Você está na página 1de 32

A PALAVRA ALGO , DE LUCI COLLIN

Por Layse Barnabé de Moraes


Mestra em Estudos Literários (UEL)
Doutoranda em Letras (UEL)
•Literatura contemporânea paranaense
•Livro de poesia
•Publicado em 2016
•Segundo lugar na categoria Poesia no 59º Prêmio
Jabuti (2017), o mais tradicional prêmio literário
brasileiro
LUCI COLLIN
•Autora curitibana
•Mais de 20 obras publicadas
•Transita por vários gêneros literários, mas escreve
principalmente poesia e contos
•Escritora e professora aposentada do Departamento
de Letras e Literatura da UFPR (Universidade Federal
do Paraná)
•Também com formação em música (percussão e piano)
PAULO LEMINSKI SOBRE LUCI COLLIN
“’Estou admirado com o nível técnico desta jovem poeta, nesta geração que pensa
que qualquer coisa é poesia’, elogiou, nada menos que Paulo Leminski no início da
década de 80, quando a escritora curitibana Luci Collin lançou seu primeiro trabalho
de poesias, "Estarrecer", em 1984. Desde então, ela tornou-se um dos nomes mais
respeitados da literatura contemporânea do Paraná.” (Marian Trigueiros em matéria
para a Folha de Londrina)

-> Poemas
- Deveras
- Meus Oito anos (intertexto) com o
poema romântico de Casimiro de Abreu
- Deserto
# Luci Collin é uma autora curitibana; lecionou
- Howcool (intertexto com Quadrilha de
letras e Literatura na Universidade Federal do
Carlos Drummond de Andrade.
Paraná; Escreve poesias e contos.
- É uma das escritoras contemporâneas do
Paraná mais renomada na atualidade.
PARTINDO DO TÍTULO
O que é a palavra algo?
•Algo é um pronome indefinido e diz sobre alguma coisa indeterminada, que não se
pode definir com precisão
•O título já nos dá pistas de que ali, no livro, será tratado de alguma coisa que # A autora, nesse livro,
retrata a perseguição,
escapa, mas que é perseguida pela poeta nos poemas, via palavra. Algo de busca, o entendimento
indeterminado, indefinido, que foge das mãos, cujo entendimento total se esquiva da palavra algo

•O próprio título também é uma brincadeira com a ambiguidade: o livro não é sobre
a palavra “algo” em si, mas sobre a dimensão da palavra, do escrever, da criação
literária, principalmente da poesia, que toca muitas vezes em coisas não definíveis
objetivamente
Eis aqui uma dica: procurem sentir os poemas antes de buscar o entendimento racional. Numa segunda
leitura, aí sim busquem por pistas mais formais, pontos de destaque, figuras de linguagem...
NA ORELHA DO LIVRO, POR SÉRGIO ALCIDES
•“De que espécie será essa alguma coisa – essa coisa alguma?”
•Poesia movediça, que insinua, oscila, perturba
•Esperança da poesia: “que talvez esteja num será”
POEMA QUE ABRE O LIVRO: “DEVERAS”
o poeta finge o poeta finge
e enquanto isso e enquanto isso
cigarras estouram vozes racham
pontes caem veias entopem
azaleias claudicam galeões afundam
édipos ressonam medeias abatem crias
vacinas vencem turvam-se as corredeiras
a bolsa quebra e o sapato aperta e
o poeta finge o poeta finge
e enquanto isso que as mãos cheias de súbitos
vagalhões explodem não são as suas
o pão adoce
astros desviam-se (Luci Collin em A palavra algo, p. 11, grifo meu)
manadas inteiras se perdem
a noite range
o vento derruba ninhos e
INTERTEXTO COM FERNANDO PESSOA:
“AUTOPSICOGRAFIA”
O que é intertexto? O poeta é um fingidor
De acordo com o dicionário Oxford Languages: Finge tão completamente
“Texto literário preexistente a outro texto e que é Que chega a fingir que é dor
aproveitado, por absorção e transformação, na A dor que deveras sente.
elaboração deste, ou que o influencia.”
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem, # Em contrapartida, Clarice Lispector se
Não as duas que ele teve, recusava a ler seus antigos textos, sentia
Mas só a que eles não têm. algo quando porventura os lia, mas não
era ¨algo¨ bom, como afirma Fernando
Pessoa em sua poesia.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(Fernando Pessoa em Poesias)
AINDA SOBRE “DEVERAS”
•Poema que abre o livro anuncia um pouco de tudo o que está por vir: bagagem
literária, referências mais clássicas (medeias, édipos) misturadas a assuntos do
cotidiano (o sapato aperta)
•Possui um diálogo com o famoso poema do poeta português Fernando Pessoa,
“Autopsicografia”, em que o eu-lírico atesta que o poeta é um fingidor já no primeiro
verso
•Assim como Pessoa, Luci usa essa ideia para iniciar o seu poema, repetindo-a por # Collin usa neste
poema a repetição:
quatro vezes, de forma a criar um ritmo, uma repetição, que dá a ideia de que, repetindo quatro
vezes que o "o
apesar de tudo, das coisas todas, das dores todas, o poeta continua fingindo, poeta finge#,
trazendo ritmo a
continua escrevendo, continua fazendo poesia... estrutura de seu
poema
•Cotidiano x vivência do poeta
“MEUS OITO ANOS”
AURORA DA MINHA VIDA
ORA IDA

OS ANOS TRAZEM AIS

(Luci Collin em A palavra algo, p. 67)


“MEUS OITO ANOS”
# significados
AURORA -> início DA MINHA VIDA -> aquilo que é
ORA -> agora IDA -> aquilo que já foi

OS ANOS TRAZEM AIS -> lamentos/tristezas


INTERTEXTO COM “MEUS OITO ANOS”, DE
CASIMIRO DE ABREU
Oh! que saudades que tenho Como são belos os dias
Da aurora da minha vida, De despontar da existência!
Da minha infância querida – Respira a alma inocência
Que os anos não trazem mais! Como perfumes a flor;
Que amor, que sonhos, que flores, O mar é – lago sereno,
Naquelas tardes fagueiras O céu – um manto azulado,
À sombra das bananeiras, O mundo – um sonho dourado,
Debaixo dos laranjais! A vida – um hino d’amor!

[...]
INTERTEXTOS
• Além de dialogar com o poema, bem conhecido, de Oh que saudades que eu tenho
Casimiro de Abreu (Romantismo), o poema de Luci Collin Da aurora de minha vida
também acaba bebendo de outras releituras e paródias Das horas
de Casimiro, como é o caso do poema “Meus oito anos”, De minha infância
de Oswald de Andrade (Modernismo): Que os anos não trazem mais
Naquele quintal de terra
Da Rua de Santo Antônio
Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais

Eu tinha doces visões


Da cocaína da infância
Nos banhos de astro-rei
Do quintal de minha ânsia
A cidade progredia
Em roda de minha casa
Que os anos não trazem mais
Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais
“HOWCOOL”
# Desencontros de pessoas que
se amavam, relacionamentos
líquidos da contemporaneidade.
ele foi ali na esquina foi embaralhar as cartas # Repetição das palavras para
eu fiquei à deriva eu fiquei virando a página representar a repetição dos
desencontros e descasos do "
ela foi tomar um chopp foi ali valer a pena relacionamento".
eu fiquei na janela foi ali pra comer fogo
meu amor eu fiquei pensando à beça
foi ao cinema ele foi lançar os dados
eu aqui virando as cartas ela diz que tudo passa
ele foi até a praça e
ela foi brincar com fogo eu fiquei
eu fiquei ali na rua eu fiquei
meu amor eu fiquei por isso mesmo
não disse onde
ela foi regar as ondas (Luci Collin em A palavra algo, p. 21)
eu fiquei aqui na fila
foi pegar um touro a unha
eu fiquei regando frases
• Desencontros, descompasso
•Relacionamentos líquidos, típicos da contemporaneidade
•Repetição, ciclo (tanto na repetição das palavras como na repetição do conteúdo,
daquilo que se passa no poema)
•Como diz o eu-lírico nos últimos versos, “tudo passa” e, já que é assim, ele também
passou
INTERTEXTO COM “QUADRILHA”, DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE #intertexto que relaciona os desencontros do
poema de Collin, os romances que não
aconteceram

João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
(Saiba mais sobre este poema aqui)
“DESERTO”
estão mortos o leito o peixe o fluxo estão mortas amostras e semelhanças
morrem os azuis os verdes ninguém mais quer ser semelhante a isso
imensidões de prata e ouros e não há como conceber a imitação
e o bater de asas não é mais
espaço nem som boiam destroços
o ar tem cheiro de ágio
estão mortos os que dançavam boiam pontos de interrogação
os que recriavam sua mão cínica gargalha
tudo o que reunia sua boca ácida determina
suas vozes são lama e os olhos vazando já nem divisam
são óbito são anos de término o lixo da sua civilização
seus dedos serão carícia nenhuma
só extravio do curso (Luci Collin em A palavra algo, p. 49)

estão mortos os conteúdos


a tartaruga é fóssil em cinco minutos
#Coisas que se foram nesta
•Tom de crítica contemporaneidade, o dinheiro e a
luxúria tomaram conta do que importava

•Poema-denúncia que dialoga com a atual situação do nosso país, principalmente no


que diz respeito ao meio ambiente
• “o ar tem cheiro de ágio” -> ágio = diferença entre a cotação da moeda de um
país e a de outro. Uma metáfora que diz sobre o quanto o dinheiro vale mais do que
ar que se respira, do que a maior possibilidade de vida
•“boiam pontos de interrogação” -> o absurdo é tamanho que foge ao entendimento
•Enquanto isso, os poderosos gargalham sem divisar (enxergar) que o que eles
chamam de civilização (e aqui cabe pensar em progresso também) é um lixo.
# os mais poderosos não se
importam com os males nessa
condição
ISSO POSTO
impecável algo
como uma aurora instala um dia como o primeiro olhar da mãe pro filho
como o botão abriga a rosa aberta e como o último sorriso de um pai

implícito como a impressão da palavra


como a lua define a decisão da vazante algo
e como o sol define a indulgência da lua
flama na folha de rosto

infinito (Luci Collin em A palavra algo, p. 13, grifo


como o entusiasmo dessa tempestade meu)
e como o pardal abrange o telheiro
• Comparações (como) para tentar dar conta de dizer em palavra; tentar dar conta
da subjetividade
• Mesmo assim, a indefinição da palavra algo flama (arde, queima) na folha de rosto
“A PALAVRA ALGO” É, SOBRETUDO, UM LIVRO
SOBRE A FALHA NO DIZER
•A escrita como uma espécie de perseguição
•Luci Collin persegue a palavra em busca de algo. Mas que algo é esse? Não se sabe. Por isso
escreve-se
•A beleza na falha:

“é na falha é na navalha dessa guitarra


Que se instala o melhor fôlego
É na batida que confunde o coro
Que corrói a pose da estátua
É na gíria e nos pés quebrados
Que se arraiga a melhor dança
E a graça do mosaico se restaura”
(trecho extraído do poema “Usufruto”, de Luci Collin em A palavra algo, p. 27, grifo meu)
A FALHA E A IMPOSSIBILIDADE DA ESCRITA
Isso faz lembrar da fala da escritora francesa Marguerite Duras:

•“Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve.”
Marguerite Duras
PARA PRESTAR ATENÇÃO
•Anáfora (repetição de uma ou mais palavras no início de orações, períodos ou versos
sucessivos. Saiba mais aqui)
•Comparação (como, tal qual etc.)
•Metáfora (comparação implícita), uma marca da poesia de forma geral
•Repertório de palavras (ler com dicionário em mãos para eventuais dúvidas)
• Bagagem literária (Luci tem formação em Letras e foi professora por anos. Isso
transparece nos seus escritos)
•Ritmo (Luci tem formação em música; o ritmo e a repetição são preocupações
constantes em seus poemas. Para ajudar, leia os poemas em voz alta)
NOMEAR PARA NÃO PERDER, MAS MESMO ASSIM PERDER

“O caráter acumulativo valoriza ainda o choque entre imagens, ajudando a produzir


o discurso metafórico ao longo do livro. Metáfora que é convocada menos como
força do que como impotência de dizer. Em outras palavras, nomear para não
perder, mas mesmo assim perder.” (Leonardo Gandolfi sobre A palavra algo para a
Folha de S. Paulo, grifo meu)
PARA ENTENDER MELHOR LUCI COLLIN:
ANTES DE LER, FAÇA UM ACORDO COM A ESCRITORA
• “Eu preciso de um leitor que tope fazer esse acordo comigo. “Nossa, eu li três vezes
aquela página para entender.” Era exatamente isso, era para ler. Eu preciso de um
leitor diferente. Se você for procurar nos meus livros uma boa história corrida
linearmente, não vai encontrar. Eu gosto de outra instância.” (Luci Collin em entrevista
ao Topview)
COMOVER -> MOVER COM O OUTRO
•“Eu e meu leitor vamos juntos. Quero comover, ou seja, mover com o outro”.
• “O poema é mais um jorro”
•“Então, por que escrever? Porque a literatura trata do que é real para o homem, do que é
verdadeiro, belo e importante. Ela, como outras linguagens artísticas, nos ajuda a fazer uma
re-dimensão. Nós nos olhamos, descobrimos coisas, mas — mais do que isso —, nós olhamos o
outro. Nós estamos com o outro. E é essa a função máxima: nos colocarmos perante nossa
própria existência.”
•“Livro é uma experiência reveladora. É um investimento no sentido de promover revoluções,
colocar-se em situações de reflexão, mudança, questionamento, de se emocionar. Quando
você compra um livro, está fazendo um pacto: eu aceito que eu vá sofrer uma intervenção. O
livro é esse veículo, te abre essa possibilidade de se comover.”
(Luci Collin em entrevista ao Topview, grifo meu)
PALAVRAS SONORAS: POEMAS PARA LER EM VOZ
ALTA
•“O poema é uma entidade sonora”

•“Ela é uma maneira de falar certas coisas em uma linguagem que trabalha nesse
nível metafórico, simbólico, mas também sonoro. Na nossa relação com a poesia,
especialmente no Brasil, amputou-se o elemento principal da poesia, que é a
sonoridade. Via de regra, a gente não abre o livro de poesia para fazer justiça à
condição de um poema – lemos o poema de forma silenciosa.”

•“É preciso ler o poema em voz alta, ler com outras pessoas, que seja uma atividade
de libertar o poema.”
(Luci Collin em entrevista ao Topview)
SEJAM LEITORAS E LEITORES ATENTOS
•“Se passamos pelo poema e ele não nos dá tudo que esperávamos, a gente não
volta, é descartado. Às vezes, tem um trabalho com a linguagem, tem sutilezas,
requinte — e isso demanda um leitor atento. Mais que isso, um leitor que estabeleça
esse pacto de querer extrair tudo de maneira amorosa. A leitura é um processo
lento. É como saborear uma coisa.” (Luci Collin em entrevista ao Topview, grifo meu)
LUCI COLLIN É UMA POETA DESAFIADORA
“Uma vez o Dalton Trevisan queria me passar uma mensagem e falou com um amigo
em comum para não me ofender. Ele disse: “pergunta pra Luci por que ela escreve
de uma forma tão difícil”. Eu falei: “fala pro Dalton que eu escrevo assim porque é
só assim que eu sei escrever.” (Luci Collin em entrevista ao Topview)

•Pois se desafiem também a tentar decifrar a palavra algo e lembrem-se, como no


poema “Usufruto” (p. 27): “é sem cartilha que a flor se elabora”.
REFERÊNCIA
COLLIN, Lucia. A palavra algo. São Paulo: Iluminuras, 2016.

A fim de facilitar a pesquisa, a referência dos outros textos utilizados se encontram junto com
cada citação.
OUÇA TAMBÉM O PODCAST SOBRE “A PALAVRA ALGO”
Episódio #5 | Clube de Leitura - Obras do Vestibular UEL 2021/22 "Palavra Algo"
de Luci Collin, com Layse Barnabé de Moraes
DÚVIDAS E QUESTIONAMENTOS
Sintam-se à vontade para entrar em contato comigo:
laysebmoraes@gmail.com ou @coracaononsense

#A palavra Algo é uma leitura cheia de sutilezas,


sentidos implícitos, vocabulários vindos de uma
ampla bagagem literária.
#O poema tem ritmo e sonoridade, remetendo a
músicas;
#Collin espera que decifremos seus poemas, os
poemas sonoros e ritmados, cheio de metáforas e
comparações, com estrutura e significados
complexos, bem escritos, pensados e planejados em
cada palavra, necessita de leitura atenta de quem
está disposto a encontrar a amplitude e beleza
dessas palavras.

Você também pode gostar