algum ressentimento: “O que a gente
aprende no curso que é toda teoria técnica, ele vem da escola francesa, por exemplo ”21. Outro
depoimento sobre o conteúdo do curso era: “Então tipo novas tecnologias, nas faculdades
você não vê. Novos produtos de gastronomia, você não vê. Você vê o básico que é aquela
gastronomia francesa clássica tradicional. E a gente já passou disso”22.
Além de aprender as técnicas de preparo com nomes franceses, os cinco molhos
“mães” que também são franceses, os cozinheiros devem usar a roupa branca bem passada, a
calça xadrez e a touca branca, quase idênticos aos dos cozinheiros franceses do século 19, que
correspondem à padronização do uniforme proposta por Auguste Escoffier. Também credita-
-se à Escoffier a organização do trabalho nas cozinhas modernas, um legado fundamental que
está presente nas cozinhas até os dias de hoje e que, provavelmente, pode ser um dos
elementos para a importância da culinária francesa no mundo. Os pilares da alta gastronomia
francesa são os ingredientes, técnicas e métodos que emergiram das casas nobres do século 18
na França (TRUBEK, 2000, p.13).
Amy Trubek aponta três razões pelas quais a haute cuisine que se espalha pelo mundo
é francesa: 1) o consumo nunca permaneceu exclusivamente dentro das cortes e membros da

Lenice, 30 anos, chef de cozinha.


21

Matias, 24 anos, cozinheiro.


22
47

elite francesa, mas foi estendido para as elites em toda Europa; 2) a cozinha foi rigorosamente
codificada no desenvolvimento de dois gêneros literários: livros de receita e jornais culinários
e revistas; e, finalmente, 3) no século 19, a haute cuisine francesa já se identificava com a
mestria profissional em toda Europa e nos Estados Unidos.
A autora sustenta a tese de que a disseminação das técnicas e receitas da culinária
francesa se espalham pelo mundo e se tornam dominante precisamente porque elas são
profissionais, porque quem as dissemina são os chefs e cozinheiros profissionais, um tipo de
culinária associada à esfera profissional, e não doméstica. Mais do que isso, ela afirma que,
desde o começo, a cozinha profissional dependia de patronagem internacional e lugares ao
redor do mundo para sobreviver e florescer.
A palavra escrita ajudou chefs passarem de anônimos domésticos nas casas
da nobreza para especialistas para o público porque seu conhecimento podia
espalhar-se por qualquer lugar. Esses conhecimentos culinários, em última
instância, definiram as práticas da cozinha profissional no mundo ocidental23
(TRUBEK, 2000, p.29).

Trubek afirma que foi assim que a cozinha francesa viajou o mundo e causou impacto,
via livros, jornais, revistas e chefs franceses. Mas a cozinha burguesa, associada ao lar, não
viajou tão cedo e nem tão longe porque não era necessariamente associada à expertise. Até os
1800, era apenas nos limites das cozinhas aristocráticas que um chef poderia, de fato,
desenvolver sua arte culinária. Mas era também nesse ambiente, sob o patrocínio de um
nobre, que a cozinha sofisticada, conforme a conhecemos hoje, foi desenvolvida e refinada.
Para compreender como a gastronomia francesa se espalhou pelo mundo, no que a
autora chega a chamar de “French culinary imperilism” (TRUBEK, 2000, p.65), é preciso
olhar para os trabalhadores, principalmente para os chefs, que viajaram pelo globo (desde os
anos 1600, na realidade), “colonizando” as cozinhas. Trubek identifica um discurso de que
toda grande cozinha ou culinária chique demanda um chef francês, mas afirma que esses
profissionais não levavam vidas muito elegantes. Suas práticas diárias demandavam muito
fisicamente e o fato de que esse trabalho era compreendido como um tipo de trabalho manual
significava que seu status social era bem baixo.
Nesse sentido, os chefs estavam interessados em se apropriarem do status de elite eles
mesmos. O discurso desses chefs, que se levavam muito a sério, assim como seu métier, passa
por uma necessidade que eles tinham, de que os consumidores acreditassem na cozinha
23
Do original: “The written word helped chefs move from being anonymous domestics in the homes of the
nobility to being experts for the public because now their knowledge could spread anywhere. These culinary
knowledge ultimately defined professional cooking practices in the Western world”.
48

superior da França, porque essa era a chance deles de entrarem nos domínios da elite a qual
eles serviam. Alain Drouard (2015) também encontra esse desejo por parte dos chefs e
cozinheiros franceses, que segundo ele, até a primeira metade do século 19, eram
desconhecidos – não tinham identidade nem existência social (DROUARD, 2015, p.33).
Entretanto, o prestígio da cozinha francesa ao redor do mundo garantia a alguns chefs
a possibilidade de conseguir bons salários em outros países, o que explica que muitos deles
tenham passado anos fora da França e, em alguns casos, até toda a sua carreira (isso ainda no
século 19) (TRUBEK, 2000, p.77). Analisando a emergência das associações profissionais e
jornais da categoria, partindo de Paris, mas destinadas a cozinheiros franceses no mundo todo,
Trubek afirma que dois temas eram recorrentes nas agendas das associações e nos jornais:
preservar e promover o poder e a integridade da haute cuisine francesa e elevar o status da
profissão.
Essa afirmação está em consonância com os achados de Alain Drouard em
documentos históricos semelhantes, que revela uma luta que começa pelo reconhecimento da
condição de trabalhadores, a denúncia das péssimas condições de trabalho, as diversas
doenças e adoecimentos que decorrem dessa condição, a corrupção dos escritórios de
colocação profissional (ligados aos patrões e proprietários), assim como a demanda por
escolas de formação profissional e a regulamentação do trabalho dos aprendizes (DROUARD,
2015, p.67).
A regulamentação do trabalho, nessa época, passava obrigatoriamente pelas condições
de trabalho nas cozinhas. Desde o começo, os cozinheiros organizados exigiam melhores
condições de higiene e asseio nos estabelecimentos, e por muito tempo foram ignorados. No
final do século 19, a administração municipal contrata uma pesquisa sobre as condições de
trabalho dos cozinheiros, ou melhor, sobre a higiene das cozinhas, conforme demanda da
Chambre Syndical24. Segundo a investigação de Drouard, o relatório final comprovava a falta
de higiene e insalubridade, assim como as consequências para a vida e saúde dos
trabalhadores.
Os laudos médicos apontavam incontáveis problemas ocasionados pelas condições de
trabalho, como bronquite, pneumonia, congestões pulmonares, ataques de reumatismo agudo,
assim como o calor sufocante e exaustão, que levava os cozinheiros ao abuso do álcool
(DROUARD, 2015, p.80). A descrição do “cozinheiro dos reis e rei dos cozinheiros”, Antonin

A Chambre Syndical des cuisiniers é criada em 20 de setembro de 1872 (DROUARD, 2015, p.72).
24
49

Carême, sobre sua própria rotina como chef, ilustra bem a situação das cozinhas profissionais
desde o fim do século 18:
O cozinheiro, muito frequentemente, trabalha a vida inteira no subsolo, onde
um dia falso de luzes artificiais enfraquece a visão, onde condensações e
resíduos aceleram o reumatismo e onde a vida é muito infeliz. Se as cozinhas
são no primeiro andar e o cozinheiro mais saudável, mesmo assim, em geral,
só o que vê são quatro paredes e o próprio reflexo no cobre polido, e tudo o
que respira são vapores e fumaça de carvão. E aí você tem o que é a minha
vida como chef! (CARÊME apud KELLY, 2005, p.40)

Não por acaso, Carême morre relativamente jovem, aos 50 anos, em razão de
problemas pulmonares decorrentes da vida fechado em cozinhas que ainda funcionavam com
fornos e fogões a lenha25. A arquitetura neoclássica da época também contribuiu para o mal
que atingia os cozinheiros, uma vez que a “moda” era que as cozinhas se localizassem abaixo
da casa, abaixo do nível da rua mesmo, o que garantia um ambiente confinado e sufocante,
repleto de vapores de monóxido de carbono. A ausência de janelas objetivava manter a
comida quente.
A insalubridade do trabalho e os perigos que ele oferecia à saúde dos cozinheiros era
um tema recorrente e muito importante para a organização dos cozinheiros. Ainda segundo
Drouard (2015: 83), em 1888, “se comparadas as taxas de mortalidade dos cozinheiros às dos
adultos parisienses de 20 a 50 anos, a mortalidade dos cozinheiros seria duas vezes maior”.
Trubek aponta para a importância de que os chefs franceses, na virada do século,
percebessem a necessidade de manter a reputação elitista do seu trabalho, pois eles poderiam
ser condenados ao esquecimento e à irrelevância na era pós-industrial, como aconteceu com
outras ocupações, como os fazedores de guarda-chuvas ou de chapéus (TRUBEK, 2000,
p.86). Os chefs empreenderam um esforço para se configurarem enquanto grupo profissional,
entendendo que era importante criar um mercado para as suas atividades e proteger o seu

25
Kelly (2005) descreve a trajetória de Antonin Carême, o menino pobre que começou a trabalhar nas cozinhas
como ajudante de confeiteiro, tornou-se o maior cozinheiro de seu tempo e uma figura mítica da gastronomia até
a atualidade. As verdadeiras estrelas da cozinha francesa do período pós-revolucionário não foram os
restauranteurs, mas sim os confeiteiros (pâtisssiers). É curioso notar que, apesar do furor revolucionário, o luxo
da confeitaria sobreviveu incólume, nunca tendo sido vítima de um ataque político. Nascido 16º filho e batizado
Marie-Antoine Carême em Paris, foi abandonado pelos pais em 1792, logo depois da Revolução em 1789,
precisamente quando o cotidiano parisiense era tomado pelo terror e caos, massacres e condenações à guilhotina.
Foi acolhido por um cozinheiro que lhe deu casa e comida em troca de serviços domésticos. Antes de completar
10 anos, foi admitido como ajudante de cozinha mirim numa taberna, o que era absolutamente normal. Embora
ainda fosse menor de idade, Carême ficou conhecido em toda a Paris como extraordinário confeiteiro. No
inverno de 1803 para 1804, ele abriu a própria confeitaria. Aos 25 anos, havia se tornado uma figura conhecida
entre os chefs e gourmets da Paris napoleônica. Assim como Brillat-Savarin, Carême pretendia criar uma
“legislação” da gastronomia, que explicasse aos aspirantes da nova burguesia, em detalhes, os segredos de sua
arte. E ele o fez: publicou Le pâtissier royal parisien em 1815, sua obra ainda hoje considerada referência para a
confeitaria.
50

corpus de conhecimentos. Mas o fato de que cozinhar é uma atividade mundana e comum na
esfera doméstica inviabiliza, em alguma medida, essas estratégias de profissionalização.
Nesse sentido, ela considera que as associações e os jornais foram vitais para o processo de
profissionalização (TRUBEK, 2000, p.94).

Figura 3 - Societé des Cuisiniers de Paris [1905-1915]26

A estratégia principal para essa profissionalização, entretanto, residia no domínio das


técnicas. É a técnica, substancialmente, que separa o profissional do amador, que separa a
pessoa treinada da não treinada, que define uma mestria e um domínio.
Segundo Galvão (2015: 182),

(…) os significados que circulam em torno da ideia de profissional no grupo,


de modo geral, estão relacionados mais a uma iniciação na cultura
ocupacional (que não é homogênea), a incorporação do conhecimento e das
técnicas, que se manifestam na capacidade de antecipar problemas e de
improvisar a sua solução, do que em credenciais técnicas ou superiores.

Tais estratégias, entretanto, não eram gender neutral, isto é, tinham um componente
que remete às relações sociais de sexo e à tensão que as perpassa. Harris e Giuffre (2015: 18)
retomam a história dos cozinheiros a partir da história da gastronomia na França e afirmam

Fotografia disponível na Bibliothèque Historique de la Ville de Paris. Disponível em https://bibliotheques-


26

specialisees.paris.fr/ark:/73873/pf0001934041, sob a identificação [Boutiques parisiennes. Association. Société


des Cuisiniers de Paris, 12, rue Mandar (2e arr.)]: [photographie]. Acesso em 04/10/2019.
51

que “A exclusão das mulheres foi integrante do levantamento de status da ocupação.


Realizando esse trabalho limiar, homens chefs eram capazes de controlar o acesso a recursos e
oportunidades e ajudar de maneira geral na profissionalização dos chefs”27.

1.3. Os/As cozinheiros/as no Brasil

No Brasil não houve uma associação entre gastronomia e identidade nacional com a
mesma intensidade que na França, na Itália, no México ou em outros países (COLLAÇO,
2013, p.19). De acordo com a autora, a “fábula das três raças” – a ideia de que o Brasil seria
fruto da miscigenação entre índios, africanos e europeus –, acabou sendo o elemento comum
ao imaginário culinário brasileiro.
A tese de que a cultura alimentar brasileira se funda na junção das culinárias indígena,
lusitana e africana é relativamente hegemônica entre os estudiosos da gastronomia brasileira
(FREIXA e CHAVES, 2015; AMARAL, 2016). É fundamental considerar, entretanto, que os
portugueses eram profundamente influenciados pelos costumes e modos franceses no que
concerne à alimentação e os modos à mesa, e eles eram a classe dominante no período. Dória
(2014), por exemplo, critica o conceito de miscigenação como é aplicado para explicar a
culinária brasileira, afirmando que ele é confortável, mas carente de poder explicativo, no
sentido que o “afrancesamento” da nossa culinária (que se deu principalmente nos século 19 e
20), é uma influência tão legítima quanto as outras (DÓRIA, 2014, pp.17-18).
Assim, embora exista a explicação que associa as delícias típicas do Brasil (frutas,
tubérculos, animais silvestres, entre outros), associadas à comida dos indígenas quando da
chegada dos portugueses e durante o período das bandeiras (em que os colonizadores
dependiam muito dos saberes e técnicas dos nativos escravizados para sobreviver no
“sertão”), é na casa-grande que se dá a “mistura” entre as culturas alimentares que se tornarão
a gastronomia brasileira. “(...) somente no Rio de Janeiro, havia cozinheiros portugueses
empregados nas casas de fidalgos. As atividades culinárias nos engenhos e nas fazendas – no
espaço privado da elite agrária, por assim dizer – eram desempenhadas principalmente por
escravos” (FREYRE, 1961 apud GALVÃO, 2015, p.196).

Tradução livre de: “The exclusion of women was integral in raising the status of the occupation. By
27

performing this boundary work, men chefs were able to control access to resources and opportunities and aid in
overall professionalization of chefs”
52

Monteleone (2015) discorre sobre um hábito comum na pequena São Paulo até o
século 19, comer içás. Içás são formigas-saúvas. Tal hábito expressava a influência dos
hábitos alimentares indígenas28. Assim, ao longo do século 19, em função da
cosmopolitização da cidade, comer formigas passa a “ser malvisto, tachado como ‘coisa de
caipiras’, de ‘bugre’, de gente não civilizada” (MONTELEONE, 2015, p.35).
Os portugueses conheciam as técnicas culinárias “civilizadas” para preparar e
armazenar a comida, os indígenas conheciam os alimentos aqui disponíveis e comestíveis, os
africanos escravizados, de fato, os preparavam. Ou melhor, as africanas escravizadas. “As
receitas eram das sinhás, mas as adaptações foram feitas com os ingredientes que havia por
aqui, moldados pela mão da escrava africana” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.179). “O
exercício da culinária no Brasil foi sendo constituído pelo trabalho das mulheres negras,
principalmente, e muito vinculado ao espaço doméstico” (GALVÃO, 2015, p.196).
Dessa maneira, forjou-se, ao longo do período do Brasil colônia, uma culinária
brasileira, com ingredientes nativos, mas também oriundos de outras colônias portuguesas na
África e da influência da culinária portuguesa. De acordo com Dória (2014: 147), “A
discussão sobre a formação nacional, inclusive de nossa culinária, pode ser situada entre 1870
e 1930, quando envolveu nos debates as elites econômicas e os intelectuais de todo o país. As
cozinhas regionais emergiram como tema a partir de 1920, e de maneira mais forte no
Nordeste”.
Há diversos elementos “sincréticos” dessa gastronomia brasileira, como os doces
nordestinos que nascem nos engenhos de açúcar (FREYRE, 1997), a comida dos sertanejos,
dos tropeiros, entre outros. Pode-se falar em termos de gastronomia na medida em que a
alimentação já é, nesse momento, uma forma de distinção entre as classes sociais na colônia:
tanto nas casas-grandes dos engenhos como na ascendente burguesia mineradora, mais tarde,
as caríssimas mercadorias portuguesas eram muito mais valorizadas que os produtos nacionais
(como vinhos, toalhas bordadas de renda, louças finas, baixelas e talheres de prata). Enquanto
a alimentação dos escravos consistia basicamente em angu com toucinho de porco, as elites
proprietárias de terra e das lavras de mineração gozavam de alimentação muito mais variada,
cujos gêneros eram cultivados em pequenas fazendas que tinham “roças” de milho, mandioca,
feijão-preto e couve, entre outros (FREIXA e CHAVES, 2015).

Sérgio Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras, dedicou um capítulo às “Iguarias de Bugre”. Ele
28

compara as formigas-saúvas a alimentos que faziam parte da dieta básica do paulistano, como mandioca, feijão e
milho (HOLANDA, 1975 apud MONTELEONE, 2015, p.35).
53

Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e a abertura dos portos
brasileiros às nações amigas, ou seja, com a possibilidade de se importarem produtos não
apenas de Portugal, mas também de outras nações europeias, diversificaram-se os gêneros
alimentícios que passaram a figurar na mesa da corte e das famílias ricas brasileiras. “Os ricos
no Rio de Janeiro, a maioria de origem portuguesa, mesclavam a receita da terra natal com
produtos importados e pratos brasileiros” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.198). Além da
diversificação de produtos alimentícios, no século 19 também intensificou-se o fluxo de
pessoas que vinham à nova capital do Império, o Rio de Janeiro, como viajantes, diplomatas,
comerciantes, artistas, entre outros.
O aumento populacional e a necessidade de produtos fizeram crescer a quantidade de
estabelecimentos que supriam a demanda por alimentação, como padarias, armazéns,
botequins e até as hospedarias que serviam um cardápio simples aos viajantes. “Com a vida
na cidade, e o consumo de alimentos importados ou diferentes, veio um novo estilo de vida”
(MONTELEONE, 2015, p.21).
O texto fundador da gastronomia nacional, no caso brasileiro, é O cozinheiro imperial
ou Nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os seus ramos, publicado em 1839 por
Laemmert & Co., no Rio de Janeiro. O primeiro livro brasileiro de receitas, todavia, não tem
autor. É assinado apenas por R.C.M, identificado com o título de chefe de cozinha, e nada
mais (AMARAL, 2016). O livro compilava não apenas receitas e informações básicas sobre o
preparo de alimentos, mas também “dicas de etiqueta, observações sobre higiene na cozinha e
padrões para receber e servir bem à mesa” (idem, p.75).
Outra publicação importante para a gastronomia brasileira foi O Cozinheiro Nacional,
que se supõe de 1890, também sem autor conhecido. Consta, na obra, uma tabela que permite
a substituição de produtos estrangeiros por ingredientes nacionais (alcachofra por palmito,
castanhas por pinhões, por exemplo), numa tentativa de valorizar a culinária brasileira, ainda
que não esteja clara a intenção de se refletirem os hábitos alimentares da população na época
ou de se mostrar uma cozinha totalmente brasileira (FREIXA e CHAVES, 2015).
54

Figura 4 – O primeiro livro brasileiro de receitas, O cozinheiro imperial ou Nova arte de cozinha da
cidade e do campo em todos os seus ramos, publicado por R.C.M. em 1839.

Mesmo após a Independência do Brasil, em 1822, e apesar da sistematização da


culinária brasileira, a corte ainda tinha os requintes franceses como modelo, tanto no modo de
comer, como na forma de se vestir e nos saraus, o que reforça a ideia de que a gastronomia
francesa já era associada ao “bem comer” e às classes mais ricas, funcionando como um modo
aristocrático de distinção. Isso se salienta ainda mais com a diversificação da alimentação da
aristocracia e das classes ascendentes brasileiras, as quais, com a abertura dos portos,
passaram a primar pelo luxo e sofisticação, em contraste com a alimentação das classes
populares e nas zonas rurais, que não mudara muito desde o tempo do Brasil colônia.
Até 1828 (marco temporal do início da pesquisa de Monteleone), “o abastecimento da
cidade [São Paulo] era provido por mulheres pobres, forras e escravas, com a venda miúda de
55

alimentos preparados em casa, recolhidos nas ruas ou frutos de pequenas plantações em


quintais ou áreas livres” (MONTELEONE, 2015, p.23). Nesse período, conforme crônicas e
relatos de viajantes, havia poucas hospedarias, algumas tavernas e ainda menos pensões. Não
havia muita opção para comer fora. A partir de 1867, a estrada de ferro ligando São Paulo ao
Porto de Santos, além de escoar a produção de café, traz novos produtos importados e
imigrantes, com outras experiências e gostos culinários.
A partir da segunda metade do século 19, surgem os primeiros hotéis em cidades
importantes, como Rio de Janeiro e São Paulo, que serviam comida francesa e ofereciam
serviço à la carte. “Entre as elites urbanas, tornou-se comum fazer refeições e festas nesses
espaços” (GALVÃO, 2015, p.197).
“Por influência dos costumes franceses, as mulheres começaram a aparecer em público
frequentando confeitarias, teatros e casas de chá, que ganharam as ruas” (GALVÃO, 2015,
p.210). A Confeitaria Colombo, inaugurada em 1894 na cidade do Rio de Janeiro, é um
exemplo de um desses estabelecimentos da belle époque carioca, em estilo art nouveau, que
existe até hoje. Segundo Dória, “o século 19 e a influência francesa representam uma inflexão
poderosa na nossa cozinha” (DÓRIA, 2014, p.18).
A Proclamação da República e o “fim” da monarquia brasileira dão início a um novo
ciclo econômico no país, que passa a trilhar o difícil caminho para se tornar uma nação
industrializada e desenvolvida (ao menos era isso o que propagava o discurso da época). A
burguesia e os proprietários de terra, que garantiram seu prestígio e posição de privilégios no
novo sistema político, entretanto, seguiam seus modos e consumo profundamente
influenciados pelas modas europeias, especialmente francesas.
A partir de 1890, ocorre forte êxodo rural em direção aos centros urbanos e o
surgimento de um mercado consumidor interno, assim como a emergência da dinâmica do
trabalho na indústria, que modifica profundamente o modo de vida das pessoas. O modo de
comer se transforma substancialmente: os trabalhadores da incipiente indústria, por exemplo,
não podem mais almoçar em casa e passam a frequentar botecos e botequins que servem
comida caseira perto das fábricas (FREIXA e CHAVES, 2015). Nasce, então, o “prato
executivo” ou o “prato feito”: refeições preparadas de forma rápida e ao gosto dos clientes, de
caráter popular, para serem consumidas na hora de almoço.
O surgimento dos restaurantes no Brasil, que data do início do século 20, se dá
principalmente nas cidades do Rio de Janeiro (antiga capital do Império, que desde o século
19 já era o modelo de cultura e costumes à boa mesa, já que foi a cidade que recebeu a corte
portuguesa e a família real) e de São Paulo (emergente polo econômico, onde a
56

industrialização se deu com mais força, recebendo grandes contingentes de imigrantes


estrangeiros).
Na capital carioca, destaca-se a culinária internacional do Hotel Copacabana Palace,
inaugurado em 1923, cujo restaurante foi montado por uma equipe formada pelo renomado
chef francês Auguste Escoffier. Assis Chateubriand apelidou o restaurante de “Bife de Ouro”,
em razão do preço cobrado pelo filé (FREIXA e CHAVES, 2015, p.218).
Em São Paulo, com o fortalecimento da atividade industrial e o crescimento da cidade,
aumentou a demanda das classes ricas urbanas (que também cresciam) por estabelecimentos
como confeitarias, salões de chá e restaurantes onde, desde o século anterior, essas classes já
praticavam seu lazer. É assim que surgem os primeiros restaurantes na capital paulista,
trazendo consigo as características das famílias imigrantes italianas, principalmente29.
Inaugurado em meados da década de 1850, o Hotel do Comércio orgulhava-se de ter
um chef europeu, uma sala de bilhar e uma padaria que servia pão de trigo. O Hotel de France,
da mesma época, também servia os convivas em salão de refeição ou em aposentos
particulares (MONTELEONE, 2015, p.44).
Em dezembro de 1892 é inaugurado o café-restaurante Progredior. Para a inauguração,
que foi anunciada em jornais e reuniu a nata da elite paulistana, o cardápio era todo redigido
em francês (como era moda e sinal de requinte), acompanhado por 17 marcas de vinhos
também franceses30. Entretanto, desentendimentos entre os sócios e até com a lei levaram o
restaurante a ser fechado e todos os bens leiloados em 1893, quase um ano após o jantar de
inauguração.
A história dos cafés e restaurantes de São Paulo nessa época pode ser melhor
apreendida através das pesquisas e investigações de diversos historiadores, que se debruçaram
sobre livros, jornais, fotografias e relatos de viajantes para nos ajudar a compreender o
crescimento vertiginoso da cidade no começo do século 20. O fotógrafo Militão Augusto de
Azevedo é um dos principais expoentes desse registro.
As capitais brasileiras, e especificamente, a paulista, passam por um período de
efervescência e profunda transformação no começo do século 20. Com o fim da Monarquia e
início do período republicano, o Brasil acelera a implantação de seu incipiente parque
industrial, o que promove um movimento de migração interna em direção aos centros
29
Entre os primeiros restaurantes paulistanos, que datam do fim do século 19, destacam-se Carlino, inaugurado
em 1881, e a Brasserie Paulista, de 1903, de Vittorio Fasano, cuja família abriria o famoso restaurante Fasano,
em 1907 (FREIXA e CHAVES, 2015, p.217-218; AMARAL, 2016, p.184).
LOUREIRO, Edison. “Progredior, o café-restaurante mais chic da belle époque paulistana”. Disponível em:
30

https://saopaulopassado.wordpress.com/2015/04/02/progredior-o-cafe-restaurante-mais-chic-da-belle-epoque-
paulistana/. Acesso em 04/10/2019.
57

urbanos: as cidades cresciam muito rapidamente. “A dinâmica da industrialização mudou o


modo de vida das pessoas. Impôs, por exemplo, horários aos trabalhadores, o que não
permitia que voltassem para casa na hora do almoço. A solução veio com os botecos e
lanchonetes que passaram a servir comida caseira nas proximidades das fábricas” (FREIXA e
CHAVES, 2015, p.216).
Os restaurantes populares se espalham pelos centros urbanos, inclusive cidades do
interior. Já nessa época, as mulheres trabalhavam produzindo comida em casa e vendendo
para esses mesmos trabalhadores, como marmitas, quitutes, doces, bolos, tortas, entre outros,
e comercializavam em ruas, quermesses, igrejas (FREIXA e CHAVES, 2015, p.217).
Especificamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, o começo do século 20 é marcado,
por um lado, pelo aumento dos estabelecimentos mais populares que ofereciam comida
simples e visavam os trabalhadores, por outro, pelo incremento de estabelecimentos de
inspiração francesa, voltados à elite.
Em São Paulo, especificamente, o século 20 também trouxe milhares de imigrantes
que trouxeram consigo tradições culinárias, receitas e modos de preparo, e expressavam e
preservavam sua cultura de origem através da alimentação.
Segundo Dória (2014: 164),
Assim, o século XX paulista é inaugurado por uma dualidade alimentar
crescente, contrapondo a cultura “caipira” à cultura dos imigrantes. A capital,
sobretudo, aprofundará a mitologia culinária desses imigrantes – agora
também incluídos os árabes, espanhóis, alemães, japoneses etc. -, projetando
a si mesma como espaço alimentar metropolitano, e não “regional. O caipira
e sua culinária serão estigmatizados como inferiores, atrasados e desprovidos
de interesse.

A entrada de milhares de imigrantes europeus no país é fundamental para entender


esse momento: colônias que procuravam manter suas características de origem na região Sul
(principalmente alemães) e famílias que vinham trabalhar na lavoura do café no Sudeste. “No
começo do século 20, os italianos já somavam 50% da população da capital, muitos deles
estabelecendo-se nas vizinhanças das fábricas” (HALL, 2004 apud WALDMAN, 2018,
p.121).
Janine Collaço (2009) investiga o papel da cozinha na formação de identidades na
cidade de São Paulo a partir da ótica dos imigrantes italianos e as cantinas, observando como
a “italianidade” é uma percepção flexível. A imigração é um fator importante para pensar São
Paulo no início do século, sobretudo considerando um movimento das classes dominantes e
proprietárias de substituição da mão de obra escravizada pelos imigrantes. De acordo com
58

Collaço (2009: 19) “Entre 1870 e 1920 chegou cerca de 1 milhão de italianos, quase 40% da
soma total de imigrantes, em um total de 2,5 milhões. Do total de italianos, 1,4 milhões, 70%
permaneceram em São Paulo.”
Cada região brasileira, cada capital, cada vila que se tornou cidade nesse período, tem
sua própria história sobre como surgiram os estabelecimentos de alimentação, em que medida
foram influenciados pelo contingente imigrante ou não, qual o impacto da criação das
indústrias na oferta de comida preparada. Analisar cada uma dessas histórias, todavia, foge
dos objetivos desta tese e amplia o escopo de análise que restrinjo à cidade de São Paulo31.
Nos anos 1970, as primeiras redes de hotéis internacionais chegam ao Brasil e levam
chefs franceses a liderarem suas cozinhas. Eles não apenas treinam a brigada, mas acabam por
se fixar no país e aqui constroem suas carreiras. Diversos proprietários de restaurantes
procuram renovar e reconfigurar suas cozinhas, aos moldes do que aconteceu com o
Copacabana Palace, e investem em “importar” especialistas. Contratados para assumir as
cozinhas de luxuosos restaurantes, chegam ao Brasil vários chefs franceses, principalmente ao
Rio de Janeiro, como Gaston Lenôtre, Roger Vergé, Claude Troisgros, Emmanuel Bassoleil,
Laurent Suaudeau, o chef confeiteiro Dominique Guérin e o mítico Paul Bocuse32
(AMARAL, 2016).
Considerados “chefs franceses de alma brasileira” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.227),
eles iniciaram uma nova fase da gastronomia brasileira. Muitos deles, inclusive Bocuse,
participaram, na França, de uma verdadeira revolução gastronômica, que ficou conhecida
como nouvelle cuisine: um movimento que ia na contramão da gastronomia francesa
tradicional (aristocrática, baseada em molhos e receitas “sacralizadas”, de longos períodos de
cozimento e pratos elaborados), trabalhando com sabores mais “limpos” e leves, valorizando
os ingredientes e adotando visuais inovadores (AMARAL, 2016).
Esses jovens chefs encontraram no Brasil um cenário muito distinto das cozinhas
profissionais francesas: “As equipes eram mal treinadas, e as técnicas de apresentação e
serviço pareciam ter parado no tempo” (FREIXA e CHAVES, 2015, p.257). Os trabalhadores
de cozinha, nesse período eram pessoas de origem social pobre, muitos migrantes do Norte e
Nordeste do país, sem treinamento formal. Entretanto, movidos também pelo espírito
civilizador de colonizadores, os franceses “descobriram” os ingredientes brasileiros, os quais,
na visão deles, ainda eram desvalorizados, e passaram a aplicar as técnicas francesas ao

31
Sobre a história da alimentação no Brasil, remeto ao livro de Dolores Freixa e Guta Chaves “Gastronomia no
Brasil e no Mundo” (Ed. Senac, 2015), que utilizei largamente nessa tese.
Paul Bocuse veio ao Brasil em 1977 para dar uma série de palestras e cursos voltados aos profissionais da área,
32

mas sua vinda precipitou também o desembarque de muitos jovens chefs franceses.
59

incorporá-los em suas criações culinárias. A maior parte desses chefs permaneceu no Brasil
indefinidamente, alguns até hoje, abrindo os próprios restaurantes e tornando-se estrelas
culinárias, como é o caso de Claude Troisgros33, que assumiu o lugar de Lenôtre no
restaurante Le Pré Catelan. Não há menção de mulheres chefs francesas nesse movimento,
apenas homens.
Os anos de 1980 e 1990 no Brasil foram marcados por desemprego crescente, “fruto
de intensa reestruturação micro-organizacional em um contexto de intensa mudança
macroeconômica, associada à crise, à nova política regulatória da ação do Estado na
economia, com destaque para célere abertura comercial” (GUIMARÃES et al., 2016, p.26).
A partir dos anos 1990, com a chamada “abertura econômica”, uma agenda de
diversificação das importações permitiu que uma série de produtos inundasse o mercado
brasileiro. Conforme Baltar e Krein (2013: 273), “Ao abrir-se ao comércio e à finança
internacional em um momento de grande interesse por aplicações financeiras em mercados
emergentes, o desempenho da economia foi beneficiado, aumentando o consumo e
diminuindo a inflação, com forte aumento de importações de bens manufaturados”.
Entretanto, essa abertura da economia brasileira para a economia mundial nos anos 1990 teve
efeitos econômicos desastrosos, como os autores revelam:

Na realidade, a entrada na globalização foi precipitada e passiva, porque foi


usada para reduzir a inflação, que tinha ficado muito alta com a crise da
dívida externa e o modo como ela foi enfrentada. A ilimitada importação
barata de produtos manufaturados, coberta pela entrada de capital, ajudou a
baixar a inflação, mas agravou os efeitos da falta de ação do poder público
para desenvolver o sistema de produção de bens de modo a ampliar a
exportação e evitar o aumento desproporcional da importação (BALTAR e
KREIN, 2013, p.280).

Do ponto de vista da gastronomia brasileira, a entrada de mercadorias e produtos que


não eram produzidos aqui com preços mais acessíveis (deixam de ser caríssimos e se tornam
apenas caros), começa a consolidar de fato uma haute cuisine associada à gastronomia
brasileira, uma vez que se tornou possível utilizar gêneros alimentícios até então indisponíveis
no país (como caviar, trufas, entre outros). Essa gastronomia brasileira sofisticada que nasce
nos anos 1990 conjuga as técnicas, o requinte e os ensinamentos dos grandes chefs franceses e
os ingredientes nacionais, exóticos e “inexplorados”.

33
Claude Troisgros é filho de Pierre e sobrinho de Jean Troisgros, os dois irmãos proprietários de um dos mais
importantes e influentes restaurantes franceses do século passado e até os dias de hoje, Les Frères Troisgros,
considerado um dos epicentros da nouvelle cuisine. No Brasil, tornou-se um chef respeitado e reverenciado, sem
o peso do legado do pai e do tio. Celebridade televisiva, hoje ele é jurado e protagonista de diversos programas
culinários no canal de TV por assinatura GNT.
60

(…) é possível afirmar que nos anos 1990 começou a se delinear uma
mudança no perfil do cozinheiro profissional no país. No que tange ao cargo
de chef, à função de líder, houve uma retomada desse espaço por cozinheiros
brasileiros. Mas estes não eram migrantes nordestinos formados por mestres
estrangeiros e sim jovens de estratos médios formados por meio de estágios
e/ou cursos no exterior e que, a partir de então, poderiam entrar na cozinha
também via cursos superiores ofertados no país (FREIXA e CHAVES, 2015,
p.199).

É recorrente na discussão sobre o trabalho em cozinhas e também na fala de vários


entrevistados a questão dos trabalhadores e trabalhadoras nordestinos que ocupam as cozinhas
de restaurante. Seja em tom preconceituoso, seja apenas a título de constatação, as pessoas do
Nordeste que migram para os centros urbanos do Sudeste encontram uma possibilidade de
trabalho nas cozinhas de restaurante porque, como veremos, este é um trabalho pesado e mal
remunerado, que não exige qualificação na entrada. A presença dos trabalhadores e
trabalhadoras nordestinos, portanto, refere-se à vulnerabilidade que eles/as vivenciam em
situação de migração, que os leva a aceitarem penosas condições de trabalho.
A partir dos anos 2000, portanto, é possível observar uma mudança substancial no
trabalho em cozinhas profissionais. Ainda que a maior parte desse trabalho continue sendo
realizada por pessoas com pouca ou nenhuma qualificação, que seja uma ocupação mal paga e
com baixos salários, a gastronomia, agora entendida como culinária sofisticada, adquire novos
contornos sociais.

1.4. Os restaurantes a partir dos anos 2000

A partir dos anos 2000, o Brasil vive uma dinamização econômica, com aumento do
emprego formal, do consumo interno, do acesso ao crédito e crescimento do setor de serviços.
Segundo dados da Rais, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no período entre 2008
e 2018, houve um crescimento médio de 66% na quantidade de estabelecimentos de
alimentação no Brasil34.

Tabela 1 - Restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação por região natural.


Brasil, 2008 a 2018.
Ano 2008 2018 2018-2008 Variação %
Norte 3.364 7.298 3.934 117%

34
Como veremos adiante, trata-se dos estabelecimentos enquadrados nas CNAEs 56.1 e 56.2.
61

Nordeste 17.041 34.411 17.370 102%


Sudeste 78.257 124.330 46.073 59%
Sul 30.996 45.991 14.995 48%
Centro-Oeste 9.942 20.242 10.300 104%
Total 139.600 232.272 92.672 66%
Fonte: RAIS/ MTE. Elaboração própria.

A região que apresentou o maior crescimento relativo foi a Região Norte (117%, foi de
3.364 para 7.298 estabelecimentos) e a região com o menor crescimento foi a Sul (48%, de
30.996 para 45.991 estabelecimentos). Todavia a região com o maior número de
estabelecimentos é a Região Sudeste, que em 2018 contava com 124.330 estabelecimentos de
alimentação (e apresentava um crescimento de 59% em relação a 2008). Somente o Estado de
São Paulo teve um aumento de 53,7% desses estabelecimentos entre 2008 e 2018. Esse
crescimento, entretanto, não é homogêneo.

Gráfico 1 – Crescimento de estabelecimentos de alimentação e outros serviços de comida


preparada, por tamanho (número de funcionários). Brasil, 2008-2018.

79%
70%
65% 66%

52%

25% 24%
13%
5%

Fonte: RAIS/ MTE. Elaboração própria.

O crescimento nacional é maior entre os estabelecimentos que tem 0 empregados, o


que pode indicar um aumento da abertura de negócios que não tem contratação de força de
trabalho – empreendimentos que mobilizam mão de obra familiar ou informal. O menor
crescimento está entre o conjunto de estabelecimentos de grande porte, de 100 a 249
funcionários (5%), de 250 a 499 funcionários (13%) e acima de 500 funcionários (24%),
como podemos ver no gráfico 1.
62

O incremento na oferta dos estabelecimentos de alimentação corresponde a um


aumento da demanda por alimentação fora do domicílio, que por sua vez está imbrincado ao
aumento do emprego no período. De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos
Familiares (POF) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017-2018, do
total das despesas das famílias brasileiras com alimentação, quase um terço (32,8%) é
dedicado a refeições fora do domicílio35. No total nacional, a POF 2017-2018 revela que as
famílias brasileiras destinam, em média, 32,8% da sua renda para alimentação fora do
domicílio, sendo que a maior concentração desse gasto (22,2%) para almoço e jantar (ou seja,
refeições, e não lanches ou bebidas).
Leal (2010: 123) aponta uma série de elementos que influenciaram a redução no
tempo destinado pelas famílias à alimentação em casa: a crescente profissionalização das
mulheres, a elevação do nível de vida e de educação, a generalização do uso do carro e o
maior acesso da população ao lazer e às viagens. A alimentação fora do domicílio está cada
vez mais presente na realidade das famílias brasileiras.
Um novo ritmo de vida, mais rápido, mais intenso, que demanda uma otimização
constante do tempo, característico dos grandes centros urbanos, faz prosperar serviços de
alimentação rápida, como o fast-food, mas não apenas os restaurantes dessa natureza. Os
dados revelam um crescimento da alimentação fora do domicílio na zona rural, o que pode ser
considerado consequência do aumento do emprego feminino e da mudança do tipo de trabalho
nessa região (do trabalho informal, familiar, para o trabalho profissional fora da própria
produção). Com o aumento da demanda por comida fora do domicílio, aumenta a quantidade
de estabelecimentos de alimentação e a oferta de comida preparada em restaurantes,
lanchonetes e outros locais e, consequentemente, há aumento na força de trabalho empregada
nesse setor.
No Brasil, eram 278.592 pessoas formalmente empregadas como Cozinheiros em
estabelecimentos como restaurantes e caterings em 2018. Estabelecendo um período de dez
anos, observa-se que, em relação a 2008, houve um decréscimo de 1,8% no total (eram
283.588 formalmente empregados). A queda foi mais forte entre os homens (-8,6%), já que as
mulheres apresentam um ligeiro aumento no período (1,9%), mas elas são a grande maioria e
“equilibram” a média. As mulheres são, em 2018, 67,7% do total de trabalhadores formais no
segmento (188.516).

35
“Comer fora de casa consome um terço das despesas das famílias com alimentação”, publicado em 04/10/2019. Disponível em
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25607-comer-fora-de-
casa-consome-um-terco-das-despesas-das-familias-com-alimentacao. Acesso em 18/11/2019.
63

Gráfico 2 – Homens e mulheres empregados em restaurantes e outros estabelecimentos


de alimentação. Brasil, 2008-2018.

400000

350000

300000

250000
Homens
200000
Mulheres
150000 Total

100000

50000

0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: RAIS/ MTE. Elaboração própria.

Conforme observado por Krein (2013: 7), o mercado de trabalho brasileiro na primeira
década dos anos 2000 foi marcado por um movimento contraditório. De um lado, há uma
melhora em alguns indicadores, como o crescimento do emprego formalizado e consequente
redução da informalidade; a queda do desemprego; uma relativa melhora na renda do
trabalho; e uma diminuição da desigualdade social. De outra parte, também ocorria um
“processo que recria condições mais precárias de trabalho”, entre as quais ele destaca a
terceirização, a intensificação do trabalho, o avanço do componente variável da remuneração
(e, portanto, menor incidência de contribuição social e previdenciária), a insegurança no
trabalho e a alta rotatividade. Krein entende essa tendência como “parte de um movimento de
transformações do capitalismo contemporâneo em que prevaleceram as teses da
flexibilização”.
Essa análise está em consonância com dados elaborados pelo Dieese36 (2019), segundo
os quais o período de uma década entre 2004 e 2014 demonstrou aumento da formalização do
mercado de trabalho, crescimento do emprego assalariado com carteira assinada e redução do
assalariamento sem carteira e dos trabalhadores autônomos. Entretanto, a partir de 2015, em
função da crise econômica, houve reversão desse movimento, com aumento expressivo do

36
“Uma análise do período 2012-2018 sob a ótica do Índice da Condição do Trabalho (ICT – DIEESE)”.
Disponível em https://www.dieese.org.br/analiseict/2019/estudo2012-2018.html. Acesso em 21/11/2019.
64

desemprego e da informalidade. Desde 2017, observou-se uma fraca recuperação da


economia, que implicou resultados dúbios para o mercado de trabalho: a renda média do
trabalho manteve-se estável e houve redução do emprego formal. Segundo essa análise, a
queda do desemprego se deu pela elevação da informalidade, o que coloca dúvidas sobre a
qualidade dessa recuperação.
A recuperação do mercado de trabalho brasileiro também se deveu a um conjunto de
políticas públicas como o salário mínimo, o Bolsa-Família, maior acesso ao crédito, apoio à
agricultura familiar e aumento do investimento público (KREIN, 2013, p.11). Quase todas as
políticas desse conjunto estão sendo desmontadas e desconstruídas nesse momento, e seus
efeitos sobre o mercado de trabalho tendem a diminuir.
É importante ressaltar que o mercado de trabalho dos trabalhadores e trabalhadoras em
cozinhas tem uma forte influência da rotatividade. Tomando-a como “um movimento
recorrente de substituição de parte da força de trabalho utilizada em cada ciclo produtivo
anual, por meio de demissões e admissões de trabalhadores que são realizadas pelo conjunto
das unidades produtivas do país” (DIEESE, 2017, p.79), tratamos aqui de um segmento
dentro do setor de serviços onde há intensa movimentação de admissão e demissão.
No caso brasileiro, ainda segundo o Dieese (2017: 83), a maior parte das demissões na
última década ocorreu por iniciativa do empregador, sem justa causa, mas houve significativo
crescimento do desligamento a pedido do trabalhador, o que pode refletir a possibilidade de
busca por melhores oportunidades de emprego, em termos de remuneração e condições de
trabalho, considerando um mercado de trabalho mais aquecido.
A partir de 2015, entretanto, tendo a crise econômica intensificado seus efeitos no
Brasil, observou-se uma retração das demissões por iniciativa do trabalhador e um aumento
das demissões sem justa causa, por iniciativa do empregador. Tal fato parece demonstrar um
arrefecimento no mercado de trabalho, que teve como consequência o aumento dos
desligamentos. Também foi sentida no segmento de alimentação uma queda no estoque de
empregos.
Os empregos formais no segmento de restaurantes e outros estabelecimentos de
alimentação mantiveram um movimento crescente até o ano de 2014, quando os efeitos da
crise econômica se fizeram mais presentes no país. A força de trabalho feminina sentiu mais
intensamente esses efeitos, tendo diminuído mais do que a masculina entre 2014 e 2018.
Um segmento profissional composto por larga maioria de mulheres, entretanto, não
significa necessariamente mais igualdade em suas fileiras. Esse definitivamente não é o caso
dos trabalhadores e trabalhadoras em cozinha. Apesar de serem maioria entre os Cozinheiros
65

Gerais, as mulheres recebem salários menores. Ainda de acordo com os dados da Rais,
conforme o salário aumenta, menos mulheres se encontram e maior é a concentração de
homens. No Brasil, enquanto as mulheres são maioria entre os empregados que recebem até 2
salários mínimos, também as faixas salariais que concentram a maioria dos trabalhadores
nesse setor vão diminuindo conforme se avança na escala de salários37.

2. As ocupações e os processos de trabalho na cozinha

É importante ressaltar que o objetivo dessa pesquisa não era empreender uma
investigação mais ampla sobre o trabalho em toda e qualquer cozinha, mas a cozinha de
restaurantes e outros serviços de alimentação, como bufês. Cozinhas de hospitais, industriais
ou mesmo de navios implicam ambientes de trabalho completamente diferentes, outro tipo de
produção, outro tipo de organização e condições de trabalho bem distintas.
Em hospitais, ainda que exista um cuidado muito grande e algum investimento em
termos de hospitalidade, o trabalho dos cozinheiros recebe a influência determinante de
nutricionistas e outros especialistas em alimentação para pessoas em estado de debilidade ou
com inúmeras restrições alimentares. Uma vez que tal alimentação é voltada para os
pacientes, pessoas que passaram por procedimentos cirúrgicos, intervenções, ou que estão
enfrentando algum problema de saúde, esse tipo de preparo é orientado por outros princípios,
que não os dos restaurantes comuns. Além disso, em termos de diretrizes de saúde e
segurança, contaminantes e alergênicos, esse tipo de cozinha não pode ser aproximado da
cozinha comercial de restaurante.
A cozinha industrial, entendida como um refeitório ou um bandejão, também não se
enquadra no escopo dessa investigação. A cozinha em larga escala – diferente de um evento
em que um bufê tem que servir centenas de pessoas durante alguns dias – também depende de
uma diretriz dada por um/a nutricionista, implica uma determinada organização do trabalho,
um espaço de trabalho que comporte um grande número de funcionários para servir milhares
de refeições. O ganho aqui é em escala, não qualitativo. O cardápio é limitado a certo número

37
Vale ressaltar que os salários pagos a esses trabalhadores são tão baixos que os dados da Rais são organizados
por faixas de remuneração que seguiriam a ordem “5 a 7SM”, “7 a 10SM”, “10 a 15SM”, “15 a 20SM” e
“Acima de 20SM”, mas a partir da faixa de 4 a 5SM, o percentual de trabalhadores é muito baixo (são 614
trabalhadores, ou 0,22% do total). Também é digno de nota que os dados têm 8.094 trabalhadores não
classificados, ou sem informação correspondente.
66

de elaborações possíveis e deve mudar a cada dia, dentro de uma rotatividade (ou não), e
geralmente tem o arroz e o feijão como base.
O trabalho em cozinhas de navios, embora interessantíssimo do ponto de vista das
condições de trabalho, não será tratado aqui. De forma geral, tal trabalho se dá sob condições
muito específicas. Segundo Paula (2018: 138), “A quantidade e profundidade dos estudos
sobre o assunto [trabalho em navios] não dão conta de explicar a gravidade do problema da
precarização do trabalho em navios de cruzeiro, especialmente ao que toca a jornada
excessiva de trabalho dos tripulantes”. De acordo com essa pesquisadora, o trabalho em
navios se dá por meio de contratos de tempo determinado, seis meses, sem direito a folga e
com jornadas mínimas de 12 horas por dia.
Em sua pesquisa de doutorado, ainda em andamento, a autora investiga o trabalho em
embarcações, mas não olha especificamente para os trabalhadores das cozinhas. Há uma série
de ocupações e trabalhos nos navios, desde as equipes de alimentação (compreendendo o
pessoal de cozinha e de salão), pessoal de limpeza, camareiras, recreadores, vendedores, entre
muitos outros. Pensando especificamente nos trabalhadores e trabalhadoras das cozinhas,
seria complicado comparar os cozinheiros isolados, com contratos por tempo determinado
estabelecidos com empresas marítimas (e não do ramo de alimentação), sendo pagos em euros
ou dólares, sem contato com a família, sem folgas, sem o deslocamento de casa para o
trabalho, com os trabalhadores e trabalhadoras “comuns”, pois são realidades de trabalho
completamente diferentes. Esse seria tema para outra pesquisa.
Esta pesquisa investiga as condições de trabalho em cozinhas de restaurantes e outros
estabelecimentos de comida preparada, como lanchonetes, pizzarias etc. e serviços de
alimentação, como bufês e catering. Por isso, no trabalho com os dados do MTE, utilizaremos
a ocupação “Cozinheiro Geral”, conforme descrito pela CBO, excluindo as ocupações
descritas acima.
Para compreender a cozinha como um local de trabalho, é fundamental conhecer os
processos e as formas que esse trabalho adquire. A cozinha profissional difere muito da
cozinha doméstica, de acordo com os entrevistados. Seja pela escala de produção (“Aí você
não vai colocar duas xícaras de arroz no fogo, você vai colocar é 10kg”)38, seja pela forma de
produzir e pela intensidade do trabalho (“Então no dia que tiver uma demanda muito alta,
você tem que acelerar”) 39.
Segundo Galvão (2015: 46),

38
Roseli, 41 anos, cozinheira.
39
Jorge, 40 anos, sushiman.
67

A cozinha dos restaurantes é caracterizada como um espaço que mistura


ordem e caos, que é orquestrado a partir de disciplinas e hierarquias
militares. O trabalho é classificado como árduo, fisicamente e
emocionalmente extenuante, com frequência e jornadas intensas e não
convencionais, sendo realizado sob muita pressão. Para se sair bem, os
cozinheiros precisam adquirir resistência física e emocional e incorporar o
gesto, o movimento e o tempo adequados à lógica de organização deste
espaço.

Credita-se a Auguste Escoffier a racionalização do trabalho em cozinhas


profissionais como a conhecemos hoje (FRANCO, 2010). Por volta de 1889, quando foi chef
no Hotel Savoy, na França, ele organizou o trabalho culinário a partir de sua experiência no
exército e padronizou o trabalho orientado por praças e a hierarquia da cozinha. “Não mais os
chefs individuais construíam os pratos do começo ao fim. Em seu lugar, as cozinhas eram
tripuladas por um número de cozinheiros o qual cada um contribuía para uma elemento
diferente do prato” (HARRIS e GIUFFRE, 2015, p.24)40.
O processo de trabalho revela a lógica de produção que o rege. Apresentarei os cargos
que compõem a hierarquia dentro da cozinha, partindo de um modelo idealizado por Escoffier
no século 19, e ainda vigente nos dias de hoje, que demonstra como o trabalho está dividido.
Em seguida, exponho as narrativas de alguns profissionais sobre suas rotinas profissionais e,
através de suas descrições, os processos de trabalho.
O trabalho culinário é dividido em praças, cada uma dedicada a um tipo de preparo,
como a praça das massas ou a praça de carnes. A equipe de trabalho pode ser chamada de
brigada, e, dependendo do tamanho da equipe, cada praça tem um líder, chamado chef de
brigada ou chef de partie, responsável pela produção da praça e supervisão do trabalho. Cabe
ao chef executivo – o chef principal – organizar e coordenar o trabalho dos chefs de brigada,
no caso de se tratar de uma cozinha muito grande, com muitos funcionários.
De acordo com a descrição de um cozinheiro: “A cozinha funciona separada em
praças, cada praça com sua especialidade e daí a gente trabalha com um fluxograma. Ou seja,
tudo começa numa ponta, finaliza na outra e volta” 41.
Para entender como funciona esse tipo de produção, é preciso entender que um prato é
composto de vários elementos, e que cada profissional vai ser responsável por um (ou mais)
deles. Por exemplo, há uma brigada que cuida das carnes (que os cozinheiros gostam de
chamar “a proteína”). Todas as carnes de todos os pratos serão preparadas, limpas,

40
Tradução livre de “No longer individual chefs craft dishes from the start to finish. Instead, kitchens were
manned by a number of cooks who each contributed a different element to a dish”.
41
Matias, 25 anos, cozinheiro.
68

porcionadas, cortadas, assadas, cozidas, fritas, grelhadas, seladas e servidas pela mesma
pessoa, em todos os pratos. Os outros elementos que acompanham a carne serão preparados
nas outras praças (salada, massa, legumes etc.). O prato, portanto, vai passar por todas as
praças, cada uma contribuindo com o elemento que lhe compete, até que o prato esteja
completo. Cabe ao chef (ou ao sous-chef, se ele estiver como responsável na ausência do chef)
verificar se o prato está completo e se todos os elementos estão corretos, para então servir. É
isso que quer dizer que o prato “começa numa ponta” e “volta”.
Entre as praças, há outra separação, anterior, conforme o próprio Matias descreve:
A cozinha é dividida em praças. A praça funciona como? A gente divide a
cozinha basicamente em dois, em três, mas em duas vertentes: parte quente,
parte fria. Parte fria vai trabalhar com tudo que é basicamente sai da
geladeira e é montagem. Tudo que não precisa de temperatura ou uma
temperatura mais moderada pra ser a montagem. Então, saladas, terrines,
toda parte de confeitaria pode estar como especialização, como parte fria,
mesmo, não quer dizer que você não usa o fogo pra produzir, você usa. Mas
aí na hora de montagem ela já tá ali, é só a questão da montagem. Então,
como se define, dentro desse restaurante? A gente tem a praça de guarnição,
que guarnição faz guarnição e chapa. A chapa faz a proteína do seu prato e a
guarnição faz todo o acompanhamento. Aí entre esses dois pode ter alguma
coisa, então pode ter um risoto, pode ter um masseiro42, pode ter um saucier,
que é a parte de molho. Aí vai depender de cada restaurante ter esse tipo de
especificação. Aí cada um é responsável pela sua área, então a pessoa que é a
parte de proteína vai limpar a proteína e vai ter a proteína pra finalizar. A
pessoa que é a parte de guarnição vai cozinhar batata, vai cozinhar a massa,
vai cozinhar o arroz, pré-cozer o arroz, tal. A parte fria fica na separação da
salada.

Essa divisão pode ser melhor descrita segundo um fluxograma da cozinha, que
apresento a seguir.

42
Pessoa que faz as massas.
69

Figura 5:“La brigade de cuisine”43

O/A chef executivo/a aparece aqui acima do/a chef de cozinha. Nos casos em que
existem essas duas ocupações, o/a chef executivo tem um trabalho mais distante da cozinha.
Geralmente, é o responsável pela identidade da comida, a pessoa que elaborou o cardápio, que
fala publicamente em nome do restaurante, passa algum tempo no salão conversando com os
clientes, tem uma relação direta com os proprietários ou, inclusive, que é sócio/a do

43
Disponível em https://blog.close.com/3-lessons-sales-managers-can-learn-from-professional-kitchen-chefs.
Acesso em 19/09/2019.
70

estabelecimento. Em São Paulo, existem chefs executivos que trabalham em vários


restaurantes, que passam apenas alguns dias na semana pela cozinha, fazendo muito mais um
acompanhamento do que um trabalho de preparo. Frequentemente, sua relação se dá apenas
com o/a chef de cozinha.
O/A chef de cozinha é o líder, o comandante da cozinha. Discutiremos suas
atribuições e seu trabalho pormenorizadamente mais adiante.
Duas figuras desse organograma, entretanto, praticamente não existem mais. Aboyeur
é o profissional responsável por fazer a ligação entre a cozinha e o salão (ele/a se relaciona
direto com o/a chef, e não com os/as cozinheiros/as). Ele/a traz os pedidos e avisa os garçons
quando estão prontos. Trata-se de uma ocupação cada vez mais rara, à medida que essa
comunicação é realizada diretamente entre os garçons e a cozinha, por meio de sistemas de
comandas eletrônicas ou de papel. Também é comum que o/a chef (ou o/a sous-chef) fique no
“bocal” ou “boqueta” – o espaço que liga a cozinha e o salão – e receba os pedidos, de
maneira que ele/a também tem controle sobre o que é pedido e o que sai.
Communard também é uma ocupação que quase não existe mais. É o responsável por
preparar a alimentação dos funcionários. Os trabalhadores da cozinha não comem a mesma
comida que é feita para os clientes. Durante a pesquisa, muitos reclamaram da qualidade da
comida que é servida para os funcionários – geralmente com ingredientes mais baratos para
reduzir custos. Tal ocupação também está desaparecendo como especialização dentro da
cozinha, pois essa preparação recai sobre outro funcionário44. Encontrei uma estagiária que
preparava a comida dos funcionários e, em alguns casos, o próprio chef.
Sous-chef ou subchefe seria o “imediato”, o braço direito do chef. Aquele/a que é chef
quando o/a chef não está. Geralmente, é o profissional que está mais ligado aos trabalhadores,
coordenando os preparos. Também precisa conhecer muito bem todas as praças e saber
preparar tudo que está no cardápio, estar sempre pronto a assumir o lugar do/a chef. De
acordo com a descrição de Galvão (2015: 48), que pesquisou o trabalho dos chefs e sua
identidade profissional, o sous-chef, quando responsável pela cozinha, também é responsável
por manter o ritmo do trabalho. “A todo instante, ele gritava: ‘Bora! Bora! Bora!’”.
O organograma mostra as praças horizontalmente distribuídas. Hoje em dia, conforme
fui informada pelos entrevistados, apenas restaurantes com equipes muito grandes ou muito

44
O que parece ser uma constante quando se trata dessa comida é sua pouca qualidade, tanto em restaurantes
simples quanto em estabelecimentos mais sofisticados. Quase todos os cozinheiros e outros profissionais
entrevistados (exceto os proprietários) falaram da refeição dos funcionários de forma muito negativa. Não
conheci nenhum profissional que recebesse vale-alimentação, sequer permissão para ir comer em outro lugar.
Durante o Encontro Mundial de Chefs, uma das chefs convidadas falou sobre comida dos funcionários:
“alimentem bem seus cozinheiros”.
71

especializados teriam todas essas praças. A separação principal, conforme a fala de Matias
revela, é entre a cozinha quente (do lado esquerdo) e a fria (do lado direito).
Saucier é responsável pelos molhos. Rôtisseur prepara as carnes, e isso significa
limpá-las e cortá-las, assim como utilizar forno, fogão, grelha, chapa etc. No Brasil,
principalmente nas cozinhas mais simples, essa ocupação é “chapa”. Poissonier prepara os
peixes e frutos do mar. A não ser que essa seja a especialidade do restaurante, normalmente tal
ocupação é englobada pelo trabalho do rôtisseur.
Na cozinha fria estão entremetier, garde-manger e pâtissier. O primeiro é responsável
pelas entradas, vegetais, sopas e ovos. A ocupação de garde-manger é mais comum e,
geralmente, engloba o entremetier. É responsável pelas saladas, entradas frias, patês e tira-
gostos. Finalmente, pâtissier refere-se às sobremesas e doces, é o/a confeiteiro/a.
As ocupações que estão na base do organograma são o plongeur, que no Brasil recebe
comumente o nome de “pia” – o responsável por lavar a louça; aprendiz/ estagiário, e o
commis, em português, cumim. Este é o auxiliar direto dos garçons, que ajuda na montagem
do salão, serve o couvert, encaminha as comandas, transporta os pedidos da cozinha e faz a
reposição dos utensílios das mesas como pratos, copos e outros acessórios. O cumim não
entra no escopo dessa pesquisa, por se tratar essencialmente de uma ocupação do salão, e não
da cozinha.
Os cargos de ajudante, auxiliar e “pia”45 costumam ser cargos de entrada, com os
salários mais baixos. Em algumas cozinhas, há estagiários. Essa figura aparece nas cozinhas
brasileiras a partir dos anos 1990, mas com mais relevância a partir dos 2000, com o aumento
da oferta de cursos de Gastronomia46. Os estagiários atuam como auxiliares, pelo menos a
princípio, e tendem a trabalhar em todas as praças dentro da cozinha, como parte de seu
aprendizado. Esse, muitas vezes, é o pagamento que recebem pelo trabalho que
desempenham: é comum que não se lhes pague salário. Em alguns casos, paga-se apenas uma
ajuda de custo que, conforme alguns estagiários relatam, não é suficiente para arcar sequer
com a condução ao longo do mês. Todavia, os estagiários estão presentes em cozinhas de
restaurantes mais sofisticados, onde eles podem ter uma experiência valorizada em seus
currículos, e não nos mais simples. Voltarei à questão do estágio ao discutir formação
profissional no capítulo 2.

45
Hoje, algumas cozinhas têm equipamentos e máquinas que lavam a louça, mas ainda é preciso que haja um/a
funcionário/a que cuide da limpeza dos pratos, panelas, talheres, copos etc., assim como da operação das
máquinas de lavar.
46
O Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem no Comércio) abre o primeiro curso básico de Cozinha em 1964.
Em 1994, inicia o curso técnico de extensão com duração de dois anos, Cozinheiro Chef Internacional, em
Águas de São Pedro/SP e a Universidade Anhembi Morumbi na Capital, em 1999.
72

Os responsáveis pelas praças ou brigadas são, antes de tudo, cozinheiros. O


organograma revela que estão na mesma linha entre eles, ou seja, em posição de igualdade.
Uma praça não é mais importante que a outra e todas precisam funcionar coordenadas para
um bom serviço. A hierarquia na cozinha não se dá entre eles, mas entre as posições de
comando. Conforme o organograma mostra, acima de todos o(s) cozinheiro(s) está(ão) o(s)
chef(s). E, apesar de não estar explícito, abaixo dos cozinheiros estão os assistentes ou
auxiliares. Assim, em sua forma mais simples, a hierarquia na cozinha se apoia em três
figuras: chef, cozinheiro/a e auxiliar.
Até aqui, procurei apresentar as praças como espaços de realização de um trabalho
especializado e específico, conforme uma organização canônica da cozinha, imaginada por
Auguste Escoffier. Entretanto, conforme já apontei, é muito difícil encontrar uma cozinha que
tenha todas essas divisões. A tendência parece ser, cada vez mais, que algumas ocupações vão
englobando as outras, e a separação se baseia muito mais na hierarquia do que na
especialização.
Gary Allan Fine (1996: 19) é sociólogo e trabalhou como cozinheiro em pelo menos
quatro restaurantes nos Estados Unidos, realizando entrevistas e uma etnografia do trabalho
em cozinhas. Segundo ele,

Cozinheiros devem preparar a cozinha muitas horas antes da chegada dos


clientes, sem saber exatamente quantos esperar. A preparação deve permitir
flexibilidade, dependendo de quem entra e reservas de último minuto. Eles
devem então estar prontos para cozinharem muitos pratos, simultaneamente
e sem aviso, com velocidade suficiente que aqueles com os quais eles
precisam lidar – garçons e, afinal, clientes – não fiquem frustrados47.

São fundamentais, segundo sua interpretação, portanto, a organização e planejamento


do trabalho dos/as cozinheiros/as com antecedência, assim como algum grau de flexibilidade
para adaptações de última hora. É preciso tentar prever, mas também estar pronto para o
imprevisto. “Trabalhadores com inúmeras e imprevisíveis tarefas descobrem que não é o
trabalho, mas a preparação para esse trabalho que é crítica48” (FINE, 1996, p.21).
Do ponto de vista da gerência e da administração do restaurante, aplicam-se as regras
de uma empresa capitalista: minimizar custos, maximizar lucros. Assim, procura-se, nas
cozinhas, contratar o mínimo possível de cozinheiros e deles extrair o máximo de eficiência

Tradução livre de “Cooks must ready the kitchen several hours before customers arrive, not knowing precisely
47

how many to expect. Preparation must permit flexibility, depending on the walk-in trade and last-minute
reservations. They must then be ready to cook numerous dishes, simultaneously and without warning, with
sufficient speed that those with whom they must deal - servers and ultimately diners - do not become frustrated”.
48
Tradução livre de: “"Workers with numerous unpredictably arrayed tasks find that it is not the work but the
preparation for that work that is critical".
73

no trabalho, economizar o máximo possível nos ingredientes e reduzir o desperdício. Fine


afirma que, geralmente, nas cozinhas, está a mão de obra mais barata possível.
O trabalho em si pode ser dividido em três fases: o mis-en-place ou pré-preparo, o
preparo e a finalização. O mis-en-place, literalmente “colocar no lugar”, refere-se a deixar os
alimentos prontos para serem utilizados: descascar, fatiar, cozinhar alimentos que demoram
para ficarem prontos, porcionar (dividir em porções), em suma, todos os processos que
precisam (e podem) ser realizados antes de se começar a cozinhar de fato. O preparo é o ato
de cozinhar em si, misturar os ingredientes nas quantidades corretas, aplicar técnicas de
cocção e outros modos de preparação. Dependendo da especialidade da cozinha ou o tipo de
equipamento que ela tem, esses processos podem ser muito diferentes. A finalização refere-se
ao momento em que a refeição precisa ser montada, colocada no prato com acompanhamentos
e servida aos clientes. Geralmente, os auxiliares fazem o mis-en-place, os cozinheiros cuidam
do preparo e o chef finaliza o prato. O trabalho, portanto, é diferente, dependendo da função
dentro da cozinha.
Para apresentar os processos de trabalho de cada ocupação, utilizarei as descrições que
os próprios trabalhadores fizeram do conteúdo de seus trabalhos.

2.1. Chef

Chef é o/a administrador/a da cozinha. Geralmente é responsável pela elaboração do


cardápio, pela comunicação com o(s) proprietário(s) do restaurante, fornecedores, em alguns
casos, com os clientes, gestão dos estoques e coordenação do trabalho da equipe. Ele/a precisa
saber preparar todos os pratos do restaurante, mas nem sempre chega ao fogão.

Ao Chefe, cabem as atividades de criação, elaboração, atuação direta ou


indireta na preparação do alimento, e o planejamento, gerenciamento e
capacitação de pessoal, ou seja, trata-se do estrategista e administrador da
cozinha. Ao cozinheiro, cabe organizar e supervisionar os serviços a serem
realizados e participar ativamente no pré-preparo, preparo e finalização do
alimento, sempre observando os métodos de cocção e a qualidade dos
alimentos. Aos trabalhadores auxiliares, cabem funções de suporte nas
atividades, sob a responsabilidade tanto do cozinheiro quanto do Chefe
(FONSECA, 2013, p.57).

Conforme o organograma (figura 5) mostrou, é possível que haja dois chefs em uma
cozinha (até mais, dependendo do tamanho da cozinha). O/A chef executivo/a é uma figura
mais rara, geralmente um dos donos ou sócio do restaurante, um/a chef muito famoso/a, que
74

dá o nome ao restaurante, que assina o cardápio. No Brasil, tal ocupação é mais recente, tendo
surgido nos últimos anos conforme a profissão vem adquirindo mais visibilidade e prestígio
social, mas não é muito comum. Existem chefs que trabalham em mais de um restaurante,
porque não se trata exatamente de um trabalho operacional, em que a pessoa precisa estar no
dia a dia da cozinha. Em muitos casos, o/a chef executivo costuma ficar no salão: seu trabalho
é ver e ser visto, receber os clientes, legitimar a experiência que estes buscam, de comer no
restaurante de tal chef (atualmente, posar para fotos, autografar livros etc.).
O/A chef de cozinha pode fazer também esse trabalho, mas geralmente trata-se de um
trabalho muito mais operacional e administrativo da cozinha (em oposição ao chef
executivo/a).
Galvão (2015) nos oferece uma categorização dos chefs a partir de sua relação com o
ato de cozinhar e os divide em dois grandes tipos: o chef empresário e o chef cozinheiro.
Nesta última categoria, ela ainda os divide em criativos-inovadores (que procuram criar uma
linguagem própria, criativa, inovadora na cozinha), os autorais (que pretendem expressar a si
mesmos através de seu trabalho) e os executores (que não possuem muita autonomia ou não
estão interessados em criar um conceito próprio).
Auguste Escoffier (apud FRANCO, 2010) diferencia o chef do cozinheiro, afirmando
que o chef é um artista e um administrador, e que ele não pode dirigir trabalhos que ele
mesmo não possa executar. “Só quem faz da cozinha o seu supremo interesse, dedicando-lhe
anos de estudo e de trabalho, torna-se um chef” (FRANCO, 2010, p.234). Dentre os
cozinheiros, é relativamente tido como consenso que chef é um cargo, e cozinheiro, uma
profissão, isto é, a pessoa está chef, mas ela precisa, antes, ser cozinheira.
O cargo de chef de cozinha é, sobretudo, o trabalho de quem conhece muito bem o
funcionamento da cozinha, de quem coordena a produção, de quem conhece a dimensão do
trabalho, porque chefia e supervisiona o trabalho de todos os outros.
E quando eu chego aqui eu tomo meu café, eu organizo a equipe, vejo a
parte de cardápio, vejo o que vai ser no dia, daí começo a fazer as baixas,
todas as alimentações que vai sair, o peso e vejo a parte da salada também,
faço a baixa de todas as comidas, depois começo montar minhas planilhas,
né, que eu faço todos os dias eu tenho que fazer baixa daquilo. Eu levo pro
menino do RH as baixas de um dia antes de hoje, por exemplo, aí amanhã já
faço outra. Então faço minhas baixas, começo fazer meus recebimentos, vejo
meus pedidos de compras, depois todos os dias temos uma estação no
restaurante. Segunda é crepe. Então, eu monto as estações, entendeu, hoje
minha praça já tá lá, minha mis-en-place, daqui a pouco eu vou lá montar.
Então eu monto as estações, eu vejo o cardápio do dia. Depois eu começo a
orientar o pessoal que horas que vai almoçar, a hora que não vai. E já
começando a olhar o cardápio do dia seguinte. E assim é o nosso dia. Meio-
dia eu tenho que ir pro restaurante, fico até as três horas da tarde fazendo a
75

reposição, recebendo os clientes, entendeu. (...) Você tem que ter um


planejamento pra tudo. Exemplo: você não pode deixar faltar os insumos na
sua cozinha, entendeu? Tem que prestar muita atenção. Ah, é um trabalho
complexo. (…) E tem dias que seu mural tem dez evento na semana. Cada
evento daquele, cada OS49 que chega é um tipo de alimentação. Então, tenho
que olhar, ah vai ter sorvete de pistache, nesse eu tenho que comprar, esse
vai ter filé, tenho que comprar, então assim, cada evento tem que ter os
insumos adequados praquele evento, então olha, é uma tensão50.

Joana, chef, revela em sua fala a importância do trabalho de planejamento e a tensão


que perpassa sua função. O restaurante em que ela trabalha, que se localiza dentro de um
hotel, funciona em sistema de bufê no horário de almoço e à la carte no jantar. A cozinha
também prepara os alimentos que são oferecidos nos eventos do hotel, como coffee breaks. As
“baixas” a que ela se refere são todos os alimentos que foram consumidos e que precisam ser
repostos – ela faz o controle de tudo que entra e sai da cozinha, informa o RH sobre o que foi
consumido e apresenta uma lista diariamente com o que precisa ser comprado. Ela lidera as
brigadas: organiza o horário de almoço dos funcionários, supervisiona o trabalho de todos e
elabora os cardápios, além das “estações”: cada dia o restaurante oferece algo diferente, que
fica fora do bufê (massas, tapiocas, crepes etc.).
Ela também faz o trabalho de cozinheira além do de chef, porque também é
responsável por uma praça. A rotina é pesada e, muitas vezes, ela precisa ficar além do seu
horário para resolver problemas e terminar as planilhas, fundamentais para a organização de
seu trabalho como chef de cozinha. Depois do planejamento, depois de cuidar da própria
praça, ela ainda vai ao salão, faz reposição da comida que vai acabando e recebe os clientes,
ou seja, está lá para ouvir elogios, mas também reclamações, além de comentários indiscretos
e cantadas. Ela relata que algumas vezes sofre algum assédio por parte desses:

Tem alguns que chegam, te dá até o cartão deles, ó... eu jogo no lixo, quando
ele sai assim, eu sou indiferente.

A partir da descrição de Joana de seu trabalho como chef, é possível apreender que
além do trabalho técnico, ela também precisa fazer um trabalho de gestão das emoções
(HOCHSCHILD, 1979), tanto com a equipe que lidera – coordenar o trabalho, organizar os
cronogramas (pausas para o almoço, planejamento de dias de folgas e férias), lidar com as

49
OS: Ordem de Serviço. É um documento interno em que constam todos os serviços que o cliente contratou:
horário, local, quantas pessoas, eventuais restrições alimentares, pedidos especiais. Os hotéis têm variadas
opções de refeições (coffee break, café da manhã, lanche da tarde, coquetel) para oferecer durante os eventos, e
isso precisa vir descrito na Ordem de Serviço.
50
Joana, 38 anos, chef.
76

demandas dos funcionários e os problemas da cozinha; como os demais departamentos do


hotel, o RH, o setor de compras, e os clientes.
De acordo com Soares (2011: 97), uma das facetas do trabalho emocional reside na
necessidade de um trabalhador ou trabalhadora precisar fazer a gestão das emoções da
clientela. Por causa do seu trabalho junto ao público do restaurante, Joana entende que precisa
manter uma determinada postura e, em alguma medida, submeter-se a esse tipo de assédio,
sem reagir e sem responder. Ela faz um cálculo e exerce um controle emocional sobre suas
reações para não ter um problema com o cliente ou com a equipe do hotel, para suportar a
situação. Conforme proposição de Hochschild, “O indivíduo frequentemente trabalha
induzindo ou inibindo sentimentos para torná-los ‘apropriados’ à situação”51
(HOCHSCHILD1979, p.551).
Com relação à equipe, ela também precisa exercer um controle emocional. Embora os
funcionários sejam amigos e saiam juntos depois do trabalho, embora eles façam brincadeiras
e piadas na cozinha, ela se abstém. Joana sustenta a postura de manter atenção “só no
profissional”, enquanto os outros, aparentemente, falam sobre suas vidas pessoais e fazem
brincadeiras durante o trabalho. Para seus colegas, esse é um ambiente onde se sentem à
vontade para falar sobre si e brincar, em que desenvolvem relações de amizade, e têm o hábito
de sair juntos após o expediente. Mas Joana não participa dessa dinâmica coletiva e preserva
uma postura mais rígida, como uma estratégia para ser obedecida, reconhecida como chefe e
chef.
É como eu te falei, eu sou uma pessoa que não gosto de falar da minha vida
particular dentro do meu setor de trabalho, eu não gosto muito, não procuro
saber também deles, procuro manter um foco só no profissional. Então não
gosto muito de brincadeira, de muito agarra-agarra, evito esse tipo de coisa.
Então vai muito da pessoa, tem pessoas que dá liberdade.

Segundo Hochschild, (1979, p.555) “fatores sociais afetam como as emoções são
provocadas e expressas”52 . Assim, compreendendo que as emoções e sentimentos obedecem
a regras sociais e que são, portanto, construídas socialmente, o trabalho também exige esse
domínio, uma gestão da própria emoção e do outro. Nesse sentido, o trabalho emocional
significa corresponder ao que se espera dela enquanto chef: não se deixar levar pelo clima de
descontração e brincadeira, pelo contrário, ser a pessoa séria, que não brinca, que não sai,
preservar sua vida pessoal, em suas palavras: “manter um foco só no profissional”.

Tradução livre do original: “The individual often works on inducing or inhibiting feelings so as to render them
51

‘appropriate’ to a situation”
Tradução livre do original: “social factors affect how emotions are elicited and expressed”.
52
77

Aqui é importante ressaltar que essa gestão é fundamental para o exercício da


liderança no espaço da cozinha, sobretudo porque se trata de uma chef mulher. Conforme foi
possível observar em muitas entrevistas, são precisamente esses comportamentos de
brincadeira (muitas vezes de cunho sexual, sexistas, machistas), criar apelidos, ou mesmo o
que a própria Joana chama de “agarra-agarra”, que tornam a cozinha um espaço que pode ser
hostil para as mulheres. No caso dela, manter-se alheia a essa dinâmica é uma forma de se
preservar desse tipo de comportamento, o que é fundamental para obter e manter o respeito de
seus subordinados. Uma vez que a autoridade de chef é central dentro da cozinha e que ela
precisa ser obedecida sem questionamentos, principalmente no momento do serviço, cabe a
ela, como chef e como mulher, criar estratégias para garantir que os funcionários vão
obedecer, vão respeitar sua autoridade.
Em restaurantes em que o trabalho culinário é desempenhado por uma equipe, a figura
do/a chef é a mais importante. Muito mais do que o/a cozinheiro/a principal, ele/a é o/a
administrador/a da cozinha, coordenador/a e supervisor/a do trabalho de todos os
funcionários. Sua autoridade nesse espaço é indiscutível e não pode ser questionada. É
fundamental que suas instruções sejam seguidas à risca.
Segundo Chelminsky (2007: 104), “Há um óbvio paralelo entre a hierarquia e a
disciplina de um exército e de uma cozinha profissional séria – chef, lembre-se, não significa
cozinheiro, mas chefe, patrão”. Roscoe (2012) afirma que a cozinha moderna adota a rígida
estrutura militar, uma hierarquia firme em que as habilidades e status são compreendidos a
partir de seu papel na cozinha53. De acordo com Bourelly (2010), a cozinha profissional
remete, em sua origem, à história dos exércitos e soldados, o que fez dela um verdadeiro
bastião masculino. Ainda hoje, muitas expressões e palavras utilizadas nas cozinhas se
referem a um vocabulário militar, como o próprio termo “brigada” e a expressão “marchar”54.
Nos exércitos, o cozinheiro não é civil. Ele também é militar. Entretanto, ele não porta
armas, ele não está na linha de frente, ele não tem a oportunidade, como seus colegas, de
demonstrar força e coragem. Segundo Harris e Giuffre (2015: 9), para os chefs e cozinheiros,
essa atividade profissional masculina está sempre em risco de ser comparada e equiparada ao
trabalho não remunerado e não profissional que as mulheres fazem em casa. “A ameaça da
feminização leva a uma sensação de masculinidade insegura e instável entre os homens em

53
Tradução livre do original: “The modern professional kitchen adopts its rigid structure from a military
approach. A firm hierarchy is in place where one’s skills and status are understood by their role within the
kitchen” (ROSCOE, 2012, p.3).
54
Nas cozinhas, quando um prato está sendo preparado, diz-se que ele “marcha”, e ao ser servido, “marcha e
sai”.
78

trabalhos que requerem que eles realizem tarefas codificadas como femininas – um termo ao
qual nos referimos como masculinidade precária”55. Nesse sentido, as autoras chamam
atenção para uma estratégia que pode neutralizar a feminilidade do trabalho, que consiste em
enfatizar a natureza masculina do trabalho, por exemplo, dirigindo o enfoque para o passado
militar da ocupação.
Nas palavras do historiador Allan Drouard (2015: 28-29):

A organização da cozinha criada no final do século 19 por chefs como


Gustav Garlin e Auguste Escoffier se assemelha à de um exército em ordem
de batalha. O chef dirige sua brigada e confronta com ela o “golpe de fogo”
do serviço. Os cozinheiros suportam o fogo da cozinha, que, como disse
Carême, os devora e os mata: 'O momento de servir está além de toda
expressão de dor e fadiga. Chegamos a tempo e não podemos atrasar o
momento do serviço. Comandos de honra (testemunha o ilustre Vatel).
Devemos obedecer mesmo quando faltam forças físicas; mas é o carvão que
nos mata56.

Chelminsky (2007: 159) também pontua que o papel do chef em uma cozinha é
fundamental, pois “É um trabalho de tempo integral, crucial e diabolicamente repleto de
artifícios, já que o chef tem de estar intimamente familiarizado com todos os detalhes de cada
posto na brigade, e somente os seus olhos e seu perfeccionismo perfilam entre o fracasso e o
deslumbre”.
Assim, todos trabalham duro na cozinha, mas sobre o/a chef recai a maior parte da
responsabilidade, para o bem ou para o mal, pois cabe a ele/a imprimir sua marca ou sua
identidade na comida, ainda que ele/a mesmo/a não a prepare. “Há inúmeros caminhos
diferentes, então, levando à grande culinária, mas em comum todos tem uma coisa: o
resultado final carrega a marca inconfundível da personalidade do chef, seja ou não ele a
pessoa que prepara os pratos” (CHELMINSKY, 2007, p.161).
Buford (2007: 131), em sua peregrinação por diversas cozinhas do mundo, trabalhou
com Marco Pierre White, um chef que já obteve três estrelas Michelin e que ficou conhecido
por sua reação teatral na cozinha – segundo o autor, havia clientes que iam a seu restaurante
na expectativa que algo inesperado acontecesse. Incontáveis vezes, White discutiu, gritou e

55
Tradução livre do original : “Feminization threat leads to a sense of insecure and unstable masculinity
amongst men in jobs requiring them to perform female-coded tasks – a term they we refer to as precarious
masculinity”.
56
Tradução livre do original: “L’organisation des cuisines mise en place à la fin du XIXe siècle par des chefs tel
que Gustav Garlin et Auguste Escoffier ressemble à celle d’une armée en ordre de bataille. Le Chef dirige sa
brigade et affronte avec elle le coup de feu du service. Les cuisiniers supportent le feu de la cuisine qui, comme
le disait déjà Carême, les dévore et les tue : ‘Le moment du service est au-delà de toute expression de peine et
fatigue. Nous sommes à l’heure et à la minute, et nous ne pouvons différer le moment du service. L’honneur
commande (témoin l’illustre Vatel). Il faut obéir lors même que les forces physiques manquent ; mais c’est le
charbon qui nous tue’” (p.28-29).
79

brigou até com os clientes. Com alguma nostalgia, ele afirma que ser chef “naquela época”
(anos 1990) “era ter licença pra gritar”.
Os gritos, em alguma medida, fazem parte da organização do trabalho na cozinha. É
preciso que as pessoas se comuniquem e elas estão em um ambiente barulhento, geralmente
realizando várias tarefas ao mesmo tempo, tudo é urgente e todos querem ser ouvidos.
Entretanto, a voz principal é a voz do/a chef, e, portanto, ele/a tem mais poder para gritar que
os outros: apenas ele/a tem legitimidade para gritar e ser ouvido, para ser obedecido.
Há uma série de empecilhos para as mulheres que pretendem chegar aos cargos de
maior responsabilidade e chefia dentro da cozinha. O trabalho de chef é associado a uma
figura masculina que tem determinados comportamentos, como falar alto, gritar, dar ordens,
entre outros, e que dificulta a ascensão feminina a esses postos.
A questão de ter uma mulher no cargo máximo da hierarquia pode precipitar conflitos.
Segundo outra chef entrevistada, ter voz de comando e se fazer respeitar na cozinha pode ser
um grande desafio, principalmente diante de uma equipe de subordinados totalmente
masculina.
... é fácil de ser contratada, a priori, mas é difícil de você se manter lá
dentro. Você vai ser substituída em algum momento, porque não tem uma
voz de comando feminina que seja ouvida. Não tem. É muito difícil. Tem...
Eu passei por situações... um pouco complicadas. Pensando mais nos turnos
da noite mesmo, porque nos turnos da manhã... como era uma mescla de
cozinheiros e cozinheiras não... não tinha esse problema. À noite eram
essencialmente homens, não tem... eles não ouvem. Eles não ouvem. Eles
passam por cima. Se a decisão de hoje, eu viro pra eles e falo "gente, vocês
têm produção hoje? Então tá, têm meia hora pra lavar a coifa?" "Ah mas
amanhã cedo não vão lavar a coifa, porque..." "Gente, lava a coifa pra mim".
Aí você tem que ser delicada no jeito de falar, você tem que ser sutil e etc.
Enquanto se você grita, eles não aceitam mesmo, eles se rebelam. É muito
difícil. Pra mulher dar voz de comando na cozinha é muito difícil. Não
existe. Não existe57.

2.2. Cozinheiro/a

Já o trabalho de cozinheiro/a, que não demanda exatamente um planejamento da


cozinha inteira, também tem uma organização fundamental, tanto do tempo quanto dos
insumos.
Então, eu tenho uma praça. Então, por exemplo, tudo que é pra montar, eu
normalmente faço na terça e na quarta, são os dois dias que eu tenho mais
tempo livre, que eu entro um pouquinho mais cedo, inclusive, então eu tenho
mais tempo livre pra fazer toda essa montagem. Quando não dá, eu vou

57
Lenice, aproximadamente 30 anos, chef de cozinha.
80

fazendo na quinta. Sexta-feira é um dia que eu não faço nada, porque eu


espero o movimento, então quando eu cheguei hoje tava tudo montado, tudo
certinho, só um detalhe ou outro pra ser montado. (…) Exemplo: precisa de
tomate cortado. Então a gente pica o tomate quando chega. Então picar
aquela quantidade de tomate que você sabe que vai ser usada. Porque o
tomate a gente não larga. É, alguma coisa que é congelada, como uma
sardela daqui, que é congelada, isso eu faço na terça. Isso aqui eu faço uma
quantidade que dá pra semana inteira e na outra semana eu faço de novo.
Tanto pra não ficar muito velha na geladeira, quanto pra não perder o sabor,
nem nada. (…) Tem alguns pratos que são um pouquinho mais difíceis, então
você tem que parar um pouquinho ali, perder um certo tempo, tem alguns
detalhes que você tem que estar montando. E... congelada eu consigo fazer
na terça e na quarta. Carpaccio, fazer uma sardela que congela, ou monta um
prato que pode ser congelado, ou que a montagem pode ser congelada, isso
tudo na terça e na quarta. (…) Aí você vai fazendo os detalhes, tipo, coisinha
pequena mas que você acaba te tomando muito tempo. Então ah, tem que
planejar uma salada que eu faço todos os dias, tem que fazer uma calda de
uma sobremesa que faz todos os dias, aí, ah, acabou isso, aí você já vai lá e
já repõe. E é pra 65 [pessoas], tem uma rotação bem grande, que a gente vai
sempre deixando. Então tem uma quantidade pra manter a qualidade58.

A fala de Elisa revela um trabalho importante de controle e organização dos insumos,


assim como planejamento dos pratos que podem ser feitos com antecedência e os que
precisam ser preparados todos os dias. Nos dias em que o movimento do restaurante é maior,
ela “espera o movimento”, ou seja, não é que ela não faça nada, conforme ela afirma, mas que
ela já deixou tudo o que poderia ter sido feito com antecedência pronto, e então pode se
concentrar apenas nos pratos que demandam mais trabalho e atenção e que precisam ser
“montados” na hora.
Cozinheiro/a, ao contrário do chef, não interage com os clientes. A cozinha é uma área
vetada. Mesmo quando se trata de uma cozinha “aberta”, como tem sido tendência em alguns
estabelecimentos voltados para público com alto poder aquisitivo, em que a cozinha pode ser
vista do salão (geralmente através de uma parede de vidro), e os clientes têm a sensação de
ver os cozinheiros em ação, sempre há uma parte da cozinha que permanece oculta.
Para além do trabalho planejado e programado no dia, há uma dinâmica de ajuda
mútua, que foi pontuada por quase todos os profissionais: quando alguém está “nadando” 59 na
cozinha, os colegas se mobilizam para ajudar. Dessa maneira, aqueles que adiantaram mais
coisas e que estão relativamente tranquilos no momento do serviço, auxiliam os colegas mais
sobrecarregados. Essa também pode ser uma forma de prejudicar os colegas, quando se
negam a ajudar ou mesmo com pequenas sabotagens.
58
Elisa, 28 anos, cozinheira.
59
“Nadar” é uma expressão muito utilizada pelos cozinheiros para se referir ao momento em que a cozinha
precisa trabalhar sob ritmo mais intenso e mais rapidamente que o normal, geralmente quando há muitos
pedidos, e os profissionais não dão conta da demanda.
81

Nos dias de mais movimento, a cozinha trabalha mais, há mais pratos a serem
preparados, e existe uma dinâmica e um ritmo para esse trabalho. Os pratos não podem
demorar pra sair, tampouco podem ser servidos separadamente (o ideal em um restaurante é
que se sirva todos os pratos de uma mesa ao mesmo tempo, para evitar que alguns comam
enquanto outros esperam).

2.3. Auxiliar de cozinha

O trabalho de auxiliar teria que ser de apoiar e ajudar os cozinheiros, mas nem sempre
é assim. Muitas vezes, a maior parte do trabalho do auxiliar é dedicado à limpeza e
higienização da cozinha, assim como o mise-en-place. Uma das auxiliares entrevistada
trabalhava durante o dia em uma pizzaria que funciona à noite. Ela fazia todo o mis-en-place
necessário para o preparo das pizzas, o jantar dos funcionários, as sobremesas e toda a
limpeza da cozinha antes do serviço. Segundo ela:

Então tem louças aqui que os meninos não dá, na correria, à noite, eu lavo.
Se não tem outro funcionário só tá eu, eu limpo tudo, vou cuidar do almoço,
aí depois limpo a cozinha, né, preparo as minha sobremesa se eu tiver que
preparar, depois quando é 5h eu vou embora60.

O relato de Rosana deixa claro que, para além do trabalho de auxiliar de cozinha, ela
acumulava muitas outras funções, como confeiteira e responsável pelas sobremesas, e até de
faxineira.
Outra auxiliar de cozinha entrevistada apresentou uma descrição diferente. Na cozinha
onde ela trabalha há uma equipe terceirizada de faxineiras que fazem a limpeza da cozinha,
então ela não é responsável pela higienização do espaço, apenas das panelas e materiais que
ela utiliza, como os demais. Ela fazia o trabalho de auxiliar quando era contratada como
estagiária. No momento da entrevista, contratada como auxiliar, entretanto, fazia o trabalho de
confeiteira e cuidava da refeição dos funcionários.
(…) eu não auxilio ninguém e ninguém me auxilia. Auxiliar de cozinha é
quando fica alguém do seu lado, te auxiliando. Tudo bem que tem o chef, ele
superajuda, mas acho que auxiliar é quando você tá do lado de uma pessoa,
né? Por exemplo, a confeiteira, eu vou ser auxiliar de confeiteira, eu vou
trabalhar junto com ela. Não, o que eu faço é 100% sozinha. (...) Eu chego,
eu faço a comida dos funcionários, eu faço a massa desses polvilho que eles
vendem aqui61.

60
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha
61
Carina, 18 anos, estagiária/ auxiliar de cozinha.
82

Mais tarde, nessa mesma entrevista, Carina afirma que se sente insegura diante da
responsabilidade de preparar a comida para todos os funcionários do restaurante 62 sem
supervisão, em função da sua pouca idade e parca experiência.
Esse trabalho, mais que os outros, aparece como o “coringa” do trabalho culinário:
existe uma miríade de funções que são desempenhadas pelo auxiliar. Também é comum o
registro do/a funcionário/a na função de auxiliar quando, na verdade, ele/a executa outras
funções, como a de cozinheiro/a. Em tese, esse trabalho é realizado pelos mais jovens em
início de carreira, pelo/a estagiário/a recém-efetivado/a no restaurante ou pelo/a pessoa com
menos escolaridade, como é o caso de Rosana.
O trabalho culinário, como se pode apreender a partir das descrições apresentadas, é
muito heterogêneo. É um trabalho que conjuga habilidades intelectuais e físicas:
planejamento, controle e organização, assim como atenção, uma medida de força física e
destreza. Também é um trabalho emocional, especialmente por parte do chef, porque demanda
gestão das emoções e sentimentos na sua execução, seja com os colegas, seja com os clientes.
Novamente, de acordo com a pesquisa de Clarissa Galvão (2015: 53):

Tal qual o músico, chefs e cozinheiros vivem em um mundo extremamente


diferenciado no sentido de que a gastronomia oferece um leque muito vasto
de opções de trabalho e de que cada cozinha é um microcosmo com
organização e interação, em grande medida, peculiares.

É interessante notar que, do ponto de vista da bibliografia pesquisada, produziu-se


muito mais sobre a ocupação de chef do que das ocupações de cozinheiro e auxiliar, assim
como nessa investigação apareceram muito mais elementos nas descrições dos/as chefs do que
dos/as cozinheiros/as e auxiliares. De fato, a ocupação de chef é mais complexa e demanda
uma série de habilidades para além daquelas necessárias para realizar o trabalho de
cozinheiro/a, mas não deixa de ser digno de atenção que as ocupações que estão
hierarquicamente mais abaixo sejam vivenciadas e percebidas de forma mais simples tanto
por quem desempenha essa função como por quem as pesquisa.

62
Sobre a comida de funcionários, geralmente é uma obrigação do auxiliar, mas há casos em que é preparada
pelo/a chef.
83

3. Considerações finais do capítulo

Neste primeiro capítulo, discutimos a origem da profissão de cozinheiro/a e chef, não


como alguém que simplesmente prepara a comida, mas que o faz segundo determinados
critérios para uma clientela, não para a própria família. Desde sua origem nas cozinhas dos
castelos e nos grandes banquetes da aristocracia europeia da Idade Média, os cozinheiros
constituíam um coletivo de trabalho frágil e pouco organizado, cujo trabalho era pouco
valorizado e reconhecido - com algumas poucas exceções, alguns homens que entraram para a
história, como Antonin Carême e François Vatel.
Também apontamos a importância da gastronomia francesa para a constituição do que
convencionou-se chamar haute cuisine, em contraposição a uma culinária simples e cotidiana,
e como esta espalhou-se pelo mundo, associando a culinária francesa (os pratos, as receitas, os
modos de preparo e de servir) à sofisticação e ao requinte, carregando as marcas distintivas e
os valores sociais da aristocracia e da nobreza. Vimos que, mesmo com o fim abrupto da
monarquia, simbolizado na França pela guilhotina, os modos aristocráticos de se portar à
mesa e de se alimentar permaneceram associados às classes mais abastadas e à então
emergente classe dominante, a burguesia, até tornarem-se parte de uma identidade nacional. O
que se come e como se come são elementos fundamentais na distinção social.
Em seguida, apresentamos o restaurante como uma instituição moderna por excelência
e como esta aparece no Brasil, após a chegada da família real portuguesa, em hotéis e clubes
de elite, principalmente nos incipientes centros urbanos do Sudeste, São Paulo e Rio de
Janeiro. O objetivo desse capítulo mais histórico é demonstrar a antiguidade dessa profissão,
como ela se constitui e se transforma ao longo do tempo, sua relação com um traço social de
distinção e com as elites, como isso foi traduzido para a realidade brasileira para, em seguida,
analisar de que forma ela se adapta às características do mercado de trabalho brasileiro,
configurando um segmento profissional. É importante salientar que historicizar o trabalho em
cozinhas permite que se observe, em um longo período de tempo, mudanças e continuidades.
Elementos da história da profissão na França (onde o tema é muito pesquisado e estudado)
possibilitam verificar o que faz parte de especificidades brasileiras e o que parece ser comum
à realidade do trabalho em vários países.
84

Capítulo 2 - Como se forma o/a


cozinheiro/a?
“Você tem que saber fazer”
(João, 40 anos, sushiman)

Este capítulo é dedicado a discutir o ethos e a formação de cozinheiros e cozinheiras.


Começo discutindo a noção de dom e de talento, muito presente entre esses profissionais e
também no discurso difundido pela mídia e programas televisivos. Procuro demonstrar como
essa ideia de uma capacidade inata naturaliza todo um processo de formação e trabalho, mas
que também aproxima o trabalho culinário do trabalho do artista, e a gastronomia da arte, por
consequência.
Em seguida, apresentarei brevemente o conceito de qualificação profissional com o
qual trabalho para problematizar a formação destes profissionais, tanto em instituições
educativas formais, quanto no ambiente de trabalho, a partir dos dados coletados nas
entrevistas e trabalho de campo. Ao final, discutirei a centralidade do estágio na formação
desses profissionais e o impacto que o ethos dos cozinheiros e cozinheiras tem sobre o
mercado de trabalho.

1. Dom e paixão: o ethos


Elias discute a figura de Mozart como uma trajetória que informa sobre um processo
mais amplo da sociedade, uma transformação profunda (ELIAS, 1995). Mozart suscita a
questão da função social do artista, o músico e da música, o trabalho profissional na música
em um momento histórico específico.
Mozart era um homem de sua época, que esperava poder criar e fazer música livre das
amarras da sociedade aristocrática, mas não conseguiu. Os nobres e o mecenato eram
fundamentais para o financiamento dos músicos, e não era possível viver da arte para além de
se curvar às regras da corte, o que o atormentou toda a sua vida. Até o século 18, o artista era
um funcionário da corte como outro qualquer, que recebia pagamento e prestava contas
àqueles que o sustentavam. O mecenas, geralmente um nobre ou aristocrata com muito
dinheiro, portanto, definia o que era ou não produzido, o que merecia ou não investimento, o
que era ou não de bom gosto. O mecenato era uma relação de interdependência.
85

Elias utiliza várias fontes para recriar a história de Mozart cronologicamente, e


questiona o que é a aptidão musical, uma construção social embasada na biologia que
naturaliza capacidades socialmente construídas. Essa pode ser a mesma definição para o
talento nato, ou o que comumente se chama de “dom”. O dom é algo que foi dado
(provavelmente por deus), uma potencialidade inata, “natural”, que leva algumas pessoas a
terem mais facilidade para realizar determinadas tarefas ou para aprender algumas coisas.
Mozart, por exemplo, é evocado para exemplificar esse talento nato, porque tocava piano aos
3 anos de idade e compunha aos 5.
Um fenômeno! Mas Elias demonstra que se trata de um processo educativo. Muito
precoce no caso do músico, mas, ainda assim, um processo educativo. Pouco se fala sobre o
pai de Mozart, que era, coincidentemente, professor de música, que se dedicou a ensinar a
linguagem musical ao menino desde muito pequeno, porque via nele o futuro sustento de toda
a família. O pequeno, inclusive, foi apartado do convívio social para se dedicar apenas à
música. Elias reconta a história de Mozart para mostrar como trajetórias pessoais são sociais,
como uma história particular só pode ser compreendida dentro de uma configuração
específica, como essa história é a história de um grupo social, da relação deste grupo com
outros grupos e de um contexto histórico e social.
O dom/ talento é um elemento de diferenciação. A discussão estética ou do bom gosto
musical é, na verdade, um gosto de classe, uma construção social que pretende diferenciar os
que pertencem às classes dominantes e os que não pertencem – o próprio Mozart, dessa
perspectiva, era um outsider, um não nobre. Mas a música que ele produziu era consumida
avidamente pela aristocracia, as óperas eram os locais “públicos” de ver e ser visto, por onde
a corte circulava e onde o conhecimento musical servia como marcador de diferença social.
Ainda que Mozart tenha sido um grande artista, até hoje lembrado e celebrado, ele
viveu como um outsider e morreu na pobreza, o que nos informa sobre o momento histórico
que viveu, sobre o conflito entre a nobreza e a burguesia ascendente, sobre o declínio do
mecenato, sobre um homem que precisava sobreviver, mas não conseguia se submeter aos
ditames de uma sociedade que não compreendia, e a qual não pertencia.
Mozart era, nessa configuração, um gênio atormentado. Seu talento, indiscutível. Seu
dom para a música, inquestionável. O dom, desse ponto de vista, aparece como uma
característica inata e naturalizada sobre a qual a pessoa não tem nenhum poder. É como se ela
devesse ao mundo corresponder a esse dom, dedicar-se a ele, uma vez que ela se diferencia e
sobressai justamente por essa aptidão fora do comum. Todavia, assim como o talento de
86

Mozart serviu para justificar seu fim de vida atroz, na configuração atual, também serve para
naturalizar o não-natural e para sedimentar a dominação.
É recorrente, entre os cozinheiros e cozinheiras, o discurso do talento. Essa capacidade
mística e inexplicável com a qual algumas pessoas nascem, e que as fazem melhor que as
outras em determinadas atividades. Na cozinha, um talento é essa aptidão natural para os
sabores, texturas, aromas… Algumas pessoas têm talento, outras não. Todas podem cozinhar,
mas apenas algumas compõem o grupo de escolhidos que tem o dom. Esse discurso, muito
comum nos programas televisivos e, principalmente nos reality shows, é bem difundido e
aceito nesse grupo profissional.
O dom, entretanto, oculta as relações de gênero, classe e raça que engendram as
relações de poder da nossa sociedade, naturalizando conhecimentos e saberes como algo com
o qual a pessoa nasce e encobrindo as desigualdades sociais que diferenciam as pessoas. No
caso da cozinha, uma aptidão natural para cozinhar, um talento para criar pratos mirabolantes,
um dom para apresentações surpreendentes e para mistura de sabores exóticos eclipsa o
acesso a determinados ingredientes, pratos, culturas culinárias, livros e produções literárias,
restaurantes, histórias que são condicionados por uma condição de classe.
Naturalizar o conhecimento culinário como algo com o qual a pessoa nasce, pessoas
que tem bom gosto e pessoas que simplesmente não tem, porque não nasceram com ele,
significa cristalizar as desigualdades sociais como elementos da ordem da essência, e não
determinadas posições na estrutura social que não estão acessíveis a todos. No caso da
gastronomia, que nasce diferente da simples culinária justamente porque é sinal de bom gosto,
que só pode ser apreciada pelos gourmands que possuem os conhecimentos e expertise
necessários para apreciar a “boa comida” e, mais do que isso, comê-la corretamente, o
discurso do dom encobre um abismo social.

Ah, eu acredito que assim, né, o dom que a pessoa tem, né? Na verdade eu
acho que cozinhar também é um dom, sabia? (…) Eu acho que também é um
dom, só não é você querer, eu já conheci muita gente que tenta, tenta
naquilo, mas não é bom, faz, faz, mas não é bom63.

Eu vi que eu não tinha dom pra outra coisa, a não ser cozinha, entendeu? Eu
acho muito bom. (...) E também no mundo você tem que vir pra fazer o bem,
e eu escolhi fazer um bem, fazer comida pras pessoas. Cada um tem um dom
na vida, meu filho quer ser veterinário. Eu falei, é um bem, porque você vai
ajudar os animais. Então, parabéns! E eu acho que a minha missão é essa64.

Vitor, 32 anos, sous-chef.


63
64
Joana, 38 anos, chef.
87

O gosto é socialmente construído. Elias observa, no Processo Civilizador (1994),


como sensações que parecem naturais, como o nojo, a repulsa e até o prazer, são construídos
ao longo do tempo, considerando processos de valorização e desvalorização de determinados
comportamentos. No caso da gastronomia, em que o que é de bom gosto e o que não é estão
em constante transformação, compondo esse mosaico do que é “civilizado” comer e o que não
é, o que é chique e o que não é, o que é gostoso e o que não é, pensar em uma capacidade
“natural” que se encaixa perfeitamente em um contexto histórico e social específico parece
uma leitura rasa e fisiológica da realidade.
Conforme Elias nos mostra, o sentido da mudança social é a ascensão da burguesia
como classe dominante, ainda que seja mimetizando comportamentos da aristocracia, uma vez
que esses são (ainda hoje, de várias maneiras) associados ao bom gosto, às atitudes corretas, à
boa educação. Desde os banquetes do Antigo Regime europeu, o que está na mesa dos nobres
não está na mesa dos plebeus. Ainda que seja a mesma ave, o mesmo animal, não será
preparado da mesma maneira. Não é servido com os mesmos acompanhamentos. Não é
consumido da mesma forma. A alimentação é um traço fundamental da distinção social, e esse
é um traço de permanência do Antigo Regime até os dias de hoje.
Embora a profusão de discursos culinários pareça confusa e demasiadamente prolixa –
ainda mais com a quantidade de veículos que propagam informações (televisão, rádio,
internet) – a separação “nós” e “eles” ainda existe, a comida boa e a comida não boa, a
comida certa e a comida errada. Um exemplo é a culinária japonesa. Há 30 ou 40 anos, comer
comida japonesa era uma experiência exótica. Era preciso conhecer os locais certos nos
bairros certos. Em muitos deles, os cardápios eram escritos em japonês e cabia aos garçons
decifrá-los para os clientes ocidentais. Era uma experiência fechada à comunidade. Conhecer
os pratos, a diferença entre os tipos de peixe, os tipos de preparo, tudo isso mostrava a origem
dos convivas, e o grau de conhecimento que eles tinham sobre a cultura japonesa. Hoje, numa
cidade grande como São Paulo, sushi, sashimi, temakis e outros preparados com peixe cru são
comuns, tornaram-se até fast-foods. Não é preciso ir a um restaurante em um bairro
específico, é possível pedir delivery, é possível encontrar sushi em restaurantes por quilo.
Todo mundo já comeu sushi, mesmo que seja pra dizer que não gosta. Houve, ao longo desse
período, uma mudança nos gostos e o peixe cru caiu no gosto popular.
Essa experiência, que até pouco tempo atrás era exclusiva, rara, especial, difundiu-se
pelo conjunto da sociedade, tornou-se um item banal de consumo, e, assim, deixou de ser um
traço distintivo. Evidentemente que ainda existem os restaurantes caríssimos, com chefs
famosos, que fazem preparados diferentes e continuam mantendo um traço distintivo dos
88

estabelecimentos “populares”65. Eles precisam fazer coisas especiais, coisas inéditas, servir
uma comida muito bem feita, frutos do mar selecionados, para se diferenciar dos fast-foods
que também oferecem peixe cru ao grande público.
Ainda sobre a comida japonesa, essa também tem mudado seu lugar na gastronomia
mundial. Agora não mais como uma comida que se populariza, mas como uma gastronomia
que se elitiza, no Japão e no mundo. Desde 2007, a capital japonesa tem mais restaurantes
premiados com estrelas do Guia Michelin do que Paris, tradicionalmente a campeã – e terra
natal do prêmio. Um grande chef brasileiro já afirmou "Um bom cozinheiro nunca vai ser um
bom cozinheiro se não for pelo menos uma vez ao Japão"66. Nesse sentido, mais uma vez,
concordo com a análise de Elias. O movimento de diferenciação é constante, e emana de cima
para baixo.
Assim como o dom é naturalizado e utilizado para ocultar o caráter do trabalho árduo,
do duro aprendizado, de horas dentro da cozinha para aprender as técnicas e testar receitas,
um elemento recorrente no discurso dos cozinheiros e cozinheiras é a paixão. Ela é o
ingrediente fundamental para o/a grande cozinheiro/, pois é ela que diferencia os/as que serão
grandes e os meros executores.

A cozinha dá muito trabalho. Eu acho, eu acho não, eu tenho certeza que a


cozinha hoje, a gente pode repartir, a gente pode selecionar muitos
cozinheiros apaixonados de cozinheiros por falta de opção. Tem os
cozinheiros verdadeiramente que têm paixão, que vão muito longe, e os que
estão lá só como uma opção de trabalho. Então, isso aí a gente já vê
diretamente quando você tá em ação, você já vê o chef que é o chef que vai
fazer tudo, que vai dar 100%, que não vai deixar o taco cair, do chef que tá lá
pelo dinheiro e que não tá nem aí. (…) Lá você sabe que é um chef que tá ali
pelo dinheiro pra executar coisas, um executador, e um apaixonado67.

Como André deixa claro, existem cozinheiros/as que “verdadeiramente tem paixão”, e
são aqueles/as que “vai fazer tudo, que vai dar 100%, que não vai deixar o taco cair”, ou seja,
aquele/a que vai se doar para o trabalho, que vai ficar trabalhando até mais tarde, que vai
apoiar os colegas, que vai fazer coisas a mais, que “vai longe”. O/a cozinheiro/a apaixonado/a
ama o que faz, em oposição ao “mero executor”, que apenas cumpre as tarefas que lhe são
designadas, que faz o trabalho automaticamente.

65
Um famoso chef de origem japonesa em São Paulo abriu recentemente um restaurante que recebe apenas 12
clientes em dois horários de reserva apenas no jantar, com um menu-degustação que custa por volta de R$ 300
por pessoa. O restaurante também conta com um aclamado sommelier que sugere vinhos que harmonizam com a
refeição.
“Nada de arroz e feijão: saiba qual alimento une o Brasil, segundo Alex Atala”. Reportagem da BBC Brasil.
66

Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39425712. Acesso em 15/10/2019.


67
André, 41 anos, chef.
89

Ainda na fala do chef André, é possível perceber de que maneira a paixão legitima os
problemas no trabalho e difere aqueles que amam o que fazem daqueles que não amam.

Lógico, tem dias que eu tô cansadão, vambora. Eu largo tudo e vou embora,
eu falo pro pessoal ficar e vou embora. Mas eu gosto tanto do que eu faço.
Não sinto nada. Chego no trabalho eu esqueço até dos problemas. Eu acho
que é fácil pra mim, quando você gosta do que você faz, tudo é fácil.

A paixão é evocada constantemente na mídia, porque é a paixão que leva as pessoas a


abandonarem seus trabalhos “comuns” e se dedicarem a algo que realmente amam, a algo
pelo qual sentem verdadeira paixão. Os trabalhadores e trabalhadoras buscam sentido em seu
trabalho e na atividade profissional que realizam, ainda mais na medida em que dedicam
porções cada vez maiores de seu tempo ao trabalho. Entretanto, é importante considerar uma
ideologia neoliberal sobre a autorrealização no trabalho, a importância de amar aquilo que faz,
de se identificar, que leva muitas pessoas a acreditarem que para realizar um bom trabalho, é
preciso ter um sentimento forte o suficiente para superar todos os obstáculos.

Sabe que eu acho, quando você gosta não é cansativo. Por isso que eu acho,
tem que amar aquilo que você faz. (…) se você gosta do que você faz, você
vai fazer com prazer68.

A ideia de que a gastronomia é uma arte e que o fazer culinário é um trabalho artístico
também move alguns cozinheiros no sentido de trabalhar para lidar com um sentimento forte,
um amor.
A cozinha, ela te abraça, e consome bastante. Então você tem que amar
muito. Culinária é aquela coisa, é um ato de amor. Eu falo sempre isso pros
meus meninos, estagiários e colegas de trabalho, é um ato de amor. Quando
você faz só por fazer, você não... não fica bem69.

É como um amor, né? Amor. Amor é meio poético demais. Deixa melhorar
isso. É como na música, na pintura, vai muito da sua abertura, da sua
permissão pra querer isso entrar dentro de você, de você daí fazer disso uma
atitude, uma ação disso. Mas uma boa pergunta. Deixa eu melhorar isso, ao
máximo. Vai muito do que você quer, né? E eu sei o que eu quero. (...)
Cozinhar é como pintar, dançar... é a libertação, né? Mas isso depende da
pessoa, né? Se você não tem isso na mente, só pode ser direcionado de
acordo com o que a gente quer70.

É a paixão que compensa a falta de vida social, as longas jornadas, as horas


enclausurados, o trabalho pesado… tudo isso vale a pena, na visão dos cozinheiros, em nome

68
Samira, 55 anos, cozinheira.
69
Cidinha Santiago, 60 anos, culinarista de televisão.
70
Suyama, 49 anos, chef.
90

do amor ao trabalho. Como bem apontou André, é a paixão que separa o “verdadeiro”
cozinheiro do “mero executador”.

Porque no começo eu achava que eu não tinha vocação a mínima pra


cozinha, mas eu comecei a trabalhar (...) na lanchonete do meu padrinho, que
eu comecei tomando conta. E aí foi indo, o amor pelo movimento, pelo
barulho, aprender pratos diferentes e cada lugar é uma coisa diferente, cada
lugar é um cardápio diferente, então isso tudo vai chamando sua atenção e
você vai se apaixonando. É uma questão maior de paixão mesmo71.

A cozinha é ótima, é uma arte. Eu acho, igual sábado, teve um casamento


aqui, né. Nossa, e a gente trabalhou, trabalhou, e no final aquela realização,
entendeu, de ver as pessoas felizes, você vê o seu potencial, o que você pode
fazer, entendeu?72

Primeiro que é um grande prazer, isso sem dúvida nenhuma, eu amo o que
eu faço. Claro que às vezes aperta sim, mas eu tô tão acostumada, já estamos
aqui há 17 anos...73

Em “Femmes Chefs” (DUBY, 2004), onde são recontadas as trajetórias de 80 chefs


mulheres que trabalham na França, muitos desses depoimentos enaltecem a importância do
amor e da paixão para se tornarem grandes cozinheiras. Simone Gascuel disse “Mais do que
em qualquer lugar, a cozinha é uma paixão que se transmite pelas mulheres durante
gerações”74. Marie-France Fel, que estudou na École Lenôtre e trabalhou com Alain Ducasse
afirma que, mesmo com a rotina fatigante, não reclama, pois ser chef é sua paixão, sua
escolha "la vocation en métier"75.
Arnoldsson (2015), em sua pesquisa com homens e mulheres chefs em Estocolmo
(Suécia) observou como a paixão aparecia em seus discursos. A paixão é um dos elementos
centrais para a criação de um ethos de chef, ou mesmo de cozinheiro/a. Segundo ele, em geral,
os homens e mulheres entrevistados discorriam sobre os aspectos negativos do trabalho, como
o estresse e as longas jornadas, e para “compensá-los”, contrapunham a importância de sentir
prazer e satisfação provendo um bom serviço e fazendo com que os outros desfrutem76.
Esse ethos fundamenta-se em cinco elementos que ele apreendeu de suas entrevistas
com chefs suecos – e que encontram paralelo nas entrevistas que realizei e na bibliografia
consultada. São eles paixão, lealdade, orgulho, resistência e ambição. Eles estão
71
Elisa, 28 anos, cozinheira.
72
Joana, 38 anos, chef.
73
Samira, 55 anos, cozinheira.
74
Tradução livre do original: "Plus qu'ailleurs, la cuisine est une passion qui se transmet par les femmes depuis
des générations" (Simone Gascuel apud DUBY, 2004, p.60-61).
75
Marie France Fel apud DUBY, 2004.
76
“Passion. In general, interviewees stress that there are significant negative aspects to the job, and that in order
to outweigh these, a chef has to take pleasure and satisfaction in providing service to people and making others
enjoy themselves” (ARNOLDSSON, 2015, p.24).
91

profundamente relacionados e compõem o imaginário do “bom chef”, ou “boa chef” (embora


seja um ethos masculino), que os/as chefs procuram demonstrar e que esperam de seus
subordinados.
A paixão, que em inglês também aparece como sinônimo de drive – não no sentido de
dirigir, mas no sentido de uma vontade que orienta em uma direção, uma determinação – é
muito importante para “compensar” os aspectos negativos e os problemas.
A lealdade se refere a um sentimento forte de pertencimento ao grupo, de
interdependência com os colegas e outros trabalhadores da cozinha. Quando uma pessoa está
doente ou se sentindo mal, ela não falta ao trabalho por consideração aos colegas, não por
consideração ao patrão, ao dono do restaurante ou aos clientes – e essa é uma diferença
importante. Sua lealdade está com aqueles/as que trabalham a seu lado, que terão que
trabalhar mais, que terão que fazer a sua parte do trabalho. Quando um funcionário “ajuda”
outro, seja fazendo mis-en-place ou alguma montagem, ele vai fazer isso com esmero, em
nome dessa lealdade.

Tem várias vezes que você vai trabalhar, não tá muito bem, mas a gente não
pode fazer corpo mole, né? Tem que tentar trabalhar, né, até porque a
empresa tem uma quantidade de funcionários reduzida, então se você, por
qualquer uma coisa que você sente não vai trabalhar, vai prejudicar a equipe,
né. Então tem algumas vez que você vai trabalhar e não tá muito bem, aí
você sai, vai no médico, toma um remédio e continua trabalhando. Agora,
quando não dá pra você trabalhar mesmo, você tem que ficar em casa77.

Que às vezes eu tava ocupada, mas se os meninos estão soltando alguma


coisa, eu tô sempre de olho. Aí, às vezes eles precisam de ajuda, eu me
esforço pra ajudar. E aí vai. (…) A gente se divide. Aí cada um cuida de um
setor, porque senão fica todo mundo embolado no mesmo lugar e não dá. A
não ser que alguém precise de ajuda. Aí a gente acaba pedindo "ai, me ajuda
aqui" e tal, mas senão cada um cuida de um setor78.

O trabalho na cozinha é avaliado na mesma hora, in loco. Se há um problema, não vai


demorar um mês pra ser descoberto, nem haverá dúvida sobre quem cometeu um erro ou
quem fez algo malfeito. Para fazer parte do coletivo da cozinha, para ser parte da equipe, é
preciso ser leal aos colegas. Não se vai embora sem terminar o serviço, sem limpar a cozinha,
não se deixa trabalho para os colegas.
Fine (1996) também observou que, dentro da organização do trabalho, as pessoas se
ajudam e fazem os trabalhos umas das outras, na expectativa que tal prática seja comum e
recíproca. Ele também observou que a constituição do coletivo de cozinheiros como uma

Carlos, 53 anos, cozinheiro líder.


77

Elisa, 28 anos, cozinheira.


78
92

comunidade baseia-se em uma aproximação que se constrói fora do trabalho: ir a um bar no


fim do expediente, servir um bife para o lavador de louça ou dar sobremesas requintadas para
os garçons (FINE, 1996, p.38). Fine pontua que tal solidariedade pode significar - e
constantemente significa - trabalhar horas extras não remuneradas, seja para terminar um
serviço que não foi concluído no horário de trabalho, seja para limpar alguma coisa, para
adiantar uma tarefa, para ajudar um colega.
Segundo Rita, cozinheira autônoma:

Porque a cozinha também é uma coisa que integra, né? Você tem que
trabalhar em equipe, não tem jeito, né? Então, assim, como talvez outro,
outras atividades que você consegue trabalhar sozinho, sentado na sua mesa,
a cozinha é completamente diferente disso79.

A lealdade também é um sentimento por meio do qual o orgulho é demonstrado.


Cobrir um colega que faltou, trabalhar mais horas quando é necessário, continuar trabalhando
e abstrair da sensação de cansaço ou fome, também criam nos chefs e cozinheiros um
sentimento de orgulho. Este é muito importante no ethos do bom/boa cozinheiro/a e chef,
porque fazer um bom serviço é toda a razão de ser do trabalho. É grande a responsabilidade
daquele/a que prepara comida para outras pessoas. O maior orgulho do/a chef é ser
reconhecido como alguém que o faz com excelência, que o faz bem. O orgulho e a paixão são
inseparáveis.
Eu faço tudo que eu tenho que fazer pra que eu não seja repreendido. Eu
tenho pavor de ser repreendido por algo que é meu dever. Eu tenho pavor de
alguém me repreender por algo que eu deveria ter feito80.

O que me incentivou, que quando eles começaram a comer... eles falou...


“Nossa, que delícia, quem que fez?” Aquilo me deixou tão bem, porque
jamais imaginei que o pessoal ia gostar tanto81.

O orgulho é um elemento muito importante do ethos do/a chef e do/a cozinheiro/a,


porque o bom trabalho é reconhecido na hora. O valor do trabalho, nesse sentido, depende da
satisfação de quem come, se o prato ficou bom ou não, se a pessoa que comeu gostou, se ela
elogiou, se vai voltar ao restaurante, ou não. O ego dos/as cozinheiros/as é muito afeito aos
elogios e a essa relação com os clientes, que é quase imediata, o que leva muitos/as deles/as a
uma certa vaidade.
O cliente levanta da mesa, ele fala... teve um até que fez eu chorar. Ele
chegou assim, fez vir água no olho, ele chegou assim, ele falou que o que ele
comeu, ele conseguiu voltar na época de quando ele era pequeno, ele tava

Rita, 60 anos, cozinheira.


79
80
Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.
81
Samira, 55 anos, cozinheira.
93

comendo a vitela que a avó dele fazia pra ele. Você consegue atingir as
pessoas de uma maneira impressionante82.

Pra mim, o que eu vejo pra mim é... vai chegar o momento que eu vou
conseguir reunir pessoas comendo a minha comida e dividindo isso comigo.
É isso. Eu acho que essa é a minha evolução. Viver da minha comida, viver
das pessoas em volta de mim e dessa troca83.

Até uma moça ela chorou, veio falava comigo, “ah eu tô comendo o
babaganush da minha avó. Ele tem um gosto daquele queimado, do... do
defumado”, vamos dizer assim... Juro eu me emocionei com ela. Teve um
senhor de 80 anos, ele falou “Eu tô comendo a comida da minha avó”. Ele
chorava84.

A resistência física (endurance) está intimamente ligada ao sentimento de orgulho.


“Entrevistados testemunharam que uma boa ética de trabalho e resistência são algo que eles
acreditam que o trabalho ensina, senão demanda, do chef”85 afirma Arnoldsson (2015, p.25).
É comum que os chefs se gabem, e considerem motivo de reconhecimento e orgulho terem
passado por maus bocados na cozinha.
Na França, uma das entrevistadas relatou situações de assédio e violência durante o
período de estágio.
Eu acho que é uma cultura que existe, que a gente no Brasil fala muito da
"escola francesa", que eu acho que é mesmo, porque aqui é bem pior, que é
assim, "eu aprendi sofrendo e você vai ter que sofrer também pra
aprender"86.

Para ser um/a bom/a chef – e, por extensão, um/a bom/a cozinheiro/a – é preciso ter
resistido às duras condições, é preciso ter trabalhado muito, ter se cansado, adoecido e
resistido. É preciso ter sobrevivido.

Você começa às 8h da manhã e sai 1h da manhã. Você não tem vida. Mas as
pessoas meio que se orgulham disso, "eu não tenho vida, eu trabalho pra
caramba”87.

É cruel. É muito pesado, é muito pesado. Depois lavar tudo, colocar tudo
dentro do carro, depois chegar lá, guardar tudo. Bufê beira ao desumano88.

Entrevistadora: Seu trabalho requer força?


Joana: Força, coragem, paciência, tudo. Tudo89.

82
André, 41 anos, chef.
83
Lenice, 30 anos, chef.
84
Samira, 55 anos, cozinheira.
85
Tradução livre do original: “Interviewees witness that good work ethics and endurance is something they
believe the job teaches, if not demands from, the chef”.
86
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
87
Mariana, 31 anos, cozinheira.
88
Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.
89
Joana, 38 anos, chef.
94

Reclamar ou chorar por causa das condições de trabalho depõe contra o/a profissional,
porque demonstram que ele/a não tem essa característica considerada fundamental, a
resistência. Dentro da dinâmica do grupo, apoiando-se no sentimento de lealdade que funda o
coletivo da cozinha, quem reclama ou denuncia pode ser visto como “traidor”, um “outsider”,
alguém que não é bom o suficiente para fazer o trabalho, alguém em que não se pode confiar.

Eu achava o cúmulo. Nisso a gente ia até 3 da manhã, todo dia. Eu entrava


umas 16h. Aí o que que acontece? Eu reclamava. Eu reclamava. Ninguém
reclamava, mas eu reclamava. Me chamavam de bocuda, porque eu
reclamava dessas coisas. Isso não tá correto. (…) E eu fui demitida de lá. Eu
fiquei sem chão. Eu fiquei pensando por que isso. Depois eu descobri que foi
porque eu falava muito, reclamava demais90.

Já aconteceu comigo, já aconteceu comigo num restaurante que eu


trabalhava. A pessoa veio falar comigo em tom alto, aí eu falei pra ele que
tinha que ter mais educação pra falar comigo, e ele falou que falava comigo
do jeito que ele queria porque ele era o chefe. Aí passou um tempo e ele me
mandou embora91.

A ambição também é fundamental para um grande chef. Entre os entrevistados de


Arnoldsson (2015: 26), a ambição é associada a uma obsessão, algo para o qual é preciso
dedicar-se a vida inteira. Nesse sentido, o reconhecimento que pode vir pela mídia, pelos
críticos gastronômicos, ou mesmo uma estrela Michelin, coroa o esforço de uma vida voltada
ao trabalho e ao aprendizado na cozinha, representa o reconhecimento de uma abdicação total
ao ofício. E por isso é tão importante para os/as chefs.
Algo recorrente nas entrevistas, e provavelmente associado ao ethos do/a chef, é o
sonho de abrir o próprio restaurante ou serviço de alimentação. Por um lado, tal desejo
corresponde a um sentimento concreto e material de frustração em “trabalhar para os outros”,
em ter que fazer um tipo de cozinha imposto, em ter que cumprir determinado horário,
trabalhar com determinados ingredientes, entre muitos outros motivos (que serão explorados
no capítulo 4). Por outro lado, abrir o próprio restaurante também aparece como um objetivo
de carreira nesse sentido da ambição de ser um grande chef, de ter seu próprio
estabelecimento, de fazer uma culinária autoral, de exercer a criatividade para criar pratos
diferentes, experimentar coisas, ser reconhecido/a.
Como o trabalho culinário resulta em uma produção material, concreta, que vai ser
consumida naquele momento, a distância entre quem produz e quem consome se reduz. O fato
de que quem produziu a comida vê o resultado do seu trabalho instantaneamente cria um

90
Manuela, 31 anos, chef confeiteira.
91
Joelma, 53 anos, saladeira.
95

sentimento de orgulho que, como vimos, também é fundamental para a autoestima e o


sentimento de pertencimento desses profissionais.

2. Qualificação profissional
A qualificação profissional precisa ser entendida e analisada dentro do contexto
social mais amplo que está diretamente ligado aos movimentos políticos e econômicos que
determinam a dinâmica do mercado de trabalho (BRIGUGLIO, 2013). Para compreendê-la, é
importante diferenciá-la de outros conceitos aos quais aparece constantemente relacionada e,
não raro, confundida, como formação, escolarização e até educação. Esta reflexão é inspirada
no raciocínio sociológico empregado por Tanguy (2002), que revela a importância de
examinar e interrogar a gênese e a utilização de nomes e noções, pois eles conformam,
também, a constituição da realidade social.
O conceito de qualificação surgiu como resposta à falta de regulações sociais das
relações de trabalho, no pós-guerra. Segundo Ramos (2006), apoia-se sobre dois sistemas, a
saber: as convenções coletivas, que classificam e hierarquizam os postos de trabalho e o
ensino profissional, que classifica e organiza os saberes em torno de diplomas, ou seja, de
uma certificação dos conhecimentos relacionados aos ofícios (RAMOS, 2006, p.42). O
conceito nasceu, portanto, ligado ao modelo taylorista-fordista de produção.
De acordo com artigo produzido por Celso Ferretti (2004: 403), tendo como base o
estado da arte dos estudos sobre qualificação profissional, esta noção não tem origem na área
educacional, apesar de esta se apropriar constantemente dela. A educação profissional é um
recorte da educação escolar. O autor faz uma diferenciação entre a noção de qualificação
profissional e de competência, advertindo que a segunda é oriunda do campo econômico. O
artigo aborda a reflexão sobre as apropriações do conceito “qualificação profissional” nos
anos 1990, momento em que as mudanças no mundo do trabalho produzem uma “inflexão
significativa” na educação.
Saviani (1994) afirma que a educação coincide com a própria existência humana,
argumentando que, se o homem criava as condições para sua sobrevivência transformando a
natureza e esse processo é chamado trabalho (MARX, 2007), os conhecimentos sobre a forma
de realizar essa transformação eram elaborados e transmitidos concomitantemente. Os
homens educavam as novas gerações e os outros homens, lidando com a terra, com a
natureza, relacionando-se uns com os outros e produzindo a existência comum (SAVIANI,
96

1994, p.152). Com o advento da propriedade privada e o surgimento da sociedade de classes –


proprietários que não precisavam trabalhar e não proprietários que precisavam trabalhar para
sustentar a si e aos proprietários –, a educação desvinculou-se do trabalho. Surgiu a escola,
um lugar ao qual apenas as classes ociosas tinham acesso. Os demais acessavam a educação
no trabalho, no “aprender fazendo”.
Historicamente, há uma diferenciação entre a educação dos que precisavam trabalhar
e que se dava no próprio processo de trabalho e a educação dos que não precisavam trabalhar,
evidentemente fora do espaço de trabalho, num espaço e tempo próprios, definidos como
escola (SAVIANI, 1994, p.162). Essa separação remete à separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual.
Na sociedade capitalista, há subordinação do campo à cidade e crescente urbanização
do campo, conforme aponta Saviani. A sociedade passa a ser regulada por um direito positivo.
“A sociedade contratual, baseada nas relações formais, centrada na cidade e na indústria, vai
trazer consigo a exigência da generalização da escola” (SAVIANI, 1994, p.155). Mas a
escolarização das classes dominantes precisava ser diferenciada da escolarização das classes
dominadas. Para estar em consonância com os pressupostos do capitalismo, o saber dos
trabalhadores deveria ser apenas o mínimo de que eles precisavam para operar a produção.
Por isso a formação profissional foi sendo organizada dentro do próprio aparelho
produtivo, a formação necessária para executar um tipo de trabalho, principalmente industrial,
nascendo, a partir daí, organizações que assumiram a forma de escolas de tipo especial, como
um sistema paralelo e independente da escola propriamente dita.
Segundo Manfredi (2002, p.50),

As relações entre escola e trabalho dão-se num contexto histórico de


movimentos contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que convivemos com
grandes transformações no campo da tecnologia, da ciência, das formas de
comunicação, convivemos também com o aumento do desemprego, da
diversificação das especializações, com a redução das oportunidades de
emprego estável, com o aumento do emprego por conta própria, temporário
– enfim, um movimento de ressignificação da importância da educação e da
escola, associado a um movimento de redução do emprego formal e de
requalificação do trabalho assalariado.

Essa é a diferença fundamental entre qualificação profissional e escolarização. A


primeira é indissociável dos processos de trabalho, de qualquer atividade produtiva, enquanto
a segunda é condição para sobrevivência em uma sociedade letrada. A qualificação tem como
referência o padrão escolar, mas é determinada diretamente pelas necessidades do setor
produtivo.
97

Segundo Hirata (1996), e conforme proposição de Kergoat (1984), a qualificação


precisa ser entendida como relação social. Para essas autoras, tal compreensão da qualificação
profissional resulta da relação capital-trabalho, expressa tensão e é um conceito dinâmico, na
medida em que se refere tanto aos empregos quanto aos trabalhadores. A qualificação,
portanto, está na intersecção entre a escolaridade e o emprego, constituindo-se como um
sistema de classificação que orienta formas de recrutamento de trabalhadores, indicação para
postos de trabalho, salários e promoções (SOUZA, 2012).
Ferretti (2002) chama atenção para a atuação das instituições do chamado sistema S92
que, por serem mais ligadas aos setores produtivos, se anteciparam aos educadores, no debate
sobre os rumos da qualificação profissional, no bojo das mudanças no mundo do trabalho. No
caso da Gastronomia, o sistema S e, principalmente, o Senac, tem fundamental importância,
pois é a instituição tradicionalmente responsável pela formação de trabalhadores nessa área.
Muito provavelmente pela razão apontada por Ferretti, pois os egressos dos inúmeros cursos
oferecidos pelo Senac não precisam, necessariamente, trabalhar em restaurantes.
“Ser chefe de cozinha não é a única alternativa profissional para quem estudou
Gastronomia. Muitos podem partir para a consultoria, ou o gerenciamento de alimentos e
bebidas, catering (cozinhas industriais que produzem para terceiros), pâtisserie, entre outras”
(MONTEIRO, 2009, p.23).

2.1. Os cursos de Gastronomia

O primeiro curso de formação profissional no Brasil na área de gastronomia, mas


ainda sem essa identificação, foi o curso básico de Cozinha, oferecido pelo Senac em 1963.
Também nessa época, inaugurou-se a primeira escola básica de hotelaria e turismo em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Em 1964, o Senac abre a unidade de Hotelaria e Turismo Lauro
Cardoso de Almeida, no centro de São Paulo, que, além das salas de aula, dispunha de
restaurante, cozinha e apartamento-modelo para as aulas práticas (FREIXA e CHAVES,
2015).
De acordo com Bitencourt (2007, p.6),

Até 1965, a única forma de se tornar chef de cozinha no Brasil era por meio
da formação no próprio trabalho. A partir de então, com o decreto número

92
Sistema S refere-se às instituições de ensino ligadas ao setor produtivo. São elas Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (Senar) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat).
98

44.864, de 28 de maio de 1965, o Governo do Estado de São Paulo, através


de sua Secretaria de Turismo, “reconhece a validade do certificado de
habilitação profissional do curso de cozinheiro”. Passa a existir então, a
possibilidade de formação básica de cozinheiro através da educação
profissionalizante.

Com a abertura das importações nos anos 1990, a contribuição dos chefs franceses e
a constituição de uma gastronomia brasileira, entendida aqui como a oferta de refeições
sofisticadas, aumenta muito a demanda por força de trabalho qualificada nas cozinhas. Em
diversas publicações, aponta-se que o trabalho nas cozinhas, até então, era realizado por
pessoas sem qualificação, geralmente “migrantes nordestinos” (MONTEIRO, 2013; FREIXA
e CHAVES, 2015). Migrantes nordestinos, aqui, aparecem como um conjunto de pessoas com
baixíssima ou nenhuma qualificação, em situação de vulnerabilidade que, tendo migrado,
aceitariam trabalhar em qualquer condição.
Um entrevistado compõe esse grupo mais vulnerável e encontrou trabalho na cozinha
como alternativa “ao chão de fábrica”, mesmo sem ter nenhuma qualificação específica, e
começou sua carreira na pia.

Eu no momento, eu foi por não ter opção, né? Porque quando eu cheguei
aqui [São Paulo] pra trabalhar foi o que eu achei, na verdade foi cozinha pra
trabalhar. Não era meu ramo, porque meu ramo mesmo é auxiliar de
produção, fábrica de calçados, muitas coisas assim. Aí quando eu cheguei
aqui em 2004, foi, foi 2004, agosto de 2004. Quando foi com 15 dias, aí eu
arrumei um trabalho num hotel, pra ajudante de cozinha, aí eu falei, ah,
como eu vim no objetivo de trabalhar, aí eu não escolhi. E acabei gostando,
já [ofereceram] pra mim outra oportunidade na minha área antes de ser
cozinha e eu não quis, continuei na cozinha e não me arrependo. Se fosse pra
fazer tudo de novo, eu fazia de novo93.

Como parece ser habitual quando se trata o tema da qualificação profissional como
um problema, a responsabilidade recai sobre os trabalhadores. Mas foi possível observar nos
dias de hoje, mais de três décadas após a abertura econômica do Brasil, que continuam sendo
os trabalhadores pobres e com pouca ou nenhuma qualificação que entram nas cozinhas para
enfrentar longas jornadas e receber baixos salários.
Em 1994, 30 anos depois do primeiro curso, o mesmo Senac, considerado uma das
melhores instituições na área de hotelaria e turismo no Brasil, criou o curso de extensão
cozinheiro Chef Internacional (CCI) a partir de um convênio com a Culinary Institute of

93
Vitor, 32 anos, sous chef.
99

America94 (CIA), oferecido primeiramente na unidade de Águas de São Pedro, no interior de


São Paulo (FREIXA e CHAVES, 2015). Entretanto, o primeiro curso universitário de
Gastronomia foi criado em 1989 pela Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo,
também em convênio com instituição estadounidense, a Californian Culinary Academy
(CCA).
A partir dos anos 2000, com o incremento do turismo no Brasil (ainda que de forma
incipiente e insuficiente), a demanda por cursos de gastronomia aumentou e as escolas de
gastronomia cresceram muito. Existem diversos tipos de formação possíveis: após a
conclusão do ensino médio, há opções para a continuidade dos estudos na área, como o curso
técnico em cozinha (com cerca de cinco meses de duração); cursos de extensão universitária
(aproximadamente um ano de duração, mas pode ter mais, como é o caso do CCI); e a
graduação tecnologia em gastronomia (dois anos de duração) (MONTEIRO, 2009; FREIXA e
CHAVES, 2015, p.276).
Com o aumento da oferta de cursos na área, a cozinha se torna um espaço ainda mais
tensionado, pois os trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação continuam
encontrando neste espaço a possibilidade de emprego, mas agora também estão lá os/as
jovens de classe média que pretendem construir uma carreira na gastronomia, que pretendem
se tornar chefs, inspirados por programas televisivos e profissionais que viraram estrelas.
De acordo com dados do Ministério da Educação, o estado de São Paulo oferecia 81
cursos “tecnológicos” presenciais de Gastronomia em 201995. Os primeiros cursos datam do
início de 2001 (no Senac de São Paulo). Apenas em 2019 foram criados sete cursos no estado,
dos quais dois estavam em andamento.
Ao longo da pesquisa, entrevistei o coordenador de alguns cursos de Pós-Graduação
no Senac. Ele iniciou sua formação em Ciências Sociais no interior de São Paulo, mas não
concluiu. Em seguida, participou da primeira turma do curso Tecnologia em Gastronomia, no
Senac Santo Amaro, em 2004, “a fatídica turma de 2004”. Trabalhou como consultor em uma
empreitada para trabalhadores da construção civil em Angola, mas retornou ao Brasil após
contrair malária e febre tifoide. Trabalhou em diversos restaurantes pelo Brasil, cozinhas
industriais e empresas. Em 2012, fez pós-graduação no Senac (Gastronomia, História e
Cultura), a mesma que ele coordena hoje, para tentar uma carreira como docente.

94
Esse prestigioso instituto de ensino foi criado por duas mulheres em 1946, Frances Roth e Katherine Angell,
mas tinha como objetivo treinar homens que retornavam aos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. As
mulheres só passaram a ser integralmente aceitas no curso a partir de 1970, e em 1972, apenas 5% dos estudantes
eram mulheres (HARRIS, GIUFFRE, 2015, p.31).
95
Dados obtidos por meio do site do E-Mec, http://emec.mec.gov.br/. Acesso em 03/12/2019.
100

Segundo o coordenador, os cursos são elaborados a partir de uma diretriz central,


comum a todas as unidades (“A gente tem um projeto pedagógico que vem da sede”),
sintetizada nos ementários: identificação, concepção, público-alvo. Os docentes devem seguir
as ementas, mas é possível acrescentar e modificar algumas coisas, desde que não desviem
dos objetivos do curso e que comuniquem à coordenação antes de fazer as alterações. Esse
cuidado se deve ao fato de que o Senac precisa garantir que, em alguma medida, os cursos
sejam padronizados, já que são oferecidos em diversas unidades.
O curso de Gastronomia do Senac é top of mind desde que abriu, né? Então
assim, todo ano a gente faz pesquisa de opinião quando o aluno entra,
quando o aluno sai. E os docentes têm autonomia pra mandar pra essas
gerências de desenvolvimento, falando "olha, acrescentei tal coisa no
ementário, achei que ficou legal, fiz assim, assim, assado". (...) Daí assim,
você tem que usar isso. Isso aqui é o que a gente tem que usar em aula, o
professor tem liberdade pra criar do jeito que ele quiser. Vem aqui,
bibliografia complementar, você adiciona ou não adiciona, você pode
colocar o que você quiser, entendeu?

Ainda de acordo com ele, há uma preocupação muito grande de que os alunos
“coloquem a mão na massa” ao longo do curso, e tenham um aprendizado o mais próximo
possível da prática. Além de seguirem as ementas dos cursos, aprenderem as técnicas e o
manuseio dos insumos, os alunos também são responsáveis pela limpeza e higienização de
toda a cozinha após as aulas, assim como nas cozinhas de restaurantes.

2.2. Formação profissional nas cozinhas

Cozinhar demanda uma série de conhecimentos e habilidades. Na cozinha, é evidente


a indissociabilidade entre teoria e prática. Trata-se de uma atividade que demanda
conhecimento teórico sobre receitas, ingredientes, técnicas, e também uma habilidade prática:
como preparar as receitas, como cortar, picar, dar ponto em uma massa ou calda, entre muitos
outros exemplos. Em uma cozinha profissional, é necessário saber manusear os instrumentos
e saber lidar com os ingredientes, é preciso saber ler e executar uma ficha técnica (ou receita),
mas é preciso saber fazê-lo de acordo com determinados critérios e parâmetros, de uma
maneira bem estabelecida, dentro de um padrão e em um determinado ritmo.
Em algumas entrevistas, os profissionais apontam a quantidade como o principal
diferenciador da cozinha doméstica e profissional. Cozinhar em casa para a família e amigos é
diferente de cozinhar para 50, 100, 120 pessoas todos os dias. Mesmo que se prepare a mesma
101

comida, a quantidade é muito maior. Descasca-se e corta-se uma ou duas cebolas à brunoise96
para fazer uma refeição em casa; são mais de 100 em um restaurante. Assim, mesmo que
esses conhecimentos coincidam, na cozinha profissional exige-se mais: o corte tem que ser
perfeito, os cubinhos têm que ser idênticos.

Rosana: Porque lá é diferente do da casa da gente, né, lá tudo é muitas


quantidade [sic].
Entrevistadora: Conta pra mim um pouco como que é diferente?
Rosana: Da casa da gente? É a quantidade. A quantidade, agora a qualidade
tem que ser o mesmo que a gente faz na casa da gente, a mesma qualidade.
Só que a quantidade que é mais, entendeu? Aí você não vai colocar duas
xícaras de arroz no fogo, você vai colocar é 10kg. (...) É, você coloca 10kg.
Você não vai colocar um quilo de feijão, você coloca cinco. Entendeu? A
diferença é só essa. Mas a qualidade, do sabor, tem que ser caseiro, igual
você faz na sua casa97.

Há, portanto, uma forma específica de fazer as coisas na cozinha profissional. É


preciso saber fazer. Evidentemente, cada restaurante e cada cozinha tem seu modo de
preparar, elaborar, servir a comida. Mas existem técnicas e maneiras de preparo que são
padronizadas, como o corte brunoise, por exemplo, e todo cozinheiro deve saber executá-las
bem e rapidamente.
É possível que um cozinheiro ou cozinheira chegue a uma cozinha profissional com
sua experiência na cozinha doméstica e saiba fazer diversas das tarefas exigidas. Entretanto,
será necessário que ele/a adquira ritmo, velocidade para desempenhar essa atividade, um
imperativo da cozinha profissional. Para aprender a fazer as coisas como elas precisam ser
feitas e na velocidade em que precisam ser feitas e os pratos entregues, é preciso prática.

Entrevistadora: E aí, agora, por que você voltou [a trabalhar em


restaurantes]?
João: Pra ocupar o meu tempo e pra conseguir mais experiência mesmo, o
ritmo, né, por exemplo, aí eu tô, mas eu sei que eu preciso melhorar o meu
ritmo, eu tô fora de ritmo ainda. Então eu sei que eu tenho que melhorar meu
ritmo, então pra mim tá sendo ótimo, pra entrar no ritmo de novo. (...)
Porque hoje a demanda tá alta, mas ainda pode melhorar. Então no dia que
tiver uma demanda muito alta, você tem que acelerar98.

É importante ressaltar que a cozinha de um restaurante precisa funcionar de forma


muito organizada, como uma engrenagem muito bem azeitada, ou uma linha de produção em
perfeita sincronia. Por isso o ritmo é tão importante. O trabalho começa horas antes do

96
Corte brunoise é o corte em cubinhos.
97
Rosana, 41 anos, assistente de cozinha.
98
João, 40 anos, sushiman.
102

restaurante abrir: o pessoal do salão (maîtres, cumins, garçons) limpa o chão, as mesas,
arruma as toalhas de mesa, os talheres, as taças, os guardanapos, ajeita as cadeiras, enfim,
prepara o espaço destinado aos clientes. Na cozinha, ajudantes e auxiliares começam o
trabalho do mise-en-place, em que todos os ingredientes que serão utilizados no serviço são
preparados com o máximo possível de antecedência, a fim de não comprometer suas
características. Trata-se de um trabalho de planejamento que precisa ser muito bem executado
para evitar confusão no momento do serviço.
O serviço é como os trabalhadores chamam o período de trabalho em que os clientes
efetivamente estão no restaurante. Nesse momento, geralmente, os pedidos não chegam um
por vez, mas aos montes, dependendo do movimento no estabelecimento, e precisam ser
atendidos sem perda de tempo. Os pedidos de uma mesma mesa precisam sair juntos, os
pratos não podem ser servidos frios ou mornos, também não podem demorar. Há uma pressão
muito grande sobre os cozinheiros no momento do serviço, por isso é fundamental que eles
deixem o máximo possível de coisas adiantadas e prontas antes.

Estar devidamente aparelhado, ter treinamento e coordenação motora não


basta. Um bom cozinheiro de linha também precisa manter a cabeça fresca,
organizada e razoavelmente equilibrada durante os períodos frenéticos e
estressantes. Quando você tem 30, 40 ou mais mesas sentando todas ao
mesmo tempo para jantar e pedindo coisas diferentes, com diferentes
temperaturas, tudo tem de estar em harmonia; as diversas praças – salteado,
garde-manger, grelha etc – tem de servir um jantar para dez pessoas ao
mesmo tempo (BOURDAIN, 2016, p.94).

Cada estabelecimento tem seu ritmo e harmonia característicos, varia de acordo com
o cardápio, com o tipo de culinária, a quantidade de cozinheiros e ajudantes, muda também de
acordo com a quantidade de pessoas que o estabelecimento atende, se é o serviço do almoço
ou do jantar. Mas um bom serviço só se realiza se, como Bourdain (2014) afirma, todas as
partes estão trabalhando juntas. E o responsável pelo bom andamento do trabalho coletivo é o
chef, como um maestro em uma orquestra.
Durante a pesquisa de campo, muitos cozinheiros afirmaram que a melhor escola é a
cozinha do restaurante. Sua formação encontra-se fortemente ligada ao local de trabalho, e são
quase unânimes ao afirmar que o aprendizado da profissão se dá na própria cozinha.

Não é um curso que realmente é prático pra você aprender, não, você
aprende aqui [no restaurante]. Tanto é que a minha chefe não tem curso, não
tem faculdade. Eu aqui aprendi muito mais do que eu aprendi em um ano de
103

faculdade, em dois meses aqui praticando. Tá vivenciando isso todo dia,


importa muito99.

Entrevistadora: Mas pra você trabalhar com sushi você não precisa ter
curso?
João: Não, você tem que saber fazer. Tem que saber fazer os pratos. Então,
um yakissoba, eu mesmo fazia em casa, comecei a fazer. Aí eu fui pra um
restaurante, “então vem aqui que eu vou te ensinar mais algumas coisas que
você não sabe, umas coisas a mais”. Aí eu aprendi nesse primeiro restaurante
que eu trabalhei, que é lá na Saúde [bairro paulistano]. Aí depois eu fui
adquirindo experiência. Comecei a fazer em casa100.

Conforme foi possível apreender a partir das entrevistas e de uma parte da literatura
(principalmente relatos de cozinheiros), a qualificação profissional de um cozinheiro é
construída a partir dos aprendizados obtidos no próprio trabalho culinário. Trabalhar em um
restaurante que serve comida espanhola, por exemplo, implica preparar pratos da gastronomia
espanhola, e portanto aprender a fazer paella, gaspacho, tortillas. Não é preciso saber isso a
priori, mas definitivamente é preciso aprender e treinar. Assim, quanto maior o número de
cozinhas em que um/a profissional trabalhou, mais rica é a sua formação.

Entrevistadora: E antes de trabalhar em restaurante você não cozinhava


nada? Aprendeu tudo no trabalho?
Vitor: Não. Tudo no trabalho. (...)
Entrevistadora: Nesses vários restaurantes em que você trabalhou, você
aprendeu vários tipos de comida?
Vitor: Vários. Sempre, de cada um, eu peguei um pouquinho. Tudo eu tirei
um pouquinho. Peguei um pouco de tudo101.

Entrevistadora: Quando você começou a trabalhar lá, você sabia cozinhar?


Sabia mexer com alguma coisa de comida?
Valdemar: Não, fui aprendendo aos poucos mesmo. Os profissionais que
tinha, eu mesmo ficava observando, como cortar cebola, como cortar um
tomate, aí a gente vai pegando.
Entrevistadora: No trabalho mesmo?
Valdemar: No trabalho mesmo.
Entrevistadora: E os colegas te ajudavam?
Valdemar: Ajudavam bastante102.

Algumas coisas aprendi de olho, outras eu foquei na receita, fui fazendo uns
testes, né, alguns deram certo, outros nem tanto, alguns nem chegaram a ir
até o final, foi... e daí testando, testando, e pergunta muito, né, porque eu sou
muito curiosa, então eu acabo perguntando muito. Eu aprendi todos os pratos
do fogão aqui perguntando. Que às vezes eu tava ocupada, mas se os
meninos estão soltando alguma coisa, eu tô sempre de olho. Aí, às vezes
eles precisam de ajuda, eu me esforço pra ajudar. E aí vai103.
99
Carina, 18 anos, estagiária.
100
João, 40 anos, sushiman.
101
Vitor, 32 anos, sous-chef.
102
Valdemar, 34 anos, chef.
103
Elisa, 28 anos, cozinheira.
104

Na verdade eu aprendi com os chefs que eu trabalhei. Comecei no __, né, daí
aprendi um pouco. Depois trabalhei na hotelaria __, nove anos, aprendi mais.
E depois eu vim pra cá e depois na faculdade. A faculdade é mais
aperfeiçoamento, né, das coisas104.

Cada restaurante é diferente, entendeu? Você tá habilitada a trabalhar


naquele serviço não quer dizer que você vai praquela outra casa e é a mesma
coisa, porque não é. Chega lá, é diferente. A comida é diferente, entendeu? A
turma com quem você trabalha é diferente. Aí vai de casa pra casa. Eu já
trabalhei no natural, já trabalhei em comida por quilo, selve-selve, e assim...
vai indo. Cada um deles é diferente. Não são iguais. O único que são muito
iguais é só o arroz e o feijão, porque isso é de todo restaurante. Mas os
outros pratos, diferentes105.

Muitos trabalhadores apontam a curiosidade e o interesse como peças-chave para seu


aprendizado. Não basta fazer apenas o que lhe é solicitado, obedecer e cumprir ordens, é
preciso “estar de olho”, estar atento ao que acontece na cozinha, ajudar os colegas que
precisam de ajuda. Destaca-se o/a profissional que quer ir além, que tem desejo de aprender,
que demonstra interesse, que parece ter ambição – esse elemento tão importante no ethos
profissional.
O chef francês Laurent Suaudeau (2007: 30), escreve que para um cozinheiro se
tornar um chef é necessário uma rígida formação, que se obtém por meio de uma longa
experiência ao lado de chefs reconhecidos pelo mercado. “Para assumir uma posição de
comando num restaurante, o profissional chef de cozinha deve possuir conhecimentos
específicos, muitas vezes adquiridos exclusivamente no aprendizado prático,
desconsiderando, em função de inúmeras razões, o embasamento teórico”.
Não se trata de desprezar a formação teórica ou cursos realizados. O fato de que, nas
cozinhas profissionais, a formação on the job seja mais valorizada não anula a importância
dos cursos. Trabalhar com um grande chef, ter no currículo uma passagem por um restaurante
de prestígio, vale mais que do que os caríssimos cursos na área. Entretanto, os cursos
possibilitam o acesso a um conhecimento organizado e sistematizado, assim como
especializações (o caso de cursos livres e de curta duração). Para construir uma carreira e
galgar postos mais altos na hierarquia, os cursos podem ter um papel-chave, como vimos.
O chef é frequentemente associado à figura de um professor, o que reforça ainda
mais a hierarquia vertical e aprofunda as diferenças na cozinha. Esse aprendizado é mediado
por uma série de tensões. Não há exatamente um acompanhamento desse ensino. Se estar na
cozinha e trabalhar já significa estar aprendendo, como é possível garantir a qualidade?

104
Joana, 38 anos, chef.
105
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
105

A maioria dos chefs está disposta a ensinar. Mas é aquilo que eu te falei, vai
de cada um. Você que tem que ter o interesse de conhecer, de fazer as coisas,
né106.

A pessoa vem, te dá uma dica e fala "tenta daí pra frente". Porque todo
mundo tem o que fazer, então não dá pra ficar alguém encostado com você
"ó, faz assim", então tem aqui uma receita, dá uma olhada aí e se tiver
dúvida, me chama. Aí você vai testando, tentando, às vezes dá certo, às
vezes não dá107.

Uma coisa que acontecia aqui é que meu chef não me explicava como é que
ele queria as coisas. Eu tinha que adivinhar. Quando eu perguntava pra ele
"você quer assim ou assado?", ele era supergrosso comigo, do tipo "se vira".
O que que eu vou fazer? É ridículo108.

Entrevistadora: Como que você avalia sua experiência de aprendizado no


estágio?
Carina: Aqui foi uns nove, viu. Porque realmente tava, a pessoa tava, a
pessoa que ficou comigo, que fica aqui em cima, ela realmente queria
ensinar. E ensinava mesmo o que ela tava fazendo, ainda mais quando você
passa da cozinha de produção, que é essa cozinha que fica aqui em cima, que
é de onde sai as bases do restaurante, pro restaurante mesmo. Aí é que você
aprende mesmo. Você aprende olhando, assim, e vendo como eles fazem. Se
você souber sugar a pessoa, dá certo, sim109.

Os cursos são, por sua vez, associados a um aperfeiçoamento que funciona melhor
para as pessoas que já trabalham na área e estão familiarizadas com o ambiente da cozinha.
De acordo com Bittencourt (2007, p. 3), em sua experiência como profissional da área e
pesquisador,
Muitos cozinheiros e chefs de cozinha iniciaram suas carreiras com
experiências adquiridas ao longo de seu trabalho diário, com a prática
operacional no seu dia a dia, ficando claro o esforço para alcançar cargos que
exijam mais habilidade e até mesmo a educação formal, pois muitos
possuem apenas os níveis básicos de ensino.

Os cursos técnicos e tecnológicos em Gastronomia são relativamente novos no


Brasil. Entretanto, existem cursos mais pontuais e de curta duração disponíveis para esses
profissionais em diversas instituições, das quais se destaca o Senac, mais reconhecido.
Dentre os entrevistados há alguns que fizeram o curso superior quando já
trabalhavam em restaurantes, mas que sentiam a necessidade de se aprimorar ou para
conseguir alcançar postos mais altos na hierarquia da cozinha. Há, entre eles, também aqueles
que o fizeram logo após concluírem o Ensino Médio, e suas opiniões sobre o curso divergem.

106
Joana, 38 anos, chef.
107
Elisa, 28 anos, cozinheira.
108
Mariana, 31 anos, cozinheira.
109
Carina, 18 anos, estagiária.
106

Aqueles que já trabalhavam em cozinhas avaliam bem o curso, pois o entendem


como um momento de aperfeiçoamento, que os permite aprender algumas técnicas que não
tiveram a oportunidade de conhecer em seus trabalhos.

Às vezes você conhece a lagosta, mas não consegue trabalhar com ela, não
consegue limpar. Então a faculdade ensina tudo isso pra você, entendeu?
Tem pessoas que manuseia a carne, mas não sabe como cortar, como fazer
direito, e a faculdade, ela te... conduz a tudo isso. A fazer as coisas com mais
perfeição, entendeu, determinadas áreas, por exemplo, tem cozinheiro que
não sabe definir, ah é tudo quente, ou tudo frio... entendeu, e a faculdade
não, é tudo por etapa, então, finaliza, vamos dizer, um cozinheiro. Te deixa
bem hábil110.

Já entre os trabalhadores mais jovens, que saíram do Ensino Médio direto para o
curso de Gastronomia, este é insuficiente e não está de acordo com todos os aprendizados
necessários para se trabalhar como chef de cozinha, ou não está atualizado com as modernas
tecnologias, cada vez mais empregadas no preparo de alimentos.
O aprendizado no curso é bom, é interessante, é um primeiro passo. Mas ele
nunca é completo. Então, assim. Você não lê inglês, você não sabe ler nada
em outra língua? Não vai se aprofundar em Gastronomia. Então isso já é um
ponto. O aprendizado no Brasil é inteiro em português, não é bilíngue. Já é
uma coisa que você não tem livros em português de alta definição técnica,
você não tem a agilidade que tem de chegar as técnicas em português. Muita
coisa traduzida em português é errada. Então, o cara traduz de um jeito
totalmente sem sentido, você fala "meu, se eu fizer isso vai dar tudo errado".
Então, se você não tem isso, não tem essa percepção, já começa a ter uma
falha. Então o aprendizado na faculdade, ele é assim, igual você dar um
curso técnico pra um cara dirigir uma empilhadeira? Eu te dou o curso, só
que você nunca teve uma empilhadeira na sua vida. Quando você chegar lá,
se você bater é problema seu. Mas é essa a questão. Não é completo. (...)
Então, assim, voltando, né, finalizando, o estudo no Brasil, a faculdade não
te dá base pra você sair de lá e falar "sou cozinheiro". Não, você sai como
auxiliar111.

A crítica repousa, como o trecho acima parece deixar claro, na relação entre o curso e
a realidade do trabalho nas cozinhas. O entrevistado afirma que a produção acadêmica na área
não é produzida em língua portuguesa, que as traduções contêm erros e que a parte prática é
insuficiente. Novamente, aparece de forma subjacente à ideia de que o curso não tem como
ensinar aquilo que só pode ser aprendido na prática.
Lenice, que é chef, formou-se no curso de extensão Cozinheiro Chefe Internacional
do Senac, e faz uma avaliação parecida.

110
Joana, 38 anos, chef.
111
Matias, 25 anos, cozinheiro.
107

O curso que eu fiz ele não é o tecnólogo, que dura dois anos. Que não existe
graduação em gastronomia, né? É só o tecnólogo. Eu fiz um que chama CCI
– Cozinheiro Chef Internacional, que é pra quem... um público que já tem
formação superior. Então, ele é condensado em um ano e não dois. Tem as
mesmas, as mesmas ementas, mas ele é mais condensadinho. É um curso
bastante interessante, eu demorei muito a escolher qual fazer, mas é um
curso de que eu gostei muito, a gente teve um bom apanhadão. Mas é isso, o
que você aprende lá, você leva pra casa e faz, porque não dá tempo, é muita
técnica, é muita coisa112.

É interessante comparar esses dois trechos e perceber que os dois fizeram cursos na
mesma instituição, o primeiro fez o curso com maior duração, estagiando no hotel próprio do
Senac (o Grande Hotel São Pedro, hotel-escola localizado em Águas de São Pedro/ SP) e
avalia que o curso é insuficiente e prepara para ser auxiliar de cozinha, enquanto Lenice, cuja
formação inicial é de economista, fez apenas o curso de extensão, um curso mais condensado
(para que o conteúdo de dois anos seja transmitido em apenas um), considera o curso bom.
Mas ambos concordam que a parte prática não é suficiente, pois existe um aprendizado que se
realiza na prática, no dia a dia do trabalho em uma cozinha profissional.
Existe um discurso que perpassa as falas de todos os entrevistados, de que os cursos
são menos importantes, que o que é realmente valorizado é a experiência, que esse é o
ensinamento e o processo de aprendizagem necessário para se tornar um profissional.
Entretanto, entre as brasileiras que estavam morando na França, as duas chefs (uma, inclusive,
proprietária de seu próprio estabelecimento) haviam feito cursos (ainda que curtos) em uma
renomada escola gastronômica. Lá, o diploma de conclusão de um curso de prestígio quase
sempre se reflete em uma posição no mercado de trabalho, segundo elas me informaram.

2.3. Os estágios

Conforme discutido até aqui, vimos que a experiência de trabalho é fundamental para
a carreira do/a cozinheiro/a. O estágio, portanto, é um momento muito importante para os/as
jovens aspirantes a chef, principalmente para aqueles/as que estão investindo em sua formação
na área. Geralmente, o estágio é a primeira experiência profissional de muitos/as jovens que
pretendem seguir uma carreira na cozinha113. Ele tem um peso importante no currículo.

Lenice, 30 anos, chef.


112

Os profissionais que já trabalham em restaurantes e vão fazer o curso para se qualificarem ou alcançarem
113

postos mais altos na hierarquia não precisam fazer estágio.


108

... o estágio não tem um plano de cargos e carreiras no restaurante. Não tem
assim, você é formada, vai fazer isso, não. Eu era formada em outra área, fui,
fiz um estágio no ___, o __ abriu as portas, como se fosse minha faculdade,
meu curso, e aí eu comecei a estagiar em outros restaurantes114.

Também é uma forma de conseguir outros trabalhos na área: a partir do estágio pode-
-se começar a estabelecer uma rede de contatos que possibilite futuras indicações a postos de
trabalho em outros estabelecimentos. A indicação é uma das principais formas de se colocar
neste mercado.
Finalmente, o estágio representa, para o estudante, uma forma de obter um
aprendizado efetivo, que se dá na prática – o cotidiano da cozinha, o ritmo, a divisão do
trabalho, entre outros. Sendo tão importante para os/as aprendizes, muitos estabelecimentos
consideram que estão contribuindo para a formação dos/as jovens cozinheiros/as oferecendo
essa oportunidade, e que isso basta. Assim, muitos restaurantes não pagam os estagiários, ou
oferecem apenas uma “ajuda de custo”.

Eu fiquei seis meses de estagiária, ainda mais por causa da idade, eles não
podiam fazer muito, né? Aí eu fiquei assim só pra aprender mesmo. Fiquei
aqui na produção cinco meses, sozinha com uma das chefs e eu fiquei na
confeitaria também, né. Aí esse ano que eu fiquei com 18 anos, aí o __ veio
onversar comigo, que é o chef do __, pra já entrar. Eu fiquei seis meses, 200
reais por mês. Não dava nem pra pagar o ônibus pra vir. E assim, na
confeitaria eu entrava às 4h da tarde e saía 2h40 da manhã, saía 2h da
manhã115.

a realidade, naquela época, a maioria dos estágios era não remunerado, né?
Era você fazia estágio por fazer, assim, pra aprender mesmo. E eu ainda
peguei um que ganhava acho que na época coisa de 400 reais assim116.

Luca Gozzani, chef executivo do Restaurante Fasano, um dos mais nobres e


prestigiados restaurantes paulistanos, que possui uma estrela Michelin, deu uma palestra na
abertura do curso de Gastronomia da Universidade Estácio de Sá, em São Paulo, em
companhia da gerente corporativa de Recursos Humanos do Grupo Fasano, Dominique
Bittencourt Rosa. Naquela ocasião, a gerente recomendou que os estudantes trocassem de
restaurante a cada dois ou três anos, para que pudessem crescer profissionalmente. “É preciso
aprender novas coisas, mas com a troca de emprego eu também perdia, pois o meu salário não
subia. Dessa forma, eu aprendi muito mais do que se tivesse ficado numa única casa”. O chef,
por sua vez, agradece “Eu ainda tenho que dizer obrigado a muitos lugares onde trabalhei de

114
Manuela, 31 anos, confeiteira.
115
Carina, 18 anos, estagiária.
116
Frederico, 35 anos, bancário.
109

graça, pois ali aprendi coisas que uso até hoje”. Mais do que isso, o renomado chef italiano é
categórico: “Nenhuma escola forma um chef de cozinha” 117.
Mesmo internacionalmente, o estágio não remunerado é uma prática absolutamente
comum. A experiência profissional é tão central para esse segmento que o estágio em si é uma
moeda de troca, os estabelecimentos podem escolher quem selecionar para trabalhar de graça.
Entrevistei duas cozinheiras que fizeram curso com duração de um ano na famosa École
Ferrandi, em Paris. Ambas afirmaram que o investimento no curso girou em torno de nove mil
euros, e que a formação era de seis meses na escola e seis meses de estágio.
Mariana118 investiu em um curso de formação na França por entender que, tendo já
uma idade “avançada” (mais de 25 anos), seria necessário ter um diferencial em seu currículo
para conseguir trabalho.

Ia ser bom pra mim dar um up na França, fazer um curso lá, porque vai ser
super-reconhecido no Brasil e aí eu vim fazer Ferrandi, eu fiz Escola
Ferrandi aqui, estudei por um ano. Fiz o curso pra estrangeiro, que na
verdade são seis meses de aula e seis meses de estágio.

Em seu livro “Calor” (2007), o jornalista Bill Buford refaz a carreira do chef ítalo-
americano Marco Batali na Itália, procurando trabalhar nas mesmas cozinhas que o acolheram
décadas antes. Em suas palavras:

A palavra-chave é estágio. A Itália vive uma crise nessa área e chefs de


qualquer estatura têm listas de pessoas que querem ser suas escravas. (...) A
escravidão está tão na moda que você precisa de permissão para ser escravo:
há regulamentos, vistos, um protocolo e um selo no passaporte que só se
obtém solicitando-o às autoridades italianas da imigração, com o endosso de
um “contrato” por escrito com um restaurante que inclua o compromisso de
ele não pagar pelo trabalho que já concordou em obrigá-lo a fazer. (É um
momento curioso da história das relações de trabalho na cozinha). (Buford,
2007, p.245).

Manuela, 32 anos, confeiteira em um prestigiado restaurante em São Paulo, tem


formação inicial em Publicidade e trabalhou grande parte da sua vida em grandes
corporações, no que ela chamou de “a área comercial”. Ao decidir mudar de carreira e se
dedicar à gastronomia, ela percebeu que não seria possível fazer o investimento em um curso,
mas que seria possível transitar no mercado tendo um estágio em um restaurante renomado.
Segundo seu relato:

117
Disponível em https://infood.com.br/luca-gozzani-cozinhar-nao-e-uma-coisa-que-se-concentre-em-5-horas-
do-seu-dia/ (acesso em 02/12/2019).
118
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
110

...assim, você faz um estágio em um restaurante bom, como o __, é como se


anulasse a faculdade. Você trabalhou no __? Vem. Então eu fiz esse... meu
raciocínio foi por aí. Fui bater na porta, até porque eu também na época tava
muito confusa sobre o que eu queria, e eu não tinha condições de pagar uma
faculdade de dois pau [sic] pra ganhar outra coisa. É muito distorcido o que
você investe com o que você ganha, você nunca vai pagar o investimento
com o salário que eles pagam. Então, eu não tinha dinheiro pra pagar pra
fazer a faculdade, então eu fui bater na porta mesmo. Eu fui no __
pessoalmente, falei com a menina do RH, ela me disse "manda seu currículo
que quando abrir vaga eu te chamo". Aí demorou um pouquinho, mas
quando abriu me chamaram. (...) Aí eu fui porque eu tava disposta a
trabalhar de graça.

Frederico, 35 anos, fez pós-graduação no Italian Culinary Institute for Foreigners


(Instituto de Culinária Italiana para Estrangeiros), na Itália. Ele escolheu esse curso porque,
além de ser voltado para estrangeiros, também “facilitava” o acesso ao estágio. O curso tinha
duração de dois meses e o estágio durava sete meses. Uma vez concluída a parte “teórica” do
curso,

Aí eles enviam... aí eles, você meio que escolhia, escolhia assim, você
contava pra eles mais ou menos o que que você tava querendo de estágio
assim, que tipo de cozinha que você queria e tudo mais. E eles tinham uma
rede de restaurantes credenciados onde eles mandavam os estagiários. E aí
eu acabei indo pra um restaurante no norte da Itália, perto da divisa com a
Suíça, e fui estagiar lá. De graça, né, como todos os estágios. Ninguém lá
recebia. Eles só eram obrigados a te dar alimentação e habitação. E eu dei
sorte, fui trabalhar com um cara superlegal, tinha uma casa bacana, tal. Mas
teve alguns colegas que tiveram que trocar porque moravam em casas assim
em condições insalubres e tudo mais.

Há uma questão subjacente ao estágio não remunerado em restaurantes: quem pode


pagar um curso caro e trabalhar sem receber salário?
Conforme foi possível apreender ao longo da pesquisa, alguns jovens de classe média
com alto poder aquisitivo podem acessar o curso em instituições como o Centro Universitário
Senac, Universidade Anhembi Morumbi, entre outras, e são sustentados pelos pais enquanto
fazem os estágios sem remuneração. É importante pontuar que, além do valor das
mensalidades, os estudantes precisam adquirir alguns materiais para fazer o curso: um
conjunto de facas e ao menos dois uniformes (sapatos confortáveis e fechados, calça xadrez e
as dólmãs)119.

119
Uma breve pesquisa on-line revelou que as calças do uniforme custam entre 70 e 100 reais , e as dólmãs entre
130 e 200 reais, considerando os preços mais econômicos. Para os estudantes, o kit de facas e outros
instrumentos têm preços que variam de 800 a 2.470 reais, dependendo da quantidade e qualidade dos
instrumentos. Uma única faca chega a custar 170 reais.
111

Esses jovens entram nas cozinhas recém-formados (ou em formação), muitas vezes
tendo até cursos e pós-graduação em outros países, após suas famílias terem realizado um
grande investimento, e se deparam com um cotidiano de trabalho pesado, cansativo, com
poucas perspectivas, trabalhando com outras pessoas que têm muito mais experiência e bem
menos formação.
Frederico tem uma trajetória interessante que nos permite conhecer as contradições
desses jovens oriundos das classes mais abastadas que decidem trabalhar em cozinhas. Ele
havia iniciado o ensino superior em Ciências Sociais e decidiu fazer outro curso, mais voltado
para o mercado de trabalho.
2004 comecei a fazer o curso de Gastronomia na Anhembi e me formei lá,
fiz dois estágios, um trabalhei no hotel __, ali no restaurante __, e depois fiz
um estagio também fazendo eventos. Aí terminei a faculdade, fui morar na
Itália, fiquei um ano trabalhando lá e fazendo um curso. Aí voltei pro Brasil,
trabalhei em alguns lugares e aí desisti da carreira de cozinha e fui fazer
Administração. Ah, e trabalhei no navio também, que eu tinha esquecido
desse pequeno detalhe.

Os dois estágios aos quais ele se refere, um no restaurante de um famoso hotel em


São Paulo, o outro em uma empresa de bufê para eventos, foram suas primeiras experiências
profissionais, aos 21 anos. Ao longo de todo o período de sua formação e até o momento da
entrevista, Frederico vivia com os pais, que o sustentavam e financiaram seus cursos.
Após concluir sua formação e retornar ao Brasil, já pós-graduado, Frederico
começou a enfrentar problemas no mercado de trabalho. Sua alta qualificação, associada à
pouca idade e quase nenhuma experiência eram obstáculos para ocupar um posto de trabalho.
Ele teve problemas de relacionamentos em quase todos os seus empregos. Em um de seus
estágios, teve problemas com a chef, funcionária antiga do serviço de bufê.

E ela tinha uma mulher que trabalhava pra ela, há muito tempo já, que era a
chef dela, e ela, digamos assim, ela não gostava muito assim de... ela era
daquelas cozinheiras da velha guarda, sabe? Foi cozinhar porque era o que
tinha pra fazer na vida, e de repente chegaram uns estagiários lá, que pô,
tinham pouca experiência em cozinha, tal, ela não gostava muito, na
realidade. Ela achava que a gente tava invadindo o espaço dela. Então foi
difícil, foi difícil de lidar com essa...

A experiência seguinte foi trabalhar na elaboração do cardápio de um restaurante que


ainda nem havia sido inaugurado, e ele se desentendeu com o dono.

Aí o primeiro trabalho que eu consegui foi o contato de uma amiga da minha


irmã. E era um cara que tava abrindo um restaurante lá no Itaim [bairro
paulistano]. Um português. Ele tinha uma ideia muito legal de comida
saudável, meio que tipo num estilo europeu que tinha muito lá, mas acho que
112

cheguei com uma ideia muito de uma cozinha mais elaborada, e a gente
acabou tendo meio que umas diferenças e aí acabei saindo de lá.

Em seguida,

... daí consegui um outro trabalho num restaurante lá na Chácara Klabin


bairro paulistano]. Tinha um café chamado __. E fiquei lá uns três meses,
três, quatro meses também. Lá eu fazia uma cozinha bacana, tal, mas tive
problema. O mesmo problema que eu te falei da cozinheira lá do evento, foi
a mesma coisa. O cara, aqueles cara que... ele era homem, tal, cara que acha
assim, esse cara estudou pra ser cozinheiro? Como assim? Ele era um,
digamos, quase que um conflito de classes.

Esses jovens muitas vezes se decepcionam profundamente com a realidade do


trabalho. Além do trabalho fisicamente exigente e pesado, esses jovens se defrontam com
pessoas de outra classe social, com outra experiência de vida, que são mais experientes no
trabalho, e têm dificuldades em respeitar a autoridade de uma pessoa de classe social mais
baixa, menos escolaridade. No mundo das cozinhas brasileiras, essas pessoas são
frequentemente os tais “migrantes nordestinos”, que criaram uma reputação para si no
trabalho. Nesse sentido, esses jovens é que são os outsiders.

É um investimento [fazer o curso]. Inclusive essa parte do investimento foi o


que me fez largar a cozinha. Porque eu investi muito, aí entra uma lógica de
mercado. Investi muito, o retorno era baixo. Então mudei de carreira.

O investimento realizado na formação não é condizente com os salários e


remunerações do segmento. Nas palavras do chef Luca Gozzani, aos jovens estudantes de
Gastronomia: “Se vocês pensam em ficar ricos sendo cozinheiros, vocês estão enganados”.
A experiência se revela uma contradição entre o custo da formação profissional
formal dos cozinheiros, quem tem possibilidades de acessá-la e a realidade do trabalho. A
maior parte dos trabalhadores nessa área não tem curso técnico, muito menos superior, e
permanece por muitos anos na profissão, até chegar aos postos de chefia. Em função da alta
rotatividade do setor, a “antiguidade” de um funcionário no mesmo estabelecimento é muito
valorizada.
Tem uma pessoa que trabalha comigo, que é o auxiliar. Só que ele ganha
mais do que eu porque ele é antigo lá. Ele tem 22 anos de casa. Então acho
que ele ganha umas quatro vezes mais do que eu. E eles não aceitam que vai
mudar alguma coisa, eles não aceitam. Não dão ouvidos120.

120
Manuela, 31 anos, confeiteira.
113

Os jovens que entram nas cozinhas altamente qualificados e com o objetivo de


construir uma carreira e se tornarem chefs, confrontam-se com um espaço quase totalmente
ocupado por profissionais competentes, mas que possuem uma formação de natureza
diferente, onde seus conhecimentos formais têm muito pouco valor quando comparados à
prática e à experiência dos demais, quando precisam se submeter a longas e cansativas
jornadas de pé, lidando com altas temperaturas e pressão.
Quem faz o caminho de se qualificar primeiro para então entrar no mercado corre o
risco de não conseguir se adaptar, como foi o caso de Frederico. Além disso, oriundo de classe
abastada, ele não precisa se submeter a algumas condições. Se ele tivesse um problema com
uma pessoa na cozinha, como ele teve, ele iria embora, poderia ficar desempregado até
encontrar um trabalho que lhe fosse conveniente, pois sua sobrevivência não dependeria de
seu trabalho. Definitivamente, essa não é a situação em que se encontra a maioria dos
trabalhadores desse segmento.

Tem pessoas que estudam, assim, estudante de gastronomia, tem


profissionais, junto com a mão de obra. (…) É engraçado, porque eles [os
estudantes] não querem fazer o pesado. Todo mundo quer fazer algo criativo.
O pesado fica pro peão. Começa a briga aí. Porque um se sente melhor, mais
do que o outro. E aí a maioria dos cargos de chef estão na mão da "peãozada"
entre aspas, os caras que têm mais experiência, que estão lá há muitos anos,
são os caras que o restaurante pode contar, eles estão lá todo santo dia.
Porque estudante de gastronomia... qualquer coisa... geração X, Y, não tem
paciência de ficar muito tempo num lugar, se sentir maltratado ou que tá
infeliz ali já sai, é esse perfil. Então, o restaurante dá muito valor pra essa
pessoa que tá lá todo dia121.

Uma jovem cozinheira que também trabalhava como estagiária em um prestigiado


restaurante foi entrevistada em dois momentos. A primeira entrevista aconteceu quando ela
acabava de ser contratada como auxiliar, tendo finalizado seu período de estágio. A segunda
entrevista se deu quatro meses depois, ela já estava contratada como auxiliar de cozinha no
mesmo restaurante.

Entrevistadora: Qual é a diferença que você sente do trabalho como estágio


e do trabalho com contrato?
Carina: Então, eu acho que é a responsabilidade, né? E no estágio você não
tem um lugar fixo pra ficar trabalhando, você não tem por exemplo ah, você
vai... eu faço comida de funcionário antes do restaurante abrir. Não vai ter
"você vai fazer comida de funcionário". Não, você vai fazer o que estiverem
precisando de ajuda, entendeu. E você não tem aquela responsabilidade de

121
Manuela, 31 anos, confeiteira.
114

que se algo der errado no serviço, a culpa é sua. Tem alguém


supervisionando.

Ela avalia sua experiência de estágio de forma muito positiva, mesmo com o valor
irrisório da “ajuda de custo” que recebia. Na época, ela foi contratada neste restaurante como
estagiária porque fez um curso intensivo na Escola Internacional de Cozinha, em Jundiaí (SP).

Que nem aqui, que se eu não tivesse esse curso, aqui eles não iam me pegar.
E também porque eu precisava ter uma base, antes de entrar aqui, antes de
entrar em qualquer outro lugar. Se não, é ruim. Mas foi bom pra me decidir
se era isso mesmo que eu queria. Por mais que só fiquei ali mais na prática,
ali, olhei aqui, não sabia nem o que era isso, aí cheguei aqui pra trabalhar
perdida, não sabia... perdida, perdida, cheguei aqui pra trabalhar perdida. (...)
Mesmo tendo feito o curso, cheguei perdida, perdida. Perdida assim, de me
mostrarem bowl. E você saber o que é um bowl, sabe? (...) Uma GM, que é
uma tigela grande, que a gente usa, ela [a chef] falou "pega uma GM ali pra
mim", e eu "será que ela falou higiene? o que será que ela falou?".
Totalmente perdida, que é uma realidade superdiferente de curso. Curso é
pra amador.

De maneira um pouco contraditória, ela reconhece a importância dos cursos, mas


afirma que os aprendizados que obtém na prática são muito mais importantes. No momento da
entrevista, ela havia trancado o curso de Gastronomia, segundo ela porque era muito caro e
ela considerava mais interessante investir esse dinheiro em outros tipos de curso.

São muito caros. Compensa pegar esses 2.500 reais e aplicar ali, fazer um
curso de 400 reais de macarrão. Eu vou lá e faço um curso de 400 reais de
macarrão. (...) Vários outros, que digamos, já dá uma batida num curso
superior.

Assim como Frederico, Carina também vivia com os pais, mas ela pagava o curso de
Gastronomia no Grupo Ocupacional Hotec. É importante pontuar uma diferença significativa
entre ser estagiária e ser auxiliar, que é a remuneração. Carina passou dos 200 reais de ajuda
de custo para um registro em carteira com salário de 1.160 reais, mais o dinheiro da
“caixinha” ou da gorjeta, que é dividido igualmente entre os trabalhadores do salão e da
cozinha, e rende em média 900 reais a mais por mês.
O estágio é, portanto, um momento fundamental na formação profissional dos/as
cozinheiros/as, principalmente daqueles/as que têm aspiração de se tornarem chefs ou de
construírem uma carreira nas cozinhas. Ele não tem a mesma importância para aqueles
trabalhadores que entraram nas cozinhas por não terem outra opção, ou para aqueles que têm
muitas outras responsabilidades e não têm possibilidade de fazer um curso, ou ainda para
aqueles que já estão há alguns anos nos fogões. Não se trata de dizer que a qualificação
115

formal ou teórica não seja importante, mas ela é recebida de outra maneira nesse segmento e
tem, portanto, outro valor. Para muitos profissionais, a qualificação formal não é tão
importante e não vale o investimento que ela demanda.
O trabalho culinário oferece um exemplo fértil para compreender a qualificação
profissional como o processo de formação que se encontra na interseção entre escolaridade e
trabalho. Neste segmento, o aprendizado mais valorizado é o que se dá na prática, no
cotidiano do trabalho. A experiência é a qualificação mais importante, mais do que qualquer
curso de pós graduação, mais do que qualquer especialização, no Brasil ou em outros países.
Mas isso não significa que os cursos são dispensáveis, principalmente para quem tem objetivo
de construir uma carreira.
O caráter essencialmente prático da qualificação necessária para realizar esse
trabalho e a valorização da experiência possibilitam observar a tensão entre trabalho manual e
intelectual, entre o trabalho criativo, sensorial e até artístico, e o trabalho monótono, repetitivo
e cotidiano da cozinha. Nesse sentido, a qualificação também é um elemento que permite
entrever relações sociais de classe que se dão na cozinha, entendidas aqui como conflito
(KERGOAT, 2009), em função das origens sociais dos distintos personagens que a povoam.
A recente valorização da profissão de cozinheiro e a emergência de estrelas
televisivas de dólmãs suscitou nas classes médias o desejo de seguir essa carreira,
provavelmente seduzidos pelo aspecto criativo e artístico. A gastronomia oferece uma
possibilidade de trabalho manual muito versátil, que pode ser realizado em qualquer cidade do
país, em qualquer país do mundo, que demanda relativamente pouco tempo de educação
formal – já que os cursos mais longos têm duração de dois anos, ao passo que uma graduação
em qualquer outra área tem duração de quatro anos, geralmente. Esses fatores contribuem
para a atração das classes médias por esse nicho profissional. Além disso, há sempre a
possibilidade de abrir o próprio negócio, seja um restaurante, seja uma casa de massas ou um
food truck, o que vai ao encontro aos anseios de ser o próprio patrão, e mais, nesse caso, de
poder fazer a própria culinária.
É possível concluir, desta perspectiva, que a carreira de cozinheiro/a e até de chef é a
completa expressão da flexibilidade: não permanecer por muito tempo em um trabalho é um
valor da profissão, um aspecto da construção de uma carreira, o que pode, em alguma medida,
explicar a alta taxa de rotatividade no setor e a instabilidade a que estão sujeitos os
trabalhadores. Diante do entendimento do trabalho como aprendizado e da experiência
profissional como qualificação, naturalizam-se e justificam-se as formas mais degradantes de
trabalho, o assédio, a informalidade, os baixos salários e até o não pagamento de salário.
116

Todos esses elementos surgem como o modo de ser da carreira, o que parece imbuir nos
cozinheiros que permanecem, que continuam a se sujeitar a tais condições, um ethos de
guerreiro, uma espécie de autovalorização, pois apenas os mais fortes sobrevivem.

3. O trabalho dos cozinheiros


A partir da descrição do trabalho nas cozinhas (realizado no capítulo 1) e considerando
as três ocupações (assistente de cozinha, cozinheiro/a e chef) como lugares dentro da
hierarquia e da organização do trabalho, aponto, a seguir, questões que perpassam esse
trabalho.
No recorte metodológico dessa pesquisa não estão incluídos os restaurantes fast-foods
e nem as grandes redes de alimentação, conforme já discutido, que propõem um padrão de
loja e de refeições diferente. Ainda assim, há uma grande variedade e heterogeneidade dos
estabelecimentos que estão dentro do corpus de análise. Segundo Fine (1996), muitos
restaurantes não fazem parte de cadeias globais ou marcas internacionais, são apenas
estabelecimentos pequenos, locais, que servem comida modestamente diferente daquela que
os clientes comem em casa.
Foi possível perceber que o tipo de estabelecimento, o tipo de comida servida e a
classe social que ele atendia tinha uma relação com a força de trabalho empregada. Encontrei
pessoas de classes mais baixas, que moravam em bairros distantes ou periféricos, com menor
escolaridade, trabalhando em restaurantes sofisticados e caros nas regiões mais centrais e
valorizadas de São Paulo. Entretanto, não encontrei ninguém que fosse de classe média ou
classe alta, que tivesse estudado gastronomia ou que tivesse feito algum investimento em
termos de formação profissional trabalhando em restaurantes populares ou de bairro.
Há um viés de classe no que se refere à relação entre o tipo de estabelecimento, o tipo
de comida servida e a força de trabalho empregada. Para observar a comida na esfera pública,
segundo Amy Trubek (2000: 9), é preciso uma consideração da posição social e status de
classe do restaurante, mas também do/a chef. Todos os/as jovens de classe média que foram
entrevistados trabalhavam em restaurantes prestigiados. Para esses/as jovens, o trabalho
nesses estabelecimentos adquire muito mais importância em termos de experiência
profissional e aprendizado do que o próprio salário. Até porque, oriundos de classes mais ricas
e tendo apoio financeiro da família, podiam investir no trabalho enquanto formação –
117

trabalhar em troca de um “auxílio”, e não de um salário, para pleitear cargos melhores no


futuro.
Matias, primeiro cozinheiro em um restaurante badalado na capital paulista, afirma:

Quanto mais nível você tiver no restaurante, menos o salário é pago. (...)
Quanto mais estrelas, quanto mais títulos, quanto mais nome, quanto mais o
chef for renomado, menos ele paga122.

É preciso considerar que uma carreira na gastronomia não é o horizonte profissional


de todos. Pelo contrário, imaginar “ser renomado/a” no futuro, ser famoso/a, também é uma
percepção de classe. Muitos estão ali trabalhando com o único objetivo de sustentar a si e às
suas famílias, o que significa que ser pago é mais importante do que o nome do restaurante ou
do/a chef. Nesse sentido, o próprio trabalho adquire diferentes sentidos, conforme uma
posição de classe. O trabalho não é avaliado como um diferencial no currículo ou uma
possibilidade de ascensão de carreira, mas a partir do salário, benefícios, jornadas, facilidade
de transporte para chegar e ir embora, ambiente de trabalho etc.
A constituição de uma carreira nessa área geralmente é descrita como o mito da
ascensão social por meio exclusivamente do esforço pessoal e da dedicação. É como um hino
à meritocracia, em que a carreira consiste na ascensão meteórica de alguém que começou no
posto mais baixo da cozinha (a pia) e chegou ao cargo de chef, baseando-se nos elementos do
ethos, apresentados no primeiro item desse capítulo.

3.1. Jornada de trabalho

Como descrevi até aqui, segundo relatos dos próprios trabalhadores, os processos de
trabalho na cozinha são complexos e diferenciados, dependendo do tipo de restaurante e
culinária que se realiza.
Os trabalhadores e trabalhadoras descrevem sua jornada de trabalho nas cozinhas
como horas seguidas em pé, em ambiente quente e abafado (geralmente em função das várias
bocas de fogão e fornos acesos ao mesmo tempo). Em muitos locais, a cozinha não possui
janelas, para evitar vento, poeira e o resfriamento da comida. Os restaurantes mais modernos
contam com cozinhas mais abertas, com janelas basculantes que permitem a circulação do ar,
ar-condicionado ou ventiladores, até algumas que permitem a entrada de iluminação natural,
tendo paredes de vidro, as “cozinhas abertas”, visíveis.

122
Matias, 24 anos, cozinheiro.
118

Entretanto, essas condições não são homogêneas. Ao longo da pesquisa, encontramos


cozinhas de diversos tamanhos, que correspondem à quantidade de funcionários que lá
trabalham, assim como à quantidade de clientes atendidos. Por exemplo, o restaurante das
irmãs libanesas tem uma cozinha minúscula, onde Samira trabalha apenas com uma ajudante.

Aqui a cozinha é pequena. Mas eu me acostumei tanto com ela! As coisas


tão embaixo da geladeira, os temperos tão em cima. E tá tudo ali na mão123.

Idealmente, a jornada do restaurante se dá em dois turnos: o almoço e o jantar. O


primeiro começa pela manhã, a partir de 7h ou 8h, dependendo do movimento (quantidade de
pratos servidos), com o recebimento de mercadorias, conferência e a produção – mise-en-
place. Geralmente, antes do serviço do almoço é oferecido o almoço dos funcionários e
depois do serviço, a cozinha é limpa. Esse turno terminaria por volta das 15h.
O turno do jantar começa a partir das 17h, com a produção e o mise-en-place,
aproveitando algumas coisas do serviço do almoço. Depois que o restaurante fecha, é feita
uma limpeza mais pesada para o dia seguinte. Esse serviço vai até meia-noite ou uma hora da
manhã, mais ou menos, mas houve relatos de sair do restaurante 2h ou 3h da manhã –
principalmente na confeitaria, já que a sobremesa é o último prato servido.
O certo seria que cada turno fosse realizado por uma equipe diferente, mas isso não é
comum. Geralmente, a mesma equipe faz todo o serviço do almoço e do jantar. Isso significa
jornadas que começam às 7h da manhã e vão até a meia-noite.

... porque quando você tem duas equipes, você tem dois padrões. É muito
difícil você manter um padrão quando você tem duas equipes. Quando você
tem uma só, é sempre aquela pessoa que faz aquilo, então você consegue
manter um padrão. Normalmente, um restaurante de alta gastronomia não
tem duas equipes. Quando tem, são duas equipes de estagiários. Mas tem que
ter alguém que está ali o tempo todo, alguém pra supervisionar o padrão124.

Em alguns casos, há estabelecimentos que adotam a jornada flexível, em que há um


“descanso” para os funcionários entre o almoço e o jantar, de uma ou duas horas.

Matias: Sempre dois turnos, sempre trabalhei das 8h da manhã até o final do
turno, e eu sempre saía antes, porque eu era responsável pela praça, aí eu
saía tipo 3h da tarde eu saía, aí voltava às 6h e ficava até meia-noite.
Entrevistadora: Você sai as 3h da tarde, você vai pra onde? Pra ter que
voltar às 6h?
Matias: Eu me acostumei a ir pra parques, sempre tenho um livro na bolsa,
fico em parque, jogado na rua. Ou, aqui em São Paulo tem uma coisa legal,

Samira, 55 anos, cozinheira.


123

Mariana, 31 anos, cozinheira.


124
119

que eu comecei a ir pra biblioteca. Então vou lá pra Cultura na Paulista,


agora não mais, mas antes ia pra Paulista, dormia na Cultura mesmo, tinha
alguma coisa naquele lugar que eu achava gostoso.
Entrevistadora: Você entrava às 8h da manhã, saía às 3h, voltava às 6h e ia
até...
Matias: Até acabar. Meia-noite, 1h da manhã, não tem... Já fiquei, já cheguei
a tipo, no outro dia, já trabalhei em restaurante que teve feijoada, no outro
dia teve feijoada. Eu fiquei cortando linguiça até 4h da manhã125.

Agora não se contrata mais, quase não se contrata mais, pra um turno só. O
que que eles fazem? Isso pra mim é um caos. As pessoas têm que entrar no
restaurante. Os cozinheiros entram no restaurante 9h da manhã, fazem o
turno do almoço até 1, 2h da tarde, são dispensados, dormem, teoricamente,
duas horas nos almoxarifados, ou ficam na rua, enfim, até às 5, voltam às 5 e
vai até as 2h da manhã126.

E assim, o cara fez uma proposta pra mim, parece que eu não quero
trabalhar. Mas não é isso. É que é cada absurdo que a gente escuta. É melhor
vender balinha no sinal, mil vezes. Porque ele falou assim "olha, a proposta é
essa: você vai ganhar 1.200, vai fazer o cardápio de sobremesa dos dois
restaurantes", que é um colado com o outro, a cozinha tem um corredor que
integra, "vai fazer o cardápio das duas casas e vai cuidar da equipe das duas
casas. 1.200 mais caixinha". A caixinha não ia dar isso tudo porque é um
restaurante novo. Ele disse "Mas, se você quiser dobrar, seu salário vai pra
1.600". (...) Em dois restaurantes ao mesmo tempo. Eu até pensei em
denunciar. Porque ele não tá pagando hora extra, o restaurante é novo, não
sei como é que tá a caixinha. Não tem hora de almoço. As pessoas que
dobram não fazem o intervalo de 3 horas, que tem que fazer, ele não tava
liberando. Porque um dos restaurantes era aberto o tempo todo, então você
não tinha como fazer intervalo de 3 horas127.

A chamada “jornada flexível” ou “móvel” corresponde ao trabalho nos dois turnos,


com um intervalo de duas a três horas no meio do dia. Entretanto, em uma cidade grande
como São Paulo, em que o tempo de deslocamento é alto, principalmente considerando que as
pessoas não necessariamente trabalham perto de onde moram, esse tempo de “descanso” no
meio do dia não representa um descanso, realmente.

Porque não tem um ambiente pra descanso, você acaba ficando lá no


restaurante. Quando fala dobra, e aí tem esse intervalo, você fica na rua, ou
então você fica... porque não tem uma estrutura pra deixar você
acomodado128.

Diversos trabalhadores narraram a exaustiva e desgastante experiência de trabalhar


dois turnos seguidos e as consequências que essa jornada traz para sua saúde e para a vida

125
Matias, 25 anos, cozinheiro.
126
Lenice, 30 anos, chef.
127
Manuela, 32 anos, confeiteira.
128
Manuela, 32 anos, confeiteira.
120

pessoal. Não são apenas as horas que ocupam quase todo o dia, mas os efeitos do cansaço no
tempo que resta que também tem consequências.

Chegar a trabalhar até 3h, 4h da manhã. E 6h, 7h, não, minto, umas 8h tem
que voltar, tem que estar de volta. (...) Já cheguei trabalhar 26 horas direto.
(...) Não é começar e parar. Lógico, você sentava, você almoçava, jantava,
mas assim, você acordar 8h da manhã, ficar até 9h do outro dia. (...) Não que
confunde, você vai perdendo um pouco, vamos se dizer, o foco. Você precisa
dormir, você precisa descansar, a sua mente precisa descansar e você voltar
pro seu dia normal. Quando você força muito, você perde, fica mais fraco.
Você se sente fraco. Ah eu quero fazer isso rapidinho, não dá. Você tá
cansado129.

Você tem que entrar lá às 7h da manhã e sair às 2h da manhã. E eu comecei a


fazer isso, quase que involuntariamente. E aí eu acabei sem vida. Acabei
com um casamento, acabei com a minha vida pessoal, eu não fazia mais
nada, então eu resolvi sair. É, não fazia sentido pra mim. Mesmo que eu não
estivesse no local de trabalho, eu tava em casa no celular, com funcionário
me ligando, com meu sous-chef desesperado e a madrugada. Então eu
acabava dormindo cinco horas por noite, quando eu conseguia dormir, e aí
no outro dia de manhã eu tinha que estar lá também, fazendo os dois turnos,
então eu resolvi que não é pra mim130.

Tem vários lugares que o cara fica praticamente o dia inteiro. Eu como chef e
sous-chef ficava o dia inteiro e não tinha horário, não batia cartão, não tinha
nada. Trabalhava pelo menos 12 horas por dia. (...) No meio a gente fazia
pré-produção pra noite ou pré-produção pro dia seguinte131.

Meu estágio aqui [na França] foi remunerado, mas eu trabalhava das 8h da
manhã até 3h da tarde, pausava, depois eu entrava às 5h da tarde e ficava até
1h da manhã132.

Jornadas que se iniciam de manhã cedo e adentram madrugadas, de trabalho contínuo,


intenso e em pé, com uma pausa mais longa (duas ou três horas) no meio do dia, que não
permite que os trabalhadores voltem para casa, sequer descansem em condições decentes
(“dormir em almoxarifados” ou em livrarias não são condições para ninguém descansar),
podem explicar em parte a alta rotatividade no setor e alguns tipos de adoecimento psíquico e
fadiga.
Também são comuns as práticas ilegais, como “bater o ponto”, ou seja, encerrar o
expediente, e continuar trabalhando, sem ter as horas contabilizadas, nem sequer para o banco
de horas.

129
Valdemar, 34 anos, chef.
130
Lenice, 30 anos, chef..
131
Daniel, 32 anos, chef. e proprietário.
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
132
121

Tinha essa questão, eles faziam a gente bater ponto no intervalo da gente, no
almoço, e voltar. A gente almoçava em pé, nas docas. Tinha uma questão que
me deixava irritada, era... eu trabalhava à noite, e depois de você ter feito um
serviço genial, ter servido 700 a mil pessoas por dia, aí você tinha que lavar
forno e coifa. E você só era liberado se uma das sous-chefs passasse na sua
praça, olhasse, que nem hotel, olhasse, passava o dedo, tá limpo, pode ir.
Pode ir. O cartão de ponto não contava não, não tem essa. Só saía depois que
elas liberassem. Eu achava o cúmulo. Nisso a gente ia até 3h da manhã, todo
dia. Eu entrava umas 16h133.

Os restaurantes, na medida em que se encontram intimamente associados ao lazer,


precisam estar abertos nos dias de descanso da maior parte da população. Eles costumam ter
maior movimento aos fins de semana e feriados, porque é justamente quando as famílias de
determinados estratos sociais vão desfrutar uma refeição juntos.
São poucos os estabelecimentos que não abrem aos domingos, pelo menos durante o
almoço, justamente o dia tradicional que as famílias vão comer fora. Em geral, fecham aos
domingos os restaurantes que possuem público cativo de “hora de almoço”, ou seja, que se
localizam próximos a empresas ou bairros comerciais. As escalas de folga para os
funcionários permitem que esses descansem apenas um dia (jornada 6 por 1: trabalha seis dias
e descansa apenas um), muito raramente aos fins de semana. Como há uma obrigação legal de
que os funcionários tenham folga ao menos um domingo por mês, nesse caso se faz um
rodízio.
Todos os dias. Inclusive aos fins de semana. Inclusive e principalmente aos
fins de semana e feriado. Então, realmente, você quando tem uma folga, tem
uma folga na segunda-feira que você não faz nada, e nessas duas horas de
folga você também não faz nada, né, porque você não vai embora pra
casa134.

Dois turnos de trabalho, durante a semana [o restaurante] fecha das 3h até às


6h é fechado. E de fim de semana, sábado é direto e domingo é só horário do
almoço. (...) Domingo não porque é meio que tem, como eu falei, você tem
que dar um domingo de folga, um domingo de folga e um dia na semana
pelo menos. Então segunda-feira é fechado e domingo eles têm que
revezar135.

Esse esquema de trabalho também tem consequências para a vida pessoal dos
trabalhadores, que não conseguem estar livres para passar tempo com a família no momento
em que a família está em casa. Não conseguem se dedicar ao próprio lazer, não conseguem
descansar, porque, afinal, a folga durante a semana os permite cuidar daquilo que não
conseguem nos dias de trabalho ou, em muitos casos, apenas descansar.

Manuela, 32 anos, confeiteira.


133

Lenice, 30 anos, chef.


134

Daniel, 32 anos, chef.


135
122

Mais do que eu gostaria, às vezes eu queria tipo assim "ah eu vou pra praia,
curtir uma praia sozinha" não posso. Esquece, surreal. É uma vontade de um
dia poder fazer isso. Porque hoje eu não posso. Eu mais que quero ficar com
elas [as filhas]. Minha mãe, ah, sai, vai com seus amigos. (...) Se eu quero ir
pra uma festa, eu vou. Mas eu prefiro ficar com elas. Mais gostoso
acompanhar elas crescendo, minha filha fez uma arte, bateu a boca, quebrou
o dente... a minha vida é cheia de adrenalina136.

Há outra variável dentro da cozinha que precisa ser considerada para entender como se
dá a jornada de trabalho: a intensidade do trabalho, que está relacionada à quantidade de
trabalhadores no mesmo turno. Uma equipe composta de três pessoas que serve 100 refeições
em um período trabalha intensamente e sob muito mais pressão do que se fosse uma equipe de
cinco ou seis, durante o tempo em que dura o serviço. Os profissionais precisam estar muito
bem articulados e dispostos a trabalhar sem parar, isto é, em condições físicas para tal.

Por isso que eu falei pra você desse negócio de trabalhar em equipe, é se
ajudar. Às vezes a pessoa tá supertranquila lá, ela fez tudo que precisava,
mas a pessoa do seu lado tá se matando pra fazer, você pode descascar uma
batata pra ela, sabe? Não é parar e eu fiz o que eu tinha que fazer, fiz o meu
trabalho, isso aqui. Porque meu trabalho nunca acaba. Uma vez uma mulher
tava falando que falou pro fulano, que é o chefe, falou que tava tranquilo lá
onde ela tava, aí ela foi ver o que que o outro tava precisando. Ele falou, não,
mas a geladeira tá uma bagunça, você pode arrumar. Não para o trabalho
aqui, não tem essa de acabou, não tenho trabalho. Você pode arrumar outra
coisa pra fazer. Nem que seja ajudar o próximo. Você pode ir lá arrumar o
congelador, etiquetar coisa nova137.

Não, você pausa lá no restaurante mesmo, você estica a perna, olha seu
celular, tira um cochilo, come alguma coisa e é isso. E muitas vezes eu nem
conseguia tirar essa pausa, porque me davam tanta coisa pra fazer que eu não
tinha habilidade de fazer rápido, porque eu estava aprendendo ainda, que eu
nem tirava pausa138.

Em um contexto em que o trabalho precisa ser planejado e executado em equipe, não


há espaço para tempo ocioso, nem para descanso não programado. A questão do trabalho em
equipe é muito importante para o trabalho nos restaurantes, pois é necessária uma certa
harmonia entre todos, para que os pratos saiam juntos, para que todos os passos da execução
sejam realizados conforme as prescrições das “fichas técnicas” (receitas) ou conforme a
orientação do chef.
Nesse sentido, quando um funcionário deixa de ir trabalhar, ele/a “sobrecarrega” os
colegas, que terão que dividir o trabalho do/a faltante entre si, pois todas as funções precisam
ser executadas.

Elisa, 28 anos, cozinheira.


136
137
Carina, 18 anos, estagiária.
138
Mariana, 31 anos, cozinheira.
123

3.2. Assédio

Para discutir práticas abusivas e de assédio moral e sexual, é importante salientar que,
do ponto de vista metodológico, trata-se de um assunto muito complicado de abordar em
entrevistas. Como pretendo demonstrar, o assédio é tolerado nas cozinhas e considerado um
comportamento aceitável na medida em que se relaciona ao ethos dos cozinheiros e corrobora
a ideia de que apenas os fortes sobrevivem a esse trabalho. Assim, admitir ter sofrido algum
tipo de assédio ou violência, narrar acontecimentos em que a pessoa precisa se colocar como
vítima e que se viu impotente para reagir é muito difícil para esses profissionais. De fato, foi
um assunto delicado, mas que apareceu algumas vezes por iniciativa do/a entrevistado/a, até
em tom de vantagem, de heroísmo ou de anedota. Também foram muitos os casos em que o/a
entrevistado/a falava de algo que aconteceu com um conhecido ou um colega, com outra
pessoa, “mas não comigo”.
Nas cozinhas predomina um sentimento de pertencimento que se baseia em uma cultura
profissional do “mais forte”. A natureza física do trabalho, carregar caixas e panelas pesadas,
as longas jornadas de pé constituem um ethos profissional “somente para os fortes”, em que é
preciso ter “paixão”, “amar muito o que faz”. Nesse sentido, a agressividade, as brincadeiras
sexistas, as práticas discriminatórias e o assédio, em última instância, são entendidos por
alguns profissionais como uma forma de garantir que apenas “sobrevivem” aqueles que
realmente querem permanecer na cozinha.

Eu tenho colegas, eu não (graças a deus), mas eu tenho colegas que quase
apanharam ou apanharam, fora ofensas mesmo, tipo xingamento. (...) Aqui
[França] era xingamento, era grito. Se você faz alguma coisa errada, você
era um merda, não serve pra nada, você deveria desistir dessa profissão. Isso
que eu fico muito chocada, que as pessoas aqui, que fazem estágio, elas têm
o quê? 15, 16. A maioria tá no liceu profissionalizante. São muito novos. Eu
que já era mais velha fiquei muito abalada, imagino uma pessoa mais nova.
Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método
de seleção139.

Isso é legal, mas em relação ao tratamento dos chef. com os cozinheiros,


com os estagiários, era aquele tratamento à base de grito, de assédio mesmo.
Teve um dia que eu presenciei, não comigo, mas com uma menina, uma
estagiária do Rio, uma carioca. Ela tinha... já faz tempo que ela tava
estagiando lá e ela chegou meio que atrasada assim, a única vez que ela
chegou atrasada, tipo 20 minutos de atraso, alguma coisa assim. E eu vi o
chef. de cozinha, não me lembro o nome dele, esculachar ela. Falar um
monte, humilhar, gritar, como se... só faltou bater, sabe?140

139
Mariana, 31 anos, cozinheira.
140
Manuela, 31 anos, confeiteira.
124

Mas vi pessoas que se tornavam estouradas. Claro que você tem que
compreender que existe uma cobrança. Quanto mais alto é o público (alto no
sentido financeiro mesmo) o público que você trabalha, pior é a cobrança.
Cobrança de atitude, cobrança de qualidade. Então isso é tenso, é muito
tenso. Mas você começa a compreender que, tenso ou não, tem que resolver,
tem que funcionar. Agora, tem homens que eu conheci que eram
estourados141.

Considerando o ethos dos/as cozinheiros e das características que são valorizadas


nesse ambiente profissional, há uma zona cinzenta quando o assunto é assédio e violência.
Entretanto, conforme a conversa avança, aos poucos, algumas pessoas vão se sentindo mais à
vontade para compartilhar suas histórias.
Em uma cultura profissional que valoriza a resistência física, a capacidade de suportar
a pressão e condições adversas, determinadas situações são difíceis de serem caracterizadas
como assédio ou um comportamento não aceito pelo grupo. Mais do que isso, viver uma
situação de violência ou assédio e, mesmo assim, continuar, torna-se um valor. Os
entrevistados de Arnoldsson (2015: 4), que trabalhavam em restaurantes sofisticados,
referiam-se ao “mito” de que ser capaz de suportar o assédio e o que o autor chama de
bullying142 é parte da profissão, e que para aprender as coisas boas é preciso aguentar todas as
ruins que vêm junto. Assim, ter muita experiência na cozinha significa ter aturado muitas
situações difíceis, ter conquistado respeito, um certo lugar, e isso, de alguma maneira,
credencia essa pessoa a reproduzir os mesmos comportamentos que sofreu quando estava em
outra posição. Em nome de ter uma experiência no currículo ou em troca de aprender com
um/a chef. famoso/a, muitos/as cozinheiros/as ou “chef. em treinamento” estão dispostos a
suportar abusos (BLOISI, HOEL, 2008).
Arnoldsson (2015) observou que principalmente na hora do serviço (quando o
restaurante está cheio e os trabalhadores tendem a estar mais estressados), em função desse
forte elo de pertencimento profissional, muito do que se diz chocaria outsiders. Segundo seus
entrevistados, coisas que não seriam aceitas em outros grupos ou ambientes profissionais são

141
Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.
142
Arnoldsson utiliza o termo bullying para se referir ao assédio no trabalho. Ele afirma que nos países
escandinavos há pesquisas sobre bullying desde a década 1990, que começam no ambiente escolar, mas que
rapidamente passam para as políticas sociais de regulação das condições de trabalho. Sua definição de bullying,
entretanto, é muito próxima do que entenderíamos como assédio. “Einarsen et al. (2003b) provides a definition
of bullying that is widely used today: “Bullying at work means harassing, offending, socially excluding someone
or negatively affecting someone’s work tasks. In order for the label bullying (or mobbing) to be applied to a
particular activity, interaction or process it has to occur repeatedly and regularly (e.g. weekly) and over a period
of time (e.g. about six months). Bullying is an escalating process in the course of which the person confronted
ends up in an inferior position and becomes the target of systematic negative social acts. A conflict cannot be
called bullying if the incident is an isolated event or if two parties of approximately equal ‘strength’ are in
conflict.” (FINARSEN, 2003, p. 15 apud ARNOLDSSON, 2015, p.7)
125

aceitas na cozinha, como também observaram Bloisi e Hoel (2008), porque todos que estão lá
sabem que a pessoa que diz coisas racistas ou machistas, que usa linguagem chula e baixa,
não quer dizer essas coisas, na verdade. Um de seus entrevistados diz que pessoas que não são
racistas acabam falando coisas racistas no calor do momento. “E tem muita conversa
degradante para as mulheres, especialmente quando não tem mulheres por perto”143
(ARNOLDSSON, 2015, p.27).
No coletivo de trabalhadores, é entendido que esses comentários pessoais e
degradantes são inofensivos, são brincadeiras que servem para divertir e descontrair na
cozinha. O autor também observa que o bullying pode funcionar como um mecanismo de
controle do grupo para normalizar comportamentos desviantes. São as brincadeiras e piadas
internas que criam um tipo de coesão e reforçam o sentimento de pertencimento, mas que
podem sair dessa esfera e ofender/ agredir algumas pessoas.

Assim, a gente brinca, né? Aquele mesmo que eu falei aquele dia, a gente
brinca muito, né, mas com respeito. (...) Assim, ele não brinca muito
comigo, né, ele não brinca muito comigo porque também eu não dou muita
liberdade, entendeu? Aquela outra que tava sentada que gosta de brincar e dá
muita liberdade, eu não dou muita liberdade. Porque na hora que eu quiser
cortar, eu corto144.

Não raro, as mulheres sentem que é seu dever “cortar” ou colocar limites na
brincadeira, o que penaliza aquelas que não conseguem fazê-lo. Elas associam seus
comportamentos e atitudes às práticas dos colegas: como também descreveu Joana145, para ser
respeitada na cozinha, é preciso não dar “muita liberdade”, ter um tipo de atitude mais
fechada e séria, sob pena de não conseguir “cortar”.
Bloisi e Hoel (2008: 651), ao recuperarem a discussão teórica sobre o assunto do
bullying entre chef e em cozinhas, afirmam que, embora comportamentos de assédio possam
ser conscientes e premeditados, existem casos em que o/a próprio/a autor/a não está
consciente ou não tinha a intenção de prejudicar o/a outro/a; pelo contrário, esse tipo de
comportamento pode ser interpretado como um meio de alcançar metas relacionadas ao
trabalho, como uma forma de motivar.
No momento do serviço, o pico de estresse do trabalho, os/as cozinheiros/as são
unânimes em afirmar que a cozinha não é um lugar tranquilo. As pessoas não conversam
direito, não se falam com calma, e a comunicação é fundamental. Nesse momento, a conversa

143
Tradução livre do original “[…] And there's a lot of degrading talk about women, especially when there's no
women around”.
144
Helena, 49 anos, cozinheira.
145
Joana, 38 anos, chef.
126

tem que ser muito direta e objetiva, não há tempo para corrigir erros ou retomar
procedimentos. Os/as cozinheiros/as dizem que não há tempo de pedir as coisas
educadamente. Gritos são comuns.

Quem vem de qualquer outra profissão não acha isso normal. A gente tá ali...
Tem coisas que a gente entende, na correria de uma cozinha, no horário de
serviço, nem sempre você tem tempo de ser educado com a pessoa, você não
vai pedir "por favor, você poderia me dar aquela panela", porque você perde
tempo, então é "panela". A gente sabe disso, a gente se entende. Pra você não
se bater com a pessoa que tá atrás de você, você grita "queima", "costas", é
meio bruto, o meio é bruto. Mas tem coisas que não precisam ser do jeito
que são, e são146.

Hoje em dia eu não jogo mais coisa. Gritar eu grito quando tem que gritar.
Mas só quando é situação extrema. E é porque é muita pressão, então uma
hora tem que sair. Mas assim, nunca grito em cima de alguém, nunca vou
jogar nada em cima de alguém. Tem que ser assim, mesmo que você esteja
gritando porque alguém fez um erro, mas não vai, não vou agredir ninguém
por causa disso. Não tem a menor condição, não tenho o menor interesse de
fazer isso147.

Às vezes é ego, que se sofre muito com o ego das pessoas que estão na ação.
Que você faz a mesma produção, igualzinho, mas se o chef chegar irritado,
ele vai te esculachar. Pode estar a mesma coisa. Então não é um sistema que
você faz e deixa seu login. É uma coisa... é o humor, você lida muito com a
vaidade do cara148.

Arnoldsson (2015) também afirma que o assédio pode ser comum em algumas
situações que demandam trabalho em equipe e sintonia entre as pessoas. Portanto, há uma
influência muito grande do tipo de ambiente de trabalho que se estabelece e uma cultura
profissional que, por sua vez, também é influenciada por uma série de fatores, que
determinam se alguns comportamentos são assédio ou se são parte de uma espécie de relação
entre colegas que não tem como objetivo agredir ou excluir alguém.
A alta rotatividade nesse setor também é apontada (ARNOLDSSON, 2015; BLOISI,
HOEL, 2008; FINE, 1996) como um fator que colabora para que práticas de bullying e
assédio sigam sem serem identificadas ou repreendidas, já que uma pessoa que se sente
assediada e impotente diante disso pode encontrar outro trabalho. O fato de, no segmento de
restaurantes, haver alguma mobilidade que possibilite pessoas a mudarem de trabalho
rapidamente e com relativa facilidade contribui para que o problema seja individualizado,

146
Mariana, 31 anos, chef.
147
Ana Paula, 32 anos, chef.
148
Manuela, 31 anos, chef confeiteira.
127

para que a pessoa que sofre assédio procure resolver seu problema em outra cozinha, e o/a
assediador/a continue com as mesmas práticas.

Mas é que eu, assim, todas as vezes que eu sentia que tava impossível, eu
saía. Eu já tava, entrei com uma maturidade que eu não ia me submeter. Por
exemplo, o estágio daqui era pra fazer 6 meses, o mínimo era 3, eu fiz 3 e
saí. O chef ficou muito puto, ligou pro meu professor, fez o maior escândalo,
disse que eu era uma pessoa horrível, mas é isso. É um direito meu sair com
3 meses, eu cumpri os 3 meses e saí. Eu aguentei os 3 meses porque eu sabia
que eu precisava daquele diploma149.

Há que se diferenciar, então, o que é oriundo de um coletivo de trabalhadores, de um


grupo de pessoas que realizam o mesmo trabalho, da violência hierárquica que pode partir do
chef ou do superior. Esse tipo de assédio, infelizmente bem comum nas cozinhas, tem como
objetivo reforçar a hierarquia, exaltar a figura do/a chef como autoridade e reiterar que esse
local de trabalho é para “os fortes” e não para qualquer pessoa. Nesse sentido, o assédio
reforça esse aspecto masculinizante do ambiente das cozinhas profissionais, a dimensão
masculina, bruta, violenta.

Sabe que uma curiosidade aconteceu comigo. Quando eu comecei a trabalhar


aqui no ____, alguns meses que eu tava lá, eu peguei o elevador de serviço
com o maître, o chefe do salão. Ele, no elevador, falou assim pra mim "eu
posso fazer uma pergunta, chef?", falei "pode, você pode me fazer todas as
perguntas". Eu percebi já há um tempo ele me olhando diferente, sabe? Ele
disse "você é viado?", eu falei "não", ele falou "você não é homossexual?",
eu falei "não". Ele falou "eu nunca vi um chef de cozinha tratar os
funcionários que nem você trata". Eu falei "eu entendo sua pergunta. Eu
entendo mesmo, eu não sou homossexual, mas não vou tratar ninguém da
forma como você viu até hoje. Vai acostumando"150.

O fato de que um chef adotava outra postura no comando da cozinha levantava


dúvidas sobre sua sexualidade no restaurante, porque ele não adotava uma performance
“masculina” o bastante com os seus subordinados. Se ele não desempenhava sua função com
violência e agressividade, sua masculinidade estava sob suspeita. Isso também é verdade para
as mulheres.
Cozinha é muito machista, é um universo muito machista. Mas nunca tive
nenhum problema. (...) Eu acho também que eu não sou a menininha
pequenininha. Pra me encher o saco, tem que... eu tenho uma postura que é
muito dura151.

149
Mariana, 31 anos, cozinheira.
150
Décio, 48 anos, professor.
151
Ana Paula, 32 anos, chef.
128

No capítulo três, ao discutir a divisão sexual do trabalho e o estabelecimento de papéis


de gênero nesse ambiente profissional, aprofundaremos essa discussão. Por ora, o que parece
importante salientar é que o assédio é muito amparado por esses papéis de gênero, em que a
figura de poder e autoridade cria uma performance masculina. Permanecer na cozinha, ou
seja, sobreviver ao assédio é considerado um valor. De acordo com Arnoldsson (2015, p.28),
“Normas que celebram o chef forte, macho, capaz de aguentar e suportar o que for preciso
(…) ajudam a fazer exatamente isso, resistir e oferecer alguma consolação e até motivação
para continuar”152.
A questão da resistência como um valor no ethos do cozinheiro também contribui para
que os casos de abuso e assédio sejam narrados como “anedotas”, como casos, e muitas vezes
como uma forma do/a cozinheiro/a ou chef, na verdade, se gabar, se autovalorizar, reforçando
essa autoimagem de força e resistência às piores condições. É um argumento de poder
proclamar para os outros que também suportou violência na sua trajetória, o que legitima seu
próprio comportamento. É um atestado de força e de poder.
Na contrapartida, admitir um lugar de “vítima” de algum tipo de violência, física ou
psicológica, implica uma vergonha para quem sofre (BLOISI, HOEL, 2008). E em um espaço
“macho”, em que a agressividade é vista como um valor positivo, entender que há um
problema e se colocar como “vítima” pode ser interpretado como uma fraqueza. Isso contribui
para que sejam poucos os casos que são denunciados, poucos os casos em que o/a agressor/a é
identificado/a como tal, e muitos os casos em que esse tipo de comportamento é naturalizado
como uma consequência do estresse implicado na própria profissão.

3.1.1. Assédio sexual

As mulheres que conseguem chegar aos cargos de chefia também reproduzem alguns
comportamentos com os quais sofreram ao longo da carreira como uma forma de provar seu
valor e legitimidade, provar suas capacidades, equiparando-se aos homens. Como observou
Lapa (2019) com relação às mulheres na indústria metalúrgica, muitas vezes as mulheres que
ascendem na carreira temem ter seu sucesso tributado a favores sexuais, o que também é uma
forma de diminuir seu mérito.

152
Tradução livre do original: “Norms that celebrate the strong, macho chef, able to cope with and endure
whatever is required (…) helps to do just that; to endure, and offer some consolation and even motivation to keep
doing it” (p.28).
129

A capacidade técnica ou profissional dos homens nunca é questionada no sentido de


terem obtidos vantagens em troca de relações afetivas ou sexuais com colegas ou chef, mas
isso parece relativamente frequente no caso das mulheres. Principalmente quando elas estão
subordinadas aos homens.

Na época que eu fui dar aula no curso internacional, aí eu via... as meninas


que não saía com eles, porque aí já tinha alojamento pra elas, aí não queria
sair com eles, fazia elas limpar exaustor. Tudo isso eu já vi, minha filha. (…)
Coifa, exaustor. Tem isso. Porque umas não queria. Aí eles colocava pro
açougue, colocava pra limpar exaustor, lavar panela153.

Utilizando o poder que eles têm dentro da hierarquia da cozinha, e o exemplo citado
por Benê deixa isso claro, muitos homens pressionam mulheres para terem uma relação fora
do ambiente de trabalho, uma relação pessoal, sexual, sob pena de “castigo” no trabalho, caso
elas recusem. Os chefs, portanto, sabem quais são os trabalhos mais penosos, mais difíceis e
dispunham do seu poder sobre a organização do trabalho para penalizar as mulheres que “não
queria [sic] sair com eles”.
Quando eu trabalhava lá em Natal [RN], geralmente o chef ele é muito
machista. Sempre foi muito machista. Sempre gostou de mulher na cozinha e
sempre deu problema isso, porque ele era... sempre tratava as mulheres com
jeito sexuado, totalmente sexuado. "Meu benzinho, vem aqui. Ah meu
amorzinho, vem aqui. Fica aqui do meu lado, vou te mostrar como faz". Aí
chegava um homem, falava "vai lá, faz outra coisa". Então ele sempre... só
que nunca que ele dá um cargo pra uma mulher. Entendeu como que é a
jogada dele? "Eu trato ela bem pra ela ficar do meu lado, mas nunca que ela
vai ser a minha subchef"154.

A experiência de Matias em um restaurante grande na cidade de Natal (RN) revela um


lado do sexismo em que, aparentemente, o chef aceitava as mulheres na cozinha e chegava,
inclusive, a adotar uma postura de ensiná-las, quando realmente tinha um interesse por trás.
Esses comportamentos de excessiva intimidade, como chamar as funcionárias (e até colegas,
pois esse tipo de atitude nem sempre está embasado na hierarquia) de “benzinho”, “meu
anjo”, “amorzinho” são também formas de diminuir as mulheres e infantilizá-las. Conforme o
próprio Matias observou, o chef não admitia colocar uma mulher como sous-chef, como sua
subordinada direta e com responsabilidade efetiva na cozinha.
Mariana155 sofreu assédio sexual no trabalho e, sentindo que não tinha amparo sequer
para fazer uma denúncia, pediu demissão. Ela relata sua experiência.

153
Benê Ricardo, 73 anos, chef e professora.
154
Matias, 25 anos, cozinheiro.
Mariana, 31 anos, cozinheira.
155
130

No hotel que eu trabalhei lá em São Paulo, me trancavam na câmara fria... a


câmara fria era uma sala. Aí trancavam a porta da câmara fria comigo e um
garçom lá dentro, por exemplo, ficava tudo escuro, aí quando abria, eles
gritavam "eeee". Era a cultura deles assim, mas eu achava ridículo eles
fazerem isso. Era a terceira série esse hotel. O chef deu em cima de mim
horrores, foi quando eu tive a tendinite. Eu fiquei 15 dias afastada. Quando
eu voltei, ele tinha falado pra todo mundo que ele tinha ido na minha casa,
que a gente tava namorando. Assim. Quando eu fui tirar satisfação com ele,
eu fiquei bem com raiva, a chef nunca tava lá, ela era chef executiva,
trabalhava no turno da noite. Quando eu fui tirar satisfação, ele simplesmente
foi cortando meu horário de jantar. A gente ia jantar em horários escalonados,
e ele ia passando todo mundo pra ir jantar na frente e eu ficava por último,
quando não tinha mais comida ou quando já tava muito tarde, quase na hora
de ir embora, e eu não tirava minha hora de jantar.

O relato de Mariana explicita dois tipos de assédio sexual na mesma cozinha. De um


lado, os colegas que agiam de forma que ela avaliou como infantil, “era a terceira série”, que
a colocavam numa situação constrangedora com um garçom, enclausurados numa câmara fria,
esperando que alguma coisa acontecesse entre eles. Ela ainda justifica o comportamento como
“era a cultura deles assim”. Até esse momento, ela parece tratar esses incidentes como
imaturidade dos colegas.
O que, de fato, deixou-a “bem com raiva” foi o chef que disse para esses colegas que
eles estavam namorando quando ela teve que se ausentar por motivo de saúde. A chef
executiva, ou seja, a chefe do seu chefe, “nunca tava lá”, de maneira que ela não tinha a quem
recorrer. Tendo sido desmentido e rejeitado, o chef começou a puni-la de forma quase
imperceptível para os outros, usando seu poder de organizar a escala do jantar dos
funcionários para impedi-la de tirar sua hora de descanso no período da noite, deixando-a sem
jantar.
A solução que ela encontrou foi sair do restaurante. Segundo ela, “a coisa boa da
cozinha é que você consegue emprego muito rápido, tem uma rotatividade muito grande. Toda
vez que eu percebia que não tava bom, eu caía fora”. Uma solução individual que permite que
o chef assediador permaneça no trabalho, sem nenhum tipo de responsabilização ou
consequência pelos seus atos.

4. Considerações finais do capítulo


Nesse capítulo, procurei explorar os elementos do ethos dos/as cozinheiros/as, como a
lealdade aos colegas e o comprometimento com o trabalho, enquanto características que
eles/as mesmos/as consideram fundamentais para o desempenho da profissão e que se
131

articulam com as condições de trabalho contemporâneas. Questionei o dom natural e a ideia


de talento inato, como formas de ocultar o tempo dedicado a um aprendizado duro e relações
de classe, que colocam homens e mulheres em diferentes circunstâncias para o exercício
profissional.
Analisei os contornos da qualificação profissional nesse segmento, que passa tanto
pela educação formal via cursos e instituições, quanto pelo aprendizado empírico in loco,
remetendo às antigas corporações de ofício e à relação entre mestre e aprendiz. Os cursos
expressam uma relação de classe, em que há aqueles que são caros e mais valorizados e
aqueles que são mais acessíveis. Do ponto de vista do trabalho, os jovens de classe média que
acessam esses cursos e entram nas cozinhas encontram um ambiente em que a maior parte da
força de trabalho tem pouca escolaridade e muita experiência, o que precipita conflitos e
acirra tensões.
A formação on the job e a valorização da experiência profissional na construção de
uma carreira contribuem para a rotatividade do setor e aumentam o poder dos/as chef, que são
também professores/ mestres. Examinei, com base nos depoimentos dos/as entrevistados/as, o
estágio nesse ramo profissional e como o trabalho em cozinhas, entendido como parte
fundamental da formação de um/a cozinheiro/a, torna-se uma moeda de troca, submetendo
esses/as jovens a condições de trabalho difíceis e, frequentemente, não remuneradas.
Descrevi como se dá, de maneira geral, a jornada de trabalho nesse setor e como ela
dificulta (e, não raro, impossibilita) o acesso a um tempo de lazer e descanso, tempo com a
família e amigos, e as implicações que isso pode trazer para a saúde desses/as
trabalhadores/as, tanto física quanto psicologicamente. Encerrei o capítulo refletindo sobre a
questão do assédio e sua naturalização nesse métier, como os elementos que compõem o ethos
desses profissionais são mobilizados para criar um discurso agressivo contra eles/as, para
legitimar situações violentas, sobretudo contra as mulheres.
No capítulo seguinte, interrogo os contornos da divisão sexual do trabalho nas
cozinhas e como a discussão que foi desenvolvida até aqui afeta, sobretudo, as mulheres.
132

Capítulo 3 - Cozinha é lugar de mulher?


“Porque a mulher gosta de cuidar do seu lar, ela é uma pessoa que resolve as
coisas da família, resolve as coisas, tem as necessidades dela. E, numa
cozinha, você vive para o restaurante. Você não tem vida” (Manuela, 31
anos, confeiteira).

Neste capítulo, analiso a presença das mulheres no trabalho culinário. Discuto a


teoria da divisão sexual do trabalho e como ela fundamenta a análise do trabalho em cozinhas,
que empreendo aqui.
Procurarei mostrar como essa divisão se expressa entre as esferas privada e pública,
ou seja, no trabalho doméstico e profissional fora de casa, assim como na divisão das praças
na cozinha. Finalmente, discutirei as relações de raça e as trajetórias de duas cozinheiras,
especificamente, para analisar como se dá a imbricação dessas relações com gênero e classe.

1. A divisão sexual do trabalho

A questão que orienta essa pesquisa é como se estrutura a divisão sexual do trabalho
nas cozinhas profissionais. É fundamental, portanto, esclarecer o que é a divisão sexual do
trabalho e como ela se reproduz.
Existe uma hierarquia muito rígida na cozinha profissional, uma ordenação vertical
dos postos de trabalho, que tem na figura do/a chef o cargo de liderança. Há uma separação
entre a cozinha fria e a cozinha quente: a primeira voltada para o trabalho com entradas,
saladas e sobremesas, geralmente preparos que não demandam o uso de forno ou do fogão; a
segunda é voltada aos pratos quentes, que necessitam grelha, fogão ou outras formas de
cocção. Como veremos adiante, essa separação também corresponde a uma separação entre
trabalhos considerados mais femininos e mais masculinos. Mas a divisão sexual do trabalho
também se expressa pelas narrativas das mulheres sobre o trabalho doméstico e as tensões que
estão colocadas entre vida profissional e familiar.
“A divisão sexual do trabalho é a forma da divisão social do trabalho decorrente das
relações sociais de sexo (...). Tem por características a destinação prioritária dos homens à
esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos
homens das funções de forte valor social agregado” (KERGOAT, 2009, p. 67). No caso do
133

trabalho culinário, é possível observar como a divisão sexual do trabalho se expressa, a


princípio pela associação da cozinha doméstica como feminina, uma responsabilidade quase
exclusiva das mulheres, embutida no trabalho doméstico cotidiano, enquanto a cozinha
profissional é um domínio masculino, dotado de valor e prestígio social.
A divisão sexual do trabalho é orientada por dois princípios organizadores: o princípio
da separação e da hierarquização (HIRATA, KERGOAT, 2007; KERGOAT, 2002, 2009,
2010). O primeiro refere-se justamente à separação entre trabalhos de homem e trabalhos de
mulher, que pode se manifestar pela constituição de guetos ocupacionais que, por sua vez,
baseiam-se em ideias naturalizadas de masculino e feminino. O princípio da hierarquização
implica que os trabalhos desempenhados por homens têm mais valor social que os trabalhos
considerados “de mulher”.
Esses princípios, segundo Hirata e Kergoat, são válidos para todas as sociedades
conhecidas, no tempo e no espaço. O que legitima a aplicação desses princípios no corpo
social é a ideologia naturalista, que “relega o gênero ao sexo biológico e reduz as práticas
sociais a ‘papéis sociais’ sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie”
(KERGOAT, 2010, p.68). Entretanto, isso não significa que a divisão sexual do trabalho seja
um dado imutável da história, nem que seu conteúdo seja igual em todas as sociedades. Pelo
contrário, ela é dotada de plasticidade e desenvolve relevos específicos a partir dos contextos
e configurações históricas, políticas, econômicas e sociais em que se encontra.
De acordo com Hirata e Kergoat (2007: 597),
Falar em termos de divisão sexual do trabalho é: 1. mostrar que essas
desigualdades são sistemáticas e 2. articular essa descrição do real como uma
reflexão sobre os processos, mediante os quais a sociedade utiliza essa
diferenciação para hierarquizar as atividades e, portanto, os sexos; em suma,
para criar um sistema de gênero.

Desde os anos 1970, pesquisadoras feministas de distintas correntes teóricas e


ideológicas passaram a questionar diversas categorias da sociologia do trabalho da época,
inclusive o marxismo, com relação ao lugar das mulheres nessa teoria. Passaram a reivindicar
uma ampliação do conceito de trabalho até então utilizado, herdeiro dessa concepção
androcêntrica marxista, que considerava apenas o trabalho produtivo, fabril, do trabalhador
homem branco, tratando-o como um “universal” que englobaria o conjunto da classe
trabalhadora. Essas pesquisadoras revelaram como esse “universal” era falso e acabava por
ocultar não apenas a heterogeneidade da classe trabalhadora, mas diversos conflitos inerentes
a ela (HIRATA, KERGOAT, 2009).
134

Joan Acker (1990: 139) discute a neutralidade de gênero nas organizações, em que a
natureza corporificada do trabalho é mascarada, e o conteúdo do trabalho e as hierarquias
parecem abstratos, e supõem um trabalhador sem corpo e universal, que é um homem. O
corpo do homem, a sexualidade, relações de procriação e trabalho remunerado são
subsumidos na imagem do trabalhador “universal”. Imagens de corpos e masculinidades
percorrem o processo organizacional, marginalizando mulheres e contribuindo para a
segregação por gênero nas organizações.
Graus de habilidade, complexidade e responsabilidade, todos utilizados para construir
hierarquia, são conceitualizados como existindo independente de um trabalhador concreto
(idem, p.149). O mais perto que um trabalhador descorporificado fazendo um trabalho
abstrato chega de um trabalhador real é um trabalhador masculino cuja vida se centra em seu
trabalho em tempo integral, enquanto sua esposa ou outra mulher cuida de suas necessidades
pessoais, trabalho doméstico e filhos. A mulher trabalhadora, presumindo que tem obrigações
legítimas além daquelas requeridas pelo trabalho, não se encaixa nesse trabalho abstrato.
Nesse sentido, comportamentos como assédio sexual são vistos como desvios ou
anormalidades de atores gendrados e não como componentes da estrutura organizacional.
Enquanto as organizações são definidas como neutras do ponto de vista do gênero, princípios
masculinos dominam as estruturas de autoridade dessas organizações e as hierarquias. A
masculinidade parece sempre simbolizar auto respeito para os homens nas camadas mais
baixas e poder para os homens no topo, enquanto confirma a superioridade de gênero de
ambos em relação às mulheres (ACKER, 1990, p.145).
Determinadas capacidades, como por exemplo, lidar com dinheiro, são mais comuns
aos trabalhos de homens do que em trabalhos de mulheres (Joan Acker não fala, entretanto,
em termos de divisão sexual do trabalho), e frequentemente são mais valorizados do que
habilidades como lidar com clientes ou capacidades de interações humanas, mais recorrentes
em trabalhos “de mulheres”. A ideia de um trabalhador universal exclui e marginaliza as
mulheres que não podem, quase que por definição, alcançar as qualidades de um trabalhador
real porque, para fazê-lo, teriam que se tornar homens. Segundo essa autora, corpos de
mulheres não poderiam ser adaptados à hegemonia masculina das organizações. Para estar no
topo das hierarquias masculinas, portanto, é demandado das mulheres que tornem
imperceptível o que faz delas mulheres156 (idem, p.153).

156
No original: “Women's bodies cannot be adapted to hegemonic masculinity; to function at the top of male
hierarchies requires that women render irrelevant everything that makes them women” (ACKER, 1990, p.153).
135

Helena Hirata e Danièle Kergoat (2009: 44) também discutem o “modelo assexuado
de trabalho” adotado pelos iniciadores da sociologia do trabalho, “elevado implicitamente
como universal”, e que foi duramente questionado a partir dos anos 1970 justamente pela
problemática da divisão sexual do trabalho, uma vez que se tornava inegável a necessidade de
considerar o sexo social (gênero) e o trabalho doméstico, o que coloca essa figura
descorporificada e universal em xeque.
A hegemonia de um trabalhador universal sem corpo, sem especificidades, neutro,
portanto, se refere a um homem branco heterossexual sem responsabilidades familiares ou
obrigações relativas ao trabalho doméstico, com disponibilidade para dedicar-se integralmente
ao trabalho profissional. Tal ideia, portanto, exclui as mulheres, brancas e não brancas,
heterossexuais e homossexuais, homens homossexuais, brancos e não brancos. Acker
questiona a raça e etnicidade desse trabalhador supostamente universal, mas não avança na
discussão.
Bouazzouni (2018) argumenta que na língua francesa – e também na portuguesa – o
masculino é o gênero que se refere ao universal, o gênero neutro. Mas essa pretensa
neutralidade do masculino oculta e silencia as mulheres. Nos prêmios importantes da
gastronomia mundial, as mulheres são ignoradas na categoria “universal”, e se fez necessário
criar um prêmio para as mulheres chefs, mesmo que o prêmio “neutro” não seja voltado, ao
menos no nome, exclusivamente para os homens chefs. Se existe um prêmio para os
melhores, por que foi necessário criar um prêmio separado para as mulheres?
Patrícia Marie (2018: 36) afirma que é preciso reconhecer que a direção de uma
brigada é um privilégio masculino, em particular no mundo dos restaurantes estrelados onde
muito poucas mulheres receberam o reconhecimento definitivo - desde 1933, apenas quatro
mulheres receberam as famosas três estrelas Michelin.
Existem as chefs que reconhecem as dificuldades que as mulheres encontram na
profissão, e se regozijam em ter esse reconhecimento profissional, “eu acho ótimo que
Michelin finalmente conceda um lugar às mulheres”, afirmou Sarah Benahmed, premiada em
21 de janeiro de 2019 com o Prêmio de Recepção e Serviço. Na mesma cerimônia e no
mesmo dia, a chef pâtissière Jessica Préalpato, que também foi premiada, afirmou que
“destacar a presença das mulheres não me parece útil. Enquanto mulher, eu quero ser julgada
pelos mesmos critérios que um homem, unicamente pelo meu mérito”157.

157
Jornal Le Monde, jeudi, 24 janvier 2019, p.21.
136

Em sua grande complacência e porque estimam, com toda certeza, que uma
mulher não tem as armas para competir na mesma categoria que um homem,
o World’s 50 Best concede todo ano o prêmio da “melhor mulher cheffe”
(“female chef”, no original em inglês). Abramos um pequeno parêntese
linguístico: primeiramente, é uma maneira de lembrar que uma mulher, antes
de ter uma função, permanece, em primeiro lugar e fundamentalmente,
definida pelo seu gênero158.

É compreensível que uma mulher que ganhe o prêmio de melhor chef mulher sinta-se
ressentida; afinal, aparentemente, os homens não são reconhecidos apenas porque são
homens. Ninguém questionaria o mérito de um homem ganhador de um prêmio com base em
seu sexo, mas é preciso reconhecer que os homens dominam esses espaços há muito tempo.
Homens criaram o prêmio, homens definiram os critérios, homens julgaram, homens
premiaram e homens ganharam. As mulheres foram proibidas de participar desse tipo de
“competição”, direta e indiretamente, por muito tempo. No ano anterior a essa premiação,
2018, a própria legitimidade do Guia Michelin passou a ser questionada justamente por terem
sido recompensados com estrelas e prêmios quase que exclusivamente homens.
A neutralização do gênero significa, na verdade, a ocultação das mulheres e do gênero
feminino em nome de uma suposta neutralidade que, em verdade, exclui as mulheres. Existem
diversas maneiras de fazer as coisas, preparar os alimentos, montar pratos etc. e muitas vezes
a dona de casa sabe fazer e conhece as técnicas, mas ela não conhece o nome em francês, ou
nem se dá conta que aqueles movimentos ou aquele modo de preparo tem um nome, ela
apenas faz. Tirar o gênero da técnica é tirar as mulheres da técnica. Ela aparece racionalizada,
finalizada, como a maneira ótima, mais eficiente, de fazer alguma coisa, e isso se contrapõe
ao conhecimento empírico, doméstico, e, ao valorizar-se como técnica racional “neutra”,
desvaloriza esse outro tipo de conhecimento, feminino.
Kergoat (2010) postula que as relações sociais são consubstanciais, ou seja, elas
formam um nó que não pode ser desamarrado no nível das práticas sociais, trata-se de uma
metáfora para compreender essas relações analiticamente. Em nota de rodapé, a autora afirma
que consubstancialidade refere-se à “unidade de substância”, sugere que diferenciar essas
relações só é possível em termos de análise sociológica, mas não pode ser aplicada
inadvertidamente nas práticas sociais concretas. As relações sociais também são coextensivas,
ou seja, a partir do momento em que se desenvolvem, as relações de gênero, classe e raça se
reproduzem e se co-produzem mutuamente. O paradoxo das relações sociais de sexo “aponta

158
BOUAZZONI, 2018, p.36.
137

para a imbricação, na própria gênese da divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, de


diferentes relações sociais” (p.94).
Em meu entendimento, os conceitos de consubstancialidade e interseccionalidade têm
muito mais pontos em comum e podem contribuir mais para a pesquisa social juntos do que
tratados como antagônicos, conforme também parece ser a compreensão de Helena Hirata
(2014). Assim como o black feminism estadounidense, Danièle Kergoat elabora um conceito
que insiste na não hierarquização entre as relações que estão imbrincadas, que precisam ser
analisadas em conjunto, sem supremacia ou determinação por parte de uma ou outra.
Interseccionalidade, de acordo com a literatura inglesa e também francesa, designa, a
princípio, a interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe. Apesar de ser
creditado a Kimberlé Crenshaw, “sua origem remonta ao movimento do final dos anos de
1970 conhecido como Black Feminism, cuja crítica se voltou de maneira radical contra o
feminismo branco, de classe média, heteronormativo” (HIRATA, 2014, p.62).
O conceito de “consubstancialidade” foi cunhado por Danièle Kergoat no final dos
anos 1970 (ou seja, antes de Crenshaw), em termos da articulação entre as relações entre sexo
e classe social. A dimensão de origem, e consequentemente de raça/ etnia, é incorporada mais
tarde. Crenshaw parte da intersecção entre sexo e raça, e mais tarde incorpora a questão da
classe (idem, p.63).
“Nenhum/a de nós vive em caixas exclusivas”159, observa Kimberlé Crenshaw (2010:
93). Somos simultaneamente membros de vários grupos, portanto sujeitos a diferentes formas
de subordinação e exclusão. Esses efeitos interativos algumas vezes desafiam as intervenções
políticas porque estas são parciais. A consequência de não atentar para as relações
interseccionais é a invisibilidade dos sujeitos que se encontram nas intersecções entre essas
diversas relações (CRENSHAW, 2010, p.95).
Patricia Hill Collins (2015: 14) afirma que é preciso criar novas visões sobre o que é
opressão, que são necessárias novas categorias de análise “que incluam raça, classe e gênero
como estruturas de opressão distintas, mas imbricadas”. A crítica de Collins centra-se em duas
premissas que, segundo ela, não permitem avançar no sentido da superação dessas relações de
opressão. A primeira é a construção de um pensamento dicotômico ou/ou.
Todas/os têm uma identidade específica de raça/ gênero/ classe. Pensamentos
dicotômicos do tipo ou/ ou são especialmente problemáticos quando
aplicados a teorias da opressão, porque todo indivíduo deve ser classificado
ou como sendo oprimido ou como não sendo oprimido. Se torna

159
Tradução livre do original “none of us live in exclusive boxes”.
138

conceitualmente impossível a posição ‘ambos/ e’, em que o indivíduo é


simultaneamente oprimido e opressor (COLLINS, 2015, p.17).

A segunda premissa criticada pela autora é a ideia de que as análises somatórias ou


aditivas da opressão acabam por hierarquizar essas diferenças dicotômicas. Segundo ela, “Em
essência, se juntássemos as diferentes opressões, teríamos uma opressão maior do que a soma
de suas partes” (idem, p.18). Ainda que uma ou outra categoria possam ter primazia sobre as
outras em um determinado tempo e lugar, em uma situação específica, isso não minimiza “a
importância teórica de supor que raça, classe e gênero são categorias de análise que
estruturam todas as relações” (ibidem, p.19).
A ruptura se dá principalmente pelo abandono de algumas categorias marxistas e a
elaboração de um estudo sociológico das relações sociais, o que implica abordar outras
formas de trabalho, como o trabalho informal, não remunerado e, sobretudo, o trabalho
doméstico e de cuidados. “Esta definição restritiva do trabalho exclui uma parte substancial
dos trabalhos realizados na vida social, precisamente aqueles que não são o objeto de uma
remuneração, como os trabalhos domésticos ou a participação ativa em diversas estruturas da
sociedade sem fins lucrativos” (HIRATA, KERGOAT, 2009, p.42). A análise interseccional e
do ponto de vista da consubstancialidade convergem nesse sentido.
De acordo com as Hirata e Kergoat, o movimento feminista se apoia na tomada de
consciência de uma opressão específica, quando se tornou evidente que uma enorme massa de
trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres, um trabalho invisível, realizado para
outros, em nome da natureza e do amor, como se a atribuição deste trabalho às mulheres fosse
automática. Assim, a “família”, como entidade natural e biológica se desfez para se tornar
lugar de exercício de um trabalho. A seguir, a esfera do trabalho assalariado implodiu, como
espaço do trabalho produtivo, do trabalhador masculino, branco e qualificado.
“As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino
biológico, mas, sobretudo, construções sociais” (HIRATA e KERGOAT, 2009, p.67). Partindo
dessa premissa, Kergoat afirma que homens e mulheres configuram grupos sociais que estão
envolvidos em um tipo específico de relação social, que são as relações sociais de sexo. Sua
concepção de relação social é que ela é uma relação de poder, e portanto baseada no conflito,
“uma relação antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa”
(KERGOAT, 2010, p.94). As relações sociais sempre têm uma base material, que neste caso é
o trabalho, e portanto a divisão sexual do trabalho é a divisão social do trabalho entre os
sexos.
139

Analisar o trabalho culinário a partir dessa perspectiva implica compreender que a


primeira separação se dá nas esferas pública e privada. Enquanto nos dias de hoje, cada vez
mais, a figura dos chefs e cozinheiros vai ganhando visibilidade social e prestígio, cozinhar
para a família, todos os dias, é uma tarefa que faz parte do conjunto do trabalho doméstico,
invisibilizado e desvalorizado socialmente. A cozinha profissional é masculina, associada à
figura do homem cozinheiro, de dólmã e chapéu, e a cozinha doméstica é feminina, associada
à mulher e ao avental. Ao longo da pesquisa, ficou claro que as mulheres cozinheiras são
majoritariamente responsáveis pelo trabalho culinário em suas casas, ao passo que os homens
cozinheiros dificilmente cuidam das refeições em casa (exceto aos fins de semana ou ocasiões
especiais, quando eles decidem que querem preparar algum prato).
Em anos recentes, na medida em que transformações sociais têm operado
paulatinamente, principalmente em função do movimento feminista que tem procurado dar
visibilidade ao trabalho doméstico enquanto trabalho160, mesmo quando não remunerado, tem
crescido a pressão para que os homens assumam a parte que lhes cabe nesse conjunto de
atividades e tarefas.
Bruschini e Ricoldi (2012) observaram que a contribuição masculina para o trabalho
doméstico aparece na forma de “ajuda”, o que denota, por um lado, que esse trabalho continua
sendo uma atribuição das mulheres; e, por outro, que os homens realizam as tarefas que
sobram, ou as que escolhem fazer. Harris e Giuffre (2010) e Roscoe (2012) também
observaram como o discurso das mulheres mobiliza o trabalho realizado pelos homens no
âmbito doméstico como “ajuda”, como algo além do que seria a obrigação deles, algo a ser
valorizado. Nesse sentido, cozinhar pode ser um trabalho que os homens aceitam assumir, o
que tem se expressado, na atualidade, pela emergência de um novo cômodo para realizar esse
trabalho, como as “varandas gourmets” e “espaços gourmets” nos condomínios e prédios.
Esses novos espaços promovem a integração entre aquele/a que cozinha e os convidados, uma
forma de tirar a cozinha do espaço dos bastidores e da esfera de poder feminino, e trazê-la
para o centro do convívio.
Esse movimento se expressa, além da arquitetura, nas mídias e na literatura, com o
aumento da produção de programas culinários, canais de televisão totalmente dedicados à
gastronomia, edição de livros e revistas, surgimento dos chefs estrelas e a proliferação do
discurso culinário na internet e redes sociais. A partir do momento que a cozinha vai se
tornando gastronomia, e cada vez mais associada a uma arte, a um talento, a um trabalho

160
“O conceito ampliado de trabalho refere-se a uma concepção mais abrangente das atividades produtivas e
reprodutivas” (HIRATA, 2015, p.4).
140

positivo, mesmo a cozinha doméstica vai se masculinizando. “A presença dos chefs


masculinos nas TVs de comida e o aumento do número de livros, revistas e blogs sobre
homens cozinhando parecem indicar um crescimento do entusiasmo para cozinhar entre os
homens no Ocidente”161 (SZABO, 2012, p.623).
Nas palavras de Nora Buozzoni (2018: 23-24),

Mas esse serviço [cozinhar] está longe de ser considerado como um


verdadeiro trabalho, é normal cuidar de tudo quando se é mulher. É quase
como se tivesse nos nossos genes saber fazer arroz e feijão. Então, para cada
mulher cujo trabalho diário de fazer comida é banalizado, para cada mulher
culpabilizada quando ela ousa esquentar um prato pronto ou uma comida
industrializada, ou quando a sua progenitura está acima do peso, há um
homem que é aplaudido domingo, durante o verão, pela proeza de acender
uma churrasqueira e assar 12 linguiças. Dá logo um Bocuse d’or pro cara,
ele é um herói!

Entretanto, enquanto cozinhar passa a ser uma das tarefas do trabalho doméstico que
os homens aceitam de bom grado fazer, não é sempre162. De acordo com as entrevistas, apenas
dois dos cozinheiros homens afirmaram que cozinhavam em casa para suas famílias, enquanto
os outros só ocupavam a cozinha aos fins de semana ou quando sentiam vontade de fazer
“algo especial”.
Entrevistadora: Cozinha bastante em casa?
Valdemar: Bastante... Não, agora não, porque é mais minha esposa que faz
mesmo, ou mesmo a empregada, às vezes ela que faz. Mas quando...
domingo, vou pra cozinha, ou sábado. Saem umas coisinhas diferentes. (...)
Eu gosto mais de fazer macarrão ao molho branco. Aí um espaguete ao
molho de camarão. Às vezes eu faço uma costela, aquela mesma coisa…163

Entrevistadora: Você cozinha no seu tempo fora, no seu tempo de lazer?


Valter: Ah, eu gosto, eu adoro. Adoro. (…) Eu faço mais carne no forno,
faço de vez em quando um ratatouille, faço um risotinho. Eu faço umas
comidinha mais leve. Eu adoro fazer. Ainda mais que minha família também,
eu gosto de juntar minha família, eu gosto de fazer, e eles também adora164.

Carlos: De vez em quando eu faço, né. De vez em quando, às vezes quer


fazer uma comida mais diferente que ela [a esposa] não sabe, aí eu faço, né.
Esses dias mesmo eu fiz um yakissoba que o menino gosta, ela comeu e
gostou também. Já fiz sushi em casa, né165.

161
Tradução livre do original “The ever-presence of the male chef on food TV and the rising number of books,
magazines and blogs about men’s cooking seem to indicate a growing enthusiasm for cooking among men in the
West”.
162
“Les hommes ont tendance à cuisinier plus par plaisir et loisirs et à ne pas se sourcier du ménage et du
rangement après (...) mais ils sont encore peu nombreux à s’occuper tous les jours de la cuisine, lorsqu’elle
prend une allure de corvée” (STENGEL, 2018, p.26-27).
163
Valdemar, 34 anos, chef
164
Vitor, 32 anos, sous-chef.
165
Carlos, 53 anos, cozinheiro.
141

Joelma: Que eles ficam com medo da mulher abusar muito, né, aí a mulher,
começa a fazer uma vez, a mulher quer que faz todo dia, né166.

O depoimento de Joelma revela uma dimensão do trabalho doméstico que está


associada a uma tensão entre os casais na divisão do trabalho doméstico. Num ambiente em
que a mulher é responsável por todas as tarefas realizadas em casa, se o homem “ajuda”, se
ele faz uma parte do trabalho, se ele cozinha, há o risco de que a mulher queira que ele
cozinhe todos os dias, ou seja, que ele assuma uma das tarefas do trabalho doméstico – e os
homens não querem isso. Ela afirma que os homens têm medo “da mulher abusar muito”, ou
seja, seria um abuso delegar uma tarefa doméstica ao homem.
Dentre as mulheres cozinheiras entrevistadas, quase todas eram responsáveis pela
“comida do dia a dia” ou “comida normal”, ou seja, a comida ordinária voltada para a família.
Na percepção delas, a cozinha de casa não tem criatividade ou caráter de lazer, mas mais uma
obrigação de todos os dias:

Quando eu tô em casa, não [cozinho] muito. Na verdade, eu não cozinho


muito. Eu falo pra todo mundo, "casa de ferreiro, espeto de pau". Porque não
tenho muito tempo também, né? Mas eu cozinho. Só eu que cozinho, né, o
[filho] maior também já faz arroz, faz alguma coisa. (...) Não muito, te
confesso, porque eu fico pouco tempo também em casa. Então assim, o
tempo que eu tô em casa eu tenho que estar arrumando, estar limpando, e
cozinhar, eu cozinho, mas não fazendo coisas, te confesso, diferente mesmo
eu faço mais aqui167.

Eu, assim, pratos e receitas eu não costumo fazer, porque como é só eu e


meu filho em casa, então a gente não tem o hábito, assim, de fazer pratos
diferentes assim, mas o basiquinho, assim, da comida caseirinha, é todo dia.
(...) É eu que faço168.

Mas eu cozinho mesmo, só cozinha eu em casa. Eu saio daqui, chego em


casa vou fazer janta. (...) Eu saio daqui, chego na minha casa e vou fazer
janta pra eles169.

Não, a comida que eu faço aqui, eu também faço na minha casa. Porque eu
falo pras minhas filhas, elas falam "você só faz lá, não faz aqui?" Eu faço. A
mesma coisa eu faço170.

Mesmo a cozinha doméstica, feminina, incorporada ao trabalho doméstico diário, é


palco da “disputa” entre homens e mulheres no seio da família, de tal forma que nesse mesmo

166
Joelma, 53 anos, saladeira.
167
Joana, 38 anos, chef.
168
Joelma, 53 anos, saladeira
169
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
170
Helena, 49 anos, cozinheira. É importante contextualizar essa fala de Helena, pois no momento da entrevista,
ela trabalhava em um restaurante por quilo no bairro de Pinheiros (bairro paulistano), cuja característica era
justamente comida simples e caseira.
142

espaço, o trabalho culinário masculino é mais valorizado. A comida que o homem (pai/ filho/
irmão) faz é especial, numa ocasião extraordinária, uma comida diferente, algo que ele
decidiu que gostaria de fazer. A comida que precisa ser feita todos os dias, que garante a
manutenção da família, que não requer criatividade, que não tem data especial, essa continua
sendo quase que exclusivamente sendo feita pela mulher.

2. Trabalho doméstico: conflito trabalho e família

Elisa171 mora com a mãe e três filhas com idades de 9, 7 e 4 anos, no bairro do Capão
Redondo, na periferia de São Paulo, e trabalha nos períodos vespertino e noturno em um
restaurante na Vila Mariana, normalmente das 14h30 às 0h30, de terça a domingo. Ela
depende da mãe, que cuida das meninas, para que ela possa trabalhar, assim como das irmãs,
as “tias”.
Se não for ela [a mãe], eu não sou ninguém. Essa é bem a frase. A gente
briga. Briga que nem cão e gato. Ela grita comigo. Grita demais, tem horas
que me deixa surda. Mas sem ela eu não sou ninguém.

Saio de casa totalmente tranquila que eu sei que as meninas vão tomar
banho, vão jantar, se tiver um remédio pra dar, vai ser dado, qualquer coisa
que acontecer, ela vai me ligar, ela vai me passar.

Todavia, o cotidiano é permeado por conflitos com relação à autoridade dentro da


casa, uma vez que Elisa passa muito tempo fora e a mãe acaba tomando decisões com relação
à educação e liberdade das filhas sem consultá-la.

É muito ruim. Porque ela fala assim pra mim: "vá pedir pra sua mãe", "não,
vou pedir pra minha avó porque minha avó deixa, minha mãe não". (...) Tem
dias que elas me ligam, "mãe, eu vou dormir na casa da minha tia, mas a
minha avó já deixou, tá? Só estou te avisando". Ah então tá bom, se sua avó
deixou...

As três irmãs têm pais diferentes, com relações mais ou menos amigáveis com Elisa.
Ela teve a primeira filha aos 18 anos e o pai da menina sugeriu que ela fizesse um aborto. Ela
decidiu ter a menina sozinha e nunca permitiu que o pai se aproximasse dela, nem ele
demonstrou esse interesse. Com o pai da segunda, ela afirma ter uma convivência amigável
por causa da criança, e que ele a ajuda financeiramente, além de ter uma “rotina maluca” de
visitar a menina e levá-la para passar tempo com ele. A terceira filha foi fruto de um “namoro-
relâmpago”, segundo Elisa, e ela só contou para o pai que ele tinha uma filha quando a
171
Elisa, 28 anos, cozinheira.
143

menina já tinha 1 ano. Eles estavam namorando no momento da entrevista, mas não moram
juntos.
O cotidiano do trabalho e as jornadas, principalmente o trabalho aos fins de semana,
são um impeditivo para que ela passe mais tempo com as filhas.

Ou, então, fizeram uma festa surpresa pra minha filha, eu não estava lá.
Porque a gente fez um almoço pra ela, fizemos o prato que ela gostava em
casa, dei o presente e tal, e falei pra ela "não vai ter festa, não tem bolo, não
tem bexiga, não tem nada". E as tias me chegam lá com balões e bexigas, e
assopro e a bagunça e eu não estava lá.

A responsabilidade sobre as três meninas recai totalmente sobre Elisa e sua mãe.
Mesmo o pai que está mais presente, o da filha mais nova, “ajuda”, “passa em casa”. A
manutenção da casa e praticamente todos os gastos das meninas são bancados por Elisa. O
trabalho doméstico é dividido entre ela e a mãe, mas a mãe é a responsável pela cozinha da
casa.
De vez em nunca eu vou lá e invento alguma coisa, normalmente um lanche
rápido, mas comida mesmo quem faz é ela, ela tem o jeito dela fazer, ela não
gosta que ninguém mexe nas coisas dela.

Rosana172 mora com dois filhos e um neto em uma casa na periferia de São Paulo e é a
única responsável pela cozinha em sua casa. Após terminar seu expediente das 7h às 17h no
bairro da Vila Mariana, em São Paulo, onde ela lava a louça do dia anterior, prepara a comida
dos funcionários, o mise-en-place do serviço noturno da pizzaria e todas as sobremesas, ela
retorna para casa e prepara o jantar do dia e o almoço do dia seguinte para sua família.
Helena173 mora com duas filhas de 22 e 15 anos, e três netos, em uma casa alugada no
bairro do Campo Limpo, na periferia de São Paulo. Assim como Rosana, ao terminar o
expediente no restaurante, ela prepara o jantar e o almoço do dia seguinte para a família. Após
incontáveis experiências profissionais das mais variadas, entre trabalhar como feirante,
vendendo retalhos de tecidos e em vários restaurantes populares, Helena vendia pastel em
rodeios no interior de São Paulo, mas saiu porque a rotina de viagens não permitia que ela
passasse tempo com os netos, e eles lhe cobravam.

Eu saí de rodeio pra vir pra cá. Porque meus netos queriam que eu não
viajasse mais. "Oh vó, não viaja não, fica aqui. Sabe o que você faz? Você
vai pro forró todo sábado... mas você vinha embora todo dia pra casa". Aí eu
falei, ah, então não vou mais não. Eles ficavam me ligando, "que dia que
você vem?", porque não era todo final de semana que eu podia vim.

172
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
173
Helena, 49 anos, cozinheira.
144

Ao menos entre as entrevistadas, a totalidade do trabalho doméstico recai sobre


mulheres: sejam elas mães ou avós. Cabe à mulher que trabalha fora elaborar estratégias,
conciliar jornadas e articular redes para conseguir cuidar dos filhos, dos netos, da alimentação
da família e do trabalho doméstico. E quando essa conciliação não é possível, quando há
muitos elementos que fogem ao seu controle, está colocado socialmente que é o trabalho
profissional que deve mudar, o que acaba levando muitas mulheres à informalidade, aos bicos,
pois estes são mais facilmente associados à jornada do trabalho doméstico e de cuidados.
A responsabilidade afetiva que essas mulheres têm diante de suas famílias aparece
também na forma de cobrança que amigos e familiares tem com relação às datas
comemorativas. Há uma certa pressão para que essas mulheres, que além da cozinha
profissional também assumem a cozinha doméstica, demonstrem seu afeto e carinho através
da comida.
Olha aqui meu jantar de 60 anos que eu fiz, lá na Bela Cintra... dá uma
olhada. (...) Eu quase morri, acho que tinha mais de 300 pessoas. Eu que tive
que fazer o jantar. Depois eles arrumaram uma cama pra mim deitar. (...)
Mas eu não fiz tudo do meu dinheiro não, a Sadia deu, a Salton deu o vinho.
A Sadia deu um monte de coisa174.

A chef Benê Ricardo cozinhou para 300 pessoas na sua própria festa de aniversário.
Mas ela chamou atenção para o fato de, ao menos, não precisado pagar pela festa toda, porque
conseguiu patrocínio de uma empresa. Mas que, no fim da festa, ela estava tão debilitada
fisicamente que foi necessário arrumar uma cama para que ela pudesse descansar. Parece que
ela não desfrutou muito da própria festa.

Agora no batizado dele [neto], a minha filha falou, “mãe pra você não
precisar fazer nada, vamos contratar crepe”. Falei “crepe? Pros meus
convidados?!” Que crepe o quê? (…) No meu aniversário de 50 anos, a irmã
falou 'Samira, você merece, vamos contratar um bufê e faz comida brasileira
e acabou'. Aí comecei a ligar pras pessoas pra convidar. Todos, sem exceção:
“Ah é? Que legal, que que você vai fazer pra gente comer?” Todos. Quando
eles falavam isso, eu falei “eu não posso decepcionar. Não posso”. Aí eu fiz
na minha casa, pra 70 pessoas ... eu fiz em casa pra 70 pessoas, foi uma festa
maravilhosa, todo mundo comia... (…) Eu gosto, eu gosto de fazer. A nossa
Páscoa, ortodoxa, ela geralmente, às vezes junto com a católica, às vezes
depois. Aí outra coisa que eu faço questão, que seja em casa também. De
fazer carneiro, de fazer o arroz175.

Samira faz questão de cozinhar para a família nas ocasiões especiais, como a Páscoa.
Às vezes elas têm convidados especiais, fora da família, que participam da Páscoa em função

174
Benê Ricardo, 73 anos, chef.
175
Samira, 55 anos, cozinheira.
145

da ascendência libanesa, amizade e pelo prazer de desfrutar da comida de Samira (“Inclusive


uma vez o prefeito almoçou com a gente”). Ela sente um tipo de cobrança e o papel afetivo da
sua comida, pois quando ela decide “terceirizar” a comida no seu próprio aniversário, todos os
convidados expressam o desejo de comer a sua comida. Em outra situação, e provavelmente
por isso, ela sente uma espécie de ciúme, como sua indignação diante da possibilidade de
fazer uma festa e contratar um bufê de crepe “para os meus convidados?”.
Nesse tipo de situação em que a cozinha continua sendo doméstica, mas adquire um
caráter mais público, mais abrangente, para a família expandida, para convidados, essas
mulheres expressam como cozinhar também articula uma relação de poder, em que elas são
reconhecidas, elogiadas, prezadas pelo seu trabalho, e como é difícil para elas abrirem mão
disso.
A partir da experiência das cozinheiras que têm família, fica claro como a “dupla
jornada” penaliza as mulheres trabalhadoras, porque elas precisam dedicar seu tempo livre
para o trabalho doméstico de lavar, limpar e arrumar. Cozinhar em casa, que poderia ser um
momento de ressignificar sua atividade profissional, permitir-lhes inventar, criar, refazer
coisas de forma mais tranquila e autônoma, acaba se tornando uma atividade a qual não
podem se dedicar, porque não lhes sobra tempo. A cozinha de casa não tem criatividade ou
caráter de lazer, é mais uma obrigação de todos os dias.
Deborah Harris e Patti Giuffre (2010), na pesquisa qualitativa que realizaram com
mulheres chefs nos Estados Unidos, observaram que dentre as mulheres que abandonaram o
trabalho em cozinhas, a razão principal era um conflito entre trabalho e família,
principalmente para as que tinham filhos. Elas afirmam que as mães sofrem pressões
adicionais – em contraposição aos pais – para cuidar das crianças e outros dependentes, o que
pode ter consequências para sua saúde, como taxas mais altas de depressão e ansiedade, assim
como o sentimento de culpa que frequentemente acomete essas mulheres, decorrente de uma
construção social de “boa mãe”, que as colocaria como prioritariamente cuidadoras (HARRIS
e GIUFFRE, 2010, p.35).
A rotina de trabalho que demanda dedicação de muitas horas, à noite e aos fins de
semana, dificulta muito a vida pessoal e familiar, e há, portanto, poucas alternativas para as
mulheres que desejam avançar na hierarquia da cozinha. Justamente nos restaurantes de mais
prestígio e fama, os serviços do jantar são mais importantes. As autoras identificaram três
estratégias entre as suas entrevistadas, que estão em consonância com o que foi possível
observar nesta pesquisa. 1) Adiar a maternidade e tentar avançar mais na carreira antes de ter
filhos; 2) deixar a cozinha de restaurante e procurar outro trabalho no campo culinário
146

(serviços de alimentação, catering e, principalmente, o trabalho por conta própria) e; 3)


procurar adaptar o trabalho e as relações familiares para tentar torná-los mais compatíveis.
Embora muitas mulheres, na pesquisa das estadounidenses e nesta, enfatizem o caráter
de escolha em suas decisões sobre trabalho e família, as narrativas e experiências parecem
indicar que tais escolhas foram decididas, na verdade, a partir de arranjos pessoais e
profissionais baseados em uma visão social de gênero, em que continua sendo
responsabilidade da mulher cuidar da casa e da família em primeiro lugar.
Independentemente da função que exercem no trabalho, chefs, cozinheiras ou
auxiliares, em função da divisão sexual do trabalho, cabe à mulher que trabalha fora elaborar
estratégias, conciliar jornadas e articular redes para conseguir cuidar dos filhos, dos netos, da
alimentação da família e dos demais afazeres domésticos. Em função disso, muitas delas
partem para a informalidade, freelas, “bicos”, extras e trabalhos temporários, pois estes são
mais facilmente associados à jornada do trabalho doméstico e de cuidados176. Esse assunto
será discutido mais detidamente no capítulo 4.
Há quatro modelos de “conciliação” (HIRATA, 2004), os quais se assentam sobre a
assimetria de poder entre homens e mulheres. O primeiro, o modelo tradicional: o homem é o
provedor e a mulher a responsável pelo cuidado do lar. Trata-se precisamente do modelo em
crise e em declínio. O segundo, o modelo de conciliação, em que a responsabilidade pela casa
é exclusivamente da mulher e cabe a ela conciliar trabalho profissional, doméstico, cuidado
com os filhos e outros eventuais trabalhos ou contratempos. O terceiro é o da “parceria”, que
pressupõe alguma igualdade entre homens e mulheres, já que caberia a ambos dividirem o
trabalho doméstico.
O quarto e último é o modelo de delegação, que geralmente se sobrepõe ao modelo de
conciliação. Trata-se de delegar o trabalho doméstico a outra mulher, uma empregada
doméstica, faxineira ou diarista, que será, então, responsável por todo esse serviço. Tal
modelo emerge justamente em função da bipolarização do emprego feminino (BRUSCHINI e
LOMBARDI, 2000): em um extremo estão as profissionais altamente qualificadas, com
salários relativamente elevados no conjunto da mão de obra feminina e, no outro extremo,
trabalhadoras ditas de “baixa qualificação”, com baixos salários, que desempenham tarefas
sem reconhecimento nem valorização social. Esse quadro também se deve ao aprofundamento

176
Na pesquisa desenvolvida durante o Mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp, com homens e
mulheres que faziam cursos gratuitos de qualificação profissional na área da Confeitaria, já havia ficado claro
que, para as mulheres de baixa renda, o trabalho doméstico e de cuidados com a família impossibilitava que elas
se dedicassem ao trabalho profissional. Era necessário que elas tivessem alguma flexibilidade, e um emprego
“das 9h às 18h”, mesmo que com benefícios, criava tantos problemas em casa que muitas delas preferiam
trabalhar como diaristas, pra poder dedicar alguns dias da semana para casa e família.
147

das desigualdades sociais: nessa relação entre mulheres, uma delas se dedica à carreira,
enquanto a outra faz o trabalho doméstico que seria um empecilho para a primeira.
“Femmes Chefs. 80 restaurants de femmes, 200 recettes, astuces et secrets de cuisine”
(2004, Mulheres Chefs. 80 restaurantes de mulheres, 200 receitas, astúcias e segredos da
cozinha, em tradução literal) traz histórias de vida de 80 chefs mulheres. São muito variadas, e
vão desde as mulheres que fizeram o liceu profissionalizante e compraram um restaurante,
passando por aquelas que, filhas ou netas de grandes chefs, herdaram o negócio da família
(são 20 casos), até as mulheres imigrantes de outros países que foram reconhecidas na França
fazendo gastronomia tailandesa, vietnamita e húngara, entre outras.
A família não está presente em todas as histórias de vida, mas em pelo menos dez
delas adquire um papel central. Em 22 casos, a figura do marido aparece como o apoio
fundamental para que a mulher encontrasse sua verdadeira vocação, sua paixão, o trabalho
que vai defini-la. Nesses casos, os maridos trabalham no salão, ou são sommeliers, ou
colaboram no restaurante/ bistrô/ café/ hotel de alguma maneira.
Manuela, chef confeiteira de 32 anos, que não tem filhos, conta, comovida, sua
experiência de trabalho com outras cozinheiras e como ela observou a dificuldade que elas
tinham nessa “conciliação”.

Elas trabalhavam lá e tudo, e eu lembro que numa das conversas, uma


perdeu o filho por droga e tudo mais, e a outra comentou hoje comigo, hoje
não, mas atualmente assim, que perdeu grande parte, não deu muita
atenção... eu sei que isso acontece na maioria das profissões, mas assim, elas
não conseguiram acompanhar, e pelo que elas me falaram, era como se fosse
ou elas ficavam direto no restaurante pra trabalhar, ou não tinha dinheiro pra
bancar... as duas mães solteiras, uma praticamente bancava a casa sozinha, e
negligenciou a criação dos filhos por conta do trabalho. Isso acontece?
Acontece.

A construção do ethos profissional como um comprometimento total com o


restaurante, que algumas mulheres nomearam “casar com o trabalho”, dificulta e praticamente
impossibilita que elas consigam investir em uma carreira ao mesmo tempo em que tem
família ou filhos pequenos. Por isso, inclusive, o nome do artigo de Deborah Harris e Patti
Giuffre (2010) é “The Price You Pay” (O preço que você paga), justamente por tratar da
impossível “conciliação” entre trabalho e família para as mulheres chefs.

Existe na verdade um discurso no restaurante que sempre me incomodou,


restaurante alheio, acredito eu, que eu ainda quero ter o meu, que é de que
você tem que casar com aquilo. Existe isso. Você tem que entrar lá às 7h da
manhã e sair às 2h da manhã. E eu comecei a fazer isso, quase que
involuntariamente. E aí eu acabei sem vida. Acabei com um casamento,
148

acabei com a minha vida pessoal, eu não fazia mais nada, então eu resolvi
sair. É, não fazia sentido pra mim. Mesmo que eu não estivesse no local de
trabalho, eu tava em casa no celular, com funcionário me ligando, com meu
sous-chef desesperado e a madrugada. Então eu acabava dormindo cinco
horas por noite, quando eu conseguia dormir, e aí no outro dia de manhã eu
tinha que estar lá também, fazendo os dois turnos, então eu resolvi que não é
pra mim177.

Você começa às 8h da manhã e sai 1h da manhã. Você não tem vida. Mas as
pessoas meio que se orgulham disso, "eu não tenho vida, eu trabalho pra
caramba". Eu acho isso besteira. Eu acho isso nada a ver178.

… é o dilema da mulher na cozinha, que é muito difícil. Porque a mulher


gosta de cuidar do seu lar, ela é uma pessoa que resolve as coisas da família,
resolve as coisas, tem as necessidades dela. E numa cozinha, você vive para
o restaurante. Você não tem vida. Todo mundo fala. O que a gente escolheu,
a gente gosta de se maltratar. Como é que a gente... é o senso comum assim.
Por que a gente escolhe esse tipo de profissão? Eu falo assim: cozinheira e
enfermeira tem que ter um lugarzinho no céu. Porque a gente sofre179.

Harris e Giuffre (2018) apontam o sentimento constante de culpa por “abandonar” a


família, por não colocar os filhos como prioridade absoluta da vida – o que justifica que as
mulheres se sintam responsáveis pelos filhos terem tomado decisões que elas consideraram
equivocadas, ou mesmo o sentimento de ter perdido a infância deles, de não ter estado
presente. Elas também observaram sentimentos de depressão e tristeza quando as chefs
falaram sobre isso, e apontaram que essa era a principal causa para que muitas delas abrissem
mão do trabalho em restaurantes e procurassem outras ocupações, como professoras.
Na realidade brasileira, entretanto, a docência não aparece como possibilidade para
mulheres de determinadas classes sociais. Ao longo da pesquisa, conversei com duas
mulheres que estavam cursando pós-graduação180 no Senac, e ambas apontavam o
investimento nesse curso como uma forma de tentar ser professora, uma alternativa para
trilhar outro caminho profissional naquilo que elas realmente “amavam”.
As demais cozinheiras que pretendiam sair do ambiente da cozinha de restaurante, que
afirmavam que era muito cansativo ou que gostariam de ter mais tempo para a família,
planejavam trabalhar por conta própria, prestando serviços de alimentação, como uma
modalidade mais flexível de trabalho, que lhes daria mais liberdade para gerir o próprio
trabalho e o próprio tempo.

177
Lenice, 30 anos, chef
178
Mariana, 31 anos, cozinheira.
179
Manuela, 31 anos, confeiteira.
180
Duas mulheres, amigas pessoais, são cozinheiras e estão envolvidas no curso de pós-graduação “História e
Gastronomia Brasileira”, oferecido pelo Senac Aclimação, em São Paulo. Também foi nessa unidade do Senac
que eu entrevistei o coordenador pedagógico e um docente, e onde participei de uma mesa-redonda sobre
mercado de trabalho com os estudantes.
149

3. Cozinha quente, cozinha fria: trabalho de homem, trabalho de mulher

Nas cozinhas profissionais, a divisão sexual do trabalho se expressa por meio de uma
diferenciação que hierarquiza as atividades. Existem atividades dentro da cozinha que
demandam o uso de muita força física e são, exclusivamente, delegadas aos homens, como o
transporte e manuseio de grandes peças de carne, que podem chegar a 20kg ou 30kg, caixas
de legumes e vegetais, panelas grandes cheias de alimentos. As mulheres que tentam
desempenhar esse trabalho se veem constantemente obrigadas a pedir ajuda.
Entretanto, há uma forte associação de algumas atividades com “trabalhos de
homem”, e não apenas as que demandam força física. Há uma separação das atividades que
não são desempenhadas por mulheres, atividades em que elas não se envolvem (ou não são
envolvidas). Há uma forte associação da grelha, do fogo e da carne com os homens. Também
são essas as posições mais valorizadas nas cozinhas, os trabalhos considerados mais nobres.
Por outro lado, há atividades que são mais associadas às mulheres, como a confeitaria e a
cozinha fria, que demandam um tipo de trabalho associado às características “naturais” das
mulheres, como a delicadeza, a paciência, o cuidado e a atenção aos detalhes.

Se você for numa hamburgueria, dessas hamburguerias que estão hoje todas
aí na moda, são homens que trabalham na chapa. Mulheres lavam. Lavam a
pia, lavam a alface, lavam a louça. Jamais vão ficar ali fritando. Porque é um
trabalho braço, porque é um trabalho muito mais forte, enfim. Várias
discussões, várias contextualizações. Então nesse sentido tem diferença. Não
deveria, não deveria181.

Mas na confeitaria é claro que tem mais mulher. (...) É porque é mais
delicado, né, tem esse negócio de ser mais delicado, tem que ser mulher.
Tem esse negócio na cozinha. Coisa mais bruta tem que ser um homem.
Tem, não adianta. Tem que ser182.

E assim, eu acreditei, depois que eu fiz aquele estágio que cozinha não é pra
mulher... de restaurante. (…) Porque na verdade cozinha de restaurante você
precisa ter força física. (…) Fisicamente, não dá. Não dá. No ___ onde eu
trabalhei, então o restaurante era no térreo e as câmeras eram no subterrâneo,
tudo bem tinha um elevador para você subir a mercadoria, mas eu tinha que
pegar na câmera, porque eu era estagiária, né?183

A cozinha fria, garde manger, entradas, saladas e a confeitaria (que pode ter um/a chef
confeiteiro/a e um/a ou mais assistentes) são muito associadas ao trabalho feminino. Segundo
Harris e Giuffre (2010), conforme a observação delas nos Estados Unidos, a cozinha quente é

181
Lenice, 30 anos, chef.
182
Carina, 18 anos, estagiária.
183
Rita, 60 anos, cozinheira autônoma.
150

mais dominada pelos homens, enquanto a cozinha fria tende a ter um número mais
equilibrado de homens e mulheres (p.30).

E é um mercado muito masculino. Muito. E machista, pra caralho. Porque


você vai trabalhar nos grandes restaurantes, neguinho só te coloca na
confeitaria. Aí eu falei... quando eu peguei mais intimidade, poxa, nem de
doce eu gosto. Tudo bem, eu sou uma ótima confeiteira, todo mundo ficou
falando pra mim, você é impecável confeiteira, mas nem de doce eu gosto,
sério184.

Rosana: Aqui eu faço a comida dos funcionários, faço a preparação das


coisa pra pizza e as sobremesa. Aqui tem churros, minichurros, né, tem
pudim de leite, musse de chocolate, tiramissú e creme brulée.
Entrevistadora: Você já sabia fazer essas coisas antes de vir pra cá?
Rosana: Não, era dessa casa.
Entrevistadora: Aí você aprendeu aqui?
Rosana: Aqui. Tava ali na receita, só peguei e comecei a fazer. Entendeu? É
só olhar ali, ver o modelo que tava lá185.

A cozinha fria, e principalmente a confeitaria, estão associadas ao trabalho feminino


por ser considerada uma parte do trabalho que demanda mais atenção aos detalhes, mais
rigidez ao seguir instruções e receitas, mais repetição e menos criatividade. Também é a parte
do trabalho que tem menos prestígio. Essa categorização de “feminilidade” associada ao
trabalho delicado e monótono está associada às necessidades produtivas, já que toda esta
delicadeza atribuída às mulheres que as tornaria incapazes de trabalhos pesados e insalubres
desaparece e elas passam a ser consideradas aptas para os mesmos nos momentos em que os
setores produtivos o demandam, como aponta Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011).
Este argumento também foi apresentado por Hirata e Kergoat (1987, p. 10), que
sustentam que “as fronteiras da masculinidade e feminilidade sociais são relativamente
móveis e parecem, até certo ponto, depender do sistema produtivo a cada etapa histórica”.
Souza-Lobo ([1991] 2011) também questiona os critérios de presença/ausência de força na
organização da divisão sexual do trabalho ao reivindicar as comparações intersetoriais,
mostrando que, no Brasil, quando se necessita das mulheres como cortadoras de cana, por
exemplo, os critérios de delicadeza e trabalho leve somem.
Harris e Giuffre (2015: 3), apoiando-se em dados do U.S. Bureau of Labor Statistics
de 2013, afirmam que nos Estados Unidos, embora haja maioria de homens nos cargos de chef
executivo e sous-chef, as mulheres são maioria apenas na área da confeitaria. As autoras
retomam uma de suas entrevistas com uma mulher que foi contratada para ser chef do garde

184
Lídia, 37 anos, chef.
185
Rosana, 41 anos, auxiliar de cozinha.
151

manger em um subtítulo “Adivinha quem vai fazer as saladas?”. As ocupações da cozinha fria
tendem a pagar menos e a dar menos espaço para o trabalho criativo, o que reforça o
argumento de que as mulheres têm menos acesso à mobilidade dentro das ocupações porque
não conseguem ou não têm oportunidades de demonstrar suas habilidades na cozinha quente.
Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç (2018) realizaram uma pesquisa amostral com
homens e mulheres chefs em Istanbul, na Turquia, para verificar a percepção deles/as sobre
mulheres nas cozinhas de restaurantes. A maioria dos entrevistados afirmou que a maior
“vantagem” das mulheres é sua paciência, enquanto a maior “desvantagem” é que elas têm
pouca força física, fraqueza.
Marie (2018: 34), discutindo a presença feminina nas cozinhas profissionais da
França, afirma que, para que as mulheres sejam integradas em uma brigada, elas precisaram
“camuflar”, tanto quanto possível, sua feminilidade, controlando seus comportamentos e
procurando mimetizar os homens. Por outro lado, os chefs e cozinheiros reconhecem que as
aprendizes mulheres eram mais “cuidadosas” e mais “meticulosas”, associando essas
características à sua feminilidade.
Harris e Giuffre (2018: 104) observaram o mesmo nos Estados Unidos, afirmando que
as mulheres chefs precisavam cuidar da sua aparência para não parecerem muito femininas.
Elas precisam se vestir de forma mais andrógina, disfarçando seu corpo (como seios e
cintura), para que pudessem se misturar melhor com os colegas, ou seja, para que elas não se
diferenciassem. Tal esforço se justifica, segundo os depoimentos colhidos pelas
pesquisadoras, porque uma mulher que não esconde seu corpo pode perturbar a atmosfera de
trabalho ou o sentimento de camaradagem entre os homens (FINE, 1987 apud HARRIS e
GIUFFRE, 2018, p.104). A ideia de que as mulheres poderiam distrair os homens e prejudicar
o trabalho coletivo explica porque algumas mulheres eram criticadas por serem atraentes
demais186.
Nesse sentido, para obterem o respeito dos colegas e serem tratadas com alguma
igualdade, as mulheres falavam sobre se “desfeminilizar” (de-feminizing) para evitar críticas
ou comentários sobre seus corpos. É comum que, para entrar na cozinha, além de usar touca, é
solicitado às mulheres não usarem brincos, nem maquiagem, nem esmalte de unha.

186
Em um episódio lamentável da televisão brasileira, no final de um dos programas Masterchef Brasil, exibido
pela Rede Bandeirantes, um dos jurados “entrevista” a única mulher jurada e filma no celular, para publicar nas
redes sociais e, sem o menor constrangimento, afirma: “Muita gente não considera mais você como chef de
cozinha, cozinheira, considera você como uma puta gostosa, maravilhosa, linda, e eu tô louco pra lhe beijar. O
que você tem pra responder disso?”. Sem graça, ela responde “Que eu sou as duas coisas”. O vídeo foi publicado
em 16 de agosto de 2017 e está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8Bebmi17fUs (acesso em
10/12/2019).
152

Harris e Giuffre (2018: 102) apontam um problema que também encontrei: o fato de
que o comportamento de uma mulher ser frequentemente entendido como demonstrativo do
que seria o comportamento de todas as mulheres. “Às mulheres, individualmente, eram
frequentemente atribuídas tarefas de representar todas as mulheres trabalhando em cozinhas
profissionais”187. Isso coloca um peso extra sobre a atuação dessas mulheres no ambiente das
cozinhas, porque qualquer erro ou atitude reprovável que elas possam vir a tomar, refletiria
sobre todas as mulheres. Isso é verdade para a questão de ser “muito atraente” e como isso
pode atrapalhar o trabalho, mas também para a demonstração de emoções e/ ou fraqueza. As
pesquisadoras entrevistaram mulheres chefs que se esconderam no banheiro para ir chorar,
longe dos olhos dos colegas.
Nesse sentido, muitas mulheres evitam pedir ajuda aos colegas homens para não
“comprovarem” que não conseguem fazer determinadas coisas.

Carregar coisas que são muito mais pesadas do que... não há necessidade.
Hoje em dia nós somos duas mulheres na cozinha aqui, a gente tem coisa
pesada pra carregar, e a gente não tá morrendo. Mas é porque te pedem pra
fazer numa rapidez que... como é que você carrega uma coisa mais pesada
que você? Com rodas, com rodinha da lixeira. Mas ninguém tem paciência
pra isso, então você acaba tentando fazer um esforço que você não consegue,
e dá nisso188.

A panela, só a panela pesa 50kg. Uma caixa de tomate, você vai pegar lá,
30kg. Já começa o desafio por aí. Se você começa a arregar pra eles e pedir
ajuda pra eles o tempo todo, você tá na mão deles, entendeu? Você tá na mão
deles. A minha sorte é que eu consegui ficar lá porque eu não pedi ajuda pra
ninguém. Muito pelo contrário, eu me botava disponível e assistente de
todos. É pra limpar lula e limpar uma caixa de lula? Vambora marchar uma
caixa de lula, entendeu?189

Na cozinha, não sei se é proteção da mulher, mas a mulherada não gosta de


que os homens venham ajudar. Porque a maioria que eu percebi gosta até de
ajudar. Falar "não, eu pego esse peso pra você", ou "eu levo ali" e tal, mas a
mulherada... não sei se é pra se manter no trabalho, pra manter aquela força
do Darwin ali, de dizer assim, eu consigo, ou então eu não sei se é a força
feminista dizendo "deixa que eu consigo"190.

Sobre a alocação diferenciada de homens e mulheres segundo critérios de força física,


Lapa (2019) investigou essa separação e as representações de operários e operárias na
indústria automotiva e eletroeletrônica no interior de São Paulo. Ela observou como, na fala

187
Tradução livre do original “(…) individual women were often tasked with representing all women working in
professional kitchens”.
188
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
189
Lídia, 37 anos, chef.
190
Manuela, 32 anos, confeiteira.
153

de ambos, os trabalhos “pesados” tinham que ser realizados por homens, enquanto os
trabalhos que demandam minúcia e atenção aos detalhes tinham que ser feitos por mulheres,
embora, na prática, as mulheres realizavam trabalhos tão “pesados” quanto os homens.
“Mais caprichosas, mais atenciosas e menos estabanadas” (LAPA, 2019, p.151) é a
descrição que uma de suas entrevistadas usa para justificar a alocação de mulheres em
determinadas funções nas fábricas, aquelas associadas a um trabalho “mais feminino”, que
também têm menor remuneração. Essa é uma questão central de sua análise, principalmente
quando observa que esse argumento das características inatas femininas não são valorizadas
para realizar os trabalhos “pesados” ou penosos, e “a força física é remunerada, mas não a
destreza manual, a minúcia ou a resistência nervosa”, já que “tais qualidades não seriam
adquiridas através de uma formação, mas inerentes ao sexo feminino” (KERGOAT,
2018[1978], p. 33 apud LAPA, 2019, p.150).
Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011, p.63), em sua pesquisa sobre as mulheres na
indústria, observa que há uma relação entre a tarefa e quem realiza a tarefa, “a lógica da
divisão sexual do trabalho e de suas implicações não reside exclusivamente no que se faz, mas
em quem faz”, o que revela que, para além dos critérios considerados naturais que definem
“masculino” e “feminino”, “as implicações remetem a uma hierarquia que não está contida na
diferença dos dois conceitos, mas na relação social neles embutida” (idem, p.64). Ainda de
acordo com a autora, essas representações “obedecem a tradições, a hierarquias que fazem
parte da cultura de trabalho” (idem, p.65), o que parece muito próximo do que foi observado
nos relatos sobre o trabalho nas cozinhas profissionais.
A autora conclui que a divisão sexual do trabalho está inserida em uma divisão mais
ampla, a divisão sexual da sociedade, que cria as convenções em torno do que é considerado
masculino e feminino, e chama atenção para o fato de que “A divisão sexual do trabalho
mostra que a relação do trabalho é uma relação sexuada porque é uma relação social” (p.67).
Nesse sentido, “as imagens do masculino e do feminino não só consolidam diferenças, mas
contêm hierarquias: são imagens de poder” (SOUZA-LOBO, 2011 [1991], p.81-82).
Bouazzoni (2019: 51) também questiona os estereótipos femininos de pouca força
física e fragilidade corporal quando fala sobre as mulheres na agricultura, as camponesas, por
exemplo na África Subsaariana, onde, de acordo com um relatório da ONU Mulheres, as
mulheres carregam algo em torno de 80 toneladas de água, madeira e produções agrícolas por
quilômetro – oito vezes mais do que os homens na mesma região.
Há uma trama de poder por trás da naturalização das atividades femininas e
masculinas, sendo as masculinas mais valorizadas e, portanto, dotadas de mais poder. Em um
154

ambiente como as cozinhas profissionais, onde há muita pressão, onde o poder se exerce
sobre os subalternos na forma de gritos, de ameaças e de outras agressividades, onde as
jornadas e o cotidiano do trabalho são extenuantes e muito exigentes, constrói-se a ideia de
que apenas resistem a esse trabalho os que são mais fortes. Segundo Roscoe (2012: 2), as
habilidades mais respeitadas na cozinha são a capacidade de trabalhar por longas horas,
sacrificar o tempo pessoal, suportar dor física e competir “com os outros meninos”191,
características muito associadas à masculinidade. Às mulheres que pretendem sobreviver
nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes, em alguma medida, se masculinizarem, sob
pena de sofrerem assédio, pois o assédio assume diversas formas e é naturalizado de distintas
maneiras dentro da cozinha.
As mulheres precisam abrir mão do que as diferencia como mulheres para poderem
ocupar o lugar do “universal neutro” inexistente, ou seja, se aproximarem dos
comportamentos masculinos. Por outro lado, as mulheres precisam suportar condições mais
duras, além das brincadeiras e assédio, como se tivessem que provar, constantemente, que são
tão boas quanto os homens, tão merecedoras quanto eles de estar ali.

Se as mulheres querem trabalhar nas cozinhas profissionais, elas têm que


suportar não apenas todas as dificuldades do lugar, mas elas também tem que
aguentar as piadas, humilhação e assédio sexual. Elas enfrentam uma grande
quantidade de pressão que pavimenta o caminho para o assédio moral (LA
PONTIE, 1992, p.379 apud KURNAZ et al, 2018, p.121)192.

Em uma conversa informal, uma informante comentou sobre o “teste” ao qual foi
submetida, sem saber, quando começou a trabalhar em um restaurante. Ela passou os
primeiros 21 dias sem nenhuma folga. No vigésimo dia, véspera de ter seu primeiro dia de
descanso, um dos colegas comentou “você passou no teste, agora você pode voltar”,
sinalizando que a maratona ilegal de três semanas de trabalho direto era uma forma que o chef
e a equipe tinham de saber se ela “ia aguentar”, se ela “dava conta”.
Outra entrevistada era a única mulher trabalhando na cozinha do restaurante no
momento da entrevista, como chef confeiteira.
A maioria das pessoas trabalha lá há 20 anos, é uma cozinha muito antiga,
bem tradicional. Eu fui por indicação, mas assim, cheguei lá e já me deparei
com um preconceito. "Você não vai aguentar ficar aqui nem três meses". De
fato, realmente, eu não tô conseguindo ficar lá, mas não por isso, não por

191
Tradução livre do original: “The abilities to work grueling hours, sacrifice personal time, endure physical
pain sustained in the kitchen, and compete with the “rest of the boys” are often the qualities most respected in
the kitchen”.
192
Tradução livre do original: “If women want to work in professional kitchens, they have to endure not only all
difficulties of place but also they have to put up with jokes, abasement, and sexual harassment. They face a great
amount of pressure that paves the way for mobbing”.
155

trabalho. Mas pelo fato de não me agregar nada em conhecimento,


experiência, é uma cozinha que parou no tempo.193.

Harris e Giuffre (2018) também coletaram depoimentos em que as mulheres eram


submetidas a rotinas mais pesadas de trabalho, insultos e cobrança desmedida como uma
forma de teste, para saber se elas aguentariam e fariam o trabalho ou se elas iam desmoronar
(break down), o que seria um sinal claro que elas não eram boas o suficiente para estarem lá
(“você nem deveria estar aqui pra começar”194).
Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç (2018: 121) também observaram que a cozinha
profissional é um ambiente masculino e que valoriza características tradicionalmente
associadas ao gênero masculino, o que torna esse ambiente hostil para as mulheres. Cabe a
elas se adaptarem ao ambiente de trabalho, e caso não consigam, elas são consideradas como
o problema. “O pior lado dessa situação é que as mulheres se sentem obrigadas a se
adaptarem à atmosfera de macho para existirem porque, em larga escala, elas estão cientes do
fato que erradicar esse preconceito amplo em relação às mulheres sobre suas habilidades de
cumprirem tarefas é muito difícil”195.
Com relação ao preconceito e discriminação, os pesquisadores também apontam que
as mulheres precisam suportar piadas, rebaixamento e assédio, muito mais que os homens. A
conclusão dos pesquisadores é que é necessário que as mulheres chefs trabalhem mais e mais
duro que os homens, assim como é importante que elas “amem” o trabalho para criarem mais
espaço pra elas mesmas nesse setor dominado por homens. Mesmo que elas consigam obter
sucesso em um campo dominado pelos homens, elas ainda sentem a obrigação de serem
aceitas pelos homens”196 (KURNAZ et al., 2018, p.128).

Na verdade os homens quando olha pra uma mulher que tem um cargo
assim, eles querem um pouco, se você deixar, eles tentam... não sei como
usar a palavra... eles são danado. Mas a gente tem que ter cuidado. Tem que
dizer "eu vim aqui pra isso e acabou", entendeu? Tem, mas não muita. (...)
Às vezes eles só te olham estranho pelo fato de você ser uma mulher. Mas
acho que todo lugar é assim, principalmente na cozinha, porque 80% das
cozinhas hoje, o chef é homem. As mulheres que estão invadindo agora. Eles
ficam meio estranho, mas eles aceitam depois197.

193
Manuela, 32 anos, confeiteira.
194
Harris e Giuffre, 2018, citando a entrevistada Karen: “you’re really not supposed to be here in the first place”
(p.101).
195
Em tradução livre do original: “The worst side of that situation is women feel obligated to adapt themselves
to macho atmosphere to exist because to a large extend, they are aware of the fact that eradicating widespread
prejudice towards women about their ability to perform tasks is really hard”.
196
No original: “Even though they succeed in existing in male dominant field, they feel the obligation of being
accepted by men” (Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç, 2018).
197
Joana, 38 anos, chef.
156

A associação do trabalho culinário com uma hierarquia militar também está associada
à natureza feminina do trabalho e às formas recorrentes de reafirmar masculinidade por parte
dos homens. Se cozinhar é uma atividade feminina, os homens que realizam esse trabalho
precisam reiterar sua masculinidade constantemente. Scavone (2007) afirma que, embora no
contexto da alta gastronomia a figura do chef seja masculina e imbuída de poder, existiram
contextos em que os homens cozinheiros eram vistos como inferiores, geralmente em grupos
totalmente masculinos, como os tropeiros ou em acampamentos de guerra. “Entre os
cangaceiros, por exemplo, o cozinheiro era a pessoa mais medrosa do grupo” (SCAVONE,
2007. p.39). A autora afirma que são comuns as brincadeiras acerca da sexualidade dos
cozinheiros, com uma desvalorização ou inferiorização de quem executa essa função.
Bourelly (2010) retoma a origem da cozinha profissional nas fileiras dos batalhões do
exército, o que está em consonância com a necessidade que esse militar, que não vai para a
linha de frente, que não pega em armas, que não enfrenta o inimigo, se equipare aos outros
homens, evite ser visto em uma posição inferior ou menos masculina. Isso pode explicar a
associação da cozinha a um passado cavernícola de caça e manipulação de grandes pedaços
de animais.

4. Mixidade no trabalho

Essa concepção de masculinidade e a forma como ela é vivenciada nas cozinhas pode
ser analisada a partir do conceito de mixté au travail (traduzido aqui por mixidade198), levando
em consideração que a cozinha é um espaço de trabalho misto – pelo menos a princípio.
Sabine Fortino (2009a: 28) afirma que o avanço em termos de mixidade, quando se traduz por
uma progressiva entrada de mulheres em setores ou atividades onde elas estavam ausentes ou
em número muito reduzido, se constrói sobre um fundo de desigualdades sexuais recorrentes
em matéria de contratação e de promoção. Ela reconhece, portanto, que as mulheres “pagam
um preço alto” por entrarem nos trabalhos dos homens.
No caso da cozinha, a mixidade precisa ser considerada enquanto elemento
constitutivo do espaço de trabalho, onde ela existe e onde não existe. Por um lado, o discurso
de que as ruas são perigosas e que a noite apresenta mais risco para as mulheres
frequentemente justifica a não contratação de mulheres para o período noturno ou
198
Lapa (2019) faz uma consideração sobre a tradução de mixté au travail e coexistência entre os sexos, optando
por utilizar a palavra “mixidade” (p.170), com a qual concordo e aqui incorporo.
157

impossibilita que elas aceitem o serviço de jantar (como foi apontado pela chef Lenice em
entrevista). É preferível contratar homens, que correm menos risco ao trabalhar até mais tarde,
de permanecer no restaurante noite adentro. Por outro lado, tal discurso possibilita a criação
de um período em que não há mulheres na cozinha, em que os homens ficam “à vontade” pra
falar e brincar como quiserem.
Nos períodos em que há homens e mulheres, a diferenciação se dá por outras
intermediações. Frequentemente, as mulheres se veem diante de tarefas que exigem força
física e pedem ajuda aos homens para carregar caixas ou panelas. Isso reforça a ideia de que
existem trabalhos na cozinha que não podem ser desempenhados por mulheres, trabalhos que
precisam ser feito por pessoas muito fortes, e que essas pessoas obrigatoriamente são homens.
Nesse sentido, muitas vezes os homens arriscam a própria saúde carregando peso,
demonstrando sua força física ou aptidão para tal trabalho, sob pena de ter sua masculinidade
questionada.
As panelas são pesadas. Depende, entendeu, porque tem panela que eu nem
tiro do fogão, e às vezes eu chamo os meninos. Porque esse braço meu aqui
já foi quebrado. Eu não tenho muita força nele. Aí eu falo pros meninos me
ajudarem199.

Eles fazem serviço de... eu acho que poderia até falar de homens também,
sabe, porque são vítimas também. Tem um lá na cozinha do ___ que está se
arrastando, com a perna, ele não tá aguentando andar e não tem ninguém que
olhe pra ele dentro da empresa e fale "bicho, você precisa se afastar, você
precisa se cuidar". Ele não tá se aguentando, ele fica assim, se arrastando,
trabalha lá há anos200.

Segundo a concepção expressa por Pascale Molinier e Daniel Welzer-Lang no


“Dicionário Crítico do Feminismo” (2009: 101-102), um dos sentidos da virilidade se refere
aos atributos sociais associados aos homens e ao masculino: “a força, a coragem, a capacidade
de combater, o ‘direito’ à violência e aos privilégios associados à dominação daquelas e
daqueles que não são – e não podem ser – viris: mulheres, crianças”. A virilidade é a
expressão coletiva e individualizada da dominação masculina.
Mas essa virilidade também tem potencial de ser violenta contra os próprios homens,
posto que prescreve comportamentos e atitudes “aceitáveis” e “desejáveis”, e pune aqueles
que escapam à norma. Os homens considerados fracos, embora permaneçam dominantes
diante das mulheres, sofrem agressões e interdições dos outros homens. No ambiente de
trabalho nas cozinhas, os comportamentos associados à masculinidade (falar alto,

199
Helena, 49 anos, cozinheira.
200
Manuela, 32 anos, confeiteira.
158

agressivamente, carregar peso, suportar as condições difíceis) também se impõem aos


homens, e eles também devem reproduzi-los. “Nas profissões masculinas, os homens ocultam
o sofrimento gerado pelas imposições da organização do trabalho graças à eficácia simbólica
de um sistema de condutas e representações centradas na virilidade, que associam o
pertencimento ao grupo dos homens ao domínio infalível do real” (MOLINIER e WELZER-
LANG, 2009, p.103).
Lembremos do professor Décio, que ao se tornar chef em um restaurante, foi
questionado pelo maître se era homossexual, porque não gritava com os/ cozinheiros. Nesse
sentido, a constituição da cozinha como ambiente masculino e masculinizante também opera
uma pressão sobre os homens, obrigando-os a estarem constantemente engajados na
performance da masculinidade como é esperada pelos seus pares: carregar peso sem reclamar,
negar qualquer tipo de lesão ou dor, suportar o insuportável, reproduzir os comportamentos de
discriminação contra as mulheres e de homofobia, entre outros. Isso não se dá sem prejuízo
também para os homens. Os meninos são socializados desde muito pequenos a reproduzirem
determinados comportamentos e atitudes “de homem”, que os colocam em risco.
Pascale Molinier (2008: 206) afirma que a virilidade está associada a um domínio da
realidade, e que de um homem “de verdade” é esperado não sentir medo, não conhecer a
dúvida ou falhar, não errar e ser sempre “mestre” da situação. “A virilidade designa a crença
na invulnerabilidade masculina”201. Tal crença se expressa tanto física quanto
psicologicamente. Apenas às mulheres e aos “fracos” é permitido sofrer, o que está em
consonância com o ethos da profissão e a própria constituição do valor que os/as
cozinheiros/as atribuem ao seu trabalho.
Nas palavras de Nora Bouazzuoni (2019: 8):

Um chefe, na cozinha ou na empresa, deve ter qualidades como autoridade,


disciplina ou força, qualidades que são, infelizmente, percebidas como
masculinas e subtraídas sistematicamente das mulheres. A elas faltaria
ambição, elas seriam desencorajadas pelas duras condições do trabalho
exigido (ficar em pé durante muito tempo, horários insanos), muito suaves,
muito sensíveis, incapazes de dar ordens ou muito prejudicadas pelo seu
frágil metabolismo.

201
Tradução livre do original “La virilité désigne la croyance em l’invulnérabilité massculine”, grifo da autora.
159

5. E para trabalhar à noite em São Paulo?

Elisa, cozinheira na Vila Mariana e que mora no Capão Redondo, no extremo da zona
sul de São Paulo, utiliza várias estratégias para chegar em casa de madrugada.

Elisa: Durante a semana, às 11h; sexta e sábado, meia-noite. Então, no


máximo meia-noite e meia a gente já tá saindo daqui.
Entrevistadora: E como você vai embora?
Elisa De ônibus. Às vezes de carona. Às vezes o namorado vem buscar.
Entrevistadora: Porque meia-noite e meia é tenso pra pegar ônibus, não é?
Elisa: Até que não, eu tô acostumada. São dez anos já na madrugada. Você
acaba acostumando, conhecer os caminhos que eu posso andar, até onde, o
dia que tá mais complicado assim, talvez se aconteceu alguma coisa no
bairro, alguém já me liga e me avisa, já ligo pro meu namorado e peço pra
ele vir me pegar.

A fala de Elisa revela um certo conhecimento desenvolvido ao longo de “dez anos já


na madrugada”, em que ela conhece “os caminhos que eu posso andar, até onde”, ou seja, ela
tem consciência que existem caminhos que ela não pode percorrer, que existe um risco em ser
mulher e estar andando pelo bairro na madrugada. O Capão Redondo, um bairro de extrema
vulnerabilidade e que sobrevive a um alto grau de violência, inclusive policial, impõe aos
moradores a necessidade de mobilizar redes de apoio e assistência, de maneira que “se
aconteceu alguma coisa no bairro, alguém já me liga e me avisa”, para que ela possa pedir que
o namorado, que tem moto, vá buscá-la.
Para além dos problemas de viver em uma cidade com as dimensões de São Paulo, que
além das distâncias ainda tem elevados índices de trânsito e congestionamento, somado aos
riscos da violência urbana e aqueles do próprio estado, mulheres como Elisa precisam
mobilizar redes e desenvolver estratégias para sua própria segurança. Ainda que ela afirme “tô
acostumada”, ela reconhece que foram necessários dez anos para aprimorar estratégias, para
adquirir um conhecimento sobre como e onde circular, e que ela precisa se apoiar na ajuda de
outras pessoas para realizar seu deslocamento do trabalho para casa de madrugada.
Manuela era publicitária em Recife quando decidiu mudar de carreira e se dedicar à
sua paixão, a gastronomia. Em vez de investir em um curso, ela destinou suas economias para
se mudar para São Paulo e procurar estágios não remunerados em bons restaurantes, para
montar um currículo. Para além dos muitos problemas que ela encontrou nas cozinhas,
inclusive sendo a única mulher, ela era confeiteira e a sobremesa é a última parte da refeição,
geralmente os profissionais que ficam praticamente até o restaurante fechar.
160

Então você sai, em média, até 1h da manhã. Imagina, uma mulher saindo 1h
da manhã, como fazer pra pegar transporte? Não tinha transporte na época,
assim, ônibus 24 horas. Não tem até hoje. Não tinha como aceitar202.

A questão do transporte público que não funciona 24 horas é muito complicada para
quem precisa trabalhar depois da meia-noite. Enquanto Elisa tinha “dez anos trabalhando na
madrugada” e já conhecia os caminhos em seu bairro, Manuela era recém-chegada e não tinha
essa malícia, que só se adquire com o tempo. Ela abriu mão de algumas oportunidades
profissionais por conta do trabalho noturno e da distância da sua casa.

No ___ eles queriam me contratar porque eu trabalhei bem, então tinha


aquela coisa toda, eu também queria ficar muito lá, mas eu morava longe e a
vaga que tinha era pra noite. Aí não tinha transporte pra voltar. Então eu
acabei nem aceitando, mas eu queria muito ter ficado lá. Foi a única cozinha
que eu achei que chegava mais a ser profissional, mais correta.

As mulheres entendem que correm riscos dependendo do transporte público à noite em


São Paulo. E mesmo quando criam estratégias individuais, mobilizando suas redes pessoais
para conseguir se locomover – como no caso de Elisa –, não raro elas têm o sentimento de
solidariedade umas com as outras e conseguem se ajudar. A própria Manuela relata:

Aí tinha uma menina que ficava comigo, eu era chefe dela, ela era do Sul. E
ela disse "eu nem sei, eu preciso muito do meu trabalho, mas eu moro em
Paraisópolis, e transporte em Paraisópolis é até meia-noite, se eu perder, eu
não consigo voltar", e eu disse "Meu Deus, como é que eu vou fazer se o
restaurante fica aberto até às 3h da manhã limpando coisa?". Aí eu falei "faz
o seguinte, fala com as meninas, mas por mim, eu seguro a barra pra você,
deu seu horário, você pode ir embora. Eu moro mais perto, eu fico". Aí ela
conseguiu esse feito de sair no horário dela. Porque eu me comprometi a
fazer o serviço dela.

Paraisópolis é uma comunidade que se localiza encravada em um bairro nobre, o


Morumbi. Considerada uma das maiores favelas de São Paulo, é um dos retratos mais
flagrantes da desigualdade na Capital, onde as casas sem reboco estão a um muro de distância
de condomínios hiperluxuosos com piscinas e churrasqueiras nas varandas. É uma
comunidade de difícil acesso, com poucas opções de transporte público, além de ficar
relativamente longe do centro da cidade (hoje em dia há uma nova linha de metrô próxima,
mas ainda assim não é possível ir a pé e as opções de ônibus e vans são muito limitadas).
Manuela precisou assumir o serviço que a colega não poderia fazer, mesmo sem
consultar a sua própria chefia. Mais tarde, ela foi demitida, porque era a única pessoa que

202
Manuela, 32 anos, confeiteira.
161

reclamava, que tentava dialogar com os donos sobre as dificuldades do trabalho. Entretanto,
ela não enxerga que esse problema possa estar relacionado com papéis de gênero.

Que é trabalho de escravo que eles fazem. Eles querem abrir um restaurante,
ou então algum sócio que tem dinheiro chama um ex-cozinheiro do ____,
bota como chef, faz aquela publicidade, não sei que, mas os cozinheiro é
tudo maltratado. Tudo maltratado. Eu não vi, eu não tive essa experiência,
mas eu conheço gente, fornecedor, que foi fazer entrega de mercadoria em
um desses restaurantes famosinhos, que era liderança uma ex-chef mulher,
do ___. E ela maltratava todo mundo, a arrogância lá em cima. E era mulher.

Infelizmente, as mulheres que “sobrevivem” nesse ambiente e alcançam os cargos


visíveis, de mando e de chefia, tendem a reproduzir os comportamentos “viris”. Uma vez que,
dentro do parâmetros em que elas trabalharam e, de certa maneira, triunfaram, elas mesmas se
entendem como “sobreviventes”, inclusive por terem demonstrado essa habilidade de
equilibrar vida pessoal e profissional, elas se consideram individualmente competentes. O
foco aqui é na palavra individualmente, pois não há uma compreensão de que as trajetórias
femininas poderiam ser diferentes dentro de organizações mais horizontais ou que contassem
com mais apoio das e dos colegas. A trajetória ascendente, o sucesso, é um mérito pessoal, a
despeito de tudo e de todos. E, assim, as próprias mulheres reproduzem as estruturas de
dominação e opressão, mediante o argumento “se eu consegui, qualquer uma consegue”.

6. “Além de ser mulher, negra”

Um dos desafios metodológicos que esta pesquisa me apresentou foi o contato com
mulheres negras cozinheiras. Conversei com oito mulheres que se identificavam como negras,
mas tratar tal questão ao longo da entrevista se mostrava muito delicado. Em quase todos os
casos, as mulheres recusavam a identificação de “mulher negra” e rapidamente mudavam de
assunto, ou silenciavam, esperando a próxima pergunta – depois de “qual você considera que
é sua cor ou raça?”.
Considero, entretanto, que é fundamental tratar a questão das mulheres negras com
olhar mais atento e cuidadoso. Sueli Carneiro (2011: 121) faz uma crítica ao tratamento da
“temática específica da mulher negra”, geralmente secundarizada dentro da universalidade de
gênero, o que mais uma vez invisibiliza essas mulheres. É fundamental considerar a dimensão
racial “na temática de gênero que estabelece privilégios e desvantagens entre as mulheres”,
ela insiste, e é o que pretendo reconhecer aqui. Mas não do ponto de vista quantitativo.
162

Convém ressaltar que, das 32 pessoas entrevistadas nesta pesquisa, apenas duas
mulheres não são tratadas por pseudônimos: Cidinha Santiago e Benedita Ricardo. Cidinha
Santiago é uma figura pública, culinarista de televisão, e sua trajetória não permite que ela
seja chamada por outro nome. Benedita Ricardo, que eu conheci por intermédio de Cidinha,
infelizmente faleceu durante este trabalho. Como eu tive a oportunidade de falar sobre sua
vida e carreira publicamente, não faria sentido trocar seu nome203.
Considero tanto Cidinha Santiago quanto Benedita Ricardo mulheres negras pioneiras
na cozinha, cuja contribuição para o que hoje se chama gastronomia brasileira é
incomensurável, mas que tiveram e têm (até hoje, continuamente) suas trajetórias
invisibilizadas, mesmo num momento em que a gastronomia e a cozinha estão hiperexpostas
nas mídias.
Dessa forma, pretendo discutir a articulação das relações de gênero, classe e raça a
partir das trajetórias de vida dessas duas mulheres que foram gentis o suficiente para me
doarem seu tempo e suas histórias, do ponto de vista qualitativo, para embasar minha
afirmação de que elas são pioneiras.

6.1. Cidinha Santiago

Fiz parte da equipe de assessoria de imprensa do Encontro Mundial de Chefs,


realizado na cidade de Guararema (SP) e, assim, consegui participar de todas as oficinas,
palestras e seminários, lidando no dia a dia com todos os chefs e cozinheiros presentes.
No segundo dia, a líder da equipe me pediu para encontrar e orientar sua amiga
pessoal, a chef Cidinha Santiago. Eu a encontrei, ajudei-a com o check-in e levei-a para
conhecer os diferentes estandes e espaços do hotel, antes de levá-la até seu quarto. Em
seguida, assistimos juntas a uma palestra. Depois, Cidinha me pediu para tirar uma foto dela,
com dólmã de chef, diante da sua foto no cartaz do evento. "Você reparou que eu sou a única
mulher negra neste cartaz?"

203
Quando da morte da chef Benê Ricardo, publiquei um artigo no jornal Brasil de Fato em 23 de abril de 2017,
intitulado “Mulher negra e chef de cozinha: Benê Ricardo, presente!”. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2018/04/23/mulher-negra-e-chef-de-cozinha-bene-ricardo-presente/ (acesso em
11/12/2019).
Em função deste artigo, fui contatada pelo jornalista Tiago Rogero, do jornal O Globo, para falar sobre a chef
Benê no podcast Negras Vozes, produzido por ele. O podcast está disponível em
https://oglobo.globo.com/podcast/negra-voz-historia-da-1-chef-de-cozinha-do-brasil-bene-ricardo-uma-
entrevista-com-chef-dandara-batista-03-23954446 (acesso em 11/12/2019).
163

Figura 6 – A culinarista Cidinha Santiago diante do cartaz do Encontro Mundial de Chefs.


(Foto: Acervo pessoal).

Sim, eu reparei. Ela também era a única mulher negra no evento. Aliás, poucos eram
os homens negros, menos ainda com o título de chef. No cartaz, apenas mais uma pessoa
negra, o sous-chef de Carla Pernambuco, cujo apelido era Meia-Noite.
Passei praticamente o resto do evento seguindo Cidinha. Primeiro, porque ela era uma
mulher fascinante e cheia de histórias para contar. Depois, reconhecida por todos os chefs que
lá estavam, era frequentemente abordada para tirar foto, para gravar vídeo ou apenas para
ouvir as pessoas dizerem "é uma honra te conhecer!", "você fez parte da minha infância!". Ela
comandou uma oficina sobre culinária angolana – embora a programação do evento
anunciasse "confeitaria africana". Preparou uma galinha com quiabo, e se dirigiu ao local da
oficina carregando uma pesada sacola com várias aves, cada uma delas correspondendo aos
diversos momentos da preparação. Tudo cuidadosamente embalado, assim como os
acompanhamentos – conhecimentos de alguém que ostenta uma experiência de mais de 20
anos cozinhando diante das câmeras.
164

O espaço onde ocorreu sua oficina era um dos mais concorridos. Ela preparou a mesa
onde iria trabalhar com muito esmero, trouxe de casa vários itens e enfeites que lembravam a
África, assim como o lenço que enfeitava seu cabelo. No fim do dia, ela nos brindou,
sentando-se com “as meninas da assessoria de imprensa”.
- Conta pra ela, Cidinha - dizia a jornalista -, conta quantos Natais passamos juntas
preparando encomenda de ceia.
- Verdade, amiga, quantos Natais! Eu fiz muita encomenda de ceia, eu faço até hoje.
Faço encomenda pro Natal, pro Ano-Novo, pra Páscoa... mas hoje eu já seleciono, não dou
conta de ficar cozinhando dia e noite, não. Não vale a pena.
Cidinha Santiago se tornou conhecida por ser a auxiliar de Ofélia Anunciato, de A
Cozinha Maravilhosa de Ofélia, o primeiro programa culinário da televisão brasileira. O
formato apresentando uma senhora branca, bonachona, preparando o passo a passo de
deliciosas refeições diante das câmeras, foi inaugurado por ela no Brasil e é copiado até hoje.
É por isso que tantos chefs e cozinheiros conheciam e reconheciam Cidinha no Encontro de
Chefs. Eles a acompanharam na televisão desde sempre, assistindo Ofélia.
Mas como essa mineira de Belmiro Braga debutou na televisão ao lado de um dos
maiores ícones da culinária brasileira à época? Esta é uma longa história que ela me contou
muito animada, pois é a história que ela repete em toda entrevista. A resposta simples e curta
é: Cidinha era empregada doméstica de Ofélia que, quando esta foi convidada para fazer um
programa de culinária na TV, ela "naturalmente" levou Cidinha para ajudá-la, como que
reproduzindo o que fazia em casa. Mesmo quando a atração se tornou um sucesso e Ofélia
ficou famosa no Brasil inteiro, ao seu lado estava Cidinha, tanto nos estúdios, quanto em casa.
Quando Ofélia envelheceu e adoeceu, Cidinha continuou cuidando dela, até sua morte.
Ela batalhou para permanecer na tela da televisão. Há mais de 20 anos trabalha como
"culinarista de TV", como se identifica profissionalmente, com várias pessoas em diversos
canais. Mas sempre como auxiliar. Sempre ao lado de alguém que recebe a luz de todos os
holofotes. Não raro, pessoas com muito menos experiência e muito menos conhecimento.
Cidinha fala de Ofélia com amor, com verdadeira devoção. Naquela tarde que
passamos juntas, ela me mostrou os vários presentes da Ofélia, lembranças guardadas com
apreço e carinho. Com respeito, relembrava do quanto Ofélia a ajudou, como fora boa com
ela. Recordou, emocionada, que foi Ofélia quem organizou seu chá de bebê pela televisão, as
telespectadoras acompanharam toda a sua gravidez e que recebeu presentes do Brasil inteiro.
Dedicada, esteve ao lado de Ofélia até o fim e nunca lhe passou pela cabeça deixá-la para
seguir seu próprio caminho ou outra carreira.
165

Ofélia não foi sua primeira patroa. “Com 10 anos fui trabalhar em casa de família. Fui
cuidar de uma menina, até que foi aniversário dela ontem. E ela fez 40... 49 anos”. Sua mãe
era doceira e seu pai, padeiro. Cidinha tinha 11 irmãos. Trabalhar em casa de família ainda
criança era uma forma de ter um a menos para alimentar e cuidar diariamente.

Eu cuidava da menina, mas aí eu ia pra aula à noite, eu estudava. Daí eu ia


pra cozinha fazer os pães, a gente fazia todos pães: pães de... aquelas
rosquinhas, pão de queijo, pão, rosquinha de amoníaco [sic]. Hoje eu não
faço tanta coisa assim, chama as quitandas mineiras. Eu fazia tudo, deixava
na lata, aquelas lata tampada, pra semana inteira. Então a semana inteira
você tinha pão. Chegava na sexta, fazia tudo de novo. Se sobrasse, levava
pra casa, aquelas coisas todas. E aí eu comecei já morar, eu só ia pra casa no
fim de semana, que pra mim era mais fácil, sair do serviço e ia pra aula e
voltava da aula, era melhor. Se fosse pra casa ia ter que fazer toda comida...
aquela estratégia, porque senão, você acaba trabalhando mais ainda. Só que
eu não recebia. Minha mãe que recebia. Chegava no fim do mês, minha mãe
ia lá e pegava o dinheiro. Aí foi indo isso, até os 18 anos.

Ao completar o ginásio, Cidinha estudou para ser enfermeira em Juiz de Fora (MG), e
lá também se empregou em casa de família, “E daí já era cozinheira de forno e fogão”, afirma.
Após um ano, ela desistiu da enfermagem, porque a realidade que encontrava nos hospitais da
cidade não condizia com o que ela achava que devia ser o trabalho em saúde. Ela achou que,
se seguisse a carreira, “eu ia brigar muito”, então decidiu sair “e me dedicar com mais força
pra cozinha”.
E com isso, aí depois que eu saí da casa de família... nesse ínterim, eu
escrevi um livro de... cozinhando, e aprendendo bastante coisa, eu escrevi
um livro. Aí virou curiosidade. Porque minha madrinha, madrinha que
gostava muito e me cuidava muito assim, e a filha dela trabalhava na Globo.
Aí foi curioso, virou pauta: uma empregada doméstica escrevendo um livro
de culinária.

O livro que ela escreveu em 1985, “Receitas de comidas típicas” teve tiragem de mil
exemplares, hoje totalmente esgotados – ela mesma não tem sequer uma cópia do livro.
Cidinha pagou do próprio bolso pela edição. E, continua ela, com o livro debaixo do braço e a
convite de uma amiga, foi para São Paulo, novamente trabalhar em casa de família, cuidando
de dois gêmeos. Como eles passavam a maior parte do dia na escola, ela fez diversos cursos
gratuitos, de curta duração, oferecidos por empresas de eletrodomésticos como a Prosdócimo
e Continental 2001.
Aí, trabalhando com a amiga dela [da antiga patroa], eu fiz curso, aí eu
fazia curso, já fazia mais as minhas receitas, e fui fazer uma exposição no
Clube Pinheiros. É uma coisa muito legal, porque eu fui quebrando um
monte de barreiras, coisa que ninguém nem entrava e tal. Aí fui no Clube
Pinheiros, ela me levou no Clube Pinheiros, eu fiz uma minipanetone, coisa
de Natal, assim, fiz os camafeus, vendi panetone,
166

Neste trecho, Cidinha parece reconhecer o pioneirismo de algumas de suas atitudes no


campo profissional, como participar de exposições culinárias, “coisa que ninguém entrava”,
para vender suas produções. Em um desses eventos, ela conheceu o então famoso padeiro
Benjamin Abrahão, que a levou para fazer um curso de panificação com ele. Durante um
tempo, em razão dos contatos que ela fazia em feiras e exposições, ela era contratada para
preparar congelados em domicílio. Mas sua patroa na época “ficou com ciúme” e queria que
ela fizesse comida congelada para ela e para sua família, e não que ela saísse para cozinhar
em outras casas: “ela que me acolheu, mas depois quando ela viu que eu tinha já um pessoal,
ela não quis mais”. Naquela época, conta que tinha uma clientela no bairro do Morumbi – e
que trabalhava todos os dias das 7h às 16h.
Em seguida, seu antigo professor Benjamin lhe apresentou Ofélia, que “estava
precisando de alguém”.
"Ela é difícil. Se você aguentar trabalhar com ela...", eu falei "Ah, vamos
tentar, né?". E fui trabalhar com a Ofélia. E daí não saí mais da televisão.
Porque com a Ofélia fiquei seis meses trabalhando nos bastidores. (…) E aí
morava com ela. Porque a filha dela morava em Santos. Aí eu já saí daquela
senhora que eu morava lá, vim morar com ela [Ofélia] na casa dela. Que ela
precisava de uma pessoa pra ficar com ela e ao mesmo tempo ficar na
cozinha. Eu fiz as duas coisas. Essa brincadeira durou nove anos com ela.
(…) Aí eu cuidava dela e organizava tudo que ia fazer, como fazer.

São muitos anos e muita experiência trabalhando como culinarista na televisão, mas
conforme ela mesma diz, prefere ser assistente e não ter seu próprio programa,

Porque a televisão brasileira é muito complicada. Depende muito de


patrocinador. Você vê, 27 anos na TV, eu nunca fui convidada pra fazer um
comercial, entendeu? É complicado. Então eu prefiro ficar nessa... fazendo
minhas coisinhas aí.

“Minhas coisinhas aí”, na verdade, é bastante coisa.

Eu ganhei o fogão, fui homenageada como a pessoa que tá há mais tempo


na TV brasileira. [mostra a medalha] Olha a medalha, de menção honrosa.
Sou a primeira mulher na FIC [Federação Italiana de Culinária], tô na FIC
agora, Brasil. Sou a primeira mulher na FIC Brasil.

Além da televisão, encomendas, eventos, aulas especiais, participação em premiações,


entre outros, estão entre “minhas coisinhas aí”. Ela sempre está envolvida com várias
atividades para além do trabalho de segunda a sexta-feira na emissora de televisão, no período
da manhã.
167

Chef, que todo mundo hoje virou chef, você põe um dólmã, todo mundo é
chef. Não, chef eu não sou, eu sou culinarista de TV. Defino isso bem claro.
E já passaram vários comigo também, os meninos. Tem um menino que foi
meu estagiário e hoje é professor na Anhembi Morumbi. Eu dei aula na
Anhembi Morumbi no começo. Dei aula na Renaissance, Faculdade
Renaissance também. Então assim, aquela coisa, a gente tem essa troca
muito grande, né. E todos os grandes chefs me respeitam pra caramba
também, eu respeito eles.

De fato, Cidinha representa essa ambiguidade: é famosa e não é famosa, é reconhecida


e não é reconhecida. Ela tem 27 anos de experiência trabalhando em programas culinários na
televisão, além de uma enorme responsabilidade no ensino e formação “dos meninos”, além
de cursos, projetos. Mas, realmente, ela nunca teve um espaço só seu sob os holofotes.
Sempre foi assistente, não havia sido chamada para fazer comercial (isso mudou após a
entrevista).
Cidinha me apresentou a chef Benê Ricardo e estava presente na entrevista que eu fiz
com ela. Elas eram amigas. Algumas coisas que Cidinha havia me dito em sua entrevista, ela
mesma relativizou durante sua conversa com Benê porque, de alguma maneira, suas
trajetórias eram muito parecidas e muitas situações que viveram eram próximas. No ponto
seguinte, apresentarei a trajetória da chef Benê, mas, por ora, faço essa pequena digressão
para contextualizar a forma como Cidinha tratou o tema do racismo.
Quando perguntei, na entrevista individual, se ela já havia sofrido racismo, sua
resposta foi:
Assim, velado eu nunca sinto. Velado não. Mas uma coisinha ou outra,
assim. Mas assim, o povo tem até medo de declarar alguma coisa por mim,
porque sabe que a maioria das pessoas... às vezes é mais fácil sentir racismo
de negros do que de brancos. Porque eu sou uma pessoa que sou esclarecida
nesse sentido. (…) Eu falo discriminação nesse sentido, de me... às vezes
você vê qualquer atorzinho aí da Globo fazendo um... simular alguma coisa
de cozinha, já aparece fazendo comercial. Você percebe nesse sentido. Eu já
trabalhei pras melhores empresas, assim, já fiz pra todas, não sei que, eu
sempre fiz produção. Sempre. Fiz produção. A única vez que eu falo assim
que eu fui bem, assim bem remunerada no sentido de fazer, foi um trabalho
que eu fiz agora, faz pouco tempo, pra ___. Fiz um trabalho legal pra ___,
eles me chamaram, pagaram mil reais a diária, sabe, então foi um trabalho
que praticamente foi o trabalho que eu melhor recebi até hoje na minha vida,
e quando eu fazia os merchans [merchandising], sempre fiz merchan, mas
merchans embutidos, não merchan direto. Nesse sentido, eu acho, a
indústria, a coisa, a mídia em si não luta pra isso também. Igual, por
exemplo, por que que eu falo entre os negros? Porque tem essa... esse
negócio dos negros, você vê, eu fui homenageada numa colônia italiana, fiz
um trabalho lindo lá, falando da África no meio de todos os chefs que vieram
de todos os lados, e eles lá assistindo. Foi uma aula, a coisa mais linda,
aquela sala lotada, aquele povo todo prestando atenção [no Encontro
Mundial dos Chefs]. (…) Tem Troféu Raça Negra, Troféu não sei que, eles
168

nunca nem me chamaram pra nada. Nem pra ir assistir o evento. Eu só fui
uma vez assistir o troféu porque tinha um amigo meu envolvido, aí eu fui
uma vez. E aí uma única vez também, um pessoal do __ [partido político]
também, que eram uns amigos negros que tinha aí, aí falaram assim "ela faz
sempre o papel da empregadinha". Então, eu já ouvi isso. Por isso que eu
falo, não tenho essa coisa sentido, sinto mais de negro pra negro, do que
coisa. Às vezes o metrô tá cheio, tá lotado, dependendo da hora que eu vou,
dependendo da hora que eu chego, os orientais levantam, um branco levanta,
os brancos me reconhecem.

Hoje, Cidinha tem encontrado outros espaços de atuação independentemente do


trabalho que continua realizando na televisão, enquanto conta os dias para sua aposentadoria.
Além de cursos e palestras, Cidinha é convidada para ser jurada e avaliadora em concursos,
bancas de TCC em vários cursos de Gastronomia em São Paulo, e tem um perfil em redes
sociais com centenas de seguidores. Tem investido em cursos e formações que estão ligados à
culinária africana e tradições brasileiras – como sommelier de cachaça.
Ela planeja sua aposentadoria para ser um período em que vai se dedicar à sua própria
formação e ao próprio trabalho na Gastronomia.
Eu fiz esse coiso pro Portal Afro, que é também meu amigo, não é uma coisa
muito, em excesso, mas de vez em quando eu faço uns trabalhos, e a minha
cunhada, como cineasta, ela mora em Salto [SP], ela montou a Casa da
Memória da Mulher Negra, de Salto mesmo, né, dos negros de Salto, do
negro saltense. E daí eu resgatei, ela me convidou, foi muito de última hora,
mas ela me convidou pra fazer as receitas que os escravos faziam na época.
Aí, olha que legal, eu fiz no fogão à lenha, fazenda, aí tinha um fotógrafo
profissional, tinha um câmera filmando, filmou e tudo, aí você chega em
Salto hoje, tem um fogão, tipo um fogão à lenha no museu, mas é um tablet
gigante, você clica assim, e aparece minha mão fazendo as comidas da
época204.

6.2. Benê Ricardo

- Você tem que conhecer ela, ela foi a primeira! - me disse, animada, Cidinha Santiago,
quando eu a entrevistei em 17 de outubro de 2017. Em 6 de novembro, fomos juntas à casa da
chef Benê Ricardo, localizada no bairro de Santana, zona norte de São Paulo.
Ao entrar na casa, parecia que ela havia acabado de se mudar, pois eram muitas caixas
e pilhas de livros e revistas no chão da sala. Chamou-me a atenção também a quantidade de
diplomas, certificados e outros documentos enfeitando as paredes. Benê era uma mulher alta,

204
A Casa da Memória Negra de Salto não tem site próprio na internet, mas foi possível acessar informações
sobre o museu e a contribuição de Cidinha na produção do vídeo "Receitas tradicionais da Culinária Negra
Saltense" em https://www.andreiavigo.com/casa-da-memoria-negra-de-salto (acesso em 17/12/2019) e
https://revistaregional.com.br/site/2016/11/04/casa-da-memoria-negra-em-salto/ (acesso em 17/12/2019).
169

magra e de voz grave. Os cabelos grisalhos eram presos em um coque e ela me acolheu com
muito carinho e gentileza.
Praticamente tudo que havia em sua casa era “presente de aluno”. As panelas Le
Creuset, todas empilhadas sobre as caixas, eram um presente: “tenho um aluno que trabalha
lá, ele mandou pra mim essas panela”205. O kit com mais de 20 tipos de tempero em sua
cozinha: “esse foi meu aluno lá da Anhembi que me deu”.
Nossa conversa de uma tarde inteira parece ter passado muito rapidamente. Benê se
desculpava o tempo todo. “Tô te chateando, né, filha?”, ela dizia, e eu respondia que estava lá
para ouvi-la. Contou estar doente, com um problema no baço, mas estava se tratando,
consultando médicos e provavelmente faria uma cirurgia. Benê estava apreensiva e não queria
se estender falando da doença. Mais tarde soube que ela estava com câncer.
Era um sábado quando Benê morreu, 31 de março de 2018. Desde o final de 2017,
algumas vezes conversamos por telefone - quando eu criava coragem para ligar e perguntar se
poderia visitá-la de novo. Sempre simpática, se desculpava e dizia não estar bem de saúde,
mas que me receberia assim que melhorasse. Nunca mais a vi. Foi Cidinha quem me informou
sua morte e sobre o velório e o enterro em sua cidade natal, Ouro Fino/ MG. Passei a semana
seguinte procurando notícias do seu falecimento em jornais e redes sociais. Encontrei apenas
uma nota no jornal Gazeta de Ouro Fino, lamentando a morte de sua ilustre cidadã. Ana
Maria Braga, apresentadora de um programa matinal na Rede Globo, que havia recebido Benê
algumas vezes na atração, fez um comentário de 40 segundos na segunda-feira, dia 1º de abril.
Em jornais e revistas, muito antes de sua morte, assim como em programas de
televisão que ensinam a fazer receitas, a história de Benê Ricardo era apresentada em um
emocionante tom de heroísmo, de superação e de vitória, apesar de tudo e de todos. Órfã,
sozinha no mundo, ela se tornou chef de cozinha, foi reconhecida entre os seus, publicou
livros. Mas sua história de superação não é contada como mais uma história de racismo,
machismo e exploração, é individualizada para corresponder ao ideal da self made woman.
Por considerar que a história de vida de Benê Ricardo é emblemática e importante,
dentro da metodologia elisiana que estou adotando nesta tese, compreendendo que sua
trajetória individual se conjuga à história mais ampla, como uma configuração, e como sua
vida é um processo dentro do processo histórico maior, retomo essa narrativa a partir da
entrevista que fiz.

205
Le Creuset é uma grife de panelas cuja garantia é praticamente vitalícia. Uma caçarola custa por volta de 730
reais, como pode ser visto no site https://www.lecreuset.com.br/cozinhar/panelas (acesso em 11/12/2019).
170

Benê Ricardo nasceu Benedita Ricardo, no povoado de Ouro Fino, zona rural de
Minas Gerais. Nunca conheceu o pai. Sabia que ele enfrentava problemas com o álcool e que
não raro agredia a mãe de Benê que, por sua vez, batia na filha também. “Minha mãe batia,
sim. Minha avó nunca bateu ni mim, minha mãe colocava perto do fogão de lenha, aquela
vara. Mas eu acho que ela descontou ni mim aquilo que meu pai fez pra ela, que ele é
alcoólatra. Hoje, perdoei”. Quando a mãe morreu, Benê, então com 8 anos, permaneceu com a
avó Eugênia, de quem tinha uma lembrança muito amorosa. Mas quando ela morreu, Benê se
viu sozinha no mundo.
Porque a minha mãe morreu de tétano, minha mãe morreu em 3 dias, minha
mãe morreu rápido. Eu fiquei com a minha avó. A minha avó morreu, eu
fiquei sozinha. Essa família viu que eu era sozinha, ele tinha fazenda lá em
Ouro Fino, e a esposa dele era de família portuguesa. Então, eu tinha que
encerar o chão, passar escovão, encerar. Ia tomar banho, eles desligava o
chuveiro. Eu dormia lá no fundo, aquele frio... 59 [1959] era frio aqui, né?

Os vizinhos da avó, em Ouro Fino, levaram a menina para casa. Lá ela fazia todo o
trabalho doméstico em troca de moradia e alimentação. A moradia era o quartinho dos fundos.
Dormia no chão, sem cobertor, era obrigada a tomar banho frio e usar roupas velhas. Sua
alimentação resumia-se na sobra da comida dos patrões e o leite sempre era misturado com
água.
E era tão frio que os cachorro cobria as minhas perna. Por isso que eu gosto
de cachorro, sabe. Eles esquentava meus pés. Eu ia tomar leite, ela colocava
água. Mas pelo menos eu era uma nega bem magrinha, se fosse hoje, eu era
top model, né?

Certa vez, num período de férias, a família viajou para Santos (SP) e uma vizinha, com
pena do estado maltrapilho da menina, ofereceu-lhe trabalho em outra casa.

… a minha patroa foi pra Santos, ela [a vizinha] chegou no muro, falou,
‘nossa, você é muito trabalhadeira, você... não reclama, tá sempre alegre,
trabalhando, não reclama, você merece uma coisa melhor’. Mas ela disse que
o que mais deixou ela mais... de ver que eu não era bem tratada, mas eu
defendia meus patrões, ‘eu tenho uma família que precisa de uma pessoa que
nem você’. Eu falei ‘não, depois eu saio daqui, eles vão ficar preocupado
comigo’. Ela falou que ficou surpreendida de eu não ser bem tratada e ainda
ter medo que eles ficassem preocupada comigo. Eu sempre fui católica,
respeitei a religião. Comecei a ir na Verbo Divino, ali, na missa. Aí eu via
aquelas empregada, tudo bem arrumada. Fui falando, falando, falando. Aí eu
disse "eu quero". Aí ela me levou pra casa dessa família.

Foi quando Benê aceitou ir para a casa de uma família alemã. Alguns anos mais tarde,
os patrões a levaram para a Alemanha, onde ela viveu por sete anos como empregada
doméstica, babá e cozinheira. Começou a trabalhar nesta casa quando ainda era "de menor" e
171

com esta família permaneceu por 18 anos. Inclusive, referia-se aos dois filhos dos patrões,
que ajudou a criar, como "meus filhos".
Com a convivência, ela se tornou praticamente uma especialista em culinária
germânica, pois, ressaltou ela, “alemão gosta de ensinar”. "Eu sou avó já", comentou. Mais
tarde, já cozinheira profissional, foi contratada para ensinar empregadas domésticas a
cozinhar em diversas casas de família, mas a nova atividade não durou muito tempo.
Nossa, eu fiquei com tanto dó... A gente vê cada coisa. Porque ela chama
muito pra dar aula pras empregada em casa, chef em casa. Ah, eu cansei
daquilo ali. (…) Eu peguei bastante serviço... Mas aí eu vejo como as patroas
tratam as empregadas, e eu... nunca ninguém me tratou dessa forma depois
que eu... e eu não aguento.

Após aqueles 18 anos, ela participou de um concurso promovido pela revista Claudia.
A receita que ela mesma criou, Torta de Temperos, ganhou o primeiro lugar. Então, foi
convidada para participar da Cozinha Experimental de Claudia, da Editora Abril, e as receitas
eram testadas, fotografadas e publicadas na revista.

Eu fui uma das primeiras empregadas registradas, porque alemão gosta das
coisas tudo certinho. Eu fui uma das primeiras empregadas registradas. A
Edith convidou eu pra trabalhar. Aí eu cheguei na casa da minha patroa... eu
lavava a piscina, cozinhava, eu gosto disso, cozinhar, limpar, vidro, não
precisava de mais gente nenhuma, por isso que eu fiquei assim, doente, logo.
Eu cheguei e falei "ai, dona, ela convidou eu pra trabalhar". Olha, pra você
ver alemão como que é, ela falou "olha, só que não dá mais pra você ficar
aqui. Tem que vir uma outra pessoa. Eu sei que não vai ter outra pessoa que
faz o que você faz, mas aí você vai ter que ir todo dia aí pra firma e aqui não
dá pra fazer”.

Ela deixou a família com a qual passou 18 anos e começou uma nova carreira. Mas
esta só durou três meses, o tempo de experiência.

Três meses, eu não passei no exame psicotécnico. Mas eu sei o porquê. A


moça, acho que ela ficou um pouco com ciúme, eu fiz uma sobremesa, tava
no... naquela época não existia freezer. Eu coloquei no congelador a
sobremesa pra tirar foto no dia seguinte, ela pegou... a infeliz lá, tirou e pôs
embaixo. Mas eu fiquei feliz, entendeu. Também não passei no exame
psicotécnico. Mas pagaram eu direitinho. Três meses. Aí eu perdi o emprego
da família de 18 anos, a Cráudia falou que não podia ficar mais comigo,
porque tava só quebrando um galho, que ela já tinha outra. E ela tinha 3
filhas, tinha um menino e duas menina. E eu, então, quando eu fui pegar as
minhas coisas que estavam lá no quartinho de empregada, eu deixei a minha
bolsa com o dinheiro que eu recebi da editora Abril. A filha da Cráudia
pegou meu dinheiro. Mas eu não reclamei nada. Esse dia, no e-mail, essa
moça tá morando na Argentina, fez um curso de Gastronomia, pedindo
perdão pra mim. Pedindo desculpa pelo que ela fez pra mim. Que a mãe dela
comprou um livro meu, levou pra ela, e ela viu eu pela internet. Pediu
172

perdão... você vê... a vida cobra. Acho que ela tinha uns 12, 13 anos. Ela
sabia o que tava fazendo, sim.

Assim, Benê se viu sem trabalho, sem dinheiro e sem ter onde morar. Acionou a rede
de amigas e conhecidas pra ver quem poderia lhe ajudar. Uma das mulheres dessa rede a
levou para trabalhar em uma empresa terceirizada de catering, em que Benê preparava
jantares e banquetes para eventos.

Aí eu fui dar um jantar na Alameda Jaú, era na casa do presidente da


Petrobras Gás. E a dona, a esposa dele, era baiana. Era muito divertida.
Adivinha pra quem que era pra fazer a comida alemã? O presidente Geisel.
Pediram a comida alemã, então eu fiz [nome de várias comidas alemãs]. E
eu aprendi fazer igual na Alemanha. Só que o chucrute aqui, todo mundo põe
farinha de trigo pra engrossar, igual molho branco. Lá não, rala a batata.
Engrossa o chucrute com a batata. Dá outro sabor. Aí ele queria conhecer a
alemã. Aí a dona, a mulher do dono lá... "você deve ter uma alemã na
cozinha lá, que faz essa comida, tal", e tava um funcionário do Senac, diretor
de Águas de São Pedro. E ele chegou, o presidente Geisel, aquela negona,
alta, magrinha, eu com aquela roupinha. Ele olhou bem, falou "podia ser
uma comida mineira, menos alemã". Aí o funcionário do Senac escutou bem
e falou “que legal, o diretor do Senac, doutor __ é alemão e os chefs lá não
sabem fazer a gastronomia alemã. Só que lá não tem estadia pra mulher.
Você vai ter que ficar numa pensão e ir todo dia”. Eu acho que eu abri muito
caminho pras mulher, né, Maria Aparecida206? Tinha que pagar uma pensão
em Nossa Senhora Aparecida pra ir todo dia.

O então diretor da Federação Nacional do Comércio, José Papa Jr., atendendo a um


pedido do próprio presidente Ernesto Geisel, deu uma bolsa de estudos para Benê participar
do curso de Primeiro Cozinheiro na unidade do Senac de Águas de São Pedro (SP). A história
da bolsa de estudos que ela “ganhou” depois de impressionar o presidente militar, que ela
mesma gostava de lembrar e que foi contada em inúmeras entrevistas para jornais, revistas e
programas de televisão, entretanto, ocultava esse “detalhe” da moradia e o fato de Benê, ao
mesmo tempo que era estudante no Senac, era também professora: ela ensinava gastronomia
germânica para os professores da unidade. E como era a única estudante da turma sem
alojamento, por ser a única mulher, teve de buscar um lugar para morar enquanto estudava.

Eu fiz o teste ali no Senac da Francisco Matarazzo. Só que eu não tinha


dinheiro pra pagar alojamento, né, pra mim, pra ficar... aí essa dona, tadinha
da minha amiga, aí ela pagou. Ela falou "eu te pago pra você ficar lá na
pensão", só que o primeiro mês ela esqueceu de pôr dinheiro lá na pensão.
Quando eu cheguei do Senac meu quartinho tava lá no fundo. Aí eu falei pra
dona Julieta, eu falei "Olha, dona Julieta, eu não quero morar de graça. Eu
venho só pra dormir mesmo, eu não quero ficar em quarto de pensão. Os
dias que eu tô de folga, eu vou cozinhar pra senhora, eu vou lavar, passar

206
Maria Aparecida é Cidinha Santiago, que estava presente durante toda a entrevista.
173

roupa, pra pagar o que eu tô...". Deu tudo certo. Mas aí lá eu senti um pouco
de preconceito. Além de ser mulher, negra.

Benê passou quatro anos da sua formação em Águas de São Pedro. Enquanto os
colegas homens dividiam os quartos no alojamento, viajavam e tinham seus momentos de
lazer quando não estavam no curso, ela estava fazendo faxina e cozinhando na pensão onde
vivia em troca da moradia.

Mas quando era pra sair assim, pra cidade, eles nunca me convidavam. Mas
eu não ligava. Aí eu ia fazer curso de camareira, aprendi a fazer... ia na
lavanderia aprender a fazer coisa. Na lavanderia eu aprendi tudo. Por isso
que eu fui pro ___ [hotel famoso na época em São Paulo]. Eu era cozinheira
supervisora do piso B. Naquela época era... foi lá que eu vi que tem
preconceito. Tem preconceito... que naquela época, no ___, em 89, era só...
só americano.

Sobre o racismo, Benê reconhece muitos momentos em que ela se sentiu descriminada
por ser negra, mas sempre construía a narrativa de modo a nunca se colocar como vítima, e
rapidamente emendava algo ameno, como "eu nem liguei" ou "eu perdoei". De acordo com
Lélia Gonzales (1984), “para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a
neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz
efeitos violentos sobre a mulher negra em particular” (p.224).

Em Minas também tinha preconceito. Na minha cidade, tinha um clube, lá


em Ouro Fino. Eu tinha feito Clube Escolar Coronel Paiva. Eu só fiz até o
quinto. Que hoje, pegaram minha nota do Senac, disseram que é pós-
graduação [risos]. Aquele menino da porteira lá, tinha um clube lá, o
Montanhês Clube, negro não entrava.

É curioso perceber que, mesmo tendo se tornado professora do próprio Senac mais
tarde, mesmo sendo reconhecida em sua própria profissão (principalmente entre seus pares),
Benê falava sobre seus méritos e até sobre a sua formação com imensa humildade. Depois de
dizer que a sua “nota do Senac” equivalia à pós-graduação, ela deu uma longa gargalhada,
como se fosse uma grande ironia pensar em si mesma como pós-graduada.

O clube não entrava negro. Mas daí quando eu comecei a fazer televisão,
aí... você sabia que Ouro Fino não tinha no mapa do Brasil. Agora tem. Tem
um hotel lá, o Menino da Porteira. Então, e esse clube não entrava negro.
Mas você sabe, Maria Aparecida [Cidinha], eu não sou aquela pessoa de
guardar raiva. Porque quando eu comecei... eu nunca menti das minhas
origem. Eu sempre falei "eu sou de São José do Mato Dentro, é município de
Ouro Fino", onde eu nasci que é lá. Aí falava na televisão, nos programas
que eu fazia. Aí o prefeito de Ouro Fino mandou eu... que queria que eu
fosse receber um prêmio. Aí eu fui. Eu falei "olha, eu não vim por causa
174

desse prêmio, não. Porque eu já ganhei um prêmio da Nestlé pra mim


representar o Brasil na França, mas eu vim pros meus colegas, os meus
colegas, pra que lutem, pra que... com bastante fé e esperança, a gente luta.
Eu vim por eles, pra incentivar eles lutar como eu lutei, mas não por esse
prêmio aí". Menina, mas o negócio... todo mundo ficou assim [faz careta
com a boca aberta].

Durante a entrevista, foi este o único momento em que ela comentou que ganhou “um
prêmio da Nestlé pra mim representar o Brasil na França”, que nada mais é do que uma das
mais importantes premiações da gastronomia mundial, o Bocuse d’Or, em 2001. Ela ficou em
segundo lugar no Brasil e ganhou um prêmio, mas não a chance de representar o Brasil na
França207.
Sobre a sua formação no Senac, Benê falava sobre uma rotina pesada, carregando
peso, destrinchando carne e, sobretudo, fazendo limpeza.

… lavando aquelas panelas... aquelas panelas que tinha que entrar dentro,
grande... 20kg de feijão. Lavando aquelas panelona. Depois vai pra copa.
Depois vai pro bouchirriê [boucherie], que é o açougue, todos os termo
francês. Aprendi... hoje eu dou aula pra açougueiro, por quê? Porque eu
aprendi tirar picanha, sei destrinchar tudo. É triste. Cordeiro, tirar carré de
cordeiro. Era pesado. Mas tinha que fazer. Senão não aprende. Hoje ninguém
sabe nada.

Logo que ela concluiu o curso de Primeira Cozinheira e se tornou a primeira mulher
formada no Brasil, Benê passou por várias experiências profissionais difíceis, que misturaram
machismo e racismo, no começo da década de 1990. Foi chamada para uma entrevista de
emprego em um restaurante e, chegando lá, foi solicitada pelo dono para limpar toda a
cozinha.
Eu cheguei pra trabalhar e ele falou "Senac me indicou a senhora". Cheguei
lá, botei minha carteira de trabalho, os documentos que o Senac deu. Ele
falou "hoje você vai limpar a cozinha, que tá suja. Hoje ninguém trabalha,
vai limpar a cozinha". Eu falei "É, sua cozinha tá precisando mesmo de
limpeza". Limpei a coifa, lavei a cozinha, tirei tudo de dentro da geladeira,
aquela imundície, joguei fora. Quando terminou ele falou assim "a senhora
tá contratada". Aí eu falei "só que eu fiz curso de gastronomia", falei pra ele,
"eu quero seguir como cozinheira, não quero mais ser faxineira. Já fui
muito", falei pra ele, "agora eu não quero". "Não, fica, porque a gente vai
pagar...". Eu falei "não quero, tchau. O senhor devia ter me respeitado. Mas a
sua cozinha tava precisando mesmo de uma limpeza". Eu sempre fui assim,
viu?

207
Quem representou o Brasil naquele ano foi Adilson Pinheiro Batista, que ficou em 16º lugar na classificação
geral do concurso. O vencedor da edição daquele ano foi François Adamsky, francês, seguido por dois suecos,
segundo e terceiro lugares – todos eles homens brancos.
175

Benê comenta, nesse trecho, que pegou “trauma de carteira assinada”. Esse é um
elemento interessante na forma como ela narra a própria história porque, depois dos anos que
trabalhou como empregada doméstica e cozinheira em casa de família, tinha grandes
expectativas para o trabalho em restaurantes (“quero seguir como cozinheira, não quero mais
ser faxineira”). Mas, mesmo assim, não estava disposta a aceitar qualquer trabalho,
especialmente aquele em que se sentisse desrespeitada e que a remetesse ao trabalho de
limpeza que ela realizou durante anos.
Em seguida, Benê começou a trabalhar nesse grande hotel de São Paulo. Era
supervisora, mas fazia o trabalho de chef. A demanda era preparar um jantar para 2 mil
pessoas. O prato principal: vitela. “Eu tenho pavor de vitela. Não gosto de vitela. Que é carne
de bezerrinho novo, né?”. Chegando na câmara fria para ver a carne que ia ser preparada,
Benê percebeu que a carne estava estragada.

Aí eu falei pro sous-chef: “essa vitela tá estragada”. Tava roxa e espumando


a carne. Aí ele falou assim “mas isso aí é caro, chef”. Chef não, eu era
supervisora, mas ele falava chef. “Isso aí é caro”. Eu falei “tá estragado, e
depois é minha responsabilidade”.

Como o sous-chef não a obedecia e Benê se recusava a preparar a carne estragada, ele
chamou o gerente do hotel, um suíço. Ao ver a quantidade de carne que Benê insistia em jogar
no lixo, ele começou a questionar seus conhecimentos.

E isso doeu. Ele chegou falou pra mim "Você entende de coisa estragada?"
Eu falei "eu não entendo falar enrolado que nem o senhor, mas isso eu
aprendi com minha avó lá no meio do mato. A minha avó dizia que tudo que
tá roxo e espumando é estragado". Eu falei "ai, minha vó, me ajuda!". Eu
fico boba de ver, porque assim, a coragem que eu tive. Não sei se hoje eu
fazia isso. Por isso que o Brasil tá desse jeito. Desculpa, filha. Eu tomei um
trauma... desculpa, eu aposentei por contribuição. Eu tomei um trauma de
carteira assinada. Porque carteira assinada você tem que fazer tudo que os
outros quer. Eu falei, meu Deus, hoje eu preciso saber se eu entendo ou não.
Peguei no prato.

A certeza de Benê ter razão - além da sua convicção de que “tudo que tá roxo e
espumando tá estragado” - era o fato de ter sido contratada como supervisora justamente por
alguns incidentes que a cozinha havia enfrentado, um deles, aliás, terminou com 15 clientes
no hospital com intoxicação alimentar (“mas o ___ [hotel] fez acordo, né, a imprensa não fala
isso”). Diante da resistência do sous-chef e do gerente, mas convicta de que a carne estava
estragada, Benê foi até o dono do hotel e levou a carne para ele pessoalmente.
176

Aí eu fiquei assim... hoje eu preciso saber se eu entendo ou não. Peguei,


botei num prato, subi no elevador, cheguei na sala do doutor ___ [bate na
mesa, como se batesse na porta], bati. Ele falou em árabe, chamou todo
mundo. Eu provei que eu entendia das coisas estragadas. Mas eu passei por
dedo-duro. Aí eu fiz a minha cova. No dia seguinte, cheguei pra trabalhar, no
quadro de memorando, aquele quadro que tinha perto do garde manger, um
padre benzendo uma bruxa, escrito "Chef Benê". Eu nunca imaginei ser chef
na minha vida, aquela época, eu era só supervisora e cozinheira.

O dono do hotel viu que a carne estava estragada, suspendeu o serviço, mandou trocar
o cardápio do jantar. Mas a equipe se ressentiu da Benê e tomou uma atitude coletiva para
puni-la.
Virei bruxa. No dia seguinte me boicotaram todo meu trabalho. Veio só o
Toninho. Não veio ninguém. Eu fui no almoxarifado, naquela época eu era
forte. Saco de feijão... fui lá, carregava aqueles panelão. Cheguei 11 horas,
falei "ai, meu Deus, obrigada!", tava tudo pronto. Boicotaram. Você não sabe
o que eu já passei. Mas Deus é tão forte que eu consegui fazer tudo, chegou
11 horas o refeitório já estava com a comida lá. Por isso que eu tenho muita
fé em Deus.

Ela e um cozinheiro deram conta sozinhos do serviço que era realizado por uma
equipe de 15 pessoas. Ela terminou esse dia no pronto-socorro, com estafa: “eu passei mal, fui
pro hospital. Fiquei dura, de estresse. Me levaram eu pro pronto-socorro...”. Como ela não
desistiu, os boicotes continuaram. “Mas aí, um dia eu cheguei, fui na câmara fria, peguei o
molho de tomate. Cheio de caco de vidro moído. Deus que me mostrou, cheio de caco de
vidro”.
Tendo piorado muito sua condição de saúde e sentindo que não conseguiria mais
continuar trabalhando nessa cozinha, ela pediu as contas. Como discuti no início do segundo
capítulo, a constituição de laços de confiança e amizade são fundamentais para o trabalho
coletivo necessário em uma cozinha. E assim como eles servem para que todos trabalhem
bem, no mesmo ritmo, e produzam comidas deliciosas, eles também podem servir pra acabar
com a reputação ou com a saúde de uma pessoa, e foi o que fizeram com a chef Benê, antes de
ela se considerar chef. Benê ainda chamou atenção para o fato de que um dos rapazes que
trabalhava nessa equipe (ela não precisou quantos eram homens e quantas eram mulheres) era
negro. “E negro! E é negro. Depois fala que é branco que é racista”, o que parece indicar que,
na sua percepção, tal organização contra ela tinha um forte componente de racismo.
É bem assustador pensar que pessoas que trabalham com alimentação misturariam
vidro moído ao molho de tomate que serviriam num jantar, com o objetivo de prejudicar a
supervisora, assim como é extremamente inquietante pensar que, se não fosse a “teimosia” de
Benê, eles teriam servido carne estragada para 2 mil pessoas. Muitos dos/as cozinheiros/as
177

entrevistados/as falavam sobre a responsabilidade de se trabalhar com comida, sobre a


importância de se manter todos os cuidados com o que é oferecido aos outros, alguns/algumas
até falaram em termos de responsabilização judicial, o que faz a ideia de servir comida podre
parecer ainda mais absurda.
Também é possível depreender um elemento de discriminação de classe sofrido por
Benê, quando ela vai falar com o gerente do hotel, suíço, e precisa defender seus
conhecimentos, sua postura, e diz “eu não sei falar enrolado que nem o senhor”. Como
observa Lélia Gonzales (1984: 238), a linguagem tem um forte componente que revela raça e
racismo. Por exemplo, Benê falava “a revista Claudia”, mas chamava sua amiga “Cráudia”.
“Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a
presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no
qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante?”.
Terminada sua experiência traumática nesse grande hotel, Benê conseguiu emprego
em alguns restaurantes, e mais tarde trabalhou com empresas. Seu “trauma de carteira
assinada” se aprofundou, principalmente quando se tratava das contas. Benê tinha muito
orgulho de se colocar como uma pessoa muito correta, e ela era. Não admitia enganar, fraudar
ou superfaturar notas de compras e, como ela percebeu mais tarde, essa era uma prática
comum em muitos estabelecimentos.

Óleo, azeite, carne, feijão, arroz, óleo, tudo no papelzinho, o que eu ia usar
na cozinha. Foi o gerente comigo, naquele carrão dele. Eu fui com o carrinho
e enchi com as minhas coisas. Ele chegou, eu na frente passando as minhas
coisas, eu falei "por favor, a minha compra é daqui pra cá". "A senhora quer
ficar com o emprego?", eu falei "daqui sim, daqui não". Eu tava
desempregada de novo. Ele tava com aquelas panela cara, caixa de vinho
cara, uísque...

Depois de algumas experiências profissionais, ela “se registrou” como autônoma,


pagou sua previdência e assim se aposentou. No capítulo 4, discutirei a questão do trabalho
autônomo nos serviços de alimentação e sua relação com gênero, classe e raça das
entrevistadas, mas por ora é suficiente dizer que a experiência de Benê como funcionária
registrada foi nomeada por ela, várias vezes, de traumática.
Enfim, Benê tornou-se banqueteira, uma profissional especializada em prestar serviços
de alimentação para eventos e jantares, assim como consultoria para empresas e para indústria
(desenvolvendo receitas com produtos para divulgação de marcas), e a atividade que sempre
manteve paralelamente a essas, a docência. Ela foi professora em grandes instituições da
gastronomia e de culinária em São Paulo, como o próprio Senac, a Faculdade Anhembi
178

Morumbi, a Faculdade São Judas, além de ter se envolvido em vários projetos sociais que
tinham a formação na cozinha como caminho profissional para jovens em situação de
vulnerabilidade. Como já apontei, Benê nutria um carinho muito grande pelos seus alunos, e
era recíproco.
De sua autoria, publicou o livro “A Cozinha da Benê”, sucesso de vendas (esgotado).
Mostrou-me vários livros em sua casa, muitos com receitas que ela assinava, alguns até
exibindo sua foto na capa. Mais tarde, já com o gravador desligado, conversamos sobre isso.
Suspirando, ela me disse: “acredita, filha, que só depois eu fui descobrir que tinham pagado
todo mundo pra fazer as receitas, menos eu?”. Foram muitos os casos que ela descreveu, em
que desenvolvia receitas que outras pessoas assumiam a autoria “Olha aqui quanta coisa eu
fiz. Um jantar, com tudo da Catupiry... com receita e tudo... Ele pegou e falou que foi ele que
desenvolveu. Que é dele. Tudo receita testada, com ficha técnica e tudo”. Falou também sobre
uma professora sua colega,
...que pegou minhas apostilas do Senac... Aí um dia ligou, falou que queria
devolver, que pegou minhas apostilas e tirou xerox, do Senac. Aí ela foi ser
professora. Mas deixa pra lá, eu não vou levar essas coisas comigo mesmo,
vai ficar tudo aí, deixa pra lá.

Ao longo da conversa, com gravador ligado ou desligado, Benê relatou várias


situações em que foi chamada para trabalhar e prestar serviços e não foi paga. Nem sabia
como acionar aqueles que lhe deviam. Argumentava: “ai, filha, tanta dor de cabeça que eu
acho que nem vale a pena”.
Quando eu trabalhava no ____... aquele cara que foi lá pra Colombo... que
era lá da Colombo... levou eu pra treinar seis meses. Perdi todo meu dinheiro
que eu tinha no Itaú. Porque eu fui gastando, gastando. E ele não me pagou,
20 mil. Eu perdi. Porque eu fui dando, pensando que ele ia pagar. Porque ele
é chique, ele é da Colombo lá do Rio de Janeiro.

Lélia Gonzales (2011 [1988]) fala sobre a condição da mulher negra nas sociedades
latino-amefricanas e afirma
O duplo caráter da sua condição biológica-racial e sexual – faz com que elas
sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo
patriarcal-racista dependente. Justamente porque esse sistema transforma
diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um
caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem
parte, na sua grande maioria, do proletariado afro-latino-americano (p.17).

Depois de uma vida inteira dedicada ao trabalho, Benê não ficou rica, não ganhou
dinheiro. E a pior consequência disso foi seu limitado acesso aos tratamentos de saúde, o que
179

agravou muito sua doença. Como consequência, ela apresentou uma série de problemas de
saúde decorrentes das precárias condições de trabalho, como trombose.
… eu não pude pagar meu plano de saúde porque, por causa da minha idade,
foi pra 800 [reais] e pouco. Um colega meu que arrumou nesse lugar pra eu
fazer, porque nesse lugar é só pra quem tem empresa. Então, Deus ajuda a
gente.

Ela narra o tratamento que recebeu em um consultório médico particular, que ela era
atendida “nesse lugar pra eu fazer”.
Esse negócio de racismo que a gente tava comentando. Aquele dia que eu fui
naquela médica... o médico da trombose. Ela falou pra mim que quando
meus exames estivessem prontos era pra mim levar. Mas no dia 24 eu não
podia, e eu fui na outra terça. Pedi se ela podia dar uma olhadinha pra mim.
Pedi, lá na entrada, e disseram que ela não podia atender. Mas eu levei uma
bolachinha que ela gosta, embrulhadinha, bonitinha. Ela saiu lá fora, acho
que tinha, além dos clientes dela, mais ou menos umas 80 pessoas, ela
chegou assim "eu tô com mais de 80 cliente, eu não posso te atender agora".
Ela é minha médica, falando, alto. Eu falei "desculpa". Falei bem... falei
“desculpa, tá bom”. Não falei mais nada. E peguei as bolachinha que eu
levei pra ela, tudo embrulhadinha e dei pra ela. Chegou segunda-feira agora,
ela ligou. "Vem aqui terça-feira que eu vou te atender". Acho que alguém
que falou pra ela. Aí eu li o Evangelho de domingo. E eu vou falar com ela.
“Tudo bem, doutora, mas a senhora não precisava falar alto daquele jeito lá
fora, na frente de todo mundo”. Mas eu vou falar.

Não esperou nem insistiu para ser atendida pela médica, embora precisasse, embora
fosse idosa, embora tivesse se deslocado até o consultório. Apenas queria presentear a médica,
entregando-lhe as bolachinhas que havia feito e embrulhado com carinho. Mesmo depois de
ter sido constrangida na sala de espera, quando a médica gritou com ela na frente de todos,
Benê fez questão de lhe entregar o singelo presente.
Seu fim de vida foi muito simples e permeado por dificuldades financeiras. Só não foi
mais triste porque ela contava com a ajuda e boa vontade de muita gente que gostava dela.

Essa amiga minha, o marido dela é da Petrobras, ela veio e falou "Benê, eu
vou ajudar você". Ela me deu 900 real. Eu tenho um amigo, ele foi agora
viajar, que foi aluno meu, ele deposita todo mês 1.500. Isso que eu agradeço
a Deus. Mas dói, filha. Dói, dói tanto, sabe? (...) Desculpa estar contando
isso pra você. Mas é duro.

Com livros publicados, receitas registradas, reconhecida em seu meio profissional,


Benê Ricardo terminou a vida sendo ajudada por pessoas e consciente da situação de
precariedade em que estava. Nas palavras de Lélia Gonzales (1984: 226):

A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como


consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento,
da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso
180

ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber


que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi
escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura
como ficção. Consciência exclui o que a memória inclui. Daí, na medida em
que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante
(ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante
a imposição do que ela, consciência, afirma como verdade.

Tanto Benê quanto Cidinha representam as mulheres negras brasileiras. Ambas


começaram a trabalhar ainda crianças, entre 8 e 10 anos de idade, em casas de família. Ambas
construíram trajetórias na cozinha que começaram no trabalho doméstico. Enfrentaram o
racismo, o machismo e a discriminação de classe em um período da história brasileira em que
isso era ainda mais naturalizado. Ambas migraram para São Paulo e confrontaram uma
realidade dura, onde tudo parecia estar contra elas. Se as mulheres na cozinha precisam provar
que são tão capazes quanto seus colegas homens, as mulheres negras precisam provar que são
tão boas quanto seus colegas homens e suas colegas brancas. É como se elas estivessem
constantemente sendo avaliadas, constantemente vivendo com medo de errar.
Entretanto, acho importante considerar que cada trajetória é única, cada história é
singular, e por mais que essas histórias nos informem sobre elementos da configuração mais
ampla, sobre a realidade social e as relações de poder, elas têm elementos que permitem
aproximá-las e outros que as diferenciam. O grupo “mulheres negras” não é homogêneo e,
embora inscrito em relações estruturais e estruturantes – gênero, classe e raça – não se limita a
elas. A questão geracional é fundamental para contextualizar essas histórias de vida.
Comparando suas trajetórias com a de outra mulher, que também trabalhava como
autônoma, é inegável o peso do trabalho como empregadas domésticas ainda crianças nas
histórias de Benê e de Cidinha. Lídia, que também é cozinheira e negra, tinha uma postura
muito diferente. Por exemplo, ela não gostava de ser tratada assim.

Lídia: Sim, mas tem um monte de gente que acha que eu vou chegar lá e vou
cozinhar um negócio cheio de dendê, entendeu? Dar uma de baiana. Porque
seria baiana. Porque eu sou pretinha, eu sou baiana? Eu não, sou espanhola,
minha cultura é espanhola, europeia. E, meu, minha família tem origem
negra aqui no Brasil, mas meu pai era espanhol.
Entrevistadora: Mas você sente, assim, que as vezes você é categorizada,
pra entrar numa caixa?
Lídia: Sinto, sinto. Com certeza, com certeza. E ainda mais quando as
pessoas vêm me procurar. Porque elas vêm me procurar pelo meu estilo, pelo
fato de eu ser negra, de eu falar bem e de estar numa postura diferente das
outras negras.
181

É como se identificá-la como uma mulher negra a colocasse automaticamente em um


lugar específico, que ela recusava. A questão da comida baiana, por exemplo. A convite de um
produtora, participou da primeira edição brasileira do Masterchef Brasil, programa de TV,
justamente para cumprir “a cota” e ser “a mulher negra”. Saindo, segundo ela, por sua própria
iniciativa, trabalhou por um tempo em um restaurante sofisticado em São Paulo, e recebeu
convites para continuar na televisão.

Mas eu, quando saí do Masterchef, até me convidaram pra ir ser assistente
do ____ no ar, aí eu falei "eu não vou me colocar nesse papel". Se ele quiser,
ele me chama de convidada, agora eu ser assistente dele? Vá se fuder. Acho
que o cara cozinha ‘mó’ mal, sou mais a minha comida. Mas é porque eu bati
o pé também, você viu o tipo de alimentação que eu vendo? Todo mundo
olha pra mim e fala "nossa, essa neguinha é muito desaforada mesmo",
porque eu…

No caso de Lídia, “ser desaforada” passa por recusar determinados lugares sociais e
“bater pé” com relação aos seus próprios objetivos de carreira. No momento da entrevista, ela
estava se planejando para iniciar um serviço de alimentação por aplicativo, e aceitou dar
entrevista para um canal de televisão, que a procurou por ela se enquadrar na categoria
“cozinheira negra”, segundo ela “mas isso aí me interessa”.
Para Sueli Carneiro (2011: 114), o aumento nas exigências educacionais para se
conseguir um emprego no mercado de trabalho formal conforma um mecanismo de selecionar
a mão de obra mais qualificada, mas “também opera como um filtro de natureza racial”. A
autora afirma que essa, provavelmente, é a razão pela qual o crescimento econômico não
resulta, necessariamente, em redução das diferenças sociais. “Os efeitos imediatos da
recuperação econômica, que se diz em curso208, é a absorção no processo de desenvolvimento
dos mais educados, postergando ou inviabilizando a inclusão dos historicamente excluídos”
(idem). As histórias de Benê e Cidinha, sobretudo quando comparadas à de Lídia, parecem
confirmar o argumento de Sueli Carneiro.
No capítulo seguinte, discutirei o trabalho por conta própria e a articulação deste, no
mercado de trabalho brasileiro, com as relações de gênero, classe e raça, procurando entender
como elas estruturam e são também reorganizadas no universo do trabalho informal, precário,
sob o discurso do empreendedorismo. A discussão, portanto, não se encerra aqui.

208
Este texto faz parte da coletânea “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”, publicada em 2011 pela
Edições Selo Negro, mas este artigo foi originalmente publicado no jornal Correio Braziliense de 18 de outubro
de 2004.
182

7. Considerações finais do capítulo

Procurei, neste capítulo, basear-me tanto na teoria francesa da consubstancialidade,


quanto naquela que parece estar se tornando hegemônica, da interseccionalidade, olhando
para o que elas têm em comum e como, juntas, podem embasar uma análise que considera
“raça, classe e gênero como estruturas de opressão distintas, mas imbricadas” (COLLINS,
2015, p.14). O que não significa negar que, em determinadas situações, uma ou outra pode ter
primazia sobre as outras, no sentido de ser mais sensível na dimensão da experiência. “Esse
reconhecimento de que uma categoria pode ter primazia sobre outras por determinado tempo e
lugar não minimiza a importância teórica de supor que raça, classe e gênero são categorias de
análise que estruturam todas as relações” (idem, p.19).
As relações de raça, classe e gênero, consideradas conjuntamente, sem sobreposição
de uma sobre a outra, entretanto, não prescindem de outras relações que também estão
atuando no conjunto da sociedade e que são importantes para compreender as relações sociais
– consideradas, conforme proposição de Danièle Kergoat (2009), como conflito. Nos dados
que recolhi, a partir das entrevistas com mulheres negras, a questão geracional se mostrou
fundamental para compreender as diferenças e permanências na forma como as cozinheiras
negras realizavam seu trabalho, como o entendiam e quais as formas que esse trabalho
adquiria. As mulheres mais velhas que trabalharam por uma parte significativa de suas vidas
como empregadas domésticas tiveram um aporte central em suas trajetórias quando se tornam
cozinheiras e transcendem o espaço da cozinha como parte de um trabalho doméstico.
Tal movimento não se observa nas mulheres mais jovens, pois elas tiveram diferentes
trajetórias de escolaridade e de entrada no mercado de trabalho. Os últimos 20 anos da
história do Brasil permitiram que toda uma geração construísse percursos profissionais que
não passaram pelas “casas de família”. Ainda que se possa questionar a qualidade dos
empregos e a vulnerabilidade do mercado de trabalho brasileiro, especialmente considerando
o setor de serviços e, como espero ter demonstrado, o trabalho em cozinhas, as trajetórias e a
percepção que essas mulheres têm de seu próprio trabalho, de seus conhecimentos e
habilidades, da sua capacidade de se movimentar, é completamente diferente.
As relações de gênero, classe e raça continuam sendo tratadas como centrais, porque
estruturais e estruturantes, mas elas não impedem que outras relações sociais se imbriquem no
“nó frouxo”, como apontou Heleieth Saffioti (2015: 133-134):
183

Retomando o nó, difícil é lidar com esta nova realidade, formada pelas três
subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, já que é presidida por uma
lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado.
(...) O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou
enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do nó górdio nem
apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas
componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e
isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial,
própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova
realidade, presidida por uma lógica contraditória. De acordo com as
circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó
adquire relevos distintos.

Saffioti enxerga que a configuração do nó “adquire relevos distintos”, ou seja, se


modifica, se transforma, se rearranja, “de acordo com as circunstâncias históricas”. Às últimas
três décadas da história do Brasil corresponderam mudanças profundas no mercado de
trabalho, na inclusão social de pessoas negras e afrodescendentes, na valorização da negritude
e na própria forma que esse debate tem adquirido em diversas esferas da sociedade, inclusive
na pesquisa social.
Meu objetivo principal neste capítulo foi o de analisar os contornos da divisão sexual
do trabalho em cozinhas profissionais, o que me levou a observar e refletir sobre as relações
de classe e raça a partir de meu entendimento metodológico de que essas relações estão
imbrincadas. Através das histórias de vida dos homens e mulheres entrevistados/as, mas
sobretudo das mulheres, espero ter exposto como as categorias “masculino” e “feminino”
impõem separações e hierarquias entre homens e mulheres, com prejuízo para ambos, tanto no
espaço da cozinha, como no mercado de trabalho.
Procurei mostrar como o trabalho doméstico e de cuidados continua sendo central na
organização da vida profissional das mulheres de todas as classes sociais, mas traz mais
prejuízos sobretudo àquelas que percebem menores salários, contam com uma rede de apoio
menor e têm crianças pequenas. Essas mulheres são penalizadas por não conseguirem
conciliar as horas de trabalho com o cuidado com casa e família, o que resulta, muitas vezes,
em inserções mais precárias no mundo do trabalho. Entre as mulheres que conseguem
equilibrar a casa e o trabalho, ficam sentimentos de culpa com relação aos filhos e à família.
A partir do entendimento da sociologia elisiana, enxergando os processos sociais no
longo prazo, buscando identificar mudanças e permanências, é interessante notar que há
muitos avanços: muitas mulheres ressaltavam que, hoje em dia, “as mulheres estão
dominando” ou “as mulheres estão invadindo”, e até alguns homens apontavam para os dias
contados da hegemonia masculina nas cozinhas profissionais. A mesma coisa ocorre com
184

relação ao racismo: houve aquelas que afirmaram não ter sofrido racismo, “porque hoje em
dia isso dá cadeia” ou porque “ninguém é louco de falar comigo assim”. Mas quando
aprofundamos a análise desses depoimentos, é possível observar como as estruturas de
opressão em torno das mulheres e das pessoas negras, sobretudo das mulheres negras,
permanecem. O racismo e o machismo estão conjugados no espaço de trabalho, seja nas
cozinhas, seja no mercado, seja na contratação de serviços, seja nas consultorias.
Mesmo sendo possível enxergar como, do ponto de vista subjetivo, a percepção e a
sensibilidade a essas questões esteja se transformando – e, nesse sentido, é inegável que
houve conquistas e que o debate está mais vivo do que nunca, as estruturas de opressão e, para
usar o termo de Heleieth Saffioti, dominação-exploração, se mantêm e se reproduzem.
185

Capítulo 4 – Para além da brigada: as


diversas formas do trabalho culinário
“Eu aqui, tem dia que eu trabalho 18 horas em pé, mas eu tô no meu domínio
aqui, entendeu?” (Rita, 60 anos, cozinheira autônoma)

Neste capítulo, pretendo apresentar outras formas que o trabalho em cozinhas pode
adquirir, para além das brigadas da cozinha de restaurantes. Seja em função das dificuldades
que se colocam neste tipo de trabalho, a extensão e a intensidade da jornada, os baixos
salários e a rotatividade, para citar alguns, seja por conta de um ideal de sucesso que significa
abrir o próprio negócio, muitos/as dos/as entrevistados/as realizavam o trabalho culinário sob
diversas modalidades. Dentre o grupo de entrevistados/as, encontrei pessoas que abriram seus
próprios restaurantes, consultores/as para outros estabelecimentos, serviços de bufê para
eventos e o trabalho em domicílio, mediado pelas plataformas digitais.
No projeto de pesquisa que deu origem a esta tese, o trabalho por conta própria ou
realizado de forma autônoma não estava previsto no escopo inicial. Os objetivos estavam
atrelados à organização do trabalho na cozinha, às brigadas e ao trabalho em restaurantes.
Entretanto, por conta da rede de contatos que me levou até as pessoas que entrevistei, e muito
provavelmente em função de mudanças importantes no mundo do trabalho, em especial no
setor de serviços, deparei-me com o universo do trabalho por conta própria e autônomo, e não
poderia deixar de tratar dele aqui.
O setor de serviços do mercado de trabalho brasileiro, como discutido no primeiro
capítulo, é marcado por relações de trabalho precárias e vulneráveis, em detrimento dos
trabalhadores e trabalhadoras à mercê da rotatividade do setor, da falta de investimento e da
fragilidade de um sistema público de trabalho e emprego cada vez mais débil – a reforma
trabalhista recém-aprovada coroa um processo de ataque aos direitos conquistados.
Neste capítulo, pretendo apresentar diversas trajetórias de homens e mulheres que
trilharam caminhos entre o trabalho formal e informal, arranjos entre eles, o trabalho por
conta própria, prestação de serviços de alimentação e aqueles/as que conseguiram abrir seus
próprios estabelecimentos.
Tentarei mostrar como essas diversas modalidades de trabalho estão imbrincadas às
relações de gênero, classe e raça, e como tais relações têm uma influência fundamental no tipo
de trabalho possível, assim como a maneira que ele é realizado e os arranjos que se
186

desenvolvem a partir delas. Como discuti no capítulo 3, a ideia de um sujeito “neutro”, que na
verdade é branco e masculino, cria uma série de dificuldades e problemas para as pessoas que
não correspondem a essa pretensa neutralidade – mulheres e, sobretudo, mulheres negras.
Nesse sentido, construí o argumento de maneira que inicio uma reflexão a partir
daqueles/as que conseguiram abrir seu próprio negócio, proprietários/as de seu próprio
estabelecimento, em direção aos tipos de trabalho mais vulneráveis. Também procurarei
demonstrar como essa circulação entre o trabalho formal e informal, entre o trabalho por
conta própria e o emprego, estão presentes nas trajetórias muito além do momento da
entrevista.
Em um primeiro momento, realizo uma reflexão sobre o trabalho formal e informal do
ponto de vista teórico e da análise, uma vez que no nível das práticas sociais, o trabalho
formal e informal se confundem e se articulam. Trabalho com registro em carteira, trabalho
sem registro, trabalho por conta própria, prestação de serviços... essas modalidades se
sobrepõem e se complementam na vida das pessoas ao longo do tempo.
Dentre os/as entrevistados/as, havia quem tivesse um trabalho formal com registro em
carteira, que tocava seu próprio serviço de bufê em seu bairro, nos fins de semana de folga.
Também encontrei trajetórias em que o trabalho formal e informal se misturam – o trabalho
tem registro, mas não cumpre as leis trabalhistas (horas extras, folga remunerada, por
exemplo), em que o trabalho formal e a prestação de serviços se embaralham. De que se trata,
afinal, trabalho formal e informal?
De acordo com proposição de Jacob Lima (2010), as mudanças recentes no mundo do
trabalho têm criado novos arranjos de trabalho, geralmente sob a égide da flexibilização e da
perda de direitos, em que emerge a figura do empreendedor, o trabalhador empresário de si.
Entretanto, isso não acarreta mais estabilidade, direitos ou mais ganhos em termos de
remuneração.
Há, então, diversos tipos de empreendedor: autônomos, com distintos graus
de formalidade, necessidade e precariedade. Desde o trabalhador sem
qualificação alguma que vive de expedientes ou vendendo quinquilharias nas
ruas, ao trabalhador vinculado às novas tecnologias informacionais,
trabalhando de forma desterritorializada, por projetos (LIMA, 2010, p.178).

Trata-se de observar, então, em que medida ter o próprio negócio ou prestar serviços
de alimentação de forma autônoma representam conquistas e melhorias na relação com o
trabalho ou novas formas de subordinação e exploração.
Em seguida, parto das trajetórias de “sucesso” na profissão, ou seja, aqueles/as que
abriram o próprio negócio, e que estou chamando aqui de proprietários/as, considerando as
187

relações de gênero, classe e raça na constituição das carreiras “bem sucedidas”. Ter o próprio
estabelecimento traz outros problemas, um pouco distintos daqueles enfrentados pelos/as
“empregados/as”, do ponto de vista da gestão do negócio, mas as diferenças entre homens e
mulheres, entre pessoas de distintas classes sociais, brancos e não brancos, tem influência
importante nos caminhos que levam a esse status.
Depois, analisarei o que estou chamando de trabalho em serviços de alimentação.
Trata-se de uma gama de atividades, geralmente sob a forma de prestação de serviços (e,
portanto, informal), que demanda um tipo específico de savoir faire (saber fazer), um tipo de
expertise que esses/as profissionais adquiriram por meio da experiência profissional e que
possibilita, inclusive, algum tipo de articulação com outros trabalhos. Aqui, tratarei de dois
tipos de serviço, as consultorias e os serviços de bufê.
Finalmente, discutirei um caso de trabalho em domicílio mediado por plataformas
digitais de alimentação, os aplicativos de encomenda de comida. Ainda observando como as
relações de gênero, classe e raça constituem um espaço social possível para pessoas em um
determinado segmento profissional, essa nova forma de trabalho implica novas negociações,
articulações e justaposições entre os espaços doméstico e profissional.
O objetivo desse capítulo é observar, a partir das descrições de trajetórias, como as
relações de gênero, classe e raça engendram novos arranjos sociais e a divisão sexual do
trabalho está presente nessas recentes formas de autoemprego e trabalho autônomo.

1. Formal ou informal?

O trabalho por conta própria é muito heterogêneo. Por um lado, há os proprietários de


restaurantes. Por outro, o trabalho por conta própria em situações mais precárias e vulneráveis
cresce, muitas vezes por trás do discurso do empreendedorismo, e reproduz formas de
superexploração de si.
No mercado de trabalho brasileiro, a precariedade é um pressuposto, e não uma
condição inédita209. Historicamente, é caracterizado pela informalidade das relações de
trabalho e pela instabilidade dos vínculos empregatícios (GUIMARÃES, 2002, 2004, 2011

209
Utilizo o termo precariedade aqui conforme diferenciação entre precariedade e precarização explicitada por
Márcia Leite (2011: 32): “São trabalhos precários, mas que não obrigatoriamente estão inseridos em um processo
de precarização”.
188

apud VIEIRA, 2018). Desemprego, emprego e inatividade não estão claramente apartados, a
linha que os separa é difusa e há uma miríade de situações intermediárias.
Dentro de um universo de trabalho em que pelo menos metade da população
economicamente ativa está submetida a condições de trabalho desprotegido, vulnerável, sob
constante risco de não receber pagamento/ salário, ou não acessar os direitos associados ao
trabalho, um emprego formal, para muitas pessoas, é um valor em si. Conforme aponta
Priscila Vieira (2018, p.75) “a importância simbólica do trabalho formal sempre foi muito
forte entre nós”.
Segundo proposição de Ludmila Abílio (2019, p.10), “Em um mercado de trabalho
como o brasileiro, a informalidade, a alta rotatividade e os trabalhos temporários são na
realidade elementos estruturantes das relações de trabalho”. O emprego formal representa, na
sociedade brasileira, um caminho de acesso a direitos e cidadania. Jacob Lima (2010) faz
referência à relação entre o trabalho formal e os direitos sociais: “... a questão dos direitos
sociais que foram conquistados nas lutas dos trabalhadores e incorporados numa cultura de
trabalho na qual o trabalho regulamentado, registrado, ‘com carteira’ tornou-se um símbolo do
acesso a esses direitos e de inclusão social” (LIMA, 2010, p.191).
Robert Castel (1998), em seu importante estudo que representou uma inflexão nas
análises sobre a precarização do trabalho, faz uma reflexão sobre a sociedade salarial. Ele
diferencia três condições de trabalho no advento da modernidade: a condição proletária,
operária e salarial, três formas dominantes de cristalização das relações de trabalho na
sociedade industrial, assim como três modalidades de relações que o mundo do trabalho
mantém com a sociedade global.
A primeira, a condição proletária, representa a situação de quase exclusão do corpo
social. Os proletários seriam a personificação da contradição capital – trabalho, caracterizados
por situação de extrema pobreza. A segunda, a condição operária, constitui uma nova relação
salarial, em que o salário deixa de ser apenas a retribuição financeira pela execução de uma
tarefa, mas passa a ser a garantia de direitos e acesso a subvenções extratrabalho, como no
caso de doenças, acidentes e aposentadoria. A terceira, a condição assalariada, tem o salário
como elemento que permite uma participação ampliada na vida social, particularmente nas
esferas do consumo, habitação, educação e lazer. Mas, ainda de acordo com Castel, essa
participação se dá na subordinação, pois mesmo a partir dela esboça-se uma estratificação
complexa: a classe operária passa a ter acesso ao consumo, mas ao consumo de massas; à
habitação, mas a uma habitação popular; à educação, mas à educação básica; ao lazer, mas ao
lazer popular (CASTEL, 1998, p.416).
189

A ideia de que o assalariamento condiciona a participação na vida social, seja a partir


de uma perspectiva de participação política ou associativista, seja em uma perspectiva mais
ampla de sociedade do consumo, remete-nos a outro problema levantado por Marx e também
por Castel, que é a grande parcela da população que não acessa essa condição e, portanto,
subsiste na margem. Para Castel, a relativa integração da maioria dos trabalhadores a essa
sociedade salarial impõe uma distância em relação à força de trabalho que é marginalizada:
ocupações instáveis, sazonais, intermitentes. Esses trabalhadores oscilam de acordo com a
variação da demanda de força de trabalho.
Por exemplo, para pessoas que estão nesse mercado informal, a ideia de ter um salário
fixo, que é pago “direitinho”, sem atraso, possibilita um grau de estabilidade e segurança, para
muitos, inédito. Nesse sentido, enquanto muitos trabalhadores – e trabalhadoras – entendem
que o trabalho “com carteira assinada” é uma prisão que engessa as possibilidades criativas,
para muitos outros, o trabalho formal é a possibilidade de ter uma renda fixa, acessar uma
linha de crédito, alimentar o sonho de um dia se aposentar.
A atual reforma trabalhista brasileira, em curso desde 2017, como observei na
introdução deste trabalho, tornou legais diversas práticas que eram, até então, ilegais. Não
discutirei aqui os pormenores da reforma210, mas vale dizer que o setor de serviços já tinha
como práticas ordinárias uma série de ações que já estavam fora ou contradizendo a lei (como
a extensão da jornada de trabalho, o não cumprimento do banco de horas, o não pagamento de
horas extras, entre outras).
A definição de flexibilidade de Graça Druck (2011: 71) é muito adequada para analisar
o trabalho em cozinhas de restaurantes.

No âmbito do processo de trabalho, a flexibilização se aplica: nos conteúdos


do trabalho, nas jornadas móveis de trabalho (a exemplo do banco de horas e
outros), na remuneração através dos salários flexíveis (parte fixa e parte
variável que chega a representar 60% do total e depende das metas/ objetivos
cumpridos, dos prêmios de produtividade, assiduidade, criatividade etc.); no
posto de trabalho, através da multifuncionalidade ou polivalência; nos
conteúdos do trabalho, redefinidos pelas práticas gerenciais e pelas novas
tecnologias, que inauguram procedimentos e comportamentos em intervalos
de tempo cada vez mais curtos; nas formas de gestão e organização
inspiradas no toyotismo (onde a lógica do just-in-time contamina todo o
processo de trabalho: hora certa, tempo certo, quantidade certa e, portanto,
erro zero, implicando num controle rigoroso sobre o trabalho, é a
‘administração por stress’).

210
O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit-Unicamp) realizou um trabalho
importantíssimo de análise e crítica da reforma trabalhista. Pode ser encontrado em
https://www.cesit.net.br/dossie-reforma-trabalhista/ (acesso em 17/12/2019).
190

Jacob Lima (2010, p.177) elenca algumas possibilidades de institucionalização do


trabalho que poderia ser considerado informal e sua relação com o processo de flexibilização:

Mais do que indicar uma tendência à informalização, a flexibilização aponta


também para novas institucionalizações no mercado de trabalho: da pessoa
jurídica, na qual o trabalhador individual é contratado como se fosse uma
empresa; do crescimento dos autônomos principalmente para trabalhadores
mais qualificados e profissionais que prestam serviços ou trabalham como
consultores onde antes integravam os quadros de empresas como advogados,
psicólogos, dentre outros; de estagiários; de cooperativas formadas por
trabalhadores para as redes de terceirização que, muitas vezes, atuam na
informalidade.

A partir da década de 2000, cristaliza-se um discurso sobre o empreendedorismo, cujas


raízes já podiam ser vislumbradas desde a década de 1990, com a precarização das relações
trabalhistas e ataques aos sindicatos. “Esta reestruturação acarretou uma acentuada
precarização das relações de trabalho em geral e, especialmente, da força de trabalho
feminina” (GONÇALVES, 2011, p.7). Após a consolidação do neoliberalismo no Brasil na
década de 1990, a partir dos anos 2000 o discurso empreendedor é incorporado ao léxico do
mercado de trabalho e passa a ganhar força.
Bárbara Castro (2016, p. 34) demonstra como o empreendedorismo “tornou-se uma
política de destaque nos dois governos (Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef), ajudando
a formar um ethos do empreendedorismo tanto como uma alternativa consolidada ao
desemprego e à informalidade quanto como um incentivo às indústrias de inovação”. A autora
observa como a própria formalização do trabalho por conta própria não acarreta benefícios
para os trabalhadores e trabalhadoras, pelo contrário, tende a rebaixar os vínculos.
Em sua pesquisa com profissionais da Tecnologia da Informação, Castro (2016, p.65)
observa como a jornada flexível é defendida por esses trabalhadores, em uma cidade de
deslocamentos difíceis, como é o caso de São Paulo, porque teoricamente poupa tempo,
porque possibilita conciliar vida pessoal e profissional, porque parece dar mais liberdade.
Entretanto, essa mesma flexibilidade permite que a jornada de oito horas seja excedida
diariamente, sem nenhum tipo de controle com relação a horas extras, nublando as fronteiras
entre o tempo de trabalho e não trabalho.
Como veremos adiante, principalmente entre as mulheres e especialmente entre
aquelas que produzem em suas próprias casas, a fronteira entre o tempo dedicado ao trabalho
e o tempo dedicado à casa, à família e ao lazer se torna difusa. Tal fato também foi constatado
por Castro (2016), inclusive os diferentes impactos nessa gestão do tempo e do trabalho para
homens e mulheres.
191

2. Proprietários/as

Ainda que não tenha sido meu objetivo inicial, ao longo da pesquisa, e principalmente
em função das redes pessoais de contatos, encontrei donos de estabelecimentos, ou sócios,
que se dispuseram a conversar e falar sobre seu trabalho. Ser dono/a de um restaurante ou
outro estabelecimento de alimentação não é uma condição homogênea e existem vários
fatores que influenciam o tipo de trabalho demandado do/a dono/a.
Para muitos/as cozinheiros/as, ter o próprio negócio representa o sucesso. Quase todos
os entrevistados revelaram que um objetivo profissional importante consiste na possibilidade
de ter seu próprio restaurante um dia.

(...) não almejo nem ter um restaurante grande, pra mim tem que ter 5
lugares, 10 lugares. É mais uma coisa de poder receber pessoas que vão
comer o que eu gosto de fazer. Essa é a ideia. Não precisa ser caro, não
precisa ter vinho, nada. Só, tipo... eu tenho uma coisa na cabeça que é uma
mesa bem grande, assim, que as pessoas pudessem conversar comigo
enquanto a gente come211.

Eu tô num projeto, restaurante 100% orgânico aqui em São Paulo que vai
abrir em junho, onde a gente pretende ter uma equipe pequena, sem muito
forfé [corruptela do original em francês forfait, sinônimo de confusão,
festa], dois garçons no máximo, só serviço de água, vinho, onde a gente vai
tentar fazer uma valorização do cozinheiro, tem investidora por trás212.

Eu pretendo, mas assim, quando você tem o seu negócio, você já é


acostumada a trabalhar e ter seu dinheiro todo dia, entendeu? Aí eu falo, ai
meu Deus, acho que eu vou voltar a trabalhar pra mim de novo213.

Eu acho que todo mundo que trabalha em cozinha quer um dia ter uma coisa
sua, até pra você expressar a sua personalidade, você fazer o que você gosta
de fazer cozinhando, mas eu não imaginava que ia ser tão rápido214.

Ter o próprio restaurante aparece no discurso de alguns profissionais como a


possibilidade de ter domínio e controle sobre o próprio trabalho, de poder fazer uma cozinha
autoral, uma maneira de expressar seu estilo. Também aparece como “trabalhar para si”,
associado à possibilidade de poder planejar o próprio trabalho e as horas dedicadas a ele.

211
Lisandra, 30 anos, chef.
212
Matias, 24 anos, cozinheiro.
213
Helena, 49 anos, cozinheira.
214
Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.
192

Considerando, portanto, a percepção dos/as entrevistados/as, de que abrir o próprio


negócio representa certa maturidade na profissão e um tipo de sucesso no trabalho, inicio a
reflexão com as trajetórias daqueles/as que se consideram proprietários/as.
Alguns entrevistados decidiram abrir seus próprios restaurantes porque acreditavam
ter chegado a um ponto em suas carreiras em que esse seria o passo natural, em que apenas
tendo o próprio negócio eles poderiam, de fato, fazer a cozinha que desejavam. Outras
pessoas começaram a prestar serviços para escapar das extensas jornadas e do trabalho intenso
“no restaurante dos outros”.
Entretanto, quando esses/as chefs e cozinheiros/as finalmente abrem seus próprios
negócios, além do trabalho nas cozinhas, eles/as ainda precisam fazer o trabalho
administrativo e financeiro, toda a gestão de um estabelecimento comercial que demanda um
alto investimento e que movimenta certo volume de capital de giro. Isto é, o restaurante
demora em dar retorno.
Ao se tornarem donos/as, geralmente o/a chef ou cozinheiro/a se afasta do trabalho
culinário para se dedicar ao trabalho administrativo, pois não é possível dedicar-se aos dois
em tempo integral. Um eventualmente precisa ser delegado: ou outro/a cozinheiro/a é
contratado/a para cuidar da cozinha, ou alguém da área de Administração e Contabilidade.
Para poder abrir um negócio, muitas vezes é preciso lançar mão de sócios, trazer
outras pessoas para o empreendimento, que aportem mais dinheiro e aumentem o capital, o
que nem sempre se dá sem conflitos. Quanto mais pessoas se tornam sócias e conquistam o
direito de opinar na operação do negócio, maior a probabilidade de haver tensões na
administração. Não são raras as histórias de restaurantes, e muitos outros empreendimentos,
que fecham ou que abrem falência em função de problemas ou brigas entre sócios.
Durante o I Encontro Mundial de Chefs, uma das mesas principais se dedicou a
discutir a formação dos “futuros chefs”. Estavam lá os “atuais chefs”, que emprestavam
prestígio ao evento. A diretora pedagógica do primeiro curso técnico de gastronomia na
Universidade Anhembi Morumbi, que estava na mesa, falou sobre as dificuldades em elaborar
a ementa do curso, em planejar um currículo e como se estruturou tal formação.
O debate rapidamente foi dirigido a questão do empreendedorismo. Muitos chefs
defendiam que as faculdades de Gastronomia precisavam ensinar os alunos como gerenciar
um restaurante. Argumentavam que esse é um conhecimento tão importante quanto conhecer
as técnicas culinárias. De fato, os cursos de Gastronomia não preparam os estudantes para
gerenciarem seus próprios negócios. Existem alguns que oferecem uma introdução à gestão de
193

negócios, bem básico, que apresentam um plano de negócios e algumas noções de


administração.
Abrir um restaurante, entretanto, não é uma tarefa fácil. Entre aluguel, funcionários,
relação com fornecedores, compra da mobília e de todos os utensílios necessários, o capital
inicial é enorme e o trabalho também. De acordo com André,

Hoje em dia, o chef tem um papel muito importante no restaurante, o chef


conhecedor. Porque hoje em dia, se você tem um envelope com 100 mil
euros pra abrir seu restaurante, você gasta 50 mil... não, você gasta 90 mil de
construção, tudo, das coisas... sobra 10 mil pra você comprar os talheres, os
pratos… (…) Aí sobra 10 mil pra você comprar tudo, mobiliar o restaurante,
e ainda tem os fornecedores. E é aí que entra a figura do chef conhecedor.
Porque os fornecedores te dão três meses de prazo. E é a confiança desses
fornecedores também, em ti. A matéria-prima é uma das coisas mais caras no
restaurante. E são esses três meses que faz o dinheiro movimentar no
restaurante. Primeiro mês guarda, segundo mês guarda, terceiro mês guarda,
aí você consegue juntar o capital pra movimentar o restaurante, pagar os
fornecedores.

Para além da gestão da cozinha, que teoricamente é fundamental para que um/a
cozinheiro/a se torne chef, um restaurante (ou mesmo uma lanchonete, um bar) é um grande
desafio de administração: além de conhecer e travar boas relações com fornecedores, gerir um
negócio que se baseia em alimentos perecíveis e uma força de trabalho tradicionalmente
muito rotativa, o “salão” também tem suas próprias questões, como André aponta. O
restaurante é mais do que a cozinha, e essa sozinha já seria complicada o suficiente, de
maneira que saber administrar a cozinha não necessariamente significa que um/a chef pode
gerenciar seu próprio estabelecimento.
Descreverei três histórias aqui, duas na capital paulista e uma em Paris, um homem e
duas mulheres, com o objetivo de analisar como as trajetórias desembocam no trabalho por
conta própria e como as rotinas de trabalho passam a se organizar.

2.1. Daniel

Daniel tinha 32 anos quando o entrevistei, e era sócio de dois amigos em um


restaurante na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Após iniciar o curso de Engenharia
Florestal e desistir, ele passou um tempo no Canadá, onde começou a trabalhar na cozinha de
um restaurante. “Eu fui cair na cozinha quando eu morei fora. Eu acabei virando... ou era
lavar louça ou ir pra fábrica. Eu preferi lavar louça e acabei gostando e toquei daí pra frente,
fiquei na cozinha”.
194

A história de Daniel corresponde à história de muitos/as chefs e proprietários/as que


entram na cozinha como “pia”, como já vimos:

Você não fica só lavando louça. Tem hora que não tem louça pra você lavar,
você vai fazendo algumas coisas dentro da cozinha, aí já vai aprendendo
essas coisas. Começa lavando vegetais, arrumando as saladas, geladeira,
organizando tudo, fazendo pré-preparo de tudo. O que o chef te mandar, você
vai fazendo. E aí vai de você. Se você tá querendo aprender ou não, você vai
perguntando ou não, fazendo molhos, começo de molhos, tudo, aí você vai
começando aprendendo.

Retornando ao Brasil, conseguiu trabalhos em restaurantes e “restaurantezinhos”


(como bares, por exemplo), depois um trabalho em uma universidade que lhe possibilitou
fazer o curso de Gastronomia com bolsa de estudos. Com o curso concluído, ele trabalhou em
diversos estabelecimentos, “um atrás do outro”:

Daniel: Toda vez que eu tô insatisfeito onde eu tô, que eu acho que eu posso
desenvolver um pouco mais e ali não tá desenvolvendo tanto, eu começo a ir
atrás de emprego e sempre me apareceu.
Entrevistadora: Sério? E como que é?
Daniel: Conversando com amigo, conversando com gente que conheci no
meio, gente que já trabalhou comigo, vem me comentar, onde é que tá
precisando, e aceitei o desafio.

No meio de todas essas experiências, em suas palavras, Daniel trabalhou em lugares


muito mal administrados, em que os funcionários eram mal pagos, não tinham condições de
realizar um bom trabalho e que acabaram falindo. Junto com um de seus colegas de faculdade
com quem estava trabalhando, decidiram abrir um estabelecimento próprio.

Ele era o chef de um restaurante, a gente trabalhava num restaurante de


gastronomia contemporânea muito bom e a gente tava de saco cheio
também, porque era muito mal administrado também, e a gente decidiu abrir.
Tinha uma economia cada um dos dois e a gente decidiu abrir. Arranjamos
mais um sócio. Aí a gente veio pegar o ponto e resolvemos abrir o ___. (…)
Foi um negócio muito bom, porque o cara precisava desistir do negócio
mesmo, o preço tava muito baixo. E a gente sentou, tava praticamente pronto
o restaurante, a gente deu uma última decorada nele pra ficar mais bonito
fora e começamos a trabalhar.

Simples assim. Três amigos com três “economias” compraram um lugar num bairro
nobre de São Paulo, próximo ao Parque do Ibirapuera, e montaram um restaurante. Tal
afirmação já nos permite observar um determinado lugar de classe muito específico. Primeiro,
jovens que têm dinheiro guardado. Mesmo tendo viajado para vários lugares do mundo
(Daniel morou no Canadá, na Espanha e na Índia, entre outros países), com uma experiência
195

profissional que não chegava a uma década, os amigos sentiram que era o momento de ter seu
próprio estabelecimento e “aceitaram o desafio”.
Daniel e seus sócios são três homens jovens que conseguiram guardar dinheiro porque
puderam dedicar-se à formação (escolar e profissional) morando com os pais, com a liberdade
de morar em outros países e adquirir experiência profissional. Nenhum deles tinha
responsabilidades familiares com filhos ou esposa, nenhum deles era cobrado a cuidar de
parentes doentes ou que necessitavam de algum cuidado, nenhum deles era responsável por
nenhum trabalho doméstico na casa de suas famílias. Os três jovens, brancos, formados em
Gastronomia em faculdades particulares, conseguiram juntar dinheiro suficiente para investir
no próprio negócio.
No começo da casa, nós três realizávamos entre cozinha, salão e
administrativo mais ou menos, o administrativo sempre ficou muito mais
comigo assim. Mas era sempre meio cozinha e salão, a gente ficava girando.
Agora a gente não trabalha mais na cozinha e nem no salão porque a gente tá
pensando em ampliar.

Na data da entrevista eles já haviam tentado abrir outra unidade do restaurante no


bairro do Ipiranga, e não deu certo, mas estavam avaliando outras possibilidades para tentar
de novo. De fato, durante o horário de almoço de segunda a sexta-feira, o restaurante tem
espera na porta. É um estabelecimento que ficou muito conhecido na região, especialmente
porque fica perto da Assembleia Legislativa de São Paulo, e muitos dos funcionários de lá são
clientes habituais. E como o restaurante vai bem, a rotina de Daniel e seus sócios melhorou
muito também.
Agora a gente tá num ponto que eu não trabalho tanto, eu trabalho menos de
oito horas por dia. Trabalho mais do que cinco dias por semana, mas trabalho
menos do que oito horas por dia, porque eu tenho um gerente. E ele acaba
cuidando da maioria da parte do pessoal do salão e tenho o cozinheiro que
cozinha, que comanda a cozinha. Então, eu tenho um horário mais tranquilo.

Contando com uma clientela praticamente fixa e uma equipe de trabalho que ele
considera ótima, Daniel e seus sócios têm a possibilidade de se organizar para investir em
outras filiais do restaurante, assim como se dedicar ao salão, ou seja, conversar com clientes,
circular pelas mesas, atender pessoas ou famílias que já frequentam a casa215. Seu trabalho de
proprietário não corresponde mais ao trabalho de cozinheiro, nem ao de chef. Ele acompanha

215
Realizei a entrevista com Daniel em seu próprio restaurante num fim de tarde, justamente no período em que
a equipe do almoço está saindo e a equipe do jantar entrando. Além dele, conversei com o sous-chef e uma
auxiliar de cozinha, e também tive a oportunidade de observar um pouco o movimento no restaurante fechado.
Segundo a entrevista com os funcionários, o clima de trabalho era ótimo, pois todos já se conheciam de outros
restaurantes. Pude observar que eles conversavam com bastante intimidade e, a meu ver, até amizade. Em outra
oportunidade em que estive no estabelecimento, pude ver Daniel no papel de dono, circulando entre as mesas,
conversando com clientes, apresentando o menu etc.
196

o fluxo das compras, do caixa, onde o dinheiro é investido, mas nem entra mais na cozinha
(raramente, no bar).
O restaurante de Daniel representa um pouco o sonho daqueles que querem ter seu
próprio negócio. Ele e seus sócios servem a comida que decidiram servir, elaboraram o
cardápio conforme seus gostos, decoraram a casa como acharam melhor e o negócio deu
certo. O restaurante tem duas equipes de funcionários, uma para o serviço do almoço e outra
para o jantar. Pelo que notei, ao entrevistar dois funcionários da casa além de Daniel, eles
pareciam muito satisfeitos com o trabalho. Ambos (Vitor e Elisa) comentaram a boa relação
que tinham com os colegas e com o próprio Daniel, com quem Vitor, por exemplo, já havia
trabalhado em outras cozinhas. Eles também afirmaram estar satisfeitos com seus salários
(entre 1.600 e 2.300 reais).
Por sua posição de classe bastante privilegiada, os três jovens sócios conseguiram se
tornar proprietários relativamente rápido. A experiência que adquiriram trabalhando em
restaurantes na capital paulista e em outros países, assim como o curso de tecnólogo em
gastronomia, foram suficientes para que se sentissem aptos a abrirem seu próprio restaurante
e, baseados no conhecimento que tinham, suas próprias economias (já que viveram na casa
dos pais pelo menos até o momento da entrevista) e algum apoio financeiro familiar,
obtiveram sucesso.

2.2. Samira

As irmãs Samira e Isabel são proprietárias de um restaurante no bairro do Paraíso, não


muito longe de onde está o estabelecimento de Daniel. As duas vieram para São Paulo saídas
do Líbano ainda crianças, logo que o pai, brasileiro, morreu. Para as irmãs, a cozinha e o
trabalho culinário têm um valor muito sentimental, que remete à mãe, síria criada no Líbano,
à migração, à vinda ao Brasil, uma comida associada ao cuidado.
Isabel fala sobre a situação da família após a morte do pai, no Líbano.

Sim, você não é filha do solo, tem que seguir o sangue do teu pai. Então, no
navio a mamãe falava “Chegando no Brasil nós vamos abrir um restaurante,
a Samira vai ficar comigo na cozinha”, meu irmão, ele ia ficar no caixa, eu ia
ser a relações públicas. Então pra cada filho ela já tinha dado uma função.

Samira aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre a ensinou, e apenas a ela. Abriu
seu primeiro restaurante em Curitiba (PR), por insistência do ex-marido.
197

Então, ela [a mãe] que sempre me incentivou, ela “Samira vem, vem
aprender a fazer quibe frito”. Aí eu falava “mãe, pra quê?”. “Não fala isso
filha, amanhã você vai crescer, você vai casar, você vai precisar fazer festa
para os seus filhos... Então o quibe tem que estar presente”. “Olha, abre
assim”, e eu ficava olhando, ajudava ela abrir, ela fechava, porque não
conseguia... a boca do quibe na hora de fechar, deixava ele muito aberto... E
ela falava “Olha, usa esse dedo...” E aí eu fui, casei, e fui morar lá no Paraná.
Aí eu tive essa minha filha, mas aí meu ex-marido falou “Samira, vamos
abrir um restaurante, você faz um quibe gostoso”, eu falei, “Eu faço quibe
pra nós”, “Não, mas vai treinando...” Aí olha, a mamãe antes de... claro,
antes dela morrer, ela falou “Samira, eu te ensinei a fazer o quibe, mas eu
não consigo abrir como você abre, você me superou”. Ela falava, “igual ao
quibe de você frito, eu nunca comi na minha vida”.

Ela também descreve o incentivo de parentes e amigos que elogiavam sua comida
como um elemento importante na decisão de abrir um restaurante em outros momentos da
entrevista. Vale ressaltar, neste trecho, a resposta que ela oferece ao marido, “eu faço quibe
pra nós”. Sua concepção de cozinhar, apesar do sonho da mãe e do desejo do marido, era
cozinhar para aqueles e aquelas que estão próximos, as pessoas da família. A comida é boa
porque é feita com carinho, carregada de sentimento pelas pessoas queridas que vão comer,
ela faz o quibe “pra nós”. Essa é uma característica importante para o tipo de comida que
Samira faz. Depois de se separar e sair de Curitiba, ela veio morar em São Paulo e abriu um
restaurante com a irmã, como a mãe sonhava. Isabel atende os clientes e Samira cuida da
cozinha. O restaurante ficou famoso, ganhou diversos prêmios e indicações em guias
gastronômicos brasileiros, serve apenas almoço de segunda à sábado e atende, no máximo,
cem clientes por dia.
O estabelecimento é muito pequeno, tem apenas três mesas do lado de dentro e três do
lado de fora, ou seja, é possível atender no máximo 30 pessoas por vez. A fila na porta do
restaurante já é tradicional: aos sábados, quando fica mais cheio, o irmão atua como “gerente
da fila” e ajuda a organizar a espera. Meio-dia: por volta de 20 pessoas já estão esperando a
vez para entrar.
E olha, as pessoas vêm aqui, fala “com toda a espera que a gente...valeu cada
minuto”. E uns falam assim... “Não aumenta. Deixa assim, as coisas ficam
bem aconchegante”. Porque eles acham que, realmente, se aumentar... Olha,
na verdade eu gostaria, apesar de que, com o giro assim, gente saindo,
entrando, a gente consegue fazer umas 110 pessoas, mas o máximo... aqui
cabe quanto? Vinte e pouco, Isabel? Podia ser um lugar para 40 pessoa, né?

Mas a espera, o tamanho do restaurante, o tratamento que Isabel dispensa aos clientes
e a própria comida ajudam a criar um clima muito acolhedor e, em alguma medida, caseiro.
Conseguir almoçar mais tarde no restaurante das irmãs, entretanto, pode trazer alguns
prejuízos. A sobremesa mais famosa da casa, uma criação de Samira, é limitada e existe a
198

possibilidade de terminar o almoço e não ter mais. Ela não vai fazer mais, não vai sair outra
daqui a pouco: acabou. E mesmo assim, as filas na porta estão lá todos os dias, e quem vai ao
restaurante uma vez, costuma voltar.

Isso que todo mundo fala: “por favor, não saiam daqui”. Porque o lugar é
simples, modesto, nós não temos conforto, não temos regalia, vamos supor,
eu não tenho maître, não tenho carta de... de vinho, não tenho couvert, não
tenho manobrista. Então, isso tudo afeta. Mas olha, as pessoas falam “olha,
pra gente tá ótimo”. Por quê? É a comida.

Apesar do sucesso do restaurante, as irmãs preservam o modo de preparo e


atendimento aos clientes, o que pode não ser a melhor opção do ponto de vista comercial –
seria possível expandir e ganhar mais – mas que condiz com a vida que elas querem levar e o
que esperam do trabalho.

Uma coisa que eu quero te contar, quando eu abri aqui, isso em 99, meu
irmão veio “Você vai trabalhar aqui? Tão pequeno, você tá louca? Com a sua
comida, vai pra 25 [Rua 25 de Março], você vai ficar milionária”. Vem cá,
não é isso que eu quero. Eu não quero ficar milionária, eu quero que o povo
coma a minha comida, como a mamãe desejava também.

Isabel e Samira moram juntas, assim como a filha de Samira e seu neto pequeno, num
apartamento próximo ao restaurante, o que por um lado facilita a vida e o deslocamento das
duas, mas por outro nubla as fronteiras entre tempo de trabalho e de descanso.

Samira: Então, aí eu chego aqui umas 9:15, daí eu vejo... porque, aí eu


tenho que fazer o trigo, aí já pego a carne já tá cozida, eu vou só começar a
preparar ela, aí também eu vejo as pastas... isso numa segunda. Aí também,
daqui a pouco eu entro na cozinha também preparo alguma coisa para
amanhã, se não aqui, agora vou para casa, mas na minha casa eu também
preparo coisas pra cá.
Entrevistadora: Vocês moram aqui perto?
Samira: É na outra esquina. Aí vou vendo, tenho que fazer um doce, tenho
que fazer a coalhada, então eu faço em casa, isso tem que deixar pronto lá,
porque aqui não tem lugar.

O restaurante fecha por volta das 15h, há ainda a limpeza e arrumação antes de
encerrar o dia, mas o trabalho continua, principalmente para Samira. Existem preparos que
precisam ser feitos com um dia de antecedência (“a carne fica melhor de um dia pra outro”),
então já está planejado que uma parte do trabalho vai ser feito na cozinha de casa. É difícil
para ela contabilizar quantas horas ela trabalha por dia.
Ao fim da entrevista, com o gravador desligado, ela me disse que a referência é a
novela turca (exibida diariamente na TV aberta): as irmãs são fãs da novela que começa por
199

volta das 20h30, e, portanto, qualquer trabalho vai até esse horário. Além do trabalho na
cozinha do restaurante e na cozinha de casa, Samira também prepara a alimentação da família.

Olha você pode perguntar pra todos aqui, que...são meus parentes, mas... a
comida que eles comem aqui, árabe, come a mesma coisa em casa. Quer
dizer não... lá em casa vou por melhor o tahine? Não. Eu não sei fazer
diferente.

Entre as irmãs (e o irmão) há uma certa divisão do trabalho: Samira cuida da comida
(além do preparo, controle dos insumos, ingredientes, lista de compras e supervisão dos
ajudantes) e Isabel do caixa e do dinheiro do restaurante. Ela cuida das compras, faz sugestões
de mudança quando algum dos ingredientes fica muito caro, administra os gastos. Trata-se de
um negócio familiar.
Todavia, a administração familiar e a comida afetiva não são o suficiente para mudar
algumas características do trabalho culinário que afetaram a saúde de Samira. Ela já teve
problemas de tendinite, bursite e operou o pulso com síndrome do túnel do carpo. Hoje,
algumas tarefas mais braçais e repetitivas, como abrir o quibe (processo de abrir a massa com
um rolo, fechar e tornar a abrir, repetindo três vezes), “é o rapaz que faz” - um ajudante que,
sob a supervisão de Samira, realiza o trabalho que ela não consegue mais por questão de força
física e lesão muscular.

Samira: Porque eu já operei até o túnel do carpo.


Entrevistadora: Ah, túnel do carpo. Será que foi por causa do trabalho?
Samira: Certeza.
Isabel: Mil por cento.
Samira: Bursite... também tive... quando, olha, enquanto eu fazia eu não
sentia dor, nessa mão, de abrir o quibe. Agora quando eu parei, que eu achei
esse rapaz, não deu dois meses, eu não conseguia fechar a minha mão. Aí
quando o médico viu, ele falou “Samira, é uma coisa muito crônica que você
tem, você vai ter que operar”, falei “Meu Deus!”. Aí me deu uma injeção, até
agora tô conseguindo levar, mas eu acho que daqui a pouco... que agora só
de carregar ele já sinto dor. (…) Eu tive já duas tromboses e de ficar em pé,
apesar de que assim, é muito tempo em pé e tem peso em cima, também
ajuda. Eu não consigo fazer nenhuma atividade, porque eu saio daqui vou
para casa, agora também não quero fazer. Uma, que eu tenho preguiça, outra,
quero ficar perto dele [o neto]. Então, eu vou para casa. Eu uso meia direto.
Ahn, passa. Sabe, tá passando tão rápido, as tardes... eu não sinto.

Essa também é uma razão pela qual elas preferem não aumentar a cozinha do
restaurante e garantir que todos os pratos sejam preparados por Samira.

Você não vai ver isso, se eu sair daqui e colocar alguém no meu lugar,
entendeu? Aí se eu achar que alguém, ah vai cozinhar igual a mim? Que
modéstia à parte... você pode até aprender, mas você nunca vai ter o meu
paladar.
200

Nesse sentido, o negócio familiar articula relações pessoais com relações de trabalho e
comerciais. A administração do restaurante e a da casa andam juntas, o trânsito de amigos e
parentes na casa e no restaurante também são indissociáveis, a comida preparada em casa e no
restaurante é praticamente a mesma. Ainda que Samira relate problemas de saúde, cansaço,
falta de ânimo de fazer outras atividades que não seja cozinhar, estar próxima da família,
principalmente da filha e do neto, é o que ela mais quer nesse momento e a rotina de trabalho
que ela e a irmã organizaram permite isso.
A família está presente no restaurante tanto quanto na casa. As fronteiras entre o
trabalho e o espaço doméstico se confundem, e a forma de lidar e organizar o trabalho revela
a prioridade que a família assume diante do negócio. Do ponto de vista de mercado, seria
possível que elas expandissem, captassem mais investimentos, aumentassem o espaço físico
da cozinha e do restaurante, contratassem mais pessoas para trabalhar na cozinha, abrissem
filiais, por exemplo. Mas a prioridade é ter tempo para a família.
No caso das irmãs, é possível enxergar tal dedicação a partir da divisão sexual do
trabalho, que, como discutimos no terceiro capítulo, relega as mulheres ao espaço do lar e do
cuidado, enquanto aos homens cabe o espaço público e profissional. Não se trata de uma
correspondência direta, mas de um determinado tipo de arranjo no qual, mesmo tendo um
comércio bem-sucedido, o que determina os limites do negócio é o espaço doméstico e as
responsabilidades que elas assumem no âmbito familiar.

2.3. Mariana

Mariana é dona de um pequeno restaurante de comida brasileira em um mercado


municipal em Paris. Formada em Jornalismo, trabalhou por um tempo em editoras no Brasil,
escrevendo sobre gastronomia. Incentivada por sua editora, decidiu fazer o curso de
Gastronomia e saiu do mundo das notícias para se dedicar ao mundo das panelas. Com
dificuldades, concluiu o curso e fez estágios no Brasil, até decidir-se por curso
profissionalizante na França.
Então, eu trabalhei como auxiliar de cozinha num hotel, em São Paulo,
chamado ____, na Barra Funda, depois eu estagiei em alguns outros lugares,
o _____, no _____, conhecido também, o chef chama Gabriel alguma coisa.
Enfim, trabalhei em paralelo, fiz muito extra de cozinha, porque eu ficava
tentando conciliar, pagar as contas: eu fazia freela de jornalismo, extra de
cozinha e no meio tempo eu tentava estagiar, porque na época o ___ é não
remunerado, totalmente.
201

Como vimos no segundo capítulo, os estágios não remunerados acarretam problemas


para aqueles/as que não têm uma rede familiar para pagar estudos e o próprio sustento.
Mariana, por exemplo, tinha de conciliar o estágio não pago e mais dois tipos de trabalho,
marcadamente informais, freela e “extra”, para fechar as contas.
Uma vez terminada sua graduação em Gastronomia, decidiu fazer um curso na França,
para incrementar seu currículo, pois acreditava que sua idade seria um empecilho para
conseguir emprego.
Não que eu sou velha, porém para a cozinha, um pouco... uma idade um
pouco mais avançada, porque geralmente o pessoal começa muito novo, né?
Ia ser bom pra mim dar um up na França, fazer um curso lá, porque vai ser
super-reconhecido no Brasil e aí eu vim fazer Ferrandi, eu fiz Escola
Ferrandi aqui, estudei por um ano.

O curso, voltado para estrangeiros, consistia em seis meses de aula e seis meses de
estágio. Mas Mariana não se adaptou ao trabalho nas cozinhas da França, segundo ela “muito
rigoroso, muito rígido”. Ela contou alguns episódios de assédio e violência, afirmou que se
sentia discriminada por ser estrangeira. Ela não queria mais trabalhar em restaurantes e
começou a vender comida pronta e pratos típicos brasileiros, como acarajé, em casa. Ela
divulgava no Facebook e tanto brasileiros quanto franceses procuravam seus produtos.
No mercado municipal, conheceu outra brasileira que já tinha um restaurante lá e que
estava vendendo o ponto. Mobilizou família e amigos, conseguiu o dinheiro e comprou o
ponto. Apenas quatro meses após a compra, já tinha uma funcionária (brasileira), e se
organizava para pedir um empréstimo e reformar o restaurante (uma exigência da prefeitura).
Tudo isso foi possível graças ao seu esforço e trabalho, sim, mas também à mudança
do seu status de estrangeira por meio do casamento com um francês. Mariana é uma cidadã
legalizada e, portanto, goza das benesses e incentivos do governo francês para ser
autoentrepreneure (autoempreendedora, em tradução livre), inclusive tem condições para
fazer um empréstimo no banco.
Mariana decidiu investir tudo que tinha e captar recursos para abrir o próprio negócio
porque não queria mais trabalhar em cozinhas de outros restaurantes. Queria trabalhar em
outro ambiente e teve condições para construir isso por si própria.

Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método
de seleção. Não é o que a gente faz aqui, por exemplo. Por isso que eu quis
partir pra abrir o meu próprio negócio, porque eu não acredito nisso. (…)
Esse ambiente é um ambiente muito tóxico, em alguns lugares. Quanto
maior o restaurante, esses restaurantes estrelados, mais tenha certeza que vão
ter estagiários que eles exploram, que eles não remuneram ou remuneram
202

muito mal. Meu estágio aqui [na França] foi remunerado, mas eu trabalhava
das 8h da manhã às 15h da tarde, pausava, depois eu entrava às 5h da tarde e
ficava até 1h da manhã.

Mariana descreveu uma série de problemas de saúde em decorrência do tempo que


trabalhou como auxiliar de cozinha e estagiária, como tendinite, torcicolo, lombalgia, alergia
à acidez de frutas cítricas (consequência de dias seguidos fazendo suco de laranja) e insônia.
Na sua opinião, a forma como o trabalho é realizado na cozinha e a maneira como se exerce
um comando é desnecessária, exagerada.

Carregar coisas que são muito mais pesadas do que... não há necessidade.
Hoje em dia nós somos duas mulheres na cozinha aqui, a gente tem coisa
pesada pra carregar, e a gente não tá morrendo. Mas é porque te pedem pra
fazer numa rapidez que... como é que você carrega uma coisa mais pesada
que você? Com rodas, com rodinha da lixeira. Mas ninguém tem paciência
pra isso, então você acaba tentando fazer um esforço que você não consegue,
e dá nisso.

As condições de trabalho para pessoas não francesas, segundo ela, são piores.

Eu acho que é pior quando é estrangeiro. Quando é mulher e quando é


estrangeiro. Se você é mulher e estrangeira... você tem que ser... ou você tem
que ser o que eles esperam que você seja, tipo demonstrar ser uma coisa que
você não é, ou é pior. Eu tenho vários colegas homens, mais asiáticos, que
fizeram Ferrandi comigo, que sofreram horrores nos seus estágios. Mas eles
também fazem isso com franceses. O outro menino que estagiava comigo
nesse restaurante era francês e ele era maltratado que nem a gente.

Nas cozinhas brasileiras, ela relatou casos de assédio moral e sexual, inclusive de um
chef que a difamou e disse para os funcionários que eles namoravam quando ela estava
afastada por problemas de saúde. Na França, ela disse que era muito difícil encontrar
mulheres nos cargos de chefia e que havia um discurso de fragilidade feminina, inclusive na
Escola Ferrandi, em que os professores diziam que havia determinados trabalhos que “não são
pra menininha”.
Aqui, por exemplo, quando eu abri, eu tinha um funcionário que era homem,
uma pessoa extra comigo que era homem. E todo mundo achava que era ele
que cozinhava, mas ele não cozinhava nada, ele só limpava e lavava a louça,
que não tinha máquina de lavar ainda. Mas todo mundo achava que era ele
que era o chef ou o cozinheiro.

Por muito tempo, Mariana afirma ter lidado com esses problemas e com o machismo
contando com a rotatividade no setor: “…a coisa boa da cozinha é que você consegue
emprego muito rápido, tem uma rotatividade muito grande. Toda vez que eu percebia que não
tava bom, eu caía fora”.
203

Nesse sentido, mesmo entendendo os riscos de abrir um restaurante e com pouca


experiência profissional na área, Mariana optou por sair do lugar de “funcionária” e abrir seu
próprio negócio, para tentar “fazer diferente”:

Quando eu tive a oportunidade de fazer diferente, eu tentei fazer diferente.


Eu acho que foi uma das coisas que me motivou a abrir um espaço meu,
porque eu senti, eu sempre soube que eu não ia aguentar muito tempo nesses
ambientes. Então ou eu ia achar um restaurante maravilhoso, que me
contratasse, que eu me sentisse superbem, e eu trabalhei em lugares
superlegais, mas nenhum "oh, meu deus, que lugar ótimo, quero ficar aqui
pra sempre”.

Suas experiências como empregada e estagiária em outros restaurantes foram mais


difíceis e mais traumáticas do que abrir e gerir um negócio em outro país. Mariana tem uma
relação muito boa com sua “assalariada”216, que ela declara ser fundamental para poder se
concentrar em outras questões do negócio. Relações de trabalho mais horizontais, menos
hierárquicas e menos rígidas, ainda mais quando se trata de cozinha onde trabalham apenas
duas mulheres, permitem que haja trocas de tarefas e responsabilidades entre elas, sem
grandes problemas. Para Mariana, ambas conseguem resolver tudo “na conversa”.
Evidentemente, a ajudante não assume as tarefas administrativas do restaurante, como
o fluxo de caixa, manejo de dinheiro, documentação e outras responsabilidades que Mariana
divide com o marido e uma contadora, que cuida da parte financeira e, principalmente, dos
impostos.
Então, aqui não é muito um exemplo pra todo mundo, porque eu faço muita
coisa. Mais do que eu deveria fazer. A Lik faz muita coisa também, acaba
que a gente é supercarregado por a gente ser pequeno e por a gente estar no
início. (…) Então eu não tenho como estocar nada, então eu tenho que fazer
compras toda semana. Toda semana que tenho que fazer as compras da
semana, mas acaba que... hoje mesmo a Lik teve que ir comprar leite
condensado, a gente acaba tendo que sair, ir ali e aqui pra comprar alguma
coisa. Eu tenho uma jornada dupla, porque obviamente que eu faço a parte
toda aqui, mas também tem toda a parte de planejamento, internet,
publicações no Facebook, Instagram, cartaz que muda toda semana, qual que
vai ser o menu da semana. Então é bem mais longo do que seria uma rotina
normal. Mas eu sou a proprietária, né, então é normal que eu tenha esse
trabalho.

216
Tive a oportunidade de conversar com Lik informalmente, num dia que fui ao restaurante e Mariana não
estava (havia ido ao hospital tratar de uma crise de dor nas costas). Não conseguimos agendar uma entrevista,
como eu gostaria, mas ela confirmou que tem uma relação boa com a chefe e que se consideram amigas.
204

Manter o negócio pequeno e dar conta da demanda que não se restringe aos
brasileiros, nem ao restaurante217, é um grande desafio. Uma das exigências da Mairie de
Paris (prefeitura) para ter seu estabelecimento é a realização de uma reforma, para a qual ela
ainda estava se organizando financeiramente. Essa ação será fundamental para aumentar seu
espaço de estoque e armazenamento, que ainda é bem reduzido, o que a obriga a fazer
compras em pequenas quantidades. Ela não pode se beneficiar das vendas por atacado nos
grandes mercados de abastecimento218, e acaba pagando mais caro por alguns produtos.

Então, a gente tem uma lógica de compras bem complicada. Não dá pra
entregar sempre, porque às vezes não é uma quantidade tão grande. Meu
marido tem uma bicicletinha com uma cestinha e ele vai, eu faço a lista, a
gente faz a lista juntas, ela vai me dizendo o que não tem, depois eu olho, o
que tem que repor, o que tem fixo no cardápio, o que é do menu da semana, a
gente também já planeja. E ele vai fazendo os allé retour [ida e volta], ele
vai comprando e traz. Aí eu venho na segunda, mesmo sendo o nosso dia de
folga, pra poder guardar tudo, já meio que deixar arrumado pra na terça não
ter que vir tão cedo. No início eu ficava na segunda fazendo recheio de
pastel, mas uma hora eu falei “não, eu preciso ter pelo menos meio dia de
descanso”, né, porque as compras são feitas na segunda.

Nesse trecho, é importante ressaltar a expressão “preciso ter pelo menos meio dia de
folga”. Sua ajudante tem um dia de folga na semana, mas como proprietária, o dia de folga
serve para Mariana fazer a parte do serviço que não consegue durante os dias que o
restaurante está aberto: as compras. Quando ela diz “não dá pra entregar sempre”, refere-se às
compras on-line que ela faz na segunda-feira, assim como pessoalmente. Dedicando meio dia
a essa atividade, ela passava a outra metade no restaurante, adiantando preparos para a
semana, até perceber que isso significava não descansar em nenhum momento.
Seu marido é um parceiro importante no negócio. Mesmo que eles não tenham carro e
nenhum dos dois saiba dirigir, a “bicicletinha” garante as compras, principalmente de última
hora. Ele também precisa dedicar um tempo ao restaurante, embora seja funcionário público
com uma jornada de trabalho diferente. Mariana ressalta que ele tem uma certa flexibilidade,
permitindo que ele a ajude, especialmente em “emergências”, quando ocorre um imprevisto,
como acabar um ingrediente.

217
Mariana também faz feijoada e acarajé para servir em eventos. Encontrei-a em uma feira organizada por
brasileiros mobilizados por conta das eleições presidenciais, em outubro de 2018, e ela estava vendendo feijoada,
com a ajuda do marido. Nesses dias, o restaurante fica fechado.
218
Paris tem um dos mais importantes mercados de abastecimento da França, o Marché de Rungis, fechado para
o público comum e aberto apenas para empresas e negócios. É possível conhecer mais sobre o mercado em
https://www.rungisinternational.com/ (Acesso em 20/01/2020).
205

A participação do marido na gestão do restaurante é fundamental. A organização do


negócio como um empreendimento familiar fica mais clara a partir do momento que Mariana
explica uma das razões pelas quais optou pelo negócio por conta própria.

Mas no longo prazo, eu pensei, assim, não abrir um restaurante brasileiro,


mas no longo prazo eu queria ter uma coisa que eu pudesse ter horários mais
flexíveis e trabalhar pra mim mesma. Porque eu queria ser mãe. Queria,
quero. Eu não tenho filhos ainda. Eu queria ter filhos, e essas coisas todas
que quando você trabalha em cozinha é muito difícil de conciliar quando
você é empregada de um... Mulher quando vai ter filho em empresas normais
já é um drama, imagina em cozinha que você não vai ficar lá com barrigão...
tem toda uma coisa de você estar trabalhando com seu corpo. E aí eu
pensava, eu sonhava, eu idealizava, "um dia...".

Em sua percepção, para começar uma família ela não poderia estar submetida às
jornadas e às condições de trabalho de uma cozinha comum. Para além do “barrigão”, trata-se
de um trabalho que não acolhe muito bem mães com bebês ou crianças pequenas (como
vimos no capítulo 3). A ideia de que o restaurante é um empreendimento familiar e que será
possível conciliar a gestão do negócio com os cuidados de uma criança pequena motivam
Mariana.
Não sei não, por agora a gente não tá tentando [engravidar], porque
obviamente não ia dar, porque agora tá difícil. Mas assim que aqui estiver
mais estável, não deve demorar muito, eu já tô com 31. Acho que daqui pro
ano que vem a gente começa. Vontade os dois têm, mas começar a tentar
efetivamente… (...) Aqui é pequenininho, eu não tenho pretensão de virar
grande. Aqui é restaurante familiar. Então quando a gente tiver filho... tem a
sorte do meu marido ter horários flexíveis, então acho que ele vai poder
fazer esse corre depois da escola, antes da escola. Não acho que é tão
complicado quanto seria ter um filho no Brasil. Acho que aqui é mais fácil.
Já tem o horário da escola que já é mais comprido.

Seu planejamento conta com a estrutura dos serviços públicos na França, onde há
oferta relativamente próximas de creches e escolas infantis, assim como um horário de
atendimento estendido – possibilitando que Mariana e marido se organizassem quanto aos
horários para se dividir nos cuidados. E, se tiver filhos, ela pretende que a sogra esteja
presente.
Assim como as irmãs Ana e Samira, os objetivos de Mariana com o negócio são
mantê-lo com uma capacidade tal que seja possível conciliar trabalho com vida pessoal e
familiar. Como afirmei no início do capítulo, nem todo/a cozinheiro/a sonha ter um
restaurante estrelado, famoso e ficar rico. Há muitos/as que querem fazer um bom trabalho,
uma cozinha com a qual se identifiquem, e articular outras esferas da vida com a profissional.
206

É interessante notar, entretanto, como se articulam as relações de gênero nesse sentido.


As mulheres organizam seus negócios para chegarem a um determinado ponto, no qual suas
vidas pessoais e famílias impõem limites. Já no caso de Daniel, ele e os sócios já estão
organizando a abertura de filiais do restaurante, pensando em como ampliar a receita e criar
um nome para si.
Mesmo quando as mulheres se tornam proprietárias do estabelecimento, ou seja,
quando não estão necessariamente submetidas a um/a chef tirânico/a ou a um ritmo de
trabalho em equipe, elas encontram mais dificuldades para equilibrar vida pessoal e
profissional (como também observou Bárbara Castro [2016]). Seja porque continuam tendo
muito mais responsabilidades e obrigações com relação ao trabalho doméstico e de cuidados,
seja por um sentimento subjetivo de querer estar mais em casa com a família (essa questão foi
discutida no capítulo 3).

3. Serviços de alimentação

Em um mercado de trabalho caracterizado pela rotatividade e pela precariedade dos


vínculos trabalhistas, como é o caso dos cozinheiros e cozinheiras, não são raras as situações
em que as pessoas se veem obrigadas a conjugar vários trabalhos ao mesmo tempo para
conseguir complementar renda suficiente para se sustentar e a sua família.
Estou chamando de “serviços de alimentação” uma série de atividades geradoras de
renda, nas quais os/as cozinheiros/as se engajam, seja trabalhando em suas próprias casas e
vendendo comida pronta, as “marmitas”, seja vendendo produtos sob encomenda ou mesmo
organizando e produzindo eventos no bairro. O que estou chamando de serviços de
alimentação são trabalhos que expressam a flexibilidade e a precariedade do mercado de
trabalho brasileiro, obrigando, muitas vezes, esses/as profissionais a realizarem buscar
trabalhos extras e atividades que geram alguma renda.
Provavelmente em função dos baixos salários, é preciso conjugar o trabalho
formalizado, “com registro”, que cumpre uma determinada jornada e garante um salário ao
fim do mês, com outras atividades que podem oferecer alguma renda complementar. Matias,
25 anos, é primeiro cozinheiro de um restaurante sofisticado no bairro dos Jardins, em São
Paulo. Ele trabalha no serviço do jantar (das 16h à meia-noite), mas produz iogurte e pães de
fermentação natural para vender no período da manhã.
207

Se bem que eu me viro por fora. Eu vendo iogurte, vendo levan que é
fermento natural pra pão, vendo pão, faço sobremesa sob encomenda, fico
fazendo essas coisas. (...) Eu trabalho aqui das 4h à meia-noite, que é o
horário basicamente que acaba 1h da manhã, daí em casa eu trabalho das 7h
da manhã até meio-dia, vou buscar minha esposa219.

O tempo de descanso é dedicado a produzir comida em casa para vender, assim como
divulgar esses produtos para amigos e familiares em redes sociais.
Vitor é sous-chef em um restaurante na Vila Mariana, em São Paulo, mas divulga seu
trabalho de catering em Taboão da Serra (SP), onde mora, e nos domingos de folga faz
“bicos”.
Vitor: De vez em quando eu faço uns eventos por conta mesmo, um
casamento pra fazer, um aniversário, um noivado.
Entrevistadora: Ah, você faz tipo bufê? Não dá muito trabalho isso?
Vitor: Dá, só que eu alugo o material e, então eu pego o quê? Duas pessoas
pra me ajudar na cozinha, e dois garçons, muitas vezes também se não achar
garçom, à noite eu faço comida, durante o dia eu faço, preparo, e na hora de
servir eu também eu vou pro salão, trabalhar de garçom. (...) É por
conhecimento também, né, que eu faço um cartazinho e vou lá onde eu
moro, na minha região, vou botando cartazinho pra um, pra outro. Aí a
pessoa vê e gosta, aí fala "ah você faz um aniversário, sei lá", não faço assim
se é grande, pra 200 pessoas, aí não dá. O máximo que eu já fiz foi 100,
80220.

Vitor estava há três anos no mesmo restaurante na Vila Mariana. Tinha uma relação
muito boa com os colegas, principalmente com um dos sócios do restaurante – com quem ele
trabalhou em outra cozinha, e ganhava um salário que considerava bom (R$ 1.600), mas ainda
assim dedicava seu tempo de folga para fazer “uns eventos por conta mesmo”. E não sem
trabalho, pois ele relata o preparo de bufê para festas com até cem pessoas, além de alugar
mesas, cadeiras, talheres, contratar pessoas para ajudar no preparo e no serviço, e a
possibilidade de que ele mesmo, depois de preparar tudo, trabalhe como garçom.
A maneira como Vitor organiza sua vida para conciliar trabalho formal e informal é
reveladora de como essas formas de trabalho se articulam e complementam, sem
necessariamente se contraporem, para uma mesma pessoa. O serviço de bufê que oferece em
seu bairro é planejado para ser feito nas folgas, o que só é possível a partir de uma mínima
organização que seu emprego formal e sua boa relação com a equipe e chefia proporcionam.
Entretanto, organizar eventos, preparar jantares e trabalhar como garçom no período de folga
acarreta outros problemas, como falta de descanso ou lazer. É importante salientar que Vitor

219
Matias, 25 anos, cozinheiro.
220
Vitor, 32 anos, sous-chef.
208

não é responsável pelo trabalho doméstico em casa, nem o preparo das refeições da família, o
que otimiza seu tempo “livre”.
A chef Lídia221 tem aceitado convites para apresentar receitas em um programa
vespertino da TV Gazeta como forma de criar um nome para si e para seu negócio de comida
preparada. Há alguns anos ela trabalha oferecendo coffee break para eventos e pretende se
consolidar nos aplicativos de entrega de comida com pães e antepastos. No momento da
entrevista, além dos coffee breaks, ela também aceitava “fazer eventos”, mais ou menos da
mesma maneira que Vitor.
Ela prepara jantares e almoços para encontros que vão desde festas de família a
casamentos de pequeno porte, cuidando da comida (canapés, entradas, pratos principais,
sobremesas, bolo etc) e todas as outras coisas necessárias. Para isso, teve de investir em uma
reforma na cozinha de casa.
Sobre o trabalho de gestão, Lídia conta com uma aliada que ajudava na “parte
administrativa” do negócio, sua irmã, bacharel em Administração. Sem precisar se preocupar
com a contabilidade, pagamento de taxas e impostos, tendo alguém de sua completa
confiança, ela podia se concentrar apenas no seu trabalho – o que não era pouca coisa.
Acostumada a fornecer comida para eventos, Lídia se aventurou pelo serviço de bufê
durante um tempo. Para além dos insumos, do preparo, do acondicionamento e do transporte,
o bufê ou catering é um serviço imenso de coordenação e logística. “Se o lugar não tiver
mesa, eu levo mesa, levo cadeira… levo tudo, tudo o que você imaginar”, contou ela.
Talheres, pratos, copos, taças, travessas, guardanapos, toalhas de mesa, garçons, serviço de
transporte em que caiba “tudo o que você imaginar” são alugados, contratados, organizados e
levados até o local da comemoração. Quando termina, tudo precisa ser lavado, acondicionado,
guardado, contabilizado, devolvido e pago (quando são alugados). Lídia é quem faz toda essa
gestão. “É, e enche o saco. Porque depois tem que pagar essas pessoas, né? Tem que fazer a
administração. É chato”, ela diz, “mas faz parte do serviço”.
Matias e Vitor têm um trabalho formal registrado com uma jornada que corresponde a
apenas um turno e um dia de folga na semana. Mesmo assim, conseguem dedicar tempo ao
trabalho por conta própria, preparando comida em casa ou organizando eventos. Lídia, por
sua vez, dedica-se integralmente ao trabalho por conta própria. Ela desistiu do trabalho em
cozinhas de restaurantes porque gostaria de se identificar mais com a comida que prepara e
porque queria uma remuneração melhor.

221
Lídia, 37 anos, chef.
209

Para Graça Druck (2011), a informalidade se torna continuamente mais heterogênea e


abriga variadas formas de inserção no mercado de trabalho. Entretanto, “o que os
‘(des)unifica’ é a falta de vínculos (de emprego, de proteção social, de um coletivo de
trabalho, de uma perspectiva de estabilidade etc.) e a extrema e constante situação de risco e
incertezas, onde predominam a instabilidade e a insegurança típicas das ‘leis férreas do
mercado’ (...)” (DRUCK, 2001, p.94). Essa também é a percepção de ARAÚJO (2011, p.169-
170).
... não se trata de agregar o setor informal como um degrau a mais de um
mercado profundamente segmentado, de acordo com as tendências da
estrutura produtiva, mas de avaliar o seu funcionamento específico numa
sociedade com excedente estrutural de força e trabalho e pautada por um
estilo de modernização que reforça a concentração de renda (ARAÚJO,
2011, p.138).

3.1. Consultorias

Foi possível observar que o trabalho por conta própria aparece para alguns
entrevistados como uma alternativa ao trabalho “de carteira assinada”. Esse tipo de trabalho
apresenta-se em alguns discursos como complicado e cheio de problemas, seja porque não é
possível que o/a cozinheiro/a faça as coisas da maneira como ele/a acha melhor, mas,
sobretudo, por ter de se submeter a regras e ordens com as quais não concorda. Por exemplo,
um restaurante que compra insumos mais baratos e de qualidade inferior, ou que tem relações
não transparentes com fornecedores.
Coisas que parecem ser detalhes do ponto de vista administrativo do estabelecimento
podem perturbar muito o/a cozinheiro/a, principalmente aquele/a que tem uma rígida ética de
trabalho.
Eu tomei um trauma de carteira assinada. Porque carteira assinada você tem
que fazer tudo que os outros quer. Eu aposentei pagando, assim, eu tenho
um saldo de 100 litro de carnê de INSS. (…) Tomei um trauma de carteira
assinada. Eu fui pro... meu deus, não dá mais. Eu fui pro... aqueles negócio
da prefeitura, né, aquele carnê? Eu tinha um monte. Fui na prefeitura, me
registrei como autônoma. Aposentei como autônoma. Chega, viu, não
aguentei222.

Benê Ricardo, além de ter descrito inúmeras situações em que foi discriminada por ser
mulher, negra e por sua origem social, também apontou diversos conflitos na cozinha em
razão da sua ética profissional e a forma como ela entendia que o trabalho culinário deveria

222
Benê Ricardo, chef e banqueteira, 73 anos.
210

ser realizado. O trecho acima traz a expressão “eu tomei trauma de carteira assinada”, que ela
repetiu algumas vezes durante a entrevista.
A carteira assinada representava um trabalho subordinado, que era obrigada a cumprir
e seguir ordens sem questionar. Isso lhe causou muitos transtornos e desentendimentos, até
decidir trabalhar de forma autônoma. Passou a oferecer serviços de banqueteira para eventos,
assim como testes de produtos e elaboração de receitas para empresas, além do trabalho de
docente que desempenhou em diversos cursos ao longo de toda a vida. Entretanto, mesmo
autônoma e prestando consultoria em restaurantes, Benê ainda enfrentou problemas com
proprietários que não assumiam erros de gestão.
Um de seus alunos, vindo de uma família italiana proprietária de uma cantina
tradicional de São Paulo, convidou-a a prestar consultoria na cozinha do restaurante. A
princípio, ela resistiu.
Aí eu falei "mas seu restaurante é muito chique, eu sou simples", falei pra
ele. Ele falou "não, Benê, meu pai quer que você vai". Menina, aí eu cheguei
lá no ___. Ele "olha aqui os copo, olha como é chique", eu falei "olha, me
desculpe, mas de salão eu não entendo nada, eu quero ir lá na cozinha".
Menina... eu pensei que a cozinha lá era limpa. Jesus! Eu falei que eu ia
ensinar a fazer carré de bisteca e aquelas coisas, eu já falei "eu preciso de
um litro de cloro pra lavar as tábua". Essas tábuas de... nossa, preta. Aí ele
falou "ah, mas você é fresca". E eu falei "e como é que eu vou usar essas
tábua escorregando?". Ele disse "cloro é caro". Eu peguei do meu dinheiro,
acho que custava 3 real, pedi pro menino ir comprar cloro. Menina, ainda
raspei... ali sai aquele alichela, sardella... que o povo acha que lá é tudo
chique, não vai na cozinha. Aqueles negócio, potinho de liccela, o povo fala
em cima e fuma, naquela época não tava proibido. Eu tirando pra lavar
aquele negócio, ele foi e deu um berro "isso daí é caro! Você sabe quanto que
custa isso?" Eu falei "mas o senhor já não cobrou?", ele disse "Mas o
restaurante é meu!", eu falei "o senhor chamou eu aqui pra quê? O senhor
falou que queria uma consultoria, eu tô aqui. Agora o senhor tá falando isso
pra mim, desculpa". Meu contrato era quatro meses, eu não aguentei ficar
dois meses. Aí chegou tomate, ele manda comprar o tomate, quatro horas no
Ceasa. Os tomate chega tudo assim... Chega, ele joga na panela, nem lava.
Mas brasileiro é idiota. Desculpa. Sabe por quê? Mas daí eu contei lá pro
povo, e eles não foram mais. Eu ainda falei. Ele falou assim "Você é muito
fresca, muito fresca". Eu falei "olha, ___, eu sou pobre, mas eu gosto de
limpeza. Eu não vim oferecer". Por isso que eu não vou onde não me
chamam. Porque se chamar, você pode responder, mas se você vai procurar...
aí é outros 500. Eu falei "foi você que me chamou". Falei.

Algo tão básico e, a princípio, tão banal, como a higiene da cozinha, dos instrumentos
e dos insumos, não deveria ser objeto de tanta discussão, mas Benê tinha diversos exemplos
de como vários estabelecimentos nobres, chiques e sofisticados da capital paulista serviam
muito mais ao lucro do que às normas da vigilância sanitária. Perguntei sobre a fiscalização,
ela sorriu e afirmou “filha, eles pagam tudo por fora”. Não entrei no mérito desse tipo de
211

atitude criminosa, mas atentei para a forma como esse tipo de conflito tornou a liberdade de
poder recusar trabalho uma questão de honra para Benê, algo mais importante do que os
direitos associados ao trabalho, por exemplo.
O trabalho de consultoria realizado por Benê, que, como já afirmei, era uma mulher
com grande reputação entre os/as chefs e cozinheiros/as, estava sempre sendo alvo de
questionamentos e não sendo cumprido, como ela narrou, tachada de “fresca” ou “chata” –
aliás, ela mesma usa esses termos pra descrever sua preocupação com limpeza e higiene.
Já André, brasileiro vivendo em Paris há mais de dez anos, sócio de um restaurante de
comida contemporânea, é contratado constantemente como consultor para diminuir
desperdício e aumentar o rendimento. Questionei se era tranquilo para os franceses ter um
brasileiro ensinando a gerenciar uma cozinha, afinal, não é um algo muito corriqueiro um
profissional ser tão respeitado a ponto de ser chamado pelos locais para opinar sobre como
eles devem gerenciar seu negócio, o que precisam mudar e como. Segundo o chef, ele não
procura ninguém: são os proprietários que o contratam para fazer consultoria sobre como
salvar o restaurante ou observar e apontar onde é possível otimizar a produção e cortar custos.

Tipo assim, o restaurante tá com problema? Eu faço levantar o restaurante.


(…) Hoje eu já me fiz respeitar bastante. Não sou eu que procuro, eles que
me procuram. Na França tem um trabalho que chama procuradores de
cabeça [headhunters], que fala, e eu sou muito solicitado por essas agências.
Então é pra mim resolver os problemas desse povo.

Anos de experiência na área foram as credenciais necessárias. Os problemas que ele


precisa resolver frequentemente não têm nada a ver com a comida, mas com gestão. Com
vasta experiência em dezenas de restaurantes na Inglaterra e na França, o chef André é um
especialista que conhece muito bem esse universo – mesmo sem diploma, suas credenciais
são validadas por sua experiência.
É possível inferir que relações de gênero e raciais influenciam no tipo de tratamento
que os profissionais recebem quando trabalham com consultorias. Uma pessoa fora do quadro
de funcionários, em posição de autoridade, acima do próprio dono ou sócio, contratada
especificamente para observar problemas e recomendar mudanças, pode criar problemas e
acirrar tensões em uma cozinha. Quando questionei o chef André sobre ser um homem,
brasileiro, orientando cozinheiros/as franceses a respeito do que fazer, ele foi enfático.
Afirmou que sua reputação era garantia de que suas recomendações seriam seguidas e que ele
era um profissional bastante solicitado. Já a chef Benê, como vimos, viveu muitas situações
em que, mesmo sendo contratada para fazer esse tipo de consultoria, era desautorizada,
212

desobedecida e ignorada, o que a levava a sair dos restaurantes antes do término de seu
período de contrato, não raro com prejuízo financeiro para ela.
As consultorias baseiam-se, sobretudo, na experiência que os/as profissionais têm, nos
conhecimentos que adquiriram, saberes empíricos sobre o funcionamento de uma cozinha e
que se refletem em práticas dentro do restaurante, seja para diminuir custos, otimizar
investimentos, seja fazer mudanças ou começar um negócio. Muitas vezes, um/a chef pode ser
contratado para elaborar um cardápio ou mesmo montar o restaurante, e depois não
permanece lá.

4. As plataformas digitais

As fronteiras entre o trabalho doméstico e o profissional, o preparo culinário voltado


para a família ou para clientes, ficam ainda mais difusas quando não existe restaurante, e a
cozinha da casa é também a cozinha profissional. No final da pesquisa, quando eu já
considerava o trabalho de campo encerrado, reencontrei uma antiga vizinha que trabalha
como cozinheira e vende comida congelada através de um aplicativo. A cozinha da própria
casa é seu lugar de trabalho, onde passa de 12 a 14 horas por dia cozinhando, o mesmo lugar
em que prepara a comida para os netos e filhos. É onde se sente “em seu domínio”.
Rita é uma mulher branca de 60 anos, moradora no bairro do Paraíso, região nobre da
cidade de São Paulo. Desde 2018 ela oferece sua produção culinária por meio de um
aplicativo. Ainda que tenha alguns outros clientes que sempre encomendam comida, Rita
passou a organizar seu trabalho e produção a partir da demanda dessa plataforma digital.
Ela afirma que sempre cozinhou, desde pequena, com a avó, e adolescente, para os
pais e a família. Ela e o marido tiveram uma rotisserie no Campo Belo, bairro da zona sul de
São Paulo, e lá preparava alguns pratos para vender, mas a loja fechou devido a problemas
com os sócios.
Por muitos anos, Rita acompanhou excursões para a Disney, depois organizou viagens
para uma grande companhia de turismo, “sempre como freelancer, nunca tive uma carteira de
trabalho assinada, né?”. Foram oito anos nessa empresa, sem registro.

Até eu fazer 40 anos, quando eu fiz 40 anos, eu arrumei um trabalho de


carteira assinada. Que era também no segmento de eventos, né? Aí nessa
empresa fiquei mais, sei lá, mais oito anos. Aí um dia... eu fui demitida, né?
Sem muito motivo, do dia pra noite.
213

Naquele momento, avalia Rita, com os filhos já adultos e com responsabilidades


familiares que demandavam menos, decidiu fazer um curso de Gastronomia, com duração de
dois anos. Diz ter gostado de voltar a estudar, aproveitou muito o curso, e fez uma pós-
-graduação em gestão de eventos, área em que atuou por muitos anos, logo depois.
Durante a Copa das Confederações, a Copa do Mundo no Brasil e a Copa do Mundo na
Rússia (2018), Rita trabalhou como freelancer para uma operadora que agenciava viagens em
torno desses eventos. Passou de dois a três anos na organização de cada um, mas era desligada
assim que a Copa acabava, pois era “contratada” por projeto.
Assim que terminou seu último grande trabalho, em 2018, não sabia como se recolocar
no mercado de trabalho. Por indicação do filho, que já comprava comida pronta por
aplicativos, decidiu se “profissionalizar” na venda de congelados.

Porque assim, nesse meio tempo desse mundo que dia que chega, o dia que
sai, começa, termina… eu sempre vendi alguma coisa de comida. Sempre.
“Ah, vamos fazer um bolo de mel para Rosh Hashaná”. Vendia bolo de mel
para Rosh Hashaná. “Ah vamos fazer o strudel, que a minha sogra fazia”
(…) “Ah, vamos fazer um strudel de abacaxi”, que era coisa característica da
família, “ah vamos”, “vamos vender?” “Vamos vender”. “Vamos fazer
brigadeiro gourmet?” “Vamos fazer”. Entendeu? Então sempre no meio tinha
coisas de comida, mesmo com trabalho, com outra atividade. Aí eu falei,
“Quer saber? Vou atrás... desse aplicativo, vou ver como funciona”.

Rita entrou em contato com o aplicativo, levou um “projeto de negócio”, um prato


para servir de modelo do que ela ia oferecer, recebeu um treinamento de algumas horas sobre
como operar a ferramenta e começou a oferecer seus produtos. No começo, todavia, “o
negócio não ia. Não vendia”. O aplicativo dá mais visibilidade para os/as cozinheiros/as que
têm mais avaliações positivas. Assim, quem ainda não tem muitos clientes tem mais
dificuldade para divulgar seus produtos no próprio aplicativo.

Appetite é um aplicativo pouco conhecido ainda. Segundo, existe uma regra


desses app que são assim, quanto mais você vender, quanto mais avaliações
positivas você tiver, mais você aparece. Mas se você não tem avaliação, e
você não tem venda, você não aparece, né? Então… e eu praticamente não
aparecia, né?

Então assim, eu na verdade atendo de três formas, vamos dizer, eu atendo


direto alguns clientes, que na verdade hoje fidelizado, fidelizado, eu tenho
uma cliente, que compra de mim, sei lá, há dez meses, entendeu? Ela compra
regularmente. Eu vendo pelo Appetite, né? Que eu fiz agora acho que nove
meses de Appetite, que a minha primeira venda no Appetitte aconteceu dia
23 de outubro, pra você ter ideia eu fiquei um mês sem vender nada no
aplicativo...
214

Ela garante que sua experiência com planejamento de eventos foi fundamental para se
adaptar à incerteza do trabalho mediado pelo aplicativo.

É uma coisa... sem nenhum critério de regularidade. Ah não tem.... um dia


você vende dez, um dia você vende um, e um dia você vende nenhum.
Entendeu? Então não tem uma... eu ainda não tenho, pode até ser que mais
para frente, né, mas assim é completamente sem...você não tem muita
previsão. Então é aquela coisa que eu te falei, eu junto muito aprendizados de
eventos e de, sabe? De você ter um planejamento para você acudir na última
hora, né? Então eu tenho que ter um jogo de cintura.

Para uma pessoa acostumada a trabalhar gerenciando equipes e organizando grupos, o


trabalho por aplicativos foi complicado para Rita. E apenas um aplicativo não foi suficiente,
pois ela alcançava poucas pessoas e vendia pouco. Então, passou a atender por um outro
aplicativo, mais popular.
E aí esse ano, há uns três meses, eu comecei a fazer... comecei a fornecer pro
iFood, que já tem uma outra visão, né? Eles têm um número muito maior de
seguidores do que o Appetite, eles são muito mais conhecidos, entendeu?
Mas eles também têm um outro tratamento, uma outra relação, é... vamos
dizer cozinha-iFood-cliente entendeu? O Appetite, na verdade, me trouxe
assim, algo que me satisfaz, que eu na verdade, eu consigo falar com o
cliente através de um chat, então o cliente pede, eu consigo falar pra ele
“olha, que legal que você pediu”, “puxa fiquei feliz”, ‘que felicidade”, né
assim, eu me sinto prestigiada... “Desejo que você goste da comida, depois
você me conta”, tal… Então o Appetite traz essa proximidade, né? E eu acho
que assim, a gente deixa eu não sei se é porque eu tive uma ascensão rápida,
talvez, mas eu deixo de ser um número, entendeu? Passo a ser uma pessoa,
né? Um parceiro, talvez mais, mais integrado... dentro do negócio.

Esse depoimento de Rita deixa claro que ela preferia ter outro tipo de relação com os
clientes, aqueles que compram sua comida, até porque, graças à sua experiência anterior, ela
sempre teve um contato muito próximo com quem comprava seus produtos. Então, ela
valoriza que o aplicativo possibilite um diálogo entre ela e o/a comprador/a, mesmo que seja
apenas para agradecer o pedido, porque anseia por uma relação em que ela “deixa de ser um
número”, ou seja, que tenha um componente mais humano.

É que o iFood você não fala com o cliente. O cliente pede, né? Toca a
campainha do aplicativo, você separa mercadoria, manda a mercadoria e
acabou... Não tem, não tem uma relação. Eles até têm um sistema de
avaliação mas assim, muito pouco representativo.

Sua relação com as plataformas digitais e aplicativos que utiliza para visibilizar e
vender seus produtos condiciona o ritmo e a organização do trabalho. Além dos congelados,
ela prepara lanches para entrega imediata, mas a procura por estes últimos é menor (a oferta
215

de lanches em seu próprio bairro é muito maior) e representam uma ruptura na organização do
trabalho, pois são preparados e enviados na mesma hora.

Eu faço sanduíches superespeciais. Então faço sanduíche de lagosta, é um


lobster roll, faço shrimp roll, faço sanduíche de carpaccio, sanduíche de
salmão, que são coisas pronta entrega, né, assim? O cliente pediu, eu preparo
e sai. Em 40 minutos sai daqui, né? Eu preparo sopas quentes, então preparo
capeletti in brodo, sopa creme de abóbora… algumas coisas que eu entrego
quente, né? (…) Eu faço na verdade assim, à la minute, faço e entrego.
Agora o meu grande forte é o congelado.

Para lidar com as incertezas do dia a dia, sem saber exatamente quanto vai vender ou
quanto vai precisar preparar, seja à la minute, seja congelado, Rita afirmou que se sente mais
segura e no controle porque montou em casa uma infraestrutura com grande capacidade de
armazenamento. Apesar de cozinhar todos os dias em uma cozinha pequena de apartamento,
reformou sua área de serviço e tem cinco freezers grandes.

Hoje, eu posso te dizer que eu consigo melhor, por quê? Porque eu já me


estruturei em capacidade de armazenamento. Então hoje, eu tenho cinco
freezers, né? Que quando eu comecei, eu tinha esse e o outro do mesmo
tamanho da área de serviço era para casa. Que era coisa que eu realmente
usava e a gente sempre fez um congelado, uma coisa para ficar pra semana.
E de lá para cá, essa semana chegou... a semana passada, sexta-feira, chegou
o quinto freezer, entendeu? Então, eu tive que desmanchar o quartinho, um
quarto de ajudante, mas eu já não tenho ajudante aqui faz tempo, né? Aí a
gente teve que transformar ali...e eu fiz ali um pequeno depósito, né? De,
enfim, de marmitinhas, de utensílios do congelado e freezers, né? Porque eu
não tenho, na verdade, é espaço. Para você ter uma ideia de sexta-feira acho
que até agora eu vendi, sei lá, 150 pratos, em função da promoção. Então eu
tenho aqui um controle de estoque, né? Que eu tenho uma planilha de Excel,
né? Então tem época que eu chego nessa planilha a 180 pratos...é a minha
média de estoque. Essa semana baixou pra 90. E eu produzindo…

A promoção a que ela se refere foi uma iniciativa do aplicativo: oferecer 30% de
desconto em todos os pedidos em um período de três dias. Isso praticamente dobrou a
quantidade de pedidos que ela estava acostumada a atender na semana. Esse tipo de
promoção, sem aviso prévio por parte da empresa, acaba colocando Rita em uma situação
difícil por alguns dias. Como ela tem algum espaço para estocar e seu foco principal de venda
são os congelados, ela consegue atender a demanda com o que tem armazenado. Mas isso
também desorganiza o planejamento e é preciso gastar mais tempo cozinhando para repor o
que foi vendido.
Evidentemente, ela não vê problema em aumentar as vendas, ao contrário. Mas o tipo
de promoção que o aplicativo promove, como isso aumenta a demanda drasticamente de um
dia para outro, sem avisar os/cozinheiros/as, cria problemas de logística, principalmente em
216

uma situação como a de Rita, que trabalha em casa, sem ajudante, e precisa dar conta,
sozinha, dos preparos, do aplicativo e do envio das “marmitinhas”. Geralmente, o marido,
aposentado, ajuda fazendo compras. Para o seu tipo de produção e espaço de trabalho, Rita
tem limitação quanto aos insumos. Não pode comprar no atacado, em grande quantidade,
como 30kg de cebola, por exemplo, porque não consegue usar tudo antes de estragar. Então,
faz compras em mercados comuns ou clubes de compra. No entanto, quando o estoque acaba
rapidamente, pedir que o marido compre muita coisa em pouco tempo gera algumas tensões.

É, na verdade assim, que também é um outro problema que a gente precisa


equacionar melhor agora. Por quê? Porque como eu não tenho uma rotina,
um fluxo, vamos dizer assim, muitas vezes ele tem que sair correndo e pedir
socorro. (…) Então, por exemplo, ontem o [marido] ficou basicamente
fazendo compras. Porque na sexta vendeu, ok, tudo bem, eu tava preparada...
aí no domingo 9h da noite eles lançaram de novo um cupom de 50% e....a
comunicação do Appetite com chef para essas promoções não existe!

Como sua rede de clientes e consumidores por meio de redes de contatos não é grande,
Rita praticamente trabalha no ritmo do aplicativo. É por meio dele que visibiliza seu trabalho,
faz contato com clientes em potencial – daí sua preocupação em ter um espaço de diálogo
com quem encomenda – e determina o ritmo da sua produção.
Ludmila Abílio (2019: 2) compreende “a uberização como uma tendência de
reorganização do trabalho que traz novas formas de controle, gerenciamento e subordinação”.
Apesar do nome que se refere à empresa Uber, tal fenômeno não se inicia com ela e nem se
restringe apenas a ela. “As plataformas digitais têm sido globalmente reconhecidas como
vetores de novas formas de organização do trabalho; estabelecem-se diferentes definições
sobre diferentes tipos de relações de trabalho mediados por plataformas e seus impactos
econômicos” (idem).
Conforme proposição de Nick Srnicek (2017), tais plataformas seriam, em um nível
mais geral, infraestruturas digitais que permitem que dois ou mais grupos interajam,
posicionando-se, portanto, como intermediários que conjugam diferentes usuários: clientes,
propagandas, provedores de serviços, fornecedores e até objetos físicos. Essas plataformas,
segundo Srnicek, têm três características fundamentais. Em vez de construir um mercado do
zero, a plataforma provê a infraestrutura básica para mediar diferentes grupos. Essa é a chave
para sua vantagem sobre modelos de negócios tradicionais quando se trata de informação,
pois a plataforma se posiciona (1) entre usuários, e (2) como o terreno sobre o qual as
atividades ocorrem, o que lhes dá o privilégio de acesso e gravação de informações pessoais
de todos os usuários.
217

A segunda característica essencial é que as plataformas digitais produzem e dependem


de “efeitos de rede”: quanto mais usuários utilizam a plataforma, melhor ela se torna para
todos (SRNICEK, 2017, p.26). A importância do efeito de rede significa que a plataforma
precisa empregar uma série de táticas para assegurar que mais e mais usuários a utilizem. A
afirmação de Rita sobre sua visibilidade no aplicativo e o tempo que demorou para que ela
fosse acionada, para que realizasse sua primeira venda e conseguisse as preciosas avaliações
que, por sua vez, aumentariam sua visibilidade no aplicativo e chances de venda, referem-se a
esse tipo de controle que o aplicativo exerce sobre os/as trabalhadores/as submetidos à
plataforma digital.
Finalmente, a terceira característica é que as plataformas são pensadas para serem
atraentes para um amplo espectro de usuários. Enquanto se apresentam como espaços vazios
para outros interagirem, elas, de fato, incorporam várias políticas (SRNICEK, 2017, p.26).
Retomando a análise de Ludmila Abílio, que pesquisou os motoboys na cidade de São
Paulo e as transformações em suas condições de trabalho a partir da popularização de
plataformas digitais (ABÍLIO, 2019), o elemento central catalisado pelas plataformas são as
novas formas de dispersar o trabalho sem perder o controle sobre ele. Este processo consolida
a figura do trabalhador como um autogerente subordinado que já não é contratado, mas se
engaja no trabalho via adesão às plataformas. "Nessa condição de quem adere e não mais é
contratado, o trabalhador uberizado encontra-se inteiramente desprovido de garantias, direitos
ou segurança associados ao trabalho; arca com riscos e custos de sua atividade; está
disponível ao trabalho e é recrutado e remunerado sob novas lógicas" (ABÍLIO, 2019, p.2).
Dessa forma, uma parte importante do gerenciamento do trabalho é repassada ao
próprio trabalhador, gerente de si mesmo, o que intensifica sua subordinação e
vulnerabilidade, mas agora sob o manto do empreendedorismo e da autonomia. A plataforma -
ou o aplicativo, a empresa digital - embora se exima das responsabilidades, colocando-se
como mera mediadora, na verdade tem mais poder do que simplesmente aproximar oferta e
demanda. Ainda de acordo com Ludmila Abílio (2019: 3),

A uberização traz um tipo de utilização da força de trabalho que conta com a


disponibilidade do trabalhador mas o utiliza apenas quando necessário, de
forma automatizada e controlada. A empresa-aplicativo detém o controle e a
possibilidade de mapear e gerenciar a oferta de trabalho e sua demanda, a
qual também está mediada pelo aplicativo e subordinada a ele.

No caso que analisamos aqui, o trabalho por conta própria mediado pelo aplicativo
coloca sobre Rita não apenas toda a responsabilidade pelo trabalho, pelo gerenciamento das
218

atividades e do tempo, o marketing e a propaganda dos seus produtos – não apenas através das
avaliações do aplicativo, mas também por acionamento de redes pessoais e de redes sociais 223
- mas gerindo a atuação do próprio aplicativo, que acaba por condicionar sua produção,
intensificando ou não seu trabalho, na medida em que lança promoções sem aviso prévio.
A relação de Rita com o trabalho por conta própria revela formas de subordinação e
controle do seu tempo e produção. Ainda que não tenha um chefe ou patrão, que ela gerencie
e organize seu próprio trabalho, as plataformas digitais que utiliza para entrar em contato com
clientes, visibilizar a produção e, em última instância, vender, determinam seu modo de
trabalho e produção.
O trabalho por conta própria se apresentou como uma alternativa profissional que
atendia às suas expectativas de obter renda e de realizar um trabalho sobre o qual ela tem mais
domínio do que em um restaurante ou outro estabelecimento. Enquanto fazia o curso de
Tecnóloga em Gastronomia, Rita estagiou em um restaurante e pôde vivenciar a experiência
do trabalho em uma cozinha profissional, ao qual não se adaptou.

E assim, eu acreditei, depois que eu fiz aquele estágio que cozinha não é pra
mulher... de restaurante. (…) ... porque na verdade cozinha de restaurante
você precisa ter força física. Eu aqui, tem dia que eu trabalho 18 horas em
pé, mas eu tô no meu domínio aqui, entendeu? Eu se eu precisar sentar dez
minutos, eu vou sentar dez minutos, se eu precisar tomar uma xícara de chá,
pra me reestabelecer, vou. E eu não vou carregar 50kg de cebola ao mesmo
tempo. E no restaurante você vai fazer isto.

Com mais de 60 anos, ser estagiária em cozinha para Rita foi muito desafiador e, de
certa maneira, inviável. Ela lembra que além da força física, sua maior dificuldade era
justamente lidar com as exigências e ordens que tinham que ser cumpridas na mesma hora.
“… muitas vezes, assim, o carrinho está ocupado, e aí o chef (ou chef??) quer aquela hora.
Você sabe, você já entendeu a dinâmica de uma cozinha. Que é assim, é naquele momento,
entendeu?”. É irônico perceber, entretanto, que ela desistiu do trabalho em cozinhas
profissionais justamente porque não conseguia dar conta das demandas imediatas dos chefs,
mas conseguiu se adaptar a uma rotina de incerteza e de trabalho on demand via aplicativo.

223
Após o término da entrevista, com o gravador desligado, em conversa informal, Rita comentou sobre sua
atuação em redes sociais, como Facebook e Instagram. Sua interação nesses espaços virtuais não é obrigatória,
mas é importante. Além de divulgar o trabalho, publicar fotos dos pratos, preços, novidades e ampliar sua rede
de contatos, a presença nas redes sociais também serve para fazer propaganda do próprio aplicativo, difundindo
o logotipo, convidando as pessoas a conhecerem e alardeando as promoções.
219

5. Mulheres negras no trabalho formal e informal

Como discutimos no início deste capítulo, as diferentes modalidades do trabalho


formal e informal se intercalam, complementam-se e muitas vezes se misturam no nível das
práticas sociais e mesmo da movimentação de trabalhadores e trabalhadoras no mercado de
trabalho. Os critérios para considerar um determinado emprego (ou trabalho) modificam-se
em função de muitas variáveis. No caso das mulheres, questões como salário, distância de
casa, plano de saúde e jornada de trabalho tornam-se mais complexas na medida em que se
articulam ao trabalho doméstico, presença de crianças pequenas ou pessoas na família que
demandam cuidados, entre outros.
O que pode ser uma ótima oportunidade profissional em um momento se torna
problemática no outro, conforme esses elementos se modificam e passam a demandar novos
arranjos. Principalmente para as pessoas das classes mais pobres e com menos qualificação
formal para o trabalho, a trajetória profissional incorpora trabalhos temporários e “bicos” em
um momento, trabalho com registro em carteira no momento seguinte.
Insisto nesse ponto porque a análise do ponto de vista do trabalho ser formalizado ou
não, principalmente agora, após a reforma trabalhista e suas consequências nefastas para os
trabalhadores, não é tão estática nem tão hermética. Como vimos, há pessoas que conseguem,
inclusive, trabalhar em um restaurante durante um período e em casa no que seria sua folga.
Também analisamos trajetórias em que algumas experiências traumáticas de trabalho formal
levaram trabalhadoras a procurarem a área de serviços e consultorias.
Descrevo, a seguir, a última trajetória a ser analisada.
Helena, 49 anos, era cozinheira em um restaurante self service em Pinheiros, zona
oeste de São Paulo. Ela se considera parda e tem três filhas, com idades entre 27 e 15 anos, e
sete netos. A filha de 22 anos e seus três filhos moram com ela, no bairro do Campo Limpo,
zona sul de São Paulo. Sua trajetória ilustra a movimentação no mercado de trabalho entre
emprego formal e informal, trabalho por conta própria, “bico” e ter o próprio estabelecimento.
Helena fazia comida para a família, em casa desde os 13 anos. Ela se lembra porque,
aos 10, trabalhava na feira, vendendo legumes na barraca com o pai, e sempre levava alguns
para casa. As feiras de rua em São Paulo acontecem de terça a domingo e a montagem das
barracas costuma começar por volta das 4h da manhã. Ela trabalhou assim até os 19 anos e
estudou apenas até a sétima série. “Aí depois saí de lá, precisava coragem, né, de você
trabalhar num canto e ir já pra escola, aí chegava, não tinha aula. Professor não tinha vindo.
Aí eu parei”.
220

Da feira foi para numa loja de roupas. Depois, teve um restaurante. Depois, um bar.
Depois, uma casa de acarajé. Trabalhou em casa de família. Fez “bicos” como faxineira e
como cozinheira. Vendeu brinquedos na porta de um presídio, quando o irmão cumpria pena.
As experiências profissionais de Helena foram tantas que foi praticamente impossível manter
uma ordem cronológica de tudo que ela foi lembrando durante a entrevista. Estava ansiosa
para contar que “não tinha medo de trabalho”, e que já tinha “feito de tudo um pouco”.
Mas o que a marcou foi sua experiência de “dona”. Sente empatia pela atual patroa,
porque “eu já tive meu negócio, eu sei como é”. “Eu sou do lado do patrão, porque eu
entendo”, ressalta. Tanto que, para ela, em seu emprego atual acha que o problema “é que
funcionário dá muita dor de cabeça, sabia?”
Helena já viveu essa condição. Foi dona de um bar e de um restaurante, mas trabalhou
por conta própria com vários tipos de serviço de alimentação. Começo pela sua experiência de
sócia no restaurante no bairro do Campo Limpo, em que cuidava da cozinha e do
atendimento; o sócio cuidava das contas.

Aí era meu e do meu amigo. O amigo dele cresceu e falou que a gente
vendia bem, aí queria entrar de sócio. Aí ele vendeu a parte dele pro amigo
dele. Aí ele falou, “ó, eu vendi só uma parte, mas a gente vai continuar”. Só
que eu vou ter que cozinhar e eu vou querer um salário, porque eu não vou
trabalhar pra vocês dois, né? Ele falou que tudo bem. Só que esse amigo dele
entrou hoje que é sexta, saiu no sábado, porque ele não aguentou muito a
pressão. Ele falou que era muita pressão minha. Era muita coisa errada que
saía, o telefone não parava de tocar, ó, aqui eu já cheguei a vender 70
marmitex. É muita comida. Mais o bufê.

O amigo desistiu do negócio, vendeu sua parte. O novo sócio não aguentou “a
pressão” e o negócio acabou. Em seguida, com um outro amigo desta vez, Helena abriu um
bar no mesmo bairro. Lá não tinha que cozinhar, era um forró, mas atendia os clientes e
servia as bebidas, o que, constatou, era difícil também.

Helena: Eu já tive um bar, com um amigo meu, ficamos uns três anos,
quatro anos com o bar. (...) Então, mas lá eu não fazia comida, né? Era
forró.
Entrevistadora: E não fica uns homens bêbado...
Helena: Então, isso não dá paciência, isso perde... hoje em dia eu não
monto um bar pra mim, porque não tenho paciência. Uns bebo chato, você
tem que se dar, você tem que ter paciência e eu não tenho mais paciência pra
isso.
Entrevistadora: Eles falavam muita besteira pra você?
Helena: Falavam, mas aí a gente releva, né? Depois que a gente tá atrás do
balcão... Teve um cara que falou bem assim pra mim "nossa", tava frio, né,
"tá frio hoje", e eu falei "tá, tá frio", e ele tinha bebido lá né, aí ele falou "tem
221

tudo pra gente ir pra um motel hoje, né?" Eu falei "tem mesmo, você
acertou", ele ficou todo contente, "mas hoje não posso, hoje tô
trabalhando". (...) Tem cliente que fala assim "eu só vou beber se você beber
junto comigo". Aí você tem que beber também. Às vezes você não bebe,
você só põe no copo e disfarça, entendeu? Tem que ter muito jogo de
cintura.

Trabalhando no bar, no forró, e lidando com homens que estavam bebendo todas as
noites, Helena criou estratégias para lidar com o assédio dos clientes. Fingir que bebia,
simular que correspondia a um flerte para evitar brigas e discussões, fingir que não ouvia
certas coisas, entre outras. Quando ela afirma “não tenho paciência”, depois de ter passado
anos lidando com essas situações, fica evidente que ela chegou ao limite para lidar com tal
carga emocional e mental no trabalho, algo que, como dona, ela teria que suportar. Como
queria que os homens continuassem lá, bebendo, frequentando o bar, ela tinha que ter “muito
jogo de cintura”.
Depois da experiência como sócia em dois estabelecimentos, ela iniciou outro negócio
com um outro sócio, desta vez vendendo café e bolo nas ruas, de manhã.

Eu já vendi cafezinho na rua, igual aquele povo vende de manhã cedo. E


assim, não fui além, porque eu sei que dá dinheiro, por falta de um carro, né?
Porque vou te falar, pra eu carregar, naqueles carrinhos de (...), carregar
tudo, digamos que eu vou montar 13 barracas, cada aluguel é um, aí eu vou
deixo a menina noutro lugar, volto pro outro... aí tava com um amigo meu
(...), comprei as barraca, quatro barracas, tudo, mas que perua é essa que só
bebia gasolina?

O negócio que Helena e o amigo começaram, na verdade, era de pagar o aluguel dos
pontos para vender café e bolo na rua, e colocar alguém para ficar vendendo. Ela conseguiu
montar até 13 barracas assim, o que é bem considerável. Ela preparava o café e os bolos,
pagava o aluguel do ponto e pagava as “meninas”. O problema, segundo ela, era a logística de
levar tudo isso em carrinhos de mão. Helena não sabe dirigir e não tem carro. Aí entrava o
sócio. Mas ela desconfiou da retidão dele quando ele passou a pedir cada vez mais dinheiro
para abastecer o carro, “que perua é essa que só bebe gasolina?”.
Helena, em suas próprias palavras, não fica desempregada. O que quer dizer que ela
não fica sem trabalhar, sem conseguir renda. E dentre as muitas atividades que ela
desenvolveu para garantir o próprio sustento e o da família, a atividade por conta própria
aparece como um trabalho precário, vulnerável, mas com garantia de retorno.

Eu já trabalhei com isso, eu já botei barraca na frente da minha casa, já vendi


batata frita, eu não tenho tempo feio, eu não fico desempregada, entendeu?
222

Sempre existe a possibilidade de vender alguma coisa.

Se eu colocar uma banca aqui e vender cigarro Eight, cigarro do Paraguai, eu


vendo, eu tenho coragem. Eu não tenho preguiça de trabalhar.

Não ter “preguiça de trabalhar” significa que, diante de uma adversidade ou


desemprego, Helena parte para o trabalho ambulante em seu bairro, ela “coloca uma banca”
ou “bota barraca”. Entre vender batata frita ou cigarro do Paraguai, o importante é que ela
segue trabalhando. O comércio ambulante é uma estratégia recorrente para ela.

Helena: Eu já trabalhei, você não acredita, eu já trabalhei na porta da


cadeia vendendo aqueles bichinhos inframável. (...) Sabe aqueles bichinhos
que você enche, que voa? Tipo bola, o bola? Já trabalhei com aquilo,
menina. Mas aí, como eu não tenho carro, né? Os bichinho eu ia na 25,
comprava e ia vender na porta da cadeia.
Entrevistadora: De onde que veio essa ideia?
Helena Foi assim... deixa te contar, meu irmão foi preso. E de 15 em 15
dias tinha aquelas visitas de criança, pra ver os pais. E eu ajudava meu pai a
vender coisas na feira, que eu tinha dó dele. E tava um moço com carro
vendendo esses bichinho. Aí eu perguntei, moço, onde o senhor compra
esses bichinho? E ele falou "no Paraguai". Mas moço, não tem na 25? Ele
"não tem não, se quiser me dar o dinheiro, eu compro". Pensei "ele quer
ganhar dinheiro nas minhas custas". Eu disse "tá bom, moço". Chegou meio
da semana, falei "ô mãe, vamos na 25 mais eu?", ela falou "comprar o quê?",
falei "comprar alguma coisa pra vender, pra fazer dinheiro", ela "vamos". Aí
andei, andei, aí eu vi uns bichinho, andei, andei, achei uma loja que vende
bem barato, entendeu, atacado. Aí comprei 150 reais, minha mãe "pra quê?",
digo "tem bomba, moço?", falou "tem", minha mãe "pra quê?", falei "vou
vender na feira", aí minha mãe "mas já não tem o moço?", falei "mas eu não
vou vender na feira, vou vender lá perto da padaria onde a gente mora".
Menina, foi uma febre. Aí eu deixava minha mãe na porta da padaria, aí já
não tava mais ajudando o meu pai. Fui pra feira do parque Fernanda, levei
minha filha de 22 anos, deixei ela na ponta da barraca e trabalhei com esse
patrão meu que eu já tinha trabalhado há muito tempo, aí esse patrão meu
ajudava minha filha a vender e eu trabalhava pra ele, minha mãe e minha
filha por conta. Aí levei um bichinho pra um amigo do meu irmão que tava
preso, pro filho dele. E todo mundo me encomendou. Todo mundo me
encomendou. Daí eu ia trabalhar, tava sem trabalhar, aí eu tava sem serviço
há um mês.

A atividade por conta própria, mobilizando a mãe e a filha para fazer as vendas,
passou a ser conciliada com o trabalho em casa de família.

É, mas eu queria um serviço pra render mais aquele dinheiro, entendeu? Aí


arrumei um serviço na Lapa, em casa de família. Minha mãe disse "e
agora?", falei "não, faz assim, eu saio 5h da manhã, vou pra porta da cadeia,
quando for 7h30 a senhora fica lá e eu vou trabalhar", entendeu? Que eu já
tinha vendido mais, eu comprava 150, eu fazia 300, 400. Entendeu? Aí
acabou, ela ia, ficava lá e eu ia trabalhar. Ela ficava até 11h, até meio-dia.
223

Eventualmente, comprar as mercadorias na Rua 25 de Março, vender na porta do


presídio e trabalhar em casa de família tornou-se muito pesado para Helena e sua mãe idosa, e
a filha “não tem o mesmo pique”, e elas acabaram desistindo de vender os brinquedos.
Helena integrou a equipe que trabalhava vendendo comida em festas de rodeio no
interior de São Paulo.
No rodeio? Eu fritava pastel. A gente fritava pastel, fazia um monte de coisa.
Fazia coxinha, fazia comida pra gente, né, pros funcionário. Cada dia uma
cozinhava, entendeu? (...) Era muito serviço, a gente entrava 9h da manhã,
saía 2h da manhã. Pra ganhar 70 reais. Por dia. Aí a gente almoçava e
voltava de novo pro serviço. (...) A gente entrava 9h da manhã, saía 2h da
manhã. Imagina os pés da gente.

Nesse trabalho, Helena era empregada sem registro, informal, por isso ela recebia por
dia. Além da extensão da jornada, ainda havia as viagens – pois o rodeio era itinerante,
montagem e desmontagem da barraca de pastel. Conforme lembrou, os netos começaram a
pedir que ela não viajasse mais, que passasse mais tempo em casa, e por isso ela desistiu de
trabalhar assim, e decidiu aceitar o emprego no restaurante onde eu a conheci. “Eu tenho 8
meses sem registro, né, que eu fiquei enrolando pra entregar os documentos, porque eu não ia
ficar aí. Eu disse que essa menina aí que briga muito, e eu não ia ficar aí, e vou fazer um ano,
dia 12 de dezembro, registrada”.
Como Helena afirmava que não tinha medo de trabalho, o fato de não se dar bem com
outra funcionária - “essa menina aí” - pesava para que ela não aceitasse o trabalho e ter
passado oito meses considerando a ideia de sair. Apesar dos problemas com a colega, a quem
considera responsável por tudo de errado que acontece no restaurante, ela decidiu ficar porque
tem uma relação boa com outros colegas e, sobretudo, com os patrões.

O patrão não mandou ela embora porque tem duas funcionárias que ele ainda
tá pagando, né? Mas vai mandar ela embora. É difícil, coitado. Ele veio dar
uma levantadinha agora. Até o pagamento da gente ele paga em pedaço, que
eu já ia sair por causa disso, aí depois ele me pediu pelo amor de Deus,
também fiquei com dó, sabe. (...) Aqui tem muito restaurante, e outra, eu
tive restaurante, eu entendo. Eu falo pra ele "eu só não posso atrasar o meu
aluguel, o meu aluguel eu não posso atrasar", eu falei pra ele.

Helena defende os donos do restaurante, fala sobre os problemas acarretados com a


crise econômica, como se o estabelecimento fosse dela. Além do bufê, ela circula pelo salão e
oferece alternativas para os clientes que não estão satisfeitos com as opções já prontas. Para
os clientes que não comem carne, ela sugere um omelete que prepara na hora. E mesmo
quando a dona diz que não é possível atender essas demandas, ela resiste. “Ela [a patroa] diz
224

"você não vai dar conta", falei, a senhora não tem que pensar nisso que não dá conta,
funcionário tem que se virar. O cliente quer um omelete, tem que sair de lá o omelete”.

Eu ajudo, sabe por quê? Porque uma que eu tenho que saber atender direito,
entendeu? Que com a crise que tá não dá pra perder cliente, você concorda?
Aí o cliente fala "ah, mas eu não como isso", eu falo "quer um omelete? quer
um ovo frito?". Eu ofereço. "Você quer mudar sua carne por uma linguiça?",
entendeu? Ninguém fala.

Todo esse engajamento no trabalho não altera seu salário, como ela aponta, que é pago
“em pedaços” e consiste em 1.260 reais por mês, com a promessa de chegar a 1.500 reais
assim que o patrão quitar as dívidas, registrado em carteira. Em sua percepção, o salário é
baixo, e não tem o adicional das gorjetas ou caixinha.

Helena: É baixo. E outra, eu ainda tenho que inventar.


Entrevistadora: É você que inventa?
Helena: Eu que invento. (...) Invento, eu faço coxinha, coloco no bufê, faço
bolinho, faço torta, entendeu, eu faço um monte de coisa.

Também é Helena que faz a lista de compras, confere os insumos, controla o que está
na geladeira e supervisiona o trabalho de duas ajudantes. Ou seja, embora ela se identifique
como cozinheira, ela faz o trabalho de chef. Mas recebe salário de cozinheira. Sua jornada no
restaurante começa às 8h e vai até 16h.

Eles dão almoço, mas tem vezes que eu não almoço. Que assim, você às
vezes mexe tanto com comida que você já fica com o cheiro da comida e não
sente fome. Eu falei, vou comer só salada, aí eu chego em casa e fico com
fome.

Ela afirma que trabalha intensamente porque tenta terminar o serviço o mais rápido
possível, para voltar para casa e ficar com os netos. Em casa, ainda prepara o jantar da
família. Quando perguntei se ela tinha tempo para descansar, respondeu: “Só de domingo, e
de vez em quando, porque tem que lavar roupa. Mas domingo agora eu vou descansar, porque
eu lavei roupa ontem. Fiquei até 1h da manhã”.
A trajetória profissional de Helena se equilibra entre o trabalho formal e o informal,
com ou sem registro, por conta própria, em casa de família, como ambulante. Ela pontua que
trabalhando dessa forma ganha mais, mas entende que isso acarreta mais trabalho e que é
melhor “ter aquele dinheiro”. Algumas vezes, cita o desejo de abrir um negócio para as filhas,
mas sabe que teria de assumir uma parte do trabalho, e isso seria uma sobrecarga pesada.
225

Só que aí eu podia montar pras minhas filhas. Só que elas não têm o mesmo
pique que eu tenho. Pra eu chegar agora, que nem eu saio daqui 4h, fazer
tudo isso pra vender à noite, digamos, até 1h da manhã? Eu sei que eu
vendo, mas é muito cansativo.

Assim, conforme Araújo (2011: 183), existe uma crescente diversidade entre os
trabalhadores ambulantes, inclusive de pessoas com alta escolaridade (os “camelôs da
tecnologia”), mas esta continua sendo uma forma de trabalho precária, que oferece uma
possibilidade de geração de renda para aqueles (e principalmente aquelas) que não conseguem
retornar ao mercado formal, ou seja, um emprego formal, e que não podem ficar muito tempo
sem trabalhar.

6. Considerações finais do capítulo

A partir da heterogeneidade do trabalho por conta própria, considerando os/as


proprietários/as de estabelecimentos e os/as empreendedores/as de si mesmos/as, procurei
mostrar neste capítulo que as relações de gênero, classe e raça também se articulam nessas
modalidades de trabalho, em detrimento das mulheres negras de origem social mais pobre.
Comparei o trabalho por conta própria em São Paulo e em Paris, porque tais relações se
encadeiam de maneira semelhante nas duas cidades, sendo que, na última, a questão da
migração ganha importância.
Observei que para as mulheres esta modalidade de trabalho é mais valorizada por
causa da suposta flexibilidade que oferece e a possibilidade de conciliar horários com a vida
familiar – mesmo que esta ainda esteja na fase de planejamento. As condições de trabalho em
cozinhas de restaurante, seja pelo esforço físico, por situações de assédio, seja pela extensão
da jornada de trabalho, ou mesmo por um ethos profissional que valoriza o comprometimento
total com o trabalho, dificulta muito a ascensão das mulheres aos cargos de chefia, o que
também pode ser considerado um elemento importante para que elas decidam trabalhar por
conta própria.
Renata Gonçalves (2011: 9) enxerga esse processo como um “duplo aprisionamento”
das mulheres: “Em um sentido, são aprisionadas face à verdadeira deterioração de suas
condições de trabalho e, em outro sentido, o aprisionamento advém da falta de uma
redefinição de papéis entre homens e mulheres na esfera doméstica”. Assim, o trabalho que se
ajusta melhor à rotina de trabalhos domésticos e de cuidados das mulheres acaba por submetê-
226

-las a condições piores e remuneração inferior, ao mesmo tempo que as torna reféns do lar e
da família. Ainda de acordo com a autora: “A dominação capitalista de classe se efetiva
produzindo e reproduzindo ‘diferenças’ que, no fundo, reforçam desigualdades, inclusive de
gênero” (idem).
A relação entre trabalho formal e informal foi tratada de maneira complementar e
concomitante, não excludente, porque as entrevistas indicam que “atividades e formas de
exercício do trabalho consideradas informais (porque ilegais, desprotegidas, não assalariadas
ou voltadas para a subsistência) se combinam e se entrecruzam com atividades e formas de
trabalho definidas como formais” (ARAÚJO, 2011, p.184).
227

Considerações finais

Nesta tese, procurei ser fiel às proposições de Sandra Harding (1989) e problematizar
as questões de pesquisa tomando o ponto de vista das mulheres de maneira central. Também
procurei considerar a concepção elisiana da relação entre indivíduo e sociedade, a fim de
pensar as realidades dos trabalhadores e trabalhadoras em cozinhas como processos dentro de
um processo mais amplo, como uma rede de interdependências em constante mudança.
Iniciei a tese com uma reflexão histórica sobre o trabalho culinário, buscando mostrar
suas principais mudanças e permanências ao longo do tempo. Enquanto hoje os/as chefs
ganham visibilidade em publicações, revistas, internet e programas televisivos, transcendendo
o espaço da cozinha e popularizando ingredientes e técnicas que, até então, eram restritos
aos/às iniciados/as, muitos aspectos das relações de trabalho remetem às corporações de ofício
da Idade Média. A relação entre mestre e aprendiz, a construção de um saber empírico on the
job e a valorização da experiência profissional permaneceram muito similares ao longo dos
séculos. O ethos profissional, baseado, sobretudo, em um comprometimento com o trabalho e
com a equipe, a responsabilidade daqueles/as que preparam a comida de outras pessoas, o
sentimento de pertencimento a um grupo e a lealdade aos colegas também constituem
elementos de permanência.
O trabalho em cozinhas já estava, no nascimento do restaurante, intimamente
relacionado à divisão sexual do trabalho. Busquei mostrar como, historicamente, o trabalho
culinário realizado por mulheres foi alvo de difamação e inferiorização, como desde o
surgimento do restaurante (como instituição moderna), o trânsito de mulheres nas cozinhas
era vetado. Ainda que se reconhecesse que as mulheres poderiam ser boas cozinheiras, seu
trabalho sempre foi limitado às cozinhas domésticas, seja da própria casa, seja das casas
burguesas, onde também se realizavam jantares luxuosos, mas em que a cozinheira nunca
obtinha reconhecimento. Mais adiante, conforme os cozinheiros passam a se enxergar como
categoria profissional e a se organizar para reivindicar direitos, a exclusão das mulheres é uma
estratégia para afastar a categoria do trabalho doméstico e, portanto, para valorizar a
profissão.
No Brasil, para além do jugo colonial, há uma mudança a partir dos anos 1990, com a
abertura das importações e uma mudança no perfil dos trabalhadores de restaurantes. Mesmo
que historicamente (e até hoje) o trabalho nas cozinhas seja associado a um trabalho pesado,
228

que demanda pouca qualificação e que, portanto, recebe pessoas de classes sociais mais
baixas e pouca escolaridade (nas entrevistas, esse perfil aparecia muito associado aos
"nordestinos", um termo que remete aos migrantes mas também tem um componente de
discriminação), jovens dos estratos médios que fazem ou fizeram cursos na área começam a
entrar nas cozinhas. Isso cria uma série de problemas e tensões nesse espaço, principalmente
do ponto de vista da autoridade e da organização do trabalho, uma vez que muitos dos
"nordestinos" são profissionais com muita experiência e que resistem às ideias dos jovens de
classe média, que, por sua vez, não aceitam receber ordens de pessoas com menos
qualificação. As relações de classe e origens sociais aportam alguns conflitos para as brigadas.
A partir dos anos 2000, principalmente, com o aumento da oferta de cursos na área da
gastronomia e com um incremento da visibilidade do trabalho culinário em diversas mídias, o
perfil do jovem classe média que entra nos restaurantes coloca uma nova perspectiva de
carreira e de crescimento profissional nesse segmento. Para além dos cursos, a possibilidade
de fazer estágio em grandes restaurantes (mesmo que não remunerados, o que é possível
graças à sua posição de classe) e trabalhar com chefs famosos, assim como experiências no
exterior, acirram a competitividade de quem almeja construir uma carreira e um nome na
profissão.
Com relação à formação profissional, a pesquisa revelou uma forte influência das
relações de classe, no que diz respeito ao tempo dedicado aos estudos ou cursos, assim como
à possibilidade de realizar estágios não remunerados. Pessoas jovens, sem responsabilidades
familiares (aqui, os homens também têm mais vantagem do que as mulheres, o que demonstra
a imbricação entre as relações de gênero e classe), que podem contar com o apoio dos pais ou
da família para se sustentarem enquanto estendem seu tempo de formação, têm mais
oportunidades de conseguir bons empregos, e ainda juntar dinheiro para abrir seu próprio
negócio ou mesmo mobilizar amigos e família para investirem.
No caso do trabalho por conta própria e dos serviços de alimentação, a condição de
classe também possibilita uma série de articulações que oferecem vantagens, como reformar a
casa, adquirir freezers e outros equipamentos, criar uma identidade digital para fazer
marketing nas mídias sociais, entre outras.
Apesar do aumento na quantidade de estabelecimentos e da força de trabalho
empregada em restaurantes no Brasil, a organização do trabalho em brigadas e a forte
hierarquia na cozinha permanecem. Sintetizei as diversas atividades da cozinha em três
ocupações que correspondem à hierarquia (auxiliar, cozinheiro/a e chef), e observei como, do
ponto de vista do emprego formal (dados da Rais), as mulheres são maioria nos cargos de
229

auxiliar e cozinheira, e os homens são majoritários entre os chefs. Isso revela que a autoridade
exercida na cozinha, que é muito vertical e emana da figura do chef, tem características
eminentemente masculinas - impor o ritmo, chamar a atenção dos demais, acelerar a
produção, entre outras - algo que apareceu nas entrevistas como "voz de comando".
Essa masculinidade, como pretendi demonstrar, transforma a cozinha de restaurante
em um espaço hostil para as mulheres, em que elas precisam criar estratégias para serem
respeitadas e integradas, o que é ainda mais difícil quando assumem cargos de chefia. Como
uma das entrevistadas mencionou, ser contratada não é o mais difícil. O desafio é permanecer
no trabalho, fazer com que os homens obedeçam, fazer com que as ordens sejam seguidas.
Nesse sentido, as relações de gênero, classe e raça atuam fortemente. Cabe às mulheres se
fazerem respeitar, seja adotando comportamentos "masculinos" (imitando os homens e
abrindo mão das suas características "femininas"), seja assumindo uma postura profissional
dura, seja abrindo mão de trabalhar em restaurantes e procurando alternativas de ter o próprio
negócio.
A pesquisa também revelou que, para além da divisão sexual do trabalho que está
colocada de forma mais ampla na sociedade, em que às mulheres cabe o mundo da família e
do trabalho doméstico e de cuidados, enquanto aos homens abre-se o mundo "externo" e do
trabalho profissional, a divisão do trabalho em cozinhas tem um forte componente de gênero.
Existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres, que acionam a ideologia naturalista e
associam determinados comportamentos e habilidades "naturalmente" a homens e mulheres.
Aos homens está reservado o trabalho nobre com carnes, que demanda força física, que
remete à conquista do fogo, assim como a chefia e a direção. Às mulheres cabe a cozinha fria,
as entradas e sobremesas, que demandam mais atenção aos detalhes, mais cuidado, mais
destreza, mais delicadeza e capricho.
A separação de homens e mulheres que coloca os homens em vantagem quando se
trata de chefiar e assumir o comando, que de um lado naturaliza relações sociais e, de outro,
revela seu caráter de conflito (que Danièle Kergoat postula como as relações sociais em torno
do enjeu) propicia e normaliza situações de assédio e assédio sexual. Nas palavras de alguns
entrevistados, há coisas que acontecem na cozinha que pessoas de fora considerariam
absurdas, mas que os insiders tomam como ordinárias. Em um ambiente que valoriza
características masculinas e que valoriza um comportamento de coesão grupal, o assédio
assume diversas formas e penaliza sobretudo as mulheres. Brincadeiras de cunho sexual e
homofóbico, muitas vezes entre o próprio grupo de funcionários, podem servir para fortalecer
vínculos de amizade e união, mas exclui e discrimina quem não participa.
230

O assédio pode ter diversas consequências sobre a saúde mental dos/as


trabalhadores/as, como depressão, insônia e até síndrome do pânico. Muitas das entrevistadas
que relataram ter vivido situações de assédio no trabalho relataram que, nesse caso, a
rotatividade do setor é uma vantagem, pois é possível conseguir outro trabalho na área, e,
portanto, basta mudar de emprego. Entretanto, ainda que isso funcione do ponto de vista
individual, o assédio não é discutido e nem tratado como problema nesse ambiente de
trabalho. O(s) assediador(es) seguem agindo da mesma maneira, e a vítima é que muda de
trabalho. Isso reforça a ideia de que o problema não é o assédio em si, mas a pessoa que “não
sabe brincar”, “não aguenta brincadeira”, “é mal-humorada” etc.
Suportar esse tipo de situação também pode ser necessário na medida em que o
mercado de trabalho nessa área se baseia muito nas redes de contato e indicações pessoais. Se,
como espero ter demonstrado, o ethos da profissão reside sobre e valoriza o
comprometimento e a ética de trabalho, há um peso grande nas indicações para vagas de
emprego. Nesse sentido, aguentar trabalhar com alguém reconhecidamente "difícil" ou em um
estabelecimento em que, sabidamente, a jornada é mais dura, é como uma credencial para
realizar outros trabalhos. Principalmente no caso dos jovens que estão fazendo estágios, criar
uma rede de contatos sólida pode passar por "entrar na brincadeira". Reclamar muito, mostrar-
se insatisfeito/a, denunciar situações desagradáveis (e até ilegais) são atitudes repreensíveis e
podem resultar em represálias.
Para as mulheres, que têm responsabilidades familiares e domésticas além das
profissionais, o tipo de dedicação e comprometimento com o trabalho que o ethos dos
cozinheiros (sim, no masculino) exige pode ser inalcançável. Por estarem livres das
responsabilidades do trabalho doméstico e de cuidados, os homens têm mais condições de
investir em suas carreiras e no trabalho, especialmente quando se trata do trabalho por conta
própria. Entre os entrevistados homens, encontrei aqueles que, além de trabalharem em um
restaurante durante um período (almoço ou jantar), eles faziam coisas para vender ou
organizavam eventos no bairro, em seus períodos e dias de folga. Já as mulheres dedicavam
seus períodos e dias de folga para lavar roupa, fazer a comida da semana, cuidar dos filhos e
netos etc., ou seja, para dar conta de toda demanda da casa.
Principalmente para as mulheres negras de classe social mais baixa, cuja conciliação
entre trabalho e família tende a ser mais complicada (com menos possibilidade de terceirizar o
trabalho doméstico e de cuidados para além de uma rede de apoio familiar ou de vizinhas), a
carreira nas cozinhas fica mais complexa.
De uma parte, essas mulheres sofrem com o machismo desses espaços, e com o
231

racismo estrutural, que está colocado na sociedade. A origem social (mulheres pobres, no
Brasil, ou as imigrantes, na França) também contribui para limitar o acesso a vagas de
trabalho, que as relega às ocupações com menor remuneração e/ ou mais precárias. Esta
parece ser uma convergência entre as teorias da interseccionalidade (CRENSHAW, 2020;
HILL COLLINS, 2015), consubstancialidade (KERGOAT, 2010) e do nó (SAFFIOTI, 1993,
2015).
De outra parte, o movimento social, tanto o movimento negro quanto o feminista, tem
denunciado e lutado paulatinamente para mudar essas relações, tanto no mundo do trabalho
como na sociedade como um todo. E ainda que seja possível perceber que ainda há muito
caminho a percorrer para acabar com as discriminações e opressões, é preciso reconhecer
algumas conquistas (até porque tais conquistas precisam ser defendidas: o atual contexto
político tem revelado com que facilidade se subtraem direitos). A comparação entre as
trajetórias de mulheres negras revela a importância da questão geracional. Enquanto as
mulheres negras mais velhas iniciaram a vida profissional ainda crianças, no emprego
doméstico, tendo passado grande parte da sua juventude trabalhando em "casa de família" e
tendo tomado consciência, já mais maduras, sobre seus direitos e sua própria capacidade de se
defender do racismo e do machismo, as mulheres negras mais jovens assumem uma postura
mais "desaforada" (essa expressão foi utilizada por uma das entrevistadas), mais combativa e
mais aguerrida.
As mulheres negras mais velhas, quando saem do trabalho formal e precisam criar
estratégias para trabalhar por conta própria ou de forma autônoma (principalmente com
serviços de consultoria ou catering) encontram mais obstáculos. Seus conhecimentos
provenientes da experiência profissional são desvalorizados, na medida em que isso pode
servir de barganha para quem contrata seus serviços. A lógica da superexploração se revela na
insubordinação dos funcionários, não pagamento de serviços e até na desqualificação do seu
trabalho.
Nesse momento, após a aprovação da reforma trabalhista (que representa um ataque
aos direitos adquiridos e precarização do emprego) e o aumento do desemprego no Brasil, a
tendência parece ser o aumento do trabalho informal e por conta própria, o que está em
consonância com a chegada e o crescimento das plataformas digitais (algumas já populares,
como a Uber, mas que vem se consolidando também no segmento dos serviços de
alimentação), que aprofundam desigualdades sociais e criam oportunidades de geração de
renda à margem dos direitos. Considerando esse segmento, dos/as cozinheiros/as, que já é
caracterizado por alta rotatividade e baixos salários, o cenário parece indicar que a situação
232

deste mercado de trabalho vai piorar.


Do ponto de vista das relações de gênero e dos papéis sociais generificados, o trabalho
culinário não parece estar caminhando muito rapidamente para a desconstrução desses
estereótipos. Ao contrário, parece que esse é um espaço onde trabalhos de homens e trabalhos
de mulheres se sustentam e se reproduzem.
Reconheço, entretanto, uma lacuna na pesquisa, que considero um caminho não
trilhado e que parece profícuo: a presença de pessoas LGBT e não binárias. Como essa não
era uma preocupação inicial, ao longo das entrevistas, eu não questionei ninguém sobre isso.
Mas na França encontrei uma mulher brasileira que parecia assumir todos os estereótipos
masculinos: ela era chef, dirigia uma brigada de homens de Bangladesh, gritava e confessou,
inclusive, que jogava coisas ("hoje não atiro mais"). Apenas quando a entrevista se
aproximava do fim, quando perguntei sobre família, ela revelou o desejo de ter filhos, mas
salientou "quem vai engravidar é minha mulher, eu não quero engravidar". Só então eu
percebi que ela era lésbica. Eu não perguntei, ela não falou. Não havia mais tempo para
conversar, ela já estava se levantando - talvez ela não quisesse falar sobre isso. Mas saí
pensando sobre os arranjos possíveis em um casal do mesmo sexo, nesse caso, duas mulheres,
em que existe a possibilidade de programar quem vai engravidar.
Outro entrevistado brasileiro na França sofreu uma série de assédios e ameaças por
parte de seus empregadores brasileiros em Paris, que se aproveitavam de sua condição de
"ilegal" para fazer descontos em seu salário, mudar suas folgas e até demiti-lo sem justa
causa. Ele me revelou que, saindo do trabalho com uma colega, também brasileira, encontrou
o namorado na rua e, no dia seguinte, foi mandado embora. Ele me garantiu que os donos do
restaurante ficaram sabendo que ele namorava outro homem e não quiseram mais que ele
trabalhasse lá. Depois de uma série de percalços e momentos difíceis, sua história converge
com os contos de fada quando ele se casa com um francês. Agora ele tem a cidadania, os
papéis, e não precisa mais se submeter a nenhuma ameaça de patrão. Ele escolheu o
restaurante onde queria trabalhar, começou a fazer cursos oferecidos pelo governo e já estava
falando em adoção.
Nesse sentido, considerando essas histórias como pequenos fragmentos, reconheço
que trajetórias de pessoas LGBT e não binárias podem trazer novas direções de pesquisa e
jogar novas luzes sobre a divisão sexual do trabalho nesse segmento profissional. Todavia,
essas entrevistas estão entre as últimas e precisariam ser balizadas por outras teorias,
referentes às pessoas LGBT e à questão da migração com mais atenção, o que não seria
possível nos limites dessa tese, mas que oferecem caminhos de análise interessantes.
233

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Anexo Metodológico – Entrevistas

Um dos maiores desafios para realização dessa tese foi conseguir conversar com
cozinheiros e cozinheiras que estivessem trabalhando em restaurantes. Abordar esses
trabalhadores em seus locais de trabalho demonstrou ser improdutivo. Seja porque o/a dono/a
ou gerente solicitava que esses trabalhadores falassem comigo, o que os deixava muito
desconfiados, seja porque eles não tinham, de fato, interesse em conversar, ir até os
restaurantes e pedir para conversar com as pessoas era cansativo e não dava resultados.
Como apontei na Introdução da tese, comecei a acionar minhas redes pessoais, amigos
e amigas que conhecessem pessoas que trabalhavam em restaurantes, conhecidos/as que
tivessem algum contato. Esse caminho começou a apresentar resultados mais promissores.
Em uma ocasião, entrevistei dois funcionários de um restaurante grande em um hotel
em Embu das Artes. A conversa com eles se seguiu a uma longa e profícua entrevista com a
nutricionista e responsável pelo RH do restaurante, que solicitou que eles conversassem
comigo. Os dois me esperavam em um café no centro daquela cidade, fora de seu horário de
trabalho. Exceto por alguns momentos de compartilhar anedotas e contar “causos”, a
entrevista foi um fracasso. Os dois ficaram constrangidos, se negaram a falar sobre vários
assuntos. Mais tarde, soube que o homem era superior hierárquico da mulher, e por isso tantos
silêncios e tanto desconforto.
Lição aprendida: ao conversar com duas pessoas, é preciso ter muito claro qual a
relação entre eles e, se possível, agendar conversas individuais. Nenhum dos dois me atendeu
depois disso. Eles compareceram porque sua chefe mandou. Sem uma ordem expressa dela,
não precisavam mais ir. Como nossa conversa foi intermediada pela chefe deles, não
confiaram em mim.
Entrevistei um cozinheiro próximo do restaurante em que ele trabalhava e ele chamou
uma colega, estagiária, para conversar comigo. A conversa com ambos foi muito rica e eles
trouxeram muitos elementos, mas a partir de um momento, o rapaz começou a tratá-la como
sua estagiária, ou melhor, a tratá-la como seu superior. Falava por cima dela, respondia
perguntas que eram feitas a ela, pôs-se a dar conselhos. Comecei a resistir muito à ideia de
fazer entrevista com mais de uma pessoa. Mas existem contextos em que funciona melhor.
Segundo Beaud e Weber (2007), "acontece muitas vezes que uma entrevista que
deveria ser cara a cara se transforme, no dia, em entrevista coletiva. O pesquisado faz-se
244

acompanhar por amigos ou colegas. Claro que 'você a fará' e a realiza como se nada estivesse
acontecendo. Em compensação, é importante que reflita a seguir na situação da entrevista: por
que esse número maior?" (p.133). As respostas podem ser muitas, mas a reflexão é
fundamental para analisar o que foi dito.
Uma conversa informal, um bate-papo com café, podem ser mais reveladores do que
seguir um roteiro preestabelecido e tentar obter determinadas informações. Ter paciência,
conversar, trocar, comer bolo e escutar atentamente pode demorar mais que uma entrevista,
mas possibilita muito mais ganhos qualitativos. Tive a oportunidade de conversar com uma
grande chef, uma mulher incrível e generosa, que me recebeu em sua casa com um bule de
café quente e um bolo de fubá. Comigo estava outra cozinheira, sua amiga pessoal, que
intermediou nosso contato e que, coincidentemente, também levava um bolo de fubá. Passei
mais de cinco horas com elas, numa tarde emocionante. O tom informal da conversa entre
elas, na qual eu algumas vezes fazia uma ou outra pergunta, pedia algum esclarecimento,
permitiu que trocassem experiências e conversassem entre elas, revelando um universo para
mim desconhecido. A cozinheira, que eu já havia entrevistado, havia me respondido
claramente “eu nunca sofri racismo, não”. Mas durante a conversa com sua amiga, também
negra, que narrava história após história de discriminação, ela se sentiu à vontade para
compartilhar como também havia vivenciado o racismo.
Também houve uma situação em que uma banqueteira topou me dar uma entrevista em
um clube de elite na zona Sul de São Paulo. Era uma tarde quente de quarta-feira e eu
consegui entrar no clube graças a uma amiga, sócia da agremiação, e que nos colocou em
contato. Ela estava animada em dar a entrevista, mas não me autorizou a gravar. As gravações
do então presidente e ex-vice-presidente Michel Temer por Joesley Batista tinham acabado de
se tornar públicas. Ela mesma mencionou tal episódio ao me pedir que não gravasse a
conversa. Talvez estivesse com receio que eu pudesse usar, contra ela, algo que ela tivesse
dito. Talvez não quisesse um registro formal do que me diria. Então nós apenas conversamos,
tomamos café, assistimos cavalos saltando no picadeiro, como as outras pessoas que lá
estavam. Muito da conversa se perdeu, já que não foi possível gravar. Por outro lado, ela se
sentiu muito mais à vontade para fazer comentários e afirmações que não teriam registro,
como, por exemplo, “rolava muito pó, sim, principalmente os garçons, garçom ganhava bem
naquela época, cheirava muito” ou “vinha aquele povo do Nordeste pedir emprego, a gente
fazia assim: tem dentes bons, vai pro salão; não tem, vai pra cozinha”.
Dentre os entrevistados, houve quem trabalhasse em restaurantes pequenos, onde
apenas uma cozinheira e uma ajudante faziam todo o trabalho da cozinha, até cozinhas
245

maiores, com equipes de 15 ou 20 cozinheiros. Também foram entrevistadas pessoas que


trabalhavam em restaurantes populares, de bairro, servindo comida por quilo, e aqueles que
trabalhavam em restaurantes sofisticados, chiques, que integravam guias gastronômicos de
São Paulo.
Quando iniciei o período do sanduíche, passado um primeiro momento de adaptação,
comecei a procurar brasileiros e brasileiras que residissem em Paris e trabalhassem em
cozinhas. Uma moradora da Maison du Brésil me colocou em contato com o antigo chefe de
sua filha, dono de um restaurante, que concordou em me dar entrevista. Uma colega brasileira
no Laboratório do GTM passou o contato de uma amiga sua, também chef. Um vizinho me
apresentou uma outra cozinheira. Encontrei um quiosque de comida brasileira num dos
mercados de Paris, fui diretamente conversar com a proprietária e ela aceitou me dar
entrevista. A procura por essas pessoas ocorreu forma menos sistemática e seguiu a premissa
de que eu falaria com quem estivesse disposto a conversar comigo – conduta que norteou meu
comportamento no campo desde o começo.
Provavelmente em função das redes de contatos pessoais que me levaram aos meus
entrevistados, há mais pessoas com Ensino Superior e Pós-Graduação do que seria o correto
para compor uma amostra condizente à realidade desse segmento profissional. Como
veremos, 98,4% dos trabalhadores formais em estabelecimentos de alimentação têm até o
Ensino Médio completo, isto é, apenas 1,6% deles têm Ensino Superior. No conjunto de
entrevistados, entretanto, 19 pessoas tinham Ensino Superior completo, dentre as quais quatro
tinham Pós-Graduação. Como o contato com os cozinheiros foi muito complicado e só
realizado em função da articulação de redes pessoais e contato com pessoas do Senac, há esse
desequilíbrio com relação à escolaridade.
Nem todas essas pessoas, entretanto, tinham Ensino Superior em Gastronomia – ou
mesmo curso técnico na área. Dos entrevistados, sete pessoas concluíram a graduação em
outras áreas, como Economia, História, Publicidade e Jornalismo. Três pessoas possuíam
dupla titulação, ou seja, eram formadas em algum desses cursos e fizeram a graduação em
Gastronomia.
Sendo assim, as entrevistas, relatos, conversas e comentários que analisei e que
compõem o corpus dessa pesquisa é muito heterogêneo. Nem todos foram obtidos nas
mesmas condições de temperatura e pressão, nem todos foram fielmente registrados no
gravador, nem todos foram obtidos em condições ideais.
Ainda assim, meu principal material de análise são as entrevistas, que Beaud e Weber
(2007) chamam de "entrevistas etnográficas". Utilizo, aqui, a proposição desses autores por
246

entender que, ainda que eu tenha feito um número reduzido de entrevistas (foram 32, no
total), eu consegui reunir um corpus importante de depoimentos e informações, que conferem
legitimidade às análises.
Segundo esses autores, “as entrevistas aprofundadas não visam produzir dados
quantificados e, portanto, não precisam ser numerosas. Não tem por vocação ser
‘representativas’” (BEAUD e WEBER, 2007, p.119). De fato, não procurei profissionais que
"representassem" grupos ou identidades. O que eu procurei fazer, nem sempre com sucesso,
foi criar um ambiente para fazer a entrevista em que o entrevistado se sentisse o máximo
possível confortável e à vontade para falar. Alguns dos percalços de tal estratégia, além da
interdição do gravador, foram entrevistas em locais barulhentos, por exemplo.
Ainda de acordo com os autores,
Cada um de seus ‘entrevistados’ expressa, no contexto dessa interação
particular [a entrevista], um ponto de vista singular. Quanto mais fizer
aparecer a singularidade desse ponto de vista, mais interessante será a
entrevista. (…) Tal singularidade deve levá-lo a analisar o entrevistado como
um caso, a restituir a coerência desse caso, a refletir sobre sua pertinência:
caso-limite, caso ideal típico, pertencimento a uma família de casos. O
critério do número de entrevistas importa, portanto, menos que aquele que
consiste em associar as entrevistas à pesquisa de campo propriamente dita.

Assim, apresento a seguir uma tabela com as informações das pessoas entrevistadas,
acompanhada de um comentário sobre o momento de realização da entrevista.

Quadro 2 – Lista de Entrevistados

Pseudônimo Data da Gênero Raça/ Idade Escolaridade Ocupação


Entrevista Etnia
1 Lenice 7/4/15 Feminino Branca 30 Ensino Superior Chef
Completo (Economia
e Gastronomia)
Entrei em contato com Lenice porque li uma entrevista com ela na Revista Fórum, publicada em 2 de abril de
2015. Não compartilho o link da entrevista aqui para preservar seu anonimato, mas seus comentários sobre o
papel de uma mulher como chef de cozinha e suas dificuldades nesse ambiente de trabalho me levaram a
procurá-la. A entrevista foi realizada em um café no bairro de Pinheiros, São Paulo.
2 Daniel 21/8/15 Masculino Asiático 32 Ensino Superior Chef e
Completo Proprietário
(Gastronomia)
Daniel era ex-namorado de uma amiga. Concordou em me dar uma entrevista, em uma das mesas de seu
restaurante antes da abertura do serviço de jantar. Foi ele quem pediu a Elisa e Vitor que conversassem comigo.

3 Elisa 21/8/15 Feminino Branca 28 Básico Cozinheira

Elisa trabalhava no restaurante de Daniel e conversou comigo no espaço de descanso dos funcionários.

4 Vitor 21/8/15 Masculino Negro 32 Básico Sous-chef


247

Vitor trabalhava no restaurante de Daniel – que também considerava seu amigo pessoal –, e conversou comigo
no espaço de descanso dos funcionários.
5 Frederico 9/10/15 Masculino Branco 32 Ensino Superior Bancário
Completo
(Gastronomia)
Frederico é um amigo de infância. A entrevista foi realizada em sua casa, com a presença de sua mãe.

6 Rosana 27/10/15 Feminino Negra 41 Básico Auxiliar

Rosana era auxiliar de cozinha em uma pizzaria no bairro da Vila Mariana, São Paulo. Conversou comigo no
próprio restaurante, antes do serviço do jantar, a pedido da gerente do estabelecimento. Estava muito
desconfiada e desconfortável com a entrevista.
7 Valdemar 27/10/15 Masculino Negro 34 Ensino Médio Chef
Completo
Valdemar era chef da pizzaria no bairro da Vila Mariana, São Paulo, a mesma em que Rosana trabalhava.
Também foi a gerente do restaurante quem pediu que conversasse comigo, mas ele estava muito mais
confortável que Rosana.
8 Matias 18/2/16 Masculino Branco 25 Ensino Superior Primeiro
Completo cozinheiro
(Gastronomia)
Obtive o contato de Matias com uma amiga em comum. A entrevista foi realizada em uma padaria, ao lado do
restaurante em que ele trabalhava, antes do expediente. No dia da entrevista, estava com Carina e acabei
entrevistando os dois nesse primeiro momento.
9 Fernão 23/2/16 Masculino Branco 40 Ensino Médio Proprietário de
food-truck
Consegui o contato de Fernão por intermédio de minha mãe, que o conheceu na agência que ela trabalhava, no
bairro da Vila Leopoldina, São Paulo.
10 Joana 4/7/16 Feminino Branca 38 Ensino Superior Chef
Completo
(Gastronomia)
Enquanto ainda tentava fazer contato com o Sindicato dos Trabalhadores em Restaurantes, Bares e Similares de
São Paulo, e apesar de ter agendado conversa com o representante duas vezes, ele pediu que a chef do
restaurante, localizado no hotel do Sindicato, falasse comigo. Conversamos uma manhã no bar do hotel.
11 Silvana 22/7/16 Feminino Asiática 38 Ensino Superior Gerente de
Completo (Nutrição) Alimentos e
Bebidas
Silvana era amiga do meu irmão. Nutricionista, trabalhava como gerente de Alimentos e Bebidas em um hotel na
cidade de Embu das Artes (SP). No fim da entrevista e com o gravador desligado, Silvana falou sobre vários
problemas que enfrentava no trabalho e seu desejo de pedir demissão. Solicitou que Joelma e Carlos, seus
funcionários, falassem comigo.
12 Samira 25/7/16 Feminino Árabe Ensino Médio Proprietária
Completo e cozinheira
Samira foi entrevistada com a irmã, Isabel, em seu restaurante no bairro do Paraíso, São Paulo. Fiz contato com
ambas depois de ir duas vezes ao restaurante para falar sobre a pesquisa e pedir que ela conversasse comigo.
Conversamos no restaurante após o serviço do almoço, mas a chegada de vários parentes e amigos das irmãs
interromperam a entrevista.
13 Helena 27/7/16 Feminino Negra 49 Ensino Médio Cozinheira
Completo
Helena era cozinheira em um restaurante de comida caseira no bairro de Pinheiros, São Paulo. Eu a conheci por
intermédio de um amigo que frequentava o estabelecimento e já tinha alguma intimidade com ela. Conheci-a e
agendei a entrevista para o outro dia. Conversamos no bar do outro lado da rua, após o serviço do almoço.
14 Joelma 1/8/16 Feminino Negra 53 Ensino Médio Saladeira
Completo
Joelma trabalhava no restaurante de um hotel na cidade de Embu das Artes (SP). Conversou comigo a pedido de
sua chefe, Silvana, ao lado de Carlos, em um restaurante no centro do Embu, fora do horário de trabalho, em seu
dia de folga. Joelma era amiga do meu irmão.
15 Carlos 1/8/16 Masculino Indígena 53 Ensino Médio Primeiro
Completo cozinheiro
248

Carlos era chef de brigada no restaurante de um hotel na cidade de Embu das Artes (SP). Conversou comigo a
pedido de sua chefe, Silvana, ao lado de Joelma, em um restaurante no centro do Embu, fora do horário de
trabalho, em seu dia de folga. Apenas depois da entrevista, por conta das relações de amizade entre Joelma e
meu irmão, soube que Carlos era seu superior hierárquico na cozinha.
16 Gustavo 29/8/16 Masculino Branco 30 Ensino Superior Coordenador
Completo Pedagógico de
(Gastronomia) cursos de
Gastronomia
Entrei em contato com uma renomada escola de gastronomia localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo,
e conversei com Guilherme. Ele se interessou pela pesquisa e agendamos uma conversa na própria escola, após
o expediente. Por seu intermédio, entrevistei o chef Décio e participei de uma atividade com estudantes da pós-
-graduação nessa mesma escola.
17 João 1/9/16 Masculino Asiático 40 Ensino Superior Sushiman
Completo
João trabalhava em um restaurante de fast-food japonês, em um supermercado no bairro do Ipiranga, São Paulo.
Conversamos em um momento em que o restaurante tinha pouco movimento e agendamos a entrevista para o
dia seguinte, na praça de alimentação do supermercado, antes de seu expediente.
18 Décio 24/11/16 Masculino Branco 48 Ensino Superior Professor do
Completo Senac, ex chef de
(Gastronomia) e Pós cozinha
Graduação
Décio era professor de Gastronomia e conversou comigo por solicitação do coordenador, Gustavo. Conversamos
em uma sala vazia na escola, antes do seu expediente.

19 Carina 18/02/2016 Feminino Branca 18 Ensino Superior Estagiária


30/06/2016 Incompleto
(Gastronomia)
Carina era estagiária em um restaurante sofisticado no bairro dos Jardins, em São Paulo. Nossa primeira
conversa foi ao lado de Matias (com quem eu havia agendado a entrevista). Agendei outra entrevista com ela, no
mesmo local da primeira, e conversamos só nós duas.
20 Suyama 22/9/17 Masculino Asiático 49 Ensino Médio Chef

Conversei com o chef Suyama muito rapidamente durante o I Encontro Mundial de Chefs. Ele aceitou me
conceder uma entrevista, desde que fosse naquela mesma hora, no auditório do evento.

21 Lídia 4/10/17 Feminino Negra 37 Ensino Superior


Proprietária de
Completo (Jornalismo)
serviço de
catering, fotógrafa
Conheci Lídia por meio de amigas da minha mãe. Conversamos uma tarde em sua casa no bairro da Pompeia,
São Paulo.
22 Cidinha 17/10/17 Feminino Negra 60 Ensino Médio Culinarista de TV
Santiago Completo

Conheci Cidinha Santiago no I Encontro Mundial de Chefs. Gravei a entrevista em sua casa, no bairro de
Santana, São Paulo.

23 Benedita 6/11/17 Feminino Negra 73 Ensino Superior Cozinheira,


Ricardo (Senac Águas de São proprietária de
Pedro) serviço de
catering,
professora
Conheci a chef Benê Ricardo por intermédio de Cidinha Santiago, sua amiga. Conversei com Benê algumas
vezes por telefone, mas fui entrevistá-la com Cidinha Santiago, em sua casa, também no bairro de Santana, São
Paulo.
24 Alberto 21/3/18 Masculino Branca 35 Ensino técnico em Chef
Portugal
Alberto era chef de um bistrô no bairro de Pinheiros, São Paulo. Conheci-o por intermédio de uma das sócias do
bistrô, amiga de uma amiga. Conversamos no próprio estabelecimento, um pouco antes do início do serviço do
jantar.
249

25 Manuela 16/5/18 Feminino Branca 31


Superior Completo Chef Confeiteira
(Publicidade)/ Pós
Graduação em
Gastronomia
Brasileira
Manuela me foi apresentada por uma amiga, sua colega na pós-graduação em Gastronomia Brasileira.
Conversamos em uma livraria no centro de São Paulo.

26 Talita 20/6/18 Feminino Branca 38 Superior Completo Cozinheira


(História e
Gastronomia – Pós-
Graduação Senac)
Talita é minha amiga.
27 André 21/12/18 Masculino Branco 41 Ensino Médio Chef e
proprietário em
Paris
Uma vizinha na Maison du Brésil, em Paris, me passou o contato de André, ex-chefe de sua filha na capital
francesa. Conversamos no restaurante de seu sócio, no horário de almoço, mas ele não estava trabalhando.
28 Thais 30/1/19 Feminino Negra 51 Ensino Médio Chef
Conheci Thaís por intermédio de uma pesquisadora brasileira que estava de passagem pelo Laboratório do
CRESPPA, em Paris. Conversamos em sua casa.
29 Mariana 31/1/19 Feminino Negra 31 Superior Completo Cozinheira e
(Jornalismo e proprietária
Gastronomia)
Maria é proprietária de um pequeno restaurante de culinária brasileira em um mercado popular de Paris.
Abordei-a no próprio restaurante, e agendamos uma conversa após o serviço de almoço, um dia de semana. Ela
interrompeu a entrevista duas vezes porque havia clientes no restaurante e ela precisou ajudar na cozinha e
atendê-los.
30 Ana Paula 13/2/19 Feminino Branca 32 Ensino Superior Chef
Completo
(Publicidade)
Conheci Ana Paula por intermédio de um amigo em comum em Paris. Começamos nossa conversa na cozinha
do restaurante, onde ela pretendia falar comigo e continuar trabalhando. Logo ficou evidente que não seria
possível, e sentamos para conversar em uma das mesas do restaurante após o serviço do almoço.
31 César 7/6/19 Masculino 35 Ensino Médio Cozinheiro
Completo
Entrei num restaurante brasileiro em Paris e pedi para conversar com o cozinheiro. A gerente me apresentou
César e ele concordou em conversar comigo em outro momento. Encontramo-nos em um café próximo de sua
casa numa tarde de sexta-feira. Ele ficou muito emocionado durante a conversa.
32 Rita 27/8/19 Feminino Branca 60 Superior Completo Cozinheira
(Gastronomia) e Pós
Graduação (Eventos)
Rita é uma antiga vizinha, amiga da minha mãe.
250

Anexo Metodológico – Dados da RAIS

Nesse anexo, apresento as ponderações metodológicas que orientaram o trabalho com


os dados da Rais e do Ministério do Trabalho e Emprego.

A Rais corresponde a um relatório preenchido pelos empregadores e entregues ao


Ministério anualmente. Existem informações que são obrigatórias, mas outras que não são, e
por isso há sempre uma linha que se refere aos “não classificados”, ou seja, as pessoas cuja
informação não foi disponibilizada. Quando oferecemos o dado em termos percentuais, os não
classificados foram descontados, a não ser que fossem tão significativos que precisaram entrar
como uma nova categoria.
Utilizei duas classes das Categorias Nacionais de Atividades Econômicas (CNAE),
elaboradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): “Restaurantes e outros
estabelecimentos de serviços de alimentação e bebidas” e “Serviços de catering, bufê e outros
serviços de comida preparada”.

Seção: ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO


Divisão: 56 ALIMENTAÇÃO
Grupo: 56.1 Restaurantes e outros serviços de alimentação e bebidas
56.2 Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida preparada

Com relação à primeira classe, o IBGE assim a descreve:


Seção: ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO
Divisão: 56 ALIMENTAÇÃO
Grupo: 56.1 Restaurantes e outros serviços de alimentação e bebidas
Classe: 56.11-2 Restaurantes e outros estabelecimentos de serviços de
alimentação e bebidas
Subclasse: 5611-2/01 Restaurantes e similares
5611-2/02 Bares e outros estabelecimentos especializados em servir bebidas
5611-2/03 Lanchonetes, casas de chá, de sucos e similares

Ainda segundo o site,


Esta classe compreende:
- as atividades de vender e servir comida preparada, com ou sem bebidas alcoólicas, ao
público em geral, com serviço completo
- as atividades de servir bebidas alcoólicas, com ou sem serviço de alimentação, com ou sem
entretenimento, ao público em geral, com serviço completo, tais como choperias, whiskerias e
outros estabelecimentos especializados em servir bebidas.
251

Esta classe compreende também:


- o serviço de alimentação para consumo no local, com venda ou não de bebidas, em
estabelecimentos que não oferecem serviço completo, tais como: lanchonetes, fast-food,
pastelarias, casas de sucos, botequins e similares
- os restaurantes self-service ou de comida a quilo
- as atividades de restaurantes e bares em embarcações exploradas por terceiros
- as sorveterias, com consumo no local, de fabricação própria ou não

Esta classe não compreende:


- Os trailers, carrocinhas e outros tipos de ambulantes de alimentação preparada para
consumo imediato (56.12-1)
- a fabricação de sorvetes (10.53-8)
224
Fonte: Concla (Comissão Nacional de Classificação)/ IBGE

Com relação à segunda classe, Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida
preparada, a descrição do IBGE encontra-se assim:
Seção: ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO
Divisão: 56 ALIMENTAÇÃO
Grupo: 56.2 Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida preparada
Classe: 56.20-1 Serviços de catering, bufê e outros serviços de comida
preparada
Subclasse: 5620-1/01 Fornecimento de alimentos preparados
preponderantemente para empresas
5620-1/02 Serviços de alimentação para eventos e recepções - bufê
5620-1/03 Cantinas - serviços de alimentação privativos
5620-1/04 Fornecimento de alimentos preparados
preponderantemente para consumo domiciliar

Esta classe compreende:


- os serviços de bufê para banquetes, coquetéis, recepções etc.
- a preparação de refeições em cozinha central por conta de terceiros (catering) para fornecimento a
empresas de linhas aéreas e outras empresas de transporte
- as cantinas, restaurantes de empresas e outros serviços de alimentação

Esta classe compreende também:


- a preparação de refeições ou pratos cozidos, inclusive congelados, entregues ou servidos em
domicílios.
225
Fonte: Concla (Comissão Nacional de Classificação)/ IBGE

Com relação à ocupação, utilizei “Cozinheiro Geral” da Classificação Brasileira de


Ocupações (CBO), também do MTE, que encontra-se em uma família mais ampla.

224
Disponível em https://cnae.ibge.gov.br/?view=classe&tipo=cnae&versao=9&classe=56112 (Acesso em
19/03/2019).
225
Disponível em https://cnae.ibge.gov.br/?view=classe&tipo=cnae&versao=9&classe=56201. (Acesso em
19/03/2019).
252

5132 Cozinheiros
Títulos
5132-05 - Cozinheiro geral - Cozinheiro de restaurante, Merendeiro
5132-10 - Cozinheiro do serviço doméstico
5132-15 - Cozinheiro industrial - Cozinheiro de restaurante de indústria
5132-20 - Cozinheiro de hospital - Cozinheiro hospitalar
5132-25 - Cozinheiro de embarcações - Cozinheiro de bordo
Descrição Sumária
Organizam e supervisionam serviços de cozinha em hotéis, restaurantes, hospitais,
residências e outros locais de refeições, planejando cardápios e elaborando o pré-
-preparo, o preparo e a finalização de alimentos, observando métodos de cocção e
padrões de qualidade dos alimentos.
Formação e experiência
O exercício dessas ocupações requer ensino fundamental seguido de cursos básicos de
profissionalização que variam de duzentas a quatrocentas horas, ou experiência
equivalente. O pleno desempenho das atividades ocorre entre três ou quatro anos de
exercício profissional. A(s) ocupação(ões) elencada(s) nesta família ocupacional,
demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a
serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, exceto os casos previstos no art. 10 do decreto
5.598/2005.
Condições gerais de exercício
Trabalham predominantemente em restaurantes, empresas de alojamento e
alimentação, transporte aqüaviário [sic] e em residências. Trabalham individualmente
ou em equipe, sob supervisão, em ambiente fechado ou embarcado, em horários
diurno e noturno. Podem permanecer em posições desconfortáveis por longos
períodos. Estão expostos a ruídos intensos e altas temperaturas. Há situações em que
trabalham sob pressão, o que pode ocasionar estresse.226

Não utilizei apenas a família de Cozinheiros por entender que, entre os títulos, há
diferença substancial. O cozinheiro de restaurante ou de bufê e outros serviços de comida
preparada não faz o mesmo trabalho nem tem as mesmas condições que o cozinheiro de
embarcações ou em hospitais.

226
Disponível em http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso em
19/03/2019.

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