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Organizadores

Carlos Dias Jr
Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo
Layane de Souza Santos
Miguel de Nazaré Brito Picanço

I WEBNÁRIO DO ALERE:
ALIMENTAÇÃO: PRÁTICAS
ALIMENTARES, IDENTIDADES
E OS TERRITÓRIOS DE
COMER

2021

1
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
I Webnário do Alere: Alimentação: práticas alimentares, identidades e os territórios de comer. Ananindeua: Editora Cordovil E -
books, 2021, 192p.
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DIAS JR, Carlos; MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de;


SANTOS, Layane de Souza; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.

I Webnário do Alere: Alimentação: práticas alimentares, identidades


e os territórios de comer. Ananindeua: Editora Cordovil E-books,
2021, 192p.

ISBN: 978-65-88086-10-0

1. Título. 2. Autores. I. História. II. História da Alimentação. III.


Práticas alimentares.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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“Um alimento não é somente bom para
comer, mas também para pensar”.
Claude Lévi-Straus. O cru e o cozido. São
Paulo, CosacNaify, 2004. (Mitológicas, 1)

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ 6

PARTE I

PARA ALÉM DO CACAU: FÁBRICAS DE CHOCOLATE NO BRASIL


IMPERIAL (1820-1889)
José Maia Bezerra Neto ..................................................................................................... 8
O COMÉRCIO FLUVIAL E O ABASTECIMENTO INTERNO DAS “CASAS
DE SECOS & MOLHADOS” (C. 1800 – C. 1850)
Siméia de Nazaré Lopes ................................................................................................... 24
ALIMENTAÇÃO ENTRE SÃO MATEUS E PORTO SEGURO NA VIAGEM AO
BRASIL DO PRÍNCIPE MAXIMILIANO DE WIED-NEUWIED (1815 – 1817)
Uerisleda Alencar Moreira .............................................................................................. 40
EM FAZENDAS SÍTIOS E MORADAS: O VIVER NOS SERTÕES
AMAZÔNICOS
Francivaldo Alves Nunes ................................................................................................. 52
CHEF PAULO MARTINS E SUAS “MEMÓRIAS DE UM PILOTO DE FOGÃO”
Luciana Silva Sales ......................................................................................................... 66
A ALIMENTAÇÃO NO BOULEVARD DA REPÚBLICA: ADENTRO E
AFORA DOS EQUIPAMENTOS PÚBLICOS
Márcia Cristina Nunes .................................................................................................... 79
HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO E ENSINO DE HISTÓRIA: UMA
PERSPECTIVA ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
ALIMENTAR
Victória Emi Murakami Vidigal ....................................................................................... 92
DA MESA PARA A SALA DE AULA: O ENSINO DE HISTÓRIA DA
ALIMENTAÇÃO PELA DANÇA E O TEATRO
Felipe Araújo de Melo ................................................................................................... 103

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PARTE II

COMIDA E “SUSTANÇA”: LINGUAGEM, SOCIABILIDADE E CONSUMO


NA FEIRA MUNICIPAL DE CAMETÁ-PARÁ
Carlos Dias Jr.; Vera Lúcia ........................................................................................... 120
A ALIMENTAÇÃO NA CIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIAS:
TENDÊNCIAS, HÁBITOS E COMPORTAMENTOS
Jumar da Silva Pedreira ................................................................................................ 132
AS INFLUÊNCIAS DA CULTURA ALIMENTAR DOS IMIGRANTES
LIBANESES NA CONSTRUÇÃO DA COZINHA TRADICIONAL DE
FLORIANÓPOLIS
Aldnei Luiz Silveira Filho; Thiago Gabriel Klauck; Silvana Graudenz Müller; Anita de
Gusmão Ronchett ......................................................................................................... 140
COMIDA, CULTURA E COMUNICAÇÃO NO MASTERCHEF DA AMÉRICA
LATINA
Daira Martins Botelho................................................................................................... 147
O PROTAGONISMO DO MILHO EM UMA FEIRA DE PRODUTORES:
PRÁTICAS, PROCESSOS E SABERES
Paola Stefanutti; Valdir Gregory; Ernesto diRenzo .......................................................... 162
COMEDORES DE NUTELLA: ALIMENTAÇÃO COMO FORMAÇÃO DO
GOSTO EM RESTAURANTES DE CAMPINA GRANDE-PB
Josélio dos Santos Sales ................................................................................................. 177

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APRESENTAÇÃO

Em 2020, o grupo ALERE (Grupo de Pesquisa em História do Abastecimento


e da Alimentação na Amazônia) realizou o seu primeiro Webinário. Vivemos um ano
atípico, de isolamento e quarentenas, impulsionados pelo efeito catastrófico do novo
coronavírus. Naquele momento não poderíamos realizar qualquer tipo de evento de
forma presencial e não queríamos que as pesquisas e suas divulgações fossem
paralisadas, por isso o grupo resolveu realizar o “I Webinário do Alere: alimentação,
práticas, alimentares, identidades e os territórios do comer“. Para o grupo, um passo
novo, já que o evento foi totalmente online, um passo de aprendizado e novas
experiências que nos permitiram acessar novas ferramentas e realizar um evento
acadêmico que foi além de nossas expectativas.
Agregando pesquisadores das mais diversas áreas dentro do contexto da
alimentação, o evento pode contar com apresentação de pesquisas dos mais diversos
locais do Brasil e com a participação de pesquisadores de outros países, o que para nós
foi uma grande satisfação. No formato online, conseguimos alcançar um número maior
de participantes e pesquisadores que se interessaram em apresentar suas pesquisas e
debater, nos diversos âmbitos, seus resultados.
Os trabalhos apresentados revelaram pesquisas maduras sobre a alimentação
em várias áreas como História, Antropologia, Gastronomia, Educação etc., que na esfera
do evento, acabaram por se misturar em debates que contribuíram para que os vários
conceitos pudessem dialogar dentro da proposta temática de “práticas alimentares,
identidades e os territórios do comer”. A ideia é que o evento continue sendo mais um
espaço, espaço virtual, no caso, de debates, troca de experiência, formação de rede de
pesquisadores em torno da alimentação e do comer.
Queremos agradecer à Universidade Federal do Pará, pelo apoio dado ao
evento, por ser a casa do ALERE, agradecer ao Campus de Ananindeua UFPA, aos
pesquisadores do grupo, que, herculeamente fizeram o evento acontecer e aos demais
pesquisadores que se interessaram em apresentar suas pesquisas nesse evento,
comungando conosco o amor à ciência e à pesquisa sobre alimentação.
Esse ebook que ora apresentamos, é uma amostra das pesquisas que foram
expostas no evento, e que aqui estão em formato de artigo, para que todos possam ter
acesso. Agradecemos às autoras e aos autores, em nome do Grupo ALERE, pela
confiança e pela escolha em compartilhar suas pesquisas conosco.

Profª Drª
Profª Drª Sidiana
Sidiana Macedo
Macedo
Líder do Grupo Alere
Prof. Dr. Carlos Dias Jr.
Prof. Dr. Carlos Dias Jr.
Vice-Líder do Grupo Alere

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PARTE I

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PARA ALÉM DO CACAU:
FÁBRICAS DE CHOCOLATE NO
BRASIL IMPERIAL (1820-1889) 1

José Maia Bezerra Neto2

Ao longo deste texto, apresento ao leitor alguns resultados de minha


investigação histórica sobre a produção de cacau na província do Grão-Pará, a sua
exportação, bem como o seu comércio, beneficiamento e consumo como chocolate no
Brasil. Não sendo o cacau, no entanto, pensado aqui como o foco de minha análise, o
que já tenho feito alhures,3 mas como matéria-prima do chocolate. Neste sentido, para
além do cacau, vou tratar das primeiras fábricas de chocolate no Brasil Império (1822-
1889), uma história esquecida, uma vez que é desconhecida a existência dessas fábricas
ao longo do século XIX brasileiro, sendo preceituado que as primeiras fábricas desse
produto teriam surgido nas últimas décadas do oitocentos, em São Paulo, dentro do
contexto da industrialização paulista aquando da economia do café. 4 Mas, não vou
somente tratar das primeiras fabricas de chocolate, já existentes na década de 1820 na
Corte ou cidade do Rio de Janeiro, capital do Império, vou narrar também um pouco da
história da fábrica de chocolate na província paraense, até porque era a principal área
produtora e exportadora do cacau brasileiro, inclusive abastecendo o mercado brasileiro
em larga medida, realidade essa também desconhecida. 5

1
Texto apresentado no “I Webnário do Alere: Alimentação: Práticas alimentares. Identidades e os
territórios do comer”, realizado online no período de 15 a 17 de junho de 2020, na mesa realizada em 15
de junho de 2020, sendo parte das reflexões de pesquisa realizadas no Projeto de Pesquisa “A Cultura do
Cacau na Amazônia oitocentista: Agroextrativismo, policultura e escravidão”, financiado com Bolsa de
Pesquisa do CNPq.
2
Professor Associado da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Amazônia da Universidade Federal do Pará-UFPA; Pesquisador do CNPq; Sócio Efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico do Pará-IHGP; Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e do
Abolicionismo na Amazônia-GEPEAM/UFPA-CNPq.
3
Ver a respeito, BEZERRA NETO, José Maia. A Cultura do Cacau no Grão-Pará Oitocentista: uma
notícia histórica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, Belém, v. 7, Dossiê “História da
alimentação e do abastecimento na Amazônia”, p. 27 – 49,maio/2020..
4
Ver, por exemplo, PRADO, Ricardo. Lacta 100 anos, muito prazer. São Paulo: Grifo, 2012.
5
Ver, por exemplo, BATISTA, Ana Paula. Chocolate: sua história e principais características. Brasília:
Universidade de Brasília/UnB. Monografia de Curso de especialização em Gastronomia e Saúde, 2008.
8
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Começando pelo cacau, depois o chocolate

Ao longo do século XIX, no cenário mundial, o Brasil foi um importante


produtor de cacau, ocupando a segunda posição, cabendo ao Equador o primeiro lugar.
A Europa era o principal mercado importador e consumidor do cacau brasileiro.
Segundo dados de Silva Coutinho,6 em meados da década de 1860, o Equador era o
principal fornecedor de cacau para o mercado europeu, com 11 mil quilogramas, ou seja,
52,38% do cacau importado, vindo em segundo lugar o cacau brasileiro somando
4.060.566 quilogramas ou 19,34% das importações europeias. O cacau de origem
venezuelana vinha em terceiro lugar juntamente com aqueles oriundos da Nicarágua e
de Nova Granada (Colômbia), somando juntos 2.000.000 quilogramas ou menos de
10% (9,52%) das importações de cacau da Europa, com a Venezuela deixando de ser o
principal produtor e exportador de cacau, lugar que havia ocupado durante o período
colonial até as primeiras décadas do oitocentos.7 Já o cacau oriundo de Trindade seria
da ordem de 1.500.000 quilogramas ou em torno de 7,14% ; da mesma forma que o
cacau originário de Cuba e Porto Rico, juntos, somavam 1.500.000 ou cerca de 7,14%.
Silva Coutinho ainda informou que das colônias francesas vieram 360.000 quilogramas
(1,71%), não discriminando quais áreas coloniais seriam, talvez da Guiana; bem como
de outras procedências não identificadas vieram 679.434 quilogramas de cacau ou
3,23% da importação europeia. Os países e áreas coloniais da América do Sul, da
América Central e do Caribe, portanto, eram os principais fornecedores do cacau
consumido pelos europeus.8
No mercado europeu, a Espanha era a nação que mais importava e consumia o
cacau, “constituindo o chocolate a base da alimentação do povo”, contribuindo para
tanto “a pequena taxa dos direitos de entrada, que é de 11 francos por 100 kilogramas
ou a terça parte do que cobra a França”, sendo as regiões de Cuba, Porto Rico, Trindade
e Equador os seus principais fornecedores de cacau. A França, por sua vez, também

6
Cf. COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de
Agricultura,n. 3, Rio de Janeiro,Typographia do Imperial Instituto Artístico, p. 7-29,abril de 1870. Dados
na página 21. Sobre a atuação e importância intelectual de Silva Coutinho, ver: SILVA, Marina Jardim e;
FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira; FONSECA, Vera Maria Medina da. Silva Coutinho: uma
trajetória profissional e sua contribuição às coleções geológicas do Museu Nacional. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p.457-479, abr.-jun. 2013.
7
Sobre a importância da produção e exportação do cacau venezuelano, inclusive sua qualidade superior
em relação ao brasileiro, ver ALDEN, Dauril. The Significance of Cacao Production in the Amazon
Region during the Late Colonial Period: An Essay in Comparative Economic History. Proceedings of the
American Philosophical Society,vol. 120, n. 2, p. 103-135,Apr. 15, 1976.
8
SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 21.
9
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seria um dos principais mercados consumidores do cacau, se destacando na fabricação
de chocolate, consumindo na década de 1860, por exemplo, a terça parte de todo o
cacau negociado no continente europeu. Os franceses consumiam o cacau “misturado
com diversos corpos, formando o chocolate e uma infinidade de doces”. 9 O mercado
francês seria responsável pela importação da quase totalidade do cacau brasileiro
negociado na Europa, em sua maior parte produzido no Pará. Absorvido em sua maior
parte pela Espanha e depois pela França, o restante do cacau importado pela Europa era
negociado nas regiões da Itália e da Alemanha, bem como em Portugal, na Rússia e na
Inglaterra, sendo que neste último país o cacau consumido vinha “quase todo de suas
colônias, Jamaica, Barbados, Trindade, S. Domingo, Santa Lúcia, Guyana e Índia”,
sendo que possuíam livre entrada no mercado inglês, não pagando impostos, ao passo
que o cacau de outras nações devia pagar “25 francos por 100 kilogramas”. 10
No caso do cacau brasileiro, alguns dados ajudam a perceber a sua importância
para o mercado francês e vice-versa. Em 1849, o cacau do Brasil representou 47,20%
das importações francesas, enquanto o cacau equatoriano perfez 18,40% e o de origem
venezuelana somou 10,76%. Em 1858, ele representou 44,78% das importações
francesas, ao passo que o da Venezuela era da ordem de 11,12% e o do Equador perfez
1,81%, sobressaindo neste ano, além do cacau venezuelano, o do Haiti que somou
9,23% e aquele oriundo do Chile que representou 6,99%. Em 1865, o cacau exportado
pelo Brasil para a França continuou liderando as importações dessa nação, somando
37,20%, ainda que houvesse diminuição de sua participação no mercado francês
comparado aos períodos anteriores, ao passo que o cacau exportado de várias regiões ou
países (incluindo Equador e Venezuela, além de Martinica, Guadalupe, Nicarágua e
Trindade) somava 34,37%. Enquanto o cacau de Haiti, Cuba e Porto Rico perfaziam
19,52%.
Em 1855, ainda segundo Silva Coutinho, o Brasil havia exportado 2.249.552
quilogramas, sendo que a França havia comprado 2.049.694 quilogramas, ou seja, em
torno de 91% da exportação brasileira de cacau fora absorvida pelo mercado francês,
sendo o cacau produzido no Pará “o que entra em maior proporção no chocolate
fabricado em França”.11 Sendo então a França o principal mercado importador do cacau
brasileiro, seguida por Portugal, Hamburgo (Alemanha), Gênova (Itália), Inglaterra e

9
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 22.
10
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 22.
11
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 28.
10
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Estados Unidos. Sendo que a grande maioria do cacau do Brasil era produzida e
exportada pela província paraense. Em 1868, por exemplo, o presidente provincial do
Pará informava que, em mil-réis, o cacau havia representado a soma de 1,752:560$388
de toda a exportação da província para o mercado francês, cujo total representava
2,013:487$828, ou seja, 87% do valor negociado. No caso de Portugal, o cacau também
representava parte considerável dos valores negociados, representando 333:379$743 de
um total de 803:198$130, isto é, 41,51%. Da mesma forma que representava o principal
produto exportado para Hamburgo (Alemanha) e Gênova (Itália), sendo a sua venda
para a Inglaterra e Estados Unidos, principais mercados importadores da borracha e da
Castanha-do-Pará, de menor importância. 12 Ou seja, sem o cacau o volume de
exportações amazônicas para o mercado francês seria bem menor.
No mercado francês o cacau brasileiro, em larga medida oriundo da província
paraense, daí conhecido como cacau do Pará, era bem aceito. Segundo Silva Coutinho, a
partir do que constatou na França, os “fabricantes de [chocolate] de Paris, e entre eles o
distincto Sr. Mennier, fazem os maiores elogios nosso produto [o cacau] quando é bem
preparado”, reconhecendo que a sua qualidade “tem melhorado sensivelmente”, ainda
que reclamassem da “da falta de cuidado na escolha das sementes, achando-se muitas
verdes de mistura com as maduras”, havendo a queixa de que o cacau brasileiro, em
larga medida paraense, era “muito húmido e chegar misturado com o produto silvestre,
sempre inferior ao cultivado”, no juízo dos compradores franceses, uma vez que os
produtores de cacau na Amazônia brasileira estariam convencidos de o cacau silvestre
seria tão bom quanto o cultivado. 13 Enfim, sendo descrito como “adocicado e bom
quando não contém sementes verdes de mistura”, era “muito apreciado para a
fabricação do bom chocolate, na opinião do Sr. Mennier, um dos principaes fabricantes”,
sendo que o “chocolate, que com elle se prepara, ocupa o termo médio entre o extra-fino
e o ordinário”.14
Segundo constatação de Silva Coutinho, o “chocolate de 1ª qualidade obtém-se
associando ao do Pará 10, 15 ou 20% do de Caracas”. Dizia também que se Juntando a
baunilha se agregava mais valor ao preço do chocolate e por “consequência, o melhor

12
Cf. GRAM-PARÁ, Governo da Província do. Relatório com que o Excellentissímo Senhor Vice-
Almirante e Conselheiro de Guerra Joaquim Raymundo de Lamare passou a administração da Província
do Gram-Pará ao Excellentissímo Senhor Visconde de Arary 1º Vice-Presidente, em 6 de agosto de 1868.
Pará: Typographia do Diário do Gram-Pará, 1868, p. 27.
13
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 17, 18.
14
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 23.
11
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chocolate, no qual entra o produto do Pará na proporção de 80%, e de 20% o de Caracas,
preparado com baunilha, não custa menos de 4 fr. [francos] a libra em Paris”. Até
porque não se fazia chocolate apenas com uma espécie de cacau, “misturão-se pelo
contrário diversas sortes, e assim consegue-se o melhor resultado”, isto porque o “de
Caracas, por exemplo, tendo excelente perfume e gosto, não possue matéria gordurosa
suficiente; o do Maranhão pelo contrário, falta lhe o gosto e o aroma, mas é o mais rico
em gordura; o do Pará é magro, mas tem bom gosto e é muito doce; o de Trindade
recomenda-se pela matéria adstringente, etc.”. Concluindo, então que “por isso se
misturão diversas sortes, aproveitando-se assim as qualidades de cada uma”. 15 De fato,
o cacau do Pará era considerado de “boa qualidade”, rivalizando com o de Guayaquil
(Equador), “tendo porém a vantagem de ser mais barato”. Segundo ainda Silva
Coutinho: “O cacáo do Pará teve medalha de prata, o do Maranhão medalha de bronze e
uma menção honrosa o da Bahia, na exposição universal de 1867”.16
Sendo o Brasil um importante produtor de cacau, destacando-se a província do
Grão-Pará, cujo cacau era considerado de melhor qualidade, havendo ainda o do
Maranhão e o da Bahia, uma parte dessa produção ficava no Brasil, sendo consumido
como suco, licor e geleia, mas também como chocolate em suas diversas formas. Ainda
que houvesse a importação de chocolate europeu, destacadamente o francês,
ironicamente produzido em larga medida com cacau paraense, desde pelo menos a
década de 1820 havia produção de chocolate no Brasil por algumas fábricas na cidade
do Rio de Janeiro ou Corte, capital do Império brasileiro, havendo ainda outras, desde
pelo menos a década de 1840, em diante, em Maranhão, Pernambuco, Pará e São
Paulo. 17 Aliás, o Brasil não apenas importava chocolate, mas produzindo, também
chegou a exportar além da matéria-prima (o cacau) o próprio chocolate.

15
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 28.
16
Cf. SILVA COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 13.
17
Ver a respeito, por exemplo, anúncios ou notícias de fábricas de chocolate publicadas em: O Diário do
Rio de Janeiro, 18 de junho de 1821, p. 119; O Publicador Maranhense, 21 de outubro de 1843, p. 4;
Diário de Pernambuco, 12 de novembro de 1845, p. 4; Correio Paulistano, 14 de março de 1871, p. 4.
Sobre a província do Pará as referências serão informadas adiante.
12
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As primeiras fábricas de chocolate

Dom João VI ainda era rei de Portugal, Brasil e Algarves, quando em 1821, no
jornal Diário do Rio de Janeiro fora publicado anúncio da fábrica de chocolate que
existia na Rua do Rosário n. 69, no lado esquerdo ao pé da Sé, “na qual se vende cada
libra de chocolate superior a 160 réis".18 Ao que parece, na época, estava em falta o
cacau para abastecimento desta fábrica, ainda que modesta em sua produção, uma vez
que anunciava que comprava cacau de quem tivesse para vender. 19 Alguns anos depois,
em 1825, Ignácio Gonçalves participava “aos seus fregueses que a Fábrica de chocolate
que era na rua do Ouvidor, se abrio novamente na rua da Quitanda N. 100, defronte do
Oratório dos Passos, junto a rua do Ouvidor”. 20 Ignácio Gonçalves era “Mestre
Examinado no officio de Chocolateiro”, propagandeando que fabricava “chocolate de
musgo, assim como de superiores qualidades amargos, e finos, e manteiga de cacau” . 21
Em dezembro de 1826, se anunciava na rua do Rosário, entre as do Ouvidor e a da
Quitanda, no número 107, a abertura de “uma nova fábrica de chocolate fino, de todas
as qualidades, onde se promete servir bem os feguezes”. 22 Fabricavam e vendiam
chocolate fino, amargo de musgo, e confortativo “pelos preços mais commodos”. 23
Em 1827, ainda na Corte, na rua da Alfandega defronte da Igreja de Nossa
Senhora Mãe dos Homens, n. 55, havia uma fábrica de chocolate e de açúcar refinado,
“ambos os gêneros de muito superiores qualidades, por preço commodo”. 24 No inicio de
maio de 1827, Izidro Mendes Freire anunciou que havia se separado da fábrica de
chocolate em que tinha suas atividades, criando uma nova, na mesma rua do Rosário n.
113, próximo da antiga, aonde prometia continuar bem servindo aos seus fregueses
“com chocolate feito com a maior perfeição de todas as qualidades, e tão bem de musgo
islândico amargo, confortativo da primeira qualidade, e Hespanhol, e igualmente
pastilhas muito boas”.25 Neste estabelecimento, além dos chocolates já anunciados antes
por Izidro Freire, também vendia “pastilhas de musgo de superior qualidade” e o
chocolate de Lisboa. 26 Em outubro de 1827, esta nova fábrica continuava suas

18
Cf. O Diário do Rio de Janeiro, 18 de junho de 1821, p. 119.
19
Cf. O Diário do Rio de Janeiro, 25 de junho de 1851, p. 159.
20
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 14 de março de 1825, p. 47.
21
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1825, p. 7.
22
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1826, p. 18.
23
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1826, p. 54.
24
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 16 de março de 1827, p. 54.
25
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 1º de maio de 1827, p. 3.
26
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 15 de junho de 1827, p. 58.
13
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atividades, oferecendo os seus produtos, entre eles o chocolate “Hespanhol, vindo de
Caracas”, além do oriundo de Lisboa. 27 Em setembro de 1827, por sua vez, José
Joaquim de Lemos vendia todos os acessórios de sua fábrica de chocolate, se obrigando
a ensinar a fabricação do referido produto.28
Nos anos finais da década de 1820, algumas dessas fábricas ainda lidavam com a
dificuldade da obtenção do cacau, sendo anunciado então que se precisava comprar
cacau e quem o tivesse mandasse anunciar no Diário do Rio de Janeiro ou enviasse
amostra do produto para fábrica de chocolate da rua Rosário n. 190. 29 O Grão-Pará, sem
dúvida, já era um importante produtor brasileiro de cacau, 30 exportando grande parte de
sua produção, mas a cidade do Rio de Janeiro não parecia ainda ser abastecida
regularmente com o cacau paraense ou oriundo de outras províncias e regiões, tal como
a Bahia e o Maranhão, havendo de um modo geral, até pelo menos meados do século
XIX, um forte mercado regional ligando o Grão-Pará e as províncias nordestinas, bem
como o Grão-Pará e a Europa, particularmente Portugal, mas ainda pouco efetivo em
relação ao sul brasileiro, no caso aqui a província fluminense e a Corte. 31 Realidade que
viria a mudar posteriormente, com maior acréscimo das vendas do cacau paraense para
o mercado carioca.32
Na época o chocolate era vendido em barras duras para ser diluído ou derretido,
ao fogo, em vasilhames com água ou leite, por exemplo, e servido como bebida.
Somente, alguns anos depois, em 1828, o holandês Coenrad van Houten fazendo uso de
uma prensa de parafuso potente e eficiente havia conseguido a obtenção do chocolate
em pó, tornando-o bem mais fácil de ser diluído para preparo do chocolate. Ao prensar
as sementes de cacau, reduzindo-as a pó, van Houten havia conseguido retirar grande
quantidade da gordura do cacau ou manteiga de cacau, ao passo que, utilizando parte
dessa manteiga extraída misturada com as sementes de cacau, van Houten tornava o
chocolate uma massa mais leve e digestível. Ao que parece, portanto, a novidade não
era a obtenção ou extração da manteiga de cacau, afinal certa fábrica carioca na década

27
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1827, p. 1.
28
Cf. O Amigo do Homem, 19 de setembro de 1827, p. 140.
29
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 6 de maio de 1828, p. 23.
30
Sobre o assunto, para o período colonial e primeiras décadas do século XIX, ver ALDEN, Dauril. The
Significance of Cacao p. 103-135.
31
Ver a respeito, por exemplo, MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come. Uma
história do abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). São Paulo: Alameda, 2014.
32
Minha afirmação se baseia em pesquisa nos jornais cariocas ao longo do século XIX, na qual constatei
nas últimas décadas do oitocentos do uso do cacau paraense em fábricas, ao passo que não vi anúncios de
compra do cacau por parte dos fabricantes de chocolate, daí que a importação de cacau equatoriano ou
venezuelano seria para se fazer o chocolate mais fino misturando o cacau importado com o paraense.
14
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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de 1820 já vendia manteiga de cacau, como já visto, mas, a quantidade grande de
gordura retirada das sementes e o reaproveitamento de parte desta mistura com o cacau
em pó. Havendo, no entanto, mais uma importante contribuição de Coerand van
Houten: ele descobriu que adicionando potássio à massa de chocolate, amenizava a
acidez do cacau, tornando-a menos amargo e adstringente, sendo esse processo
conhecido como Dutching.33
No entanto, levaria ainda algum tempo para que as inovações de Coerand van
Houten ganhassem largo uso nas fábricas de chocolate. Daí que, em 1831, na fábrica da
rua do Rosário n. 190, que alguns anos antes tinha necessidade de comprar cacau,
anunciava a venda de “chocolate muito bem construído, e de muita boa qualidade”, por
um “preço commodo, tanto em libra como em arroba”. 34 Bem construído e de boa
qualidade poderia querer dizer que não seria um chocolate quebradiço, característica
comum ao produto antes da aplicação das inovações de van Houten. Em fevereiro de
1832 era esta fábrica colocada à venda “com todos os pertences, por commodo preço”,
dizendo seu proprietário que era “muito afreguesada”.35
Na década de 1830 e os primeiros anos da seguinte, em agosto de 1843, continuo
encontrando notícias no Diário do Rio de Janeiro sobre fábricas de chocolate na Corte.
Assim, por exemplo, se anunciava que na fábrica de chocolate da rua do Rosário n. 93,
“além do grande sortimento de chocolate que tem, também há todos os gêneros
pertencentes a confeitoria”.36 Em dezembro de 1844, na rua de Dom Manuel, números
17 e 19, “com portas para a rua do Cotovelo, defronte do theatro S. Januário”, havia
“uma confeitaria e refinação de assucar e fábrica de chocolate, onde se vendem todos os
gêneros pertencentes a estes negócios pelos preços mais commodo que é possível”,
entre os quais marmeladas, “chocolate e café em pó”, bem como licores e refrescos.37
Em 1848, Antônio da Cunha Magalhães aparecia no Almanak Administrativo, Mercantil
e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro como dono da única fábrica de

33
Ver a respeito: BATISTA, Ana Paula. Chocolate, p. 12; bem como: PRADO, Ricardo. Lacta 100 anos,
p. 31-32.
33
Ainda sobre a história do chocolate, ver COE, Sophie D.; COE, Michael D. The True History of
Chocolate. Londres: Thames & Hudson, 2003; bem como sobre esta obra a resenha de PORRO, Antônio.
Cacau e chocolate: dos hieróglifos maias à cozinha ocidental. Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 5,
p. 279-284, jan. a dez./1997.
34
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 8 de março de 1831, p. 26.
35
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1832, p. 82.
36
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1843, p. 3.
37
Cf. Diário do Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1844, p. 3.
15
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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chocolate listada na publicação, sita à rua dos Pescadores n. 53.38 Para os anos de 1850
e 1851, no dito Almanak, Cunha Magalhães continuava como dono da única fábrica de
chocolate listada na publicação.39 Anos depois, em 1857, no AlmanakLaemmert, havia
anúncio da fábrica de chocolate e café da Rua da Valla 49 e da rua do Lavradio n. 32,
que fazia uso do “systemafrancez”, dirigida por “A. Auvigne, ex-official das melhores
fabricas de Paris, nestes artigos”, informando que havia “feito importantes inovações no
systema do fabrico, podendo em resultado supprir o publico de chocolate tão perfeito
que nada deixará a desejar”, anunciando ainda que seu “chocolate é intacto por mãos de
negros, visto ser fabricado por um novo processo mecânico”, demonstrando a conotação
racial presente na sociedade escravista brasileira. Informando ainda que podia enviar
“encomendas para o interior”.40
Na época, no Brasil imperial já surgiam modernas fábricas de chocolate, usando
não apenas a energia a vapor, mas modernos maquinários, que mecanizavam o processo
de produção do chocolate em larga medida.41 As mais importantes ficavam na Corte.
Em 1859, no AlmanakLaemmert, na seção de “Notabilidades”, em duas páginas inteiras
havia a propaganda da Fábrica de Chocolate de Giacomo Berrini, cujo produto era
“preparado por meio de machinas modernas a vapor”. Seus chocolates vinham gravados
com a sua marca de fábrica, no caso as iniciais GB, sendo vendidos embalados em papel
fino de várias cores conforme o tipo de chocolate: azul para o de Saúde; amarelo para o
de Musgo; verde para o Homeopático; canarim (amarelo escuro) para o de Baunilha;
rosa para o de Salepo; roxo para o Ferro e encarnado (vermelho) para o Purgativo. 42 Na
época já existiam os chocolates em barras que podiam ser comestíveis, não apenas
derretidas ou diluídas para consumo na forma de bebida, pois, em 1849, o fabricante

38
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro para o
anno bissexto de 1848, organizado e redigido por Eduardo Laemmert. Rio de Janeiro: Eduardo e
Henrique Laemmert, 1848, p. 446.
39
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro para o
anno de 1850, organizado e redigido por Eduardo Laemmert. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1850, p. 396; Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio
de Janeiro para o anno de 1851, organizado e redigido por Eduardo Laemmert. Rio de Janeiro: Eduardo
e Henrique Laemmert, 1851, p. 397.
40
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro para o
anno de 1857, fundado por Eduardo Laemmert. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1857, p.
90. Destaques meus.
41
Cf. COUTINHO, J. M. da Silva. Do Cacáo, p. 7-29.
42
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro para o
anno de 1859, fundado por Eduardo Laemmert. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1859, p.
46-47.
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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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inglês J. S. Fry& Sons de chocolates, fazendo uso das inovações de van Houten, já
havia apresentado na Feira Internacional de Birmingham as primeiras dessas barras. 43
Em 1864, na Corte, foi fundada outra grande fábrica de chocolate, denominada
como “Imperial Fábrica de Chocolate a Vapor” Andalusa, se apresentando como a
“primeira do Império”, talvez atribuindo a si mesma a condição de mais importante
entre outras congêneres, já que não era primeira criada no Brasil imperial. Pertencente a
Manoel Franklin & Cia., seus produtos foram premiados nas Exposições Nacionais de
1873, 1879 e 1882; na de Viena (Áustria) em 1873; e na Continental de 1882. Sendo
propagandeado que sua fábrica fora aprovada pela Junta Central de Higiene Pública em
16 de novembro de 1872 e “com louvor pela Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional”.44

Imagem 1:
Anúncio da Imperial Fábrica de Chocolate a vapor Andalusa, em 1882

Fonte: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro e do


Município de Santos da Província de São Paulo para 1882, fundado por Eduardo von Laemmert,
reformado e novamente organisado. Rio de Janeiro: H. Laemmert& Cia., 1882, p. 2042.
(Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional)

Havia também a Fábrica de Chocolates de Bhering& Silva, que se fazia


conhecer como Fábrica de Chocolate a Vapor da Família Imperial, porque se tornou a
fornecedora de “Suas MagestadesImperiaes”, sendo seus produtos premiados com as
primeiras colocações na Exposição Nacional de 1881 e na Continental de 1882, e que
oferecia chocolates e pastilhas de Baunilha, Musgo, Canela e Homeopático, bem como

43
Cf. PRADO, Ricardo. Lacta 100 anos, p. 32.
44
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro e do
Município de Santos da Província de São Paulo para 1882, fundado por Eduardo von Laemmert,
reformado e novamente organisado. Rio de Janeiro: H. Laemmert & Cia., 1882, p. 2042.
17
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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Ferruginoso, Althéa, Lácteo, Alcaçuz e Salep, entre outros. A Bhering& Silva, ao que
parece, seria a mais moderna e maior fábrica de chocolate do Brasil Império. 45

Imagem 2:
Anúncio da Fábrica de Chocolate a Vapor Bhering& Silva em 1882

Fonte: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro e do


Município de Santos da Província de São Paulo para 1882, fundado por Eduardo von Laemmert,
reformado e novamente organisado. Rio de Janeiro: H. Laemmert& Cia., 1882, p. 2029.
(Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional)

Enfim, demonstrado o surgimento das primeiras fábricas na Corte, desde ao


menos a década de 1820, bem como a sua importância na segunda metade do século
XIX, cabe agora discorrer sobre a província paraense, principal produtora e exportadora
de cacau, matéria-prima do chocolate, que também veio a conhecer a existência de
fábrica desse produto em Belém do Pará.

A fábrica de chocolate da Rua Formosa n. 10 BB, em Belém do Pará

Em julho de 1854, no jornal Treze de Maio fora publicado edital da Coletoria


das Rendas Internas da cidade de Belém, relacionando as lojas e estabelecimentos que
deviam pagar o respectivo importo anual, no qual já constava a existência da fábrica de
chocolate da propriedade de João Antônio Cypriano de Faria.46 João de Faria era um
capitalista, proprietário de prédios urbanos com valor acima de 30 contos de réis e dono
de pelo menos alguns escravos. 47 Ao que parece, inicialmente, essa fábrica de chocolate

45
Cf. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e da Província do Rio de Janeiro e do
Município de Santos da Província de São Paulo para 1882, fundado por Eduardo von Laemmert,
reformado e novamente organisado. Rio de Janeiro: H.Laemmert& Cia., 1882, p. 2029.
46
Cf. “Supplemento” ao jornal Treze de Maio, 22 de julho 1854, sem número de página.
47
Sobre a condição de capitalista de João de Faria, ver: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial
para o Anno Bissexto de 1868. Belém: Carlos Seidl& Cia., p. 240 e 243. Sobre a condição de proprietário
de escravos ver, por exemplo, o anúncio de fuga de seu escravo Raimundo da Trindade que João de Faria
publicou no jornal Gazeta Official de 13 de agosto de 1859, p. 4; ou, ainda, obituário publicado na Gazeta
Official, de 7 de fevereiro de 1860, p. 2, na qual se informa o falecimento de filho de sua escrava Ricarda.
18
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funcionava na Rua da Paixão, conforme anuncio publicado no Treze de Maio, em 3 de
julho de 1855, intitulado: “Em substituição ao café”, no qual era dito: “Chocolate fino
em pãos de libra para ranchos, e commodo em preço, vende-se na fabrica da Rua da
Paixão”,48 a menos que houvesse outra fábrica.
Em 7 de novembro de 1855, no Treze de Maio, a fábrica da Rua da Paixão outra
vez anunciava: “Chocolate fino para negócio, mais barato do que em outra qualquer
parte, vende-se na fabrica da Rua da Paixão”.49 O anúncio deixava claro que se vendia
chocolate fino para negócios ou revenda, mais barato que em outras partes da cidade de
Belém, porque produzia. Embora não deixando claro se vendia mais barato que outra
fábrica local ou mais barato que o produto importado também negociado em Belém. O
fato é que não encontrei outros anúncios referentes à fábrica da Rua da Paixão, talvez
porque houvesse apenas uma, sendo esta pertencente a João de Faria, que depois mudou
de endereço para a Rua Formosa. Em 12 de janeiro de 1856, a fabrica de chocolates
finos de Faria continuava suas atividades, anunciando que vendia chocolate fino de
“varias qualidades”, em seu endereço na Rua Formosa n. 50, também preparando
“encommendas para o interior, ou para fóra da Província, com abatimento de 10 por
cento, sendo estas de cinco arrobas para cima”, vendendo também o chocolate de musgo
islandico, “antigo e acreditado chocolate receitado por todos os médicos desta capital
[Belém] para as pessoas que delle precisão”. 50

Imagem 3:
Anúncio da Fábrica de Chocolates Finos da Rua Formosa

Fonte: Treze de Maio, 12 de janeiro de 1856, p. 4.


(Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional)

Ou, também, despacho do governo provincial publicado no Jornal do Pará, de 1º de maio de 1867, p. 1,
no qual consta a informação de seu escravo Luiz.
48
Cf. “Em substituição ao café”. Treze de maio, 3 de julho de 1855, p. 7.
49
Cf. Treze de Maio, 7de novembro de 1855, p. 4.
50
Cf. Treze de Maio, 12 de janeiro de 1856, p. 4. Em abril desse ano, a fábrica continuaria na Rua
Formosa, mas passando a funcionar na casa n. 57. Cf. Treze de Maio, 28 de abril de 1856, p. 4. Voltando
depois ao número 10 dessa rua, prédio de propriedade de João de Faria.
19
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Em 1859, a fabrica de João de Farias continuava produzindo e vendendo
chocolate fino feito com baunilha do Peru, custando 1$000 réis a libra, da mesma forma
que vendia chocolate medicinal de musgo islândico “para moléstias do peito”. 51 Ao que
parece, na época, o chocolate de musgo da Islândia estava fazendo algum sucesso,
lembrando que já era produzido e vendido na Corte, tanto que, em meados de 1859, a
fabrica de chocolate de Faria anunciava que era aconselhado no tratamento das
enfermidades “que tenhão a sua sede no peito como afecções pulmonares e tosses
rebeldes” entre outras doenças. 52 “Este acreditado chocolate” continuaria então sendo
preparado na fabrica da Rua Formosa 10 BB, dizendo o anunciante que o “resultado que
d´elle tem tirado as pessoas que tem soffrido do peito, é já conhecido não só nesta
província, como em outras para onde o fabricante tem sapstifeito pedidos deste
medicamento”. Sendo ainda informado que se tratava de “medicamento authorisado
com certificado de creditado médico desta capital, além de ser approvado e receitado
por todos os srs. médicos, que na sua clínica hão aconselhado e apreciado um tal
remédio”. Havendo, ainda, a fabricação de “chocolates de saúde, com baunilha,
homeopaticho”.53
Nos anos finais da década de 1850, da mesma forma que em épocas anteriores
na Corte, os chocolates medicinais eram anunciados, o que indicaria não apenas a
existência de oferta, mas de certa forma a procura por medicamentos preparados com
chocolates, o que tornava então os remédios mais agradáveis para consumo dos
pacientes. Inclusive, em setembro de 1858, a fabrica de chocolates da Rua Formosa
publicou certificação do caráter medicinal do chocolate de musgo islândico expedida
em 11 de junho de 1857 pelo médico Dr. Camillo José do Valle Guimarães, que

51
Cf. Gazeta Offical, 24 de fevereiro de 1859, p. 3. A baunilha do Peru também chamada de baunilha-
dos-jardins, bálsamo-de-cheiro, heliotrópio ou Flor-de-baunilha tem o nome cientifico de Heliotropium
Peru-vianum. É “uma planta da família das Boragináceas, originária do Peru, que produz flores
pequenas, de coloração roxa, que crescem aglomeradas”. Para essas informações ver:
https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/baunilha-do-peru/flor-de-baunilha/, consulta em
23 de junho de 2020. O musgo islândico ou musgo da Islândia, também conhecido como liquen da
Islândia, alga perlada ou musgo-branco, nome cientifico Cetralia islandica, é uma “planta originária de
quase todas as zonas frias e montanhosas da Europa; cresce em países do hemisfério norte,
principalmente desde a Islândia até a Espanha; se encontra naturalizada em algumas regiões da América
do Norte e Ásia. É a matéria-prima para a obtenção da liquenina ou gelatina medicinal. É muito nutritiva
por sua riqueza em liquenina”; “se emprega como demulcente, emoliente, analéptico, tônico, antifebril,
expectorante, peitoral, antiemético, laxante, adstringente, estimulante, mucilaginoso, nutritivo, dietético;
para curar tosse, catarros, bronquites, enfermidades crônicas do peito, cólicas com diarreia, disenteria sem
inflamação e inflamação do estomago”. Cf. FONNEGRA G., Ramiro & JIMÉNEZ R., Sílvia Luz. Plantas
medicinales aprobadas em Colombia. Antioquia/Colômbia: Editorial da Universidad de Antioquia, 2007,
p. 164 e 166. Tradução minha.
52
Cf. Gazeta Offical, 5 de agosto de 1859, p. 3.
53
Cf. Gazeta Official, 21 de dezembro de 1859, p. 3.
20
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atestava o seu uso em sua clínica, preparado pela fábrica de João de Farias, declarando
ter alcançado “mui felizes resultados nas moléstias de ethica pulmonar, de catarrhos
chronicos, tosses rebeldes, na amenorrhea e mesmo na anemia ou fraqueza geral”. 54
Medicamento preparado com chocolate também era vendido pela “Pharmacia de ROSA
& FILHOS e Drogaria da Rua das Flores” que anunciava em dezembro de 1859 a venda
de chocolate purgativo de magnésia, sendo informado que era “um purgante dos mais
suaves, não só pelo seu prompto effeito, como também pela facilidade em tomar-se mui
principalmente para as crianças” em razão do chocolate, já sendo “muito conhecido por
muitíssimas pessoas desta capital”. 55

Imagem 4:
Anúncio da Fábrica de Chocolate da Rua Formosa N. 10 BB, em 1867

Fonte: Cf. Jornal do Pará, 1º de outubro de 1867, p. 3.


(Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional)

A venda de chocolates medicinais continuaria nas décadas seguintes, ao lado de


outras variedades, sendo parte importante das vendas dos fabricantes de chocolates no
Brasil imperial. 56 Em 1867, por exemplo, a fábrica de chocolate da Rua Formosa 10 BB
continuava produzindo e vendendo tanto os medicinais, quanto outros, com destaque
para o de musgo islândico, informando ainda que a fábrica obtivera premiação na

54
Cf. “Chocolate Medicinal de Musgo Islândico”, Gazeta Official, 27 de setembro de 1859, p. 3.
55
Cf. Gazeta Official, 21 de dezembro de 1859, p. 3.
56
Sobre o uso medicinal do chocolate, ver, por exemplo, MANGIN, Arthur. Le Cacao et le Chocolat.
Paris: Guillaumin et Cie, Libraries, 1860; WILSON, Philip K.& HURST, W. Jeffrey. Chocolate as
Medicine: A Quest Over the Centuries. Londres: Royal Society of Chemistry, 2012.
21
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Exposição Nacional de 1862.57 Em 1869, se informava que a dita fábrica era “montada à
francesa”, dando a entender que se tratava de estabelecimento moderno em sua
produção, produzindo quantidades maiores por preços menores, mas, que devido aos
custos semanais de produção com combustível e mão-de-obra, a fábrica era
impossibilitada de vender os chocolates medicinais com prazos de pagamento superior a
um mês.58 Sendo, então, a única fábrica de chocolate em Belém, que assim se manteve
na década de 1870. 59 Nesta época, para além do medicinal, se produzia e se fazia a
venda do “saboroso chocolate nacional”, o mesmo tipo que “mereceo na Exposição
Nacional de 1862 a medalha de prata e menção honrosa”, o qual era servido aos
fregueses da Sociedade do Descanso, no Arraial de Nossa Senhora de Nazaré, nas festas
do Círio em outubro de 1870.60 Em 1876, continuava sendo anunciado o chocolate fino
de baunilha da dita fábrica. 61
No final da década de 1880, a fábrica de chocolates da Rua Formosa 10 BB, de
João Antônio Cypriano de Faria deixara de existir. Seu dono já havia falecido e, em
outubro de 1887, havia a venda em leilão de seus bens e de sua esposa Anna Pinto
Faria: dois sobrados na Rua do Rosário no preço reduzido de 29 contos de réis, um
deles sede da fábrica. 62 Também foram postos em leilão os equipamentos e máquinas da
fábrica, pelo preço reduzido de 2 contos de réis. Eram: “1 caldeira horizontal, montada
sobre alvenaria em bom estado”; 1 máquina de cilindro horizontal, em bom estado; 1
caldeira tubular vertical, completa; 1 máquina pequena de cilindro vertical fixa na dita
caldeira; 2 máquinas com as mós e cilindro de pedra “para queimar e moer chocolate”, 1
“pedra de estender chocolate”, 1 forma e demais utensílios tanto para o fabrico, quanto
para os movimentos da máquina a vapor e 1 máquina cilíndrica “movida a mão para o
mesmo fabrico de chocolate” e os seus competentes utensílios, e 1 “lote de formas”. 63
Uma fábrica modesta, ainda que fazendo uso do maquinário a vapor. Em março de 1888,
o prédio da fábrica, na Rua do Rosário n. 10 BB, bem como seu maquinário e utensílios
ainda eram objeto de novo leilão, na falta de compradores dispostos a pagar o preço
mínimo de 17 contos pelo sobrado e 2 contos pelos equipamentos.64

57
Cf. Jornal do Pará, 1º de outubro de 1867, p. 3.
58
Cf. Jornal do Pará, 1º de abril de 1869, p. 4.
59
Cf. O Pelicano, 14 de julho de 1872, p. 2; Jornal do Pará, 5 de março de 1874, p. 1.
60
Cf. “Programma da Sociedade do Descanso”. O Liberal do Pará, 27 de outubro de 1870, p. 3.
61
Cf. O Liberal do Pará, 8 de abril de 1870, p. 4.
62
Cf. “Editaes”. O Liberal do Pará, 6 de outubro de 1887, p. 3.
63
Cf. “Editaes”. O Liberal do Pará, 22 de outubro de 1887, p. 3.
64
Cf. “Editaes”. O Liberal do Pará, 14 de março de 1888, p. 3.
22
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Por cerca de trinta anos, Belém conheceu a existência da Fábrica de Chocolate
da Rua Formosa 10 BB, que utilizando o cacau paraense e a baunilha peruana, entre
outros produtos como o musgo islândico, produziu e vendeu chocolates medicinais e de
consumo alimentar para a população dessa cidade e de outros lugares, demonstrando
que para além da produção e comércio de exportação do cacau, o Grão-Pará conheceu
também seu beneficiamento e consumo como chocolate.

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O COMÉRCIO FLUVIAL E O
ABASTECIMENTO INTERNO
DAS “CASAS DE SECOS &
MOLHADOS” (C. 1800 – C. 1850)
Siméia de Nazaré Lopes1

Na Amazônia do século XIX, a exportação dos produtos coletados nos altos rios
e os gêneros cultivados nas redondezas da cidade de Belém estavam em alta. A entrada
de mercadorias propiciaria o crescimento econômico da província, através do aumento
contínuo das trocas comerciais entre os produtos coletados e cultivados na região com
os produtos manufaturados importados da Europa, Norte da América e das províncias
limítrofes ao Grão-Pará.
A província do Grão-Pará experimentava um “reflorescimento” econômico após
a pacificação da população abalada com as agitações políticas (Adesão à Independência
e Cabanagem). 2 Medidas foram tomadas para conduzir a melhoria do comércio e do
movimento portuário, sem causar embaraços aos que objetivavam mercadejar. Esta foi a
pauta principal adotada pelos diversos presidentes da província, assim como por
deputados e militares. Na sessão da Câmara do dia 25 de abril de 1840, o Presidente da
Província, Bernardo de Souza Franco, em discurso pronunciado para a posse do Dr.
Antônio de Miranda, destacou, entre os diversos pontos apresentados, a sua
preocupação com o restabelecimento dos negócios e do comércio da região após a
Cabanagem. 3
Porém, precisava-se realizar benfeitorias na entrada da cidade como o
calçamento e pavimentação de ruas, adotar medidas fiscais para garantir o direito às

1
Professora Adjunta da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará – Campus de
Ananindeua.
2
LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e
controle entre 1840-1855. Belém: NAEA/UFPA, 2002 (Dissertação de Mestrado).
3
Biblioteca do Grêmio Literário e Recreativo Português (BGLRP),Jornal Treze de Maio, n.º 7,
03.07.1840.
24
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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rendas públicas, assim como a reestruturação dos portos para controlar este
reflorescimento do comércio. O argumento consistia em agilizar a limpeza dos canais,
lagos e igarapés, com o intuito de conseguir transformá-los em vias de transporte para
os barcos e canoas, impulsionar a navegação interna e “facilitar a descida por eles dos
gêneros, que abundar, podem na grande bacia abraçada pelos dois grandes Rios
Amazonas [...] e seus afluentes”. Souza Franco continuava a sua proposição reiterando
que estes afluentes “virão a ser canais por onde desçam imensas riquezas, e na Província
do Pará os depósitos, e portos de embarque da mor parte deles, e por tanto uma das mais
florescentes do Império”. 4
A discussão chegava a um consenso sobre a utilização do comércio interno
como importante motivador do progresso da sociedade. O comércio interno constituía
uma das principais áreas de intervenção dos Presidentes da Província, os quais passaram
a discutir as medidas a serem adotadas para animá-lo, paralelo à institucionalização de
formas de controle das relações comerciais que os produtores diretos teciam com
regatões 5 e com outros segmentos que participavam de trocas comerciais e sociais.
Porém, o mundo do comércio clandestino escapava ao controle das autoridades, que
temiam pela politização do cotidiano da população, motivo constante de preocupação
inclusive pela compra de pólvora e armas.6 Tanto que, diante a necessidade de abastecer
com víveres e outras mercadorias os destacamentos militares espalhados pelo interior, o
presidente da província consentiu o livre comércio com os índios Maués, mas ressaltava

4
PARÁ. Presidente da Província (SOUZA FRANCO). Discurso recitado pelo Exc. Sr. Dr. Bernardo de
Souza Franco, Presidente da Província do Pará, quando abriu a Assembleia Legislativa Provincial, no
dia 15 de Agosto de 1839. Belém: Typ. Santos & Menor, 1839, p. 12.
5
Comerciante que realizava trocas comerciais em canoas e/ou em outras pequenas embarcações,
conhecido como comércio de regateio que teve influência na sociedade provincial na segunda metade do
XIX. A Coletoria condenava este tipo de prática comercial devido à falta de impostos que esses
comerciantes dos rios deixavam de pagar àquela repartição para movimentar produtos e diversos gêneros
agrícolas em suas canoas. LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. O comércio interno no Pará oitocentista:
atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855.
6
Um fato comum é a denúncia de apreensão de armamento entre os cabanos e rebeldes capturados. Em
uma diligência realizada pelo capitão João Francisco de Mello, nas cabeceiras do rio Itapicuruí,
conseguiram apreender “sento e noventa e sete patacões, uma mexa nova de sala, duas mangas de vidro,
uma porção de balas soltas, e alguns retalhos de fazenda nova em um baú, e uma Canoa grande”. Segundo
o relato de uma mulher refugiada entre os revoltosos da cabanagem, que foi presa, a intenção dos rebeldes
era atacar o acampamento do comando militar, para tanto haviam comprado pólvora de um cabo que era
comandante de um destacamento. Avisava que os fez remeter “presos os escravos de D. Maria do Carmo,
Domingos e Sebastião, q. foram presos servindo de espias dos Cabanos”. Mas a preocupação do capitão
João Francisco de Mello foi resultante da quantidade de pessoas envolvidas nesse plano. Além do soldado
que vendia pólvora aos cabanos e de saber que os escravizados escondiam a pólvora nas senzalas das
fazendas, acusou a existência de outros combinados com os da fazenda de Sta Maria “e os dessas com os
Cabanos”. Exceto a canoa que poderia ser utilizada nas diligências, todo o armamento foi remetido ao
comando. Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Fundo de Secretaria da Presidência da Província
(FSPP), Caixa 42, 1836.
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a exceção do “comércio de pólvora, e chumbo”, sobre o qual o alferes deveria ter a
máxima vigilância7.
Tem-se como objetivo deste artigo apresentar o circuito do comércio fluvial e os
produtos que eram negociados para garantir o abastecimento da capital, assim como os
sujeitos que deles fizeram parte. O suporte para a elaboração dessa análise é a
documentação primária e impressa. A partir das propostas de controle fiscal e social
impostos pelos Códigos de Posturas Municipais e demais ofícios e correspondências
trocados pelas autoridades provinciais, foi possível apresentar as diferentes práticas
comerciais, os seus sujeitos e as mercadorias negociadas durante a primeira metade do
século XIX. O artigo inicia com o debate sobre a abertura e fiscalização das “casas de
negócio” por negociantes estrangeiros e a otimização do comércio fluvial para garantir o
abastecimento de mercadorias tanto na cidade como nas vilas do interior da província.
Por fim, discute-se as formas de controle social aplicadas pelas autoridades sobre as
práticas comerciais e a fiscalização sobre os sujeitos envolvidos no comércio de
abastecimento da província do Pará.
O controle sobre a abertura de “casas de negócio”8 por negociante estrangeiros
onde quer que fosse, assim como a quantidade de tabernas em funcionamento em todas
as vilas da província foram assuntos frequentes nos ofícios e correspondências diversas
trocados entre os presidentes da província e os agentes do Fisco e das Coletorias. 9 De
fato, o conhecimento sobre essas práticas comerciais realizadas por pequenas
embarcações e seus agentes também não escapou aos olhares atentos dos viajantes, que
fizeram anotações pontuais sobre o mundo comercial. 10 As medidas fiscais incluíram

7
APEP, FSPP, Códice 1112, Ofício 15.08.1840.
8
Expressão usada na Coleção das Leis da Província ao referir-se à abertura de tabernas e botequins na
cidade e nas vilas próximas à cidade de Belém.
9
A fiscalização sobre as embarcações e canoas empregadas no comércio interior estava sob a
responsabilidade da Recebedoria da Capital, onde o Inspetor vistoriava e despachava as mercadorias após
o pagamento dos respectivos impostos. Nas diversas vilas e cidades do interior esta fiscalização recaía nas
Coletorias Provinciais, nessa repartição os coletores dos portos vistoriavam os despachos e manifestos
para notificar à Recebedoria as mercadorias que chegavam aos portos ou saíam com destino à
Recebedoria. Essa fiscalização, de forma diferente, também se empregava à circulação de pessoas entre
os lugares do interior e da capital. LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. O comércio interno no Pará
oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855.
10
Cf.: AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859. Rio de Janeiro: INL,
1962. BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979.
(Viagem realizada entre 1848 e 1859). KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e
permanência no Brasil: províncias do Norte. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979. (Viagem realizada em
1839). MARCOY, Paul. Viagem pelo Rio Amazonas. (Tradução de Antônio Porro). Manaus: Edições do
Governo do Estado do Amazonas e da Universidade do Amazonas, 2001. SPIX, Johann Baptist von e
MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981. WALLACE, Alfred Russel.
26
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também o controle sobre o comércio fluvial, além da construção de algumas obras
públicas com o intuito de embelezar o cais da cidade e a instalação de postos de
fiscalização, por onde navegavam as embarcações com as mercadorias que iriam
abastecer11 os pontos comerciais da cidade.
A vida comercial de Belém se modernizava e ganhava impulso com novas rotas
fluviais para o abastecimento da cidade. Para tanto, recriava-se no setor de comércio
interno a necessidade de dinamizar a navegação fluvial, visando facilitar a circulação de
gêneros e de pessoas, assim como promover a prosperidade do comércio da província.
Pode-se observar esse crescimento da vida comercial diante a descrição que Baena fez
sobre o comércio da cidade. Na descrição do autor, no ano de 1839 havia: 20
negociantes matriculados, 16 negociantes estrangeiros, 72 lojas de fazenda, 126
tabernas, 5 pequenas lojas de ourives, 8 botequins, 5 bilhares, 15 lojas de sapateiro, 20
lojas de alfaiate, 8 lojas de barbeiro, 10 ferrarias, 9 lojas de marceneiro, 1 tanoa, 2
relojoeiros, 3 penteeiros, 1 caldeireiro e picheleiro, 1 funileiro, 19 seges e carrinhos, 4
“casas de pastos” assim chamadas e 2 casas parecidas com os armazéns da Boa-Vista,
pedreiros e carpinteiros. Isso tudo, para uma cidade que contava com 12.500 almas. 12
As pequenas embarcações que singravam pelos rios e afluentes do vale do rio
Amazonas conseguiam transportar um grande número de mercadorias manufaturas e de
gêneros alimentícios, elas chegavam a suportar cargas que podiam ser de menos de mil
até mais de 2 mil arrobas “e o número dos seus remeiros ordinariamente costumava ser
de cinco índios nas de menos de mil arrobas, de sete índios nas de mil até duas mil
arrobas, e de nove índios nas de mais de duas mil arrobas”. 13 Inteirados a respeito do
montante que era negociado nessas pequenas e médias embarcações, o presidente da
província estipulou os regulamentos para a eficácia da atuação da Recebedoria das
Rendas Provinciais, que estaria responsável pela “administração, arrecadação,
fiscalização, distribuição e contabilidades das Rendas provinciais”, de forma a tornar
mais racional a cobrança e controle das atividades comerciais. O presidente da
província, Francisco Soares d’Andrea, decretava à Assembleia no artigo 38 que, “todas

Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. São Paulo: Ed. Nacional, 1939. (Viagem realizada entre 1848 e
1852).
11
Nesse sentido, “abastecer significa suprir ou prover uma população dos gêneros necessários ou
complementares a sua reprodução. As condições e formas de suprimento estão relacionadas com a base
material de produção, as relações de troca e a organização de instituições políticas”. RAVENA, Nírvea.
“O abastecimento no século XVIII no Grão-Pará: Macapá e Vilas circunvizinhas”. In: MARIN, Rosa
Acevedo (Org.). A Escrita da História Paraense. Belém: NAEA/UFPa, 1998, p. 29.
12
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará, p. 274.
13
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará, p. 211.
27
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as canoas que aportarem a esta cidade, vindas de qualquer parte da Província, serão
obrigados seus donos ou encarregados a apresentarem na Recebedoria o Manifesto ou
Relação da Carga”, independente do que seja transportado em suas embarcações. Seguia
o presidente da província asseverando que os negociantes deveriam apresentar aos
administradores as declarações de cada canoa que tivesse “pago os Direitos de Miunças,
devendo apensar as Guias, que isso certifiquem; e aqueles que o contrário fizerem,
desembarcando tais gêneros sem manifestarem, serão reputados como extraviadores”. 14
Essa dispersão no desembarque de mercadorias foi uma constante, que não
agradava aos coletores, o que tornava necessário estabelecer locais para esse trato
comercial, onde estivessem às vistas dos fiscais da Recebedoria. Foi o que estabeleceu o
inspetor de patrulhas aos coletores das rendas, em 1839. Por ordem verbal determinava
“para não consentir-se Canoas carregadas de gêneros nos lugares, Igarapé da Almas,
Reduto e Arsenal e quando encontradas nesses lugares, fossem apreendidos os gêneros e
Canoas”.
Em 1839, o Presidente da Província, Bernardo de Souza Franco sancionou a lei
nº43, para assegurar a comercialização, arrecadação e fiscalização dos gêneros
transportados para os armazéns e casas comerciais estabelecidas na cidade de Belém.
Para não haver dispersão no desembarque de qualquer tipo de gêneros agrícolas e o seu
extravio de direitos às rendas provinciais, foi decretado no artigo 24 que “estes gêneros
terão desembarque livre nos Portos do Sal, Ponte de Pedra, e Santo Antônio, ainda
mesmo sendo Domingo ou dia Santo”.15 Pois a proibição para o desembarque em outros
pontos navegáveis do centro já havia sido editada, o que não assegurou o controle das
autoridades sobre o desembarque das canoas em quaisquer portos da cidade. À
Recebedoria16 interessava controlar os produtos que chegavam pelos rios Moju, Acará,
Guamá e, principalmente, do rio Pará, que fazia a ligação entre a cidade de Belém com
as vilas do interior da província. Por isso a constante intervenção da Recebedoria no
desembarque das canoas que retornavam dessas áreas, carregadas de produtos para
abastecer as casas comerciais e feiras da cidade.

14
APEP, CLPGP, Tomo I, Parte 2ª, 1838.
15
APEP, Coleção das Leis da Província do Grão-Pará - CLPGP, Tomo II, Parte 1ª, 1939.
16
Repartição criada em 1839 pelo Presidente da Província Bernardo de Souza Franco. Esta repartição
serviria para a fiscalização e arrecadação dos impostos sobre os produtos agrícolas e pescado
comercializados na frontaria da cidade. Cf.: CRUZ, Ernesto. História da Associação Comercial no Pará.
Belém: Editora da UFPa, 1996, p. 160.
28
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Diante da necessidade de manter o controle sobre essas atividades comerciais
nos portos da cidade e no interior das vilas, as autoridades provinciais e municipais se
esmeravam em tentar conter esse constante movimento, pensando nos prejuízos que a
falta de tributos poderia trazer à Alfândega. 17 Havia diversos tipos de negócios, o
realizado nas tabernas 18 e “casas de secos & molhados” 19 espalhadas pelas vilas ao
longo dos rios navegáveis e das cidades portuárias tais como Belém, Santarém, Manaus;
e o realizado por meio de “canoas de regateio” que dominava rios, igarapés, furos e
lagos, e utilizavam os quintais das casas ribeirinhas para desembarcar tais produtos sem
pagar os devidos impostos.
Pensando no controle sobre o comércio realizado nas vilas do interior, o
Presidente Francisco Soares d’Andrea sancionou a lei nº 12 de 05 de maio de 1839, na
qual estabelecia os impostos para os estrangeiros que “não pertençam à Nação
reconhecida” que se destinassem a “ter casas, ou lojas com negócio, nem mascatear por
qualquer forma sem licença previa” desta província. De acordo com os artigos 3º, 4º e

17
Spix e Martius descreveram sobre o montante de mercadorias que era transportado por estas
embarcações, assim como alguns aspectos dessa economia que se realizava através da permuta. Spix e
Martius escreveram que a embarcação que os levaria da cidade para o interior da província: carregava
novecentas arrobas e era bem menor que as comuns canoas de comércio, que trazem mercadorias do
interior e transportam de três a cinco mil arrobas (...). As provisões de boca para a tripulação que
constavam de vinte balaios de farinha d’água, trinta arrobas de pirarucu salgado, alguns barris de
biscoitos, um barril de cachaça e seis balaios de sal, foram arrumados embaixo do convés da proa. Para
nós, levávamos biscoitos, farinha, arroz, presunto, chouriço, carne salgada, manteiga, açúcar, café,
chá, vinho, aguardente, medicamentos, munição tudo disposto embaixo da cabine. Levamos a
demais, uma grande rede de pesca, e considerável quantidade de objetos, que nos haviam sido
recomendados para permutar com os índios, isto é, machados, facões, canivetes, anzóis,
espelhos de Nuremberg, tecidos de algodão grosseiro (branco, azul e listado), chitas e miçangas.
SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820, p. 62. Avé-Lallemant
quando iniciou a sua viagem do Pará até Manaus fez referências sobre essas canoas de
comércio; em suas palavras, estas embarcações “são enormes batelões, que podem carregar até
4.000 arrobas”. Ele também relatou sobre essa chegada diária de embarcações na frontaria da
cidade, assim como a circulação de pessoas e o movimento intenso no cais da Ponte de Pedra,
onde se descarregavam os produtos coletados no interior. A importância comercial da cidade de
Belém consistia no fato dela suprir os estabelecimentos comerciais da região com os produtos
que precisassem, além de coordenar “toda a atividade comercial no portentoso rio”. AVÉ-
LALLEMANT, Robert. Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859, pp. 55-90.
18
Leila Algranti discute sobre o controle para a abertura de tabernas e casas comerciais no Rio de Janeiro.
Além da análise sobre a venda e os pagamentos realizados para a sua abertura e manutenção, a autora
também aborda o controle social que estava presente nesses espaços, principalmente quando vendiam
bebidas alcoólicas para a população livre pobre. ALGRANTI, Leila M. Tabernas e botequins cotidiano e
sociabilidade no Rio de Janeiro (1808-1821). Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 25-42, jul/dez 2011.
19
Para essa análise, privilegiou-se a documentação referente à abertura de casas comerciais por
negociantes estrangeiros.
29
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5º, fazia saber aos estrangeiros interessados em abrir estabelecimentos comerciais que
ficariam sujeitos às seguintes disposições:

Art. 3º. Além dos dispostos nos artigos precedentes ficam


sujeitos aos seguintes impostos”:
§1º. De 100$000 réis por cada uma casa, ou loja de fazendas
secas, ou molhadas por grosso, ou atacado.
§2º. De 80$000 reis por cada uma loja de fazendas a retalho, e
miudezas.
§3º. De 60$000 reis cada uma Taberna ou Botequim.
§4º. De 40$000 reis por cada uma Padaria, ou Casa de Pasto.
§5º. De 100$000 reis por cada uma Loja Ambulante.
Art. 4º. Quando se reunirem em uma só Casa os objetos acima
especificados, cobrar-se-ão os impostos correspondentes a cada
um deles.
Art. 5º. Fica desde já vedada a tais Estrangeiros a venda de
carnes verdes. 20

Com isso, o governo iniciava a determinação dos impostos destinados ao


comércio na cidade, tanto como a organização para receber os negociantes estrangeiros.
O pagamento dos impostos do artigo 4º gerava dúvidas no momento em que os
interessados faziam a requisição da licença. Os negociantes marroquinos Simão Benjó
& Irmão solicitaram licença à Recebedoria para “poderem vender em uma Loja
fazendas Secas por atacado, e a retalho, e gêneros molhados (sic) somente inteiro”. 21 De
acordo com o referido artigo, a licença custaria 280$000 reis, visto que pagariam por
três imposições (fazendas secas por atacado, e a retalho, e gêneros molhados por
atacado), além dos 50$000 reis de impostos anuais que as “Lojas de fazenda a retalho, e
miudezas” deveriam pagar. Por isso, os negociantes com estabelecimentos comerciais
burlavam as cobranças da Recebedoria declarando o contrário ou o menor valor nos
despachos que enviavam para requerer suas licenças.
Em julho de 1838, o administrador da Recebedoria cobrou ao francês Estevão
Amaro o “imposto de Leilão e Modas, do ano passado e presente, da casa que naquele
ano tinha no Largo do Palácio, e ao presente na Rua Santo Antônio”. Estevão Amaro
respondeu ao administrador que não pagaria, “porque não reputava a sua casa como tal
(...) e sim Loja”. Diante do que lhe foi respondido, o administrador não soube qual
atitude tomar, pois não estava com autorização para fechar a loja, tão pouco fazer a

20
APEP, CLPGP, Tomo I, Parte 1ª, 1838.
21
APEP, FSPP, Ofícios Caixa 46: sem data.
30
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“tomadia nas fazendas, estas tem pago os Direitos”. 22 Ficou o assunto à espera da
resolução do Procurador Fiscal.
Outros ofícios de comerciantes que se recusavam a pagar os impostos
continuavam a circular entre os despachos do presidente e à administração da
recebedoria. Tanto que, o administrador voltou a informar ao Presidente sobre outra
solicitação que chegara naquele mesmo mês, no qual oficiava que “tendo mandado fazer
lançamento como Casas de Modas, da Loja de Cardulo Candido de Gusmão Borralho,
onde se encontra a venda todos os objetos de Modas e venda também Chapelinhos e
enfeites”, todos esses artigos e ornamentos descrevia que foram “feitos por sua
Senhora”, e que “o dito Cardulo diz que julga não dever pagar o Imposto, por que
aqueles enfeites são feitos no interior de sua Casa”. Nesse caso, ficavam mais evidentes
as dúvidas sobre como definir cada um desses estabelecimentos, tanto que o
administrador solicitava da “inteligência a VExa, assim como que se digne declarar-me
quais casas que devo reputar de Modas para meu governo no lançamento e cobrança de
direitos”.23
A justificativa de Cardulo Borralho inquietou o administrador, pois argumentou
que a sua mulher “não é modista, mas é uma Senr a. Brasileira bem prendada e que os
enfeites que faz ele os deposita, na sua Loja, alegando que as não vende à Janela, nem
está sobre o Balcão”. Diante do exposto concluía o seu argumento para não pagar o
imposto alegando que “quem não vende bebidas à Porta da Rua ou à Janela, e os tiver
em um armazém, no Quintal a pesar de as vender não deve pagar o imposto”. 24 Essas
dúvidas seguiram com frequência para a Recebedoria, por isso que o Presidente da
Província Souza Franco 25 sugeriu a diminuição das taxas para licenciar as “casas de
negócio”, por serem onerosas aos negociantes tanto na cidade como no interior.
Assim, o processo para a instalação de estabelecimentos comerciais no interior
ficaria sob a tutela das Câmaras Municipais que agenciariam os locais e os tipos de
22
APEP, FSPP, Ofícios Caixa 46: 20.07.1838 e anexo.
23
APEP, FSPP, Ofícios Caixa 46: 24.07.1838.
24
APEP, FSPP, Ofícios Caixa 46: 26.07.1838. Ao final do ofício, o administrador reclamava das queixas
feitas pelos negociantes B. Harmard e Diniz Crouan, que se julgavam no mesmo caso, não podendo o
administrador “fazer exceções”. Ainda sobre o pagamento que os proprietários das casas comerciais
deviam fazer na Recebedoria, assim o administrador expôs a sua dúvida: o que “tem proposto alguns
Negociantes que não querem pagar a taxa de vinte mil reis de seus armazéns onde dizem ter só cerveja”,
mas não sabe se cerveja pode ser considerada “espirituosa”. Os donos de armazéns se esquivavam do
pagamento do imposto, e quando o faziam pagavam apenas 50$000 reis, mesmo que tivessem dois ou três
armazéns. APEP, FSPP, Ofícios Caixa 46: 14.07.1838.
25
PARÁ. Presidente da Província (SOUZA FRANCO), Discurso recitado pelo Exc. Sr. Dr. Bernardo de
Souza Franco, Presidente da Província do Pará, quando abriu a Assembleia Legislativa Provincial, no
dia 15 de Agosto de 1839, p. 9.
31
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produtos que deveriam ser aviados aos fregueses. Isso garantiria a cobrança de impostos
sobre essas tabernas, porém no artigo 6º ficava proibido “aos mesmos estrangeiros o
comerciar nas vilas, e mais lugares da Província”, o que seria uma atividade
estritamente urbana. Todavia, Souza Franco ressaltou que os estrangeiros apresentavam
brasileiros como caixeiros de suas lojas para o trato no interior.26
O comércio realizado com os produtores do interior dos altos rios ganhava a
configuração de ser, entre os diversos pontos da província, o mais lucrativo para a
Recebedoria da Capital, em termos de oferta e circulação de produtos. Como
27
informaram Spix e Martius, dessas áreas é que aportavam, diariamente, as
embarcações entulhadas com diversos gêneros para o abastecimento da cidade e os com
destino certo para os portos estrangeiros. 28
As autoridades responsáveis pelo controle fiscal sobre esse comércio perseguiam
o contrabando pelo duplo crime que ele representava. Além de burlar o fisco, o
contrabando tecia relações econômicas com os negros aquilombados e regatões,
conhecedores dos rios da região e que abasteciam as tabernas com diversos gêneros.29
Por isso, as autoridades solicitavam que fosse efetivada uma contagem em todas as vilas
da província constando quantas “casas há de venda nesta freguesia, e a quem elas
pertencem, enquanto a quantidade dos gêneros postos à venda são fazendas Secas, e
molhadas”. 30 Diante dessas informações, a Câmara Municipal poderia lançar os
impostos com maior rigor, assim como ter conhecimento sobre as práticas comerciais
nessas vilas e quem delas participavam adquirindo o resultado do furto.
Essas práticas comerciais presentes nos rios e o controle da receptação das
mercadorias foram comuns nas paragens da província do Pará, onde os empregados das

26
PARÁ. Presidente da Província (SOUZA FRANCO), Discurso recitado pelo Exc. Sr. Dr. Bernardo de
Souza Franco, Presidente da Província do Pará, quando abriu a Assembleia Legislativa Provincial, no
dia 15 de Agosto de 1839, p. 9.
27
SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS.Viagem pelo Brasil: 1817-1820,p. 32.
28
Em relação ao controle sobre as transações comerciais, Maurice Dobb reitera (para o século XII) que o
controle servia para beneficiar a cidade em suas transações entre o campo e os comerciantes estrangeiros.
Como a cobrança de taxas de mercado que proporcionava uma fonte de renda segura para as autoridades,
pois “como as autoridades tinham o direito de regulamentar quem podia comerciar e quando o devia
fazer, possuía também um poder considerável de inclinar a balança de todas as transações de mercado em
favor dos residentes urbanos”, isso quando não as limitava para seus próprios cidadãos, nesse caso, “a
cidade manifestadamente possuía considerável poder de influenciar as relações de troca em sua própria
vantagem”. DOBB, Maurice. A Evolução do Capitalismo. Tradução: Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro,
Zahar, 1977, p. 118.
29
Essas trocas comerciais entre escravos fugidos, fazendeiros e comerciantes fizeram parte do “campo
negro” discutido por Flávio dos Santos Gomes para o Rio de Janeiro. Cf.: GOMES, Flávio dos Santos.
História de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
30
APEP, FSPP, Códice 1114: 22.01.1840.
32
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
I Webnário do Alere: Alimentação: práticas alimentares, identidades e os territórios de comer. Ananindeua: Editora Cordovil E -
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coletorias se detinham em fiscalizar o embarque e desembarque das canoas para que as
mercadorias não fossem despachadas em locais interditados ou mesmo repassadas para
outras embarcações antes de aportar da cidade. No Pará, esse tipo de desvio era
classificado como “comércio de travessia” e foi considerado proibido no Código de
Posturas Municipais de 1847. 31 Essa prática comercial reputada como ilícita acontecia
quando “as pessoas (...) se empregarem pelas praias, portos, e subúrbios das Cidades, e
Villas, ou mesmo forem ao encontro das canoas”, com o objetivo de “mercadejar
gêneros, comestíveis, e mais produtos, fazendo o monopólio deles para depois tornarem
a vendê-los ao público”.32
O controle imposto pelo Código de Posturas passou a atingir precipuamente essa
prática comercial que era comum nos portos e na frontaria da cidade, pois o monopólio
que os atravessadores mantinham afetava o comércio dos negociantes estabelecidos
próximos aos portos da cidade de Belém, por isso a negação a quem o praticasse.
Em 1847, foi entregue ao Subdelegado João Wilkens de Mattos uma relação
com o Código de Posturas Municipais para obstar essas possíveis práticas de desvios
nas tabernas da cidade. O artigo 23 expressava que a polícia não devia permitir nas
tabernas, armazéns e botequins “ajuntamentos de pessoas sem comprarem, quer seja de
dia, ou de noite, e para evitá-lo farão que as sobreditas casas se fechem as nove horas da
noite até amanhecer, exceto as estalagens”. Assim como no artigo 77, em que ficava
proibido “vender em loja, nem mesmo em particular a escravos, ou pessoas de suspeita,
armas ofensivas de qualquer natureza que sejam”. 33
José Carlos Barreiro afirma que as tabernas serviam como lugares de “tensão
entre a pulsão do coletivo e a disciplina imposta pela instituição”, por terem os seus
significados discutidos e recriados cotidianamente. 34
Os pontos d’água também
figuravam em motivo de controle para as autoridades, não só pelo abastecimento, mas
por serem espaços de convívio social e de constante troca de informações. 35 Nesses

31
LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e
controle entre 1840-1855. Para outra análise sobre os Códigos de Posturas Municipais, Cf.: FRACCARO,
Laura. Vender e viver: posturas e comércio, Campinas, século XIX. Revista do Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro, n. 9, 2015, 113-125.
32
APEP, CLPGP, Tomo X, Parte 1ª, 1848.
33
BGLRP, Jornal Treze de Maio, nº 678, 13.02.1847.
34
BARREIRO, José Carlos.“E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revisões, críticas e projeções”,
p. 75.
35
Os pontos d’água eram os igarapés, os rios ou poços públicos. Segundo Bates, “nesse local é lavada
toda a roupa da cidade, trabalho esse que é feito por um bando de tagarelas escravas negras; aí também
são enchidas as carroças de água, constituídas de pipas sobre rodas, puxadas por bois. De manhãzinha,
quando a luz do sol tem de romper às vezes através de uma ligeira névoa e tudo goteja devido à umidade,
33
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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casos, os fiscais da coletoria agiam, também no “policiamento de costumes”, sendo de
interesse das autoridades dirimir seus espaços de atuação, seja através de práticas que
estimulassem o trabalho, seja na interferência episódica das condições para liberarem a
instalação de novos pontos comerciais fora das vilas.
Aos comerciantes que não apresentassem as licenças, quando solicitadas,
ficavam obrigados a requerê-las “dentro de quinze dias depois de condenados, sob a
pena de incorrer em reincidências”, a multa aplicada variava entre pagar o dobro do
valor da licença, ou ficar em detenção por oito dias. 36 As Câmaras Municipais
costumavam elaborar apreciações sobre o Código de Posturas Municipais com o
objetivo de explicar aos administradores das coletorias e recebedorias como eles
deveriam proceder diante algumas resoluções. No Código de 1847, no artigo 87 ficou
estipulado que “ninguém poderá ter venda fixa, ou ambulante de fazendas secas, ou
molhadas, gêneros, comestíveis, ou outros misteres, sem que previamente se tenham
munido de licença da Câmara respectiva até o fim de Agosto”. Os artigos seguintes
enfatizavam o controle que se voltava para esses estabelecimentos, nos quais ratificava-
se a importância de ter em mãos o alvará de licença fiscal, sempre quando solicitados.
Isso valia não somente para os donos, mas também para os administradores e os
caixeiros de “casas de venda”, fossem elas fixa ou ambulante e oficinas, assim como
para os donos de canoas de regatão.37
Frequentemente, as lojas ambulantes eram confundidas com as canoas de
regatão. O Presidente da Província apresentava as explicações para diferenciar uma e
outra dentro desse mundo do comércio: “lojas ambulantes só se devem entender as que,
contendo os mesmos objetos de comércio das lojas são com tudo conduzidas de uns
para outros lugares por qualquer maneira, não se devendo considerar como tais as casas
de regatão, visto acharem-se estas proibidas por lei”. 38 Entretanto, os mesmos impostos
que se cobravam para legalizar a circulação das canoas de regatão também eram
cobrados para licenciar as lojas ambulantes, como na lei nº 43, art. 23, § 27, que

essa parte da cidade se enche de animação”. BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas,
p.14. Frequentemente, os viajantes comparavam a prática do banho e da sesta, após as refeições, à
ociosidade, fruto da ideia de modernidade associada aos costumes europeus, mas que representa a
descrição de um fato comum: a falta de controle das autoridades sobre esses espaços públicos. Cf.:
BELTRÃO, Jane Felipe. “Belém de outrora, em tempo de cólera, sob olhares impertinentes e
disciplinadores”. Annaes do Arquivo Público do Estado do Pará, Belém, 3 (1), 1997, p. 225.
36
APEP, CLPGP, Tomo X, Parte 1ª, 1848.
37
APEP, CLPGP, Tomo X, Parte 1ª, 1848.
38
APEP, CLPGP, Tomo XVI, Parte 2ª, 1854.
34
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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cobrava imposto anual de “cinquenta mil réis por Lojas ambulantes e canoas de
regatões”.39
Ao tratar do comércio de regatão e das lojas situadas no interior, Tavares Bastos
argumentou que a imposição que esses tipos de comércio sofria com a cobrança de
impostos excessivos era prejudicial “à prosperidade daquela região”. 40 Segundo o autor,
o valor desses impostos seria repassado para as mercadorias, prejudicando o acesso da
população à compra de certos produtos, que acabavam recorrendo aos extravios para a
sua aquisição.
De forma geral, as lojas de “secos & molhados” pagavam impostos provinciais e
municipais. As autoridades justificavam sua cobrança como uma das possíveis formas
de assegurar que os tapuios41 não sofreriam espoliações desses comerciantes – como
defendiam as autoridades. Não obstante, Tavares Bastos ressalta que os comerciantes
estabelecidos nessas paragens não eram diferentes dos regatões e dos donos de lojas no
que se refere ao trato com o tapuio, pois também prevalecia o lucro mercantil de
comprar barato e vender caro.42 A diferença desses negociantes estabelecidos no interior
se apresentava no gozo de influências políticas que exerciam junto às autoridades
provinciais, tendo facilmente atendidas suas exigências de monopólio sobre o comércio
que desenvolviam.
A regulamentação sobre essas “casas de venda” no interior da província foi
resultado do controle para tentar evitar o comércio de regatão e as trocas comerciais
entre outros sujeitos que dele participassem. A resolução de número 182 determinava
que as pessoas interessadas em abrir tais estabelecimentos “fora dos limites das cidades,
Vila, e Freguesias”, só receberiam o consentimento após declarar perante as respectivas
Câmaras Municipais os valores que seriam utilizados para arcar com os custos daquele
comércio. Para esse tipo de casa comercial ficou designado o pagamento de imposto
provincial no valor de 40$000 Réis e, para o imposto municipal, o valor de 16$000 Réis
para cada alvará solicitando a licença para negociar produtos secos e molhados, sendo
que “os fundos com que tem de as costear, e prestado fiança a multa a que ficam sujeitas,

39
APEP, CLPGP, Tomo II, Parte 1ª, 1839.
40
TAVARES BASTOS, A. C. O Vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatísticas,
produção, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas. 3ª ed. São Paulo, Ed. Nacional; Brasília, INL,
1975, p. 200.
41
Segundo Carlos Moreira Neto, os tapuios seriam os índios destribalizados e que constituíam a base da
mão-de-obra da cidade. Cf.: MOREIRA NETO, Carlos Araújo. “Igreja e Cabanagem (1832-1849)”. In:
HOORNAERT, Eduardo (org.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 271-272.
42
TAVARES BASTOS, A. C. O Vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatísticas,
produção, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas, p. 201.
35
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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só poderão estabelece-las nos lugares que tiverem sido designados pelas mesmas
Câmaras, em conformidade do artigo 7º”. Essas Casas pagarão o imposto Provincial de
40$000 Réis, e o Municipal de 16$000 Réis por alvará de licença. 43
Essas medidas destinavam-se a embargar o comércio em canoas de regatão e “se
não desviem as outras do fim que lhes é permitido”. O que significava não impedir que
as demais embarcações empregadas no transporte de mercadorias, gêneros e gado, no
serviço de lavradores, fazendeiros, engenhos, fábricas e engenhos e na extração de
óleos, salsa e outros produtos naturais fossem proibidas de se ater ao comércio. Assim
ficava a cargo das Câmaras Municipais dispor sobre essas casas. As câmaras deveriam
marcar os limites e lugares onde permitiriam “abrir-se as Casas de Venda declaradas no
artigo 5º”,44 após os pagamentos dos devidos impostos à Recebedoria.
Pode-se inferir que um dos motivos da baixa arrecadação fiscal aos cofres da
coletoria era a falta de pagamento das casas comerciais do interior da província, pois os
proprietários em posse da licença para negociar não efetuavam os pagamentos da
referida licença e demais impostos. A interferência mais comum, notada nas
correspondências, entre as autoridades e as Câmaras Municipais, registrava-se na
legislação para a liberação de licenças com a finalidade de conseguir a abertura de casas
de venda na cidade e nas vilas do interior. Tanto que, no Código de Posturas de 1847,
determinava-se às Câmaras Municipais que não autorizassem licença às casas de venda
para comerciarem, “ou quaisquer outras, sem que os requerentes juntem documentos de
haverem pago os competentes impostos Provinciais e Municipais, a que estiverem
sujeitos pelas ditas casas”, alertando aos fiscais que as pessoas que abrissem, “ou
continuarem a ter aberta casa de venda, ou quaisquer outras sem as licenças e
pagamento de imposto competente, pagarão o duplo do que deveriam pagar”. 45 Com
certa frequência, esses caso eram apresentados nos ofícios trocados entre os coletores e
as autoridades fiscais, pois muitas das casas se valiam de requerer as licenças e não
efetuarem o pagamento das mesmas, após a sua liberação.
Em 1855, o inspetor Tenreiro Aranha ressaltava sobre este problema que logo
foi noticiado ao Presidente da Província por meio de uma Circular, na qual era
solicitado a necessidade de adotar as “providencias para que seus fiscais não tolerem
que se abram casas de comércio em seus respectivos distritos, ou continuem a negociar

43
APEP, CLPGP, Tomo XII, Parte 1ª, 1850.
44
APEP, CLPGP, Tomo XII, Parte 1ª, 1850.
45
APEP, CLPGP, Tomo IX, Parte 1ª, 1874.
36
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no seguinte ano financeiro sem que seus donos lhes exibam conhecimento de recibo”,
de haverem quitado todos os impostos e taxas, tanto provinciais como municipais. 46
O controle sobre o local das “casas de negócio”, tanto para estrangeiros como
para nacionais, e sobre a circulação das canoas de regatões assumia uma forma legal de
garantir aos comerciantes da cidade e aos donos de firmas aviadoras a oferta daqueles
gêneros, assim como impedir a concorrência nesse comércio tão lucrativo que se
operava nos sertões da província. O conjunto de decretos e medidas implantadas pelas
autoridades interferiria47 na vida dos pequenos produtores e comerciantes que atuavam
nesse comércio, pois agiam justamente na tentativa de modificação dos hábitos, na
limitação dos deslocamentos e, até mesmo, impedindo o estabelecimento de relações
econômicas e sociais que estavam atreladas a essas práticas. Diariamente, as pessoas
utilizavam-se das canoas 48 para negociarem nos rios as mercadorias para o seu
abastecimento, da mesma forma que negociavam com regatões os produtos cultivados
em suas pequenas roças e/ou coletados na floresta; ou mesmo o fruto do contrabando de
gêneros alimentícios- carne-verde, farinha, arroz, feijão, milho e mandioca ou resultado
do excedente produzido nos quilombos. Exemplo disso foi a denúncia da existência de
quilombos na Ilha do Marajó, composto de mais de trezentos “negros criminosos e
desertores”. A denúncia foi feita por um soldado desertor, que possivelmente poderia ter
fugido do mesmo, porque sabia a localização exata do quilombo e como era a sua
estruturação interna. O soldado disse que era preciso, após o caminho percorrido de
canoa, andar mais de cinco dias para chegar ao quilombo, onde havia armas de
artilharia, “grandes roças de mandioca, algodões e tudo quanto é mister para a vida”. O
comandante militar avisava que precisava se inteirar mais sobre o assunto e depois iria
marchar contra os quilombos.49

46
PARÁ. Presidente da Província (1856-1857: Beaurepaire Rohan) Relatório dirigido pelo Exc. Sr. Dr.
Henrique de Beaurepaire Rohan Presidente da Província à Assembleia Legislativa da Província do Pará
na 2ª Sessão da XII Legislatura, em 15 de Agosto de 1856, Belém. Typ. Santos & Filhos, 1856, anexo nº
6.
47
Thompson infere que muitos dos costumes praticados e reconhecidos pela comunidade acabam
assumindo qualidades legais, como um direito reconhecido pelos seus pares. Tanto que, quando na
Inglaterra do século XVIII os patrícios tentaram interferir nas práticas de mercado e no tempo de trabalho
dos plebeus, estes se opuseram, visto que essas práticas de mercado capitalistas feriam os seus costumes.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
48
Bates observou que os nativos levavam uma “vida semiaquática”, pois as casas e os pequenos povoados
localizavam-se às margens dos rios. Por isso, “a montaria toma ali o lugar do cavalo, do burro ou do
camelo de outras regiões. Além de possuir uma ou duas montarias, quase toda família tem uma canoa
maior, a que dão o nome de igarité”. BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas, p. 38.
49
APEP, FSPP, Códice 1122: Registro de Ofícios, 09.11.1840.
37
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No entanto, quilombolas e regatões, ao terem domínio dos gêneros que a
população precisava, desestruturavam temporariamente o sistema de apropriação das
elites comerciais. É nesse ponto, então, que insiste o controle das autoridades e
comerciantes sobre esse comércio, pois não estavam questionando o abastecimento de
gêneros para a população, mas sobretudo o controle legal desse comércio e a
necessidade de arrecadar os impostos de tais negociações. Soma-se a essa diligência das
autoridades o objetivo de aferir acerca da quantidade de gêneros que era comercializada
por pequenos produtores, comerciantes e regatões.
Paralelo a essa tentativa de controle das autoridades estavam as reclamações de
comerciantes locais e fazendeiros do interior da província, que não participavam dos
lucros desse comércio clandestino e clamavam por reparações. Um Edital escrito por
Manoel Antônio Daniel Valente, morador da Vila de Cametá, expressava a ação de
escravizados fugidos, desertores e ladrões de gado que agiam no contrabando e no
comércio ilegais, diminuindo o controle das autoridades e o lucro dos comerciantes
locais. Constava no documento que “sendo assaz notório a este Senado por
representações de pessoas de probidade, o quanto tem sido, e é prejudicial ao bem
público, à conservação das lojas e tavernas estacionadas nos distritos desta vila”, uma
vez que estes estabelecimentos acabavam “motivando a multiplicação dos roubos entre
os escravos, já servindo de asilo, e proteção dos desertores, e pessoas fugidas, e outros
sem aplicação interessante ao público, e menos ao serviço de Sua Majestade Imperial”.
Em razão desses espaços “terem ali o seu ponto certo de negociações dos mesmos
roubos, com que se surtem para cometerem as desordens as mais escandalosas ao
sistema que felizmente nos rege”. Diante desses argumentos, Manoel Antônio Daniel
Valente finalizava o documentos afirmando serem esses “os motivos porque: fazemos
saber a todos os moradores desta vila, o seu termo, que da data da publicação deste,
dentro do prazo de trinta dias ficarão extintas todas as referidas lojas, e tavernas
existentes fora desta vila”.50
Com isto, se a Fazenda Real conseguisse extinguir essas tabernas, “ponto certo
de negociações”, os agentes do fisco teriam um controle maior sob os produtos que
eram comercializados nessas casas de venda no interior das vilas e freguesias. 51 Manter-

50
APEP, FSPP, Códice 783: 15.08.1824.
51
Ao discutir sobre as práticas culturais dos moradores das cidades, Pierre Mayol declara que os
mercados públicos são espaços onde se torna difícil haver um controle preciso, em função da própria
organização desses lugares de “extrema complexidade das relações aleatórias que aí se entre mesclam”.
Cf: MAYOL, Pierre. “Morar”. In: CERTEAU, Michel de et alli. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
38
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se-iam, assim, os lucros que o comércio proporcionava à coletoria e controlaria a
possível ação dos regatões nessas localidades. Mas também seria garantida a cobrança
mais eficaz sobre o pagamento das licenças que essas casas de comércio estavam
sujeitas a quitar, e constantemente eram inadimplentes junto aos cofres da Coletoria.
Essa foi a ordem que o Comandante Manoel Muniz Tavares mandou executar, para que
o capitão de Boim tivesse toda a “cautela e vigilância sobre os regatões que vendam
coisa alguma, pelos rios e casas do distrito (...) sem que apresentem documento legal de
haverem pago na Recebedoria Provincial o imposto de cinquenta mil reis”. 52
Caso essas medidas fossem efetivadas, o lucro dos comerciantes e a
tranquilidade dos fiscais seriam mantidos. Apesar disso, a extinção dessas tabernas,
visando o controle social e a proibição das práticas comerciais ilícitas sociabilizadas
entre eles, causaria “vexames ao comércio” em função da necessidade do pequeno
comerciante haver-se com seus fregueses, impossibilitados de deslocarem-se até os
portos das cidades para mercadejar e se abastecer dos gêneros necessários para a sua
sobrevivência.
As Câmaras Municipais trabalhavam para estipular os impostos, as multas e as
taxas de licença para garantir a abertura e manutenção das “casas de negócios” na
cidade e nas vilas do interior. Os taberneiros e os donos de pontos de venda exerciam
atividades muito visadas pelas autoridades, em função do controle sobre os lavradores e
a estreita relação comercial que entretinham com quilombolas e soldados desertores,
efetuando a apropriação dos excedentes almejados pelos grandes comerciantes. As
recebedorias e as coletorias do interior da província trabalhavam para impedir a
circulação de produtos e mercadorias de comerciantes que não tivessem quitado os seus
devidos impostos. Os agentes do fisco tentavam controlar o deslocamento dos homens
livres pobres para impedir o trato comercial entre pequenos comerciantes e regatões.
Não obstante, a legislação visasse exercer o domínio sobre essas práticas comerciais,
estipulando ações que garantissem o controle, não somente sobre o quantum negociado
e auferido nessas transações, como também sobre a circulação dessas pessoas.

Cozinhar. Petrópolis, Vozes, 2000: 63. Mesmo que houvesse esse interesse dos coletores ficais
dificilmente ocorria o controle e a cobrança eficaz sobre esses espaços.
52
APEP, FSPP, Códice 1114: 22.01.1840.
39
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ALIMENTAÇÃO ENTRE SÃO
MATEUS E PORTO SEGURO NA
VIAGEM AO BRASIL DO
PRÍNCIPE MAXIMILIANO DE
WIED-NEUWIED (1815 – 1817)
Uerisleda Alencar Moreira 1

A gastronomia engloba todos os aspectos da vida cotidiana, pois busca


compreender, dentre outras coisas, a relação entre o Ser Humano e os alimentos que
consome. Para o estudo da história da alimentação, os relatos de viajantes apresentam
elementos que podem contribuir para lançar o olhar sobre a alimentação no contexto em
que os relatos foram produzidos. A obra Viagem ao Brasil é classificada como
Literatura de Viagem, 2 e consiste na produção de documentos e registros de viagens que
atingem um público leitor dos mais diversos. As motivações da viagem influenciam
diretamente no tipo de registro produzido pelo viajante, uma vez que o olhar do viajante
os ambientes que ocupar estará voltado aos aspectos que mais lhe interessem. 3
Dentre os viajantes europeus que percorreram o território brasileiro, destaca-se a
presença do príncipe prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que se insere como
produtor de relato de viagem, registrando e publicando impressões sobre temas
variados. O estrangeiro em território nacional elabora sua observação, por vezes, a partir
do estranhamento do outro, seja o outro como o conjunto social diferenciado do que
conhece na Europa ou o outro como ambiente natural das terras tropicais.

[...] o estranhamento, ao mesmo tempo que provoca uma reação de

1
Docente da Faculdade Batista Brasileira, Mestre em História Regional e Local.
2
SCHEMES, Elisa Freitas. A literatura de viagem como gênero literário e como fonte de pesquisa. In:
XXVIII Simpósio Nacional de História. 24-31/jul. 2015. Anais... Acessado em 05/10/2016. Disponível
em:
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439245917_ARQUIVO_2.ARTIGOANPUH2015Eli
sa-Final.pdf
3
SARAT, Magda. “Literatura de Viagem”: Olhares sobre o Brasil nos registros dos viajantes
estrangeiros. Revista Patrimônio e Memória. V. 7, n. 2. P. 33-54, dez. 2011.
40
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afastamento, também provoca fascínio diante da realidade diferente,
que é observada de acordo com as concepções e interesses dos
indivíduos e que passa a ser registrada à luz de suas experiências.4

Maximiliano em sua viagem entre o Rio de Janeiro e Salvador entre 1815 e


1817, se vê em um universo completamente dispare do que já conhecia até então, não
apenas pelo contato com o ambiente natural que lhe possibilita a elaboração de estudos
botânicos e zoológicos, mas também pela aproximação de populações nativas, como os
Machacali, os Pataxó e os Botocudos, que lhe causaram estranhamento e admiração, a
ponto de inserir em seu relato de viagem dados etnográficos importantes para o
conhecimento destes povos.
Na obra Viagem ao Brasil, 5 Maximiliano aborda aspectos zoológicos, botânicos
e etnográficos com a valorização dos espécimes encontradas no percurso. O percurso
escolhido por Maximiliano, o litoral leste do Brasil, entre o Rio de Janeiro e o sul da
Bahia era uma área de interesse econômicos da coroa, onde buscavam implementar
políticas de colonização para o povoamento. 6 Até o final do século XVIII, a coroa
estabelecia restrições e proibições de circulação de pessoas e mercadorias na Zona
Tampão,7 um território que hoje compreende o Espírito Santo, norte de Minas Gerais e
o sul da Bahia até Ilhéus, e compreendia o território no entorno da região diamantífera e
cuja circulação era restrita para reduzir ao máximo a circulação de pessoas, no intuito de
diminuir as possibilidades de roubo e extravio de minerais preciosos. Com o declínio da
produção aurífera mineira, a Zona Tampão passou a ser alvo de estratégias para o
conhecimento do território, percursos fluviais, o aumento da fixação da população em
especial a incorporação de mão de obra indígena como força produtiva e o combate à
resistência indígena.8
Assim, o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied traçou em 1815 seu roteiro de
viagem em um território cujas descobertas científicas eram de interesse da
administração do reino. A escolha do percurso da viagem pode ter sido influenciado
pelas relações estabelecidas entre Maximiliano e personalidades da administração

4
SARAT, Magda. “Literatura de Viagem”: Olhares sobre o Brasil nos registros dos viajantes
estrangeiros. Revista Patrimônio e Memória. V. 7, n. 2. P. 33-54, dez. 2011. p. 41.
5
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo. 1989.
6
SILVA, Igor de Lima e. VIAGEM AO BRASIL: produção e circulação entre o público europeu do
século XIX. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. N. 31 (1), 2014. P. 181.
7
PARAÍSO, Maria Hilda B. Os botocudos e sua trajetória histórica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da.
(Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: FAPESP, 1992, p. 413-430.
8
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas
nos sertões do leste. Slavador: Edufba, 2014.
41
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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portuguesa, das quais destaca Joaquim Lobo da Silveira que escrevera ao Conde da
Barca, Antônio de Araújo e Azevedo, uma carta apresentando Maximiliano de Wied-
Neuwied. 9A descrição feita por Maximiliano em seu relato de viagem acerca dos povos
indígenas encontrados no percurso vem corroborar para a construção de uma imagem
pacífica desses povos,10 em contraponto ao mito de antropofágicos e selvagens em voga
e amplamente divulgado enquanto houve a necessidade da manutenção da zona
tampão.11
Ante o exposto, Maximiliano, com seu relato, pode estar inserido entre “os
naturalistas que buscavam atender às expectativas dos Estados representados”, 12 pois o
resultado de sua viagem apresenta informações relacionados aos recursos naturais
disponíveis bem como sobre elementos do cotidiano das populações indígenas até então
consideradas selvagens e perigosas.

Metodologia

A narrativa de Viagem ao Brasil foi construída a partir do diário do viajante e


enriquecida com algumas das centenas de aquarelas produzidas por ele e sua equipe
durante a viagem. A edição utilizada neste estudo foi publicada pela editora Itatiaia em
parceria com a editora da Universidade de São Paulo em 1989. Nesta edição, há
quarenta e três ilustrações dentre as quais duas são mapas. Foram publicados os dois
volumes da obra (Tomo I e Tomo II), dos quais destaca-se o trecho percorrido entre o
que hoje compreende o norte do Espírito Santo e o Extremo Sul da Bahia, percurso
descrito no Tomo I.13
No percurso, destaca-se o relato do trajeto entre São Mateus no Espírito Santo e
Porto Seguro na Bahia, passando pelo rio Doce, Viçosa, Mucuri, Caravelas, Alcobaça e
Belmonte é o alvo do estudo, em que foram destacados os elementos apontados pelo
viajante relacionados à zoologia, à botânica e à etnografia da alimentação. Para tal,

9
SILVA, Igor de Lima e. VIAGEM AO BRASIL: produção e circulação entre o público europeu do
século XIX. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. N. 31 (1), 2014.
10
COSTA, Christina Rostworowski da. O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e sua Viagem ao
Brasil (1815-1817). Dissertação (Mestrado). Programa de Pós Graduação em História Social da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. 132 p.
11
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas
nos sertões do leste. Slavador: Edufba, 2014.
12
SILVA, Igor de Lima e. VIAGEM AO BRASIL: produção e circulação entre o público europeu do
século XIX. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. N. 31 (1), 2014. p. 181.
13
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo. 1989.
42
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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foram destacados os elementos da gastronomia apontados pelo Príncipe no percurso da
Antiga Capitania de Porto Seguro com a utilização do programa SpecialPackage for
Social Sciences (SPSS, versão 18) no intuito de elaborar um banco de dados para a
realização da análise quali-quantitava.
A gastronomia se faz presente nas rotas dos viajantes, uma vez que os alimentos
amplamente consumidos pelas populações nativas passam a servir as refeições dos
estrangeiros. Maximiliano de Wied-Neuwied se destaca dentre os demais viajantes que
percorreram diferentes territórios brasileiros no século XIX por descrever de forma mais
prolongada os costumes de populações indígenas, com destaque aos Botocudos que
conviveu nas margens do Rio Grande de Belmonte, localidade em foco neste estudo.
Para os Botocudos, Maximiliano dedica dois capítulos de sua obra, sendo o último
capítulo do Tomo I e o primeiro capítulo do Tomo II. Dentre caminhos e descobertas,
neste estudo a gastronomia dos povos indígenas emergem, tanto com os alimentos
coletados pelos silvícolas como métodos de cocção e utensílios, elementos da história
da gastronomia indígena que emergem à pesquisa acadêmica.
Na obra Viagem ao Brasil, Maximiliano de Wied-Neuwied aponta os alimentos
consumidos por ele, colonos, soldados e povos nativos que encontra no percurso entre o
Rio de Janeiro e Salvador entre 1815-1817. Neste estudo, destaca-se o trecho entre São
Mateus (Es) e Santa Cruz (Ba), em que o viajante entra em contato com povos
Machacalis, Pataxó e Botocudos. Por compreender que o documento para a pesquisa é
um instrumento definido pelo pesquisador que ao se apropriar do mesmo concede a ele
o sentido e o papel em sua pesquisa acadêmica, pretende-se tomar por base no presente
estudo a abordagem metodológica qualitativa. A pesquisa qualitativa pode ser
considerada como um campo que trabalha com o “[...] universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações”. 14 Tendo em vista a análise de uma obra literária (Relato de
Viagem), a fonte também pode ser considerada quantificável, à medida que foi
elaborada uma tabela inserindo o número de vezes em que a informação sobre
utensílios, modos de fazer, fauna e flora se repetem no texto. Salienta-se, que dados
quantitativos que possibilitaram o levantamento e a quantificação dos elementos da
alimentação apontados pelo príncipe viajante. Assim, o estudo buscou na abordagem
quali-quantitativa construir uma base de dados e em seguida analisá-los. Para a

14
GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2009. p. 32.
43
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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realização do estudo, o livro “Viagem ao Brasil” foi lido e a partir dos elementos
apontados pelo autor sobre alimentos e alimentação foram elaboradas categorias que
compuseram um banco de dados com o uso do programa Special Package for Social
Sciences (SPSS, versão 18) com as seguintes categorias: Agricultura, criação de
animais, fauna, flora, equipamentos e utensílios, métodos de cocção e fabrico de
alimentos.

Equipamentos e utensílios na Viagem ao Brasil de Maximiliano de Wied-Neuwied.

No percurso entre São Mateus e Santa Cruz, foram identificadas 322 ocorrências
(Quadro 1) distribuídas nas categorias: Agricultura, em que se inseriu informações
sobre alimentos cultivados no percursos por colonos, soldados e indígenas; a criação de
animais com destaque para os animais domésticos utilizados para a alimentação
humana; a fauna nativa, composta pelos animais caçados pelo viajante e pelos povos
nativos para consumo, os animais caçados e empalhados para levar à Europa como
espécimes para estudo não foram computados nesta categoria; a flora nativa,
especificamente as descrições de plantas utilizadas para o consumo humano, as espécies
descritas para os estudos botânicos do viajante e não são indicados no texto seu
consumo foram excluídas do banco de dados; os equipamentos e utensílios,
principalmente utilizados pelos povos nativos como cabaças, dentes de animais, entre
outros; os métodos e cocção empregados aos alimentos e testemunhados pelo viajante
ou que lhe fora relatado pelos sujeitos que encontrou no percurso; e o fabrico de
alimentos, quando aponta a manufatura de alguns alimentos e o processo de fabrico e
transformação dos insumos.
QUADRO 1
Ocorrência das categorias
Categoria Ocorrências
Agricultura 67
Criação de Animais 11
Fauna Nativa 135
Flora Nativa 49
Equipamentos e Utensílios 69
Métodos de Cocção 25
Fabrico 102
Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados de WIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo

44
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Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1989. p. 165-326.

O relato é extremamente rico em informações e em um mesmo trecho podem ser


identificados mais de um elemento que, consequentemente, foram inseridos em mais de
uma categoria, como no trecho que segue:
Quebram o fruto do coco de imburi, a que dão o nome de "ororó",
batendo com grandes pedras, e fazendo com isso grande ruído, que
muitas vezes traiu a presença dos índios aos soldados idos à sua
procura. Para lhes tirar a amêndoa servem-se de ossos de onça e de
outros grandes felinos; cortam-lhes obliquamente a ponta e afiam-na à
maneira de uma goiva.15

No trecho acima, numa mesma entrada foram inseridas informações na categoria


Flora (coco de imburi), Utensílios em duas entradas (pedras e ossos), sendo que os
ossos de animais são indicados ainda a sua modificação do natural para um utensílio
manufaturado (cortado obliquamente e afiado) além de ser indicado a sua utilização,
semelhante ao uso da Goiva. O emprego de um equivalente para explicar ao leitor a
forma de se utilizar o osso cortado e afiado se faz necessário para a compreensão. Na
Europa, destino e público leitor do relato de Maximiliano de Wied-Neuwied, a Goiva
era um instrumento amplamente conhecido, e podia ser um “Instrumento utilizado por
macineiro, etc. Agulha, com que os artilheiros tirão a pólvora, de que está carregada a
peça para saber de está húmida”.16

15
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo. 1989. p. 303.
16
PINTO, Luiz Miranda da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva,
1832.
45
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FIGURA 1
Ornamentos e utensílios dos botocudos

Fonte: Exposições Virtuais do Arquivo Nacional. Ornamentos e Utensílios dos Botocudos. Ilustração In:
Maximilian Alexander Philipp, prinz Von Wied-Neuwied. Voyage auBrésil... Acessado em 31/10/2017.
Disponível em: http://www.exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br/pt-br/exposicoes/65-brasil-o-
imperio-nos-tropicos/306-indios.html

Na figura 1, está a representação no item 7 do osso de grande felino, cortado em


longitudinal e afiado, utilizado pelos botocudos à margem do Rio Belmonte para retirar
a amêndoa do coco do imburi. Á medida em que convive com os Botocudos, o príncipe
Maximiliano de Wied-Neuwied faz observações que dizem respeito ao cotidiano desses
povos, como o processo de trocas de serviços ou outros objetos de interesse, ao que o
viajante afirma que

Comecei logo a barganhar com os selvícolas, dando-lhes facas, lenços


vermelhos, contas de vidros e outras ninharias, em troca de armas,
sacos e outros utensílios. Manifestavam decidida preferência por tudo
que fosse feito de ferro; e, à semelhança de todos os "tapuias" da costa
oriental, penduravam imediatamente as facas obtidas a um cordão
amarrado em volta do pescoço.17

17
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 248.
46
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A faca amarrada ao pescoço está ilustrada na Figura 1, item 6. Como nômades,
os Botocudos precisavam organizar seus materiais e utensílios de modo que fosse de
fácil transporte, assim, ao elaborar um cordão com faca, o transporte do objeto
pendurado ao pescoço estaria facilitado, ao passo que o objeto cortante estaria sempre a
mão para quaisquer necessidades, como destaca no trecho:

Esses selvagens têm por costume, quando se põem em marcha, levar


consigo muitos pequenos objetos, de que devem fazer uso na primeira
oportunidade. Cada homem traz pendurado ao pescoço, por um forte
cordão, a sua maior preciosidade, uma faca, que muitas vezes é apenas
um pedaço cortante de ferro, ou mesmo uma simples lâmina, que, à
força de ser usada, se acha reduzida a um pequeno fragmento. Esse
instrumento é sempre muito cortante, pois não cessam de afiá-lo [...].18

O uso do instrumento cortante aparece como relevante na dinâmica do dia-a-dia


dos botocudos observados por Maximiliano, pois o objeto aparece em mais de uma
ocorrência como instrumento desejado pelos indígenas e de ampla utilização. Tal
instrumento cortante pode ter sido um utensílio de grande utilidade para a preparação de
diversos alimentos, desde o corte de plantas e frutas ao abate, desfolamento e corte de
animais. Para a cocção dos alimentos, o fogo era produzido com o uso de um utensílio
chamado de Nom-nam, ilustrado como o item 2 da Figura 1.

Quando uma horda de botocudos acampa em algum ponto da floresta,


as mulheres imediatamente acendem o fogo, pelo mesmo processo da
maioria dos povos selvagens. Tomam elas para isso um pau comprido
em que foram feitas algumas pequenas cavidades; apoiam sobre uma
destas a extremidade de um outro pau, colocado perpendicularmente e
emendado quase sempre a uma flecha, para que fique mais longo e
mais fácil de segurar, tomando-o entre as duas mãos espalmadas e
fazendo-o girar velozmente, num e noutro sentido. Enquanto isso,
outras colocam embaixo do pau horizontal, no lugar em que gira a
ponta do outro, estopa tirada da casca da árvore chamada pelos
portugueses "pau d'estopa" (Lecythis); o fogo manifesta-se nos fiapos
esparsos e comunica-se em seguida às fibras da estopa. São muito
seguros os resultados com esse aparelho de fazer fogo, a que os
botocudos chamam "nomnan", [...]; ele exige, porém, muito tempo e
esforço, sendo tão fatigante a manobra de girar o pau, que é frequente
várias pessoas precisarem se revezar nessa manobra, quando não
dispõem de outro”.19

Assim, é possível considerar que o Nom-nam possa ter sido um utensílio de uso

18
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo. 1989. p. 290.
19
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 294.
47
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coletivo, e o ato de fazer o fogo um momento de partilha do trabalho. Da mesma
maneira, o alimento coccionado seria partilhado entre os membros do grupo. Chama
atenção na Figura 1 o item 8, um utensilio utilizado como recipiente para líquidos, feito
de grandes peças de bambu.

Para fazer um copo, corta-se um segmento do colmo, deixando numa


das partes o nó, para servir de fundo. Essa vasilha, chamada
"quecroc", [...] pode ter três a quatro pés de comprimento, cabe muita
égua, mas é sujeita a rachar-se com facilidade; é comum fecharem-lhe,
então, as fendas, com cera. A água, que nunca deve faltar nas cabanas,
é trazida pelas mulheres e crianças, que fabricam também linhas de
tucum para pescar, cordéis de fibra de uma bromeliácea chamada
pelos botocudos "orontiónaric" ("o" breve), ou fortes cordas de embira
para os arcos.20

Os botocudos em contato com o príncipe Maximiliano aparentam possuir uma


organização de trabalho dividido por gênero, em que as mulheres estão associadas a
elaboração de alguns utensílios como o Kekrok, cestos e panelas de barro. O bambu
chamado pelo príncipe de Taquarassu é conhecido como Guadua angustifólia que, são
muito abundantes em toda a América do sul e possui um colmo de aproximadamente 25
centímetros de diâmetro.21 Maximiliano afirma que, de utilizado como utensílio, essa
variedade da flora nativa possui em seu interior um líquido de sabor doce, assim como
encontrado nas folhas rijas das Bromélias. 22
Maximiliano aponta pequenos grupos de botocudos, que circulam no território, e
afirma que sempre que uma família se desloca de um local para outro, são utilizadas
sacolas feitas em trança (Figura 1, item 3). A alça é frequentemente passada pela testa
da mulher que a carrega. Na sacola, podem ser encontrados materiais para elaborar
ponta de flecha, casco de tatu, casco de tartaruga, urucum, pau de estopa, pedras para
quebrar cocos, ossos para furar coco, cordas, bola de cera, colares, entre outros
utensílios. Se houver crianças pequenas, a mulher também é encarregada de leva-la. Ao
homem, cabe o transporte do Arco e da Flecha, instrumento de caça, pesca e defesa do
grupo.

20
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 295.
21
OLIVEIRA, Luiz Fernando Andrade de. Conhecendo bambus e suas potencialidades para uso na
construção civil. Monografia (Especialização), 2013. Curso de Especialização em Construção Civil da
Escola de Engenharia UFMG. Belo Horizonte, 2013.
22
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 299.
48
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FIGURA 2
Família de Botocudos em viagem.

Fonte: BNP (Biblioteca Nacional de Portugal). [LEGRAND]. Legrand, c. 1839-1847. Uma família
de botocudos em viagem. 1. Gravura: litografia, p&b. Disponível em: <http://purl.pt/12638>. Acesso em:
07. Nov. 2017.

Na Figura 2, observa-se uma família de botocudos em viagem elaborada por


Legrand e arquivada no acervo da Biblioteca Nacional de Portugal. Esta mesma
ilustração aparece na obra Viagem ao Brasil publicada em 1989. Provavelmente a
litografia foi elaborada a partir do relato de Maximiliano, que descreve seu encontro
com grupo que atravessou o rio Belmonte. 23 Uma mulher com uma sacola e grande
carga chama a atenção do viajante, que a descreve carregando uma criança sobre o
ombro, levando pela mão outra criança maior com uma pequena nos ombros, descrição
que pode ser observada na Figura 2. O homem na Figura 2 caminha à frente da mulher,
carregando arco, flechas e um animal que provavelmente fora caçado no percurso da
viagem. Na obra publicada em 1989, além da imagem ilustrada na Figura 2, uma outra
representa a família do chefe Kerengnatnuck, em que o homem vai à frente, carregando
além do arco e da flecha, uma sacola menor que a carregada pela mulher, e um copo de

23
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 306.
49
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taquarussu,24 descrito anteriormente e ilustrado no item 8 da figura 1.
A caça, carregada pelo botocudo na Figura 2, trata-se de uma Cutia, que aparece em três
ocorrências no banco de dados. Duas delas, pegas em armadilhas pela comitiva do
príncipe viajante em sua estada no Morro d’arara, próximo à Viçosa. A armadilha
utilizada pela comitiva do príncipe trata-se de um mundéu, também utilizada pelos
indígenas para aprisionar animais. Varnhagem afirma que ao entrar na armadilha, um
tronco cai sobre os animais, abatendo-os e/ou aprisionando-os.25
Em estudo sobre a etnobiologia, conhecimentos tradicionais e a caça de povos
tradicionais na mata atlântica brasileira, o mundéu é uma armadilha artesanal para a
caça da fauna, em que foram construídas duas fileiras de varas cravadas ao chão em
semicírculo e sobre ele um tronco pesado. Fundo do semicírculo deve ser colocada uma
isca ligada por um fio ao tronco, que cai sobre o animal quando este atinge a isca. 26
O mundéu é uma ferramenta utilizada ainda hoje pelos Tupinambá de Olivença
(Bahia) para a caça.27 Assim, o modelo de armadilha utilizado por Maximiliano e sua
comitiva, compõe o campo dos conhecimentos tradicionais dos povos nativos do Brasil,
que em diferentes tempos e espaços fizeram o uso da tecnologia de construção do
mundéu para a captura de animais essenciais a sua segurança alimentar. Já nas margens
do Rio Grande de Belmonte, o príncipe observa a caça da Cutia pelos botocudos, e
aponta que em geral, os animais caçados pelos nativos são consumidos de imediato. A
cutia, por exemplo, foi moqueada, método de cocção que consiste em assar a caça, e a
parte que não fosse consumida de imediato seria seca ao fogo para melhor conservação
e consumo posterior.
A divisão do alimento entre os botocudos chama a atenção do viajante, quando
relata: “Meu ajudante de caçadas, Aó, abateu, certa vez, vários animais do alto de uma
árvore, voltando muito contente; depois de uma caçada assim bem sucedida, ele sempre
repartia amigavelmente os despojos com os companheiros”. 28 Assim, a partilha pode ser
observada como uma prática dos botocudos, em que é possível entrever no relato que a

24
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 279.
25
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brazil antes da sua separação e independência
de Portugal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1870. V. 1.
26
HANAZAKI, Natalia; ALVES, Romulo R.N.; BEGOSSI, Alpina. Hunting and use of terrestrial fauna
used by Caiçaras from the Atlantic Forest coast (Brazil). Journal of ethnobiology and ethnomedicine. V.
5, 2009. p. 36.
27
PEREIRA, Jussara Paula Rezende; SCHIAVETTI, Alexandre. Conhecimentos e usos da fauna
cinegética pelos caçadores indígenas “Tupinambá de Olivença” (Bahia). Revista Biota Neotrop.,
Campinas , v. 10, n. 1, p. 175-183, Mar. 2010 . Acessado em 10 mar. 2017. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/bn/v10n1/a18v10n1.pdf
28
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil, p. 255.
50
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segurança alimentar dos indivíduos era baseada no trabalho coletivo.

Considerações Finais

A obra Viagem ao Brasil dispõe de muitos elementos de análise para a


compreensão da alimentação na região percorrida pelo viajante. Não apenas o alimento
em si, mas também as relações sociais estabelecidas no entorno do ato de alimentar-se.
O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied aponta alguns elementos da alimentação no
Brasil no início do século XIX, tais aspectos se mostraram relevantes para a
compreensão da alimentação entre os botocudos observados pelo viajante. Utensílios
diversos que podem ter sido utilizados para a caça, a coleta, e a transformação do
alimento cru em cozido. O relato de Maximiliano se mostrou rico em informações sobre
os botocudos, elementos com muitos outros aspectos da vida e cotidiano desses grupos.

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EM FAZENDAS SÍTIOS E
MORADAS: O VIVER NOS
SERTÕES AMAZÔNICOS 1

Francivaldo Alves Nunes2

Na fértil província do Pará, onde a natureza dá a todos com


espontânea superabundância tudo o que é preciso para viver, o
trabalho é tido por essas classes como um constrangimento
desnecessário, e intolerável. O nosso tapuio, que ergue a sua barraca,
ou o palheiro à margem de qualquer desses rios e lagos variadamente
piscosos, rodeados de matas e florestas virgens, ubérrimas de frutos,
drogas, e especiarias, abundantes de uma infinita variedade de caça
em quadrúpedes e voláteis, vive descansando e descuidoso no seio da
abundância.3

A expressão em epígrafe faz parte do pronunciamento à Assembleia Legislativa


do Grão-Pará, de 1º de outubro de 1849, do Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho,
então presidente da província. Na oportunidade, com tom ufanista para as riquezas
florestais que podiam ser avistadas nas terras amazônicas, região correspondente as
províncias do Pará e Amazonas, não deixava de criticar a forma como as populações
lidavam com esses recursos. No caso, defendia a atuação do governo imperial e da
província do Pará pautada no maior conhecimento sobre as formas de vida e trabalho
desenvolvidos por colonos, identificados como índios, mestiços e pretos.
O olhar das autoridades para o modo de vida das populações que ocupavam os
sertões amazônicos, como registrou Jerônimo Coelho, é o objeto de reflexão neste texto.
Para isso utilizaremos os registros deixados em manuais, relatórios e pronunciamentos
governamentais, assim como relatos de viajantes. Aqui procuraremos analisar a
percepção dos agentes públicos e naturalistas, não apenas com um conjunto de
impressões, nem também como simples relatos. Nosso entendimento é que se trata de

1
Texto resultante de pesquisas vinculadas ao projeto “Cartografia da colonização: Ocupação da terra,
paisagem e produção rural no interior de aldeamentos e colônias agrícolas do Pará, décadas de 1840-
1880”, financiado pelo CNPq.
2
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor na Universidade Federal do
Pará, atuando no curso de História do Campus Universitário de Ananindeua e nos programas de pós-
graduação em Ensino de História (Campus Ananindeua), História Social (Campus Belém) e Educação e
Cultura (Campus Cametá).
3
PARÁ. Falla dirigida pelo Exmo. Sr. Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, Presidente da Província
do Gram-Pará a Assembleia Legislativa Provincial na abertura da segunda sessão ordinária da sexta
legislatura no dia 1º de outubro de 1849. Pará, Typographia de Santos & Filhos, 1849, p. 22.
52
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uma leitura sobre uma região que se revelava por uma invencível força criadora,
materializada na percepção de uma densa mata, mas também ocupada por um conjunto
de experiências que envolvem a população local, que nesses registros são percebidas de
forma a negar suas experiências vinculadas na lida com a terra, através do cultivo, e
com a floresta, através da extração.
Outra questão que se observa nesta relação entre os agentes públicos e as
experiências produtivas desenvolvidas pelas populações dos sertões amazônicos,
demonstrando interesse de observação e registro, está à perspectiva de transformar a
região em grande centro de produção e comércio. Neste aspecto, as descrições sobre a
geografia, flora e fauna amazônica, os recursos naturais, os costumes das populações
locais, o esforço humano para dominar a paisagem física e o povoamento são
compreendidos para reafirmar a capacidade produtora da região. Diante destes dados, ao
Estado imperial estaria, portanto, a responsabilidade, através da troca de informações
sobre produção e comércio entre diferentes regiões do Brasil, observar a capacidade
produtiva e de comércio da Amazônia para com a Europa, América do Norte, a África e
Ásia, como bem destacou Caio Prado Júnior. 4

Interesses de observação e comércio

Um elemento inicial de interesses de observação, diz respeito aos dados sobre a


exportação na Amazônia, os quais aparecem como importantes registros para se pensar
a dinâmica da produção econômica do Pará e Amazonas. Recuperados pelos viajantes
naturalistas que visitaram a região no século XIX, identificam, a partir de informações
da alfândega do Pará, artigos como açúcar, cachaça e melaço, o que revela a presença de
uma indústria agrícola marcada pela instalação de engenhos.
Como produtos da agricultura destacavam o cultivo da cana, café, cacau,
algodão e arroz, como os mais promissores, sendo o cacau e a cana apontados como os
principais produtos, como bem identificou os estudos de Bezerra Neto, para quem se
observava uma cultura agrícola. 5 A madeira era também identificada como importante
para a economia da região, com destaque para o pau-amarelo, finas madeiras de
marcenaria, como muirapinima, pau-violeta ou pau-da-rainha e pau cetim, jacarandá e

4
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.
5
BEZERRA Neto. José Maia. Para além da floresta: o mundo rural amazônico em Spix e Martius (1810-
1820). In: NUNES, Francivaldo Alves; KETTLE, Wesley de Oliveira (Org.). Sobre as pegadas de Spix e
Martius: 200 anos. Curitiba: CRV, 2020, p. 19.
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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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madeiras de construção, parte beneficiada em serrarias localizadas nas margens do rio
Guamá e próximas ao porto de Belém, capital do Pará. Do extrativismo registravam a
borracha da seringueira, favas de pixurim, cumarú, polpa de tamarindo, canela de cravo,
também chamado de cravo-do-Maranhão, anil, urucu, castanhas do Maranhão e
pequenas quantidades de canela, cravo da índia, noz-moscada, guaraná, carajuru e
âmbar. Outros produtos como a baunilha, bálsamo de copaíba, estopa, alcatrão, copal,
fumo, piaçaba, salsaparrilha, tapioca, goma da raiz da mandioca e de outros tubérculos,
eram observados.6
A estreita ligação do Pará com os mercados exteriores é confirmada pela
estatística do comércio marítimo brasileiro do período, ao apresentar países como
Inglaterra, França, Alemanha e Portugal na posição de nações que movimentam maior
volume de importação e exportação. De acordo com Stephen Haber, esse dado seria
mais bem observado quando das relações comerciais da região com os ingleses, alemães,
norte-americanos e franceses. Conforme informações, os dados apontavam que 89,1%
das exportações do Pará eram para atender esses mercados, consumindo dessas mesmas
regiões o equivalente a 85,6% das importações. O maior volume comercial era
negociado com a Inglaterra, que fornecia 51% das importações e consumia 37%,
evidenciando uma hegemonia britânica no comércio do Pará. Ao se observar o fluxo de
embarcações no porto de Belém, identifica-se que dos 112 navios que atracaram na
capital, em 1852, 72 tinham bandeiras inglesas, proporcionando uma movimentação de
26.781 toneladas.7
Ainda sobre a esta questão, Mary Pratt adverte que em meados do século XIX há
um pleno domínio inglês, não apenas do ponto de vista comercial, mas também sob
forma de empréstimos concedidos a vários países da América do Sul que objetivavam a
construção de estradas de ferro e rodagem, modernização dos portos e minas, o que teria
fomentado o comércio com estas regiões e a necessidade de exploração de recursos. 8
Mike Davis, preocupado com a dependência dos chamados países do terceiro mundo,
lembra que essa hegemonia financeira britânica no Brasil era consequência também das
dívidas comerciais, que repetidas vezes eram refinanciadas, gerando deficit

6
SPIX, Johann B. von; MARTUS, Karl . F. P. von. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. São Paulo: Itatiaia,
1981, p. 32.
7
HABER, Stephen. How Latin América Fell Behind: Essays on the Economic Histories of Brazil and
Mexico, 1880-1914. Stanford, Califórnia. 1997, p. 251
8
PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC,
1999, p. 255
54
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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orçamentário permanente, o que teria levado as aspirações de um modernizado Império
tropical e a ideia de uma autonomia de desenvolvimento de um Estado brasileiro
circunscrito pela dívida externa e a inconstância de suas receitas de exportação. 9 Essa
situação conduziria as autoridades nacionais a buscar a elevação de suas rendas no
aumento da produção nacional e na elevação do volume de suas exportações, o que por
consequência geraria uma corrida a exploração de riquezas através do cultivo e extração
de produtos florestais.
Nesse ambiente de competição internacional que se justifica a necessidade de
melhor conhecer a Amazônia, associando este conhecimento a defesa do aumento da
produção nas áreas de cultivo e extração. Nesse sentido, através do patrocínio do
governo imperial, abre-se espaço para propor um desenvolvimento técnico da produção
agrícola, com a introdução de sementes, associada a maquinários e novas formas de
preparo da terra para plantio. No entanto, para a melhor efetivação dos projetos era
necessário conhecer a região, compreender as formas de atuação e relação que as
populações sertanejas estabeleciam com os rios e matas.

O viver nos sertões amazônicos

“Liberdade de trabalho não gera riqueza e não garante a prosperidade”. Assim, o


secretário do Pará em 1864, Ferreira Penna, em relatório apresentado a presidência da
província, observa o modo de vida das populações que ocupavam as margens do rio
Tocantins. Ao estabelecer comparativos com a experiência de plantio, não deixava de
expressar seu pensamento crítico quanto às formas de cultivo, ainda dependente da
queima da mata, assim como sem qualquer regularidade nos dias e horários de trabalho,
o que faria com que esta população pouco conseguisse gerar riqueza com sua
produção.10
O que nosso interlocutor chama de parcos resultados da produção, também
associa à “indolência” de parte da população local, que só produziria o necessário para
consumo ou manutenção das despesas com a família e agregados. O pequeno roçado de
cultivo de mandioca, de onde se produzia a farinha, era o que se observa de mais regular.
Algumas famílias ainda plantavam o milho e feijão em menor escala, no entanto sem

9
DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais: Climas, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo.
Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 391
10
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e às baías do
rio Anapú. Rio de Janeiro, Livraria do Povo, 1864, p. 17.
55
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grandes preocupações em produzir mais do que o necessário para alimentar cinco a sete
pessoas por alguns meses. Aliás, era a farinha que completava o prato, servido com
peixe cozido e assado, que diariamente se observava nas cozinhas destes sertanejos,
destacava Ferreira Penna. Em outras palavras, associa a questão ao que chama de “gênio
pacato do paraense”, que se satisfaria com menor lucro e não acompanharia o espírito
ambicioso, de forma a se preocupar em produzir para o comércio. 11
De acordo com o naturalista Henry Bates, a bruteza de costumes por parte das
populações que habitavam as regiões do Pará e observada por Ferreira Penna estava
relacionada ao contato com as populações indígenas. Ao observar os moradores da
região do Tocantins, a proximidade de Cametá, registra que havia uma predominância
de mamelucos, que embora fossem caracterizados pela gentileza nos seus hábitos, não
se conseguia “comprar deles muita coisa em matéria de alimentos frescos”. Na opinião
do naturalista, isto se devia “ao fato de nunca terem eles nada além do que o
estritamente necessário ao seu próprio sustento”. Nos momentos das refeições, segundo
Bates, até se avistavam peixes e frutas em demasia, no entanto, não tinham o hábito em
comerciar as sobras. 12
Robert Avé-Lallemant, também naturalista e que no último ano da década de
1850 esteve na Amazônia, ao examinar as populações das margens do rio Negro
revelava que estas se satisfaziam perfeitamente com a caça, frutos silvestres, cocos de
palmeiras e castanhas “que a natureza lhes atira aos pés”. Além disso, quando
despertava a ambição desses povos, “preparavam um pouco de borracha, apanhavam
algum cacau, vendiam diversos outros produtos da floresta, pescam alguns peixes e
tartarugas para vender, e ganham assim dinheiro”. Embora reconhecesse a pouca atração
em acumular os resultados da produção, não deixava de associar a questão à dificuldade
com o desenvolvimento de qualquer atividade econômica que exigisse maiores esforços,
principalmente a agricultura.13

11
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e às baías do
rio Anapú, p. 23.
12
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1979, p. 58.
13
AVÉ-LALLEMANT, Robert. No rio Amazonas (1859). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1980, p. 105.
56
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Imagem 1: Aldeias indígenas no rio Negro, por Christoph Frish, 1867.

Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional (Brasil). In:


http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/3986

Na fala destes viajantes naturalistas, ao que se observa, os hábitos das


populações amazônicas estavam, pois, em contradição com que se compreendia
enquanto indústria, ou seja, ação transformadora do homem sobre a natureza, ou ainda,
como resultado do esforço da inteligência do homem para satisfazer uma necessidade
aparente. A inexistência de uma indústria agrícola, por exemplo, estaria relacionada à
facilidade de meios para garantir os recursos necessários à sobrevivência, sem que
houvesse uma necessidade de transformação desse espaço natural. Esta situação era
responsável, portanto, para fazer do homem amazônico um constante dependente dos
recursos que as florestas disponibilizavam sem grandes esforços.
Outro dado apontado, agora pelas autoridades provinciais, sobre o que se
considerava enquanto práticas selvagens dos agricultores do Pará, correspondia aos
braços que se empregavam no trabalho agrícola, percebidos como “móveis, cedendo às
vantagens, que lhes afigura a colheita dos produtos naturais”. Isto fazia com que não
57
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desenvolvessem “um trabalho regular, não se fixando, e rolando soltos de mata em mata
sem deixar em sua passagem por esse laboratório da natureza, outros vestígios, que não
sejam a destruição das árvores, que tão grandes riquezas lhe oferecem”. 14
Quanto aos que se aventuram ao trabalho agrícola, este se mantinha sob o peso
da rotina de queima das florestas, ou como dizia o presidente Araújo Brusque, em 1863,
a agricultura no Pará “vai a passo lento caminhando pelas tortuosas veredas que o gênio
destruidor do homem lhe abre através das chamas, que consomem as soberbas florestas,
que destrói, ora aqui, ora acolá, sem confiança no trabalho”.15 Isto era explicado, pois, a
lavoura na forma como vinha sendo desenvolvida seria incapaz de garantir o pleno
sustento dessas famílias, necessitando completar a renda através da prática extrativista.
Era comum identificar essa lavoura como acanhada, sem confiança no futuro, por que
era constante o abandono das terras então cultivadas.
O sítio de Antonio Ferreira Gomes, localizada em Vista Alegre, a 22 quilômetros
de Cametá, é apontada por Henry Bates como um dos casos em que se observa uma
acanhada lavoura, sem uso de instrumentos que promovam o aumento produtivo e
práticas indiscriminadas de derrubada da floresta. Nas áreas de cultivo, se avistava um
trecho de terreno limpo, onde se encontravam várias árvores frutíferas, tais como
laranjeiras, limoeiros, jenipapeiros e goiabeiras. Eram ainda registradas “algumas mal
cuidadas” plantações de cacau e café. Das terras de cultivo de mandioca, estas ficavam
espalhadas pela mata, sendo encontradas também em algumas ilhas no meio do rio. Para
Henry Bates, como havia terras em abundância e, o arado nessa região era praticamente
desconhecido, bem como quase todos os implementos agrícolas, o mesmo trato da terra
nunca era cultivado três anos seguidos. Pelo contrário, este observa que se desmatava
um novo trecho da floresta em anos alternados e a antiga clareira era abandonada. 16
Esse modo de lidar com a terra, associado a práticas rudimentares ou selvagens
seria ainda observado nas matas próximas a sede do município de Baião, constituídas na
sua maioria por capoeiras, já que as terras nessa área já haviam sido anteriormente
cultivadas. “Numerosos pés de café e algodão cresciam entre as moitas de mato” que
ficavam aos cuidados do trabalho das mulheres, uma vez que os homens permaneciam,

14
PARÁ. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa da Província do Pará na Segunda Sessão da
XIII Legislatura pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Doutor Francisco Carlos de Araújo
Brusque em 1º de novembro de 1863. Pará, Typografia de Francisco Carlos Rhossard, 1863, p. 43.
15
PARÁ. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa da Província do Pará na Segunda Sessão da
XIII Legislatura pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Doutor Francisco Carlos de Araújo
Brusque em 1º de novembro de 1863, p. 43.
16
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas, p. 56.
58
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boa parte do tempo, ausentes de suas terras, o que era explicado pelo trabalho de
pescaria. Ao deixar sob a responsabilidade das mulheres a atividade de plantio,
demonstrava, na observação do naturalista Henry Bates, a pouca importância que a
agricultura exercia sobre essa população, servindo apenas para o complemento diário de
sua alimentação, regada por pescado e frutas silvestres.17
Na avaliação de AntonioBaena sobre a agricultura e extração no Pará na
primeira metade do século XIX, destacava que os lavradores, em geral, não haviam
rejeitado o que chamava de “pernicioso método dos derribamentos” e dos “incêndios
das matas”. Estas ações, que eram justificadas por estarem às terras cansadas e pela
necessidade de se buscar outros espaços para desenvolver novos cultivos, faziam com
que esses trabalhadores não se prestassem ao desenvolvimento de uma indústria fértil,
entendida como escolha de um “terreno perpétuo para lavoura, em que a produção fosse
resultado do estudo e da experiência dos cultivadores”. O método desenvolvido pelos
colonos do Pará, segundo Baena, copiava “o bruto costume que tinha os silvícolas na
sua acanhada agricultura”, o que dificultava, inclusive, a fixação destes colonos por um
longo e duradouro tempo em um mesmo terreno.18
As práticas selvagens no trato com a terra, observadas pelas autoridades
provinciais, apresentariam ainda um aspecto nada aprazível para os que buscavam o
campo como objeto de recreio. Identificava-se um quadro nada agradável nestes sítios e
fazendas do interior, principalmente se avistando moradas que mais pareciam cabanas e
casebre. No caso dos terrenos cultivados no Pará, estes eram apresentados como
portadores de “miseráveis restos de incêndio, paus metade abrasados, uns ainda manetes
nas suas raízes, outros abatidos, que molestam a paisagem”. 19
Nas áreas em que predominavam a derrubada e queima da floresta “pairava a
imagem do aniquilamento”, “sobre as colinas, viam-se alguns troncos carbonizados e
outros só meio queimados”, dizia Robert Avé-Lallemant quando observava as
plantações que margeavam o rio Amazonas até a embocadura do rio Negro, para quem
chamava de “lavoura aniquiladora”. 20 Nas terras em que a mata não era derrubada,
como nas ilhas “defronte de Cametá”, os cacaueiros eram plantados “aqui e ali no meio
das árvores, quase ao acaso”, não estabelecendo um método regular de plantio,

17
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas, p. 59.
18
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2004, p. 710.
19
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a província do Pará, p. 72.
20
AVÉ-LALLEMANT, Robert. No rio Amazonas (1859), p. 140.
59
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destacava Bates. 21 No Baixo Amazonas, embora se observasse um plantio regular de
cacau, o seu cultivo era considerado precário, pois pouco ou nenhum cuidado era
dispensado às árvores. Até mesmo a capina ao redor dessas plantas era feita de maneira
ineficiente. Diziam que as plantações eram geralmente muito antigas e feitas nas terras
às margens dos rios, o que tornava sujeita a inundações quando da subida das águas. 22
A esta falta de indústria na lavoura era adicionada o que se considerava enquanto
“apoucamento dos proprietários rurais em fazer um cultivo que abarcasse os gêneros
necessários a alimentação, mas também assegurasse o comércio”. Com exceção de
algumas plantações de arroz e de algodão, observadas nas lidas agrárias em algumas
propriedades adjacentes à cidade de Belém, as outras plantas eram agricultadas em
porções mínimas. Da própria mandioca poucos faziam avultada cultura, sendo que esta
plantação era identificada como “privativa dos cultores de acanhadas plantações”. 23
No caso das agrestes plantas como a salsaparrilha, as palmeiras de piaçava, as
árvores de recendentes gomas e bálsamos, de cravo, de baunilha, de óleo, de breu, de
estopa e outros produtos importantes encontrados nas florestas da Amazônia, por sua
utilidade no comércio, estas eram defendidas como necessários cultivos. No entanto, o
que se observava é que esses produtos ainda não se constituíam como objeto de plantio
por parte dos agricultores do Pará. De acordo com presidente Araújo Brusque, diversos
frutos, resinas e bálsamos não eram encontrados com tanta frequência nos mercados de
Belém, o que se devia “a acanhada rotina a que estava submetida à agricultura”.
Afirmava que o “gênio destruidor dos homens” teria aberto “tortuosas veredas” através
das chamas, consumindo as “soberbas florestas” e os seus “potenciais produtos”. 24
Sobre a questão, Ferreira Penna apontava que nas regiões das baías do Baixo
Amazonas a imprevidência e barbaridade de seus usuários teriam provocado o quase
desaparecimento dos pés de castanha, cravo, baunilha e copaíba, considerados os quatro
vegetais mais estimados da região. Essa destruição era resultante do uso indiscriminado
da força do machado e do terçado. No caso das castanheiras, a sua destruição era
provocada pela avidez com que os extratores buscavam explorar todos os recursos
disponibilizados por esta planta, arrancando-lhes até a casca a fim de tirarem dela a

21
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas, p. 66.
22
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas, p. 111.
23
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a província do Pará, p. 73.
24
PARÁ. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa da Província do Pará na Segunda Sessão da
XIII Legislatura pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Doutor Francisco Carlos de Araújo
Brusque em 1º de novembro de 1863, p. 45
60
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estopa utilizada para calafetar embarcações. Esta prática teria provocado a escassez de
castanheiros nas terras altas dos rios Pacajá e Anapú, sendo necessário chegar às
proximidades das cachoeiras desses rios para se fazer a extração deste produto. O cravo,
a exemplo das castanheiras, já não era mais facilmente encontrado nas margens dos rios,
como outrora. Para se obter o produto era indispensável procurá-lo no interior das matas,
o que era explicado pela colheita predatório deste produto, responsável pela destruição
das árvores que os produziam. 25
A atividade extrativa, como observado, é também percebida como dotadas de
rudimentares práticas, pois não chegava a aproveitar todos os recursos naturais
disponíveis para exploração, o que para os agentes públicos, em vez de provocar a
prosperidade, era responsável por tornar ainda mais pobres essas populações. Herdeiros
do método de extração dos grupos indígenas, as populações do Pará seriam identificadas
em alguns posicionamentos das autoridades locais, como incapacitadas ao melhor
aproveitamento dos recursos disponibilizados pela natureza. Das terras nas margens do
rio Tapajós, sudoeste da província, dizia o engenheiro português tenente-coronel Franco
de Almeida, em sua memória sobre o Tapajós, que as terras que margeavam este rio
eram possuidoras de frutas silvestres, salsa, cacau, cravo e gomas. Essa região era ainda
formada de matas gerais e campos de pastagens. No entanto, apesar das variadas
riquezas da região, pouco se aproveitava, isto por que as atividades de exploração
desses recursos estavam sendo controladas pelo que chamava de “toscos índios”, ou seja,
os trabalhos extrativos e de criação eram praticados, segundo o tenente-coronel, por
homens “que se assemelhavam mais aos tapuios do que a civilizados”. 26
Sobre esta questão, em 1843, o padre Venâncio Henriques de Rezende, na época
deputado pela província de Pernambuco, informava aos companheiros de parlamento
que ouvira de uma pessoa conhecedora do Pará, a quem não revelou nome, que nesta
região era comum fornecer uma pequena quantia de farinha a um índio, para que este
adentrasse ao mato em busca de produtos florestais. Esse índio retornava, após alguns
dias, com uma porção de salsaparrilha, de baunilha, e outras espécies, que fazia o
material de comércio de alguns especuladores. Deste registro, o deputado chamava

25
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e às baías do
rio Anapú, p. 81.
26
PARÁ. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial na 2ª Sessão da 17ª Legislatura pelo
Dr. Abel Graça Presidente da Província em 15 de agosto de 1871. Pará, Typ. Do Diário do Gram-Pará,
1871, p. 21.
61
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atenção, pois, o material resultante da extração era trazido por índios, considerados sem
habilitação para a retirada regular do produto.27
A discordância se justificava por estes gêneros estarem sendo tirados
espontaneamente da natureza e não enquanto resultante de uma indústria promovida por
essa população. As reclamações quanto às práticas de extração reaparecem em anos
posteriores, agora nos relatórios dos presidentes do Amazonas, especialmente no caso
de João Pedro Dias Vieira. Em 1856, ele constatou que a salsaparrilha havia quase que
por completo desaparecido das matas e margens dos rios mais próximos, o que era
resultado de práticas inadequadas das populações do interior, que ao retirar a salsa
arrancava do solo a batata que dava sustentação a planta e permitiria novas colheitas. A
extração da estopa e do óleo-de-copaíba também sofria danos semelhantes, o que, no
caso da extração de óleo, este estava sendo retirado através de golpes de machados que
danificavam o caule da planta, e não através de cortes superficiais que não destruísse a
árvore. Neste caso, Dias Vieira propunha como ações de enfrentamento a esses
problemas a aprovação de leis e regulamentos que coibissem o extrativismo predatório e
apoiasse o cultivo dessas árvores, justificando estas medidas como necessárias para
também assegurar a melhor condição de vida das populações do sertão, habituadas a
viver em cabanas e a se alimentar de frutas e tubérculos. 28
Em relatório baseado na viagem de exploração do rio Madeira em 1861, o
engenheiro Silva Coutinho, na época prestando serviço para o governo do Amazonas,
faz um diagnóstico da situação da agricultura e extrativismo nesta região. Destacava que
embora houvesse uma legislação que proibisse expressamente a devastação das matas
devolutas para a lavoura itinerante (fazia referência a Lei de 1850), esta deixava de lado
o extrativismo predatório, que matava as árvores aos poucos, pois entendia que a
destruição de uma árvore não estava associada apenas a sua imediata retirada, mas que
ao tirar a casca, cortar as raízes e perfurar o tronco, também promovia com o tempo a
sua destruição.29

27
BRASIL. Annaes do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Srs. Deputados, Primeiro Anno da Quinta
Legislatura, Primeira Sessão de 1843 colligidos por AntonioHenoch dos Reis em virtude de resolução da
mesma Câmara. Rio de Janeiro, Typ. Da Viuva Pinto & Filho, 1882, p. 260.
28
AMAZONAS. Relatório apresentado á Assembleia Legislativa Provincial, pelo excelentíssimo senhor
doutor João Pedro Dias Vieira, digníssimo presidente desta província, no dia 8 de julho de 1856 por
ocasião da primeira sessão ordinária da terceira legislatura da mesma Assembleia. Barra do Rio Negro,
Typ. de F.J S. Ramos, 1856, p. 16.
29
COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório sobre alguns lugares da província do Amazonas,
especialmente o rio Madeira. Manaus. IHGA, 1986 [1861], p. 64.
62
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Os problemas identificados com a extração tomavam uma dimensão econômica
mais preocupante quanto fazia referência ao uso destrutivo das seringueiras. De acordo
com Silva Coutinho, nas ilhas e igapós do Baixo Amazonas, no Pará, a ausência dessa
planta era sentida pelos seus exploradores. As árvores estragadas e enfraquecidas, não
podiam dar o leite suficiente para saciar a avidez dos fabricantes. Com isso, dizia que,
se as autoridades do Amazonas não desenvolvessem ações no sentido de combater essas
“práticas destruidoras”, haveria de acontecer o mesmo nesta província. Na percepção de
Silva Coutinho, essas práticas eram consequências “do modo de vida desalentador das
populações” que sobreviviam do extrativismo, pois se constituíam enquanto “uma horda
nômade que pousa ora aqui ora acolá, tirando das seringueiras a máxima quantidade de
leite que é possível, matando as plantas e deixando atrás de si a devastação”. 30
Tomando como ponto de partida as povoações de Gurupá, Baião, Oeiras,
Mocajuba, Melgaço, Faro, Alenquer, Mazagão e Porto de Moz, Ferreira Penna apresenta
um quadro nada animador dessas povoações e as cenas de vida nos seringais. Conforme
descrição, relatava que “desde que as chuvas do inverno despareciam e os rios
recolhiam ao seu leito, os moradores começavam a mover-se, retirando-se das
povoações”. Nesse movimento migratório, levavam suas famílias para o seringal,
“embarcando tudo quanto lhe pertencia”. “Mulher, cães, patos, galinhas, tudo enfim,
exceto a barraca onde se abrigava, talvez por não caber na canoa”. Dizia que o
taberneiro e o negociante eram os últimos a saírem da povoação, pois, deixava
“primeiro operar essa pequena vazante humana, aproveitando ainda a última hora de
negócio”, quando então partiam “quase na comitiva dos derradeiros emigrantes,
fechando suas casas e comércio e transportando seus gêneros para onde se acumulava
maior número de barracas e sítios”. 31
Nesse mesmo movimento de mudanças para áreas de seringais, se observava que
vizinhos e conhecidos já seguiam viagem, os amigos e fregueses desapareciam no
interior das matas, a povoação “tornara-se taciturna, as ruas foram cobertas de ervas, o
vilarejo estava portando abandonado”. Chegando ao seringal com sua família formada
por uma mulher ou amásia, filhos e filhas, começavam logo o trabalho, que durava até a
época em que o rio inundava as terras, interrompendo todo o serviço. A chegada do
inverno era, portanto, acompanhada do regresso do seringueiro ao povoado com alguns
30
COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório sobre alguns lugares da província do Amazonas,
especialmente o rio Madeira, p. 65.
31
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e às baías do
rio Anapú, p. 34.
63
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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poucos produtos resultantes do seu trabalho no seringal. No regresso, os seringueiros
encontravam sua cabana em ruínas e rodeadas de mato que havia crescido durante os
seis meses de sua ausência. Esta situação o obrigava a reconstruí-la ou, pelo menos,
cobri-la novamente de folhas de palmeira para ter um abrigo contra os rigores do
inverno.32
Ao descrever o modo de vida das populações do interior envolvida no trabalho
de extração, Ferreira Penna se soma a outros intelectuais e agentes públicos da época,
entre outras autoridades, que apontavam as experiências de trabalho e produção das
populações dos sertões amazônicos como prática predatória, responsável em explicar a
situação de miséria em que viviam as populações do interior do Pará. Para justificar
seus posicionamentos revelavam que se tratavam de “efeitos perniciosos dos
seringueiros, sobre outros ramos de indústria e sobre a riqueza e civilização no interior
da província”. Por efeitos perniciosos se entendiam a decadência das povoações,
ausência de braços para trabalho agrícola, desprestígio a outras atividades econômicas
importantes para a região como a agricultura, dispersão do comércio e redução dos
habitantes a condição de nômades, sem residência certa, ou antes, residência de muitos
lugares ao mesmo tempo.

Considerações finais

Como se observa, a modernização das práticas agrícolas passava a ser percebida


como necessária para superação do modo de vida das populações das áreas do interior
da Amazônia, e descritas por autoridades, viajantes, naturalistas e intelectuais como
reduto de costumes selvagens. Esta perspectiva permitia a defesa da introdução de
novas técnicas de plantio que superasse os antigos hábitos de lidar com a terra e que
eram identificados nesses discursos como práticas rudimentares e atrasadas. Ainda sobre
a questão ficava evidente, a partir do desenvolvimento da agricultura, a expectativa de
que as populações do interior superassem a sua condição nômade, formando povoados e
auxiliando no progresso e prosperidade dessas povoações.
As descrições e impressões apontadas representam, portanto, representações e
leituras sobre a região, que envolviam interesses científicos e políticos, o que oscilava
em atentar para as vantagens comerciais, sem perder de vista o controle sobre hábitos e

32
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e às baías do
rio Anapú, p. 36.
64
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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valores quanto ao modo de vida das populações. Tratava-se em um momento
circunscrito a meados do século XIX, de defesa da circulação de conhecimentos sobre
as formas de produção e uso dos recursos florestais, como estratégia de
desenvolvimento econômico. O que significava disciplinar índios, pretos e mestiços, nas
suas experiências de trabalho.
A observação desses agentes públicos sobre o modo de vidas das populações dos
sertões amazônicos revelou uma incompreensão sobre as experiências que envolviam o
lidar com os rios e matas. Diríamos que, considerando os interesses desses agentes,
tratava-se de uma oportuna incompreensão, uma vez que, o não entendimento
legitimava a condenação destas práticas e a busca de outras experiências de produção
que resultasse na extinção de antigas práticas plantio e extração.

65
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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CHEF PAULO MARTINS E SUAS
“MEMÓRIAS DE UM PILOTO DE
FOGÃO”
Luciana Silva Sales1

Introdução

A partir do que condiz o título, este artigo é uma parte do meu trabalho de
conclusão de curso intitulado A construção da identidade nortista no ato de comer e
cozinhar: Uma perspectiva do chef Paulo Martins na Gastronomia regional paraense,
proveniente da conclusão do curso de Bacharelado em História pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Inicialmente, o artigo apresenta um debate historiográfico
mais abrangente sobre a história da alimentação em pleno século XX, visando alguns
autores paraenses que fizeram parte do chamado modernismo amazônico. Na qual
fizeram jus aos contos amazônicos desfrutando o lado caboclo de seus costumes e
hábitos locais. Sendo assim, busquei na visão contemporânea interpretar essa identidade
nortista no viés do chef de cozinha paraense que ficou conhecido pelo Brasil afora como
“embaixador da cozinha paraense”, dando visibilidade aos produtos amazônicos por
meio do seu trabalho e em seus pratos regionais. Problematizando o artigo por meio da
ideia de legitimidade e legibilidade à mesa 2 atribuída pelo sociólogo Carlos Alberto
Dória em seu livro A formação da culinária brasileira, ressaltando o contexto da
construção da identidade nortista por meio dos insumos alimentares na gastronomia.
Nesse sentido, com a abrangência da discussão acerca da identidade nortista
feita no artigo, pude visibilizar mais detalhadamente nesse trabalho as crônicas
produzidas pelo falecido chef Paulo Martins pelas colunas do jornal O Liberal nos anos
de 2006 e 2008, e, portanto, sendo documentadas em 2017 pelo grupo editorial O
Liberal e lançada em livro com o título Memórias de um piloto de fogão. É a partir do

1
Historiadora pela UFPA, pesquisadora e membro do Grupo de Pesquisa Alere.
2
Este é um capítulo do livro A formação da culinária brasileira por Carlos Dória.
66
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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livro que baseio minha pesquisa sobre o chef Paulo Martins e sua trajetória pessoal e
profissional. O livro consta com um sumário de 50 crônicas relatando a vida
profissional e pessoal, buscando a notoriedade da cozinha paraense, suas experiências
de vida com outros chefs renomados do Brasil e do mundo, até a história de Dona Anna,
mãe de Paulo Martins, sendo a primeira fundadora do restaurante “Lá em Casa” e,
também, pelas suas insatisfações políticas e sociais que giravam em torno do ramo da
gastronomia como ciência. Das 50 crônicas publicadas, apenas 48 possuíam receitas no
final da coluna para o leitor. Geralmente, a receita fazia parte da história e memória do
chef Paulo Martins, deixando um rico detalhe de acontecimentos que marcaram aquele
momento. Como foi o caso do registro A minha história do arroz de jambu. “O nosso
arroz de jambu nasceu de uma necessidade e foi feito para substituir, de mentirinha, um
arroz de brócolis, que era a grande novidade por aqui no início dos anos 80”.3 Vindo a
fazer sucesso com o passar dos anos na sociedade paraense.
Sendo assim, o seguinte trabalho tem como objetivo abordar as colunas escritas
pelo chef Paulo Martins para o Jornal O Liberal nos anos de 2006 a 2008, porém, se
utilizando da coletânea do livro Memórias de um piloto de fogão, publicados no ano de
2017 pela mesma organização editorial do jornal. Relacionando a partir das crônicas do
livro uma breve biografia do chef Paulo Martins, tanto na vida profissional quanto
pessoal, evidenciando seu trabalho no restaurante “Lá em Casa” e suas experiências
com os produtos regionais. Com o desígnio de mostrar ao leitor o vislumbre da memória
tanto autobiográfica quanto afetiva pela cozinha paraense e pela história de sua família.

História e Memória na contemporaneidade

Inicialmente, o trabalho também tem como intuito visar a discussão acerca da


história e memória do âmbito historiográfico para uma melhor compreensão das
narrativas que serão apontadas no decorrer do livro Memórias de um piloto de fogão
escritas pelo chef Paulo Martins. Com isto, faz-se necessário problematizar os escritos
autobiográficos, ou seja, “[...] na primeira pessoa, na qual o indivíduo assume uma
posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo onde se movimenta”. 4 Sendo
fundamental para o historiador utilizar das palavras atribuídas – como, por exemplo, das

3
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 29.
4
PINSK, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. 1. Ed., 2ª
reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2011, p. 194.
67
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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cartas - privilégio de acesso a atitudes e representações que o sujeito constitui. Nesse
sentido, as crônicas serão um alicerce da narrativa para o abastecimento de informações
que o chef constituía naquele momento como sujeito narrador da sua história.
Segundo o historiador francês Jacques Le Goff em seu livro intitulado História e
Memória, o autor relata as diversas noções sobre a história. Se utilizando de certos
autores que fazem reflexão a historicidade. Contudo, o objetivo do autor era refletir
sobre a história na temporalidade e não a reduzir na visão europeia. Com isto, o trabalho
tem apenas como passagem de análise sua concepção de história e não o
aprofundamento da visão ocidental, e, nesse sentido, Le Goff atribuía a história da
seguinte maneira:
Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da
experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes
quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de
tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos
ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito
sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a
alimenta.5

Segundo o trecho acima, a memória está relativamente interligada com a história,


pois ela se alimenta do tempo histórico que condiz desde a essência da duração até ao
tempo simbólico, afirmando, no sentido literal da abordagem do [historiador Le Goff],
que a perspectiva da memória está marcada pelos documentos, monumentos, arquivos,
narrativas orais e etc. E a partir do que diz respeito a memória, “[...] está entendida
como um campo de conhecimento necessariamente problematizador. A Memória era o
‘lado pobre’, por assim dizer, e quando muito poderia ser utilizada pela Historiografia
como um canteiro de fontes historiográficas”. 6 E é nesse contexto que ela impõe um
espaço importante para os escritos biográficos e autobiográficos, abrindo um grande
campo de possibilidades para a pesquisa.

Entretanto, atualmente, “[...] as cartas perderam espaço na vida cotidiana dos


indivíduos, porém, os avanços da tecnologia permitiram o aparecimento de novas
formas e novos suportes de textos de escrita de si”. 7 Como é o caso, por exemplo: das
redes sociais, blogs, e-mails, livros biográficos, colunas de jornais, etc.

5
LE GOFF, Jacques. História e memória, p.9.
6
BARROS, José D’Assunção. Memória e história: uma discussão conceitual. Volume 15, 1º semestre de
2011, p. 317-343 ISSN: 1517-4689 (versão impressa), 1983-1463 (versão eletrônica).
7
PINSK, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. 1. Ed., 2ª
reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2011, p. 196.
68
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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Vejamos a seguir a visão sobre a memória autobiográfica pelo [historiador José
D’Assunção Barros]:
A memória autobiográfica apresenta ao indivíduo um panorama
contínuo e denso de sua própria vida. Este aspecto adquirirá
particularmente uma importância significativa para aqueles que
trabalham com a História Oral, e que tem de lidar com essa densidade
e complexidade trazidas pela memória autobiográfica de seus
entrevistados.8

Vale ressaltar que a memória autobiográfica não necessariamente irá trabalhar


com a História Oral, porém, é um suplemento para o historiador e sua pesquisa de
campo. E o trecho abordado pelo historiador é uma menção de como o conceito de
memória em si pode ser subjugado em categorias que demonstram certas complexidades,
como é o caso da memória afetiva, memória biográfica, memória autobiográfica,
memória individual, memória coletiva, e, também, pela história. Além disso, tem como
distinção também, “[...] o contraste entre história e memória, [...] esta examina os
grupos de dentro, enquanto a História os examina de fora”.9 Assim, a discussão acerca
da história e memória autobiográfica é de suma importância, pois se mostra um papel
fundamental na pesquisa de acervos pessoais.

Nesse sentido, o seguinte trabalho mantém como sujeito de pesquisa o chef


Paulo Martins, buscando a partir da coletânea do livro Memórias de um piloto de fogão,
a sua narrativa de vida em meados dos anos de 2006 a 2008, pela coluna do jornal O
Liberal na cidade de Belém-PA. Ocasionando de forma positiva, no que tange a sua
narrativa, o viés da memória autobiográfica ainda mais para indivíduos que buscam em
sua figura uma relação de conhecimento da cozinha paraense. “[...] Espera-se que o
leitor possa ter, entre suas impressões, a apreensão da biografia, ou melhor, da razão
biográfica, como campo de possibilidades investigativas em constituição”. 10
Sendo assim, a memória autobiográfica aborda questões que envolvem muito
além da biografia do sujeito, mas também, a história ao seu redor e de como mediava
esse meio de acordo com seu tempo. Desde a concepção de espaço, ambiente, alimento
e derivados. E, nesse quesito, abordando questões nas quais ainda não se destacavam ou
não tinham tantas pesquisas na área. Ainda mais seguindo a lógica do [historiador José

8
BARROS, José D’Assunção. Memória e história: uma discussão conceitual. Volume 15, 1º semestre de
2011, p. 7.
9
BARROS, José D’Assunção. Memória e história: uma discussão conceitual. Volume 15, 1º semestre de
2011, p. 12.
10
GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Biografia e história na obra de Octávio
Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009, p. 11.
69
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
I Webnário do Alere: Alimentação: práticas alimentares, identidades e os territórios de comer. Ananindeua: Editora Cordovil E -
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D’Assunção Barros] de que “[...] a memória tem se redesenhado no quadro das
preocupações contemporâneas como uma de suas principais temáticas”. 11 Reafirmando
a importância da história e memória no que tange ao contexto autobiográfico.
Partindo da premissa da memória autobiográfica como uma narrativa em
primeira pessoa, o seguinte trabalho citará no próximo tópico as histórias do chef Paulo
Martins em uma linha cronológica desde sua origem até meados dos anos da sua fama
como “embaixador da cozinha paraense”. Fazendo-se em um contexto da história da
alimentação gerida a partir das memórias do sujeito.

“Memórias de um piloto de fogão”

Paulo de Araújo Leal Martins, ficou conhecido nacional e


internacionalmente como “embaixador da cozinha paraense”, nasceu
no dia 09 de maio de 1946 na cidade de Belém-PA. Filho de Anna
Maria de Araújo Leal Martins e Mário Nicolau de Leal Martins, de
família política na capital paraense por ser bisneto do antigo ex-
governador do Pará, José Malcher. Paulo Martins desde muito
pequeno ajudou sua mãe na cozinha quando ela ainda fazia salgados e
doces para venda e encomendas. Aos poucos foi convivendo com as
panelas, embora não mexesse com elas.12

O trecho acima foi retirado do meu primeiro artigo publicado pela Revista IHGP
(Instituto Histórico Geográfico do Pará), intitulado Na construção da identidade
nortista no ato de comer e cozinhar: Uma perspectiva do chef Paulo Martins na
Gastronomia regional paraense. Com isto, prossigo no presente artigo a biografia do
chef como aperfeiçoamento da pesquisa. Visando a história e memória autobiográfica
que constam em suas crônicas publicadas pela editora O Liberal. Nessa perspectiva, ao
citar alguns trechos do livro, o leitor irá se deparar com a linguagem e escrita na
primeira pessoa e algumas explicações acerca da sua narração.
Seguindo a linha cronológica do trecho citado, a família Martins, principalmente,
a Dona Anna, foi uma figura essencial para o aprendizado e futuro do [chef Paulo
Martins]. “[...] Assim, tudo se procedeu com a fama de quituteira de Dona Anna

11
BARROS, José D’Assunção. Memória e história: uma discussão conceitual. Volume 15, 1º semestre de
2011, p. 17.
12
SALES, Luciana Silva. A construção da identidade nortista no ato de comer e cozinhar: Uma
perspectiva do Chef Paulo Martins na gastronomia regional paraense. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Pará (IHGP), (ISSN: 2359-0831 - online), Belém, v. 07, Dossiê “História da alimentação e
do abastecimento na Amazônia”, p. 124 - 142, Maio / 2020.
70
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Maria. 13 [...] À beira do fogão, ela nos dava de um tudo, do bom e do melhor”. 14 Com o
engajamento de Dona Anna em trabalhar para poder dar o melhor para os seus filhos,
Paulo manteve essa memória afetuosa da mãe nas narrativas, até então importante para
sua história profissional.
Segundo o narrador:

Uma das sabedorias de minha mãe, que trabalhava muito e pouco


tempo tinha para nos vigiar, foi fazer com que trouxéssemos os
amigos para dentro da nossa casa. Quando morávamos na avenida
Nazaré, o futebol à tarde, depois dos estudos, era constante. Os
lanches de pão com manteiga e refresco de maracujá nunca faltaram.
A casa da mamãe não era rica, mas sempre farta. Ela adorava ter a
mesa cheia de amigos nossos. Comer a comidinha caseira da Dona
Anna era programa de vários colegas meus. 15

Entende-se que a memória que ele atribui naquele momento é de vínculo afetivo.
Relembrando dos hábitos alimentares que faziam em sua casa com seus amigos e a
presença constante da sua mãe. “[...] Desde os 11 anos, quando não estava em aula ou
estudando, ajudava mamãe arrumando e forrando os tabuleiros nos quais tudo era
entregue”. 16 Paulo obteve noção de cozinha a partir do convívio que tinha com as
compras e entregas que fazia para sua mãe desde muito novo, porém, não foi na infância
que ele escolheu para seguir rumo profissional. Mas foi na infância que marcou seu
vínculo com a cozinha. Pouco se sabe da sua adolescência, haja vista que o sujeito dá
mais importância a memórias em família, com os amigos, já na vida adulta, e, ao abrir o
restaurante “Lá em Casa”.
Antes de abrir o restaurante com sua mãe, Paulo entrou na Universidade Federal
do Pará (UFPA), na segunda turma de arquitetura em 1964, e formou-se em 1969. No
ano de 1970 foi diretor técnico de planejamento da Codem (Companhia de
Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém). “[...] Não
satisfeito com a área na qual se formou e com as desavenças políticas no Codem, Paulo

13
SALES, Luciana Silva. A construção da identidade nortista no ato de comer e cozinhar: Uma
perspectiva do Chef Paulo Martins na gastronomia regional paraense. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Pará (IHGP), Belém, v. 07, Dossiê “História da alimentação e do abastecimento na
Amazônia”, p. 10.
14
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 127.
15
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 128.
16
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 127.
71
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deu um rumo na sua vida”. 17 E foi assim que tudo começou sua parceria no ramo da
culinária e negócios com sua mãe nos anos 70:

Em 1972 dei um novo rumo na vida. No porão da casa de minha avó


Ediméa, que tinha sido construída em 1904 pelo meu bisavó, José
Carneiro da Gama Malcher, comecei a transformar a minha sala de
estudos em cozinha e mais dois quartos, outrora de empregadas, em
salão. Seria um botequim com boa comida. Minha mãe, dona Anna, já
era quituteira famosa. Desde muito cedo convivi com as panelas,
embora não mexesse com elas.

[...] O nome do “Lá em Casa” surgiu por acaso. [...] Queríamos um


nome original, único, e que ainda não tivesse sido usado em nenhum
outo lugar. [...] Um dia alguém perguntou: “O lá em casa já tem
nome?” Deu-se a luz. Aí me convenci que o boteco era e seria “Lá em
Casa”. O nome foi um sucesso. Como era novidade, fazia confusão.
[...] As pessoas não sabiam que era em um restaurante e, sabendo da
hospitalidade do povo paraense, pensavam que estavam sendo
convidadas para a residência de quem os convidava.

Abrimos o “Lá em Casa” em junho de 1972. [...] O botequim não


vingou, mas o restaurante, tocado pela competência e simpatia de
dona Anna, foi de vento em popa. Hoje, 33 anos depois, é conhecido
no Brasil e lá fora.18

Os anos 70 foram um marco significativo para Paulo Martins na abertura do


restaurante e de muita história em relação a sua família política. Repetindo a mesma
história sobre a instalação do primeiro “Lá em Casa”, contudo, visando o lado político e
indignado da família Martins. Visto nesse trecho:

Primeiro “Lá em Casa” nós o instalamos na casa construída em


1903/04 pelo avô de mamãe, José Malcher, ex-governador do Pará.
Foi um escândalo: meus tios, que moravam fora de Belém,
escreveram para minha avó, protestando. Colocar um restaurante na
casa do velho Malcher era um absurdo. Ainda mais porque os
autores dessa heresia eram uma neta e um bisneto desse importante
personagem da história paraense. Usei esta discriminação como
marketing. Provoquei uma ampla polêmica através de jornalistas
amigos da mídia, colocando o assunto na boca do povo. 19

Depois do marketing que fez sucesso na época, também chamou a atenção o


cardápio do restaurante, tendo de início como destaque a cozinha internacional, regional

17
SALES, Luciana Silva. A construção da identidade nortista no ato de comer e cozinhar: Uma
perspectiva do Chef Paulo Martins na gastronomia regional paraense. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Pará (IHGP), Belém, v. 07, Dossiê “História da alimentação e do abastecimento na
Amazônia”, p. 133.
18
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 21-22, 71.
19
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 128-129.
72
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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e caseira. Muito diferente de hoje em dia que se mantém apenas como cardápio regional.
Porém, naquele tempo, o toque de botequim ainda estava em alta:

Os destaques da cozinha internacional eram maionese de lagosta,


lagosta ao thermidor, strogonoff de camarão, filé à CordonBleu, filé
Wellington, filé aos medalhões, bacalhau à portuguesa, etc... Já os
regionais eram casquinho de caranguejo, pato no tucupi, maniçoba,
pirarucu (seco) frito com farofa molhada e feijão manteiguinha de
Santarém, pirarucu no leite do coco, etc... Os pratos de comida caseira
foram a nossa grande inovação. Estávamos no auge da Sudam 20 e
Belém vivia cheia de empresários do Sul maravilha, que já estavam
cheios de comida de restaurante, sempre muito temperada.

Na cozinha do “Lá em Casa” nunca entrou cominho e pimenta-do-


reino; na comida de nossa casa, Dona Anna não usava. Nosso tempero,
que continua até hoje, sempre foi caseiro. Os hábitos do cozinhar dos
nossos antepassados sempre foram respeitados. O pato no tucupi e a
maniçoba sempre feitos da forma correta, sem economias de tempo e
de temperos. Peixe, camarão, frango e carne sempre lavados com
bastante água e limão, depois postos numa vinha-d’alhos básica para
tomar gosto.

Guisadinho de carne ou camarão com quiabo, roupa velha, fritada de


camarão ou caranguejo, Silveirinha de camarão e carne assada à
Mário Martins (meu pai) eram os pratos de comida caseira. Como
sobremesas, pudim de leite, bolo de chocolate, Romeu e Julieta e
outras mais que não me lembro.21

Assim como as narrativas sobre os pratos nos quais ele recordou do primeiro
botequim, em cada crônica o narrador descrevia passo a passo de uma determinada
receita. “[...] O meu objetivo é escrever sempre algo que termine em receita, mas a
estória que vou lembrar é um mito de ficção e realidade”. 22 Não irei aprofundar por
constar uma extensa obra e o foco principal desse artigo são as histórias do sujeito.
Entretanto, na maioria das vezes na quais ele escrevia para a coluna, a receita estava
presente no contexto da história. Rememorando o tempero, a quantidade e a qualidade
do produto alimentar.
Se tratando dos produtos regionais que se faziam presente na cozinha do chef
Paulo Martins e no qual tanto se orgulhava dos costumes e hábitos alimentares, ele teve
a satisfação de apresentar a culinária paraense para pessoas que desconheciam de certos
produtos amazônicos. Foi o caso do chef Alex Atala.

20
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.
21
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 22-23.
22
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 63.
73
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
I Webnário do Alere: Alimentação: práticas alimentares, identidades e os territórios de comer. Ananindeua: Editora Cordovil E -
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Conheci o Alex Atala por telefone. Ele ia participar de um concurso e
me ligou pedindo dicas e produtos do Pará. Dei as dicas e mandei os
produtos. No concurso de que ia participar, ele tirou um segundo lugar.
[...] Hoje somos grandes amigos (pelo menos de minha parte). Ele me
ensinou coisas que aprendeu com Ferran Adriá e que durante algum
tempo só nos sabíamos fazer. Descubro produtos e passo para ele.
Diria até que somos coniventes.23

Assim como o chef Paulo Martins teve a satisfação de apresentar os produtos do


Pará para o chef Alex Atala, o chef paulistano teve a reciprocidade de lhe apresentar
suas experiências gastronômicas internacionais. Foi assim que o chef paraense, com o
incentivo do amigo Atala, pôde ir além da sua zona de conforto e se aventurar no evento
internacional. “[...] Madrifusion era um encontro de chefs de todo o mundo e seria uma
oportunidade para eu conhecer e ser conhecido pelos mais famosos chefs espanhóis”.24

Em janeiro de 2005 fui à Espanha, incentivado pelo Alex, para


participar do Madrifusion. Li uma entrevista do Ferran Adriá, em que
ele dizia que a gastronomia do século XXI passaria pela culinária
chinesa e pelos sabores desconhecidos da floresta amazônica. Resolvi
levar meus produtos do Pará. Sem ter apoio do governo federal para o
envio, resolvemos levar na marra. As duas malas, com 32 quilos de
produtos do Pará, chegaram intactas a Barcelona. Fomos recebidos
pelo chefAdriá, que provou e aprovou tudo. 25

Sendo os produtos provados e aprovados pelo chefAdriá.

[...] Primeiro foi a goma da tapioca que Ferran já conhecia – é


encontrada na Espanha vinda da África. Depois, as farinhas de tapioca
e de mandioca (d’agua), torradas e crocantes. [...] Levei também a
pimenta amarela de cheiro do Pará, o filé de filhote com sua carne
branca e que pode chegar a mais de 180 quilos. [...] O comentário
sobre a polpa de cupuaçu foi de que era bom, porém muito forte e
precisava ser bem trabalhado. Já o bacuri recebeu de Ferran o
comentário de ser, para ele, a mais gostosa das frutas do mundo.

Ao dar para provarem o tucupi, pedi ao Alex Atala que traduzisse o


que eu iria dizer sobre o produto. Então falei que, para mim, o tucupi é
o sabor do século XXI (Adriá já afirma que a culinária deste século
passa pela Amazônia e pela China), pois com o seu sabor único não se
assemelha a nenhum outro. Acrescentei que, com o tucupi, se chega às
mais diversas nuances de sabores agridoces. [...] O jambu dei para
Ferran provar e Atala lhe explicou que, ao morder, sentiria uma leve
sensação de anestesia na boca e língua. Após uma cara séria e de

23
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 119.
24
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 123.
25
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 119.
74
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
espanto, ele exclamou: “Albert, Albert, eles têm uma coisa natural
que dá a sensação elétrica na boca; não é anestesia, é sensação
elétrica!”.

Depois que os produtos do Pará foram exaltados pelo chefAdriá naquele


momento, o chef paraense estava totalmente feliz com a experiência de levar sensações
divergentes para outros chefs renomados no evento.

Fiquei feliz pela experiência. Lembrei da Donna Anna, minha mãe,


mexendo as panelas e me dando para provar um doce novo que ela
fazia pela primeira vez. Ferran retirou de um dos sacos uma pequena e
leve fatia de banana na cor natural, mas totalmente seca. Pediu que
mastigássemos. Ao trincar os dentes, a fatia se partiu com um croc-
croc e uma sensação maravilhosa nos encheu a boca com o gosto
suave da fruta. A mesma experiência fizemos com um pequeno
pedaço de manga, com a mesa textura e apresentação da banana. Em
seguida, ele nos deu para provar o que parecia ser um torrone de
açúcar e perguntou se imaginávamos o que seria. Alex arriscou e disse
que poderia ser açúcar. Sorrindo, Adriá não disse nada; só pediu que
provássemos. Então, colocamos na boca e mastigamos. Nossas bocas
se encheram de água. Tínhamos acabado de provar água (H2O) na
forma sólida sem ser gelo. Foi fantástico! 26

As memórias muitas vezes são partilhadas por um coletivo em um determinado


acontecimento, como foi o caso do encontro dos chefs renomados no Madrifusion,
porém, é a informação minuciosa da memória individual que nos leva a entender o
posicionamento do indivíduo naquele momento. Neste caso, as narrativas do chef Paulo
Martins foram além de uma memória individual, não excluindo, de certa maneira, tal
significado, mas, em um contexto geral das crônicas, Martins demonstra para um lado
mais autobiográfico relacionado com o hábito alimentar. A partir do momento que
relembra e expõe seus desejos e gostos na infância, de modo afetivo pela sua mãe, até
ao momento das trocas profissionais com outros chefs do mundo, sempre na primeira
pessoa. Havendo, de certo modo, uma característica em poder pesquisar mais a fundo
suas narrativas. Exemplo disso é a passagem que ele menciona com o título [Obras ou
“cópias-primas”?] no qual ele faz referência a diversas dúvidas no meio gastronômico.
E uma delas está relacionada com o processo de criação do prato. Temos assim:

O meu processo de criação começa por uma pesquisa na minha


“caixinha de cheiros e sabores”, que todos nós temos na memória.
Essa caixinha vai se fazendo ao longo da vida, com vários
componentes. O nariz, por exemplo, é importantíssimo para um bom

26
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 125.
75
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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chef: ele cheira tudo, pois tem que registrar o que sente na sua
“caixinha”. É comum os chefs também levarem à boca tudo que lhes é
apresentado de novo.

Pois bem, com a minha “caixinha” em uso vou fazendo mentalmente


novas combinações. Mistura daqui, acrescenta de lá e lá vem a saliva
na boca. Será que deu certo? Para saber, só fazendo e mãos à obra!
Ingredientes separados, começamos a fazer o que foi pensado: barriga
no fogão, calor, lá vem a divina... transpiração. Muita transpiração
depois, que sorte! Hoje eu estava bem inspirado [...].

Para que sua criação dê sempre certo e você não corra o risco de errar,
usa a lei de Lavoisier, mas faça uma cópia bem feita. [...] Credite a
você o mérito de ser um bom copista e não espere que os outros
descubram e digam que você não tem imaginação. as pessoas que
convivem comigo sabem que é assim que procedo [...]

Arroz de jambu, Haddock Paraense, Muçuã de Botequim, Picadinho


de Tambaqui, Massa Negra de Maniçoba, Pato do Imperador e etc são
“cópias-primas”.27

Vale ressaltar que os pratos de: Arroz de jambu, Haddock Paraense, Muçuã de
Botequim, Picadinho de Tambaqui, Massa Negra de Maniçoba, Pato do Imperador.
Foram “cópias-primas”, nas quais ele afirma no trecho acima, que puderam beneficiar o
restaurante “Lá em Casa” como destaque nacional no quesito comida regional e a
ascensão do chef Paulo Martins como “embaixador da cozinha paraense”.
Portanto, fecho o ciclo de lembranças do chef Paulo Martins com uma crônica
especial que ressalta as memórias afetivas do sujeito em família e com amigos, com o
título, [Minhas lembranças gastronômicas]:

Sou péssimo para guardar datas, mas lembrar de fatos relacionados à


comida, sobretudo à boa comida, lembro de tudo. Minhas memórias
vêm desde a infância: não esqueço os alfenins28 feitos pela tia Lucy –
de garfo, colher e luvas. [...] Ela também fazia uns brioches
maravilhosos, sem falar no creme de cupuaçu com claras em neve.
Lembro, com saudades, das sobremesas de domingo que tia Maria
Luiza fazia, principalmente de uma que levava doce de leite, biscoito
Maisena e chocolate. Já diabético, descobri que a “nova” sobremesa
de que todos falavam como grande lançamento em Belém, no fim dos
anos 90, a “Torta Alemã”, nada mais era do que a velha sobremesa da
qual tanto me lembrava.
Filé na minha casa era artigo de luxo: só em dia de aniversário. Comer
salsichas da Swift, em lata, também era luxo. Champignon era caro e
raro, mas todo ano, no meu aniversário, tinha que comer uma lata
inteira de salsichas sem dividir com ninguém. E o strogonoff de filé,
como só Dona Anna sabe fazer, nunca faltava.

27
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 131-132.
28
Tipo de doce feito de massa branca à base de açúcar e amêndoas.
76
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Meus pais tinham por hábito, aos domingos, comer em restaurante.
Eram bem poucos na época, mas frequentávamos quase todos. O
restaurante do Avenida Hotel, por exemplo, no “canto” da Presidente
Vargas com a Ó de Almeida, para onde íamos de zeppelin, aos
domingos, após a missa das 10h da Basílica de Nazaré. O almoço
tinha música ao vivo. Papai pedia o “filé à Carlos Gomes” mamãe,
“salada de camarão” e, para nós, filé com fritas e farofa. Íamos
também ao Central Hotel, que me parecia ter um ambiente mais
animado e o filé Chateaubriand era pedida de sucesso. No restaurante
Acapulco serviam um “filé à cubana”, no qual tudo vinha à milanesa,
para mim uma grande novidade: banana e abacaxi empanados e na
comida! Meu pai, Mário Martins, adorava o filé a cavalo do
restaurante do Clube do Remo. No da Tuna Luso, na Tito Franco, a
pedida da D. Anna era uma pescada à dorée, com purê de batatas. Eu
pedia uma canja, que era diferente da feita em casa: era um caldo com
arroz, galinha desfiada e muito cheiro verde. No restaurante do Hotel
Coelho, não me lembro de termos ido uma única vez. O Bife de Ouro,
no térreo do edifício Piedade, fazia umas comidas diferentes. Fomos
só uma vez; era muito caro para nós.

Por isso sempre gostei de restaurantes. Quando entrei na faculdade,


comecei a trabalhar e ter meu próprio dinheiro, minha grande diversão
era ir a restaurante.

Meu grande amigo e companheiro de incursões noturnas nos


botequins, bares e restaurante sempre foi o Cláudio Cativo. Depois do
nosso namoro (no nosso tempo, namoro se resumia a ficar de mãos
dadas e um beijinho, entre as 20 e as 22 horas), íamos trabalhar nos
nossos escritórios de arquitetura até meia-noite e meia e, aí, saímos
para a noite. Primeiro era o Corujão, depois virou para a Casinha.
Quando a grana permitia, dávamos uma passada no Pagode Chinês ou
na Tapera. O fim de noite era no Renasci, onde comíamos do
sanduíche de leitão aos pratos especiais que a comadre fazia para o
Cativo, sempre servidos pelo Feliz, nosso garçom, que de dia era
mata-mosquito.

[...] Em junho de 1972 abrimos o “Lá em Casa” e, ao invés de sair


para jantar fora, passei a receber os amigos. Maionese de lagosta e
lagosta ao thermidor faziam parte do nosso primeiro cardápio. 29

Conclusão

A coletânea de crônicas escritas pelo sujeito Paulo de Araújo Leal Martins, mais
conhecido como “embaixador da cozinha paraense”, publicadas pelo jornal O Liberal
entre os anos de 2006 a 2008, apenas sendo reunidos em 2017 no formato impresso para
livro, nos mostra a esplendida organização documental do chef paraense. Expondo de
maneira cronológica a origem do restaurante junto com a sua história pessoal e

29
MARTINS, Paulo. Memórias de um piloto de fogão. 2017, p. 205-206.

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profissional. Além do entusiasmo com suas experiências gastronômicas com alguns
chefs renomados do mundo e sua perspectiva de vida.
Nesse sentido, vimos no decorrer do artigo que a Memória está literalmente
interligada com a História. Pois a memória possui um papel fundamental na formação
de lembranças, experiências. Atribuindo ao contexto historiográfico uma ampla noção
de tempo, ambiente, sujeitos, alimentação etc. Sendo perceptiva para quem ousa estudar
tanto a história contemporânea quanto história da alimentação. Por isso, pode-se
trabalhar envolvendo memórias coletivas, individuais, quanto a partir das escritas
biográficas e autobiográficas.
E as memórias autobiográficas vistas nos trechos citados, além de estarem na
primeira pessoa, também causam uma aproximação do narrador com o leitor, revivendo
acontecimentos e introduzindo-os com percepções pessoais daqueles acontecimentos,
diferentemente da memória biográfica, que seria a busca da formalidade do sujeito e
nada mais além disso.
Com isso, o privilégio de arriscar nessa busca autobiográfica que se mostra
expansiva em detrimento as receitas não citadas no artigo, refere-se a uma memória
ainda viva não apenas pela coletânea do livro estudado, mas também, na exuberância de
informações acerca do trabalho realizado na área da alimentação e como essa realização
profissional motivou outros profissionais da área e pesquisadores contemporâneos nos
dias atuais. Exemplo claro foram as amizades ocorridas nessas trocas alimentares dos
chefs Alex Atala e Ferran Adriá, além da manutenção familiar do restaurante “Lá em
Casa” que possui como símbolo na cidade de Belém a comida regional e da figura do
chef Paulo Martins. Afinal, tornando-se um “piloto de fogão”.

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A ALIMENTAÇÃO NO
BOULEVARD DA REPÚBLICA:
ADENTRO E AFORA DOS
EQUIPAMENTOS PÚBLICOS
Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes 1

De volta a uma das cenas iniciais da inauguração do porto de Belém: naquela


manhã do dia 12 de outubro de 1909, ás 8horas e 50 minutos, Belém amanheceu festiva
à cerimônia inaugural do primeiro trecho do cais comercial que completará pela arte a
beleza da extraordinária Baía do Guajará.

Obras de melhoramentos do porto de Belém do Pará. Placa


comemorativa da inauguração da primeira extensão do caes, em 12 de
outubro de 1909, sendo presidente da República o Dr. Nilo Peçanha;
ministro da Industria e Viação, o Dr. Francisco Sá; ministro da
Fazenda, o Dr. Leopoldo de Bulhões; ministro da Marinha, o
almirante Alexandrino de Alencar; governador, o Dr. João Coelho;
intendente, o senador Antônio Lemos; chefe da comissão fiscal, o Dr.
Luiz de Souza Mattos2.

Esses foram os dizeres colocados na placa de inauguração que foi aparafusada


na muralha pelos Srs. Desembargador Augusto Olympio e o senador Antônio Lemos,
servindo-se de duas belíssimas bengalas de muirapinama, cujas ponteiras rosqueadas
foram em tempo substituídas por chaves de parafuso de fendas douradas. As bengalas
que foram oferecidas as duas autoridades, tinham castão de prata – uma esfera com
inscrição alusiva ao ato e respectiva data3.
Em 13 de maio de 1912 o intendente Virgílio Mendonça inaugura o Boulevard
Marechal Hermes, que “prolonga-se desde o antigo edifício da Alfândega até a Doca de
Souza Franco medindo aproximadamente 1 kilometro”. Depois de descrever essa nova
avenida, termina o discurso: “Como o novo boulevard, ao cingir o “Boulevard da

1
Professora Dra. Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes. Arquiteta e Urbanista. Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia.
2
Jornal O Paiz(RJ) – ed. 9161 – 03.11.1909
3
Jornal O Paiz(RJ) – ed. 9161 – 03.11.1909
79
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República”, da avenida 15 de Agosto em diante, vai formando um acentuado triângulo
mandei pela mesma secção municipal ajardinar e equipar o referido triangulo”. Esse
triangulo diz respeito a futura Praça denominada dos Estivadores, localizada defronte
aos casarões do Boulevardda República.
Pelas notícias do Jornal O Paizem de 1909, e parte da mensagem do Intendente
ao Conselho Municipal de Belém em 1912, percebe-se que o Boulevard da República é
concluído em sua totalidade por volta dos anos 1912 na, então, Intendência de Virgílio
Mendonça. Não estava mais à frente o Intendente Antônio Lemos. Findava o século
XIX, desabrochava o século XX, e Belém por catorze anos viveu a experiência
revolucionária de um administrador vindo das terras vizinhas do Maranhão. Mas foi o
período das grandes riquezas produzidas pela borracha que permitiu a Lemos a
possibilidade de obras estruturantes e fundamentais para Belém se tornar a Metrópole da
Amazônia. O “ciclo” da borracha haveria, como todos aqueles de uma economia
extrativista, chegara ao fim e Lemos, amargara, o caldo de uma política alimentada por
contradições ideológicas e de interesses privados oriundos de todos os lados, uma
derrocada trágica para quem houvera experimentado os louros de um grande estadista 4
Ali terminava a “Era da Borracha”, do período da opulência, do fausto e do
fastígio, junto com o trágico fim de Antônio Lemos na política de Belém. Mas a
modernização estava feita, pronta, e sua marca ficou registrada. A obra intitulada O
Boulevard da República: um boulevard-cais na Amazônia5 teve por objeto investigar a
urbanização às margens da Baía do Guajará, antigo espaço destinado a acostamento de
embarcações da Província do Grão Pará, denominado de rua Nova do Imperador até sua
transformação no Boulevard da República. Dessa forma, a tese se concentra no símbolo
maior da “modernização”, da transformação da rua para um boulevard. E falar de
boulevard, nos remete imediatamente a Haussmann, na criação desse elemento
estruturante de Paris que funcionava como uma grande reta, numa perspectiva ligada
por monumentos, rua larga rodeada por calçadas arborizadas onde se misturam seus
transeuntes - residentes e comerciantes, glamoroso, iluminado, edificações homogêneas,
espelhos, vitrines , vidros e equipamentos urbanos em ferros em estilo Art Nouveau,

4
MATOS, Emanuel. Lemos: A razão da razão. In MUSEU DE ARTE DE BELÉM: Antônio Lemos: a
ressignificação do mito. Belém do Pará. Belém: prefeitura Municipal de Belém – FUMBEL/ Museu de
Arte de Belém – MABE, 2014, p. 16.
5
NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard-cais na
Amazônia.
1. ed. – Curitiba: Appris, 2020, p. 333.
80
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onde todos que por lá “flanavam” conformavam uma espécie de trajeto histórico lento e
um percurso temporal marcado por uma compreensão mecânica do mundo.
A Belém-látex pré-lemista, tanto a capital do Grão Pará imperial quanto a cidade
dos primeiros tempos republicanos, já apresentava uma série de avanços modernos. Foi
em especial na Belém de Lemos, que essa cidade se mostrava com novas perspectivas,
mais atraente à uma população que se tornara ávida por mudanças, que ansiava por
respirar o impoluto ar da “civilidade”. Lemos na verdade adotou um espelho de
urbanismo do “tipo haussmanniano” 6 , conforme conceituou Pierre Pinon: um
urbanismo idealizado para uma realidade amazônica, com condições geográficas,
climáticas, governamental e populacional totalmente diferentes de Paris, mas com uma
intervenção autoritária, uma imposição de um projeto urbano definido, baseado,
também no seu Código de Polícia Municipal.
O Boulevard da República, até se consolidar no momento da construção do porto
pela Portof Pará mantinha seu caráter de uma cidade de origem portuguesa, localizado
às margens da Baía do Guajará, por onde todas as entradas e saídas de mercadorias eram
transacionadas, todas suas atividades comerciais e portuárias. Nesse contexto de
organização do trecho banhado pela Baía do Guajará é imprescindível destacar a figura
de Percival Farquhar, na construção do porto de Belém, responsável pela construção de
uma nova avenida paralela em sua extensão. Essa avenida originou-se a partir do
Boulevard da República. E assim iniciaram-se as obras desse boulevard onde Farquhar
acatava as solicitações e normas da Comissão Fiscal das Obras do Porto pela
Intendência Municipal. Antônio Lemos implantou junto à Companhia Portof Pará os
melhoramentos urbanos de infraestrutura – calçamento, água, esgoto, eletricidade -, e de
serviços urbanos – transporte, equipamentos urbanos e educação.
Mantida a regularidade do traçado geométrico, o Boulevard da República
constituído por 08 quadras do lado direito, traz um sistema estruturado que integrava as
métricas dos elementos de construção, da arquitetura e do loteamento português. No seu
lado esquerdo, com o aterro da Portof Pará, ocorreu a construção de toda extensa
muralha do cais, foram executadas obras de melhoramentos na área próxima ao
Mercado de Ferro onde, ao seu lado, foram ajardinadas, calçadas, equipadas e
iluminadas três quadras devolutas que passaram mais tarde a ser chamada de Praça dos

6
PINON, Pierre. L’haussmannisation: réalité et perceptionenEurope. In: LORTIE, A. (Ed.), Paris
s’exporte: architecturemodèle ou modèles d’architectures. Paris: Pavillon de l’Arsenal-Picard, 1995, p.
53.
81
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Pescadores. Mais à frente, a construção de três grandes armazéns importados para
recebimento e armazenamento de cargas, onde surgiram os gradis de ferro e os portões
da Tv. 15 de Agosto, na qual finda com outra praça ajardinada, mas tarde chamada de
Praça dos Estivadores.

Figura 1: Quadras dos Boulevard da Repúblicas e suas edificações.

Fonte: NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade
imperial e a metrópole republicana. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Doutorado em História, 2017.

O “tipo haussmanniano” foi identificado na sua transformação e na nova forma


estruturada do Boulevard da República. Apesar da bifurcação do boulevard próxima a
Tv. Leão XII até Tv. 15 de Agosto, é possível ver a perspectiva e seus monumentos
presentes e vistos inicialmente a partir da Tv. da Companhia, com o Mercado de Ferro
até a Tv. 15 de Agosto com a edificação emblemática da Portof Pará. Rua larga com
calçadas arborizadas nos espaços públicos abertos e ajardinados. Homogeneidade nas
fachadas dos sobrados em sua arquitetura eclética e materiais utilizados em razão da
funcionalidade. Infraestrutura e serviços urbanos instalados, juntamente com seus
mobiliários urbanos.

82
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O Boulevard-cais

O Boulevard da República não foi um boulevard parisiense. Para a historiadora


Marcia Nunes, ele foi denominado de boulevard-cais. Um boulevard que convergia
todo seu olhar a Baía do Guajará onde nele se alocou o porto da cidade. E continuava a
ser local de entrada e saída de pessoas e das mais diversas mercadorias. O glamour
desse boulevard-cais era diferente: saem as vitrines chiques com seus espelhos e vidros
e entram em cena o porto e os mercados da cidade – o Mercado de Peixe e o Mercado
de Carne, um empório comercial. No porto o movimento era em função da chegada de
estrangeiros, dos estivadores, dos carregadores de produtos, que eram importados e
exportados, dos serviços de trabalhadores estrangeiros que traziam a nova técnica de
edificação à Belém que se fazia civilizada. Os mercados e as casas comerciais fazem
dele uma “praça” onde as relações sociais são produzidas tendo por referência o
dinheiro, elo essencial entre os indivíduos modernos. Local em que transitam pela rua
pavimentada de paralelepípedos ex-escravos, as classes trabalhadoras, mãos-de-obra
importadas para os serviços de infraestrutura da cidade, transitam as empregadas
domesticas que vão fazer compra, os portugueses com cesto na cabeça, a vendedora de
cheiro e gente que chega do interior, gente que chega do seringal e gente muito bem
vestida porque as casas financistas, as casas aviadoras estavam nesse circuito. Em
termos de movimentação social, também era muito diferente de Paris, tem uma outra
identidade. Por conta das atividades comerciais e portuárias ele se tornou um local de
circulação intensa da diversidade da população que circulava e de mercadorias, porque
tinha casas de tudo ali: casa de consignações, casas de ferragens, exportadores,
importadores, hotéis, etc. todos misturados e convivendo da mesma forma.
Sobre o comprar e o vender no início do século XX, estava o comércio do Pará
dividido em quatro classes que são os exportadores, importadores, retalhistas e
aviadores:

Os primeiros compram aos aviadores e exportam para Europa e para


América a borracha, cacau, castanhas, cumaru, couros, grude de peixe,
óleo de copaíba, urucú, guaraná, plumas de garça e outros produtos do
Estado; os segundos exportam do sul da República carne seca, café,
açúcar, cereais, charutos, tecidos de algodão, roupas feitas, drogas,
chapéus de lã e perfumarias, e do estrangeiro peixes, carnes e frutas
em conserva, vinhos, cervejas e outras bebidas, farinha de trigo,
petróleo, óleos, banha, verniz, breu, alcatrão, cimento, ferragens e
maquinismos, louças, vidros, cristais, porcelanas, drogas e
medicamentos, fazendas, calçados e chapéus de todas as qualidades,
83
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artigos de enfeites de armarinho e tudo que de modas e novidades
produzem a Europa e a América do Norte; os terceiros compram, por
grosso, essas mercadorias aos importadores para venderem-nas a
retalho ao povo; os quartos negociam com os comerciantes do interior
e com os proprietários dos seringais, comprando na praça aos
importadores as mercadorias que lhes são pedidas pelos seus
aviadores, os quais durante a safra vão remetendo-lhes a borracha e os
produtos que vão colhendo, com o que saldam ou amortizam suas
contas no fim do ano7.

Percebe-se, nitidamente, a divisão de atividades e comércio, bem como seus


proprietários, edificada em todo o Boulevard: da Tv. da Companhia (incluindo-se a
Doca do Ver-o-Peso) até a Tv. Frutuoso Guimarães o comércio de bazar, de secos e
molhados, de bebidas, de fazendas, de ferragens, de gêneros alimentícios de diversas
espécies e auxiliares de escritório pertencentes aos comerciantes de produtos regionais e
profissionais da terra; os sobrados ecléticos, de dois ou três pavimentos, abrangendo
grandes firmas de importação, de exportação, de casas de comissões e consignações,
de bancos, de companhias de navegação, de armadores e rebocadores e de firmas de
profissionais pertencentes aos estrangeiros e a elite aburguesada. Da Tv. Frutuoso
Guimarães até a tv. 15 de Agosto mudam as atividades que se voltam a outro tipo de
movimentação – atividades portuárias.
Nessa época, o Boulevard da República passaria a ganhar a fisionomia que ainda
hoje se apresenta atrás das fachadas multicoloridas e dos vãos de aberturas alterados do
pavimento térreo. As calçadas de lioz e seus paralelepípedos de granito tornavam o
Boulevard um espaço de circulação para pessoas distintas, ainda que teimosamente
fosse recanto para pedintes e vendedores ambulantes que, longe da vigilância dos
agentes do Governo Municipal, exercessem suas atividades. Apesar das proibições das
autoridades, as ruas da cidade se enchiam todas as manhãs de vendedores de doces,
comidas, lavadeiras de roupas e vendedoras de açaí, que aos gritos anunciavam seus
produtos pela rua:

(...) – “Ouro quebrado pra vender? Eu compra... Ouro quebrado, meu


freguesa...”
(...) – “Mingau de miiiiiiiiilho!”
(...) – “Cocadinha! Pandeló! Beijo de moça!”
(...) – “Olha a cabeça de nêgo! Olha o batatão! Olha o leite de Amapá
pra doença do peito! ... Olha o estoraque, o apif, casca de losna pra
mulhé...”
(...) – “Fran gôrd! Fran gôrd!

7
SANTA ROSA, Henrique. O comprar e o vender. In MARANHÃO, op. cit. 2000, p. 130.
84
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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(...) – “Ov fresco! Ov fresco!8

Pelos cantos era possível ver vendedoras de frutas, que, com seus tabuleiros ou
cestos à cabeça, desafiavam sol e chuva para oferecer seus frutos cantando “merca boa
laranja!” lançava uma...; “oh rica banana da hora!” dizia a outra. As mulheres se
vestiam com recato: usavam aventais ou panos, atados na cintura, a proteger-lhes a
vestes, a cabeça sempre coberta por um lenço. As vendedoras que mercavam cestos à
cabeça usavam rodilhas para melhor erguer e transportar a carga: manga, caju, cacau,
goiaba e outros frutos exóticos relacionados pelos viajantes em seus minuciosos diários.
Nos anos XX os vendedores de frutas eram homens e, como sempre traziam consigo
bananas, eram chamados de bananeiros, mercavam pela rua e eram chamados “meu
freguêz” pelos clientes. No século XIX e XX, a rodilha era usada, sobretudo, pelos
negros que carregavam pesados fardos. Para usar uma rodilha a força não é tão
necessária, mas a habilidade é imprescindível. Ainda hoje, quando alguém não dá conta
do peso real ou figurado, usa-se o dito: “quem não pode com o pote, não pega na
rodilha”. Creio que só vemos rodilhas à cabeça dos carregadores do Ver-o-Peso9. Hoje,
homens ainda vendem frutas, “estacionam” nas esquinas ou nos sinais de transito em
cruzamentos de grande movimento e, se movimentam por entres os carros, oferecendo
seus produtos: bacuri tirado, uxi, morango, kiwi, abacaxi, bananas, laranja, etc.
O Ver-o-Peso ao ser visitado por Álvaro de Las Casas, escritor espanhol, relatou
no seu depoimento sob o impacto da profusão de formas e de cores mais buliçosas, mais
lustrosas, mais animadas criações humanas do que o Vieux Port. Mais tropicalmente
versicolori:

[...] Aqui se congregam centenas de vendedores ambulantes que, com


enormes valises repletas de bugigangas, iludem os meninos
imaginosos e as mocinhas sem imaginação; marinheiros desocupados
que aguardam oportunidade para engajar-se de novo; soldados, livres
dos serviço, que esperam a passagem das namoradas; vendedores de
jornais, que tudo resolvem, anunciando o último crime; mendigos que
contam histórias fabulosas, como os chineses que não tem o que fazer;
jovens estudantes que querem namorar pela metade do preço;
senhoras que desconfiam da honestidade das cozinheiras e desejam
fiscalizar as compras; gente gulosa que gosta de um bom melão antes
de fechar-se no escritório; guardas municipais que impõem multas

8
RIBEIRO, De Campos. Vozes da rua.In MARANHÃO, op. cit. 2000, p. 139.
9
BELTRÃO, Jane Felipe. A Andarilha em Belém, cidade do Pará oitocentista. In Conheça Belém,
comemore o Pará. Belém: EDUFPA, 2008, p. 67-69.
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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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com o mesmo prazer com que os passarinhos caçam moscas
voando”...10

A multidão, com ar de feirante, adquire bilhas, potes, moringas, filtros,


alguidares, esculturas populares, tajãs, ervas, paneiros de caranguejos, papagaios,
periquitos, farinhas. Meninos vendendo pupunha, vendedoras de mingau, de açaí, de
caruru, de vatapá, de peixe frito. Expostos pelo chão: peneiras, cuias, ventarolas, potes
de mel, bugigangas de comércio de bazar. Caboclos nus, da cintura pra cima, sentados
nas retrancas de suas embarcações, fumam filosoficamente; outros põem “mantas” de
peixe no convés para secar ao sol, outros lavam convés, outros desembarcam peixe de
gelo, paneiros de farinha e produtos da terra. Essa multidão de tipos e coisas, essa
balbúrdia, essa densidade colorida, com seu ar de mistério forma a paisagem exótica do
Ver-o-Peso11.
O vasto espaço marginal à baía do Guajará onde se enquadram o Ver-o-Peso e
os dois entrepostos, o Mercado de Ferro e o Mercado da Carne, é todo um mercado:
mas calçadas, no leito das ruas, nas pequenas casas de comércio, nos botequins,
movimenta-se a multidão num vai-e-vem incessante. Formigueiro matutino. Território
do pitoresco.
O Mercado da Carne, vendendo carne de boi, verduras, cheiro verde, frutos e
ervas. Ambos, porém, oferecendo comidas e bebidas paraenses e até baianas. E quase
tudo que a terra produz, o que a imaginação e a crendice dos homens é capaz de criar no
mundo dos sortilégios12.

10
TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão Pará: instantes e evocações da cidade. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1963, p.284.
11
TOCANTINS, op. cit., 1963, p.285.
12
TOCANTINS, op. cit., 1963, p.289-290.
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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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Figura 2: Quadra 2 do Boulevard da República – Mercado da Carne.

Fonte: NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade
imperial e a metrópole republicana. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Doutorado em História, 2017.

Ali eram comercializados produtos que merecem destaque como a carne


vermelha, o peixe, aves, frutas, hortaliças, legumes e a famosa farinha d ́água, “gêneros
de primeira necessidade, [...] aos quais se limita quase exclusivamente a alimentação
pública”. Produtos esses vendidos no pátio central do Mercado construído em ferro no
estilo art nouveau, estilo europeu “desfraldado na última década do século XIX”
baseado numa “nova sensibilidade para o desenho e para as capacidades inerentes de
cada material” 13 . Na edificação neoclássica, edifício em volta desse pátio central,
funcionavam 48 lojas externas com diversas atividades comerciais. Os estabelecimentos
externos que davam para o Boulevard da República eram: na loja 9 o Armazém de
Ferragens do proprietário S. Bastos & Cia; na loja 11 funcionava o Armazém de
Estivas e também trabalhava-se com comissões; sob o nº 13-A, a loja Bôa Fama de
fazendas e miudezas de J. D. Valente & Cia; loja 21 Armazém de Depósito; loja 33
funcionava a ALLIANÇA de Antônio de José Pinho & Cia – uma Companhia de
Seguros Terrestres e Marítimos; nº 34 funcionava despachante da Alfândega da Booth

13
GOMBRICH, E. H. A história da arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:LTC, 2008, p.535.

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Lines, sob outros dois nº 34 repetidos, funcionavam auxiliares do comércio José de
Souza Campos e Joaquim Dias Barbosa, e no nº 36/37 a Casa Luzitana do proprietário
A. J. da Cruz.
O cotidiano do Boulevard da República no final do século XIX não era,
entretanto, marcado unicamente pelas ações e transações de mercado, negócios e
finanças que o caracterizaram por sua proximidade aos portos com suas grandes
atividades de exportações e importações e às lojas e estabelecimentos comerciais que o
margeavam. Um grande número de pequenos vendedores ambulantes, estivadores,
catraieiros, carroceiros, carregadores e outras categorias de trabalhadores, compradores
e passantes provenientes de outros cantos da cidade, figuravam no cotidiano da avenida
e davam a tônica da dinâmica do lugar, transformando-o em cenário de constantes
conflitos e tensões.
Na quadra situada entre a Tv Oriental do Mercado e a Tv Padre Eutíquio.
Constituída de sobrados comerciais e residenciais, onde a parte residencial funcionava
no 2º pavimento. Sobrados de dois pavimentos e apenas um de três pavimentos. Sob os
nº 24/25 funcionava o De Lagotellerie& Cie, importante Casa Exportadora de cacau,
borracha, castanha, couro, penas de garça, óleo de copaíba e outros gêneros. Além dessa
atividade, funcionava também o escritório do próprio banqueiro Sr. De Lagoterie &
Cie.;
Figura 3 : Vendedores ambulantes em frente ao Mercado de Ferro.

Fonte: Revista Paraense nº 13 – Ano I -1909.


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Figura 4: Quadra 3: Boulevard da República – Sobrados e comércio

Fonte: NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade
imperial e a metrópole republicana. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Doutorado em História, 2017.

No Mercado do Peixe é destinado a venda de peixes, frutos, aves, farinha, etc. e


exteriormente circundado por vários compartimentos próprios para ligeiro comércio. Na
parte central acham-se instalados os talhos. Do lado externo, serão 18 lojas externas
atendendo aos mais variados serviços; na loja de nº 01, A Favorita, é uma casa de secos
e molhados, comissões e consignações de propriedade de J. Cardoso; sob o nº 12 loja de
instalações elétricas e demarcadoras de terras do engenheiro Antônio Simões Pereira;
no nº 14 escritório de auxiliar do comércio de Antonio da Costa Azevedo; o nº 14 se
repete com a firma Casa Perereca com venda de produtos nacionais e estrangeiros e o
vinho Perereca de propriedade de J. F. Pinto Ribeiro & Cia.; na loja nº 32 escritório de
auxiliar do comércio de Benjamim Aguiar; outra repetição do nº 32, outra firma de
auxiliar do comércio de Antonio de Souza Oliveira; novamente na repetição do nº 32
Henry E. Tripp como auxiliar do comércio; sob nº 38 a Flor do Mercado na venda de
secos e molhados, comissões e consignações de Araújo Torres & Cia; seguindo repete-
se o nº 32 com a firma de Luiz Paulino dos Santos como auxiliar de comércio, sob nº
34 firma de Cardoso & Cia com depósito de estivas nacionais e estrangeiras; nos nº
35/36 Manoel Bento Pacheco como auxiliar de comércio; nº 37 de Albano Mesquita
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como auxiliar de comércio; outro nº 37 de Jaime Nicolau como auxiliar do comércio,
sob nº 38 Tabacaria e Botequim de propriedade de Ramiro; nº 43 Rodrigues &
Vasques com botequim e tabacaria de qualidade e sob nº 44 a loja Nova Esperança –
casa de comércio de J. Nunes & Cia. O mercado possuía 36 lojas externas e algumas
serviam como hotelaria – como o Hotel do Povo na loja externa pela direção da Baía do
Guajará. Defronte ao Mercado de Peixe vários eram os ambulantes.

Figura 5: Quadra 09: Boulevard da República – Mercado de Ferro.

Fonte: NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade
imperial e a metrópole republicana. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Doutorado em História, 2017.

Tendo em vista a marcha do processo de disciplinarização do espaço portuário de


Belém no início do período republicano, o pequeno comércio interno realizado por
caboclos e cada vez por menos índios ficou relegado aos portos mais periféricos da
cidade. Mas a circularidade material e cultural entre floresta e cidade, as idas e vindas
diárias das embarcações do sertão que aportam nos ancoradouros do Ver-o-Peso e do
Açaí, continuam a reafirmar, cotidianamente, a essência ribeirinha de uma Belém que
tem no porto a marca indelével da presença da floresta na cidade.
O narrador, J. A. Leite Moraes, avista Belém após longa viagem pelo Tocantins.
E essa visão surge defronte da nova fachada construída no período de construção do

90
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porto e do Boulevard da República. Sua admiração prossegue tão logo consegue
desembarcar:

[...] Agora, de pé, em cima do cais, estamos perplexos e confusos,


atônitos e admirados! Que vozeria enorme é esta que nos atordoa os
ouvidos? Ruído estrondoso do tropel de um povo; o rodar compulsivo
dos carros, semelhante um trovão que não se interrompe... tudo nos
aponta o comércio, que fala de viva voz com a América e com a
Europa! Naquele tumultuar de povo pelas ruas e pelas praças, naquele
estremecimento progressivo de todas as forças vivas da civilização
moderna.
Há ali um povo... mais do que um povo – uma nação... o futuro dirá.
Dorme ainda, mas sonha todas as grandezas do mundo, tendo as
plantas sobre o Tocantins e a fronte recostada sobre o Amazonas.

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HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO E
ENSINO DE HISTÓRIA: UMA
PERSPECTIVA ATRAVÉS DO
PATRIMÔNIO CULTURAL
IMATERIAL ALIMENTAR
Victória Emi Murakami Vidigal1

Introdução

Segundo Georg Simmel, a alimentação é algo comum entre todos os seres


humanos, independente da cultura. Esta prática, além de essencial para a sobrevivência
dos seres vivos, para o homo sapiens tornou-a essencial para além do comer, mas
também para socializar e comercializar. Simmel nos faz refletir como as relações sociais
que envolvem a refeição, suas práticas, como elas mudaram ao longo dos séculos, isto
também mostra a diversidade cultural e sua expansão nos horizontes alimentares, como
os temperos e as misturas2.
A prática do comer pode trazer diversos valores simbólicos dentro da cozinha e
das pessoas que as compõem, segundo Massimo Montanari, a alimentação é uma forma
de compreender também a diversidade cultural, é um instrumento de identidade
cultural3. Dentro desta temática, é impossível não associar essas práticas ao patrimônio
cultural imaterial, que no Brasil, encontra-se uma rica diversidade, principalmente
devido a miscigenação tão rica no território.
Quando falamos da alimentação brasileira logo podemos pensar na mestiçagem
que circula em cada cantinho do país, Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo afirma
que para a Amazônia, sendo o foco desta pesquisa a alimentação paraense, tem muitas
contribuições africanas e um vocabulário crioulo em sua cozinha, para além de
1
Graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará, campus de
Ananindeua. Membro do grupo de pesquisa Alere. Email: victoria.murakamii@gmail.com
2
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 33, 2004, p. 159 – 166.
3
MONTANARI, Massimo. A Cozinha, lugar da identidade e trocas. São Paulo: Estação Liberdade:
SENAC, 2009, p. 11 – 12.
92
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costumes europeus.4 Portanto, observar a riqueza que circula nas memórias afetivas e
até mesmo oficiais, a cultura, as tradições e a identidade que é carregada na cozinha
paraense, seus costumes, são de fato um patrimônio cultural para muitos, além disso,
observar “as tradições alimentares e gastronômicas são extremamente sensíveis às
mudanças, a imitação e as influências externas” 5, e como levar isso para a um debate em
sala de aula é essencial para além da formação estudantil e crítica, mas também social
do discente.
Esta pesquisa preocupa-se com a temática do patrimônio cultural imaterial,
voltado para práticas alimentares, e para a sala de aula, como a aula de História pode
começar a partir dessa temática, e pode e deve enriquecer o debate e os horizontes
críticos, pessoais e sociais dos alunos da educação básica.

Patrimônio Cultural Imaterial: As práticas alimentares

Os modos alimentares se articulam com outras dimensões sociais e com


a identidade. O valor cultural do ato e do modo alimentar é cada vez
mais entendido enquanto patrimônio, pois a comida é tradutora de
povos, nações, civilizações, grupos étnicos, comunidades e famílias.6

Quando falamos de cultura, geralmente remetemos os costumes de um


determinado grupo social, logo, dentre esses, temos os hábitos alimentares. A
alimentação é muito diferente de cultura para cultura, principalmente se formos analisar
todos os continentes. Compreender como ela é utilizada em diferentes regiões talvez
cause uma estranheza inicialmente, mas ela diz muito sobre um povo, sobre a identidade
daquele que vive em certo território.
No nosso cotidiano, como somos filhos do tempo no qual o sistema capitalista
nos obriga a viver de forma acelerada, muitas vezes nos alimentamos com pressa, sem
prestar atenção de fato de como a comida chegou na nossa mesa, ou como e por quê ela
está lá em cima ou se outras pessoas tem o hábito de comer o mesmo que eu. Essa é
uma reflexão de extrema relevância para e além da sala de aula. O comer pode saciar,

4
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Os sabores da Cidade: práticas alimentares, hierarquias
sociais e seus lugares. Do que Se Come.: Uma história do abastecimento e da alimentação de Belém,
1850 – 1900. São Paulo: Alameda. 2014, p. 237.
5
MONTANARI, Massimo. A Cozinha, lugar da identidade e trocas. p. 12
6
MULLER, Silvana Graudenz; AMARAL, Fabiana Mortimer; REMOR, Carlos Augusto. Alimentação e
cultura: preservação da gastronomia tradicional. Anais do VI Seminário de Pesquisa em Turismo do
Mercosul. Caxias do Sul, 2010, p. 4.
93
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mas também tem poder, socializa e traz recursos a alguém. Como posso observar isso a
partir do cotidiano da minha cidade?
Em primeiro lugar, para começar a abordar esses temas gastronômicos, é
importante falar sobre identidade e cultura, memórias e ancestralidade. Uma temática
em que conseguimos observar todo esse debate é a partir do Patrimônio Cultural, mais
especificamente sobre o Patrimônio Cultural Imaterial – no qual podemos abordar a
temática proposta – , que é tudo aquilo que tem uma herança social, de um determinado
grupo, que abraça costumes, técnicas, expressões artísticas e culturais, abraça muito
mais que objetos, mas músicas e festivais que conseguem comunicar e expressar saberes
de diferentes grupos sociais. De acordo com Maria Laura Castro

A conceituação do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil acompanha


de perto essa formulação [(sobre o conceito criado no artigo 2º na
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial criado
pela UNESCO em 2003). O Decreto no 3.551, de 4 de agosto de 2000,
que institui o registro e cria o Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial, compreende o Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro como
os saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e
lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais,
configuram-se como referências identitárias na visão dos próprios
grupos que as praticam. Essa definição bem indica o entrelaçamento das
expressões culturais com as dimensões sociais, econômicas, políticas,
entre outras, que articulam estas múltiplas expressões como processos
culturais vivos e capazes de referenciar a construção de identidades
sociais.7

Logo, usando a perspectiva de Antônio Arantes sobre esse discurso, a


preservação do patrimônio é feita pelo Estado, mas também precisa ser conhecida como
cultura pública, para desenvolver o sentimento de preservação e valorização dos
mesmos. 8 Portanto, além desses grupos que praticam a atividade desses patrimônios,
também é essencial o conhecimento da população como um todo, para promover e
preservar esses objetos como um todo. E para além daquelas atividades que não são
registradas, mesmo assim é de suma relevância a população conhecê-la e continuar com
seus exercícios, no qual a essência não é perdida e sempre protegida por todos.
Dentro desse debate sobre Patrimônio cultural imaterial brasileiro, temos os
livros dos Registros, que são aqueles que assetam as práticas, saberes, formas de

7
CASTRO, Maria Laura.PARTE I: Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil: estado da arte. In:Viveiros de
Patrimônio imaterial no Brasil. (org): Maria Laura Viveiros de Castro e Maria Cecília Londres Fonseca.
Brasília: UNESCO, Educarte. 2008, p. 11 – 12.
8
ARANTES, Antônio. O patrimônio cultural e seus usos: a dimensão urbana. Habitus. v. 4, n.1, p. 425 –
435, 2006.
94
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expressão, músicas, pinturas, festividades, danças, etc. que são consideradas
patrimônios culturais imateriais no Brasil. Há vários livros que protegem e registram
essas atividades, são eles: Livro dos Registros dos Lugares, Livro dos Registros dos
Saberes, Livro dos Registros das Formas de Expressão, Livro dos Registros das
Celebrações. Neste caso, voltados a alimentação em especial, temos o Livro dos
Saberes, que compõe diversos trabalhos e saberes do cotidiano de diferentes grupos.
Esses livros são responsáveis e supervisionados pelo Instituto do Patrimônio Histórico
Artístico e Nacional (IPHAN), um órgão nacional ligado a poderes públicos e privados
que protege esses, além disso, para ser aprovado e para oficializar o elemento como
patrimônio cultural imaterial, é preciso passar pelo Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural9, ou seja, é um trabalho bem cauteloso e exigente para obter a aprovação.
Segundo Michel Pollak, há vários elementos que constituem a memória, seja ela
individual ou coletiva, são elas: acontecimentos pessoais ou acontecimentos vividos
coletivamente. Estes também podem ser considerados como “memória herdada”, aqui,
neste contexto envolvendo as práticas alimentares, temos também o sentimento de
identidade e a técnicas passadas através de gerações. Logo, a memória e a identidade
vinda dessas práticas podem ser consideradas trocas de experiências vividas por esses
grupos sociais, no qual não deixam seus saberes serem esquecidos, por isso fazem
questão de passa-los a frente, isso se chama “enquadramento de memória”, no qual
Pollak argumenta que seria uma memória organizada por certo grupo, repassando
justamente essas memórias específicas para suas futuras gerações.10
Quando falamos da alimentação no quesito do patrimônio cultural imaterial,
estamos nos referindo a uma esfera muito grande de costumes, tradições e identidade de
um determinado grupo, “[...] a cozinha contém e expressa a cultura de quem a pratica, é
depositada das tradições e das identidades de grupo”11 , segundo Eric Hobsbawm, as
tradições são importantes devido a uma formação identitária dos mesmos, ligados ainda
a memória coletiva e a posições de poder, essas tradições, também chamadas de
“tradições inventadas” proporcionam até uma continuidade, muitas vezes artificial, mas

9
MELO, Rosilene Alves de. Saberes e formas de expressão (Módulo 5). In: Formação de Mediadores de
Educação para Patrimônio. Ceará: Fundação Demócrito Rocha. p. 74. 2020.
10
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5. N°10.
1992. p. 200-212.
11
MONTANARI, Massimo. A Cozinha, lugar da identidade e trocas. p. 11.
95
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voltadas a uma certa ancestralidade desse grupo, oficializando uma memória regional ou
até mesmo nacional, dependendo de seu registro. 12

Identidade
Grupo social

Tradição
Práticas, Técnicas
e Saberes
Alimentares Memória Afetiva
+ Coletiva
Práticas
Econômicas

Esquema 1: Esquema criado por Victória Emi Murakami Vidigal, 2020.

A questão alimentar e seus hábitos culturais também está entrelaçada ao passado,


este patrimônio cultural faz com que determinada prática esteja inserida no cotidiano e
na identidade de determinada sociedade, isso pode ser observado no Esquema 1, como
esses saberes alimentares conseguem abordar diversas temáticas com apenas um
componente, voltados a alimentação, por exemplo.

A preservação da gastronomia local pode sustentar a vida comunitária,


por pressupor a inclusão social por meio de geração de emprego e renda
e, conseqüentemente, o exercício da cidadania. Ressalta também que
quando se analisa o desenvolvimento econômico local, a preservação ou
reinvenção das gastronomias típicas tem papel significativo.”13

Nesse contexto, é possível identificar, além dos alimentos, as práticas


alimentares que envolvem determinada sociedade ou núcleo familiar, muitas vezes, um
aluno compartilha cotidianamente em sua casa, com seus familiares, a venda desses
produtos e/ou saberes para a composição socioeconômica do mesmo, se não nesses
aspectos, mas em festividades locais e até mesmo em refeições cotidianas. Além disso,
estas práticas vão estar fortemente vinculadas a memória afetiva da criança ou do jovem,
podendo então, trocar experiências com os colegas de sala de aula durante um debate.

12
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. A invenção das tradições, v. 3, p. 09-23,
1984.
13
BOTELHO apud MULLER, Silvana Graudenz et al. Alimentação e cultura: preservação da gastronomia
tradicional. p. 6.
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Nas últimas décadas, a preservação do patrimônio cultural intangível
tem sido valorizada em virtude da necessidade de reafirmação das
identidades coletivas face às tendências de homogeneização e ao
fenômeno da globalização, objetivando um equilíbrio sustentado entre
as manifestações tradicionais e o progresso econômico e social. O
reconhecimento por parte da comunidade internacional da existência de
uma herança cultural universal, típica de cada localidade, que urge
salvaguardar tornou-se patente em diversos instrumentos da ordem
internacional. 14

Para os paraenses, as comidas típicas são: o açaí, o tacacá, pato no tucupi,


maniçoba, alguns peixes e frutas regionais 15; mesmo que não registrados de fato pelo
IPHAN, eles são considerados pratos importantes para a culinária paraense, pois está
presente em grandes festividades, como atração turística e até mesmo no cotidiano. “A
gastronomia pode ser considerada Patrimônio Intangível (imaterial), pois divulga a arte,
o conhecimento, a tradição de uma forma abstrata e está diretamente ligada à identidade
de um povo”16, portanto, a alimentação pode mostrar muito sobre a cultura e a riqueza
de um determinado grupo social, ligadas justamente as práticas, saberes e técnicas, algo
que o patrimônio cultural salvaguardam e priorizam em linhas gerais, há também a
circulação do capital para diferentes grupos sociais, como mostra o Esquema 1. Logo,
podemos observar uma riqueza de efeitos, na maioria positivos, vindo sobre essas
atividades.
Um grande exemplo ligado a festividade e alimentação no Pará é a festa do Círio
de Nossa Senhora de Nazaré, esta festa ocorre anualmente em outubro na cidade de
Belém. É uma época que é considerada o “natal dos paraenses”, onde a população vai as
ruas agradecer, pedir e comemorar suas promessas e realizações. Uma festa católica,
conhecida internacionalmente, tombada pelo IPHAN como Patrimônio Cultural
Imaterial Nacional, e também reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da
Humanidade, no qual reúne paraenses, turistas do Brasil e do mundo, e até mesmo
aqueles que não são católicos participam do momento. 17 Vale ressaltar ainda que “o
Círio é uma festa religiosa que também está sempre associada aos quitutes regionais e
pratos típicos, sendo uma festa do paladar, dos sabores e das memórias construídas em

14
MULLER, Silvana Graudenz et al. Alimentação e cultura: preservação da gastronomia tradicional. p.
14.
15
Ver DOS SANTOS, Valdirene F. Neves; PASCOAL, Grazieli Benedetti. Aspectos gerais da cultura
alimentar paraense. Revista da Associação Brasileira de Nutrição-RASBRAN, v. 5, n. 1, p. 73-80,
2013.
16
SCHULTER apud MULLER, Silvana Graudenz et al. Alimentação e cultura: preservação da
gastronomia tradicional. p. 8.
17
Ver: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – Círio de Nossa Senhora de
Nazaré – Belém (PA). Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/55
97
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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torno da alimentação” 18 . Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo e José Maia
Bezerra Neto descrevem muito bem como ocorre o arraial do Círio ao longo das
décadas; como as barracas são arrumadas, como o almoço do dia é servido e praticado
por diversas famílias e como essa tradição ocorre todos os anos na capital paraense 19,
logo “nos cardápios da festa de Nazaré podemos encontrar claramente o menu
mestiçado” 20 devido a diversidade dos grupos culturais existentes na Amazônia,
percebendo também uma semelhança na composição da refeição posta à mesa de
diferentes classes, tudo isso ligado as questões de tradição que a festividade traz em
torno do comer.
De acordo com Montanari, as tradições alimentares sempre estão em mudança,
assim como a gastronomia, isso pode ser um obstáculo para “a salvaguarda da
identidade, isto é, do patrimônio cultural que cada sociedade reconhece em seu próprio
passado”21, portanto, o reconhecimento e a proteção desse patrimônio é essencial em
diversos âmbito: econômicos, políticos, culturais, sociais, de formas de expressão. No
geral, “o estudo dessas tradições esclarece bastante as relações humanas com o
passado”22, mas também no tempo presente, como e por que certos hábitos ainda são
convividos e qual a importância social deles para uma comunidade e para a formação de
uma cidadão crítico e ativo.

Ensino de História

O professor de História tem um leque de possibilidades para as suas aulas, as


fontes históricas levadas aos discentes podem ser diferentes e transmitidas de forma
variada. Fábio Ramos trabalha com a possibilidade de compreender fatos históricos a
partir da alimentação, pois ela compactua com vários temas: a cultura, religiosidade,
economia, gênero, relações sociais e étnico-raciais, etc. Ramos ainda afirma que, foi ela
que adaptou e instigou o ser humano a buscar novas práticas que a envolvessem, como a

18
DE MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira; NETO, José Maia Bezerra. A festa de Nossa Senhora
de Nazaré: entre a fé e as comidas. Revista Eletrônica Interações Sociais, v. 3, n. 2, p. 24, 2019.
19
Ver: DE MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira; NETO, José Maia Bezerra. A festa de Nossa
Senhora de Nazaré: entre a fé e as comidas. Revista Eletrônica Interações Sociais, v. 3, n. 2, p. 23-35,
2019.
20
DE MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira; NETO, José Maia Bezerra. A festa de Nossa Senhora
de Nazaré: entre a fé e as comidas. p. 30.
21
MONTANARI, Massimo. A Cozinha, lugar da identidade e trocas. p. 12.
22
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. p. 21.
98
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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escrita e a contabilidade, as transmissões de costumes e saberes 23 entre outras coisas. A
alimentação, como Simmel afirma, é algo em comum dos seres vivos24, por isso ela é
tão vultosa e valiosa.
Por conta disso, socializar os elementos do cotidiano voltados a alimentação é de
suma importância, pois ele consegue abraçar diversos temas em diferentes áreas
possíveis, possibilitando até mesmo uma aula interdisciplinar para alunos do ensino
médio e fundamental. Falar de alimentação está muito bem relacionado há História e
Biologia, por exemplo. Socializar a temática da alimentação vai parar além do comer,
mas para analisar e discutir a evolução do homem e seu comportamento através destes,
tanto no passado quando no tempo presente. “As mudanças culturais, sociais e
econômicas que ocorrem no mundo atual exigem, por sua vez, novas posturas do
professor, apontando para a necessidade de conhecer a direção dessas mudanças, para
ajustá-las às novas necessidades”25, essas mudanças fazem parte também de como os
costumes de comer mudam, com até mesmo o largo consumo de fast food, ou até
mesmo com o impulso da globalização, comidas de culturas diferentes fazendo parte
das esquinas da cidade. Como o aluno consegue enxergar ou como ele consome isso
também é um excelente debate em sala de aula, é necessário principalmente o professor
reconhecer o cotidiano de seus alunos, de como eles enxergam e convivem com
determinada prática alimentar.
O tema sobre patrimônio cultural é enriquecedor e transdisciplinar, esse discurso
vindo dos alunos, através de suas experiências e expectativas também é de suma
relevância para o debate em sala de aula, ao discutir as questões de identidade e
memória, no qual traz um debate diverso em relação a alimentação, pois “essa forma
possibilitará a formação de competência para a convivência em mundo cada vez mais
complexo” 26 e sempre em desenvolvimento, assim, ele consegue fazer entender que
“comida é cultura, sendo cultura é parte importante das identidades construídas
socialmente” 27 ao longo de toda a humanidade, e como ela vincula-se a variados
horizontes, e como “mobilizou nossos ancestrais desde os primórdios do processo de

23
RAMOS, Fábio Pestanha. Alimentação. In: Novos Temas nas Aulas de História. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2013, p. 95 – 96.
24
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. p. 159.
25
MEDEIROS, Elisabeth Weber. Ensino de História: fontes e linguagens para uma prática renovada. p. 61.
26
MEDEIROS, Elisabeth Weber. Ensino de História: fontes e linguagens para uma prática renovada.
VIDYA, v. 25, n.2, 2005, p. 61.
27
DE MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira; NETO, José Maia Bezerra. A festa de Nossa Senhora
de Nazaré: entre a fé e as comidas. p. 33.
99
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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humanização”28 até os dias de hoje. Para abordar esse tema, é possível começar a partir
de objetos vindos do próprio cotidiano do aluno ou até mesmos referenciais da cidade,
como festividades locais, imagens ou pinturas e propagandas dos próprios pratos típicos,
vale ressaltar que é necessário trabalhar também os diferentes conceitos de patrimônio
em sala.
As diferentes fontes que podem ser abordadas através da alimentação são: filmes
e vídeos, registros, contos, imagens, pinturas, jornais e propagandas, objetos, etc. todos
eles, tanto de um período mais longínquo quanto algo mais atual, podendo fazer essa
mesclagem de fontes na hora do debate. Trazer essa temática da alimentação como fonte
ou debate para o ensino de História faz com que o professor possa “ainda trabalhar
questões universais e contemporâneas, tais como o preconceito cultural ou o abismo
social entre ricos e pobres, tudo contextualizando por meio da História” 29. Além das
fontes, levantar o debate das relações étnico raciais por meio da alimentação também é
algo muito enriquecedor para aula, no qual, é possível perceber a mestiçagem culinária
no Brasil por exemplo. Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo afirma que muitas
comidas e bebidas na Amazônia têm mais características africanas do que europeias,
como: “vatapá, o caruru, a farofa ou aluá, bebida feita de milho verde” 30, conhecer as
raízes desses alimentos, muitas vezes presentes no cotidiano e em festividades da cidade
são interessantes para compreender a tradição, ingredientes e até mesmo como e por
que o costume permanece. Além disso, e debate sobre desigualdade social vinculado a
fome é também necessário para ser levado para a aula de História, no qual o aluno
compreende historicamente os processos de desigualdade e de manipulação ideológica
ao longo dos séculos, fazendo os mesmos obterem uma reflexão temporal, e até mesmo
perceber certas atitudes e práticas no tempo presente.

28
RAMOS, Fábio Pestanha. Alimentação. p. 96.
29
RAMOS, Fábio Pestanha. Alimentação. p. 112.
30
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Os sabores da Cidade: práticas alimentares, hierarquias
sociais e seus lugares. p. 237.
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Cotidiano

Memória +
Economia
Identidade

Alimentação

Socialização Cultura

Política

Esquema 2: Esquema criado por Victória Emi Murakami Vidigal, 2020.

Falar de alimentação vai para além de apenas do prato na mesa, mas há um leque
de temas que podem ser abordados através do mesmo, como mostra o Esquema 2, é
possível abordar a temática em diferentes frentes, o que é essencial para “formar
indivíduos críticos imunes a manipulação ideológica” 31.
A aula de História, abordando a alimentação e vinculada com o patrimônio
cultural torna-se então muito mais instigante e até mesmo muito mais próximo da
realidade do aluno, fazendo o mesmo, muitas vezes, se interessar e interagir mais, já que
é um tema que pode aproxima-lo de diferentes formas, basta o professor ou a professora
saber utilizar as ferramentas certas para começar o debate em sala de aula. Nada mais
inspirador do que começar a falar do que é nosso, com orgulho, e com o sentimento de
pertencimento, deixa, com certeza, a aula muito mais cativante.

Conclusão

Instigar o aluno a perceber e ter criticidade em diversos elementos do seu


cotidiano, principalmente voltados para a alimentação, em objetos e ações, é
enriquecedor, pois o mesmo passa a analisar mais profundamente essas atividades,

31
RAMOS, Fábio Pestanha. Alimentação. p. 98.
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como elas chegam em sua mesa, nos mercados, em festivais e como eles são
socializados em uma sociedade em que há tantos espaços diferentes entre classes.

A alimentação tem um enorme poder, mesmo que as vezes imperceptível, a


“socialização da refeição” 32 vai para além da prática do comer, mas também do
socializar e da estética. Há classes privilegiadas que abraçam essa perspectiva, outras
nem tanto devido a desigualdade social. Nesse caso, um aluno da educação básica
reconhecer essas diferenças é essencial, uma vez que o mesmo possa perceber como “a
superação ou a reformulação que sofre o egoísmo individualista materialista ao passar a
ser a forma social da refeição” 33 e também como ela está interligada nas questões
econômicas e políticas é indispensável. “Podemos pensar como a alimentação também é
um veículo de construção dos tempos sociais à medida que ela é capaz de representar
novos usos do tempo, uma vez que o ato de alimentar-se também tem sensibilidade e
representações”34, logo, o cotidiano do aluno é fundamental para a compreensão social e
educacional do mesmo, uma vez que, como cidadão, ele pode se reconhecer e conhecer
aquilo que o cerca – vinculado as tradições, identidade, os símbolos que o rodeia –
podendo, posteriormente, compreender o social dentro e fora da sua realidade. O debate
sobre patrimônio cultural imaterial traz exatamente de uma forma, talvez, mais afetiva,
para os jovens da educação básica, uma aproximação do debate, já que determinados
saberes e práticas podem ou não estar vinculado as suas ações cotidianas, esse assunto
também faz com que os mesmos consigam dimensionar a importância de suas culturas e
de suas atividades perante aquilo que ele considera ou não como patrimônio.

32
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. p. 161.
33
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. p. 162.
34
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Os sabores da Cidade: práticas alimentares, hierarquias
sociais e seus lugares. p. 224.
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DA MESA PARA A SALA DE
AULA: O ENSINO DE HISTÓRIA
DA ALIMENTAÇÃO PELA
DANÇA E O TEATRO
Felipe Araújo de Melo 1
.

Introdução

E se pudéssemos dançar aquilo que nos alimenta? Ou montar peças teatrais


sobre as condutas dos corpos dispostos na mesa, em um determinado período histórico?
A seguinte pesquisa busca apontar uma forma de desenvolver tal atividade. Para isso, se
formulou um rizoma, conforme Deleuze e Guatarri (1995) 2 , uma rede de saberes
interdisciplinares entre história, dança e teatro.Esta rede busca abordar o ensino de
história a partir do tema de alimentação, utilizando como método o corpo de cada aluno.
Assim, não cabe apenas mudar os conteúdos, é preciso modificar a forma como são
apresentados aos discentes, considerando também a consciência histórica. Buscando
desta maneira, melhorar o processo de ensino-aprendizagem em história.
A pesquisa que se abordará neste texto é subtema de outra, denominada, A
História em Corpos Interpretativos: o ensino de história pela dança e o teatro. A
pesquisa englobante vem sendo desenvolvida desde 2018, e surgiu a partir do projeto de
extensão “Processos de Formação Docente: ações de ensino aprendizagem em história”,
coordenado pela Prof. (a) Dr. (a) Siméia de Nazaré Lopes. O objetivo do projeto é
ministrar aulas de reforço da disciplina história, utilizando para isso novos recursos,
como material audiovisual, jogos, música, etc. Partindo disso, o subtema aqui
desenvolvido carrega, portanto, as problematizações acerca do ambiente escolar e dos
saberes docentes, pertencentes a pesquisa da qual é ramificação.

1
Universidade Federal do Pará – UFPA Licenciando em História, pesquisador e membro do Grupo
Alere.
2
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1995.

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Em questões estruturais o texto se divide em quatro tópicos. O primeiro está
relacionado a uma explanação sobre o conceito de futuro Professor/Artista/Pesquisador,
formulado pelo autor. Uma definição que reflete as complexidades de se trabalhar áreas
distintas. Os saberes da prática docente gerados por estágios e pelo projeto de extensão
se unem com saberes vindos da prática artística, em palcos de teatro, cursos e vivências.
Estes saberes interligados orientam o manuseio da história, da dança e do teatro, na
renovação do ensino em sala de aula. Posteriormente se tratará do ambiente escolar.
Controles corporais, subversões, cultura escolar, desafios que interferem na busca de
novas formas de ensino de história. Juntamente a isso, se abordará a importância do
tema de história da alimentação em sala de aula, por ser um possível ponto de
desdobramentos da consciência histórica dos discentes.
Por fim, o texto é concluído com a explanação da sistematização, onde a história
da alimentação é encarada como estímulo para a criação de peças teatrais ou
composições coreográficas, que por sua vez, confrontam a disciplina escolar e apontam
a possibilidade dos alunos aprenderem história pelos seus corpos em movimento e em
interpretação. Os espectadores se acomodam, o terceiro sinal toca, as luzes se apagam,
as cortinas se abrem e começa o espetáculo.

Saberes da experiência: memorial de um futuro professor/artista/pesquisador

Que saberes mobilizo em minha prática enquanto futuro docente de história?


Esta foi uma pergunta que me levou a investigar uma rede de experiências vividas e
fundamentais para desenvolver o ensino de história pela dança e o teatro. Experiências
anteriores a licenciatura em história que percorrem a educação básica. Apesar de ainda
não ser formado na área, creio que devemos nos posicionar enquanto professores-
pesquisadores/reflexivos, o mais cedo possível, pois isso permite que determinadas
situações, como os estágios supervisionados, contribuam ainda mais para a formação
docente de cada um.
Como deve ter percebido, tomei a liberdade de comentar de forma mais pessoal
neste tópico. Isso porque, a ideia é um memorial, com base em Carpi e Moraes (2018) 3,
ou seja, um momento de relembrar, não tudo, mas daquilo, que nesta situação seja

3
CARPI, Ana Cristina Menegaz dos Santos; MORAIS, Jacqueline de Fátima dos Santos. A escrita de
memoriais de formação: algumas notas. In: SANGENIS, Luiz Fernando Conde et al (Orgs.). Formação
de professores para uma educação plural e democrática: narrativas, Saberes, práticas e políticas
educativas na América Latina. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.
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importante. O que trago aqui, portanto, são minhas vivências enquanto futuro professor
de história e também como artista na Amazônia, que me baseiam no ensino de história
pela dança e o teatro. Especificarei alguns conceitos que acredito serem importantes
para esclarecer o meu olhar artístico sobre a história, neste caso a história da
alimentação. Desta forma, busco demonstrar como formulei o termo
professor/artista/pesquisador.
É necessário esclarecer que não desenvolvi minhas reflexões sem referencial
teórico. O olhar acerca da trajetória de construção, enquanto futuro professor, está
baseado em três pilares, são eles: Zeichner (1993) 4 com o termo professor-reflexivo,
Demo (2009) 5 e o professor-pesquisador e Tardif (2010) 6 com as problematizações
acerca dos saberes que constituem a docência. Juntos, estes autores foram fundamentais
para que os conhecimentos que desenvolvi fossem articulados e formassem o
professor/artista/pesquisador. Gostaria de apontar que não posso e nem quero definir
outros (as) pesquisadores (as), que por coincidência, articularem ideias parecidas, de
professores/artistas/pesquisadores. Fica a critério de cada um, querer ou não se definir
assim. Agora cabe explicar ao que esse termo se refere.
O professor/artista/pesquisador é um indivíduo que ao ensinar sua disciplina
utiliza seus saberes artísticos, derivados de sua vida pessoal, previamente selecionados e
colocados em teste no ambiente escolar, sendo substituídos por outros ou aprimorados.
Existe, portanto, uma rede cuja função é proporcionar ao professor uma nova forma de
ensinar, neste caso, ensinar história. Este último ponto é importante, o local do qual falo
é de um futuro professor de história, de uma área cuja a ligação com as artes não é tão
evidente, a não ser na história da arte ou nas discussões de patrimônio. Esta posição é
diferente, a meu ver, de um profissional da licenciatura em dança ou das artes visuais
por exemplo. As áreas são distintas, logo, os saberes na construção do
professor/artista/pesquisador, serão também. De certo, o professor de história está em
desvantagem. Por isso, é importante pensar de onde seus saberes artísticos se originam,
para que outros tomem exemplo e também investiguem suas prática.
Dada a definição, é importante traçar o caminho de experiências e vivências
pessoais que o constituíram. Para uma melhor orientação dividi as memórias em
tempos, espaços e situações diversas, que constituíram e continuam alimentando meus
4
ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Educa, Lisboa, 1993.
5
DEMO, Pedro. Professor do Futuro e reconstrução do conhecimento. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2009.
6
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 11 ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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saberes artísticos e docentes: Ensino Fundamental, Ensino Médio, Universidade, Escola
de Teatro e Dança da UFPA.

Ensino Fundamental: Desde a educação básica estive envolvido com a dança e o teatro.
Fosse em feiras culturais, festas juninas, peças teatrais sobre a páscoa e outras datas
comemorativas. Lembro de um fato marcante neste tempo e que me percorre até hoje.

Estava desenvolvendo um trabalho artístico para apresentar na escola e a


professora estava direcionando o ensaio. Em meio a dinâmica tropecei em um colega,
cai no chão e quebrei um dos meus dentes. Minha mãe, sendo quase “coruja", quis
processar a escola. Mais na frente, quando comecei a articular o ensino de história e as
artes cênicas, lembrei do ocorrido, o que me fez gerar uma preocupação no que tange ao
tratamento do corpo do aluno. Isso foi um critério que me levou a procurar cursos e
oficinas na área artística. O conhecimento a respeito de ossos, músculos e articulações, é
necessário para a prevenção de acidentes.
Ensino Médio: Neste período de minha vida, do 1° para o 2° Ano, mudei de
escola e através de um grupo artístico da nova instituição comecei a desenvolver
aptidões mais complexas: construção de personagem, figurino, presença de palco.
Estudava de manhã e os encontros do grupo eram a tarde. Lembro que nesta escola,
existente até hoje, tinha um projeto chamado ExpoArt. Ele consistia em um evento onde
cada turma do fundamental ao médio escolhia um tema que originava uma produção
artística. Toda a escola se envolvia. Tive a oportunidade de prestigiar e ser intérprete
também. Da memória lembro de ter interpretado o deus mensageiro, Hermes, na
odisseia de Ulisses. Prestes a fazer o vestibular, o projeto da escola foi apresentado no
Teatro da Paz em Belém/PA, e participei dançando ao som da música O Bêbado e a
Equilibrista na voz de Elis Regina. Uma experiência marcante. Creio que essas
experiências foram influenciadores dos meus olhares na pesquisa dentro da academia.
Universidade: Entro na universidade em 2017, em 5° lugar na primeira
repescagem. Terminado o 2° semestre de história em 2018 na Universidade Federal do
Pará - Campus Ananindeua, sou contemplado com a bolsa do projeto de extensão já
mencionado. Nele percebi a oportunidade de permitir aos alunos que acompanhei, a
experiência de um indivíduo que aprende história pelo seu corpo em movimento.
Em paralelo, fora desta instituição, a minha vida como bailarino continuava
graças a escola de dança Ribalta, localizada em Ananindeua/PA. No ano de 2018, com o

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inicio das intervenções na escola-alvo, notou-se uma grande dificuldade teórico-prática
na aplicação da dança e do teatro como recursos para o ensino de história. E após a
finalização das propostas, a necessidade de uma formação superior na área artística foi
inevitável, pois os conhecimentos ainda não eram suficientes para suprir as demandas
daquele ensino.
Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA): Tendo percebido minhas
falhas em 2018, no inicio da minha pesquisa, ingressei no curso técnico em Intérprete
Criador na Escola de Teatro e Dança da UFPA, em 2019, com o intuito de aprimorar
meus saberes e executar, portanto, o trabalho com a melhor qualidade possível. As
disciplinas ministradas no primeiro ano foram de suma importância, dentre elas gostaria
de destacar: 1) Anatomia do Movimento: Foi a oportunidade que precisava para as
discussões sobre os cuidados com o corpo; 2) História da Dança: Possibilitou encarar
mais um campo da historiografia que me ajudaria nas composições coreográficas de um
determinado período ou conteúdo de história; 3) Pesquisa em Artes Cênicas: Um
período onde precisei elaborar criações próprias que com o tempo se modificaram, um
exercitar da criatividade e potencialidades do corpo. Neste longo percurso, ainda
participei de cursos tanto regionais quanto fora do estado, o que gerou novos saberes e
aprofundamento de outros.
As experiências resumidas nestes pontos formam, portanto, minha rede de
saberes plurais e heterogêneos, advindos de diversos locais e situações de formação, e
que ao serem postos no ambiente escolar, são reformulados, adaptados e selecionados,
permitindo modificações na docência. Tento, desta forma, constituir o que Seffner
(2011)7 define como “estilo docente”. Conforme o autor, este termo é o resultado da
ação do docente ao refletir sobre a sua prática. Esta reflexão resulta na percepção do seu
modo ou marca pessoal de ser professor. Assim, o ser professor, é constituído por
aspectos como as escolhas pedagógicas, valores pessoais, até a forma de se vestir. O
professor/artista/pesquisador é um estilo docente.
Viver a escola. Creio que sempre a considerei de alguma forma incrível. As
carteiras, os quadros, o giz, a mesa onde minhas professoras sentavam. Lembro que
quando era criança, alguns dias ficava direto na escola por motivos pessoais, nessas
tardes o giz era minha companhia. Escrevia no quadro o que tinha aprendido nas aulas

7
SEFFNER, Fernando. Saberes da docência, saberes da disciplina e muitos imprevistos: atravessamento
no território do Ensino de História. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São
Paulo, Julho, 2011.
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de ciências ou geografia. Confesso que a hora do recreio era um dos meus momentos
favoritos, brincar, sorri e com certeza comer. Biscoito recheado sabor de chocolate com
suco de goiaba, caju ou refrigerante conhecido como “pitchula" sabor guaraná.
Estas memórias vagantes em mim sempre voltam quando entro em sala de aula.
De fato, sempre tive uma ligação especial com esse espaço. Talvez tenha sido um
elemento influenciador na escolha de seguir a carreira docente. Hoje me formando
enquanto futuro professor de história tenho a oportunidade de ver um outro lado da
escola. Por fim, compreendo como Cunha (2007) 8 , que os saberes que brotam da
vivência e prática docente precisam ser sistematizados e principalmente socializados,
possibilitando olhares coletivos. Os próximos tópicos possuem a função de continuar a
aprofundar as impressões deste espaço.

O Corpo: entre disciplina e subversões

Ensinar história pelo corpo em movimento é um desafio quando se trabalha em


um modelo de educação para o não-movimento. Segundo Strazzacappa (2001, p. 79)9,
“Toda educação é educação do corpo". Neste tópico, a de se encarar este modelo que
imobiliza os sujeitos, condenados ao espaço da cadeira e ao silêncio.
Segundo Foucault (1987) 10 , a escola é um espaço permeado de controles
corporais, ou melhor, disciplinas, que homogeneízam os alunos enfileirados, os
docilizando. Com base em Freire (1987) 11 , para esta lógica de educação, podemos
utilizar o conceito de educação bancária. Conforme o autor expressa, nesta concepção o
aluno é posto como um pote vazio pronto para ser enchido pelo professor absoluto.
Cabe ao professor refletir sobre que sujeito está formando quando repreende seus
gestos.
Tomando, portanto, uma postura enquanto professor-pesquisador/reflexivo, se
teceram algumas considerações a respeito do estágio supervisionado I, desenvolvido na
Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará em 2019, utilizando para isso, as
notações de diários de campo. Estes por sua vez, ajudaram a exemplificar situações
onde o corpo é alvo dos controles corporais e também quando desvia de tais disciplinas,

8
CUNHA, Emmanuel Ribeiro. Os Saberes Docentes ou Saberes dos Professores. Revista Cocar, v. 1 n.
2, Jul./Dez., 2007.
9
STRAZZACAPPA, Márcia. A Educação e a Fábrica de Corpos: A Dança na Escola. Cadernos Cedes,
ano XXI, n° 53, abril/ 2001.
10
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987.
11
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
108
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que permeiam o ambiente escolar. Foram acompanhadas duas turmas de 6° Ano, de 2
de setembro à 2 de dezembro de 2019. Dos relatos:

Data: 2 de Setembro de 2019


R2: Uma aluna passa a mão na colega de trás; Um aluno coloca o capuz no outro colega
da frente; Um aluno pega a apostila e a balança para cima e para baixo; Alguns alunos
se acomodam na carteira e colocam a cabeça sobre os braços.
R5: Alunas estendem cartazes durante a explicação do professor, com as seguintes
palavras escritas: “ K-Pop”, “A.R.M.Y.S", “BTS";
Data: 9 de Setembro de 2019
R7: Uma aluna lia mangá; Um aluno usava celular e fone; Um aluno jogava uma bola
de papel no outro.
Data: 16 de Setembro de 2019
R10: Uma aluna pinta a borda das páginas do caderno com marca-texto; Um aluno bate
na mochila como se fosse um tambor; Uso do boné em sala de aula.
Data: 23 de Setembro de 2019
R13: Corpo-Professor: Em pé, mão esquerda apoiada na cintura pélvica, peso
transferido para a perna esquerda, pé direito toca o chão apenas pelo calcanhar. Devido
a rápida mudança dos corpos em movimento, descrevê-los se tornou uma tarefa difícil.
Optou-se, portanto, em desenha-los.

Imagem 1: Corpo-professor.
Fonte: Arquivo Pessoal do Autor.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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Imagem 2: Corpo-aluno.
Fonte: Acervo Pessoal do Autor.

Com base nos registros acima, fica evidente, as situações da resistência por parte
dos alunos às normas cotidianas da escola. Tais elementos revelam as dinâmicas do que
Julia (2001)12 e Vidal (2006;2009)13 denominam de cultura escolar. Dentro deste termo
são postas todas as relações dentro da escola, sejam elas de afeto ou opressão entre os
diversos sujeitos que a compõe. Esta rede também aborda a materialidade da escola, o
lápis, a cadeira, o caderno, o quadro. Estes elementos também constituem um objeto
riquíssimo para análise, pois, são instrumentos de controle. O aluno não aprende apenas
em silêncio, ele ocupa um espaço e usa instrumentos específicos para isso, quando este
sujeito corromper as funções iniciais dos utensílios, se põem, consciente ou não, em
resistência a esse modelo. Essa afirmação é exemplificada nos relatos 2 e 10.
Vale ressaltar que o domínio corporal também modela o professor. Os desenhos
desenvolvidos denominados corpo-professor, surgiram após apontamentos em um
evento acadêmico. Neste dia, um dos professores, que avaliava a pesquisa que engloba
este texto, perguntou como era a visão do autor sobre os corpos dos professores
acompanhados. A pergunta gerou um outro olhar com novas preocupações. O que se
espera do professor? Qual é a sua aparência e o que causa nos alunos? No decorrer do
estágio supervisionado, se pode perceber que este corpo gera admiração, surpresa e

12
JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. Revista brasileira de história da
educação, n° 1, jan./jun. 2001.
13
VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e Práticas Escolares: A Escola Pública Brasileira Como Objeto de
Pesquisa. Ediciones Universidad de Salamanca, Hist. Educ. , 25, 2006, pp. 153-171.
VIDAL, Diana Gonçalves. No Interior da Sala de aula: ensaio sobre cultura e prática escolares.
Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp. 25- 41, Jan/Jun 2009.
110
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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temor. As mínimas modificações sejam no cabelo, no modo de tratar os alunos ou
explicar o assunto, tudo é notado.
Em um dos acompanhamentos, o professor responsável pela turma precisou
resolver pendências administrativas, sendo assim tomou-se o tempo para anotar sobre os
corpos dos alunos. O professor ainda não tinha voltado e em um determinado momento,
por conta do barulho, foi preciso tomar uma atitude. Que postura adotar? O estagiário,
portanto, senta na mesa e começa a anotar sobre o que os alunos estavam fazendo, como
sempre fez. Os mesmo ao perceberem começaram a fazer silêncio. Desta forma é
necessário perceber o que o corpo diz. Que corpo é preciso adotar ao ser professor?
De certo, as reflexões postas aqui geram mais dúvidas do que repostas. E é
importante não respondê-las de qualquer forma. Estes questionamentos são
fundamentais para manter o professor em movimento, procurando sempre questionar
seu saber-fazer, se atualizando e modificando quando necessário. O estágio
supervisionado é encarado, segundo Kulcsar (1991) 14 , como uma oportunidade de
auxílio ao futuro professor na aprendizagem e compreensão de seu ofício, entendendo a
necessidade e importância de investigar sua prática pedagógica.
Sendo assim, espera-se que as perspectivas apontadas aqui possam instigar
olhares para o cotidiano da sala de aula. As cenas de subversões precisam ser
registradas, pois, não são apenas indisciplinas. Elas constituem um sintoma, do sistema
educacional que vivemos hoje, no qual demonstra que o mesmo não considera as
demandas do atual público por uma nova forma de aprender. Como aponta Rocha
(2001) 15 , os discentes são frutos do seu próprio tempo e realidade, que conforme
Bittencourt (2004)16, se confronta e compete com a escola. A concorrência está entre a
escola e os meios de comunicação, entre os saberes prévios e saberes da disciplina
história, que por sua vez é enxergada como ultrapassada e sem ligação com o presente
vivido. Daí surge as tais indisciplinas, como respostas a uma educação que não valoriza
os saberes dos alunos, enraizado em métodos expositivos e autoritários, que apenas
reforçam o desgosto em estar no ambiente escolar.

14
KULCSAR, Rosa. O Estágio Supervisionado Como Atividade Integradora. In: FAZENDA, Ivani
Catarina Arantes; PICONEZ, Stela C. Dertholo (coord.). A Prática do Ensino e o Estágio
Supervisionado. Campinas, SP: Papirus, 1991.
15
ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. In: NIKITIUK, Sônia M.
Leite (Org.). Repensando o ensino de história. 4 ed. – São Paulo, Cortez, 2001.
16
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de
história. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2004, pp. 11-27.
111
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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O próximo tópico tem como função refletir sobre a importância do ensino de história
pela temática da alimentação, pensando justamente nas potencialidades deste conteúdo
perante a realidade dos discentes. E também apontar a necessidade do corpo como
método de ensino da história, para confrontar as formas silenciadoras de aprender.

História da Alimentação e Ensino de História: consciência histórica pelo corpo


interpretativo

Para que serve a história? Por que preciso aprender tal assunto? Talvez essas
perguntas causem certo desconforto em professores de história, e por isso sejam
evitadas. Contudo, é preciso que essas indagações façam parte da prática docente.
Segundo Pinsky e Pinsky (2007) 17, é preciso escolher que conteúdo será abordado em
determinada aula, de que forma será ministrado, como será avaliado e principalmente no
que contribuirá perante os conhecimentos dos alunos. Afinal, de acordo com os autores,
o professor de história é mediador dos universos do saber da história e o saber do aluno,
cabendo, portanto, nesta interação, se pensar na aprendizagem que os discentes iram
desenvolver.
Infelizmente, a falta destas reflexões ocasiona o estancamento das formas de
ensinar, que por isso se tornam automáticas, o que reverbera em alunos possivelmente
desinteressados na disciplina história, o que foi possível observar nos registros do tópico
anterior. Todavia, antes de entrarmos nas contribuições que a história da alimentação
tem para o ensino, vale apontar que as escolhas do professor, seja de conteúdo e
métodos de ensino, revelam sua posição política. Afinal, como aponta Gadotti (1981, p.
13)18 “A educação é política. O que precisa é ter clareza do projeto que ela defende,
politizando-a.”. Assim sendo, este tópico se inicia com algumas considerações a
respeito da história da disciplina história, com o intuito de perceber sua ligação com os
ideias sociais das classes que formam a sociedade. Segundo Fonseca (2006)19, a história
ganha uma importância privilegiada por ser um meio de legitimar, aos futuros
integrantes da sociedade, os ideais identitários e de poder que constituíram a nação. Ao

17
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bessanezi. Por uma História prazerosa e consequente. In: KARNAL,
Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5. ed. São Paulo: Contexto,
2007, pp. 17-36.
18
GADOTTI, Moacir. Concepção Dialética da Educação e Educação Brasileira Contemporânea. In:
Educação: Instrumento de Luta. Educação & Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência da
Educação, Cortez, Autores associados, pp. 5-32, março de 1981.
19
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História e Ensino de História. 2. ed., 1 reimp., Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
112
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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transitar pela história do ensino desta disciplina, a autora elenca processos constitutivos
das formas de ensinar história e suas correspondências as classes dominantes.
Desta forma, é posto um panorama dos processos de modificações do ensino,
seja pelos ideais educacionais dos jesuítas no período colonial, ou do estado que
buscava a modernização pela educação e pela ditadura militar e seus pensamentos
autoritários. Mostra-se, portanto, na construção da disciplina história, um caminho
marcado por exclusões, seleções e influências, obviamente políticas das classes
dominantes, cujo ideal de história pregava o desenvolvimento de uma identidade
nacional. Vale ressaltar, que essa identidade, conforme a autora, foi usada como forma
de legitimar as desigualdades entre os sujeitos sociais.
Outra contribuição necessária de se mencionar é Fonseca (2003)20, que coloca a
educação como um “lugar estratégico”, pois nela as classes dominantes da sociedade
operam com o intuito de prolongar seus poderes e interesses. No caso da ditadura
militar, esta afirmação fica evidente. Em seus estudos a autora aponta as interferências
feitas pelos militares no ensino de história. Desde a criação de licenciaturas curtas, que
visavam a formação mercadológica dos professores, à dissolução da história e de
geografia e o surgimento do ensino da educação moral e cívica, as alterações
mantiveram o seu papel com as classes que as executaram.
Ao analisar os currículos de São Paulo e Minas Gerais, Fonseca (1993, p. 69) 21
coloca que “o ensino de História configura espaço privilegiado para a transmissão de
noções tais como pátria, nação, igualdade, bem como, para o culto dos heróis
nacionais”.É importante também salientar que não apenas os conteúdos de história
foram significativos para os poderes, mas também as formas de apresenta-los aos
alunos. Bittencourt (2008)22, ao apontar as divergências entre memorização mecânica e
memorização consciente, expõem as perspectivas do que era considerado aprender
história. Conforme a autora, o aprender história era saber os nomes, os fatos e as suas
datas, se resumiam, portanto, a cópias de informação sem reflexão. Infelizmente, esse
padrão, continua a se perpetuar em nossa sociedade.
Assim, ao se escolher ensinar história pelo tema de alimentação, e por método, a
dança e o teatro, confrontamos um modelo totalmente ultrapassado de ensino de

20
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história: Experiências, reflexões e
aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2003.
21
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993.
22
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2 ed.-São
Paulo: Cortez, 2008.
113
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história. Possibilitando, desta forma que a história obtenha significado para o aluno.
Esta disciplina na escola possui a função, como afirma Cerri (2011)23, de problematizar
os saberes que o aluno já trás consigo, os ampliando e complexificando. Segundo o
autor, saber os fatos históricos não é suficiente, eles precisam ser usados pelos alunos
para a orientação de sua vida em sociedade. O conhecimento sobre a história é e deve
ser capaz, de originar mapas de tempo, para que o aluno possa desenvolver seus olhares
a respeito do mundo, possibilitando a desconstrução de um presente encarado como
contínuo ou sempre existente.
O autor ainda aponta que, o ensino de história que leva em consideração a
consciência histórica, parte de elementos constitutivos da história dos alunos. Em outras
palavras, ao ensinar história se parte do presente vivido para o passado, desta forma a
experiência em sociedade é posta no tempo, resultando de eventos, modificações e
permanências no social. O aluno tem a possibilidade de se enxergar na história, afinal o
que ele vive, enquanto cotidiano, é resultado da ação humana no decorrer do tempo.
Entretanto, como a história da alimentação pode ser um tema a contribuir para a
orientação do aluno em sua vida prática? Conforme Ramos (2013) 24, o universo que as
práticas alimentares atravessam são fundamentais para entendemos quem somos. O
tratamento dos alimentos, os modos de se portar a mesa, constituem uma sociedade
específica em determinado tempo, na qual o sujeito está imerso. As condutas no ato de
se alimentar, portanto, são fundamentais de serem estudadas e tomadas como ponto de
partida para as discussões sobre a disciplina história em sala de aula. A alimentação é
uma lente para o estudo do passado, pois forma a cultura de uma determinada
sociedade, possibilitando seu entendimento.
A respeito disso, Montanari (2008) 25 afirma que a alimentação é cultura por ser
produzida, preparada e consumida. Neste tripé, o autor aponta as transformações que o
ser humano executa. Ele não usa simplesmente elementos que encontra na natureza
como outras espécies de animais, ele os cria, os modifica com técnicas específicas, por
fim, não escolhe qualquer alimento. Nessa relação, se tecem as relações de poder, de
exclusão, de significação. Determinado elemento é mais do que nutritivo, ele torna-se
capaz de falar sobre quem o come, seu status, a que classe pertence, onde vive. A

23
CERRI, Luís Fernando. Ensino de História e Consciência Histórica: Implicações didáticas de uma
discussão contemporânea. Rio de Janeiro: GOV, 2011.
24
RAMOS, Fábio Pestana. Alimentação. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Novos Temas nas aulas de
história. 2 ed. , 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
25
MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
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comida é capaz, conforme este autor, de comunicar a identidade humana. Sendo assim,
os pratos regionais que se come em datas comemorativas, os espaços de sociabilidade
dos alimentos, as receitas passadas entre gerações, constituem um universo do aluno a
ser explorado e problematizado. Afinal, como se observa os alimentos também possuem
história. Com isso, o aluno partindo de sua alimentação relacionada com a alimentação
de outra sociedade no passado, pode desenvolver reflexões e questionamentos acerca da
causa das mudanças que formaram sua sociedade hoje, como fatores políticos, naturais,
culturais. E a partir desses questionamentos, entender também as desigualdades sociais
e as exclusões que permeiam seu viver.
Com o uso de teatro e da dança essa experiência entre presente e passado fica
mais intensa, pois no processo criativo é possível viver e experimentar um período
histórico que já não existe mais. Fazendo uma analogia, seria a possibilidade de viajar
no tempo ou de volta a um passado. O “faz de conta" ganha proporções imensas.
Imaginem poder cozinhar para o rei, ter que agir com determinadas normas na mesa ou
nos espaços de sociabilidade porque estou na idade média. A dança e o teatro
possibilitando tal experiência aumentam as chances do aluno aprender história, acima de
tudo de forma prazerosa. Afinal, como Scarpato (1999) 26 aponta, a dança proporciona
criatividade e com isso pode contribuir para a aprendizagem ligada à outras disciplinas.
A autora ainda comenta que, a dança é uma estratégia metodológica, ela possibilita o
aluno a descobrir a potencialidade do seu próprio corpo, podendo se expressar de
inúmeras formas sem a necessidade de repetição de movimentos, educando o seu corpo,
a dança possibilita uma educação integral aos alunos.
Sobre o teatro, Boal (1982)27 coloca que, esta arte deve modificar o sujeito lhe
permitindo ter consciência do que o cerca, ou seja, de sua realidade. E ao indivíduo fica
a tarefa de alterar essa realidade. De certo, tais questões podem ser relacionadas a
Rüsen(2011)28 e a aprendizagem histórica com suas dimensões. Em outras palavras é
possível através do teatro retratar as experiências do sujeito, interpreta-las em
comparação a um passado e por fim possibilitar o entendimento e orientação a partir de

26
SCARPATO, Martha Thiago. O corpo cria, descobre e dança com Laban e Freinet. Dissertação
(mestrado) – Universidade Estadual de Campinas- Faculdade de Educação Física. Campinas, SP : ( s.n.),
1999.
27
BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através
do teatro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
28
RÜSEN, Jörn. Experiência, Interpretação, Orientação: As três dimensões da aprendizagem histórica. In:
SCHMIDT, Maria Auxiliadora et al (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR,
2011.
115
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si próprio. O próximo tópico é a finalização deste texto. Nele se abordará a
sistematização que procura possibilitar o aprender história pelo corpo.

O Alimento Dançado: sistematização do processo criativo.

Como o alimento pode gerar movimento? Ou até, que movimentos são feitos na
alimentação do corpo? São perguntas que norteiam as práticas artísticas de ensinar
história da alimentação pela dança e o teatro. A sistematização foi dividida em cinco
etapas, cada uma abrange pontos específicos do processo criativo. Vale ressaltar que o
decorrer da criação leva em consideração a consciência histórica, como elemento
fundamental.
Primeira etapa: Está altamente relacionada ao debate sobre consciência histórica.
Então, a criação artística parte de um diálogo entre os saberes do aluno e o passado
(historiografia). Neste ponto se orienta os significados que a peça ou coreografia
abordará. Conceitos como mudança e permanência podem ser tratados aqui. É
importante também informar que a historiografia possui o papel de legitimar o que será
proposto na produção artística, afinal não se trata de invenções de gestos ou falas
aleatórias, assim se reforça o compromisso com o ensino de história.
Esta etapa não se encerra em si mesma, sendo acessada durante todo o processo
criativo, principalmente na etapa quatro. Como a temática é alimentação, a
historiografia escolhida prioritariamente deve ser a história da alimentação, podendo
estar focada na região onde o aluno vive. Contudo, é interessante que a mesma seja
acompanhada também da história do corpo ou da moda que trazem traços
comportamentais importantes para a criação.
Segunda etapa: Consiste em exercícios que buscam preparar o corpo para dançar
ou atuar. Prevenindo lesões e acidentes. Os exercícios estão baseados em Spolin
(2006)29 e Calais-German (2002)30, além de exercícios provenientes da prática artística.
Para aquecimento se recomenda o uso de polichinelos, pequenas corridas, o
deslocamento pelo espaço pensando nas articulações do corpo. Para alongamento pode-
se usar torções com as costas no chão, elevação das pernas para ativar os músculos do

29
SPOLIN, Viola. Jogos Teatrais: o fichário de Viola Spolin. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
30
CALAIS-GERMAIN, Blandine. Anatomia para o movimento. Nova ed., rev. e atual. São Paulo:
Manole, 2002, 2v.
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tronco, abdominais e prancha. É preciso ter cuidado com a duração de cada exercício
para que o mesmo não chegue a prejudicar os discentes.
Terceira etapa: É um momento para despertar e exercitar a criatividade. Com
base em Lobo (2007)31, os laboratórios são todos sensitivos, ou seja, estão relacionados
aos sentidos do corpo humano: visão, olfato, audição, paladar e tato. Este ponto é muito
importante, pois, permite que a história da alimentação se materialize. Então os sabores
podem ser sentidos e o movimento surge. Tocar uma fruta, saborear, sentir seu cheiro,
são formas de sensibilizar o corpo do aluno. Para a visão pode ser trabalhados
fotografias das feiras, os gestos dos sujeitos. A audição se dá pela fala dos indivíduos
sociais nos ambientes da sociabilidade. Desta forma, os alunos podem trazer para o
processo de criação as sensações que tem com um determinado alimento, uma receita de
avó ou mãe. Isso ajudará a engaja-los nas atividades.
Quarta etapa: É onde os discentes desenvolverão, através da ligação entre os
laboratórios mencionados na etapa três e a historiografia/cotidiano da etapa um, seus
textos de dança, como afirma Marques (2010)32. Isso é importante para que os alunos se
tornem intérpretes-criadores, ou seja, participem da construção da proposta. Ao
professor cabe orientar a organização da cena. Permitindo o aluno criar, o mesmo
adquire autonomia e a aprendizagem se torna mais horizontal. Por isso o professor não
deve chegar com uma peça pronta com personagens estabelecidos. A dança e o teatro
exigem pesquisa também, logo, as potencialidades destes recursos ao ensino de história
são fundamentais.
Quinta etapa: É a finalização ou o produto. Cabe ressaltar que não é obrigatório
que os alunos apresentem algo. Afinal, como já foi debatido, a escola possui diversos
desafios e é bem provável que eles desgastem o professor. O importante é que os alunos
desenvolvam a compreensão sobre a história da alimentação junto ao professor. Eles
precisam experimentar, viver e entender que podem aprender história através de seus
corpos.

31
LOBO, Lenora. Teatro do Movimento: um método para o intérprete criador. Brasília: LGE Editora,
2003 / 2ª edição, 2007.
32
MARQUES, Isabel. A Linguagem da Dança: arte e ensino. São Paulo: Digitexto, 2010.

117
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Conclusões na Mesa

Enfim, chegamos ao final das considerações deste texto. Observou-se no trajeto


percorrido que a alimentação pode ser interpretada pelo corpo. Afinal, a ação de
cozinhar requer movimento, por sua vez executado pelo corpo. Na sala de aula, tomar o
corpo como método de ensino de história, é uma forma de permitir aos nossos alunos o
prazer de viver e experimentar a história pela pele. É importante desenvolver, para isso,
um olhar artístico para a historiografia. Espera-se que este texto possibilite e contribua
para a reinvenção da prática docente. Vale ressaltar, que é muito importante que os
professores de história, que queiram usar a dança e o teatro como recurso no ensino de
história, procurem uma formação nestas áreas, para um melhor aprofundamento teórico-
prático.
Assim, se ocorre a reverência do bailarino, as cortinas se fecham e o espetáculo se
encerra.

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PARTE II

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COMIDA E “SUSTANÇA”:
LINGUAGEM, SOCIABILIDADE
E CONSUMO NA FEIRA
MUNICIPAL DE CAMETÁ-PARÁ
Prof. Dr. Carlos Dias Jr. (UFPA/ALERE)1
Vera Lúcia (UFPA/ALERE)2

Introdução

Esse texto é resultado de pesquisa etnográfica realizada na Feira Municipal de


Cametá, Pará. A pesquisa se deu em dois momentos, primeiro na elaboração de Tese de
Doutorado, defendida por Carlos Dias Jr. (UFPA), no ano de 2018 e depois em Plano de
Trabalho da Pesquisa “Falas da Feira: memórias de feiras e mercados na Amazônia”,
com a bolsista Pibiq Vera Lúcia (UFPA), no ano de 2019-2020. Então, ele é fruto de um
trabalho conjunto de discussão e elaboração. Neste caso específico, o texto ora
apresentado tem como foco o consumo de alimentos derivados da mandioca, em
especial, a farinha, os mingaus e beijus e de como esses alimentos congregam saberes
orais e são produtores de sociabilidade no espaço da feira.
Logo no título usamos o termo “sustança”, tal como um conceito êmico, ele é
uma descrição sobre determinados alimentos, apontados na pesquisa de campo, pelos
próprios entrevistados colaboradores da pesquisa. Esses alimentos são apontados como
aqueles capazes de “alimentar”, “encher a barriga”, “fartar”, pelo seu alto teor de
carboidratos advindos da mandioca.

1
Doutor em Antropologia pela UFPA e mestre em Estudos Literários. Docente da UFPA, curso de Letras.
Membro do Grupo de Pesquisa Alere.
2
Aluna do curso de Graduação em Letras, Campus Tocantins/Cametá (UFPA). Membro do Grupo Alere
e bolsista CNPq/UFPA
120
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A feira e o consumo de mandioca

Cametá é uma cidade localizada no chamado “Baixo Tocantins”, no Estado do


Pará. Sua Feira Municipal chama atenção pelo tamanho e por sua diversidade de
produtos e circulação de pessoas, tanto daqueles que vivem na zona urbana do
município, quantos dos que a frequentam cotidianamente, vindos da zona rural e das
ilhas. A Feira, neste caso, como apontado na tese (DIAS JR,. 2018), é o espaço onde se
congregam o comércio e as trocas entre as pessoas, como numa festa cotidiana. Os
alimentos comercializados na feira tentam dar conta de uma demanda bem variada que
passa pelo menos por três refeições: café da manhã, lanche (merenda) e almoço.
Geralmente quem come na feira, mais especificamente, quem almoça na feira,
são as pessoas vindas da zona rural (“centro”) ou das ilhas. Portanto, o local onde
comem passa a ser um ponto de apoio, onde elas conversam, guardam sua bagagem, e
em troca fazem sua refeição. Em muitos casos o vendedor guarda uma comida especial,
ou mesmo faz uma comida especial para determinado cliente. Em troca ele ganha a
fidelidade daquele freguês. Dentre estes também estão aqueles que “lancham” na feira.
O lanche, a comida rápida, é consumida por todos os seguimentos: feirantes, clientes,
passantes, etc. (DIAS JR., 2018). Portanto, encontramos muitas opções de lanche e
muitas formas de vendê-lo. As opções mais frequentes são os chamados “completos”,
que são nada mais do que uma combinação de coxinha e suco, além dos mingaus de
milho branco, açaí com arroz, açaí com farinha e açaí com crueira. Esses mingaus,
seguindo as falas dos próprios entrevistados, classifico como “comida regional”.
Também pode ser entendido como “comida típica”, tal qual, por exemplo, acontece com
o tacacá. No caso do tacacá, que também é encontrado na feira de Cametá, ele já faz
parte da lista dos produtos inventariados pela IPHAN como “alimento típico” e, por
uma série de questões ele “participa do processo de construção de uma identidade
paraense, e mesmo amazônica” (ROBERT & VELTHEM, 2009).
Esses mingaus merecem um estudo a parte, pois eles parecem ser senão os
únicos, mas um dos poucos alimentos prontos vendidos na feira que tem um caráter
mais regional. Voltando a Poulain, vale a pena traçar o perfil do consumidor destas
iguarias, visto que a exemplo do que foi verificado em sua pesquisa na França, apenas
as “práticas populares” de alimentação têm um caráter regional, ou mesmo “une
signature régionale” (POULAIN, 2002, p.32).

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
Como observado na pesquisa de campo, a venda destes mingaus se restringe a
cinco pontos de venda na feira de Cametá, sendo que, por exemplo, o mingau de farinha
com açaí é raríssimo de ser encontrado por falta de “quem goste” (fala de um
entrevistado). No entanto, eles ainda sobrevivem, ainda funcionam como um alimento
que “esquenta o bucho” e “dá sustância” e que para muitos é uma das marcas regionais
da culinária local. Importante frisar que, além dos “carrinhos de venda”, existem os
vendedores ambulantes que, na verdade, são rapazes e moças que andam com os copos
descartáveis já servidos com mingau em bandejas e vão vendendo ou entregando os
mingaus por diversos locais da feira.
Voltando aos lanches em geral, identifiquei que as opções de venda são
distintamente três: os ambulantes, ou “feirante itinerante” (SANTOS, 2014, p.91), que
num carrinho ou bicicleta trafegam por toda a feira (e por vezes além dela) oferecendo o
seu produto e que, claro, acabam realizando um “trajeto” já estabelecido; os carrinhos
fixos, que ficam localizados sempre no mesmo local à espera dos clientes; e as
lanchonetes, que são construções feitas pela prefeitura e cedidas aos feirantes que
vendem lanche e/ou refeições.
Para que pudesse compreender este emaranhado de ofertas dividimos os
alimentos em categorias. Partindo da concepção final do alimento, ou seja, o prato,
grande parte dos entrevistados apontou a diferença entre o “acompanhamento” e a
“mistura”. O acompanhamento, em geral, é formado pelos cereais, grãos e semente, em
sua grande parte a farinha, o feijão, o arroz e o macarrão. A mistura, por seu turno se
configura por algum alimento de origem animal como a carne bovina, o peixe, o
camarão, carne de porco etc. e uma série de outras possibilidades que vemos nas ofertas,
que é comido com os acompanhantes e suas combinações. Ao ser perguntado o que era
a “mistura”, um entrevistado respondeu “é o mais importante da comida” (Francisco
Valente). Aliás, a categoria “mistura” é evocada por outros trabalhos, seguindo uma
definição similar:

Na linguagem comum, as carnes, frangos e peixes que acompanham a


refeição principal são chamadas de “mistura”: é o elemento mais
valorizado e raro do cardápio, que determina as escolhas dos outros
ingredientes a serem harmonizados. (CAVIGNAC et all, 2016)

O açaí com a farinha de mandioca ocupa a categoria de “acompanhamento”, mas


um acompanhamento que por vezes não aceita dividir espaço com o arroz, o feijão e
macarrão, sendo apenas ele e a “mistura”. Essa dicotomia alimentar na formação do
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prato não é a única presença na alimentação, já que temos os caldos, as sopas, mingaus
e caldeiradas, que englobam mais uma categoria. Nos restaurantes populares, três
elementos complementares ao cardápio ou ao “prato feito”, estão sempre disponíveis
para o cliente: a água para beber, o molho de pimenta e um vasilhame com farinha.
Ainda que a farinha de mandioca seja um alimento que possui um alto custo para o
dono do restaurante, é fundamental que a “farinheira” esteja ali disponível, porque os
clientes “não comem sem farinha” (Dona Dora, dona de restaurante).
Dentre as opções para o desjejum encontrei algumas vendas de mingaus que me
chamaram bastante atenção. A priori, encontrei na feira quatro tipos de mingau: mingau
de milho branco, mingau de arroz com açaí, mingau de açaí com crueira e, em menor
quantidade, mingau de farinha com açaí. Todos os entrevistados foram unânimes em
reconhecer que os mingaus, sobretudo os de açaí, são regionais. Esses mingaus são
vendidos em carrinhos móveis, em barracas improvisadas ou em bicicletas.
Esses mingaus, seguindo as falas dos próprios entrevistados, classifico como
“comida regional” ou também “comida típica, o mesmo pode ser aplicado para o
mingau de açaí (seja com arroz, farinha ou crueira), não apenas por ser um produto feito
à base do açaí, fruto muito consumido na região, mas também por estar presente no dia
a dia do cametaense. Os vendedores de mingau transitam em suas bicicletas e carrinhos
não só pela feira, mas por todos os lugares da cidade que possuam movimento: filas de
banco, hospitais, escolas, praças etc. e, se por um acaso, você acordar depois das 9h da
manhã e resolver tomar um mingau de açaí como desjejum, provavelmente não
encontrará mais, porque ele acaba rápido.
Devo frisar que alguns feirantes preferem os mingaus aos lanches completos e
que muitos fregueses também o procuram. Alguns entrevistados afirmaram tomar o
mingau de crueira porque “dá sustança”, isto é, dá força para aguentar uma manhã de
trabalho, por exemplo. Na canção “Mingau de açaí” de Mestre Cupijó ele ganha
destaque:

Tio Mané foi pro mato


Foi pro mato trepar
Trepar no açaízeiro
Foi trepar pra apanhar
Açaí do pretinho
Do pretinho, parau
Pra botar na farinha e fazer o mingau
Eita mistura gostosa
Que me ajudou a viver

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Mingau de açaí com farinha
É prato que o pobre não pode esquecer (CUPIJÓ, 2014)

A feira possui cerca de 15 restaurantes populares. Consideraremos “restaurantes


populares”, para este trabalho, aqueles estabelecimentos que vendem comida a preços
módicos (o PF – prato feito, por exemplo) e que possuem uma cozinha, isto é, que
produzam o alimento na hora. Importante fazer esta observação porque existem
lanchonetes que oferecem comida, mas em marmitas, e que são produzidas fora da Feira.
Este é um espaço de trabalho exclusivamente feminino. Em todos os restaurantes são
mulheres que cozinham e servem, apenas em um pude notar a presença masculina,
diferente do que acontece no Mercado de Carne, de Peixe, nas Feiras do açaí e da
Farinha, em que a presença masculina é absoluta. Os restaurantes populares ficam
localizados próximos a Feira do açaí, um ao lado do outro e vendem praticamente os
mesmos pratos. Nos diversos cardápios tomamos nota de: feijão, arroz, macarrão, peixe
assado, peixe frito, frango assado, carne assada de panela, porco refogado, bisteca na
chapa, sarapatel, bife de fígado, carne com farofa e açaí. Os preços praticados também
são os mesmos, muitas vezes combinados, o que muda é a organização espacial e a
relação com os fregueses. Em geral, os pratos são servidos com dois acompanhamentos
gratuitos: a farinha e uma garrafa d’água gelada.
Como prática corrente na alimentação do paraense, praticamente todos que
comem ali na feira colocam farinha no prato, como já dissemos é inimaginável um
restaurante popular que não tenha uma farinheira a disposição do freguês, é condição si
ne qua non para a refeição. Todos os fregueses entrevistados nesses restaurantes
disseram tomar açaí e, para minha surpresa, poucos foram aqueles que disseram comer
peixe. A maioria preferia carne bovina ou frango.
Em junho de 2014 a Prefeitura Municipal de Cametá, por meio de sua Secretaria
de Meio Ambiente, decidiu que os proprietários de restaurante não podiam mais assar
qualquer coisa na brasa. O motivo era a fumaça em excesso que era produzida. Para não
deixar o freguês “na mão”, alguns vendedores resolveram assar o peixe em outro local e
trazê-lo embalado em folhas de alumínio até o restaurante, para aí ser comercializado.
No entanto, a venda do peixe não chega a ser tão grande naqueles restaurantes. O prato
mais citado pelos entrevistados foi carne assada de panela acompanhada de açaí. Esse
dado se confrontou com o coletado com aqueles dos fregueses cotidianos da feira e dos
feirantes, que disseram preferir comer peixe e mesmo com o cardápio semanal das
famílias pesquisadas.
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Carne bovina, frango, peixe, farinha de mandioca e açaí são os alimentos mais
comercializados na feira e eles estão cotidianamente em todas as mesas dos cametaenses.
Deles, a farinha é o único que se compra pronto para o consumo, ainda que o comprador
deva ter um cuidado todo especial para escolher uma boa farinha e uma que combine
com o que vai ser comido e com o bolso. Esses alimentos destacados se apresentam
antes de ir “para a panela” com uma diversidade muito interessante que, por certo,
apresenta linguagem classificatória também interessante. São formas de classificação e
variedades que foram sendo aperfeiçoadas com o tempo e estão diretamente ligadas à
forma de comer do cametaense.
Vamos dar destaque à farinha. Na Feira da Farinha existem em média 45
vendedores, mas esse número é bem flutuante, pois eles dependem dos resultados das
colheitas e da produção da farinha para vender. A farinha vendida em Cametá é
produzida na zona rural do município. Uma parte dos vendedores são também
produtores e estão ali vendendo o seu produto nos dias em que não estão trabalhando na
roça; outros são apenas revendedores da produção de alguém que faz a farinha. Como
veremos mais adiante, em praticamente todas as variações de pratos consumidos em
Cametá a farinha está presente, mesmo quando o alimento não é dado como alimento
que combine com a farinha, pois “há gente que come até com sopa” (Móia, feirante). O
que se observa de longe na Feira da Farinha são os vendedores ao lado dos sacos cheios
de farinha e elas apresentam sempre colorações e texturas diversas. Não se chega à
Feira e pede “eu quero farinha”, pois deve-se saber qual farinha. Em geral, os
vendedores vão anunciando aos fregueses que passam as “qualidades” e os tipos de
farinha que estão vendendo. É de praxe provar a farinha antes de comprar, para testar
seu sabor e sua crocância. Alguns tipos de farinha nomeados pelos feirantes foram:
farinha de tapioca, farinha d´água, farinha branca, farinha lavada, farinha com castanha
do Pará, farinha com erva-doce, farinha de tapioca com castanha do Pará, farinha pra
farofa, farinha amarela, farinha comum e farinha de crueira.
Além das nomenclaturas dadas aos tipos diversos de farinha, o porcionamento
do produto não é feito em quilogramas na hora da venda, mas sim em “litro” e em
“frasco”. Na hora da compra não é utilizada nenhuma balança, mas uma “lata” (foto) ou
uma “medida” (foto), utilizando os termos locais, que serve como parâmetro. A “lata”
ou “litro” é um vasilhame de um litro de um outro produto líquido (lata de óleo de
cozinha, lata de comida processada et.), que é reutilizado para medir a farinha. São

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também utilizados os “litros” que são medidores fabricados para esse fim. A medida
“litro” está relacionada com o tanto de farinha que cabe dentro de um vasilhame de
1000 ml; a medida “frasco” está relacionado com o tanto de farinha que cabe dentro de
um vasilhame que tem variação a mais ou a menos de 1000ml, por isso o nome frasco,
no sentido de recipiente. Numa conversa com o feirante Seu Móia, perguntei se não era
mais complicado vender daquele jeito, se não seria mais fácil vender por quilo, ele me
respondeu “nem todo mundo tem balança”. A balança não é, de fato, um equipamento
barato e, além de tudo, o próprio espaço da Feira da Farinha dificulta a sua utilização,
pois só há espaço para os sacos de farinha. Observei que esse sistema de medida é muito
utilizado naquele espaço e que todos fregueses têm plena noção da quantidade que estão
comprando.

Foto 01: o “litro” utilizado para medir a farinha.

Fonte: Carlos Dias Jr – novembro de 2014.

Esse sistema de medidas parece ser bem típico de espaços de feiras que não
possuem tanta estrutura e que necessitam de equipamentos que sejam práticos e
agilizem o processo de venda. Na pesquisa de campo observou-se nas feiras de outras
cidades vizinhas como Mocajuba e Limoeiro do Ajuru, a utilização da mesma forma de
medida, que ratifica esse uso e o insere num contexto regional. Na Feira do Ver-o-Peso
a medida por quilo é a mais utilizada, isso provavelmente se dá porque a feira é
frequentada pelo público local e pelo público visitante e turista, que precisa de um
parâmetro mais conhecido e, também por conta da padronização existente ali. Essas
formas de medida são bastante estudadas pela Etnomatemática e já compreendidas
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como medidas que consideram os valores e conhecimentos locais, nesse sentido, a
Etnomatemática pode ser entendida como ideias “[...] desenvolvidas por culturas
específicas (etno versus etnia) através da história, com a utilização de técnicas e ideias
(ticas = técnicas) apropriadas para cada contexto cultural, com o objetivo de aprender a
lidar com o ambiente” (ROSA, OREY, 2005, p. 6). No sentido pedagógico, a
Etnomatemática parte de conceitos locais e de uso para o estabelecimento do ensino do
autoconhecimento:

[...] Etnomatemática, com suas propostas para a ação pedagógica. Tal


programa não considera a Matemática como uma ciência neutra e
contrapõe-se às orientações que afastam dos aspectos socioculturais e
políticos – fato que têm mantido essa área do saber atrelada apenas a
sua própria dinâmica interna. Por outro lado, procura entender os
processos de pensamentos, os modos de explicar, de entender e de
atuar na realidade, dentro do contexto cultural do próprio indivíduo. A
Etnomatemática procura entender a realidade e chegar à ação
pedagógica de maneira natural mediante um enfoque cognitivo com
forte fundamentação cultural (BRASIL 1998, p. 33)

A Etnomatemática, portanto, expande a atuação, mesmo pedagógica, da


disciplina, saindo da visão eurocêntrica da matemática para olhar para a realidade do
indivíduo que, na prática, usa outros conhecimentos, por exemplo, de medida como
vemos na Feira Municipal.
Na comercialização da farinha, além do preço outras, características atraem os
fregueses e, entre eles está a origem, a aparência e “torrância” dela. Numa conversa com
seu Elias, freguês da feira, morador do bairro da Matinha, ele revelou: Eu compro
sempre aqui dele, já tô acostumado, é farinha boa e vem lá do centro, né? Ela é boa,
bem torradinha, tem torrância (Sr. Elias, aposentado).
A farinha que vem do “centro” é aquela produzida na zona rural de Cametá e,
em alguns, casos a farinha é conhecida pelo local onde é feita ou mesmo pela família,
ou pessoa, que a prepara. É o caso da farinha do Juvenal. Seu Juvenal, segundo me
informou o sr. Jorge (feirante, 47 anos), era um senhor que fazia uma farinha muito boa
e mesmo depois de falecido “ficou a fama” e seus parentes ainda fazem e vendem
farinha usando o nome de seu Juvenal. Para o entendimento desse processo, também
procedemos a pesquisa de campo em um espaço de produção da farinha, no tópico que
segue.

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Família, memória e a produção da farinha

Existem dois grandes momentos antes da farinha chegar à feira: plantio e


produção, e em todas as fases há presença de saberes que são repassados de geração à
geração por meio da cultura oral. Para a família de seu Inácio, agricultor de 43 anos -
um pequeno produtor da vila de Bom Jardim município de Cametá-PA, a casa do forno
é o local onde ele e sua família se reúnem, assim, podemos perceber que nesse ambiente
há uma relação familiar, e como elas são repassadas para as gerações, pois cada
movimento de produção, as orientações acerca do que fazer e como fazer, os processos
para poder ficar no ponto certo da farinha perfeita, ficam enraizadas e permanecem ao
longo do tempo, dessa forma, a farinha é um meio de construção de linguagem e com
isso é possível compreender a relação de um povo. Observamos por meio das
narrativas que, no decorrer do tempo, a maneira de produzir a farinha vem se
transformando, mas muitas famílias ainda permanecem com os mesmos costumes e
tradições de produção e afirmam que essa maneira de produção é insubstituível.

Desse modo, cada região possui sua cultura sua maneira de preparar e
consumir os alimentos e esses alimentos muitas das vezes são cultivados de forma
natural, assim, respeitando o seu ciclo de vida. No entanto, precisam da intervenção e
conhecimento do homem para poder chegar ao ponto de ser um alimento “comestível”.
Prova disso é a mandioca, esta não pode ser consumida crua, e o modo de preparo deve
ser realizado de maneira adequada e com técnicas na retirada de uma substância
chamada de ácido cianídrico que é um veneno para o ser humano.

Foto 2: casa de farinha

Fonte: Vera Lúcia, maio de 2020.


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A imagem anterior mostra a casa de forno, nela temos a presença de uma
família: pai, mãe e filhos que participam dos processos e cabe a cada um uma função. O
trabalho “mais pesado” fica por conta dos homens - cortar lenha, colocar a massa no
tipiti, e mexer a farinha no forno - e o “mais leve” fica destinado às mulheres -
descascar e coar a massa. Basicamente o processo de produção da farinha de mandioca
é dividido em 10 fases: “plantio, colheita, molho, amolecimento, descascamento,
socagem, enxugamento, coagem e torramento”. O produtor afirma que em algumas
regiões a fabricação da farinha é feita com o auxílio de máquinas, mas segundo ele “não
é mesma qualidade daquela que é produzida manualmente” (Seu Inácio).
Na época do plantio, geralmente é feito um convite, isto é, uma família chama
seus amigos, compadres e vizinhos para plantar a mandioca. Esse processo de
sociabilidade, de trabalho junto, congregará, no futuro a partilha do produto e uma rede
de proteção dos vários plantios. Passado um ano, ou até antes, dependendo do tipo e da
qualidade da mandioca - a colheita pode ser feita com 8 meses. Nesse intervalo ocorre a
limpeza da roça, onde é retirado todo o capim, depois disso a mandioca é arrancada
manualmente da terra e levada para um tanque onde é deixada na água e fica de molho
por seis dias. Nesse período a água não é trocada, ocorre o processo de fermentação,
após esse procedimento a mandioca está pronta para ser descascada e em seguida é
levada para a casa do forno.
Nesse local a massa é despejada em uma tábua, e as mulheres socam com uma
mussucaou muçuca (uma espécie de mão de pilão) e vão retirando o talo que fica no
meio da mandioca, em seguida a massa vai para o tipiti, este é um espremedor que
permite pressionar a massa até retirar uma substância chamada de ácido cianídrico, este
líquido que é uma substância tóxica que para ser utilizada precisa passar pelo processo
de cozimento que depois vem a se transformar em tucupi, este muito utilizado em
molhos e no tacacá. Após escorrer todo o líquido, a massa está pronta para ser coada,
serviço realizado por mulheres ou até mesmo pelos mais novos, em seguida essa massa
é despejada em um forno com temperatura média e todo tempo é mexida para não
queimar com uma espécie de rodo, feito de madeira, geralmente essa função fica
destinada ao homem. Assim "Quando se analisam a relação dinâmica familiar e o
comportamento alimentar, observa-se quanto as relações podem influenciar positiva ou
negativamente o hábito alimentar […]” (STORY, 1984 apud VITOLO, 2008, p.293).

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Foto 3: o “tipit

Fonte: Vera Lúcia, maio de 2020.

O preparo da farinha geralmente leva o dia inteiro, por isso as refeições são
feitas na casa da farinha. Pela manhã é servido o café com pão, no horário das nove
horas é servido o mingau de farinha com açaí, no almoço as mulheres levam o frango, o
peixe, o feijão e o açaí eles consomem a farinha que já está pronta.

Após ser produzida a farinha de mandioca o produtor retira uma quantidade


favorável para o seu consumo e o restante é transportado para a cidade de Cametá, onde
é negociada com os feirantes a certo preço e logo a farinha é vendida para os clientes.

Conclusão

Neste texto, que mostra uma pesquisa ainda em andamento, focamos na Feira
Municipal de Cametá, mostrando os diversos produtos derivados da mandioca que ali
são comercializados, como o mingau e a farinha, e destacamos também a produção da
farinha, para demonstrar que entre a produção e a venda uma série de saberes são
empregados. Observamos que a cultura oral é fundamental nesse processo e que o
trabalho realizado em família, ou em famílias, como no caso apresentado, é detentor de
práticas que são passadas por gerações com o ensino que vem da narrativa, da memória
e de uma herança prática.

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Também mostramos que no espaço de feira, vários alimentos preparados com
base na mandioca, como o mingau, agregam não apenas o valor de regionalidade, mas o
de “sustança” e sociabilidade, na medida que alimenta e congrega as pessoas em torno
de um alimento. Aliás, os espaços onde esses produtos são comercializados são uns dos
mais movimentados. Retomando a tese “Da feira e da cozinha: consumo, identidade e
linguagem em torno da comida na Feira Municipal de Cametá-Pa”, reiteramos que a
farinha é alimento fulcral na “Estrutura Alimentar”, e que os outros produtos derivados
da mandioca guardam seu lugar orbitando na alimentação do cametaense nas mais
diversas refeições ou tomadas alimentares.

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A ALIMENTAÇÃO NA CIDADE
EM TEMPOS DE PANDEMIAS:
TENDÊNCIAS, HÁBITOS E
COMPORTAMENTOS
Jumar da Silva Pedreira1

“A cozinha das mães e avós é de valor singular incontestável”. 2


“O ato de cozinhar começa com pequenos ou grandes atos de destruição: matar, cortar, fatiar,
triturar”.3
“Cozinhar serve como uma metáfora da transformação humana da natureza crua para
a cultura cozida”.4

O que irá comer, alimentar-se, a cidade em tempos de pandemias e pós-


pandemias é uma pergunta que será respondida ao longo do tempo, não existindo ainda
uma resposta concreta. Não estamos nos referindo especificamente a pandemia da
COVID-19, estamos falando de pandemias no plural. Os efeitos sociais, emocionais e
financeiros que estamos vivendo nos diversos tipos de confinamentos, geram mudanças
duradouras no nosso comportamento alimentar. Sairemos do confinamento com medo,
porém, mais fortes e mais preparados para outras realidades pandêmicas, até então
consideradas apenas em filmes de ficção. Nossa geração irá viver sob um medo latente
de novas possíveis pandemias, e esse fato já é suficiente, ou deveria ser, para que
tendências e hábitos alimentares sejam repensados, assim como outras pandemias
mudaram o mundo.

1
PEDREIRA, Jumar da Silva Professor da Escola Castelli de Chocolataria – Canela / RS
Especialista em Gestão e Engenharia de Produtos – Escola Politécnica / USP - Universidade de São Paulo
2 DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira. São
Paulo: 1ª Ed., Três Estrelas, 2014.
3POLLAN, Michael. Cozinhar: Uma história natural da transformação. Rio de Janeiro: 1ª Ed., Intrínseca,
2014.
4LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido – Mitológicas I. São Paulo: 2ª Ed., Cosac Naif, 2004.

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Ainda estamos no início do processo — não no meio, não no fim, mas
no início. Por isso talvez não seja tão claro. Mas a história o mostra. A
Peste Bubônica, que tomou o planeta na virada da década de 1340
para 1350, deixou uma Europa transformada. [...]. O humanismo
tomou as rédeas, a Idade Média foi sendo deixada para trás conforme
o saber científico ganhou valor e uma arte com o humano no centro
[...]. A virada para a Renascença, numa época em que os ritmos eram
todos muito lentos, foi a maior herança da maior de todas as
pandemias. [...]. Quando entre 1919 e 20 a primeira influenza girou o
mundo apelidada de Gripe Espanhola, transformou o espírito da
humanidade. Falamos tão pouco daquela gripe. Entre 1914 e 18, a
Primeira Guerra matou entre 15 e 22 milhões pessoas. No ano e meio
seguinte, a pandemia levou mais de 50 milhões. Se o mundo anterior
era um duma sisudez ainda oitocentista, vestidos que a tudo cobriam e
moralidade vitoriana, os anos 1920 foram em tudo diferentes. [...]. Foi
um tempo de rápido avanço tecnológico, busca acelerada por vida e
felicidade, por quebra de normas. Pandemias fazem isso. Aceleram
tecnologias que promovem proximidade, mexem nos valores de uma
sociedade, reposicionam os critérios sobre o que é importante. Muitos
dos sistemas de saúde pública europeus nasceram após a Gripe
Espanhola. Pois o mundo já está sendo transformado. Como das outras
vezes, haverá transformações na cultura, na economia, nos valores —
e tudo movido a tecnologia. [...].5

Não há um novo normal nos esperando na esquina, pois a primeira realidade que
nos foi escancarada, é que esse normal que estávamos vivendo, de nada nos serve para
replicá-lo para um novo normal. Vivíamos em um mundo devastado por nosso consumo
inconsciente e sofrido pelas diferenças sociais. As tendências, hábitos e
comportamentos alimentares dos consumidores, já passam por profundos
questionamentos e alinhamentos, ao vivermos e nos alimentarmos em um planeta que
passa por um processo inimaginável de adequações do convívio e do relacionamento
social, onde a alimentação sempre esteve em um papel protagonista.
Jean-Pierre Poulain afirmou no livro Sociologia da Alimentação, 2006, que

[...] as profundas transformações da organização da cadeia


agroalimentar alargam sua concentração nas empresas de porte cada
vez maior, afastando os comedores da origem natural dos produtos
alimentares, isolando-os de seu meio ambiental natural e social.
Assim, a própria natureza do risco alimentar teria se transformado, na
medida da transferência parcial da atividade culinária para a
indústria.6

5 https://premium.canalmeio.com.br/edicao/85864/ - Acesso em 23 de maio de 2020.


6POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Alimentação. Santa Catarina: 1ª Ed., Editora da UFSC, 2006.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
Poulain continua muito atual, pois, profundas transformações continuarão na
cadeia alimentar, e já estão em formação. Antes da pandemia, observava-se claramente
uma busca cada vez maior por produtos orgânicos, como alternativas à carne de origem
animal, incluindo insetos como fonte de proteínas, e por compras orientadas à
sustentabilidade, mas com a chegada da pandemia, passamos a conceder maior trégua à
comida industrial, aos alimentos processados e aos materiais e embalagens plásticos,
pois temos a sensação de melhor proteção, podemos estocá-los, nos garantindo para
uma escassez, que não é descartável na nossa insanidade dos dias de quarentena.
Passamos a viver com o medo crescente da comida natural, devido a maior manipulação
e ao afastamento obrigatório do nosso meio natural e social, porém, em outro extremo
clamamos por maior imunidade, que deveria ser conseguida através de uma comida
mais natural, feita em casa, e nesse momento, vivemos uma dualidade dramática que
terá reflexo no nosso comportamento alimentar.
Abrimos 2020 com a certeza que iríamos na direção das tendências e
comportamentos já estudados em um mundo com livre arbítrio para ir e vir, um mundo
que tínhamos total controle, um mundo com cidades abertas onde poderíamos decidir
onde comer e o que comer, mas esse mesmo mundo nos empurrou ao confinamento
obrigatório, seja físico e/ou emocional, em função da COVID-19. O instituto
internacional de pesquisa Euromonitor publicou em janeiro as 10 Tendências Globais
de Consumo 2020, para um mundo sem pandemia, onde uma das tendências reforçava o
estar em casa, de forma confortável, livre e opcional, definida como Nunca
precisaremos sair de casa, e assim descrito:

Durante épocas de incertezas econômicas, políticas ou pessoais, os


consumidores são atraídos para os confortos de seus lares. Para relaxar
e voltar aos trilhos, os consumidores se isolam em seus espaços
pessoais seguros, onde estão livres das distrações do mundo a sua
volta. Embora essa tendência não seja nada nova, pela primeira vez os
consumidores não querem sair de suas casas e nem precisam. Graças
ao acesso à Internet de alta velocidade e serviços e produtos
inovadores, os consumidores no mundo todo podem se exercitar, fazer
compras, trabalhar e se divertir, tudo isso no conforto de suas Casas
multifuncionais. O impacto disso no governo, distribuição e indústrias
é profundo e extenso”. 7

7https://go.euromonitor.com/white-paper-EC-2020-Top-10-Global-Consumer-Trends-
PG.html?utm_source=digital&utm_medium=social&utm_campaign=CT_WP_20_02_11_Top%2010%20
GCT%202020%20PG - Acesso em 02 de março de 2020.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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Nunca precisaremos sair de casa é uma tendência que reforça uma realidade já
vivenciada fazem alguns anos, chegando com mais intensidade a uma parcela da
população mundial, e quando pensamos em países como o Brasil, essa parcela tende a
ser menor, devido, especialmente, ao desnível socioeconômico da população. Não é
essencialmente uma novidade. O livro O Relatório Popcorn, 1991, cunhou o termo
encasulamento para definir uma tendência de comportamento do consumidor, já
observado desde 1986 (“Estamos nos entocando, estamos nos encavernando, estamos
nos escondendo debaixo de cobertas, estamos em casa”.), em evidência desde então,
com relevância nos hábitos e comportamentos dos consumidores e com forte extensão à
alimentação. O encasulamento, de acordo com O Relatório Popcorn, é definido

[...] como o impulso de ir para dentro quando as coisas ficam muito


violentas e assustadoras do lado de fora. Cercar-se de uma concha de
segurança, de forma que não se fique à mercê de um mundo cruel e
imprevisível. Tem a ver com isolamento e evitação, paz e proteção,
conforto e controle – uma espécie de super ninho.8

A tendência não envelheceu, não datou, nada mais adequado para o momento
que estamos vivendo, estando disponível, como já descrito, desde 1986 e trazida pelo
Euromonitor, de forma visionária, no início de 2020. O que mudou foi o motivo que nos
empurraram para o casulo, o conceito se mantém igual, porém, independentemente de
classes sociais, todos estão de alguma forma encasulados.
A pandemia é uma crise de saúde pública, que traz sérias consequências sociais
e econômicas. Quando se trata da alimentação, a biossegurança é um dos pontos
centrais, estando no topo das preocupações dos consumidores para obtenção de
produtos confiáveis. Estamos no centro do furacão, não sabemos quais as reais
consequências e nossa principal preocupação é a luta pela sobrevivência, mas, já temos
claros sinais das tendências e hábitos alimentares, iniciando a se desenhar um novo
comportamento dos consumidores, descritos na tabela I, reflexo de um mundo
pandêmico. Ressaltamos que evoluiremos durante o ano, pesquisando e observando
esses dados mutáveis em função do avanço, estabilização e/ou queda da COVID-19. A
potência de cada tendência e os reflexos nos hábitos e comportamentos dos
consumidores, também estarão diretamente relacionados ao avanço da ciência no

8POPCORNE, Faith. O Relatório Popcorn. Rio de Janeiro: 1ª Ed., Editora Campus Ltda., 1994.

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combate ao vírus, assim como, todas as demais tendências, já divulgadas por estudiosos,
deverão ser cuidadosamente analisadas considerando-se o cenário do coronavírus.
Na investigação inicial, tendo como referência o início da quarentena na cidade
de São Paulo, no dia 24 de março, identificamos nove tendências. A primeira e mais
importante, é o QUARENTENADO NO CASULO, que representa quem está
confinado em casa. A expressão quarenteners, usada por jovens nas redes sociais, busca
definir o status na quarentena, no encasulamento. Cozinhar, a (re)descoberta do afeto
pela cozinha, faça você mesmo e a valorização do alimento industrializado são os
principais hábitos que emanam do nosso casulo, onde despertam alguns
comportamentos como proteção, segurança, praticidade e medo. Seguimos com
ATRAVÉS DAS JANELAS, impulso ao mundo online; SIMPLES ASSIM, menos
pode ser mais; VIDA IMUNE, alimentos sustentáveis, saudáveis e promotores de
imunidade; FOOD SERVICE IN HOME, o distanciamento da alimentação fora do lar,
especialmente em restaurantes, padarias, bares e cafeterias; TRADE DOWN, eliminação
e/ou substituição de marcas e produtos, priorizando o essencial; PARA MIM, PARA
OS MEUS, indulgência; ENTRE MÃES E MÉDICOS, que representa a dúvida entre
a comida materna de casa e a medicalização da alimentação proclamada por médicos e
nutricionistas, e NÃO SOPRE AS VELAS DO BOLO, que representa a
potencialização de todo ritual higiênico e sanitário da cadeia alimentar, desde a
produção e comercialização, até o preparo e consumo da comida. O inimigo é invisível,
mas é possível evitar os meios de transmissão, onde os fluidos nasofaríngeos
representam a maior ameaça de contaminação - não irei comer uma fatia do seu bolo de
aniversário com sua saliva, provar da sua bebida, lamber o seu sorvete, provar da sua
comida, comer com o seu garfo.
Em detalhes na tabela I, apresentamos as nove tendências, com os respectivos
hábitos e comportamentos dos consumidores, definidos abaixo de acordo o DICIO –
Dicionário Online de Português,9 no cenário da COVID-19.

TENDÊNCIA - Disposição natural que leva algo ou alguém a se


mover em direção a outra coisa ou pessoa; evolução de alguma coisa
num sentido determinado; direcionamento comum de um grupo
determinado.

9https://www.dicio.com.br - Acesso em11 de maio de 2020.

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HÁBITO - Ação que se repete com frequência e regularidade; mania;
comportamento que alguém aprende e repete frequentemente; maneira
de se comportar; modo regular e usual de ser, de sentir ou de realizar
algo; prática repetida que se torna conhecimento ou experiência.
COMPORTAMENTO - Modo de se comportar, de proceder, de agir
diante de algo ou alguém; conjunto das atitudes específicas de alguém
diante de uma situação, tendo em conta seu ambiente, sociedade,
sentimentos etc.; reação que se tem diante de uma situação; conjunto
de ações de um indivíduo observáveis objetivamente, tendo em conta
seu meio social; estudo sistemático das reações individuais aos
estímulos.

TABELA I – Tendências, Hábitos e Comportamentos / Cenário COVID-19


TENDÊNCIA HÁBITO COMPORTAMENTO
1. QUARENTENADO Faça você mesmo; cozinhar; proteção; bem-estar;
NO CASULO trégua ao alimento cuidado; afeto; segurança;
industrial e ao plástico praticidade; medo
2. ATRAVÉS DAS Compras online; streaming proteção; prudência;
JANELAS e lives (culinários ou não); segurança; resiliência;
formatos digitais de medo
relacionamento; banda larga
3. SIMPLES ASSIM Fornecedores e compaixão; bem-estar;
abastecimento local e solidariedade;
próximo; pequenos simplicidade; cuidado;
produtores; menos pode ser afeto; segurança;
mais; suprimir etapas confiança; empatia; medo
4. VIDA IMUNE Alimentação e suprimentos prevenção; bem-estar;
que reforcem a imunidade e biossegurança; prudência;
o bom humor (mood food); cuidado; proteção;
comida saudável e esperança; medo
sustentável (orgânica,
biodinâmica, integral,
vegana)
5. FOOD SERVICE IN Delivery alimentar; segurança; distanciamento;
HOME afastamento do restaurante a precaução; resiliência;
quilo; espaço alimentar cautela; medo
readequado; comer fora,
mas em casa
6. TRADE DOWN Adequação do orçamento economia, segurança;
familiar através da confiança; cautela; medo
eliminação e/ou troca de
marcas e produtos; priorizar
o essencial
7. PARA MIM, PARA Indulgência; beliscar; mais afeto; autopiedade;
OS MEUS doce; mais chocolate; álcool reconhecimento; fuga;
para a mão e para a cabeça; medo
fantasia
8. ENTRE MÃES E O equilíbrio entre a comida dúvida; incerteza; prazer;
MÉDICOS feita em casa e livre de bem-estar; medo
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restrições (liberdade +
prazer + sabor) e a
medicalização do alimento
disseminada por médicos e
nutricionista (restrição +
imunidade + ciência)
9. NÃO SOPRE AS Higiene; lavar as mãos, as prevenção; segurança;
VELAS DO BOLO compras, os alimentos ...; cuidado; biossegurança;
menos cru, mais cozido medo

O medo, de sabor amargo, nada doce, viriliza-se por todos os comportamentos


das tendências, pois é o grande catalisador das rápidas mudanças que já estamos
saboreando. De acordo com o epidemiologista Marcel Salathé, “o medo não é o
problema, mas, sim, como nós canalizamos nosso medo. O medo nos dá energia para
lidar com os perigos agora, e se preparar para os perigos mais à frente”. 10 Uma das
energias canalizadas do medo é o hábito de cozinhar, presente na tendência
QUARENTENADO NO CASULO, porém latente em todas as demais tendências. Um
hábito (re)conquistado na quarentena, que (re)conecta consumidores confinados as suas
origens ancestrais, (re)descobre o amor e o afeto pela cozinha, acalma, passa tempo e
promove união e esperança no casulo, mesmo quando a comida é feita apenas para um.
Se “cozinhar faz com que estabeleçamos conexões e é, como diz antropólogos,
uma atividade que nos define enquanto seres humanos”11, se “nosso contato mais íntimo
com o meio ambiente natural ocorre quando comemos”,12 se “cozinhar é o ato com o
qual a cultura surge”13 e se “a alimentação tem uma função estruturante da organização
social de um grupo humano”14, então, tudo que já temos de tendências e tudo que irá
passar a existir, quando se trata da alimentação, com ou sem pandemias, sempre
finalizará no ato de cozinhar, seja de forma doméstica, no casulo, ou terceirizada na
indústria de alimentos e no food service.
Todo esse processo pelo qual estamos passando irá nos tornar mais fortes, pois
haverá avanços das ciências e grandes aprendizados, mesmo com as cicatrizes que

10 https://leonardoalcantara.github.io/covid-19-pt-br/ - Acesso em 18 de maio de 2020.

11 POLLAN, Michael. Cozinhar: Uma história natural da transformação. Rio de Janeiro: 1ª Ed.,
Intrínseca, 2014.
12 ARMESTO, Felipe Fernández. Comer: uma história. São Paulo: 1ª Ed., Editora Record, 2004.
13 LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido – Mitológicas I. São Paulo: 2ª Ed., Cosac Naif, 2004.
14 POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Alimentação. Santa Catarina: 1ª Ed., Editora da UFSC, 2006.

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marcarão nossa geração e o alto custo, humano e financeiro, que já estamos pagando.
Muitos acreditam que crises propiciam reflexões e redefinições, portanto, esse é um
bom momento para o ser humano continuar repensando a cadeia global de alimentos e
sua necessária sustentabilidade. Temos, entretanto, uma certeza: nossas cozinhas,
domésticas ou industriais, não serão abandonadas, pois, continuaremos seres humanos,
talvez melhores.

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AS INFLUÊNCIAS DA CULTURA
ALIMENTAR DOS IMIGRANTES
LIBANESES NA CONSTRUÇÃO
DA COZINHA TRADICIONAL
DE FLORIANÓPOLIS
Aldnei Luiz Silveira Filho 1
Thiago Gabriel Klauck 2
Silvana Graudenz Müller 3
Anita de Gusmão Ronchetti4

Introdução

Alimentação e cultura

A cultura, dentro da ampla área das ciências humanas, possui os mais variados
significados. Dentre estes se tem que a cultura é uma manifestação que, em seu processo
de construção, possui uma base, isto é, um alicerce, e uma continuidade. Continuidade
no sentido de que a cultura se transforma, se renova com o passar das gerações.
Montanari (2009) fortalece esse conceito abordando que

1
Graduando do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia do Instituto Federal de Educação Ciência
e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC).
2
Graduando do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia do Instituto Federal de Educação Ciência
e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC).
3
Professora de Gastronomia do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina
(IFSC); doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
4
Professora de Gastronomia do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina
(IFSC); mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).

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[...] as identidades culturais não estão inscritas no patrimônio genético
de uma sociedade, mas incessantemente se modificam e são
redefinidas, adaptando-se a situações sempre novas, determinadas
pelo contato de culturas e identidades diversas. 5

Fica claro, pois que a cultura não é uma manifestação engessada. Nessa
perspectiva de construção cultural, exerce a alimentação forte influência sobre a cultura,
sendo essa relação imprescindível para a identidade de um povo. Mais que isso: a
alimentação “[...] talvez seja o primeiro modo para entrar em contato com culturas
diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais fácil – mesmo que apenas na
aparência – do que decodificar-lhe a língua”.6
Carvalho (2002) aprofunda essa reflexão, ao trazer a cozinha como “[...] um
espaço de significação cultural, e a comida nela preparada possui uma narrativa própria
dessa cultura, um discurso social que a reproduz”.7

Cozinha Tradicional de Florianópolis

Ainda no contexto de identidade cultural, Montanari (2009) categoricamente


afirma que sem as trocas culturais não há identidade. 8 E isso se evidencia na formação
das “cozinhas” tradicionais as quais, dentre diversos fatores, nascem a partir do
“casamento” de culturas alimentares distintas. Quando populares e continuados, ou seja,
quando permanecem vivos por várias gerações, os saberes e fazeres de duas culturas
distintas agregada a uma matéria-prima resultam em um prato comum aos habitantes do
local. Exemplo disso é Florianópolis, que teve sua cozinha tradicional construída a
partir do śeculo XVII, segundo Müller (2012), alicerçada na assimilação dos saberes e
fazeres de diferentes culturas alimentares. 9

5
MONTANARI, Massimo (Org). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: SENAC,
2009. 255 p. ISBN 9788574481722, p.12.
6
MONTANARI, Massimo (Org). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: SENAC,
2009. 255 p. ISBN 9788574481722, p.11.
7
CARVALHO, Liliane Edira Ferreira. Do balcão à mesa: imigrantes e descendentes de sírios e libaneses
na construção de uma identidade na Grande Florianópolis (1910-1950). Dissertação de Mestrado. UFSC,
2002, p.108.
8
MONTANARI, Massimo (Org). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: SENAC,
2009. 255 p. ISBN 9788574481722.
9
MÜLLER, Silvana Graudenz. Patrimônio Cultural Gastronômico: Identificação, Sistematização e
Disseminação dos Saberes e Fazeres Tradicionais, 288 f. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do
Conhecimento) – Universidade Federal de santa Catarina, Florianópolis, 2012.
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Na antiga Meiembipe 10 ,habitavam os ameríndios Guarani, com uma cultura
alimentar primitiva e muitos conhecimentos relativos ao alimento que ingeriam. Com a
chegada do bandeirante Francisco Dias Velho e seus pupilos vicentistas, deu-se início,
de fato, à construção do que viria a se tornar a Cozinha Tradicional de Florianópolis.
Trocaram conhecimentos referentes a saberes e fazeres, técnicas e ingredientes com os
Guarani e formaram aquilo que se denomina construção de base. Como já mencionado,
a partir de uma base, há uma continuidade. Nessa continuidade, em 1746 chegam os
açorianos, colonização símbolo da Ilha de Santa Catarina, que chegou para deixar
marcas que jamais seriam esquecidas. Além da cozinha em si, se fez registrar na cultura
popular, na língua e na arquitetura. Também contribuíram para essa construção as
vítimas do regime escravocrata que pairava pelo Novo Mundo àqueles tempos: os
africanos.
Mello (1991) aborda registros da vinda de outras culturas para Florianópolis no
século XIX, como a alemã, a italiana, a grega, a síria e a libanesa e suas devidas
contribuições.11 Esta última será a abordada no presente estudo.

Libaneses: em busca por uma nova vida

No século XIX, os libaneses se viram em crise. Sob os domínios do Império


Turco-Otomano, regido por leis muçulmanas, seu país enfrentava uma situação
econômica e política difícil. Além disso, de acordo com Goldfeld (2012) a parcela cristã
da população sofreu por conta dos conflitos com drusos e muçulmanos. Em 1860 cerca
de doze mil cristãos morreram por conta da perseguição dos drusos. 12 Esse cenário
impulsionou a ideia de emigrar.
Nessa conjuntura, Curi (2016) retrata um momento histórico importante que
sinaliza um possível porquê do Brasil ser destino de migração: a visita de D. Pedro II ao
Líbano por volta de 1876.13 A postura do imperador foi de grande visibilidade junto à

10
Nome dado à Ilha de Santa Catarina pelos Carijós, antes de qualquer colonização, cujo significado é
“lugar acima do rio”.
11
MELO, Osvaldo Ferreira de. CLUB DOZE DE AGOSTO. INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DE SANTA CATARINA. História socio-cultural de Florianópolis. Florianópolis:
Clube Doze de Agosto: IHGSC: Lunardelli, 1991. 214p.
12
GOLDFELD, M. S..O Brasil, o Império Otomano e a sociedade internacional: contrastes e
conexões (1850-1919). Tese em História, Política e Bens Culturais. Fundação Getúlio Vargas. Rio de
Janeiro: FGV, 2012.
13
CURI, Guilherme Oliveira. A imigração árabe no Brasil: o Al Mahjar também é aqui. III Simpósio
de Pesquisa sobre Migrações, p. 9, 2016.
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população cristã, visto que, segundo Goldfeld (2012), ao visitar diversas instituições de
ensino cristãs, acabou por financiar os estudos de crianças cristãs pobres de Jerusalém,
“fazendo assim que muitos o admirassem e simpatizassem com este país tão distante,
mas que se mostrou tão amigo através de seu imperador”.14
Também contribuiu para a diáspora libanesa a possibilidade de recrutamento
para o exército otomano. Conforme Goldfeld (2012), tal fato aliado ao cenário das
inúmeras guerras amedrontava a população e servia de causa para não permanecer no
país.15
Os primeiros imigrantes tinham como plano inicial ficar no Brasil
temporariamente, com o propósito de crescer financeiramente e voltar para sua terra. E
muitos assim o fizeram. Todavia, sentiram dificuldades em permanecer em seu país de
origem ao “perceber que não havia tantas possibilidades para se prosperar como no
Brasil. Muitos constituíam então família lá e retornavam para o Brasil, se estabelecendo
aqui de forma definitiva”.16

Objetivos

Apresentado o objeto de estudo (imigrantes libaneses), delimita-se também o


espaço e o tempo: Centro de Florianópolis (onde povoaram), final do século XIX
(quando chegaram) a 1950, respectivamente. A partir deste escopo, surgem algumas
questões: quais seriam as contribuições para a construção da cozinha tradicional de
Florianópolis? Houve algum envolvimento entre as culturas alimentares? Ocorreu
alguma junção dos saberes e fazeres de ambas resultando em um produto que se
caracterizasse como parte da cozinha tradicional da Ilha? Responder esses
questionamentos são o objetivo dessa pesquisa a fim de contribuir para a identificação e
registro da Cozinha Tradicional de Florianópolis.

14
GOLDFELD, M. S..O Brasil, o Império Otomano e a sociedade internacional: contrastes e conexões
(1850-1919). Tese em História, Política e Bens Culturais. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: FGV,
2012, p.168.
15
GOLDFELD, M. S..O Brasil, o Império Otomano e a sociedade internacional: contrastes e conexões
(1850-1919). Tese em História, Política e Bens Culturais. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: FGV,
2012.
16
GOLDFELD, M. S..O Brasil, o Império Otomano e a sociedade internacional: contrastes e conexões
(1850-1919). Tese em História, Política e Bens Culturais. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: FGV,
2012.

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Metodologia

O estudo possui abordagem qualitativa de natureza aplicada e foi realizado em


duas etapas: num primeiro momento efetuou-se um levantamento bibliográfico em
livros, artigos e dissertação acerca do referido tema, do qual se obteve subsídios para a
segunda etapa, que consistiu em uma coleta de dados por meio de entrevistas com
integrantes das famílias imigrantes libanesas. A síntese das informações coletadas nas
respectivas etapas permitiu a fundamentação dos resultados. É importante ressaltar que
se trata de uma pesquisa que faz parte de um projeto maior, o qual visa realizar a
identificação e sistematização dos saberes e fazeres da Cozinha Tradicional de
Florianópolis, com vistas a sua disseminação e consequente preservação como
identidade histórica e cultural.

Figura 1: Grupo de Pesquisa em Patrimônio Gastronomia e Cultura (PGC) com


descendentes de libaneses.

Fonte: os autores (2019)

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Figura 2: Integrantes do PGC com uma descendente de libaneses.

Fonte: os autores (2019)

Resultados e discussão

A diáspora libanesa em Florianópolis deu início na última década do século


XIX. Uma vez instalados, rapidamente integraram-se à sociedade da Ilha e não tardaram
a absorver os hábitos alimentares locais. Constatou-se, com base nas análises
bibliográficas e entrevistas realizadas, que o casamento entre nativos e imigrantes
libaneses, bem como a atuação de domésticas brasileiras no lar destes “novos
habitantes” criaram o cenário ideal para a inserção de preparações brasileiras 17 no dia a
dia dos imigrantes e de seus descendentes. A transmissão dos saberes e fazeres foi
mútua e as culturas alimentares conheceram uma a outra. Carvalho (2002) corrobora
com este pensamento ao assinalar que a matriarcas libanesas tinham prazer em ensinar
as preparações da família às noras e criadas brasileiras, ao passo que aprendiam a
culinária local. 18
Entretanto, mesmo com essa relação de troca de conhecimentos que existiu entre
as culturas, até o atual estágio da pesquisa não foi possível afirmar que, de fato, houve
uma união dessas culturas alimentares que tenha resultado em um prato tradicional.
Uma única preparação cogitou essa possibilidade: o quibe de camarão, que unira
técnicas e ingredientes da cultura libanesa, como o triguilho, as especiarias e o hortelã

17
Alguns exemplos: pirão escaldado, peixe ensopado, camarão com chuchu e peixe cozido no feijão.
18
CARVALHO, Liliane Edira Ferreira. Do balcão à mesa: imigrantes e descendentes de sírios e
libaneses na construção de uma identidade na Grande Florianópolis (1910-1950). Dissertação de
Mestrado. UFSC, 2002.

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ao camarão, ingrediente abundante do litoral catarinense que viria substituir as carnes
ovina e bovina presentes na versão tradicional libanesa. Contudo, ainda que represente a
junção das culturas alimentares libanesa e florianopolitana, essa preparação não se
caracteriza como tradicional, pois acabou por não se popularizar, além do que não foi
transmitida às gerações posteriores.

Considerações finais

Com a pesquisa em curso, o presente estudo pôde concluir que os imigrantes


libaneses foram sim influenciados pelos hábitos alimentares de Florianópolis, enquanto
que sua cultura alimentar também pôde ser sentida e reconhecida pelos povos da Ilha.
No entanto, alheio a tentativas, não houve e nem há algum produto, a se considerar
tradicional, que registre a presença das duas culturas agregadas, isto é, a continuidade da
construção da cozinha tradicional de Florianópolis não contou com influências dos
hábitos alimentares e da cozinha libanesa.
É importante ainda frisar as dificuldades de se encontrar informações referentes
à cultura libanesa em Florianópolis, principalmente no que diz respeito a seus hábitos
alimentares enquanto imigrantes. Sendo a maioria dos registros provenientes da tradição
oral, ocorreu que as novas gerações pouco absorveram os costumes de seus avós e
bisavós bem como pouco sabem como decorreu a chegada destes nas novas terras.
Assim sendo, se evidencia a importância de estudos acerca dessas culturas inseridas em
um contexto histórico, cultural e social diferente aos do seu país, a fim de, por meio da
identificação e registro, preservar e valorizar essas memórias.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
COMIDA, CULTURA E
COMUNICAÇÃO NO
MASTERCHEF DA AMÉRICA
LATINA
Daira Martins Botelho 1

Introdução – pesquisa e métodos

Os temas que podem ser abordados em relação à alimentação, cultura e


comunicação são inúmeros! Vários autores já se debruçaram sobre os temas, fazendo
intersecções entre eles a fim de buscar entendimento sobre suas influências e
importância em âmbito social.
Os dados aqui apresentados fazem parte de uma tese de doutorado que teve
como objetivo analisar a relação da comida e da cultura culinária presente nos meios de
comunicação, usando, para tanto, um programa de relevância internacional chamado
MasterChef. A escolha do programa não foi simples, pois, apenas no Brasil, existem
vários formatos relacionados à culinária e que estão presentes em todos os meios de
comunicação: receitas passadas pelo rádio, suplementos culinários nos jornais
impressos, os diversificados programas exibidos na televisão e, ainda, a infinidade de
conteúdo disponível na internet – que vão desde receitas a sites específicos e canais nas
redes sociais e plataformas de streaming.
Com essa enorme gama de produtos midiáticos sobre culinária, surgiu uma
inquietação a respeito do conteúdo veiculado nesses programas, principalmente em se
tratando de cultura culinária, hábitos alimentares e de que maneira esses eram retratados.
As dúvidas que permeavam as produções eram muitas e, por isso, definiu-se o reality
show culinário para compor o escopo de pesquisa.

1
Doutora (2018) em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Mestra (2012) em
Comunicação Midiática pela UNESP, Especialista (2013) em Mídia, Informação e Cultura pela
Universidade de São Paulo (USP), Bacharel (2008) em Comunicação Social – Jornalismo pela UNESP.
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade de Franca (UNIFRAN). Integrante do grupo de pesquisa
PCLA (Pensamento Comunicacional Latino-Americano). Professora do curso de Publicidade na
Universidade Paulista (UNIP). E-mail: dairarmb@yahoo.com.br.
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E a escolha do MasterChef se deu pelo impacto causado pela produção no Brasil
a partir de 2014. O programa teve (e ainda tem) consideráveis índices de audiência, se
tornou assunto nas redes sociais e nas rodas de conversa, além de estabelecer um novo
hábito televisivo: a exibição do programa toda terça-feira, a partir das 22h (atualmente
exibido às 22h45), também fez com que muitas pessoas passassem a se reunir para
assistir o programa e, inclusive, cozinhar. A atração mostrou-se relevante ao longo de
suas temporadas e, mais que isso, fez com que houvesse uma curiosidade acerca do
formato e sua abrangência.
Na América Latina, o MasterChef já esteve presente em seis países: Argentina,
Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru. No mundo, são 58 territórios, com mais de 300
milhões de espectadores2, tal fato fez com que o programa entrasse para o livro dos
recordes no ano de 2017 como o formato de televisão de culinária mais bem sucedido
do mundo3.
Sendo assim, tem-se o MasterChef como corpus para responder ao problema de
pesquisa que se define por: de que maneira a identidade de um povo é mostrada no
programa, pois a cultura da mídia também é responsável pela formação das identidades
sociais, nesse caso, por meio de sua culinária.
Foram analisados os primeiros programas exibidos nos países latinos, a começar
pelo Peru, em 2011, seguido dos outros, que iniciaram suas produções entre os anos de
2014 e 2015, por esse motivo, alguns apresentam resultados obtidos de duas temporadas,
não apenas daquela que foi sua estreia. Outro ponto relevante em termos metodológicos
foi a seleção dos pratos e ingredientes. Somente foram considerados para a pesquisa
aqueles solicitados pela produção do programa para as provas a serem realizadas.
Explica-se: indicação de algum ingrediente dito “nacional”, um produto ou prato “local”
e / ou “regional”, por exemplo. Com isso, buscou-se apurar o que é entendido pela
atração como nacional ou representante de sua cultura culinária.

2
MASTERCHEF. Disponível em: http://www.masterchef.com/. Acesso em: jan/2018.
3
TODO TV NEWS (a). Masterchef snatches Guinness Record. 18 out. 2017. Disponível em:
http://www.todotvnews.com/news/masterchef-snatches-guinness-record.html. Acesso em: jul/2018.
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O que a comida nos diz

Em um estudo realizado com mulheres polonesas americanas, Hauck-Lawson


(1998)4 observou essas pessoas, seus hábitos alimentares e conversou com elas durante
a preparação, o consumo e a celebração da qual a comida fazia parte. O objetivo da
pesquisadora era entender de que maneira a alimentação – e todo o processo que existe
em torno dela, atuava de maneira simbólica, com especificidades de acordo com cada
grupo ou família, bem como ouvir a “voz da comida”. O resultado foi a emergência de
uma voz forte, que lhe disse muito sobre alguns assuntos, entre eles estavam: “(...)
comunidade, identidade étnica, economia, saúde e nutrição, gênero e papeis sociais e
tradições e costumes alimentares.” (HAUCK-LAWSON, 1998, p. 22) 5 . Como a
pesquisadora é da área da nutrição, suas conclusões giraram em torno de questões da
saúde, priorizando a análise dos hábitos alimentares para a melhora da alimentação de
um grupo, por exemplo.
Mas, no que diz respeito a essa pesquisa, o estudo de Hauck-Lawson (1998)
chama a atenção justamente pelo seu título – Whenfooodisthe voice, pois busca ouvir a
voz da comida e entender, a partir dela, o entorno no qual essa se apresenta. Sendo
assim, tomando as palavras da autora, “emprestar um ouvido sensível à voz da comida
pode fornecer indicações sobre o efeito da biologia e fatores sociais sobre o bem-estar
de uma pessoa e revelam muito mais envolvimento emocional nos alimentos do que
pode ser comumente considerado e aplicado na prática.” (HAUCK-LAWSON, 1998, p.
27)6. Dessa forma, a autora mostra indícios consistentes de que o comer não é apenas
um ato – como já foi mostrado nos capítulos anteriores desta pesquisa, mas reitera que a
comida pode contar muito mais do que se imagina: ela produz informações, possui
enorme complexidade principalmente se observada dentro de um contexto específico, e,
finalmente, estabelece-se como um canal de extremo poder no que tange à expressão de

4
HAUCK-LAWSON, Annie S. When fooodis the voice: a case study of a Polish-American woman.
Journal for the Studyof Food and Society, Vol. 2, No. 1, p. 21-28, 1998. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.2752/152897998786690592. Acesso em: jun/2016.
5
Tradução nossa. Do original “[...] community, ethnic identity, economics, health and nutrition, gender
and social roles, and food traditions and customs.”. HAUCK-LAWSON, Annie S. Whenfooodisthe
voice: a case studyof a Polish-American woman. Journal for theStudyof Food and Society, Vol. 2, No. 1,
p. 21-28, 1998. Disponível em: http://dx.doi.org/10.2752/152897998786690592. Acesso em: jun/2016.
6
Tradução nossa. Do original: “Lending a sensitive ear to the food voice may provide insights into the
effect of biology and social factors on a person's well being and may revealfar more emotional
involvement in food than may be commonly considered and applied in practice.”. HAUCK-LAWSON,
Annie S. When fooodis the voice: a case study of a Polish-American woman. Journal for the Study of
Food and Society, Vol. 2, No. 1, p. 21-28, 1998. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.2752/152897998786690592. Acesso em: jun/2016.
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significados (HAUCK-LAWSON, 1998)7, o que, neste caso, optou-se, por bem, chamar
de comunicação.
O estudo de Hauck-Lawson foi uma das bases para a “comida narrativa”
proposta pela psicóloga Denise Amon, que reforçou o argumento de que a comida pode
ser uma contadora de histórias, por meio da análise de receitas de sua família e de
menus de um bistrô, onde pôde participar do dia a dia e conhecer o cotidiano de uma
cozinha profissional. Por meio de suas vivências na cozinha e na pesquisa, a autora
chegou à conclusão de que

A comida constitui um conjunto de saberes sociais, não apenas no que


concerne às técnicas e aos processos de arrecadação, preparação,
distribuição, consumo e descarte, mas, sobretudo, porque é expressão
de saberes do senso comum mais abarcativos e mais profundos a
respeito das pessoas, suas vidas, modos de ser, sentir e pensar o
mundo e suas relações sociais. (AMON, 2014, p. 182)8

Os saberes sociais aos quais Amon se refere são essenciais para compreender o
importante papel que a comida desempenha na sociedade, seja por seu caráter biológico
– todo homem precisa se alimentar para sobreviver, seja por todo o entorno de
complexidade que a envolve, como os quesitos apontados por Hauck-Lawson (1998)
anteriormente. Assim, quando a autora afirma que a comida é expressão, trata-se, mais
uma vez, de uma forma de comunicar.
Até aqui, entende-se que a comida tem voz e produz uma narrativa, mas, para
exemplificar seu significado e ressignificações, lança-se mão da teoria da
Folkcomunicação, mais propriamente do objeto de estudo responsável por sua origem:
os ex-votos. O processo observado por Luiz Beltrão na década de 1970 mostrou-se mais
à frente da comunicação oral ou da escrita, o que o jornalista e pesquisador fez foi tentar
entender o que aqueles objetos queriam dizer. De certa forma, Beltrão ouviu a voz dos
ex-votos e foi capaz de lê-los para compreender seu contexto e atestar sua
funcionalidade diante das situações que buscavam representar.
Para elaborar a teoria, Beltrão atentou-se a uma forma diferente de comunicar
que sempre existiu, mas que foi abafada por conta da grande expansão dos meios de
comunicação de massa à época. O autor afirmou que se tratava de “um vocabulário

7
HAUCK-LAWSON, Annie S. When fooodis the voice: a case study of a Polish-American woman.
Journal for the Studyof Food and Society, Vol. 2, No. 1, p. 21-28, 1998. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.2752/152897998786690592. Acesso em: jun/2016.
8
AMON, Denise. Psicologia social da comida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
150
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escasso e organizado dentro de grupos de significados funcionais próprios.”
(BELTRÃO, 2004, 38-39)9 , modos esses que podem ser vistos até hoje, não com a
dicotomia urbana e rural tão em evidência como foi a partir do final da década de 1960,
mas que envolve as instâncias de poder comunicacional vigente, os grandes
conglomerados de comunicação e mesmo aqueles que não têm acesso aos meios
alternativos para se informar.
Cabe dizer que a existência de um processo fokcomuncacional em relação aos
ex-votos foi percebida, como ainda é nos estudos realizados atualmente, e que não se
trata de um grito que se dá por meio dos objetos. As cruzes instaladas nas rodovias por
conta da morte um ente querido, acaba figurando como uma homenagem, uma forma de
relembrar a pessoa que já faleceu; da mesma forma estão os ex-votos oferecidos em
retribuição a uma graça alcançada – é um pagamento de promessa – ambos os exemplos
mostram que, não necessariamente, seus emissores tenham tido a intenção de comunicar
algo, mas esses objetos, por suas cargas simbólicas, pelo conhecimento compartilhado
entre as pessoas que os observam, possibilitam uma leitura aprofundada que dá, assim
como aconteceu com a comida, indicativos de realidades que são, na verdade, muito
maiores do que os objetos ou ato em si.
Um outro exemplo está no livro Elogio de labasura, de Fernando Gil Villa
(2007). Apesar de o autor fazer uma análise sociológica do papel dos catadores na
chamada “cultura do lixo”, ele ainda faz uma referência à leitura do lixo, ou seja, o que
os objetos e a forma como se encontram no lixo de uma pessoa podem dizer sobre seus
hábitos, situação econômica, pois “O lixo não apenas reflete o mundo externo, a
realidade caótica que nos desafia como o horizonte eterno, mas também o mundo
interno e, nesse sentido, retorna para deixar uma marca nos processos de identidade.”
(VILLA, 2007, p. 116)10. Dessa forma, Villas deixa claro que o lixo atua como uma
amostra do que cada indivíduo traz externa e internamente, sendo esse segundo item
muito mais significativo, levando em consideração a individualidade e o caráter íntimo
que o envolve.
E é do mesmo modo que, aqui, vê-se a comida: não é algo que grita, não é
somente para comer, na maioria das vezes não se trata de uma comunicação intencional,

9
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: UMESP, 2004.
10
Tradução nossa. Do original: “La basura no solo refleja el mundo exterior, la realidade caótica que
nos desafia como el eterno horizonte, sino también el mundo interno y em este sentido, vuleve a dejar una
marca em lós procesos de identidad.”. VILLA, Fernando Gil. Elogio de labasura: la resistencia de los
excluídos. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2005.
151
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ela possui vários processos que a envolvem e, por meio deles, é possível compreender
muito além dos ingredientes que estão envolvidos em determinada preparação. Tais
processos foram observados por Michel de Certeau, que afirma que “As práticas
culinárias se situam no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e
mais desprezado.” (CERTEAU, 1966, p. 218)11.
Se a comida já diz muita coisa apenas quando está nos pratos, nas casas e nos
cotidianos da sociedade, quando ela está presente em um meio de comunicação de
grande alcance – como a televisão – essa voz se expande e pode mostrar o que está nas
entrelinhas para as pessoas.

Culinária latina no MasterChef

Para mostrar as culinárias presentes em cada edição dos programas da América


Latina analisados na pesquisa, coube inserir os dados encontrados em gráficos que
mostram – de maneira quantitativa – as culinárias representadas.
O Peru teve a primeira experiência de ter o MasterChef em sua programação em
todo o continente, no entanto, a atração não passou de 15 episódios e teve apenas uma
temporada. Durante os meses em que ficou no ar, ele levou aos participantes desafios
que versaram, em sua maioria, sobre a culinária peruana, bem como os ingredientes
originários e mais utilizados no país.
O MasterChef peruano foi um dos mais representativos no que diz respeito à
exibição de culinária nacional, como pode ser visto no Gráfico 1. Tal representatividade
vem do chef responsável pela apresentação do programa, Gastón Acurio, e seu objetivo
de contribuir para a promoção da culinária mexicana, além de uma legitimação interna
que era buscada na época quando o programa foi exibido, em 2011. Em 15 episódios,
houve a solicitação da produção de pratos peruanos em todos eles, ou seja, praticamente
uma preparação nacional por capítulo.
Existe somente uma referência a uma culinária estrangeira: os tacos, que são
reconhecidamente mexicanos. Essa é a única alusão a outro tipo de comida que
apareceu no MasterChef Peru.

11
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Trad. Ephraim F. Alves e Lúcia
Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
152
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Gráfico 1. Representatividade da culinária apresentada na 1ª temporada do MasterChef Peru

1
Culinária Peruana
15 Culinária Mexicana

Fonte: Da autora, 2018.

Foram três anos até a aparição de mais edições na América Latina, somente em
2014 mais três países receberam a primeira versão do programa: Argentina, Brasil e
Chile. Cada um com sua particularidade, esses países passaram a exibir a franquia e
conseguiram imprimir uma personalidade que pode ser vista de acordo com as
culinárias apresentadas em cada episódio.
Na análise do MasterChef Argentina, observou-se uma determinada tendência na
primeira temporada, que trouxe oito pratos argentinos e mais três nacionalidades:
italiana, francesa e inglesa. Apesar do número de preparações nacionais terem sido
maiores, quando aparecem as cozinhas estrangeiras, há uma predileção pela comida
feita em países do hemisfério norte, com destaque para França e Inglaterra, com dois
pratos cada uma.

Gráfico 2. Representatividade da culinária presente na 1ª temporada do MasterChefArgentina

1 Culinária Argentina
2
Culinária Italiana
2 8
Culinária Francesa
Culinária Inglesa

Fonte:Da autora, 2018.

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Gráfico 3. Representatividade da culinária presente na 2ª temporada do MasterChef Argentina

Culinária Argentina

Culinária
Estadunidense
1 Culinária Italiana
1
1 4
Culinária Japonesa
4 2
2 2
Culinária Francesa

Culinária Alemã

Culinária do Oriente
Médio
Culinária Peruana

Fonte: Da autora, 2018.

Já na segunda temporada, foi possível verificar uma preocupação maior em abrir


o leque de possibilidades e de culinárias a serem mostradas durante o programa.
Diferentemente do que foi apresentado na primeira, várias outras culinárias
estiveram presentes, foram sete, além da argentina. A Europa é a maior representada,
com preparações da França, Itália e Alemanha, também há a presença da estadunidense.
O MasterChef Argentina traz apenas uma culinária latina para compor o menu
apresentado durante toda a segunda temporada: a peruana. Essa representação revela
que, mesmo quando há a existência da possibilidade de variação da apresentação de
culinárias, há uma predileção, do MasterChef argentino, pela comida produzida na
Europa e nos Estados Unidos (Gráfico 3).
De acordo com os dados é possível notar que existiu uma primazia por pratos
argentinos – originais ou adaptados à realidade do país, que resultou em grande parte
das solicitações de preparos nas provas. Em segundo lugar está a culinária francesa,
considerada o berço da gastronomia do mundo e um dos principais referenciais do
“comer bem” e da “alta gastronomia” mundial. Vale destacar que apareceram dois
pratos da culinária japonesa – em crescente expansão nos últimos anos e um do Oriente
Médio, que não aparecem tanto quando se fala na institucionalizada gastronomia
internacional.

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A primeira exibição do programa no Brasil teve um caráter semelhante ao
ocorrido na segunda temporada argentina: tentou mostrar mais da cozinha internacional,
o que, ao longo de suas temporadas, foi se tornando uma marca. Em 2014 o MasterChef
teve a quantidade de pratos brasileiros praticamente equiparada com as culinárias
estrangeiras, como delineado no Gráfico 4.

Gráfico 4. Representatividade da culinária na 1ª temporada do MasterChefBrasil

Culinária Brasileira

Culinária Francesa
1 1 1
Culinária Italiana
1 7
2
Culinária
Estadunidense
Culinária Argentina

Culinária Oriental

Fonte: Da autora, 2018

A comida latina aparece timidamente, neste caso representada pela Argentina, e


a França é a segunda maior em preparações, com dois pratos. A culinária francesa
aparece por conta de sua tradição, mas também pode ser justificada pela presença de um
chef francês no júri do programa.
A internacionalização do MasterChef Brasil fica muito mais evidente na segunda
temporada, quando o número de preparações de cunho estrangeiro ultrapassa a culinária
brasileira: são apenas sete pratos brasileiros contra 15 estrangeiros. Dessas 15 cozinhas
internacionais, somente duas delas são latinas: a mexicana e a peruana, o que mostra,
mais uma vez que, na versão brasileira, o perfil que começou a ser delineado na
primeira edição, se confirma na segunda. Essa visualização fica mais evidente no
Gráfico 5.

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Gráfico 5. Representatividade da culinária brasileira na 2ª temporada do MasterChef Brasil

Culinária Brasileira

Culinária Francesa

Culinária Italiana
1
1
1 1
1 7 Culinária Alemã

2
2 Culinária Peruana
2 1 2
1
Culinária
Estadunidense
Culinária Inglesa

Culinária Mexicana

Culinária Africana

Fonte: Da autora, 2018.

Considerando as duas temporadas analisadas para esta pesquisa, é interessante


notar a tendência da internacionalização do MasterChef Brasil, que apresenta a maior
quantidade de culinárias representadas no programa entre todas as edições exibidas na
América Latina. Fica claro o caminho escolhido pela produção do programa acerca do
conteúdo a ser cobrado dos participantes nas provas e, também, a identidade do
MasterChef Brasil mostrada àqueles que o assistem.
O terceiro país a receber o MasterChef no ano de 2014 foi o Chile, um país que
conseguiu inserir a sua cultura alimentar, mas, aparentemente, optou por uma exibição
internacional, porém equilibrada das culinárias.
Na primeira temporada, delineada no Gráfico 6, houve um empate entre a
chilena e a francesa, com duas preparações cada, seguidas da italiana e da japonesa,
com um prato cada uma. Não houve nenhuma aparição da culinária latina, além da do
Chile, e isso se mantém nas duas temporadas analisadas, mostrando um olhar voltado
para os Estados Unidos, países da Europa e até para o Japão.
O equilíbrio é expressado de maneira mais evidente na segunda temporada,
quando houve o mesmo número de preparações de cada culinária apresentada, como
demonstrado no Gráfico 7.

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Gráfico 6. Representatividade da culinária presente na 1ª temporada do MasterChef Chile

1 2 Culinária Chilena
1 Culinária Francesa

2 Culinária Japonesa
Culinária Italiana

Fonte: Da autora, 2018.

Gráfico 7. Representatividade da culinária apresentada na 2ª temporada do MasterChef Chile

Culinária Chilena

Culinária Francesa
1 1

1 1 Culinária Oriental
1
Culinária Italiana

Culinária
Estadunidense

Fonte: Da autora, 2018.

O MasterChef Chile tem uma peculiaridade: foi a única edição exibida na


América Latina que não apresentou nenhuma culinária latina, além de sua própria.
Desta vez percebe-se que não houve o reconhecimento da culinária de seus vizinhos,
por outro lado, observa-se, pelos números, que a França está representada igualmente
em relação à culinária chilena e que, depois dela, aparece outro modelo europeu: a
comida italiana.
Em 2015 foi exibida a primeira temporada da versão colombiana do reality. Em
18 episódios houve cinco preparações nacionais, mas, em números, a culinária
estrangeira mostrou-se maior, foram oito, no total.

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Gráfico 8. Representatividade da culinária apresentada na 1ª temporada do MasterChef Colômbia

Culinária
Colombiana
Culinária Italiana

Culinária Chilena

1 1 1
5 Culinária Espanhola
1
1
1 2 Culinária
Estadunidense
Culinária Inglesa

Culinária do Oriente
Médio
Culinária Peruana

Fonte: Da autora, 2018

Os dados do Gráfico 8, mostram que mais da metade do programa esteve voltada


para a solicitação de preparos estrangeiros. Mas uma observação é pertinente: em
nenhum dos capítulos houve a presença da culinária francesa, referencial na maioria das
edições exibidas no restante dos países da América Latina. Outro ponto importante é a
presença de duas culinárias latinas: a chilena e a peruana, mostrando uma maior
representatividade, mas que, porém, não é apresentada de maneira tão significativa
quanto às demais.
O último representante da franquia a ser analisado foi exibido no México,
também em 2015, e foi o que pode ser chamado de 100% produto nacional, tanto em
relação aos chef’s, quanto no que diz respeito às preparações solicitadas no programa.
Como mostra o Gráfico 9, esse foi o primeiro MasterChef que não apresentou
nenhuma culinária estrangeira em toda a temporada, de 17 preparos, 17 foram sobre
ingredientes, técnicas ou pratos mexicanos. No país, a relevância da culinária pode ser
vista com ênfase, já que tomou conta de todo um programa que é uma franquia
estrangeira, além de fazer parte do comentário dos chef’s a explicação, origem e
importância de cada elemento para a cultura no México.

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Gráfico 9. Representatividade da culinária apresentada na 1ª temporada do MasterChef México

Culinária Mexicana
17

Fonte: Da autora, 2018

Considerações

De modo geral, os programas exibidos na América Latina, de acordo com os


dados, buscaram mostrar a culinária nacional, mas alguns colocam maior ou menor
ênfase nesse processo, o que confere uma possibilidade de adaptação das franquias ao
que a produção opta por utilizar para realizar as preparações, os ingredientes ou mesmo
os pratos finais. Sendo assim, fica claro que essa é uma decisão que vai ser tomada de
acordo com o que cada versão deverá seguir e que tipo de culinária pretende mostrar.
Na edição mexicana, por exemplo, não há dúvida de que o posicionamento é de mostrar
a culinária do país, bem como suas técnicas e ingredientes. Em uma conversa 12 com a
chef Betty Vázquez, esse direcionamento fica muito claro, pois a jurada do MasterChef
afirma que “é MasterChef México por isso, pedimos coisas mexicanas, cada competidor
decide o que fazer e o programa é de entretenimento e se, por outro lado, leva cultura,
todos felizes”13.
O único programa na contramão da busca por esse reconhecimento e divulgação
da cultura nacional é o MasterChef Brasil, pois esse foi o país no qual houve a
apresentação de mais culinárias estrangeiras do que a brasileira. Considerando o fato de
que a televisão pode ser uma vitrine para a cultura de um país e do mundo, tendo como
um vetor de comunicação a comida que é apresentada, cabe ressaltar aqui que, no caso
brasileiro, o que está sendo evidenciado no programa é realmente a culinária
internacional.
A presença de conteúdo estrangeiro nas produções latino-americanas foi outro
ponto observado e que, mais uma vez, revelou o olhar voltado para o hemisfério norte.
12
Entrevista realizada via internet no mês de julho de 2018.
13
Tradução nossa. Do original: “Es Master Chef México por eso pedimos cosas mexicanas, cada
concursante decide que hacer y el programa es de entretenimiento y si aparte culturiza, todos felices,”.

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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
A culinária dos Estados Unidos integrou praticamente todos MasterChef’s – com
exceção de Peru e México, pelo fato de que sua cultura fast food chegou a praticamente
todo o mundo. A Europa está representada com muitos países, mas aqueles que se
destacam são França e Itália. A influência latina não foi encontrada com a mesma
intensidade da europeia e estadunidense.
Na maioria das produções não existem culinárias latinas diferentes da do país
onde o MasterChef é exibido. Isso demonstra que há um mínimo reconhecimento das
comidas entre os países. Martín-Barbero (2004)14 reafirma tal hegemonia no campo das
pesquisas em comunicação, e pode-se constatar que o olhar para o que “vem de cima” é
uma constante e permeia diferentes âmbitos da sociedade.
Como conclusão, pode-se afirmar que, enquanto difusor por meio da
midiatização, o MasterChef na América Latina, de modo geral, comunica uma cultura
alimentar e identidades que estão muito distantes das realidades existentes.
Diferentemente do México e do Peru, que conseguiram imprimir uma sólida marca do
país na produção, Argentina, Brasil, Chile e Colômbia continuaram olhando para o
hemisfério norte.
Obviamente, não se trata de impor uma exclusividade nacionalista exacerbada
no programa, mas a cultura latina é muito rica e poderia ser feita uma maior exibição de
conteúdo local, e, mais ainda, uma interação realmente significativa entre as nações da
América Latina que, assim como nos estudos de comunicação, não estabelece um
diálogo por meio das culinárias.
Para aqueles que não buscam a cozinha como ambiente profissional, o
MasterChef atua como uma vitrine dessa desenvolvida cultura culinária (CARNEIRO,
200315; CASCUDO, 201116), já que é exibido em um veículo de comunicação que faz
parte da chamada cultura da mídia, que “[...] fornece o material que cria as identidades
pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocaptalistas contemporâneas,
produzindo uma nova forma de cultura global” (KELLNER, 2001, p. 9)17.

14
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo – travessias latino-americanas da comunicação na
cultura. Trad. Fidelina González. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
15
CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus,
2003.
16
CASCUDO, Câmara. História da alimentação no Brasil. 4ª ed. São Paulo: Global, 2011.
17
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o
pós-moderno. Trad. Ivone Castillo Benedetti. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

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Ao enquadrar os programas culinários nessa seara, pode-se considerar as
palavras de Hall (2013) em relação ao processo de produção para a televisão, que
constitui uma via de mão dupla, que cria e reproduz representações sociais: as estruturas
de produção “[...] tiram assuntos, tratamentos, agendas, eventos, equipes, imagens da
audiência, “definições de situação” de outras fontes e outras formações discursivas
dentro da estrutura sociocultural e política mais ampla da qual são uma parte
diferenciada.” (HALL, 2013, p. 431) 18 , ou seja, essa cultura da mídia também é
responsável pela formação das identidades sociais.Sendo assim, considera-se que ao
servir como janela para muitas pessoas, o MasterChef dá amostras das culinárias que
existem no mundo, porém, há exemplos que tiveram sucesso ao colocar em exposição o
local, não de uma maneira caricata ou estereotipada, mas com a intenção de mostrar a
culinária nacional, reforçando sua importância como ferramenta de afirmação e
reconhecimento da cultura e identidade de um país.

18
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende (et
al.). 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
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O PROTAGONISMO DO MILHO
EM UMA FEIRA DE
PRODUTORES: PRÁTICAS,
PROCESSOS E SABERES
Dra. Paola Stefanutti
Docente do Instituto Federal do Paraná – IFPR

Dr. Valdir Gregory


Professor Sênior da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE

Dr. Ernesto di Renzo1


Docente da Università degli Studi di Roma
Tor Vergata

Introdução

A feira é um espaço de comida que envolve fatores sociais, culturais e


econômicos. Estes espaços são fluídos e estão em constante construção no horário de
funcionamento, em que pessoas, ingredientes, feirantes, práticas, modos de fazer,
aromas, cores, texturas, mercadorias e clientes se encontram e se desencontram. São
lugares onde ocorrem, além da compra de produtos, conversas informais, trocas de
conhecimentos e sociabilização.
Esta escrita faz parte de uma pesquisa maior que estuda práticas cotidianas
alimentares da fronteira Brasil-Paraguai-Argentina com suas respectivas cidades Foz do
Iguaçu, Ciudad del Este e Puerto Iguazú, através de vivências em feiras e assim busca
contribuir para a reflexão das culturas alimentares deste território.
Neste recorte, objetiva-se identificar em torno de um único produto – o milho –
práticas, processos e saberes tradicionais em uma feira agroecológica no Paraguai. As
práticas observadas e registradas vão desde o alimento in natura, processos de

1
.PaolaStefanutti. Prof. Dra. Docente do Instituto Federal do Paraná – IFPR; Dr.Valdir Gregory Professor
Sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; Dr.Ernesto di Renzo. Docente da
Università degli Studi di Roma Tor Vergata.

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manipulação até a transformação do mesmo em uma das preparações gastronômicas
mais expressivas das mesas paraguaias: a sopa paraguaia.
Esta tríplice fronteira possui fluxos de pessoas, capitais e mercadorias bem
definidos e instituídos. A cidade paraguaia Ciudad del Este está interligada à cidade
brasileira de Foz do Iguaçu por meio do turismo por conta das compras de eletrônicos,
perfumes, maquiagens, materiais de pesca, entre inúmeros outros, porém, a “venda” da
comida paraguaia ou de ingredientes e produtos alimentícios do Paraguai não aparece de
forma evidenciada. Ou seja, não é registrada tanto quanto é praticada, é mais
silenciada.2
A feira analisada é a Feria de Ciudad del Este, uma feira de produtores e
agroecológica, também denominada como Central de Produtores e Feirantes
Hortigranjeiros (CPFH) do Alto Paraná. O Paraguai está dividido em departamentos e
dentre eles está o Alto Paraná. Esse departamento, cuja capital é Ciudad del Este, é
composto por vinte um distritos, destes dezoito participam da feira.
A feira agroecológica é um mercado de agricultores/produtores da própria região,
em que quem vende é também quem produz, em uma cadeia curta de produção, sem
intermediários. O produto vendido é local, é da região, é do território. Segundo a
organização não governamental (ONG) Red Rural de Organizaciones Privadas de
Desarrollo ou apenas Red Rural (2016), esta é considerada uma das experiências
agroecológicas mais expressivas do Paraguai, onde trabalham cerca de 380 a 400
produtores.3
Este tipo de mercado de venda direta de pequenos produtores tem sido
considerado como uma forma sustentável de comercialização de produtos alimentares,
visto que favorece o pequeno produtor, dando-lhe maior possibilidade de receber
financeiramente de forma mais justa pelo seu trabalho, além de possibilitar a
continuidade do trabalho no campo para as gerações futuras. Cielo &Zanini (2015), em
estudos sobre pequenos produtores de uma feira no Rio Grande do Sul, afirmam: “É a
partir da exposição, venda e consequentemente do escoamento de suas produções que os

2
STEFANUTTI, Paola. Das feiras às culturas alimentares (no plural) da tríplice fronteira. [tese]. Foz do
Iguaçu: Universidade Estadual do Oeste do Paraná; 2020.
3
RURAL, Red. A Central de Produtores e Feirantes Hortigranjeiros no Paraguai. In: Revista
Agriculturas, v.13, n.3, p.56-64, 2016.
163
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camponeses ali presentes fazem da feira um espaço que possibilita sua continuidade
enquanto camponeses”. 4
A Feria de Ciudad del Este ocorre de quarta-feira a sexta-feira, sendo que na
quarta-feira funciona de 12:00 às 21:00 horas, ou até haver clientes, na quinta, nos três
turnos e na sexta se encerra às 12:00 horas. O primeiro dia de feira é o mais abastecido e
movimentado, diminuindo conforme o decorrer dos dias.
Pelo horário de funcionamento, pelas distâncias dos distritos – alguns se situam
a mais de 150 km da Feria – e pelo custo do deslocamento, a maioria dos produtores
dorme na própria feira. Alguns distritos se organizam e pagam ônibus para o transporte
dos produtores. Ao longo da feira era possível ver, atrás das bancas, atrás dos
produtores, colchões dobrados ao meio. O galpão se torna um grande dormitório depois
do fechamento da Feria.
Os olhares a essa feira, assim como os percursos desta pesquisa foram sendo
moldados através de indícios etnográficos em práticas do cotidiano. É uma mistura entre
dois historiadores - o italiano Ginzburg (1989 e 2006)5 e o francês Certeau (2007 e
2008)6 com pitadas etnográficas principalmente a partir de discussões do antropólogo
brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira (1996) 7. Foram realizadas sete visitas a campo,
nas quais ocorreram interações, diálogos, entrevistas, registros fotográficos de comidas
e de práticas cotidianas a elas relacionadas, além da elaboração de diário de campo. A
maioria das visitas foi acompanhada de Karen Liliana Riveros, ex-aluna de um dos
autores, que também estuda alimentação e que fez traduções do guarani para o
português quando necessário. Após estas visitas foram realizadas análises dos vestígios
e indícios levantados e apontadas suas pormenorizações, sendo esta escrita uma delas.

4
CIELO, Daniele Palma; ZANINI, Maria Catarina Chitolina. O Feirão Colonial como importante
alternativa a pequenos produtores rurais da Região Central do estado do Rio Grande do Sul. In:
OLIVEIRA, Silvana Silva de; DUTRA, Maria Rita Py; ZANINI, Maria Catarina Chitolina. (Org.). Somos
todas mulheres iguais! Estudos antropológicos sobre feira, gênero e campesinato. São Leopoldo: Editora
Oikos, 2015, p. 110.
5
GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução: Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. Tradução: Maria Betânia Amoroso. 8 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
6
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves.
13 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CERTEAU, M. de; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Tradução:
Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth. 7.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
7
CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: Revista de
Antropologia. São Paulo, v.39, n.1, p.13-37, 1996.
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Ao longo deste artigo estão alguns registros fotográficos de pessoas, de práticas,
de ingredientes, de comidas. Neste sentido dialogamos com Zanini, Oliveira & Cielo
(2016) que dissertaram sobre fotografias como auxílio à pesquisa etnográfica. Segundo
as autoras, o ato de fotografar traz maior interação com o público pesquisado e seu
resultado – a fotografia em si – se transforma em: “[...] possibilidades interpretativas e
narrativas do “outro” e o que dele nos permitimos conhecer por meio de nossos recortes
epistemológicos e espaço/temporais”. 8 As fotografias são fontes e registram memórias
de quem fotografou e de quem foi fotografado.
O milho destaca-se entre produtos da feira, pela sua diversidade, processos e
importância em várias bancas. Milho fresco, farinha de milho fresca, farinha de milho
torrada com amendoim moído, milho para pipoca, milho fresco para moer, canjica,
pamonha, sopa paraguaia, chipa guasu, vorivori e tortilha de milho. Vestígios de que
ele, o milho, o maíz9 , o aviti10, o Zeamaysestá presente nesta feira. Dentre todas as
possibilidades do milho e seus derivados, verificou-se um interessante caminho do
milho à sopa paraguaia, que será retratado ao longo deste artigo.
Graciela Martínez (2017) 11 , estudiosa da alimentação paraguaia, reforça o
conhecimento prévio do milho pelas civilizações pré-colombianas afirmando que este
produto se tornou, juntamente com a mandioca, a base da alimentação autóctone e
mestiça do Paraguai. Dentre as comidas denominadas autóctones, pela autora, está o
milho tostado com amendoim. Já das mestiças, destacam-se a própria sopa paraguaia.
As autoras Ribeiro &Cohene (2017)12 também reforçam as duas espécies como a base
da alimentação paraguaia, e também destacam a sopa paraguaia como uma das comidas
mais representativas do território.
Martínez (2017) relembra as inúmeras variedades de milho que produzem
espigas e sementes de diferentes tamanhos e cores. A autora diz que o Paraguai é a
pátria do milho, frisando a importância do mesmo para a alimentação da população do
país. Essa relevância torna o milho um alimento da civilização em torno do qual se

8
ZANINI, Maria Catarina Chitolina; OLIVEIRA, Silvana Silva de; CIELO, Daniele Palma. A fotografia
na feira: entre olhares, fatos e experiências compartilhadas. In: VIZER, Eduardo; BARICHELLO,
Eugenia; SILVEIRA, Ada da. (Org.). Mídia e processos sociotécnicos no Brasil e Argentina. Santa Maria:
FACOS/UFSM, 2016, v. 1, p. 242.
9
Milho em espanhol.
10
Milho em guarani.
11
MARTÍNEZ, Graciela. Poytáva: Origen y evolución de La gastronomia paraguaya. Asunción: Editorial
dos Maletas, 2017.
12
RIBEIRO, Simone Beatriz Cordeiro; COHENE, Diana JazmínBritez. Você conhece a cozinha
paraguaia? In: Revista Peabiru. Foz do Iguaçu, n.21, p.18-21, 2017.
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estruturam momentos importantes da vida social, cultural e econômica de uma
população, conforme mencionado por Di Renzo (2019). Portanto, o milho não é um
simples gênero alimentício nem uma simples espécie agronômica, mas: “[...] um
alimento total que, além de acompanhar a produção e as experiências culinárias dos
estágios mais antigos da vida organizada, assume uma soma de funções que
transcendem a esfera primária simples e atinge os aspectos simbólicos e valorativos”. 13
O Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição do Paraguai, juntamente com a
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, elaboraram
uma atualização do Guia Alimentar do Paraguai (2013)14 , cujo objetivo é promover
dietas e estilos de vida saudáveis para uma população sã. Ao final do guia há receitas de
pratos paraguaios, divididos entre salgados e doces. Dentre estes, encontra-se a sopa
paraguaia. Destaca-se que a farinha de milho ou harina de maíz está presente e é
mencionada em diversas preparações, tanto salgadas quanto doces.
Seguem as percepções de práticas cotidianas e saberes tradicionais em relação ao
milho, em uma feira agroecológica do Paraguai.

O caminho do milho na Feria de Ciudad del Este

Convidamos o leitor a andar conosco entre bancas da Feria e visualizar as


práticas, os processos e os saberes que o caminho do milho pode proporcionar. Logo na
entrada da feira, viu-se uma produtora sorridente que, sentada, debulhava milho verde.
Havia uma bacia de metal à sua frente, na qual apoiava os braços e fazia o movimento
com a faca para a retirada dos grãos. Na mesa, além da bacia, havia uma balança e, na
frente da mesa, havia um saco de milho em grãos para ser vendido a granel.

13
DI RENZO, Ernesto. Il farro. Retroinnovazioni alimentari tra gusto della necessità e gusto del lusso.
Rivista di Scienza dell’Alimentazione. Numero II, luglio-settembre 2019, anno 48, p. 10.
14
INSTITUTO NACIONAL DE ALIMENTACIÓN Y NUTRICIÓN – INAN. Guías Alimentarias Del
Paraguay. Assunção, 2013. Disponível em: <http://www.fao.org/3/a-ax401s.pdf>. Acesso em: 23 ago.
2019.
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Figura 01. Produtora debulhando o milho.

Fonte: Paola Stefanutti.

A sogra da nossa acompanhante Karen também é agricultora e trabalha na Feria.


Ela foi solicitada para ajudar a arrumar os moinhos, pois os dois haviam quebrado. A
sogra da Karen conhece pessoas, conhece espaços e conseguiu ajudar no conserto do
moinho. Fomos até ela, em um dos dias, e pedimos para ver o moinho. Ela pediu para
esperar um pouco, falou com uma ou duas pessoas, voltou até nós e nos levou para trás
das montanhas de farinha de milho, para trás das feirantes. Na parede havia uma entrada
que dava para uma bifurcação, um estreito corredor com caminhos opostos, direita ou
esquerda.
Quando estávamos para entrar no local, um homem se aproximou e perguntou o
que estávamos fazendo ali. A sogra da Karen tomou a iniciativa e explicou a situação.
Estávamos fazendo uma pesquisa sobre a Feria e tínhamos ficado interessados em
conhecer o moinho. Ele acenou positivamente com a cabeça e nos deixou entrar.
À direita, saía uma fumaça peculiar; entramos neste espaço com paredes de
tijolos à vista, acompanhados do senhor e encontramos um braseiro a lenha com quatro
bocas. Era um ambiente tomado por aspectos e colorações que denunciavam um
trabalho com uso constante de fogo. Naquele momento, havia apenas um caldeirão de
cem litros com milho que cozinhava. A água soltava pequenas bolhas, contudo, não

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chegava a ferver, eis um dos segredos do milho cozido para a farinha. Na linguagem
técnica esse ferver lentamente, sem deixar borbulhar tem o nome de simmer.15
Figura 02. Grãos de milho cozinhando.

Fonte: Paola Stefanutti.


Naquele momento, começamos a conversar. O interceptador era Cristian, o
moleiro responsável pelo moinho. Ele começou a explicar, empolgadamente, o seu
cotidiano e as particularidades daquele espaço. Afinal, ele tinha um público interessado
em escutá-lo.
Enquanto estávamos ali, apareceu uma senhora que queria entender o que estava
acontecendo. Cristian se fez ver e ela entendeu que estava tudo bem. Conversamos um
pouco com ela com a ajuda da Karen e ela nos explicou que era a responsável pelo
cozimento dos grãos de milho. Cristian informou que alguns distritos já trazem o milho
cozido, enquanto a maioria cozinha ali. Em época de grandes colheitas, alguns distritos
chegam à Feria, às terças-feiras para pegar os primeiros lugares na fila da cocção e
moagem dos grãos de milho. A disputa é intensa.
Fomos encaminhados para o lado esquerdo da bifurcação, onde havia três
grandes tábuas de secagem dos grãos. Uma delas ficava ao sol, no espaço onde o teto

15
INSTITUTO DE CULINÁRIA DA AMÉRICA. Arte de servir: um guia para conquistar e manter
clientes destinado a funcionários, gerentes e proprietários de restaurantes. Tradução: Mariana Aldrigui
Carvalho. São Paulo: Roca, 2004.
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era aberto, enquanto as outras duas estavam à sombra, com um ventilador em cada uma
delas.
Figura 03. Grãos de milho secando à sombra, com ventilador.

Fonte: Paola Stefanutti.

Cristian mencionou que os grãos secam, no mínimo, duas horas ao sol para
passarem pela máquina. Se forem colocados úmidos, podem enroscar e o moinho
quebrar. Como já havia ocorrido.

Figura 04. Grãos de milho secando ao sol.

Fonte: Paola Stefanutti.

Ao fundo das tábuas de secagem, estava o moinho que funcionava a todo vapor,
entravam grãos de milho, previamente preparados, e saía farinha. O moinho não parava.
Cristian contou que o moinho funciona das 07:00 às 22:00 horas na quarta-feira, das

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09:00 às 20:00 horas na quinta-feira e na sexta-feira, das 09:00 às 12:00 horas. Nestes
dois dias e meio, são moídos, em média, duas toneladas e meia de milho.

Figura 05. O moinho e o moleiro.

Fonte: Paola Stefanutti.

Ele explicou que as moagens também são divididas por distritos. Cada distrito
traz seu milho para moer. A preferência é por ordem de chegada, quem chega primeiro,
tem o milho moído primeiro. Cristian afirmou que, para ajudar na manutenção do
espaço, é cobrado um valor de 500 guaranis [R$0,31]16 por quilo de grãos de milho. A
feira é organizada.

16
Conversão realizada no dia 24.04.2019, no website do Banco Central do Brasil:
https://www.bcb.gov.br/conversao.
170
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Figura 06. Milho moído.

Fonte: Paola Stefanutti.

Ele ainda acrescentou que os três distritos que mais levam milho para moer são
Los Cedrales, Ñacunday e Domingo Martínez de Irala. Saímos desse local todos
cobertos com fuligem de milho e de saberes que estavam presentes no ar.
Nós agradecemos imensamente pela visita e pela conversa. Foi um momento
realmente particular para a pesquisa, ver, ouvir, registrar e tocar em práticas tão
primordiais no processo de execução de um determinado prato típico, a sopa paraguaia,
não apenas pela titulação, mas pela representação que possui no cotidiano das mesas das
famílias paraguaias.
Dando sequência ao caminho do milho, o registro seguinte de modos de fazer foi
o da farinha de milho fresca, o ingrediente básico para fazer a tradicional sopa
paraguaia. Em uma longa fila de mesas, era possível ver inúmeros montes de farinha de
milho que escondiam as feirantes que as comercializam. Os montes de farinha de milho
surpreendem olhares gastronômicos.

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Figura 07. Montes de farinha de milho fresca.

Fonte: Paola Stefanutti.

Dentre essas senhoras, havia uma que estava peneirando a farinha. Curiosos,
paramos e observamos. Trocamos olhares. Sentimos reciprocidade. Karen se aproximou
e nos explicou que a farinha deve ser peneirada várias vezes até se obter uma farinha
muito fina e mais amarela. O ponto certo da farinha? Se sente entre os dedos.
Perguntamos se poderíamos tirar fotos. A senhora abriu um sorriso enquanto nos dizia
que sim.

Figura 08. Produtora peneirando farinha de milho fresca.

Fonte: Paola Stefanutti.

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Depois das idas à feira, dos ruminares e escritas sobre as mesmas, estávamos
estudando a alimentação paraguaia e encontramos todo esse processo para a obtenção da
farinha de milho descrita em Martínez (2017). Porém, vimos com olhos de Ginzburg
(1989 e 2006) em práticas cotidianas de Certeau (2007 e 2008), para depois irmos para
as teorias. Caminhos inversos. Olhar o cotidiano ensina.
Continuamos com nossas andanças e vimos, em outra banca, os três ingredientes
principais da sopa paraguaia: farinha de milho fresca, ovos e queijo paraguaio.

Figura 09. Os três ingredientes principais da sopa paraguaia.

Fonte: Paola Stefanutti.

A sopa em questão surpreende, pois é – talvez – a única sopa sólida do mundo; é


parecida com uma torta salgada e assada tradicionalmente na folha de bananeira.
Martínez (2017) confirma que, em se tratando de gastronomia típica, a sopa paraguaia
continua sendo a mais conhecida, popularmente aceita e requerida em qualquer
acontecimento festivoem ambientes tradicionais da pátria guarani. Portanto, a sopa
paraguaia, além de ser comida cotidiana no país, também marca os dias festivos, como
a Semana Santa e é presença obrigatória nas festas de casamento. Martínez (2017) relata
que, por brincadeira, os paraguaios perguntam “quando comeremos a sopa?” no sentido
de “quando será o casamento?”.
E por fim, na parte da feira destinada às comidas para serem consumidas no local
– Pátio de Comidas – também fica o registro da sopa paraguaia pronta, manipulada por
uma produtora/cozinheira paraguaia.

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Figura 10. Feirante/cozinheira cortando a sopa paraguaia.

Fonte: Paola Stefanutti.

Nas entrelinhas destes relatos do percurso do milho, algo ainda não mencionado
– de forma explícita – são as mulheres, gênero majoritário entre os feirantes. Enquanto
os homens permanecem em casa para cuidarem dos afazeres da terra, as mulheres são as
responsáveis por comercializar os produtos. Martínez (2017) relembra que, em períodos
anteriores, entre os indígenas, enquanto os homens eram responsáveis por tarefas mais
pesadas, como caçar e plantar, “[...] as mulheres praticavam o jopói, um costume
solidário – pré-hispânico – de trocar objetos e alimentos”17. Hoje, quase não se troca
mais, mas se vende. Parece que essa prática do homem plantando e da mulher
trocando/vendendo se perpetuou na Feria de Ciudad del Este.
Há de se ressaltar que, ao mesmo tempo em que as mulheres são as grandes
protagonistas desta Feria, as autoridades, os que comandam são vozes masculinas. A
comissão diretiva, constituída majoritariamente por homens e o moleiro responsável
também por aquele setor, são indícios e provas desse antagonismo. São jogos de poder.
Em se tratando de feiras agroecológicas, a importância da presença das mulheres
não é um fato isolado a esta Feria. Verifica-se essa mesma característica nos trabalhos
de Ramón da Silva Rodrigues Almeida (2016)18, Ana Paula Lopes Ferreira (2009) 19 e

17
MARTÍNEZ, Graciela. Poytáva: Origen y evolución de la gastronomia paraguaya. p.39.
18
ALMEIDA, Ramón da Silva Rodrigues. O protagonismo das mulheres no movimento agroecológico do
Distrito Federal. [monografia]. Brasília: Universidade de Brasília; 2016.
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MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de; DIAS JR.; Carlos; SANTOS, Layane de Sousa; PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito.
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books, 2021, 192p.
Mylena Silva et al (2018)20 intitulados respectivamente O protagonismo das mulheres
no movimento agroecológico do Distrito Federal, A Importância da Perspectiva
Agroecológica no Empoderamento das Mulheres Camponesas: Processo Mulheres e
Agroecologia como Estudo de Caso e Importância das feiras agroecológicas para as
mulheres e para a construção da agroecologia. Esse protagonismo feminino é visto
como uma possibilidade de aumento de renda da família e de maior visibilidade desse
grupo social.
Ruminando sobre o caminho do milho registrado, recorda-se de Montanari
(2008) 21 em seu livro Comida como cultura, que salienta que a complexidade das
operações da cozinha está vinculada com o preparo de alimentos de subsistência mais
simples. São as técnicas manuais que exigem mais tempo e habilidade de quem prepara.
Todo o processo para a produção da sopa paraguaia está ali: o milho na espiga,
que é debulhado, os grãos que são cozidos, depois secos à sombra ou ao sol, moídos no
moinho, que se torna farinha, que é peneirada várias vezes, até se tornar a fina farinha
de milho, para ser utilizada na sopa paraguaia, entre outras preparações tradicionais da
cozinha paraguaia como o vorivori e a polenta. Simples do ponto de vista dos
ingredientes; no entanto, complexo quanto às práticas, às habilidades manuais e às artes
de fazer. Ir à feira é ter a possibilidade de ver o além-comida.

Considerações finais
A aquisição de alimentos pode provocar vivências sociais, culturais e simbólicas,
que são potencializadas dependendo do tempo ou espaço. Constata-se a Feira de
Produtores como um espaço de tradições culturais, de costumes alimentares e de
sociabilização. Registra-se o debulhar, o cozer, o secar, o moer, o peneirar, o misturar, o
assar, o vender e o comer. O produto é manipulado, é produzido, é gerado neste espaço.
Estudar feiras é uma forma de registrar práticas alimentares do cotidiano, muitas
vezes silenciadas e dar visibilidade a personagens à margem das cidades e das fronteiras.
Além de que, as feiras são áreas de produção (modos de fazer), de distribuição e de
consumo dos produtos, no caso, das comidas de feira. Um encontro entre produtores e

19
FERREIRA, Ana Paula Lopes. A Importância da Perspectiva Agroecológica no Empoderamento das
Mulheres Camponesas: Processo Mulheres e Agroecologia como Estudo de Caso. In: Revista Brasileira
de Agroecologia, v.4, n.2, p.2114– 2117, 2009.
20
SILVA, Mylena. et al. Importância das feiras agroecológicas para as mulheres e para a construção da
agroecologia. In: Anais Cadernos de Agroecologia do VI CLAA – VI Congresso Latino-Americano; X
CBA – X Congresso Brasileiro; V SEMDF – V Seminário do DF e Entorno, v.13, n.1, 2018.
21
MONTANARI, M. Comida como cultura. Tradução: Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2008.
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consumidores, um vasto espaço para os estudos sociais. As feiras, de fato, são espaços
de fazer e do agir comunitário que, ao se basear nas atividades de troca comercial,
desempenham diferentes propósitos que circundam o domínio das relações interpessoais,
a esfera das comunicações entre gerações, a dialética das relações interétnicas;
consequentemente, as feiras se integram completamente dentro desse conceito de
socialização generalizada e humanidade dialogante, que está passando por um intenso
processo de reavaliação histórica. Uma reavaliação que, segundo Di Renzo (2018)22, faz
das feiras lugares fortes de identidade comunitária, bem como espaços de dinâmicas de
resiliência cultural (diametralmente opostas aos não-lugares de distribuição em larga
escala) dentro das quais emerge o protagonismo feminino na sociedade rural paraguaia,
onde as mulheres manipulam, cozinham, vendem. Em uma palavra: elas predominam.
Trazer esta feira agroecológica para a presente discussão, representando o
Paraguainuma perspectiva pautada em tradições consolidadas e negociadas a partir da
cultura alimentar de grupos tradicionais, é uma forma provocativa de repensar esta
fronteira, cujo país aparece, neste contexto, como um território apagado em relação à
alimentação. No Paraguai, come-se. Come-se e também planta-se. Apresenta-se um
Paraguai que produz, cuja terra pode oferecer outros produtos além da monocultura,
além de soja e trigo.
Há consistentes indícios, com base nos dados apontados neste texto, de que o
milho pode falar. E pode-se permitir que fale muito mais. O milho, no âmbito do
mercado de alimentos, não é sempre o mesmo milho visto e discutido nesta pesquisa. O
milho, no contexto da agroecologia e no contexto do agronegócio, passou e passa por
profundas transformações e pode ser objeto de outras investigações na perspectiva da
cultura alimentar.

22
DI RENZO, Ernesto. Il mercato ambulante è una forma di resistenza culturale. Il Centro, 4 ottobre
2018, p.24.
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COMEDORES DE NUTELLA : 1

ALIMENTAÇÃO COMO
FORMAÇÃO DO GOSTO EM
RESTAURANTES DE CAMPINA
GRANDE-PB
Josélio dos Santos Sales2

Introdução

A comida exerceu diferentes papéis na história humana, transformando


civilizações e unindo umas às outras. “Rotas de comércio funcionaram como redes
internacionais de comunicação, fomentando não apenas a troca comercial, mas também
a troca cultural e religiosa” (STANDAGE, 2010, p. 8). A rota das especiarias modificou
a gastronomia, a arquitetura, a ciência e a religião europeias. A América foi descoberta
na superação do monopólio árabe sobre as especiarias.
A comida já foi usada como arma de guerra, intimamente ligada à capacidade de
alimentar os grandes exércitos, contribuindo para a construção dos impérios europeus e
da industrialização. Determinados produtos se deslocam de um país para outro não
apenas como nutrição, mas como produtos de status. “Para os que dispõem de recursos
financeiros, os feijões-verdes do Senegal e as cerejas do Chile, por exemplo, são
apresentados nas prateleiras européias em pleno inverno, no mês de dezembro”
(POULAIN, 2013, p. 27).
Além da função nutricional e satisfação da necessidade biológica, a alimentação
representa a expressão de desejos, ideias, necessidades e conflitos humanos em épocas
distintas. Não importa tão-somente o que ingerimos, mas onde comemos, com quem

1
O título surgiu de uma discussão entre duas irmãs, uma delas se disse comedora de Nutella e não de pão-
com-mortadela, em referência à polarização pelo entre apoiadores e detratores do Partido dos
Trabalhadores.
2
Doutorando em antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) – UFPB.
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comemos e em que circunstância o fazemos. Somos influenciados pelo ambiente e pela
cultura. O sistema alimenta não apenas é apresentado de forma a saciar as necessidades
básicas imediatas. Como a cultura e fazendo parte dela, a estrutura alimentar é algo que
foi sendo gestado por uma determinada sociedade e em espaços marcados, uma vez que
não aconteceu do mesmo modo em todos os lugares.
Apesar de ser parte da vida, a alimentação só passou a ser tema da pesquisa das
ciências sociais a partir do século XX. Entre os autores clássicos que se interessam por
essa temática, destaca-se Lévi-Strauss (2004) que investigou o simbolismo do processo
de cozimento como manifestação arquetípica da passagem da natureza para a cultura.
Ela ainda é compreendida como um fenômeno social total (MAUSS, 2013).
No Brasil, destacam-se Câmara Cascudo (2014) e seus estudos acerca de
iguarias e pratos brasileiros ao investigar a alimentação popular em sua normalidade, e
Freyre (2014) com seu olhar sobre o açúcar na culinária e na economia nacional e
modos à mesa como repressão da corporeidade e matriz do processo civilizador (ELIAS,
1994). Já em Lévi-Strauss (2004) a alimentação tem uma “gramática culinária”, com as
etapas e cadeias alimentar: produção, distribuição, elaboração e consumo.
Para Fischer (1979), a gastronomia é consequência da modernidade e
caracterizada, por três fenômenos concomitantes: uma situação de superabundância
alimentar (i); a diminuição dos controles sociais (ii) e a multiplicação dos discursos
sobre nutrição (iii). Assim, “é uma estetização da cozinha e das maneiras à mesa, uma
virada hedonista dos fins biológicos da alimentação; essa atividade é amplamente
cercada por regras sociais e no exercício da qual somos condenados várias vezes por dia”
(POULAIN, 2013. p. 207).
Mas o que faz as pessoas escolherem determinados lugares para comer em uma
cidade de médio porte como Campina Grande 3 ? Que classe 4 frequenta os locais de
restauração? Como consomem esses alimentos? Busquei compreender como esses
restaurantes escolhem seus menus e como os frequentadores de restaurantes os elegem
mediante os repertórios alimentares. Questionei, ainda, se os frequentadores dos
restaurantes saberiam classificar que tipo de alimentação estão consumindo. O “bom
para comer” passa pelo “bom para pensar”? São memórias que formam o gosto ou é o
status e a distinção que o constitui?

3
Conforme IBGE (2010), tem uma população de 385.213 habitantes. www.cidades.ibge.gov.br.
4
O conceito de classe que norteia nosso trabalho é a classe como habitus em Bourdieu (2013) e classe
como incorporação imaterial e capitais simbólicos em Souza (2012).
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Indaguei se a gastronomia local passou por transformações para agradar o
paladar dos comensais ou se estes procuram formas gastronômicas como uma
experiência étnica ligada a valores, a tradições e ao gosto regional. Elaborei uma lista
de restaurantes que frequentei ao menos duas vezes antes da pesquisa. Estratifiquei-os
por gastronomia global, regional e local. Escolhi oito restaurantes: um mexicano e um
japonês (tidos como gastronomia global); dois com gastronomia regional; dois
vegetarianos e dois com gastronomia mista. Iniciei um processo de observação e
anotação. Em alguns deles, estive três ou quatro vezes para a pesquisa. Entrevistei
frequentadores e donos dos restaurantes. As entrevistas giravam em torno das escolhas
de cardápios, repertório alimentar e das escolhas dos restaurantes, quando foram
classificados como de mesma tipologia.
Nas primeiras considerações, percebi que a gastronomia se articula com as
manifestações culturais mais próximas ou distantes, sem que o sujeito abra mão de
identificações anteriores. Seja ela local, regional ou global é uma forma de distinção
social. Sendo assim, enquadra-se na ideia de habitus de Bourdieu (2013) que
compreende que os atores sociais estão inseridos em determinados campos sociais, de
posse de certos capitais e num posicionamento com sua classe. Dominar os códigos é
possuir um capital que os distancia ainda que pertençam à mesma classe social, mas
venham de culturas de diferentes.
A classe não é categoria e nem estrutura fixa. É fenômeno histórico atravessado
por uma relação histórica que foi sendo construída e os indivíduos foram se
identificando ou não durante o processo (THOMPSON, 1978, p. 10). Se o
posicionamento é vivência, os hábitos vão sendo construídos nela, pois “a noção de
classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo
fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la, num dado momento e dissecar sua
estrutura”. Portanto, a classe é definida pelos homens enquanto lutam, trabalham,
comem e bebem.

Cardápios de classe

A popularização dos restaurantes acontece após a Revolução Francesa como


espaço para prestar os serviços aos novos detentores do poder (POULAIN, 2013): uma
burguesia que quer consumir como a aristocracia. Eles se tornam elementos cruciais da
organização social, pois são espaços que oferecem comida a quem busca distinção, o

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reencontro com uma memória cultural ou simplesmente para saciar a fome. Se os
restaurantes são espaços hedonistas para a elite emergente ou a aristocracia falida e para
os novos comensais, quais regras deveriam valer? Era essencial ter alguém para lhes
ensinar as regras de etiqueta. Surgem os manuais de refinamento que ensinaram plebeus
a comer como aristocrata. Para Brillat-Savarin (2013), o gosto, enquanto refinamento e
domínio de capital, está ligado à produção, à escolha e ao preparo daquilo que nos
alimenta e que nos agrada.
Os restaurantes campinenses são movidos, sim, pela busca do prazer dos
comensais, mas também é na união do marketing com propaganda, que eles oferecem
seus menus aos comensais. Com exceção dos proprietários dos dois vegetarianos, que
não se preocupam exatamente com uma clientela variada, os outros tentam seduzir seus
clientes, a partir de uma gama de produtos, com cardápios elegantes, fotos de pratos
montados e divulgação constante na mídia.
Quando questionei aos comensais por que escolhiam determinadas comidas, eles
me respondiam ou de forma vaga, ou que não haviam pensado nisso anteriormente, e
falavam de suas memórias a partir da indagação. As observações constataram que os
restaurantes servem um público que não sabe exatamente quem é, aproximando-se de
Câmara Cascudo (2011, p. 14), quando diz que a comida constitui um “alicerce de
patrimônios seletivos no domínio familiar”. Mas os frequentadores não percebiam que
os gostos podem ser cimentados por de séculos e rememorados pelo marketing. Os
hábitos não se transformam com a mesma facilidade de mudança da moda, do vestuário
ou de transporte. Para o comensal escolher a comida ou local no qual vai comer tem que
ter um repertório cultural já adquirido. A este modo de pensar, de sentir e a esse gosto
Bourdieu (2013) chamou de habitus. Sem ele não haveria a classe que frequenta os
restaurantes campinenses. É este conceito de classe que adoto no trabalho.
Se alguns membros da nova classe média campinense se autointitulados
“comedores de Nutella” é porque percebem uma nítida oposição aos “comedores de
pão-com-mortadela”. Fica nítida a distinção entre alimento e comida. O alimento é a
substância que, introduzida no organismo, serve para a nutrição dos órgãos ou para a
produção de energia. Já a comida não é simplesmente uma substância alimentar, mas
sim um estilo de se alimentar. Comidas cotidianas, prosaicas e que consideramos
comuns escondem histórias sociais e econômicas complexas. A classe não passa
somente pela renda, mas pela formação do “gosto refinado”.

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Para Souza (2012, p. 23) “os filhos só terão a mesma vida privilegiada dos pais
se herdarem também ‘o estilo de vida’, a ‘naturalidade’ para se comportar em reuniões
sociais, o que é aprendido desde a mais tenra idade na própria casa com amigos e visitas
dos pais”. E ali, eles aprendem o que é de bom tom e como evitar as gafes. Não é
necessário apenas ter dinheiro, mas também não bancar o rico “bronco”, sem ter
passado pelo processo civilizador e ter aprendido as boas maneiras à mesa.
A mesa foi muito importante para ditar as regras em sociedade (carregadas de
significações). Saber se comportar à mesa é sinal de civilidade. “Todas as sociedades,
em todas as épocas, estabeleceram princípios que regiam as relações entre os grupos e
os indivíduos” (ROMANGNOLI, 1998, p. 496). Claro que não se tratava apenas de
códigos jurídicos, mas especialmente de um código de boas maneiras, por superficial
que possa parecer. Muitas vezes foi em volta da mesa, direta ou indiretamente que se
discutiu o caráter moral. Uma das cenas mais representativa da cultura cristã é a Última
Ceia, que representa o próprio Cristo com seus apóstolos e o pão tem uma simbologia
muito forte nesse momento.
O ato de comer foi, por excelência, o lugar de sociabilidade e o espaço de
comunhão entre a matéria (comida) e o espírito (refinamento social). Assim, o espaço
comensal configurou-se como a exterioridade da etiqueta social e a interioridade da
ética. Na transição do mundo feudal (monástico) para o capitalista, cuja principal
divindade era o próprio capital, viver em sociedade e pertencer a determinada classe
social passava por um refinamento quase monástico. Entretanto, o capital econômico
era importante, mas não o único.
Os modos à mesa, além da alimentação e saúde física, serão pensados como a
repressão da corporeidade e matriz do processo civilizador (ELIAS, 1994). Esta etiqueta
é muito importante, uma vez que destaca como o indivíduo se relaciona com a
civilidade e esta envolve um conjunto de prescrições que permitem orientar seu
comportamento social. Mas se não há mais os palácios e nem a vida nos monastérios
onde se aprende as regras sociais e os processos distintivos?
São os restaurantes os novos locais de status da classe média e alta. Um dos
pontos destacados pelos entrevistados foi que o restaurante é um local de encontro e
esse encontro precisa de um espaço de legitimação do que se come e de como se come.
É preciso dominar a etiqueta do espaço onde se come, saber usar os talheres de forma
adequada, identificar a sequência dos pratos, o que se pode ou não comer com as mãos.

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O repertório do restaurante mostra que você está familiarizado com as normas e
condutas ali incorporadas como gosto; ao mesmo tempo, é o espaço de comemoração,
que marca a passagem para outras fases da vida adulta. “Vamos ao restaurante em uma
data especial, aniversários, por exemplo, e também para comemorar uma conquista,
como a graduação ou defesa de trabalho de conclusão”, destacou um dos informantes.
Não é o lugar apenas para comer Nutella, é, principalmente, o espaço onde se aprende a
comer tal acepipe e os comensais confirmam se sabe comê-la como mando o figurino. É
justamente aquilo que se come e onde se faz que marca os pertencentes a um círculo
social.
Os colaboradores desta pesquisa prefeririam comerem em ambientes mais
simples e o fazem em um restaurante conhecido e legitimado pela sociedade, uma vez
que o ato agrega símbolos que vão além da comida. A forma como os restaurantes são
pensados também tem a ver com distinção. E distinguir está relacionado intimamente
com civilidade, pois envolve um conjunto de prescrições que permitem orientar o
comportamento do homem em sociedade (ELIAS, 1994), diferenciando as camadas
superiores das inferiores.
Em Campina Grande, cidade que vive entre o “ego de uma capital” e a
singularidade da província, ter espaços de ostentação e de reconhecimento é legitimar o
bom gosto e este passa pelos restaurantes. O “refinamento” não tem que ver apenas com
renda, mas com os capitais incorporados, com um ethos formador da interioridade.
Acredito que já ficou claro até aqui que classe não é apenas renda. Mas para
fazer parte de uma classe de consumo que se distingue dos demais é preciso dominar
alguns pré-requisitos do processo civilizador. Segundo Bourdieu (2007), a classe não é
fixa, pode ser modificada no decorrer da história do indivíduo. A definição de classe
acontece por relações simbólicas, isto é, a posição de classe transcende os aspectos
simplesmente econômicos, por isso é importante ter uma partitura cultural e saber
locomover-se por esses campos com desenvoltura.
Por isso mesmo, o restaurante se torna um lugar de reanimação de classe. O
indivíduo se torna distinto, privilegiando a forma da ação em oposição a sua função real.
A posição social é conformada com ações simbólicas. Ser visto e fotografado em
determinado restaurante confere um status que é capaz de catapultá-lo na classe.
Quando ele incorpora os hábitos desta classe e passa a vivê-los, como se tivesse
aprendido desde a mais tenra idade, legitima-o em determinada classe ou fração dela,

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“embora que esse capital cultural seja, muito frequentemente, mero adorno e culto das
aparências, significando conhecimento de vinhos, roupas, locais ‘in’ em cidades
charmosas da Europa ou dos Estados Unidos etc.” (SOUZA, 2012, p. 23). Não estou
negando isso, pelo contrário, observei-o na pesquisa. Há todo um esforço gourmet para
se descrever os ingredientes e saber sua origem.

Degustando os ingredientes para formar gosto

A Europa do século XIX se cobre de restaurantes como fossem palácios, nos


quais se vendem produtos para a legitimação e domínio do processo civilizador.
Dominar a etiqueta social é ser distinto, reconhecido pelos pares e cultivar uma
nostalgia da vida palaciana. Sendo assim, o restaurante é a corte revisitada. É nas
cozinhas dos restaurantes que cozinheiros e chefs mantêm rituais e uma magia
transformadora. Nessas novas catedrais góticas os chefs, novos sacerdotes e clientes e
novos fiéis descobrem uma nova fé.
O menu é uma espécie de cartão de visitas aristocrático. Em um dos restaurantes
pesquisados, os pratos têm nomes de celebridades ou de famílias de sobrenomes duplos.
Serve para marcar “a sofisticação mostrando que ali é um espaço frequentado por gente
da alta classe”, como disse, de forma irônica, um dos colaboradores. Para atrair gente
“bem-nascida” ou que emergiu socialmente é importante elaborar um bom cardápio que
não só depende dos ingredientes.
Não se pode, contudo, perder de vista que a gastronomia que consome não é
uma coisa autêntica. Mesmo aquela considerada local/regional foi modificada por um
menu dito internacional, pela cozinha de autor, cozinha histórica e cozinha de fusão
(SAMPAIO, 2009). A cozinha de autor é aquela que destaca outros produtos e testa
paladares diferentes dos tradicionais. Além dos ingredientes, decora o prato de modo
artístico para atiçar o paladar do comensal ou apresenta refeições minimalistas e o
cozinheiro assume o papel de um artista.
Este tipo de cozinha retira da cena a confraternização para trazer o espetáculo. A
priori é esse espetáculo que alguns frequentadores campinenses procuram para fugir do
trivial da cozinha regional, ou da “cozinha grosseira”, como destacou um colaborador.
A interpretação do consumo de alimentos culturais mostra que em nenhuma sociedade
foi tolerado comer qualquer coisa, em qualquer lugar, de qualquer maneira ou em
qualquer momento. No restaurante, ocorre o que destaca Souza (2012, p. 24) sobre o

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comportamento da classe média: o processo de identificação afetiva para “imitar aquilo
ou a quem se ama – se dá de modo ‘natural’ e ‘pré-reflexivo’, sem mediação da
consciência, como quem respira ou anda, e é isso que o torna invisível quanto
extremamente eficaz como legitimação do privilégio”.
Durante a investigação, observei que dois restaurantes têm cardápios pensados
para públicos específicos: os dois vegetarianos. Um deles é ligado a uma corrente
religiosa (Hare Krishina) e outro a uma corrente cristã (Adventista). Tanto um quanto
outro atrai públicos que não professam a fé dos proprietários. Os frequentadores dos
dois restaurantes são atraídos justamente pelo menu, já que são muitos simples e não
conferem status de classe elevada. Não são espaços para público com alto poder
aquisitivo. Há um público diferenciado, que refinou o gosto e faz parte de uma
distinção, pessoas com hábitos de leitura e musicais que não se igualam ao resto dos
restaurantes das Boninas5, por exemplo.
Em um dos restaurantes (japonês), a proprietária não elabora um cardápio
levando em consideração apenas os ingredientes, mas é sabedora do valor agregado que
o nome de sua marca tem. Gaba-se por ter os produtos mais caros da cidade. Ela sabe,
mesmo sem ter lido Souza (2012, p. 40), “que o controle econômico pressupõe o
exercício de uma dominação cultural e simbólica que lhe é concomitante”. Há,
claramente, uma violência simbólica como os frequentadores de cardápios orientais,
mas que não podem pagar o preço cobrado por ela. Como é um restaurante por quilo, o
toque de “sofisticação” está no ambiente, que apresenta para os comedores a técnica dos
sushimans. Novamente a oposição aqui não é entre pobres e ricos, mas entre quem tem
ou não refinamento, mesmo que não seja um frequentador habitué, como o é um cliente
de um dos restaurantes das Bobinas, onde também há restaurantes orientais populares
(chinês). Uma das colaboradoras disse que, além da apresentação dos produtos, ela sabe
que ali estão as melhores matérias-primas. E sabe “que os funcionários estão sempre
dispostos a modificarem uma das receitas”, pois sabem que ela não come camarão e o
retiram do que lhe é servido. Ao mesmo tempo, diz perceber os produtos frescos. Por
ser self-service pode escolher o que quiser. Ou seja, interiorizar um determinado
repertório não é assimilar tudo dessa cozinha; há coisas que não se incorporam.
Um restaurante possui cozinha mista, mas com ênfase para os pratos da cozinha
internacional, inclusive com um menu sofisticado. Tem apostado numa carta que atenda

5
Região que abriga uma série de restaurantes populares e oferece comida a um público formado por
empregados do comércio campinense.
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a um público de maior poder aquisitivo. Embora tenha um cardápio parecido com os de
outros restaurantes, agrega valor a eles com nomes de pessoas importantes da cidade ou
de celebridades e políticos, frequentadores habitués de suas mesas. Outro cuidado
desse restaurante é descrever em detalhes os componentes do prato. Além disso, oferece
uma boa carta de vinhos e é um dos poucos da cidade que aceita reserva antecipada. Ora,
supondo que um operário precariado tivesse um grande acréscimo de seu salário e
quisesse, por mero status, ir a este restaurante será que ele teria condições de escolher
um vinho importado ou um prato apenas por o enunciado de apresentação? É pouco
provável.
Um entrevistado disse que sabe que o valor da comida é “salgado” e o ambiente
é, até certo ponto, hostil. Admite que “o sabor pode ser modificado justamente pelo
ambiente”. Foi fisgado por aquilo que Brillat-Savarin (1995) chama de fisiologia do
gosto: a influência dos outros sentidos no sabor. Ele confessou ainda ser seduzido pela
disposição da comida no prato, pela decoração, pelos elementos da gastronomia, que
transmitem a sensação de que, ali, se tem bom gosto, critérios para se “reconhecer o
melhor”. Isso talvez seja o desenvolvimento de uma partitura gustativa e a liberdade de
poder comparar o melhor entre alimentos únicos ou assemelhados, levando em conta
ainda a situação social do consumo. Tudo influenciou na fisiologia de seu gosto. Ou
mesmo já tenha internalizado o habitus de classe. Assim, ele sabe sem a mediação da
consciência que a gastronomia é um ato de julgamento, o seu. Da mesma forma, posso
dizer que o referido restaurante tem uma proposta de iniciar as pessoas ao “refinamento”
da classe média em busca de ascensão social. Fica nítido que esse modelo serve para a
construção e alimentar a dinâmica das classes. “Como é o pertencimento às classes
sociais que predetermina todo o acesso privilegiado a todos os bens e recursos escassos
que são o fulcro da vida de todos nós 24 horas por dia” (SOUZA, 2012, p. 22). Essa
mise-en-scène encobre a reprodução e legitimação dos privilégios, fazendo com que
quem esteja ali perceba que frequenta aquele espaço porque batalhou e mereça o seu
lugar ao sol.
Há outros dois restaurantes tidos como tradicionais que formam seus menus
justamente com o objetivo de congelar uma tradição. Em um deles há até um pequeno
museu, no qual o comensal possa se sentir na casa da avó, nos locais de suas férias de
infância e, ao voltar à mesa, saborear esse tempo. Além de manterem os nomes

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“tradicionais”, inclusive com grafia desviante da norma padrão, dizem usar produtos de
“originais” que lembram as denominações origem, como os terroirs franceses.
É como se os cardápios fossem montados para reterritorializar as pessoas no
tempo e no espaço. Uma entrevistada disse que ali a “aproxima daquele sabor de sua
infância”, ainda que não seja o mesmo sabor que tem em sua memória gustativa, o
espaço a faz lembrar-se de sua infância. Ela se lembra até dos utensílios que eram
usados para preparar os alimentos e em que eram servidas as comidas de sua primeira
infância. Então, aquele espaço alimenta não apenas seu corpo, mas sua alma e suas
memórias, ao mesmo tempo em que desencadeia coisas que já haviam saído do
consciente e ido para o inconsciente. Ela chegou a se emocionar durante a entrevista.
Mas a entrevistada é incapaz de fazer uma leitura crítica daquele espaço ou de
sua condição de classe média. Quando se oculta a classe social, quem serve e quem é
servido, suprime-se as causas das desigualdades, então se coloca o mérito. E seu mérito
está em frequentar um espaço tal qual a casa de sua avó, onde adquiriu o habitus de sua
classe. Assim, o que vale é o resultado, não se discute nem as causas nem as
consequências de uns terem o bom gosto e outros não poderem usufruir do mesmo
espaço. Quando se perde isso, perde-se também a dimensão simbólica de nossas ações.

Com gosto de classe

É importante salientar que quando eu falo em gosto não nos referimos à


fisiologia orgânica. Não nos referimos a novos conhecimentos da fisiologia humana,
apresentando o consumo alimentar, mas ao paladar, que mobiliza os outros quatros
sentidos de modo a produzir uma complexa noção de “gosto”. Assim sendo, é preciso
saber qual o critério que sinaliza para escolher comer determinada coisa e não outra. “O
gosto é aquele de nossos sentidos, que nos põe em contado com os corpos sápidos, tem
por excitadores o apetite, a fome e a sede” (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 41). O que
é uma comida saborosa para uns, não passa de uma coisa escatológica e repugnante para
outros. "O gosto, propensão e aptidão à propriedade material e/ou simbólica de uma
categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras, é a fórmula generativa
que está no princípio do estilo de vida" (BOURDIEU, 2003, p.74).
Conforme Romangnoli (1998), as boas maneiras à mesa não têm apenas que ver
com o preparo da comida, mas com todo o conjunto de modos de ser e estar no mundo a
partir do século XV, entre elas estão o controle de gestos, sons e cheiros. Ao mesmo

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tempo em que o indivíduo aprendeu uma nova etiqueta de como se portar e comportar à
mesa, além de domar antigos hábitos. Esse ethos transformou a sociedade e
proporcionou uma nova configuração. A etiqueta foi responsável pela sofisticação de
controle das pulsões e emoções que ajudou a tecer a rede de civilidade e proporcionar a
formação específica. Ao mesmo tempo em que as exigências sociais deveriam ser
seguidas por aqueles que quisessem manter seu status na sociedade. Quem desejasse
alcançar méritos e chegar a ter benesses deveria compreender a partitura e incorporá-la
tal qual quem dança uma valsa e deve acompanhar o compasso do consorte, mas sem
perder o ritmo da música.
A etiqueta enquanto estrutura sinalizava o comportamento da classe dominante.
O habitus é sua legitimidade em relação àqueles que estavam em uma classe inferior.
Ao mesmo tempo em que era uma forma de justificar a dominação. A relação com os
alimentos e com as bebidas passa inevitavelmente pelo gestual: servir-se, levá-los à
boca, mastigá-los, cortá-los, oferecê-los ou recebê-los. Portanto, dominar a etiqueta é
dominar um refinamento e incorporá-lo ao cotidiano (ROMANGNOLI, 1998).
Logo, frequentar os restaurantes campinenses da moda é navegar por uma classe
e se legitimar como pertencente a ela. Não mais pertencendo a sua de origem, nem
ainda aquela almejada, mas a transição de onde se quer chegar. A mesa na companhia
desses comensais é a busca “consciente ou inconsciente da distinção que toma
inevitavelmente a forma de uma busca do refinamento e pressupõe o domínio das regras
desses jogos de refinados que são monopólio dos homens cultivados de uma sociedade”
(BOURDIEU, 2007, p. 21).
O que verifiquei na incursão pelos oito restaurantes corroborou com a hipótese
que havia levantado antes: preferências alimentares não são problemas de foro
individual. Os gostos e formas de pensar compartilhados por um grupo social são
culturais. Nesse contexto, o local, o regional ou mesmo o global passa pelo crivo
cultural e como nos relacionamos com o outro. Do mesmo modo, essas escolhas
relacionam-se com o imaginário, com manifestações culturais ou com regras religiosas.
Enquanto que dois dos entrevistados são neófitos assumidos, dizendo que
experimentariam todos os tipos de comida que não fossem cruas. Uma colaboradora da
pesquisa disse que não tem nenhuma simpatia por comida mexicana. Indaguei se ela
teria coragem de experimentar e ela fez uma cara de nojo, respondendo negativamente,

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mesmo sem nunca ter provado. Mas se fosse um restaurante alemão ou belga? Essa
repulsa aconteceria?
Não apenas a diferenciação do capital cultural ajuda a criar classes distintas,
como também o capital cultural é usado constantemente como mecanismo de distinção
social. Assim, o gosto “refinado” legitima quem é detentor e parte para desprezar as
classes com gosto supostamente “simples”. Esse tipo de preconceito e solidariedade
com base no gosto é uma forma moderna de consciência e solidariedade de classe que
ajuda a reproduzir o privilégio, visto por muitos como direito adquirido, quando muito
como direito apenas.
O homem é um animal simbólico e como tal é nutrido por esses símbolos, pois
ele não ingere apenas comida. Dito isso, coloco a gastronomia e culinária como atos
simbólicos que unificam substratos aparentemente dissociados. E incorporar esses
símbolos é vivê-los cotidianamente. Se comer nunca foi um ato isolado, agora comer é,
além de tudo, um ato político. Envolve o caráter, social, cultural e econômico.
Compreender a culinária de um povo contribui para pensar as negociações entre
alimentos, práticas de cozinha e etiqueta à mesa. Esse código de civilidade serve para
expressar formas muito particulares de atribuir significados aos próprios sentidos
humanos, como fome, paladar e mesmo o gosto que é produzido não apenas a partir do
paladar. Saber o que o outro come e pensa é uma forma de descobrirmos o que
pensamos também.
Quando questionei qual o critério de gosto quanto aos restaurantes campinenses,
vi diferentes respostas. Uns não se sentiriam bem em um restaurante vegetariano, por
exemplo. Como Campina Grande é uma cidade cosmopolita e recebe gente de várias
partes do Estado e mesmo de todo país, pode ser que a rejeição aos vegetais seja cultural.
O sertanejo, devido às condições climáticas e à cultura de herança portuguesa, não é
muito apreciador de verduras e legumes crus. Já ouvi muita gente dizer que não “eram
lagartas para só comer folhas”. Durante a investigação, algumas pessoas afirmaram que
uma dieta sem carne ou feijão não os nutririam. Um restaurante vegetariano não as
agrada. Percebi, contudo, que essa prática tem mais que ver com os períodos de
escassez que essas pessoas viveram quando crianças. Ter carne era ter fartura, assumir
uma dieta sem carne é uma resignação, enquanto ter carne é assumir a abundância e
estar em uma classe abastada.

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Os que se mostraram carnívoros convictos não são muito simpáticos aos
cardápios orientais, como peixes crus. Como disse Lévi-Strauss (2004), a comida é um
articulador entre a cultura e a natureza, é a forma de produzir uma gramática cultural
nos indivíduos. A alimentação é uma teia simbólica de autodesignação feita e refeita a
partir de traços culturais que pertencem a um repertório mais ou menos limitado. A
alimentação é um traço identitário, uma maneira de compartilhar formas de viver em
determinado grupo, pois o homem também se alimenta de símbolos.
Depois de observar os restaurantes em dias diferentes, comecei a me questionar
se os frequentadores saberiam classificar o tipo de alimentação. Essa escolha passa por
uma clivagem cultural? O hábito constituído como o “bom para comer” (HARRIS,
1989) se transforma em “bom para pensar” (LÉVI-STRAUSS, 2004)? Quando os
indaguei, percebi que confundiam o local com o regional e não sabiam responder, se em
Campina Grande havia algum restaurante com uma gastronomia que só existia na
Paraíba. Na verdade, talvez eles nunca tivessem se perguntado sobre a origem de suas
comidas. Sabiam apenas o que gostavam e o que não gostavam. Dos espaços que
gostavam e o que significava aquele lugar. Até sabiam como aprenderam a gostar a
partir da socialização que passaram ter nos últimos anos. Tanto pelo acesso a novas
cozinhas quanto pelo próprio aumento no nível de renda e, por isso mesmo, estavam
experimentando novos sabores e saberes.
Compreendi também que, diferentemente dos manuais do século XVIII e de
cursos de etiqueta social comuns até a década de 1990, atualmente são os programas
televisivos e a literatura especializada que tem ajudado os gourmets modernos a
desenvolverem critérios para reconhecer esses manjares e que não fiquem entregues a
voos cegos sobre o que está ocorrendo em sua volta. Do mesmo modo, tornaram-se
comuns, com salas cheias, cursos de sommelier tanto de vinho quanto de cervejas finas
como uma forma de erudição e incorporação do habitus da classe dominante
(BOURDIEU, 2013).
Com a comida e espaços de socialização não é diferente. A escolha por
cardápios determinados e por locais onde esses são servidos passa pela legitimação e
mesmo pela visibilidade que esses restaurantes dão aos comensais, independendo se os
menus são regionais, locais ou mesmo internacionais. O espaço de socialização é mais
importante que o repertório gastronômico. Do mesmo modo, o gosto é valorizado não
pelo repertório alimento do estabelecimento, mas pelo status que esse restaurante

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representa na sociedade campinense. Pode gostar daquilo que um colaborador chamou
de “comida grosseira, regional”, mas se essa for servida em um restaurante de destaque,
ele passa a ser considerado um homem refinado.
Mas não é tão simples assim. A cozinha está sujeita às fronteiras riscadas pelo
costume de milênios sem que nos demos conta. A “cozinha internacional” é apenas
uma rede comunicante de padrões alimentares equivalentes, imutáveis dentro de cada
unidade demográfica e transmissível, construindo novidades ao grupo adquirente
(CÂMARA CASCUDO, 2011). Dizer que uma cozinha é internacional é espetacularizar
um fenômeno que deveria ser natural aos indivíduos comuns. Mas também é dizer que
já dominamos a gramática internacional e estamos aptos a incorporarmos um nível mais
sofisticado que não apenas o costumeiro feijão com arroz.

Considerações Finais

A alimentação saiu do cenário de carência nutricional e de fome para objeto de


análise em momentos de superabundância e diferenciação de consumo. Da esfera da
geografia, da economia e das ciências da nutrição, para o campo das Ciências Humanas
e Sociais. Assim, o restaurante se torna uma janela aberta para o mundo de onde
podemos observar o consumo disputado por gormands e gourmets com formações
culturais diferentes. Frequentar determinados restaurantes é cruzar barreiras e escolhas,
mediadas pela identificação momentânea e pelas identidades culturais.
O habitus expresso em um estilo de vida é resultado de um capital cultural
herdado, que vai sendo incorporado desde a infância e se constitui em uma disposição
interiorizada, que se reproduz em condições de existência liberadas e de urgência e pode
ser reconvertido em novos capitais. Não é definido por poder aquisitivo, mas sim por
instrumentos de apropriação transmitidos, que resultam em um poder simbólico próprio
das camadas dominantes e, portanto, reconhecido pelas camadas populares com um
status até invejável.
Escolher se o que se vai levar à mesa ou se a um ritual de socialização aciona os
mecanismos mais profundos do ser humano, caracteres impressos no seu inconsciente e
que se renovam em cada refeição, pois os rituais alimentares são excelentes espaços de
socialização e transmissão das regras culturais. Pois, apesar de ser uma única espécie,
temos uma infinidade de estruturas alimentares, tão distintas quanto a diversidade
humana.
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Embora tenha essa simbologia distintiva, a alimentação não é homogênea
mundialmente. O que pode ser visto como a mais alta iguaria em uma determinada
cultura pode ser considerada como a coisa mais abjeta em outra. Para incorporar esse
consumo simbólico é preciso transitar pelo status e pela classe e dos capitais culturais.
Os restaurantes, como novos templos, com seus novos rituais, livros sagrados (menus) e
os chefs como sacerdotes, são um bom exemplo de como o gosto é aprendido e
“refinado”.
A alimentação ainda articula adaptações e relações com manifestações culturais
mais próximas ou distantes, geográfica ou culturalmente, sem que o sujeito abra mão de
identificações anteriores. O comensal é como o flâneur, observador que caminha
tranquilamente pelas ruas em busca de uma nova percepção da cidade, tomando-a como
fonte de inspiração e de seu prazer. A gastronomia, seja em Campina Grande ou Nova
Iorque, com seus rituais sofisticados é uma forma de distinção social. Assim, dominar
esses códigos é construir um capital social que distancia os indivíduos. Mas também
pode aproximá-los, se assimilares as novas linguagens, sua sintaxe e incorporarem no
espírito (cultura), enquanto alimentam o corpo (a comida).

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Grupo de Pesquisa Alere
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E-mail: grupoalerehistoria@gmail.com
Site: aleregrupo.wixsite.com/alere

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